7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
1/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UFMG
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas FAFICH
APRESENTAO DE PACIENTES:
(RE)DESCOBRINDO A DIMENSO CLNICA
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Belo Horizonte
2006
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
2/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
APRESENTAO DE PACIENTES:
(RE)DESCOBRINDO A DIMENSO CLNICA
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em
Psicologia.
rea de Concentrao: Estudos Psicanalticos
Orientador: Prof. Antnio Mrcio Ribeiro Teixeira
Belo Horizonte
2006
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
3/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Apresentao de pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica.
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdadede Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal deMinas Gerais.
Prof. Antnio Mrcio Teixeira
Orientador
Dra. Maria Elisa Parreira Alvarenga Long
Dra. Ana Lydia Santiago
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
4/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
AGRADECIMENTOS
No poderia deixar de comear agradecendo queles atravs de quem conheci
a apresentao de pacientes: a Antnio Beneti, Elisa Alvarenga e Wellerson Alkmim, que
com sua escuta aguda, seu manejo cuidadoso, sustentados num desejo clnico bem
colocado, me transmitiram um querer saber mais - sobre a clnica, sobre a psicose e sobre a
apresentao.
Agradeo tambm, aos pacientes, que aceitaram participar destas
apresentaes que aconteciam no Raul Soares, e que, mesmo sem o saber, ao falarem de
sua dor, de seu sofrimento, de suas solues, nos ajudaram a manter vivo esse desejo
clnico, que o automatismo institucional insistia em apagar.
Desejo clnico que encontrou na parceria com Aline, Anamaris e Renata, e sob a
orientao do Leo, fora suficiente para sustentar, mesmo nos tempos mais inspitos, umprojeto como a Sesso Clnica do IRS. Espao to rico, to vivo, to dinmico, que
possibilitou que tantos outros projetos puderam florescer e frutificar.
Dentre estes projetos, a pesquisa sobre os efeitos clnicos da apresentao de
pacientes. Agradeo ao Jsus, que nos acolheu com tanto interesse e entusiasmo e com
quem, juntamente com Leo e Renata, formamos um novo grupo de trabalho.
Por fim, agradeo a todos os meus colegas e professores do mestrado, que
fizeram deste curso um perodo de muita alegria, de conversas preciosas e apoio mtuo.
Agradeo especialmente Claudinha e, sobretudo, Simone, novas parceiras de trabalho e
de afeto.
Agradeo tambm a Ram Mandil pela leitura cuidadosa e sua importante
contribuio na qualificao deste projeto. E tambm a Ana Lydia e a Elisa Alvarenga, que
cuja participao na banca, tanto contriburam para o avano de minhas questes.
Agradeo especialmente ao meu orientador, Antnio Teixeira, que acreditou no
meu trabalho, respeitou meu estilo e sempre me apoiou.
E agradeo tambm aos meus companheiros de afeto, que no participaram
com trabalho, mas que entenderam minha ausncia prolongada, sem nunca se ausentarem.
A minha famlia: pai, Mhu, me , Suely, Gui, Dudu, Mariela,e Rachel.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
5/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Ao Leo,meu amor,
companheiro neste e noutros projetos.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
6/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
RESUMO
Nos ltimos anos, a prtica da apresentao de pacientes vem crescendo no
campo psicanaltico, e isto se deve, sem dvida, aos incontestveis efeitos clnicos por ela
produzidos. Mas, para que possamos reconhecer o verdadeiro alcance deste dispositivo,
preciso partirmos para um trabalho de formalizao e sistematizao dessa prtica.
Entretanto, apesar de toda a polmica que h em torno da apresentao de pacientes, muito
pouco foi escrito, at agora, sobre esse tema.
Entendendo que, para se fazer uma anlise crtica e avanar nas elaboraes,
preciso conhecer as bases conceituais sobre as quais um processo se deu, este trabalho
tem como objetivo esboar um mapeamento histrico, procurando identificar as
circunstncias de seu surgimento, transformaes pelas quais passou, at seu uso no
momento atual. Uma nfase especial dada a Charcot, Clrambault e Lacan, pela
importante incidncia que a prtica de cada um exerceu sobre a forma como a apresentao
concebida e realizada na atualidade.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
7/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
RSUM
Depuis les dernires annes, la pratique de la prsentation de patients augmente
dans le mtier psychanalytique d sans doute aux effets cliniques quelle produit. Mais pour
quon puisse reconnatre la vraie porte de ce dispositif, il faut se tourner vers un travail de
formalisation et systmatisation de cette pratique. Pourtant, malgr toute polmique autour
de la prsentation des patients on a trs peu crit jusqu prsent.
On comprend que pour faire une critique et avancer les laborations, il faut connatre
les bases conceptuelles dun processus. Cette tude a pour but esquisser une cartographie
historique, en identifiant les circonstances de lavnement de la pratique de cette
prsentation, les transformations dont elle a subi et son application aujourdhui. On met
laccent sur la pratique de Charcot, Clrambault et Lacan cause de leur importante
collaboration la faon dont ce dispositif est conu et utilis nos jours.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
8/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
LISTA DE ABREVIATURAS
CID-10 Classificao Internacional de Doenas
CNPq Conselho Nacional de Pesquisa
CRIA - Centro de Referncia da Infncia e da Adolescncia
DSM-IV Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnstico
e Estatstico de Transtornos Mentais)
EBP - MG - Escola Brasileira de Psicanlise - Seo Minas
FHEMIG Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais
IPSMMG - Instituto de Psicanlise e Sade Mental de Minas Gerais
IRS Instituto Raul Soares
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
9/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 10Atualidade .................................................................................................................... 12Diferenciao ............................................................................................................... 14Formalizao................................................................................................................ 16
1 APRESENTAO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLNICA................................. 201.1 Contexto de seu surgimento................................................................................... 211.2 A realidade como forma de tratamento............................................................ ....... 241.3 Sobre a apresentao de pacientes ....................................................................... 341.4 Apresentao como prova de realidade ................................................................. 391.5 Sobre seu abandono.............................................................................................. 41
2 AS LIES CLNICAS DE CHARCOT EM SALPTRIRE ......................................... 482.1 Uma figura controversa .......................................................................................... 492.2 O percurso de Charcot ........................................................................................... 53
2.2.1 A histeria antes de Charcot........................................................................... 532.2.2 Salptrire esboo do trajeto: 1862-1893................................................... 54
2.3 As apresentaes de Charcot: um captulo parte ................................................ 652.3.1 Seu carter visual ......................................................................................... 652.3.2 Apresentao de Charcot X Interrogatrio clssico... .................................... 692.3.3 Sobre os efeitos das apresentaes de Charcot .............................. ............. 73
3 CLRAMBAULT, MESTRE DE LACAN ....................................................................... 813.1 Anacronismo paradoxal.......................................................................................... 813.2 Particularidades...................................................................................................... 83
3.2.1 O olhar do artista .......................................................................................... 833.2.2 O olhar do psiquiatra..................................................................................... 843.2.3 Enfermaria Especial...................................................................................... 87
3.3 Para alm de seu tempo ........................................................................................ 893.4 Apresentao de pacientes.................................................................................... 94
3.4.1 Seu estilo...................................................................................................... 943.4.2 Suas estratgias ........................................................................................... 97
4 APRESENTAO DE PACIENTES NA PSICANLISE ............................................... 1084.1 Freud, aluno de Charcot......................................................................................... 108
4.1.1 Freud: sob o efeito das apresentaes de Charcot ....................................... 1114.1.2 As apresentaes de Freud .......................................................................... 113
4.2 As apresentaes de Lacan................................................................................... 1194.2.1 (Re)instaurando a dimenso clnica .............................................................. 1224.2.2 Lacan, para alm de Clrambault ................................................................. 128
4.3 Apresentaes clnicas hoje: no rastro de Lacan.................................................... 1414.3.1 Apresentao tradicional X Apresentao clnica.......................................... 1424.3.2 Sobre os efeitos clnicos da apresentao de pacientes............................... 147
CONCLUSO................................................................................................................... 158
REFERNCIAS ................................................................................................................ 164
ANEXO 1.......................................................................................................................... 170ANEXO 2.......................................................................................................................... 172ANEXO 3.......................................................................................................................... 173ANEXO 4.......................................................................................................................... 174ANEXO 5.......................................................................................................................... 175
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
10/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
INTRODUO
O trao de Jerry1 que chamava ateno era os seus "atos perversos": aterrorizava
sua vizinhana ameaando as crianas, matando brutalmente os gatos e cachorrosda regio, e tambm com sua figura: sempre de culos escuros e com o corpomarcado por cortes costurados por suas prprias mos. Tomados como "distrbio decomportamento", seus atos sugeriam para alguns tcnicos uma psicopatia e suarelao com os mdicos era de desconfiana.Encaminhado ao Centro de Sade para pegar medicao, Jerry revela psiclogaque o acolhe, suas idias de morte e tentativas de suicdio. Segue-se a esseencontro a tentativa de encaminhamento para o CERSAM.Sua situao provocava angstia nos profissionais de rede, Centro de Sade eCERSAM, no apenas pelas constantes passagens ao ato, realizadas diante doolhar aterrorizado das pessoas e at mesmo dos tcnicos do servio, mas pelaimpotncia que os colocava diante de sua adeso precria ao tratamento. Em meioa estas dificuldades, sua terapeuta conseguiu escutar uma demanda: Jerry queria irao Programa do Ratinho2 para pedir-lhe um rosto novo. Esclarecido daimpossibilidade de lev-lo ao programa, a terapeuta oferece um outro espao: ir auma apresentao de paciente, proposta que aceitou com entusiasmo.Sua participao na apresentao teve um efeito fundamental sobre seu tratamento.Um primeiro aspecto foi a elucidao do diagnstico estrutural: nos atendimentos jhavia falado acerca de um estupro que sofrera na infncia, mas na entrevista elerevela aspectos desse episdio que possibilitaram precisar a as circunstncias deseu desencadeamento. Sobre o fato trouxe ainda um detalhe importante: lembra-seque aps o abuso o agressor jogou sobre ele um cachorro morto, o que, ao longo daentrevista, se revelou como um ponto de identificao ao objeto mortificado, aoresto.Outro aspecto fundamental foi sobre a direo de seu tratamento: na entrevista, emlugar de acolher o relato de seus "atos perversos", o entrevistador privilegiou suasconstrues feitas atravs da modelagem em argila, dos desenhos, trabalhos compapis e com lixo. Ainda mais importante, podemos marcar a interveno em suarelao com o corpo. Na entrevista a nfase se deslocou dos cortes e costuras dapele, para um desenho que trazia consigo: tratava-se do desenho de uma bailarina.Um desenho de grande importncia para ele, no apenas por ser o nico de seus
trabalhos que no havia destrudo, mas por ser este utilizado por ele como anteparos "vises"3. Na apresentao, ao se interessar pela bailarina, o entrevistador fezdestacar a percepo de Jerry sobre a impressionante capacidade da bailarina deficar na ponta dos ps e no cair (REIS, 1999) sem dvida uma outra forma dedar contorno a um corpo, muito diferente das costuras feitas na pele.A ocasio solene teve tamanho efeito sobre ele que, ao final da entrevista, retirou osculos escuros, sem os quais jamais se deixava ser visto, mostrando o rosto aopblico. Ato surpreendente, tanto mais quando verificamos sua funo: esconder a"deformao" de seu rosto decorrente de seu "envelhecimento precoce" doenaadquirida aps o abuso sexual. Tratava-se, portanto, de uma estratgia de defesafrente ao olhar insuportvel do Outro.A impresso causada no pblico, foi que a entrevista havia tocado esse sujeito.Impresso confirmada quando, em relato posterior, sua terapeuta informou que,como efeito da apresentao pde-se observar seu apaziguamento, com acentuadareduo das passagens ao ato agressivas contra si e contra terceiros. Contudo,ainda mais importante, foi o efeito de implicao: segundo a terapeuta, logo aps a
entrevista, o paciente, chegou para o atendimento com uma pergunta: Por qu queeu mato os cachorros? Este foi o ponto de passagem para a implicao de Jerry emseu tratamento. Efeito reafirmado quando, no atendimento do dia seguinte, traz uma
1 Jerry o nome fictcio proposto pela terapeuta do paciente que aqui tomamos como referncia. Todas asinformaes aqui apresentadas foram retiradas: 1. de sua entrevista realizada no Ncleo de Pesquisa emPsicose, IPSM-MG/IRS, em 5 de maio de 1999, pela Dra Elisa Alvarenga; 2. na discusso do caso realizada em13 de outubro de 1999 tambm no Ncleo de Pesquisa em Psicose; e 3. no artigo publicado por sua terapeuta:Andria Reis. (Conf. em: REIS., Andra, COSTA, ngela. Jerry. In: QUINET, Antnio. Psicanlise e psiquiatria controvrsias e convergncias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 269-272.)2 Programa de auditrio exibido na televiso.3 Segundo Andra Reis (2001), o paciente relatava vises com rgos - como corao, ou pedaos de corpo,como uma boca presa em um garfo ou um rosto se desmanchando que lhe indicavam a morte.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
11/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
surpreendente elaborao acerca de uma alucinao. Relatou ter visto "um pombocom cara de gente dizendo-lhe que o fim estava chegando e que iria mat-lo".Ressalta que, nesta viso, o dia, a noite, o sol e o arco-ris apareciam juntos. Sobreisso, comenta: Eu preciso fazer um trabalho para destacar o dia. Eu tenho duaspersonalidades: uma quer viver e a outra quer morrer e matar as pessoas... Euquero ser uma pessoa do dia-a-dia (REIS, 1999).Certamente, decorreu da apresentao o vislumbre de um outro caminho noapenas para Jerry, mas tambm para a equipe. Podemos dizer que como efeito da
escuta atenta do entrevistador, se fez evidenciar, sob a cena dos "atos perversos" deJerry, outras formas menos nefastas, criadas por esse sujeito para ligar-se ao corpo,ao campo do Outro. Abriu-se, ento, como perspectiva para a equipe, a construo esustentao dessas sadas mais favorveis para o paciente.
Este apenas um dos muitos exemplos clnicos que temos podido acompanhar
nos encontros de psicanlise4, nos quais as discusses sobre a apresentao de pacientes
tem-se feito mais presente. Vemos, nitidamente, neste caso, que a entrevista pblica teve
um efeito fundamental na direo do tratamento. A apresentao operou, claramente,
enquanto uma interveno, que teve um duplo efeito: do lado do sujeito de validar, dar
sustentao s suas invenes e, do lado da equipe, de possibilitar seu reposicionamento
diante dessa cura. Podemos acrescentar, ainda, seu efeito sobre o pblico, para alm da
surpresa e do aprendizado de um certo "modus operandi":de uma escuta que faz emergir o
sujeito e de um clculo da clnica que toma o saber do paciente como diretriz de seu
trabalho, podendo ver, ainda, o seu desejo pela clnica colocado em questo, como
testemunha deste trabalho.
Se, por um lado, h comprovaes acerca de seu efeito, por outro, este mesmo
efeito suscita inmeras questes: que fundamentos clnicos viabilizam que uma
apresentao de pacientes produza efeitos clnicos em um sujeito psictico? Se o paciente
j vinha sendo atendido sob orientao psicanaltica, por que foi necessrio esse dispositivo
para produzir efeitos no paciente? O que diferencia a apresentao de pacientes de uma
sesso analtica? Se a diferena est na presena do pblico, como podemos entender sua
funo? Do lado do analista, o que o autoriza ao ato em uma apresentao, e do lado do
paciente, o que o torna permevel a essa interveno? Para qual paciente e em que
momento clnico a entrevista seria indicada? Haveria restries quanto sua aplicao?
Como fazer esse clculo, uma vez que s sabemos seu efeito a posteriori?
4 Tomemos como exemplo o Primeiro Encontro Amrica do Campo Freudiano, realizado em 2003, na cidade deBuenos Aires, Argentina, quando tivemos uma mesa sobre o tema: Conversao clnica 1: Apresentao deEnfermos. Dois anos depois, em 2005,no Segundo Encontro Americano, sobre Os resultados teraputicos dapsicanlise, tambm na Argentina, o assunto ganhou tal destaque que foi um dos eixos temticos do Encontro.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
12/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Os efeitos clnicos e de transmisso que esse caso demonstra, assim como as
questes que suscita, j seriam, por si s, uma razo para justificar uma investigao acerca
desse dispositivo, mas temos, ainda, outros motivos de igual importncia que apontam para
o interesse nesta investigao.
Um primeiro motivo, que importante marcar, que no so todas as
apresentaes que produzem esse tipo de efeito; pelo contrrio, podemos mesmo dizer que
esse um encontro raro. preciso considerar que no h garantia de que os resultados
sejam sempre positivos: pode ser que nada se produza num encontro, mas pode ser,
tambm, que testemunhemos efeitos desencadeantes ou de reagudizao de uma crise, por
exemplo. Assim, formalizar os fundamentos clnicos que a operam, sistematizar sua
aplicao, certamente contribuiria muito, no apenas para ampliar as possibilidades de se
produzir um bom encontro e para diminuio dos riscos, mas tambm para aplicar suas
conseqncias no tratamento psicanaltico da psicose, de uma forma geral.
ATUALIDADE
Seria, ainda, justificativa para essa investigao, a atualidade do tema que,
como chamou ateno o professor Ram Mandil poca da qualificao deste trabalho,
ultrapassa o campo mesmo da apresentao.
Um primeiro aspecto dessa atualidade diz respeito psicanlise aplicada. Na
prtica atual, os psicanalistas perguntam-se sobre sua insero na cidade. No que diz
respeito sade mental, mais especificamente, a pergunta que se coloca : como abrir
espao ao sujeito da palavra em uma instituio tradicionalmente mdica, que opera com
uma lgica universalizante e silenciadora? Ainda que seja uma tarefa difcil, no sem
precedentes. Podemos buscar inspirao no trabalho de Lacan que, por cerca de 30 anos,
realizou apresentaes de pacientes em hospitais psiquitricos. Ao associar a psicanlise a
essa prtica, tradicionalmente mdica, Lacan no apenas proporcionou um dilogo acerca
da interseo entre psiquiatria e psicanlise, mas possibilitou, principalmente, que a fala do
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
13/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
paciente ressoasse no universo institucional. Como nos indica Franois Leguil, [...] a
apresentao de Lacan hoje a pedra angular de nossa reflexo sobre a presena do
analista no hospital (LEGUIL, 1998, p. 99).
E, realmente, a apresentao revela uma impressionante capacidade de
viabilizar a aplicao da psicanlise na instituio. Diversas experincias com a
apresentao de paciente5 tm demonstrado que, tendo em vista os efeitos clnicos que dela
podem ser extrados, este um dispositivo que desperta o interesse da comunidade clnica.
Mesmo profissionais de formaes diversas, que no a psicanaltica, diante de impasses da
clnica, ao se encontrarem com seus recursos esgotados, acabam por demandar esses
espaos, buscando outras solues, que no as tradicionalmente utilizadas. Na
apresentao, a diversidade profissional, em suas diferentes especialidades e formaes
tericas, pode-se encontrar em um impasse comum: o que fazer com um determinado
paciente. E, efetivamente, como efeito de uma apresentao, possvel fazer uma
apreciao mais cuidadosa do caso. O esclarecimento do diagnstico, a direo do
tratamento e do encaminhamento so exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos,
ou redefinidos, a partir de elementos revelados durante a entrevista. Isto gera, com
freqncia, efeitos muito positivos na implicao da equipe, favorecendo, inclusive, que asintervenes dos diversos profissionais envolvidos no tratamento sejam mais articuladas,
integradas, uma vez que podem ser orientadas por um clculo feito, coletivamente, na
discusso do caso que se segue entrevista. No que diz respeito psicanlise, esse
dispositivo possibilita que sua lgica circule, servindo de orientador ltimo para o trabalho de
uma equipe, mesmo que heterognea, quanto formao de seus profissionais. O efeito,
em extenso, no tratamento , geralmente, constatvel a posteriori.
Tal alcance prtico, cujos efeitos podem ser constatveis na clnica, vm
destacar um outro aspecto importantssimo da apresentao de pacientes: diante da
necessidade de darmos uma resposta s exigncias contemporneas da avaliao, que
5 Tomamos como referncia, um trabalho de seis anos de apresentaes de paciente no Instituto Raul Soares(IRS), hospital psiquitrico da rede FHEMIG, no qual aconteciam, regularmente, dois espaos de discussoclnica: o Ncleo de Pesquisa em Psicose (desde 1999) - um projeto do IPSM-MG em parceria com o IRS; e aSesso Clnica do IRS (2000 a 2005). Ambos espaos de orientao psicanaltica, sendo as entrevistasrealizadas por analistas da EBP-MG.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
14/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
impe, como excelncia, a racionalidade dos resultados puramente estatsticos, a
apresentao pode ser tomada como um importante instrumento de resposta para fazer
frente a essas exigncias, sem, no entanto, renunciar aos princpios ticos que regem nossa
prtica.
Por fim, mas no menos importante, o dispositivo da apresentao, marcado por
seu aspecto extremo de se dar em um nico encontro, talvez seja um lugar privilegiado para
se extrarem alguns elementos, para pensarmos o efeito do que se tem chamado "o
encontro com um psicanalista". Mais uma vez, retomamos a valiosa contribuio do
professor Ram Mandil:
A idia do encontro com um analista tem sido ponto de apoio para se pensar apsicanlise no mundo contemporneo, porque, provavelmente, os encontros com os
psicanalistas podero, futuramente, ter uma forma muito mais prxima daapresentao de paciente do que a gente imaginava. No mundo contemporneo,talvez eles tenham a caracterstica de serem encontros nicos. Trabalhar a partir daapresentao interessante porque permite pensar o que seria esse "encontro comum psicanalista", numa instituio, numa clnica, num centro de tratamento. Ou seja,pensar o que poderia ser o efeito do encontro com um analista de uma forma geral.6
DIFERENCIAO
Quando fazemos tal elogio apresentao, indispensvel esclarecer que
fazemos referncia especificamente apresentao realizada segundo a proposio de
Lacan, que transps para o antigo dispositivo psiquitrico da apresentao, a escuta
psicanaltica.
Com isso, queremos marcar que a apresentao, longe de ser um dispositivo
uniforme, marcada, como a prpria psiquiatria, pela multiplicidade de enfoques.
Conseqentemente, h variaes tanto no objetivo de seu uso, quanto nas tcnicas de
execuo.
Assim, no nos , de toda forma absurdo, depararmos com posies contrrias
que discriminam e, mesmo, condenam esta prtica. Tomemos, como ilustrao, um trecho
de um artigo de Chain Katz, intitulado "A super violncia em psicanlise": [...] o que
apresentado [paciente] destitudo de sua condio de sujeito humano; posto apenas na
6 Fala extrada das anotaes feitas no decurso da discusso sobre essa dissertao realizada durante aQualificao, em 09/06/2005.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
15/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
condio de objeto para uma (re)afirmao do j sabido [...]. Para o enfermo em
apresentao nada ir se modificar (KATZ,1992, p. 3). Ou podemos nos referenciar,
tambm, para marcarmos a atualidade da questo, na recente carta divulgada pelo
Conselho Federal de Psicologia, que abomina a apresentao com frases como:
Aos estudantes, conclamamos que se rebelem contra o comodismo conservadordos mestres que insistem nesta tradio decadente e oferecem apenas uma versocaricata, institucionalmente deformada, das experincias do sofrimento humano depessoas assim reduzidas condio de meras cobaias para uma aprendizagemacadmica. Rebelem-se!7
Realmente, no podemos deixar de concordar que algumas prticas,
especificamente as de cunho estritamente didtico, podem ser invasivas, desrespeitosas,
objetificantes. Absurdo, contudo, a forma como tais crticas so feitas, poderamos dizer,
de forma leviana, at mesmo irresponsvel, que desconsidera a diversidade dessa prtica,
colocando tudo num "saco de gatos", como se se tratasse de uma prtica homognea. E
neste ponto que no podemos nos silenciar.
Diante de um movimento que parece visar ao fim dessa prtica, torna-se
absolutamente necessria, psicanlise, a sistematizao da singularidade de sua prtica.
preciso formalizar seus efeitos no tratamento psicanaltico do sujeito psictico, na
articulao do trabalho em equipe, na formao de profissionais, na transmisso da
psicanlise, e principalmente, evidenciar seu efeito de subverso, uma vez que esse
dispositivo capaz de introduzir, em meio lgica universalizante da instituio, a dimenso
singular do sujeito.8 Ou seja, preciso caracteriz-la enquanto um dispositivo capaz de
restituir ao "doente", ao "louco", seu status de sujeito, fazendo frente s crticas, e
(re)dimensionar seu lugar de importncia clnica.
7 Conf. Anexo 1.8 Sobre o tema, conferir: ANDRADE, Renata. Discusso X construo do caso clnico; FERREIRA, Cristiana,Sesso clnica: efeitos de interveno institucional; MENDES, Aline. Tratamento na psicose:o lao social comoalternativa ao ideal institucional;e PINTO, Anamaris. A sesso clnica como princpio de articulao do diverso.Esses artigos versam sobre a experincia realizada no Instituto Raul Soares, de 1999 a 2005, e foramapresentados na revista Mental Revista de Sade Mental e Subjetividade da UNIPAC, ano III, n. 4, jun. 2005.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
16/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
FORMALIZAO
Tomando, ento, como proposta, a formalizao dessa prtica psicanaltica,
encontramos inspirao em Lantri-Laura. No prefcio obra Fundamentos da clnica, dePaul Bercherie, ele indica que, se quisermos esclarecer o estado atual da apresentao de
pacientes, preciso partir de seu passado, de sua origem.
A criao da apresentao de pacientes data da poca mesma do nascimento
da psiquiatria e seu exerccio encontra-se intrinsecamente articulado ao saber psiquitrico,
sendo, a um s tempo, espao de aplicao de suas concepes e fonte de constituio
desse saber.
Contudo, ao investigar o histrico da apresentao, uma curiosidade se
evidencia no h, ao longo de toda a evoluo da psiquiatria, elaboraes direcionadas
especificamente a essa prtica. Entretanto, como nos disse Lantri-Laura, ao falar do estudo
da psiquiatria, o que se aplica perfeitamente ao nosso objeto, o campo histrico
fundamental:
Somente esse tipo de esclarecimento [histrico] pode nos ajudar a relativizar oprprio presente da psiquiatria, pois s podemos adotar uma atitude de interessecrtico frente psiquiatria de 1980 (no nosso caso, a apresentao atual), sob acondio de ver nela o desembocar e a complicao progressiva de um conjunto dequestes que comearam a ser levantadas pelo menos no final do sculo XVIII.Logo, esclarecer o presente pelo conhecimento de seu passado e, pelo mesmomovimento, relativiz-lo: o estudo histrico aparece, assim, como o meio para umconhecimento mais exato da psiquiatria, conhecimento que possui um valor prticoincontestvel e que nunca se limita a um adorno erudito. (LANTRI-LAURA, 1989, p.14) (Grifos meus)
Assim, diante dessa lacuna com a qual nos deparamos, uma necessidade se faz
imperativa: precisamos, como primeiro passo desse trabalho de formalizao, reconstituir o
saber exposto acerca da apresentao, reconhecer seu processo histrico e, assim, poder
constituir melhor esse nosso objeto de pesquisa.
Dessa forma, todo o interesse clnico que se coloca acerca do tema dever ser
relegado a um segundo tempo de investigao. No presente trabalho, vemo-nos limitados a
essa etapa preliminar, a esse trabalho de base uma investigao sobre o processo
histrico que desemboca na situao na qual nos encontramos hoje, em nossa prtica.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
17/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Mas como fazer este percurso histrico se no h, nos clssicos, formulaes
sobre o tema? Nos textos da poca no h elaboraes nem sobre sua prtica, nem sobre
seus efeitos. Tampouco encontramos informaes sobre o tema em trabalhos mais
recentes, produzidos por historiadores da psiquiatria. O material disponvel reduz-se a
referncias casuais, intudos na entrelinha da forma como os autores costumavam expor
suas teorias e, eventualmente, em algum relato de caso, o que tambm no era comum na
poca.
Sobre esse material escasso, temos ainda que trabalhar com cuidado, pois, mais
uma vez, seguindo uma advertncia de Lantri-Laura:
devemos, de fato, desconfiar da confuso entre a teoria que efetivamente norteiauma prtica e a reflexo explcita que os praticantes em causa fizeram sobre ela;
tudo o que sabemos sobre a importncia da tradio oral, na iniciao, natransmisso e na reproduo do saber e da habilidade clnicos, e sobre os poucosvestgios que ela nos deixou, leva-nos a aquilatar a dificuldade de tal investigao.(LANTRI-LAURA, 1989, p. 19)
Mas, mesmo com todas essas dificuldades, poderemos nos dedicar, em nosso
primeiro captulo, histria da apresentao de pacientes poca da psiquiatria clssica,
graas s preciosas investigaes de Michel Foucault, apresentadas no livro El poder
psiquitrico (2005). Poderemos, portanto, numa leitura absolutamente marcada pelo estilo
de Foucault, trabalhar aspectos do surgimento e da utilizao da apresentao.Na realidade, grande parte do material bibliogrfico que faz referncia ao
dispositivo da apresentao, so textos de psicanalistas que visavam a falar,
prioritariamente, sobre as apresentaes de Lacan com exceo dos textos
contemporneos, que tratam dos efeitos clnicos, to em foco na atualidade, e que tm se
multiplicado, nos ltimos anos. Felizmente, esses textos forneceram pistas sobre a histria
da apresentao, o que serviu de norte para o nosso trabalho.
Uma referncia recorrente (e, nesse caso, tambm nos textos sobre a histria da
psiquiatria), Charcot suas apresentaes, tomadas como verdadeiros espetculos de
abuso e desrespeito ao paciente, so apontadas como piv da intensificao do movimento
crtico direcionado psiquiatria. Seu estilo foi tomado como o pice do abuso do poder
mdico sobre o paciente. Entretanto, o trabalho de Charcot tomado como objeto de
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
18/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
investigao em nosso segundo captulo, tanto pelo interesse que desperta esse carter
espetacular de suas apresentaes e suas conseqncias, mas tambm por uma
particularidade de sua histria muito preciosa para ns, psicanalistas afinal, foi em suas
entrevistas que Freud, decididamente, se interessou pelas histricas. Ainda que Freud no
se tenha utilizado do dispositivo da apresentao, ele no deixa dvida quanto ao efeito que
estas produziram sobre ele.
No terceiro captulo, investigaremos o trabalho de Clrambault, que, como
Charcot, nos interessa duplamente, pois Clrambault, nas palavras do prprio Lacan, foi
considerado seu nico mestre em psiquiatria e, curiosamente, seu mestre era tambm
reconhecido por suas apresentaes: um misto de preciso e violncia que provocava, em
seus seguidores, tanto espanto e admirao, quanto repdio.
Por fim, chegamos psicanlise. No quarto captulo falaremos, de incio, da
experincia de Freud. Entretanto, as apresentaes de Lacan sero nosso foco principal.
Certamente, seremos obrigados a fazer um recorte, pois, falar de suas apresentaes daria,
por si s, uma dissertao completa de mestrado. Seguindo a perspectiva anterior, deter-
nos-emos nos aspectos histricos, dando nfase s modificaes que Lacan introduziu no
dispositivo tradicionalmente psiquitrico, que resultaram, em verdade, na subverso deste.Ao longo desse percurso, tentaremos mostrar que a grande subverso produzida
por Lacan, na apresentao de pacientes, diz respeito subverso mesma da psicanlise.
Se a psiquiatria opera a partir do saber que detm sobre seu paciente, veremos que, na
psicanlise, o saber fundamental, que ir nortear o analista na direo da cura, est do lado
do sujeito. Em lugar de operar com um saber prvio a ser aplicado ao paciente do lugar de
mestria, to caro psiquiatria, a psicanlise esvazia este lugar para escutar o que o prprio
sujeito tem a dizer sobre o seu sofrimento. Assim, a psicanlise d voz a um saber antes
ignorado, desqualificado, alienado. Um saber que, por se apresentar de forma
insuficientemente elaborada, deve ser construdo com o sujeito.
Ao aplicar a escuta psicanaltica prtica da apresentao, Lacan reproduz a,
essa subverso. Assim, tambm na apresentao de paciente, a nfase se deslocar do
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
19/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
saber do mdico para o saber do paciente, ou, nos termos em que iremos trabalhar, do
saber sobre o paciente ao saber do paciente.
Por fim, respeitando delimitao imposta pelo objetivo deste trabalho,
encerraremos esse percurso, dando uma breve notcia do ponto em que nos encontramos,
hoje, em nossas elaboraes. Quanto s perguntas que se colocam ainda sem respostas,
que sirvam de mote para investigaes futuras.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
20/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
1APRESENTAO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLSSICA
"A apresentao de pacientes uma prtica de ensino e de estudo clnico dos
distrbios psiquitricos contempornea da prpria constituio da psiquiatria" (QUINET,
1999, p. 14).
Sendo a psiquiatria clssica uma clnica calcada no olhar, na qual a observao
era pr-condio necessria, seno o objetivo ltimo da interveno, a apresentao surgiu
como um dispositivo muito apropriado para o estudo minucioso do enfermo, visto que
favorecia a apreenso dos fenmenos a partir de sua descrio, detalhada pelo prprio
paciente.
Mesmo sendo reconhecida sua importncia na constituio do saber psiquitrico
e a extenso de seu uso, tanto na psiquiatria francesa quanto na psiquiatria alem,
impressionante a falta de referncia direta sobre as apresentaes. Seu uso evidencia-se,
antes, na forma como os autores clssicos apresentavam os casos clnicos, pois,
habitualmente, o faziam dirigindo-se a um pblico, do que propriamente enquanto um tema
de investigao, sendo raro encontrar elaboraes, seja sobre seu uso, seja sobre seus
efeitos. Para eles: "a va sans dire".
Portanto, para pesquisar essa prtica, conta-se essencialmente com os vestgios
que a tradio oral propagou.
Contudo, a falta de elaborao no perodo clssico contrasta com o aumento de
interesse que o tema desperta na atualidade, no meio psicanaltico. Nesses textos
contemporneos, comum encontrarmos a indicao de Jean-Pierre Falret1 como precursor
dessa prtica, pois, sem dvida, foi um dos psiquiatras que efetivamente mais utilizou este
dispositivo, e, como veremos adiante, um dos poucos que discorreu sobre o tema.
Entretanto, segundo Foucault, foi com Esquirol2 em 1817! que tivemos as
primeiras prticas clnicas. Nessa data, ele abriu um curso de clnica das enfermidades
1Jean Pierre Falret (1794-1870) Nas obras de Falret, h vrias referncias apresentao de pacientes. Conf.
Maladies mentales et ds asiles dalin. Leons clinique (1864).2 Jean Etienne Esquirol (1772-1840)
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
21/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
mentais em Salptrire, tendo ministrado suas aulas at 1826. Em pouco tempo, o
dispositivo passou a ser adotado como principal mtodo de ensino. O curso teve um
sucesso alarmante, at no estrangeiro. Assim, a partir de 1826, Esquirol continuou dando o
curso em Charenton. Segundo Foucault, no perodo de 1830-1835, esse sistema de
apresentao clnica, j havia alcanado tal repercusso, que, na Frana, era exercido por
todo chefe de servio.
Essa uma primeira surpresa com a qual nos deparamos, pois, ao contrrio do
que estamos acostumados a encontrar nos textos sobre apresentao, que habitualmente
destacam seu carter como sendo essencialmente didtico, vemos aqui que, ao contrrio,
seu aspecto clnico tambm possua um lugar privilegiado, pois, conforme informao de
Foucault, mesmo aqueles chefes de servio que no estavam atrelados prtica de ensino,
realizavam apresentaes. (Foucault, 2005, p. 219)
1.1 CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO
Tomando como referncia a leitura de Foucault, o nascimento da psiquiatria
datado 1793, ano em que Pinel3 assumiu suas funes em Bictre. Portanto, sendo o ano
de 1817 a data indicada por ele para delimitar o incio das apresentaes clnicas, no h
exagero em dizer que, praticamente, iniciaram juntas.
Sobre esse perodo do nascimento da psiquiatria e, por conseguinte, da
apresentao, recorreremos a Foucault, em seu clssico trabalho A histria da loucura
(1999). Atravs de um estudo arqueolgico da loucura, Foucault nos possibilita situar as
condies histricas, em seus aspectos sociais, polticos e econmicos, que engendraram o
surgimento da psiquiatria.
De fato, a psiquiatria surgiu, no como o resultado de algum progresso cientfico
que pudesse ter lanado um novo olhar sobre as causas ou sobre o tratamento da loucura.
3 Philippe Pinel (1745-1826)
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
22/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Pelo contrrio, ela nasce em conseqncia de longo processo de dominao da loucura,
cujo percurso passou antes pela ordem moral, do que pelo conhecimento mdico.
Foucault explicita que a relao com o louco era ditada no por regras de
conhecimento cientfico, mas pela "percepo social". Em verdade, no momento que
antecede o nascimento da psiquiatria, o louco j se encontrava internado. Contudo, ele no
se encontrava sozinho era a percepo social, que, de forma indistinta e indiferenciada,
mandava o louco para a internao, juntamente com outros tipos sociais, que, por
transgredirem as leis da razo e da moral, eram percebidos como indesejveis, e, portanto,
recolhidos e enclausurados.
Todavia, importante marcar que essas instituies de internao no eram de
tratamento, mas estruturas "semi-judicirias", entre a polcia e a justia, que tinham por
objetivo a manuteno da ordem. Foucault designar, sob o nome de "grande
enclausuramento", esse fenmeno eminentemente moral, instrumento de poder poltico, que
tinha a funo de garantir a excluso e a correo daqueles que se colocavam enquanto um
obstculo ordem social. Assim, temos que, grande parte da populao do
enclausuramento, era composta por libertinos, prdigos, "feiticeiros", adlteros, devassos,
agressivos, entre outros, e tambm por pobres desempregados, que, no sendo nemprodutores, nem consumidores, ficavam margem da economia mercantilista, sendo
acusados de vadiagem. Junto com eles, os loucos.
Com o nascimento do capitalismo, parte dessa populao que havia sido
excluda foi reintegrada para o trabalho. Entretanto, o louco, por ser considerado inapto para
o trabalho, um elemento negativo, sem utilidade econmica, permaneceu excludo. Dessa
forma, as casas de recluso passaram a ser destinadas exclusivamente aos loucos, e foi
nesse momento que o controle desse tipo social excludo foi passado para as mos do
mdico.
Isso pode parecer pouco, mas foi fundamental para determinar o destino que
ainda hoje se reserva aos loucos (MACHADO, 1988, p. 76). Ainda que, num primeiro
momento, a loucura no tivesse uma significao patolgica, a medicalizao da loucura
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
23/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
implicou a noo de que a recluso, que a internao teria, em si, uma dupla funo:
atuando enquanto um lugar de ecloso da loucura e tambm de sua cura.
Possibilitar a ecloso da loucura significava possibilitar a expresso de sua
verdade. Tal concepo baseava-se na noo de crise noo de grande importncia para
a medicina e dominante at os fins do sculo XVIII:
A crise, tal como era concebida e exercida, precisamente o momento em que anatureza profunda da doena sobe superfcie e se deixa ver. E o momento em queo processo doentio, por sua prpria energia, se desfaz de seus entraves, se libertade tudo aquilo que o impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a seristo e no aquilo, decide o seu futuro - favorvel ou desfavorvel. [...] Nopensamento e na prtica mdica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeitode um ritual e ocasio estratgica. (FOUCAULT, 1981, p. 114)
De fato, nesse primeiro momento em que a medicina se ocupou do louco, ela
ainda no possua uma teoria formulada, mas podemos dizer que foi justamente a recluso
do louco em um lugar prprio para acolher e mesmo provocar a crise, que, por possibilitar a
produo da "verdade da doena", viabilizou tambm, dar conta de sua especificidade, e
constituir esse campo de saber. Foi ento que a loucura passou a ser observada, tomada
como objeto de conhecimento. (Foucault, 1981, p. 121) O nascimento da psiquiatria
decorreu, portanto, desse processo de medicalizao da loucura, que transformou o louco
em doente mental.
Nesse momento inicial, em que a psiquiatria exercia uma teraputica sem
medicina, o mtodo de trabalho proposto por seu fundador, Pinel, foi a observao: A
alienao mental exige o trabalho atento de autnticos observadores para sanar a desordem
em que se encontra (PINEL, 1801 apud PESSOTTI, 1994, p. 145) Assim, a clnica
psiquitrica instituda por Pinel introduziu o chamado mtodo clnico.
Segundo Isaas Pessotti, o mtodo clnico implicava a observao prolongada,
rigorosa e sistemtica das transformaes na vida biolgica, nas atividades mentais e nocomportamento social do paciente. (Pessotti, 1994, p. 170) Mas importante indicarmos
que, para Pinel, o crebro no era atingido; a nfase estava colocada na mente, que estaria
perturbada em seu funcionamento. Decorre dessa concepo de Pinel sua crena na ao
possvel do tratamento moral e na curabilidade potencial da loucura, e, o que mais
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
24/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
importante para ns, introduz a histria de vida do paciente, como recurso diagnstico
essencial. (Bercherie, 1989, p. 43)
Segundo Franz Alexander, Esquirol, o mais eminente discpulo de Pinel, seguiu
com tanta preciso o trabalho de seu mestre, que as contribuies dos dois homens so
freqentemente confundidas. Mas, sem dvida, preciso registrar os avanos do discpulo
em relao ao mestre. Em muitos sentidos, suas descries de sndromes clnicos so
ainda mais precisas que as de seu mestre (ALEXANDER,1968, p. 190).
No que diz respeito ao interesse pela histria de vida do paciente, Esquirol
tambm aprimorou a abordagem do mestre. Para alm dos acontecimentos histricos,
Esquirol relacionou os acontecimentos psicolgicos precipitantes que pareciam
significativos no colapso mental de centenas de seus pacientes na Bictre e na Salptrire
(ALEXANDER,1968, p. 190).
verdade que no h formulaes sobre o fato de Esquirol ter comeado a
utilizar o relato dos enfermos como uma prtica clnica em suas aulas, mas, essas
observaes sobre seu interesse nos aspectos psicolgicos do paciente, parece ser uma
chave na compreenso desse fato: para se tomar conhecimento dos aspectos histricos,
morais e psicolgicos do adoecimento, certamente isto s se dar pela narrao dopaciente, o que d a seu relato um lugar de grande importncia.
Entretanto, cabe ressaltar que a fala do paciente era acolhida, mas com vistas
interveno corretiva e de diagnstico. No se rejeitava a idia delirante, pois a ela devia-se
contrapor a realidade, contudo, no havia inteno de penetrar em seu universo no se
escutava realmente as palavras da loucura.
1.2 A REALIDADE COMO FORMA DE TRATAMENTO
Teremos, assim, que a interveno propriamente mdica, nesse perodo, era
bastante limitada, seno inexistente.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
25/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Em realidade, acreditava-se que a cura derivaria do prprio funcionamento do
asilo: isolamento, rigor de normas e hierarquia sustentada em medidas
punitivas/teraputicas, que visavam a controlar e adequar o comportamento do louco.
Nesse momento portanto, no se produziram teorias sobre a cura, nem mesmo
tentativas ou sistematizao destas. O que h so apenas descries de mtodos de
interveno: normas, planos tticos e estratgicos do funcionamento do regime asilar, dos
mtodos de aplicao dos castigos e das tcnicas "teraputicas".
Felizmente, temos alguns relatos de cura, como, por exemplo, o da cura do Sr.
Dupr4, realizada por Franois Leuret5, e a partir deste precioso relato que Foucault
procura sistematizar esse trabalho de cura, extraindo o mecanismo geral de ao
teraputica da poca. Seguiremos, a partir daqui, as elaboraes apresentadas por
Foucault, no livro El poder psiquitrico(2005).
Para entendermos o "tratamento", necessitamos entender, primeiramente, uma
noo comum, na poca, sobre a loucura qualquer que fosse seu contedo, haveria
sempre certa afirmao de onipotncia. Esse era um elemento que se podia atribuir com
absoluta certeza a qualquer loucura: onipotncia que se manifestava, claramente, nas idias
delirantes de grandeza, nas idias de perseguio, e que, mesmo quando no fosseacessvel pela via do delrio, se expressava na vontade e nos comportamentos
desempenhados pelo paciente, que dispensava qualquer argumentao lgica ou
demonstrao de provas, bastando apenas a si mesmo como garantia de sua certeza
absoluta. (Foucault, 2005, p. 174) Como ponto inicial do "tratamento", tratava-se de vulnerar,
ferir essa afirmao de onipotncia.
Furar essa onipotncia era submeter o paciente realidade. A interveno
psiquitrica era, antes, uma tentativa de subjugar, de dominar essa vontade onipotente, ou
seja, uma interveno sustentada no poder psiquitrico do que uma teraputica
sistematizada, elaborada.
4 Conf. nota 9, p.30.5 Franois Leuret (1797-1851). Foucault considera esse relato o exemplo mais elaborado de cura que seencontra na literatura francesa. Em sua opinio, foi Leuret quem no apenas definiu a cura clssica de maneiramais precisa, meticulosa, como tambm foi quem deixou a maior quantidade de documentos sobre suas curas.(Foucault, 2005, p. 170)
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
26/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Para subjugar essa onipotncia, a instituio atuava, ela mesma, enquanto uma
imposio da realidade. Atravs de um regime de regras rgidas de funcionamento, de
trabalho obrigatrio e de uma hierarquia na qual o paciente encontrava-se na escala mais
baixa, o asilo se impunha enquanto uma duplicao da realidade externa, dentro do hospital.
O mdico, enquanto aquele que dirigia o funcionamento do hospital e dos indivduos,
colocava-se no topo da escala. Como efeito, o poder psiquitrico era validado pelo poder
exercido pelo asilo.
O poder asilar funcionava fazendo valer as realidades do mundo como realidade
tambm para o paciente. Assim, o tratamento consistia em manobras que pudessem
desequilibrar esse poder onipotente do paciente, confrontando-o continuadamente. A
estratgia era reduzir a onipotncia da loucura mediante a manifestao de outra vontade,
mais vigorosa e dotada de poder superior contra a onipotncia do delrio, a realidade do
mdico.
Para concretizar sua sujeio realidade, o regime asilar articulava-se sobre
alguns pontos fundamentais:
1. Submisso do paciente realidade do mundo externo, atravs da
incorporao do mecanismo da ordem e da obedincia. O paciente devia aceitar submeter-se lei geral, o que implicava na obedincia desde as normas do asilo, at a utilizao
mesma da linguagem, ou seja, da linguagem socialmente compartilhada pelos homens.
2. Reconhecimento da realidade prpria, atravs do ordenamento e da
organizao de suas necessidades bsicas: alimentao, defecao, sono, vestimenta,
atividade laboral, de sustento, de utilizao do dinheiro, de liberdade.
3. Isolamento afastar o paciente do meio do qual se desenvolveu a
enfermidade.
4. Obrigao geral ao trabalho: era preciso instaurar desde dentro da loucura, o
sistema de intercmbios a partir do qual o paciente poderia financiar sua existncia de
louco, mediante o trabalho, para que a sociedade no tivesse que pagar o preo.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
27/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
5. Enunciao da verdade era preciso que o enfermo dissesse a verdade
no a verdade do sujeito ou de sua loucura, de sua percepo, mas a verdade coincidente
com a realidade.
Uma vez obtido sucesso, o louco no teria outra sada seno se reconhecer
enquanto louco. Deixar de estar louco era aceitar ser obediente, poder ganhar a vida,
reconhecer-se em sua identidade biogrfica socialmente estabelecida. Ou seja, estar curado
era estabilizar-se num tipo social reconhecido, aprovado. Vemos aqui que a psiquiatria da
poca tinha como objetivo suprimir, no a loucura, mas seus sintomas.
Verificando esses pontos, possvel perceber, efetivamente, que a prtica
prescindia do saber mdico. Certamente, vinha-se construindo todo um conhecimento das
noes nosogrficas, as etiologias das enfermidades mentais, as investigaes
anatomopatolgicas sobre as possveis correlaes orgnicas da enfermidade mental.
Entretanto, este saber no servia de guia para a prtica psiquitrica, no chegava a ter
influncia concreta sobre a vida asilar. O saber que um mdico podia aplicar no enfermo era
bastante reduzido. Essa separao, essa desarticulao entre o que poderamos chamar
uma teoria mdica e prtica concreta de "tratamento" se manifestava em muitos aspectos.
Na prtica, o saber nosogrfico no influenciava na distribuio dos pacientes. Aorganizao se fazia, antes, pela diferena de curveis e incurveis, capazes e incapazes
para o trabalho, calmos e agitados, obedientes e indisciplinados, etc.
Podemos ver essa separao entre saber e prtica tambm na forma como
teraputica e disciplina se sobrepunham os banhos, cuja funo inicial era atingir a
circulao do paciente, rapidamente foi absorvida aos mtodos de coero e castigo. Sobre
esse aspecto Foucault avalia que, quando um enfermo havia feito algo que se quisesse
reprimir, era preciso castig-lo, mas fazendo-o crer que, se o castigava, era porque o castigo
tinha uma utilidade teraputica. Portanto, o castigo devia atuar como um remdio. De
maneira inversa, quando lhe era aplicado um remdio, era preciso aplic-lo sabendo que lhe
faria bem, mas induzindo-o a crer que este lhe era administrado para castig-lo.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
28/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Ento, em que aspecto intervinha especificamente a medicina? Uma vez que a
cura do louco no era esperada do mdico, mas do regime asilar, por que a figura do
mdico era necessria?
A presena do mdico era colocada como axioma, ou seja, como uma norma
admitida como princpio, pois sem sua presena, o asilo careceria de funo teraputica.
Entretanto, como vimos, tal teraputica no adivinha realmente de um saber mdico, tanto
que Pinel chegava a dizer que, ainda que estivesse l para curar enfermos, Pussin6, que foi
durante tantos e to longos anos o porteiro, o zelador e o vigilante de Bictre (PINEL apud
FOUCAULT, 2005, p. 215), sabia tanto quanto ele, e acrescentava que, para dizer a
verdade, sem dvida havia aprendido muito, graas a haver se apoiado na experincia de
Pussin.
Para Foucault, a presena do mdico era importante por seu saber no por um
saber especfico, por seu contedo, pois em verdade, a psiquiatria ainda no tinha um saber
constitudo. O saber mdico que importava era, antes, os da marca de saber que sua
profisso suportava marcas que por designarem nele um saber, implicavam na fora de
lei. Marcas do saber que atuavam como complemento de poder realidade. Assim, as
estratgias "teraputicas" tinham, no apenas a funo de "tratamento", mas tambm afuno de dar sustentao ao poder mdico.
Dentre as estratgias de interveno, duas so especialmente interessantes
para ns: o deslocamento do poder onipotente do paciente para o mdico e a enunciao da
verdade.
Comecemos com o deslocamento da onipotncia do paciente para o poder de
realidade para o mdico. Como dissemos, a estratgia era vulnerar, furar a onipotncia da
loucura mediante a manifestao de uma outra vontade mais vigorosa e dotada de um
poder superior: a realidade do mdico.
6 Trata-se de Jean-Baptiste Pussin, que trabalhou em Bictre desde 1780, onde conheceu Pinel, a quemacompanhou quando este foi, posteriormente, designado para Salptrire.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
29/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Tomemos o exemplo apresentado por Foucault da indicao de Georget7. Ele
dava como conselho aos mdicos que no se deveria negar a um alienado a condio que
este pretendia ter. Se o paciente dizia ser rei, pois bem, era preciso mostrar-lhe que mesmo
sendo rei, ele carecia de poder, estando, portanto, submetido ao mdico e que, este sim,
podia tudo sobre seu paciente. (Foucault, 2005, p. 175)
Pinel, por exemplo, que dava grande importncia aos choques emocionais,
recomendava que se devia abordar o paciente com algum aparato de temor, um aparato
imponente que pudesse atuar vigorosamente sobre a imaginao do manaco e convenc-lo
de que toda resistncia seria intil.
Foucault vai chamar essa ttica de tratamento de princpio da vontade alheia,
ou princpio de Falret, que consistia em substituir a vontade do enfermo por uma vontade
alheia, ou seja, coloc-lo obrigado a adaptar-se vontade de um outro o mdico.
Mesmo para aqueles que, como Esquirol, acreditavam num tratamento mais
ameno, sustentado na confiana e no afeto do alienado, a posio central do mdico era
essencial. Em seu tratado Des maladies mentales, dizia:
O mdico deve ser, em certo modo, o princpio de vida de um hospital de alienados.Atravs dele tudo deve se colocar em movimento; ele dirige todas as aes,chamado que est a ser o regulador de todos os pensamentos. E a partir dele, como
centro da ao deve se processar tudo que interessa aos habitantes doestabelecimento. (ESQUIROL apudFOUCAULT, 2005, p. 214)8
Vemos, portanto, que a presena fsica do mdico era fundamental com sua
presena, ele se impunha ao enfermo como realidade ou como elemento atravs do qual se
passava a realidade a que o doente teria que se submeter.
As formas de executar essa manobra certamente variavam de acordo com as
concepes pessoais. Alguns consideravam que o funcionamento asilar por si mesmo, os
muros, a vigilncia, a hierarquia interna, j garantiria essa superioridade da realidade do
mdico. Outros psiquiatras j investiam na figura do mdico na pessoa mesma do mdico,
em seu prestgio, sua presena, sua agressividade, seu vigor polmico, como elementos
que mostrariam sua marca. Outros ainda, investiam na violncia, no temor e na ameaa.
7 tienne Georget (1795-1828), brilhante aluno de Esquirol.8 Traduo livre do espanhol.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
30/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Quanto segunda estratgia de interveno, da enunciao da verdade,
implicava em levar o paciente por tcnicas diversas, a dizer a verdade mas como j
dissemos, no a verdade que ele poderia dizer sobre si mesmo, no plano de sua vivncia,
mas a verdade da realidade compartilhada9. Mas, ainda mais importante do que essa
verdade da realidade atual, presente, era o sujeito consentir com sua realidade biogrfica,
desde sua identidade nome, filiao, estado civil, emprego, sua historia pessoal,
desenvolvimento da doena, as datas, localidades, relaes familiares; realidade de sua
doena seus delrios, seu comportamento no asilo, sua submisso ao mdico. Cabe
ressaltar que os dados aos quais o paciente devia se identificar eram justamente os dados
conhecidos pelo mdico, geralmente fornecidos pela famlia. (Foucault, 2005, p. 189)
Isso torna compreensvel o porqu, desde os anos de 1825-1840, o relato
autobiogrfico se introduziu concretamente na prtica psiquitrica echegou a ser uma pea
essencial, de usos mltiplos nos procedimentos de custdia e de disciplina. Tal verdade
biogrfica deveria ser extrada do paciente como se extrai uma verdadeira confisso. A idia
de base da confisso era que, se o enfermo reconhecesse sua loucura, poderia desfazer-se
dela.
A fim de atender a esses objetivos, um importante dispositivo foi constitudoneste perodo: o interrogatrio.
9 A cura do Sr. Dupr foi relatada por F. Leuret em Du Traitement moral de la folie 1840. Foucault trabalha esterelato no livro El poder psiquitrico (2005), ao longo da Clase del 9 de enero de 1974. Para entendermos oprocesso de cura, fao um breve relato: o sr. Dupr acreditava que, na terra, havia apenas trs famlias, e queele era o chefe de uma das mais importantes raas da famlia dos prncipes trtaros. S era o sr. Dupr,ficticiamente, pois, na realidade, era nascido na Crsega, descendente de Napoleo. Relata que, vtima de umadoena crnica, foi encaminhado por seu conselheiro para seu castelo de Saint Y-Maur, na realidade Charenton.No momento desse tratamento, encontrava-se em Bictre, de onde, na realidade, se podia avistar Paris.Entretanto, para Dupr, tratava-se de Langres, que tem apenas semelhanas com a verdadeira Paris. Acredita-se o nico homem do hospital, sendo todas os demais, mulheres. A multiplicidade de suas idias falsas no menos notvel que a segurana com a qual as declama (FOUCAULT, 2005, p. 171). Com relao ao tratamento
do Sr. Dupr, sigamos a descrio de Foucault: Isto o que Leuret faz com Dupr. Este afirmava que Paris noera Paris, o rei no era o rei, Napoleo era ele e Paris no era seno a cidade de Langres disfarada poralgumas pessoas como a capital da Frana. Na opinio de Leuret, s havia uma coisa a fazer: simplesmente,levar seu paciente a percorrer Paris; e, com efeito, sob a direo de um residente, organiza um passeio por todaa capital. Nela, o residente mostra a Dupr diferentes monumentos e lhe pergunta: Acaso no reconhece Paris?No, no, contesta o senhor Dupr, estamos na cidade de Langres. Imitaram vrias coisas que esto em Paris.O residente simula no reconhecer o caminho e pede ao paciente que o guie at a praa Vendme. Dupr seorienta muito bem, pelo que seu acompanhante lhe diz: Quer dizer que estamos em Paris, j que voc soubemuito bem encontrar a praa Vendme! No, reconheo a Langres disfarada de Paris. Levado ao hospital deBictre, o enfermo se nega a admitir que havia estado em Paris e, como persiste em sua negativa, o levam aobanho e lhe derramam gua fria sobre a cabea. Ento, aceita tudo que querem e que Paris, com efeito, Paris.Mas nem bem sai do banho volta a suas idias loucas. Obrigam-no a desvestir-se outra vez e se reitera o banho:volta a ceder e reconhece que Paris Paris; contudo, apenas recuperadas suas roupas, afirma ser Napoleo.Um terceiro banho o corrige; cede e vai deitar-se.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
31/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
O interrogatrio surgiu, justamente, como uma tcnica que, operando com o
poder mdico, possibilitava obter do paciente a enunciao da verdade. E era,
precisamente, no poder do mdico, que ele se sustentava, pois era por sua supremacia, que
o mdico conseguia influir sobre o paciente. Numa segunda via, ao coagir o louco a
enunciar a sua verdade histrica e consentir com a sua loucura, o louco se constitua
enquanto o doente, constituindo seu inquisidor, conseqentemente, enquanto mdico.
Assim, o interrogatrio possibilitava, numa nica interveno, dar provas da
realizao da enfermidade, e sustentar o mdico tanto em seu lugar de poder, como
tambm em um lugar de saber: saber sobre o paciente e saber tratar. Afinal, era ele quem
aplicava tal "dispositivo teraputico".
No interrogatrio procedia-se de acordo com os seguintes objetivos:
1. busca de antecedentes, pois comprovar que a loucura se transmite uma
forma de rastrear seu suporte orgnico;
2. busca dos prdromos, disposio e antecedentes individuais recordaes
da infncia. Acreditava-se que a loucura sempre se precedia a si mesma, mesmo nos casos
marcados por seu carter repentino;
3. responsabilizao: questionar as razes pelas quais o indivduo seencontrava frente ao psiquiatra a partir da confrontao: h queixas sobre voc
transformar esses motivos de sua presena ali em sintomas;
4. confisso central: conseguir que o sujeito interrogado reconhecesse sua
loucura e a atualizasse, concretamente, no interrogatrio, uma confisso ritual: sim, escuto
vozes!; sim, tenho alucinaes!; sim, creio ser Napoleo!10
O mdico deveria ir para o interrogatrio munido dos registros das observaes
detalhadas dos enfermos, feitas a partir da vigilncia constante assim o mdico poderia
mostrar a todo o momento que sabia tudo sobre o paciente: o que ele tinha feito, suas falas
da vspera, as faltas que cometeu, os castigos recebidos. Detinha informaes que
recapitulassem, tanto a histria do paciente antes da internao, quanto suas aes at a
10 Referindo aqui ao Sr. Dupr, conf. nota 9, p. 30.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
32/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
vspera do interrogatrio temos aqui uma mostra de como o mdico fazia uso do sistema
da organizao asilar na sustentao de seu poder-saber.
Pinel dizia:
quando interrogamos a um enfermo, preciso antes de tudo estar informado sobre
ele, saber porque veio, quais so as queixas a seu respeito, sua biografia; devemosfazer previamente averiguaes com sua famlia ou seus parentes, de tal forma que,no momento de interrog-lo, sempre saibamos mais do que ele ou, ao menos,saibamos mais do que ele imagina e, desse modo, quando venha a dizer-nos algoque consideramos como inverdico, possamos intervir e fazer valer que sabemosdele mais do que ele e tachamos seu dizer de mentira e delrio. (PINEL apudFOUCAULT, 2005, p. 216)11
Fundamental no interrogatrio era atualizar a crise. Relembrando que o
interrogatrio era uma tcnica para levar o paciente enunciao da verdade, era
fundamental que, em sua execuo, se produzisse uma atualizao da crise, pois, como
vimos, a crise demonstrava a verdade da doena e esta verdade no poderia ser
encontrada, demonstrada, mas deveria ser suscitada, provocada.
Como nos disse Foucault, certo que a crise podia ocorrer sem o mdico, mas,
se este quisesse intervir, se quisesse combat-la, era preciso que esta se desse em sua
presena. Mesmo que a crise fosse um movimento em certo sentido autnomo, mas era um
momento do qual o mdico podia e devia participar: Este deve reunir em torno dela todas
as conjunes que lhe so favorveis e prepar-la, ou seja, invoc-la e suscit-la
(FOUCAULT, 1981, p. 114).
Assim, era funo do interrogatrio produzir a crise, fazer explodir a verdade da
doena suscitar a alucinao, provocar a crise histrica, colocando o sujeito em um ponto
extremo, no qual no pudesse escapar a seus prprios sintomas e acabasse por chegar a
um ponto de confisso: "sim, estou louco!". Ao representar efetivamente sua loucura, era
obrigado a consentir com seu estado de doente, e, com efeito, como aquele para quem se
havia constitudo o hospital psiquitrico, e para quem seria necessrio que existisse o
mdico, cuja principal funo seria intern-lo. Em verdade, uma dupla funo de fixao: do
doente, enquanto enfermo, e, portanto, do mdico, enquanto aquele que sabe sobre o
11 Traduo livre do espanhol.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
33/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
paciente. O interrogatrio, funcionava, pois, como forma de sustentao do poder do mdico
e de verdade sobre o paciente
O interrogatrio funcionava como lugar de produo da verdade da doena,
funcionando, assim, como forma de sustentao do poder do mdico e realizao do saber
deste sobre o paciente.
preciso marcar a importncia que tinha nesse perodo a produo da verdade
da doena feita, como j dissemos, atravs da provocao da crise. Como esclarece
Foucault, em A verdade e as formas jurdicas (2001), a verdade s pode ser obtida de duas
maneiras: pela prova de realidade e pelo inqurito.12
Uma verdade obtida pelo inqurito implica a sua demonstrao racional, ou seja,
a verdade deve ser averiguada a partir do exame direto ou indireto dos fatos. Nesse caso, a
verdade demonstrada na estabilidade de uma frmula, cujo valor dado pela evidncia
transmissvel, independente da autoridade, da fora de quem a enuncia. o que temos, por
exemplo, na qumica, na investigao cientfica, na medicina moderna.
Entretanto, a psiquiatria no conseguia estabelecer a loucura pela via da
demonstrao racional; pelo contrrio, o nico recurso dos mdicos era a prova da
realidade. Nessa forma de obter a verdade, esta alcanada, no pela demonstrao, mas instaurada no lugar daquele que vence um confronto, como testemunha antiga prtica
dos duelos. Nessa situao, o lugar da verdade era dado no quele que tinha razo, mas
ao vencedor do confronto. Para entendermos melhor, tomemos outro exemplo, citado por
Foucault, dessa forma de obteno da verdade os jogos cerimoniais utilizados nas
sociedades medievais, como o ordlio da gua, que consistia em amarrar a mo esquerda
no p direito do acusado e jog-lo na gua. Se ele no se afogasse, perdia o processo, pois
lia-se que a prpria gua no o aceitava.
Pode-se dizer que, no nosso caso, em lugar de uma demonstrao, o mdico
vencia um confronto.
12 Partindo da noo da solidariedade fundamental entre a cincia e o modo de constituio do sujeito do direito,Foucault nos diz que o conhecimento s possvel como resultado de algum jogo de foras, o que se traduzatravs das relaes de poder. atravs de um exame das prticas jurdicas que ele extrai essas formas deaquisio da verdade.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
34/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
O grande mdico de asilo seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin ao mesmotempo aquele que pode dizer a verdade da doena pelo saber que dela tem e aqueleque pode produzir a doena em sua verdade e submet-la, na realidade, pelo poderque sua vontade exerce sobre o prprio doente. [...] tudo isto tinha por funo fazerdo personagem mdico o "mestre da loucura"; aquele que a faz manifestar quandoela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e, aquele que a domina,a aclama e a absorve depois de a ter sabidamente desencadeado. (FOUCAULT,1981, p. 122) (Grifo meu)
A prtica ou ritual do interrogatrio e a extorso da confisso tornou-se um dos
procedimentos mais importantes e dos mais constantes dentro da prtica psiquitrica. Por
isso, esta prtica clnica se estabeleceu de forma definitiva e precoce dentro da prtica
asilar.
1.3 SOBRE AS APRESENTAES DE PACIENTES
Contudo esse grande rito do interrogatrio necessitava, de vez em quando, de
uma revigorao assim como uma missa solene, Missa sollemnis, o interrogatrio pblico
dava um carter solene a esta prtica cotidiana. Ao interrogatrio do paciente, realizado na
presena dos alunos, chamamos apresentao de paciente. Um ritual no qual a escuta
atenta dos estudantes consolidava o lugar do enfermo, ao mesmo tempo em que dava peso
palavra do mestre uma maneira de incrementar o prestgio do mdico e fazer os ditos
constitutivos de seu saber/poder mais verdadeiros.
Como j dissemos, muitas vezes Falret citado como precursor desta prtica,
pois em seus escritos que podemos encontrar algumas das poucas elaboraes sobre a
apresentao. Falret, que colocava o interrogatrio no primeiro plano do exame clnico, deu-
nos indicaes dos objetivos e efeitos da aplicao deste dispositivo.
Uma primeira indicao de Falret sobre a importncia do pblico e seu efeito
sobre o paciente. Indicava que era preciso mostrar ao paciente que, em torno dele, havia
uma grande quantidade de pessoas pessoas que estavam ali para escut-lo, e escut-lo
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
35/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
com respeito. Assim, sua palavra se multiplicava: a presena de um pblico numeroso e
respeitoso d maior autoridade a sua palavra (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 220)13
Como sabemos, o mdico ia para o interrogatrio munido de informaes sobre
o paciente, mas certo que, atravs do interrogatrio, era possvel obter do enfermo uma
srie de outras informaes de que o mdico no dispunha. Entretanto, era fundamental que
o paciente acreditasse que suas respostas no informavam verdadeiramente ao mdico. O
interrogatrio era, antes, uma forma de subtrair informaes do paciente como se estas no
fossem realmente necessrias. Era necessrio conduzir o interrogatrio de tal forma que o
enfermo no dissesse s o que queria, mas que respondesse s perguntas. Contudo, era
preciso faz-lo de tal modo que o paciente no percebesse que se dependia dele para obt-
las no deix-lo perceber um saber de seu lado, mas ao contrrio, utilizar-se da fala deste
para sustentar o saber do mdico. Nessa indicao de Falret, vemos, claramente, que no
se buscava o saber do paciente sobre si, sobre seu mal, sobre as sadas ou solues
produzidas por ele. Ao contrrio, a palavra do paciente era escutada apenas para compor o
saber do mdico sobre ele. Foucault avalia que, em verdade, as respostas do paciente s
adquiriam significao dentro de um campo de saber j constitudo por completo na mente
do mdico.Para extrair o melhor efeito do interrogatrio, algumas tcnicas foram sugeridas.
Para Franois Leuret, a indicao era de deixar o paciente falar, fazer seu relato sem
interromp-lo com uma srie de perguntas. Para ele, o melhor interrogatrio era o silncio:
no dizer nada ao enfermo, esperar que fale, deix-lo dizer o que quiser, pois segundo
Leuret, essa a nica forma ou, em todo caso, a melhor maneira de chegar precisamente
confisso focal da loucura (FOUCAULT, 2005, p. 318)14.
Para ilustrar o interrogatrio por meio do silncio, Foucault cita uma passagem
retirada da traduo francesa do Trait, de W. Griesinger15:
Havia-se dito que ela escutava [...] dei uma centena de passos sem dizer nada, semaparentar fixar ateno nela [...] voltei a deter-me [...] e a olhei atentamente, com aprecauo de permanecer imvel e sem deixar sequer transparecer curiosidade
13 Traduo livre do espanhol.14 Traduo livre do espanhol.15 Wilhelm Griesinger (1817-1868). Pai da psiquiatria alem.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
36/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
alguma. [...] Havia cerca de meia hora que nos olhvamos um ao outro quando elamurmurou algumas palavras que no entendi, lhe dei meu caderno para queescrevesse. (GRIESINGER apudFOUCAULT, 2005, p. 318)16
Tambm Falret, em suas Leons cliniques de mdice mentale,aconselhava:
[...] em vez de aguar a astcia de um alienado para elucidar uma autoridade quelhe importuna, mostre [...] abandono; afaste de sua mente toda idia [...] de desejode penetrar seus pensamentos e ento, como no o ver atento a control-lo, tersegurana de que no ter qualquer atitude desafiante, se mostrar tal como epoder estud-lo mais facilmente e com maior xito. (FALRET apud FOUCAULT,2005, p. 319)17
Entretanto, ao contrrio do silncio, Falret acreditava numa posio mais ativa.
Dizia:
Se algum quer conhecer as tendncias, as orientaes de esprito e as disposiesque so a fonte de todas as manifestaes, no deve reduzir seu dever deobservador ao papel passivo de secretrio dos enfermos, de estengrafo de suaspalavras ou narrador de suas aes [...] O primeiro princpio por seguir [...] , por
tanto, modificar seu papel passivo de observador das palavras e dos atos dosenfermos para assumir um papel ativo e buscar, com freqncia, provocar e fazersurgir manifestaes que jamais apareceriam espontaneamente. (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 217)18 (Grifo meu)
s vezes necessrio levar habilmente a conversao a certos temas nos quais sesupe relaes com as idias ou sentimentos enfermos; esses dilogos calculadosatuam como pedras de toque para colocar a descoberto as preocupaes mrbidas.Uma grande experincia e muita arte podem ser necessrios para observar einterrogar de maneira convincente a alguns alienados. (FALRET apudFOUCAULT,2005, p. 217)19
Outro aspecto importante que, na apresentao, no se tratava apenas de
interrogar pontualmente o enfermo, mas em fazer, diante dos estudantes uma anamnese
geral do caso, pois a apresentao permitia ao mdico, mais do que apenas interrogar o
paciente, mas tambm, comentar suas respostas, podia mostrar tanto aos pacientes, quanto
aos alunos, que conhecia sua enfermidade, e no apenas podia falar dela, mas mesmo
fazer uma exposio terica sobre ele, paciente, para seus alunos.
Assim, retomava-se, frente aos alunos, o conjunto da vida do enfermo. Fazia-se
com que o paciente a contasse, e, se este no quisesse faz-lo, ela seria contada pelo
prprio mdico. Os interrogatrios se aprofundavam, e o paciente via desenrolar, diante si, a
histria de sua vida, isto, com ou sem sua ajuda, pois o mutismo no era impedimento para
a realizao do interrogatrio.
16 Traduo livre do espanhol.17 Traduo livre do espanhol.18 Traduo livre do espanhol.19 Traduo livre do espanhol.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
37/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
Era, portanto, um dispositivo que impunha ao paciente a realidade de sua
enfermidade, uma vez que era apresentado efetivamente como tal frente aos estudantes.
Nessa situao determinava-se definitivamente o lugar do mdico, por um lado, e, por outro,
reafirmava o lugar do doente, pois ao exibir-se em conjunto com o mdico, ao expor sua
enfermidade, o paciente se daria conta de estar realmente diante de um profissional.
O relato pblico de sua enfermidade feito pelos alienados para o mdico umauxiliar ainda mais valioso [...]; o mdico deve ser muito mais poderoso nascondies completamente novas da clnica, dizer quando o professor pe demanifesto ante o olhar do enfermo todos os fenmenos de sua enfermidade, napresena dos ouvintes mais ou menos numerosos. (FALRET apud FOUCAULT,2005, p. 220)20
Vemos presente, nesse dispositivo, os elementos de realidade que era preciso
impor ao paciente como forma de tratamento, uma vez que a palavra do mdico aparecia
com um poder maior do que o de qualquer outro; a lei da identidade pesava sobre o
paciente, pois era obrigado a reconhecer-se no que era dito sobre ele, assim como na
anamnese, os dados de sua identidade estatutria, sem espao para qualquer realidade
delirante. Ao responder publicamente as perguntas do mdico, ao deixar-se arrancar a
confisso final de sua loucura, o enfermo reconhece, aceita a realidade desse desejo louco
que est na raiz de seu mal (FOUCAULT, 2005, p. 221).
Dessa forma, essa prtica atuava no nvel disciplinrio, uma vez que era umamaneira de fixar o indivduo na norma de sua prpria identidade quem era, nome, filiao,
episdios de loucura. Era, portanto, uma maneira de sujeitar o indivduo sua identidade
social, ao reconhecimento do status de louco a ele atribudo. E atuava tambm no nvel
teraputico, pois a confisso, o reconhecimento da loucura, era o ponto de partida para
libertar-se dela.
A apresentao ordenava-se sobre trs pilares: o mdico, o paciente e os
alunos.
Ainda que Foucault no tenha se detido sobre isso, para alm dos efeitos
produzidos com relao ao mdico e ao paciente, preciso assinalar, tambm, seu efeito
em relao aos estudantes. Primeiramente, a presena deles que fazia o diferencial
20 Traduo livre do espanhol.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
38/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
absoluto da apresentao, pois era esta que dava ao interrogatrio o tom solene. Os alunos
atuavam enquanto testemunhas da relao teraputica, reforando, com seu olhar, o
mdico e o paciente, em suas respectivas posies. Se por um lado davam ao paciente,
como nos disse Falret, maior autoridade sua palavra21, o mesmo se dava do lado do
mdico. Ao serem ensinados sobre o paciente e sua doena, consolidavam este saber, e
extraam para si prprios o benefcio do aprendizado.
Em relao ao paciente, poderamos acrescentar ainda um ltimo aspecto. Falret
marcava um interessante efeito produzido nos pacientes. Segundo ele, era possvel
perceber nestas situaes, o seu esforo em responder as questes, talvez como forma de
compensar o esforo, que, enfim, percebiam, da dedicao do mdico:
com freqncia, o relato de sua enfermidade, feito em todas as suas vicissitudes,impressiona intensamente os alienados, que do testemunho de sua verdade comuma satisfao visvel e se comprazem em entrar em maiores detalhes paracompletar seu relato, assombrados e envaidecidos, de certo modo, de que setenham ocupado deles com suficiente interesse para poder conhecer toda suahistria. (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 221)22
Com relao ao mdico, pudemos ver, ao longo do texto, como que atravs
desse rito, ele era colocado enquanto um mdico de verdade. Dentre suas intervenes no
asilo, foi justamente o interrogatrio que mais aproximou sua atuao de um trabalho
realmente clnico. Afinal, colocava o mdico no exame direto do paciente. Quando falamosda apresentao pblica, temos ento o mdico em um duplo registro: de examinador do
paciente e educador mestre dos alunos, ao mesmo tempo numa funo de cura e de ensino.
A apresentao de paciente acabava por atuar como um amplificador da funo do mdico,
visto que realizava tanto o poder quanto o saber psiquitrico: ao fixar o louco como doente,
reafirmava a necessidade de sua prpria existncia, e isto feito sob a testemunha de um
seleto pblico os estudantes de medicina. Assim, a tcnica da confisso e o relato pblico
se converteram em uma obrigao institucional.
Como pudemos acompanhar, a apresentao surge intrinsecamente articulada
ao tratamento, ou seja, tinha reconhecidamente um carter clnico.
21 Conf. p. 35.22 Traduo livre do espanhol.
7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao
39/169
Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006
1.4 APRESENTAO COMO PROVA DE REALIDADE
Enquanto os psiquiatras procuravam dar sustentao s marcas de seu saber,
um outro personagem mdico comeava a surgir o mdico cirurgio. Este personagem
mdico, em lugar de ser sustentado nas marcas do saber, sustentava-se num saber
baseado num contedo efetivo um saber localizado no corpo do paciente. Com o
desenvolvimento da anatomia patolgica, tornava-se possvel localizar uma leso dentro do
organismo, identificando no corpo a realidade mesma da enfermidade.
Atingida por esse movimento, a psiquiatria do sculo XIX, tambm passou a
buscar seus correlatos orgnicos. A prtica da autpsia, que comeou a ser utilizada nos
asilos por volta de 1825, ainda que no apresentasse resultados efetivos, tinha como base a
idia de que
se h uma verdade da loucura, com segurana no se encontra no que dizem osloucos e s pode estar em seus nervos e crebro. [...] podemos perfeitamente teprender em sua cela e no escutar o que diz, pois a verdade de sua loucurapediremos anatomia patolgica, quando j estiver morto. (FOUCAULT, 2005, p.295)23
Mas, exceo da Paralisia Geral Progressiva, descoberta por Bayle24, no foi
possvel psiquiatria, constituir provas causais, como no caso da medicina geral, que se
comprovava na anatomia patolgica.
psiquiatria era atribuda a responsabilidade de dizer se havia ou no loucura,
e, para isso, no podendo se sustentar numa prova de verdade, na prova anatmica,
restava-lhes a prova de realidade. I
Top Related