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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ELIS FERNANDA CORRADO
“O Tekoha como uma criança pequena”:
uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)
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ELIS FERNANDA CORRADO
“O Tekoha como uma criança pequena”:
uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)
Dissertação apresentada ao Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Mestra em
Antropologia Social.
Orientadora: PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA RANGEL LOERA
Coorientadora: PROFA. DRA. ALINE CASTILHO CRESPE
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À
VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELA ALUNA ELIS
FERNANDA CORRADO, E ORIENTADA
PELA PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA
RANGEL LOERA.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Mestrado, em sessão pública realizada
em 28 de novembro de 2017, considerou a candidata Elis Fernanda Corrado aprovada.
Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida e aprovada pela
Comissão Julgadora.
Profa. Dra. Nashieli Cecília Rangel Loera (orientadora)
Profa. Dra. Antonádia Monteiro Borges (UnB)
Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior (IFCH/Unicamp)
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Julgadora, consta no processo de
vida acadêmica da aluna.
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Aos Kaiowá e Guarani
que compartilharam
comigo suas histórias de
vida e de luta.
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Agradecimentos
Os caminhos que me trouxeram até aqui têm a presença de cinco mulheres
muito fortes que foram fundamentais para minha construção enquanto pessoa e
antropóloga: minha mãe, Edenea Pinto Corrado; minha avó, Dona Nice; minha irmã,
Amanda Roberta Corrado; minha orientadora e mentora intelectual, Nashieli Rangel
Loera e Aline Crespe, que desde os tempos de graduação sempre me acolheu em
Dourados e generosamente sempre dividiu comigo sua pesquisa e seu conhecimento
sobre os Guarani e Kaiowá. Os exemplos dessas mulheres me inspiram todo os dias.
Agradeço ao meu pai, José Roberto Corrado que através do seu jeito doce e
tranquilo sempre me ajudou a me lembrar de onde vim e que conviver com a felicidade
pode ser muito mais simples do que muitas vezes pensamos.
Agradeço aos meus amigos queridos de Rincão e ao meu amigo Diogo que
nunca desistiram de mim, mesmo com todas as minhas ausências.
A querida Márcia Soares agradeço pela elaboração dos croquis e
principalmente pela nossa amizade de muitos anos.
Pela companhia, as conversas, o apoio e as pipocas compartilhadas agradeço
aos meus amigos Allan, Angelo, Luiza, Thiago, Karen e Cris. Amizades essas que me
ajudaram a enfrentar as vicissitudes da vida acadêmica.
Ao Caue, João, Vini Ribeiro, Vini Zanoli, Vini Mattos, Denise, Carla e Beto,
amigos da graduação e que agradeço por continuarem na minha vida, apesar das
distâncias.
Aos amigos de pós-graduação em especial ao Jonathan, Carol, Duvan e
Marcela.
Agradeço ao grupo de orientandxs da Prof. Dra. Nashieli Loera, pelas várias
sugestões desse trabalho e aos colegas do CERES, em especial a Luciana que esteve
comigo em diferentes fases desse trabalho.
As pessoas queridas de Dourados que me receberam de braços abertos, em
especial a Dona Durvalina, que me tratou como uma filha; a Cláudia pelos vários
almoços e risadas e ao Pedro por sua leveza de criança.
Também agradeço ao Levi Marques Pereira, Silvana, Diógenes, Lauriene,
Vander, Ellen e Marcelo e em especial ao Homero, antropólogo do MPF de Dourados,
pelas inúmeras orientações.
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Ao Instituto de Filosofia de Ciência Humanos e ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social pelas oportunidades oferecidas e a todos os
professores que sempre contribuíram com a minha formação.
A banca de qualificação, Antonio Guerreiro e José Manuel pelos comentários
e contribuições valiosas.
Agradeço a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo) e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela
bolsa de mestrado concedida, número de processo 2015/06850-1.
E, por fim, agradeço especialmente a todos os Kaiowá e Guarani que me
receberam e tornaram esse trabalho possível, em especial a Vice-liderança do Tekoha 2, a
Liderança do Tekoha 1 e a Liderança do Tekoha 2.
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Nunca saí daqui, este é meu chão... não
deixo esta terra... vou morrer por aqui
mesmo, aqui nesta região... Sou kaiowá e
índio kaiowá gosta muito de ter família
por perto... queremos ter todos em volta,
morando sempre juntinhos... eh!... a vida
de um é a vida de outro... só deixo esta
terrinha quando Deus me chamar, quando
a minha fala não sair mais, quando ela
morrer...
(...)
Somos filhos de Ñhanderú e Ñhandesi e
Ñhanderamoue é nosso protetor... é o
protetor da mata... kaiowá quer dizer filho
da floresta, da madeira, da mata... kaiowá
é a natureza... protegido de
Ñhanderamoe... em guarani a gente fala
txe-dja-ri...
Capitão Ireno
Canto de Morte Kaiowá
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Resumo
Desde os anos 1990, as ocupações de terra e montagem de acampamentos conhecidos
como “de lona preta” se tornaram uma das formas de demandar desapropriação e
distribuição de terra ao Estado brasileiro. Nos últimos 30 anos, esta forma de
reivindicação havia sido associada a trabalhadores rurais sem-terra. No entanto, indígenas
Kaiowá da região de Dourados, no sul do Mato Grosso do Sul, também têm se utilizado
dessa linguagem de demanda para reivindicar terras consideradas por eles como tekoha,
isto é, como seus territórios ou espaços de vida tradicionais. Essa dissertação pretende
refletir sobre as características dessa “linguagem” simbólica entre os Kaiowá e Guarani, e
a partir da etnografia de dois acampamentos indígenas: Tekoha 1 e Tekoha 2, localizados
no município de Dourados/MS, explorar os sentidos das áreas de retomadas para eles.
Nessa perspectiva dois temas se tornaram essenciais: os sentidos de terra para os Kaiowá
e Guarani e seus modos de mobilidade, como fundamental para manutenção e reprodução
de novos acampamentos.
Palavras-chaves: sociabilidade; territorialidade; acampamentos indígenas; modos de
mobilidade; Kaiowá e Guarani.
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Abstract
Since the 1990s, the land occupations and the establishment of encampments, known as
"black canvas", have become one of the ways to claim land expropriation and
redistribution to the Brazilian state. Over the last 30 years, this form of claim has been
associated to landless rural workers. However, the indigenous Kaiowá, in the region of
Dourados in Mato Grosso do Sul state, have also been using this language of demanding
to claim land they consider to be Tekoha, that is, their traditional life territory or spaces.
The aim of this dissertation is to analyse the features of such symbolic language among
the Kaiowá and, from an ethnography of two Kaiowá’s encampments, Tekoha 1 e Tekoha
2, located in the city of Dourados in Mato Grosso do Sul state, to comprehend the
different meanings that the Kaiowá ascribe to the claimed lands. From such perspective,
two topics become essential: the meanings of land to the Kaiowá and Guarani and their
ways of mobility, crucial for the preservation and reproduction of new encampments.
Key Words: Sociability; Territoriality; Indigenous Encampments; Ways of Mobility;
Kaiowá and Guarani.
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Lista de Tabelas
Tabela 1: Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928. ......................................................... 38
Tabela 2: Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031. .............. 40
Tabela 3: Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive áreas em
estudo......................................................................................................................................... 49
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Lista de ilustrações
Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.
........................................................................................................................................................ 18
Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016,
48). ................................................................................................................................................. 34
Figura 3. Croqui 1 - Tekoha 1, junho de 2011 ................................................................................ 63
Figura 4. Croqui 2 - Tekoha 1, janeiro de 2012 .............................................................................. 64
Figura 5. Roça de um morador. Foto: CORRADO, 2016. ............................................................... 66
Figura 6. Roça de um casal de moradores. Foto: CORRADO, 2016 ................................................ 66
Figura 7. Croqui 3 - Tekoha 1, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa
etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia
Soares. ............................................................................................................................................ 68
Figura 8. Reprodução do desenho da liderança ............................................................................. 69
Figura 9. Croqui 4: Tekoha 2, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa
etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia
Soares. ............................................................................................................................................ 81
Figura 10. Dia de reunião no Tekoha 2. Foto: CORRADO, 2016. .................................................... 84
Figura 11. Ao futuro das crianças. Foto: CORRADO, 2016. ............................................................ 95
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Lista de abreviaturas e siglas
CAND: Colônia Agrícola Nacional de Dourados
CIMI: Conselho Indígena Missionário
CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT: Comissão Pastoral da Terra
FAF: Federação da Agricultura Familiar
FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FUNAI: Fundação Nacional do Índio
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICP: Inquérito Civil Público
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MPF: Ministério Público Federal
MS: Mato Grosso do Sul
MST: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NERA: Núcleo de estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária
OIT: Organização Internacional do Trabalho
PEC: Projeto de Emenda Constitucional
SPI: Serviço de Proteção ao Índio
RJ: Rio de Janeiro
SESAI: Secretaria Especial da Saúde Indígena
TAC: Termo de Ajustamento de Conduta
TI: Terra Indígena
UFGD: Universidade Federal da Grande Dourados
UPA: Unidades de Pronto Atendimento
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Sumário
Apresentação ..................................................................................................................... 16
Introdução: As direções não previstas ............................................................................... 19
Capítulo I - A espiral das retomadas: contextualizando os acampamentos indígenas na
região sul de Mato Grosso do Sul. ..................................................................................... 31
1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do Mato
Grosso do Sul ................................................................................................................ 32
1.2 A vida na aldeia antiga .......................................................................................... 36
1.3 A espiral das retomadas indígenas: vai fazendo a cabeça .................................. 41
Variações da “forma acampamento” .......................................................................... 44
As fases do acampamento .......................................................................................... 53
Capítulo II - “A gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para sair” ................... 56
2.1 Tekoha 1 – O acampamento que sempre foi tekoha ........................................... 56
Não aceita mais pessoa que não é aparentada ............................................................ 64
Não é muito nem é mais ............................................................................................. 69
A vila tá vindo, chegando a cada ano ........................................................................ 71
2.2 O Tekoha 2: um barraco colado no outro ........................................................... 78
A reunião da comunidade .......................................................................................... 83
A História da retomada .............................................................................................. 87
Sabia falar bem, sabia das coisas .............................................................................. 88
Capítulo III - “Uma retomada é uma criança pequena”: Os sentidos dos acampamentos
para os Kaiowá e Guarani. ................................................................................................. 94
3.1 A terra como corpo ................................................................................................ 95
Índio igual [formiga] lava-pé, só mora eles, não tem um pretinho no meio ........... 103
3.2 ‘igual maribondo’: circulação e modalidades de perambular ......................... 108
Andar igual marimbondo ......................................................................................... 111
Andanças pela vizinhança ........................................................................................ 116
Considerações Finais ....................................................................................................... 120
Bibliografia ...................................................................................................................... 123
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Anexos ............................................................................................................................. 129
Glossário ..................................................................................................................... 129
Sessão Fotográfica ...................................................................................................... 130
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Apresentação
Em uma ocasião, nos meus primeiros trabalhos de campo, ainda como aluna
de graduação, me disseram que quem conhece os Kaiowá uma vez, sempre acaba
voltando para reencontrá-los. Essas palavras carregavam as experiências de outros
pesquisadores e soaram como brincadeira para uma jovem estudante. No entanto, elas
acabaram se profetizando. Este trabalho é o reflexo de algumas, várias idas e voltas ao
Mato Grosso do Sul e de encontros e reencontros com os Kaiowá e Guarani, da região de
Dourados.
Esta história tem início a partir da pesquisa que começou no ano de 2011,
como uma Iniciação Científica, integrante do projeto Jovem Pesquisador, intitulado As
Formas Acampamentos (2010 – 2015), coordenado pela professora Dra. Nashieli Loera
com financiamento da Fapesp1. O projeto de Iniciação Científica De índios a sem-terra:
variações da forma acampamento, surgiu da inquietação da pesquisadora ao tomar
conhecimento da existência de grupos de índios Kaiowá que viviam em acampamentos
de lona preta no Mato Grosso do Sul (doravante MS), bem como das informações do
Nera2, que havia contabilizado mobilizações a nível nacional e identificado retomadas
indígenas e principalmente acampamentos Kaiowá, como o grupo que ocupava a quinta
posição em mobilizações por terra.
Um dos principais objetivos desse projeto, que comecei a realizar quando
cursava o terceiro ano de graduação no curso de Ciências Sociais da Unicamp, era refletir
sobre a “forma acampamento” como linguagem simbólica de demanda coletiva tendo
como lócus empírico os acampamentos indígenas. Nesse sentindo, ao iniciar a pesquisa
em 2011, minha primeira atividade foi me familiarizar a bibliografia que tratava da
temática do mundo das ocupações de terra.
Outro objetivo da iniciação era fazer um mapeamento de temas e textos que
colocavam em discussão a existência de fronteiras entre campos de estudos
aparentemente diferenciados, como os Estudos Rurais e Etnologia Indígena, por isso, a
bibliografia inicial também foi dedicada a esse assunto. Refletir sobre a permeabilidade
desses dois campos de estudos possibilitou entender um antigo debate nas ciências
sociais, no Brasil, e reatualizar o diálogo a partir de um caso empírico. Essa experiência
se mostrou profícua e por isso essa perspectiva se estende também ao trabalho de
mestrado.
1 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 2 Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – Unesp, Presidente Prudente.
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Outra atividade a qual me debrucei foram as leituras dos trabalhos de Lévi
Marques Pereira (2003, 2004, 2007) e Aline Crespe (2009), um dos primeiros
antropólogos a escreverem sobre os acampamentos Guarani e Kaiowá. Essas leituras me
introduziram na problemática dos acampamentos indígenas no MS.
A escolha pelos acampamentos como lócus etnográficos desta pesquisa foi
delimitada após o primeiro trabalho de campo, que colocou a equipe do projeto As
Formas de Acampamento mais próxima da realidade vivenciada pelos indígenas e
pesquisadores da região sul do MS.
A colaboração com pesquisadores da UFGD (Universidade Federal da
Grande Dourados) nos ajudou a delimitar os acampamentos que seriam o lócus da
pesquisa etnográfica. Nesse sentindo, e com o auxílio da Profa. Dra. Aline Crespe,
coorientadora deste trabalho - fez parte da equipe Jovem pesquisador e realizou pesquisa
na região - os acampamentos escolhidos foram: Tekoha 13 e Apyka’i. O primeiro por ser
um acampamento com o qual os pesquisadores da UFGD já tinham contato e por estar
localizado em uma área na qual se tinha uma relação “tranquila” com o proprietário da
terra. Num contexto de extrema violência contra as populações Kaiowá e Guarani, esse
local se tornava mais seguro para a realização do trabalho de campo. E o segundo por ser
um acampamento que, na época, reproduzia uma configuração particular com poucos
barracos e contato cotidiano com um acampamento de sem-terra próximo, organizado
pela Federação da Agricultura Familiar – FAF, ambos montados na beira da estrada, e
muito próximos de bairros considerados como à “periferia” da cidade de Dourados.
Foi nesse primeiro campo também que iniciamos o diálogo com setores do
estado, como a Fundação Nacional do Índio (doravante Funai) e o Ministério Público
Federal (doravante MPF), e com o Conselho Indígena Missionário (doravante CIMI4). As
visitas de campo seguintes ajudaram a aproximar as relações com esses múltiplos
interlocutores, relação essa necessária para compreender todos os aspectos que envolvem
a situação dos acampamentos indígenas na região.
Durante a iniciação o foco principal da pesquisa foi a organização social dos
acampamentos e para isso também foram realizadas pesquisas de documentos na regional
da Funai de Dourados. Essas pesquisas, juntamente com os dados etnográficos levantados
nos acampamentos, possibilitaram criar mapas de mobilidades das famílias guarani e
kaiowá com o objetivo de traçar relações entre os acampamentos. A questão sobre a
3 Irei chamar de Tekoha 1 e Tekoha 2 as duas áreas que foram foco da pesquisa etnográfica dessa pesquisa. 4 Organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, criado em 1972.
18
mobilidade dos acampados, que surgiu nos últimos anos da pesquisa de iniciação foi um
dos temas que ganhou destaque no mestrado, pois se mostrou sociologicamente relevante
para entender a manutenção e formação de novos acampamentos indígenas.
Fazer parte de um grupo de pesquisa durante a graduação e a realização de
trabalhos de campos coletivos - como era uma das propostas do projeto As formas de
Acampamento - possibilitou também conhecer os acampamentos organizados por sem-
terra e por indígenas Guarani Mbyá no estado de São Paulo. Esse trabalho coletivo foi
fundamental para minha formação enquanto aluna e pesquisadora.
A dissertação de mestrado pretende desenvolver os desdobramentos
etnográficos e analíticos surgidos a partir da pesquisa anterior de iniciação, ainda que a
preocupação antropológica inicial se mantenha: a de refletir acerca dos sentidos que meus
interlocutores Kaiowá e Guarani conferem aos acampamentos e os efeitos que têm nas
suas vidas. Desta maneira dedico este trabalho a eles, pois, seis anos transcorrido da
minha primeira visita aos Kaiowá e Guarani, talvez tenha entendido a frase que inicia
essa introdução. Foi na relação de cativar e de se deixar cativar por eles5, por suas
histórias de vidas e por suas lutas cotidianas, que permanece o desejo das voltas e dos
reencontros.
Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. 6 Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.
5 Referência ao livro O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, em que cativar é descrito como o ato pelo qual
criam-se laços e nos tornam responsáveis por aqueles que cativamos. 6 Essa foto foi tirada na primeira Aty Gassu que estive presente, realizada no Tekoha Passo Piraju (Dourados - MS) em
agosto de 2011, a pedido de Faride (ao meio), uma das lideranças do Tekoha Laranjeira Ñanderu, a quem tive a
oportunidade de reencontrar em junho de 2016. Ao lado esquerdo está o antropólogo kaiowá Tonico Benites.
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Introdução:
As direções não previstas
“Nunca somos no campo uma pessoa clara, resolvida. A memória
das construções de outros, de pessoas de uma difícil decifração, como
nós somos sempre, precisa, entre os atores e as culturas, realizar às
avessas, em direção convergente e contrária à nossa própria
investigação, uma outra, através da qual uma certeira antropologia
ingênua – a deles sobre nós e nosso mundo - elabora e redesenha a
nossa identidade (1998, 192).
Carlos Brandão em Memória Sertão (1998)
As Questões
O projeto de mestrado, Índios de lona preta: uma etnografia de
acampamentos Kaiowá em Dourados (MS), partiu de duas questões principais: os
significados que os acampamentos têm para os Guarani e Kaiowá, e, a segunda, sua
relação com seus modos de mobilidade como fundamental na formação de novos
acampamentos. Assim, o objetivo inicial era mapear a circulação e a mobilidade dos
Kaiowá e Guarani entre os acampamentos e as reservas da região, a fim de avaliar o
rendimento etnográfico e teórico de se pensar esses acampamentos como mais uma
alternativa de mobilidade, onde as teias de relações de parentesco e de aliança se
ampliam, e se produzem e reproduzem formas de socialidades específicas.
Estas questões têm ainda, como pano de fundo, refletir os acampamentos
indígenas como parte de uma linguagem simbólica de demandas sociais coletivas e,
quando se mostrou pertinente, a aproximação do diálogo entre Estudos Rurais e Etnologia
Indígena; temáticas essas que perpassam o trabalho como um todo. Analiticamente
busca-se relacionar a forma social e a linguagem dos acampamentos às concepções e aos
sentidos Kaiowá e Guarani de terra e de mobilidade.
A perspectiva de considerar os acampamentos e as retomadas Guarani e
Kaiowá como uma linguagem simbólica, vem do modelo de análise, proposto por Lygia
Sigaud (2000), da “forma acampamento”, como uma linguagem simbólica para
reivindicar benefícios ao Estado. Sigaud, ao estudar as ocupações de terra em
Pernambuco, apresenta a lona preta e a montagem dos barracos como um dos símbolos da
demanda por terra, e, por sua vez, como o conjunto dos elementos acionados nessas
reivindicações tornou-se uma linguagem que é entendida tanto pelos acampados, pelos
participantes dos movimentos sem-terra e por membros do Estado.
20
Autores como Marcelo Macedo (2005), Nashieli Loera (2006, 2014) e
Marcelo Rosa (2009), também se utilizaram da proposta da “forma acampamento” ao
descrevem, em diferentes contextos etnográficos, como a ocupação de terras e a
montagem de acampamentos se tornou uma linguagem legítima para demandar a reforma
agrária ao Estado brasileiro. Este é o referencial que me motivou a buscar os elementos
da “forma acampamento” dos Guarani e Kaiowá, onde as retomadas de terras se
configuram como um dos símbolos principais na reivindicação dos territórios tradicionais
desse povo. Além disso, essa abordagem permite traçar tanto, aproximações como
distinções entre a linguagem comumente adotada pelos movimentos sem-terra, e a que
está sendo adotada pelos Guarani e Kaiowá. No entanto, se a forma de organização
desses movimentos, muitas vezes podem se assemelhar, o mesmo não se pode dizer dos
sentidos que os acampamentos têm para esses atores, pois os sentidos são muito mais
variáveis e, como irei mostrar no decorrer deste trabalho, podem nos levar para diferentes
lugares.
Portanto, embora descrever os acampamentos Guarani e Kaiowá como
linguagem, seja parte constitutiva desse trabalho, é ao explorar os sentidos que esses
espaços têm para os meus interlocutores que consigo avistar as contribuições mais
significativas dessa pesquisa. Assim, refletir sobre os sentidos das áreas de retomadas se
transformou no eixo distintivo desse trabalho.
Todavia, este trabalho também passa a ter um sentido para os meus
interlocutores. Para a liderança do Tekoha 1, esta dissertação é como um documento que
conta a sua luta e a luta da sua família pelo tekoha. Quando comentei que poderia
suprimir o nome da vice-liderança do Tekoha 2 na dissertação, para preservar sua
identidade, ela me respondeu: “mas aí ninguém vai saber da minha luta”7. No entanto,
considerando o contexto atual de extrema violência vivenciado pelos Guarani e Kaiowá:
segundo o relatório da CPT sobre Conflito no Campo Brasil 2016, no MS houveram dez
tentativas de assassinatos8, cinco ameaças de mortes e um assassinato9, todos de índios ou
lideranças indígenas vivendo em áreas de retomada. Frente a esse cenário atroz e por se
tratar da versão final da dissertação, a banca de defesa em conjunto com minha
7 As frases ditas pelos meus interlocutores serão destacadas em itálico e acrescidas de aspas e as palavras
em itálico fazem referências aos termos nativos. 8 O MS é o terceiro estado com mais tentativas de assassinatos. 9 O assassinato foi de Clodiodi Souza que aconteceu em junho de 2016, quando pistoleiros atacaram o
Tekoha Guapoy, no município de Caarapó, esse ataque deixou mais seis índios feridos a bala e no mês de
junho um novo ataque foi perpetrado deixando mais três indígenas baleados. Esses ataques passaram a ser
conhecidos como o “Massacre de Caarapó”.
21
orientadora aconselharam em deixar os nomes das áreas e dos meus interlocutores no
anonimato, para preservar sua segurança. Assim, embora fosse o desejo dos meus
interlocutores manter seus nomes e os nomes dos tekoha originais, a necessidade de
omiti-los também é uma tentativa de visibilizar o quão violento e o quão violentado são
os Guarani e Kaiowá no MS.
***
Os primeiros passos da pesquisa tiveram início com um levantamento
bibliográfico levando em consideração produções clássicas sobre os Guarani, trabalhos
mais específicos sobre os Kaiowá e a questão territorial, sobre o processo histórico do
MS e produções dos estudos rurais que dialogam com o meu tema de pesquisa, bem
como um levantamento de textos e artigos atuais que discutem a questão dos Guarani e
Kaiowá no sul do estado. Fiz igualmente, um levantamento de trabalhos, principalmente
da etnologia indígena que tratam sobre: a mobilidade, o parentesco, as trocas e a
cosmologia Kaiowá e Guarani.
Especificamente sobre os Kaiowá e a questão dos acampamentos indígenas é
importante destacar trabalhos como de Aline Crespe, “Mobilidade e temporalidade
Kaiowá: do tekoha à reserva. Do tekoharã ao tekoha” (2015), referência central, uma vez
que mobiliza as categorias de mobilidade entre os Kaiowá, analisadas também a partir da
situação das reservas e do movimento de retomada. Outros trabalhos sobre mobilidade
Kaiowá relevantes, é a tese “Mais além da “aldeia”: território e redes sociais entre os
Guarani de Mato Grosso do Sul” (2007) de Alexandra Barbosa da Silva que questiona o
conceito utilizado por Brand (1993, 1997) de “confinamento”. Segundo a antropóloga, a
noção de “confinamento” deixa de considerar a dinâmica de circulação dos indígenas,
como se o processo de territorialização fosse feito apenas pela ação do Estado. Assim, a
proposta da autora é focar nas redes de relações, através da trajetória de famílias extensas
e não no local que os índios estão.
Ao trabalhar com diferentes fontes documentais, o livro de Graciela
Chamorro, História Kaiowa. Das origens aos desafios contemporâneos (2015), faz um
recuo no tempo até os séculos XVI e XVII para contar a história dos Kaiowá, relatando
suas práticas culturais, o processo de aldeamento até chegar ao movimento de retomada.
Além disso, traz dados recentes sobre os números de acampamentos indígenas na região
das cidades de Dourados e Ponta Porã, ajudando assim no mapeamento dos
acampamentos.
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Ademais do levantamento bibliográfico, também foi feita uma busca por
notícias em jornais online que tratassem especificamente sobre a situação dos
acampamentos indígenas, principalmente aqueles que se localizam na região da cidade de
Dourados. Outro importante levantamento realizado foram os dados sobre os conflitos de
terras compilados em relatórios produzidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e que
estão disponibilizados online10. Nesse levantamento alguns acampamentos indígenas
foram citados.
É importante considerar que esses primeiros elementos da construção
metodológica do trabalho da pesquisa, bem como a formação, que inclui disciplinas
cursadas, levantamento bibliográfico são as fases da pesquisa das quais temos mais
“controle”, e muitas vezes antecedem o trabalho de campo. Se até aqui tudo pode ser
descrito como numa linha contínua, o trabalho de campo, por sua vez, obedece a uma
lógica própria, da qual você só ‘dá conta’ parcialmente, pois é justamente o campo que
nos leva por caminhos inusitados e por direções não previstas, inicialmente não pensadas
no projeto, e muitas vezes nos faz repensar e redefinir nossos objetivos e lócus da
pesquisa.
O campo e seus imponderáveis
Se a mobilidade dos meus interlocutores era uma questão presente no projeto
inicial, pensar sobre a minha mobilidade se tornou uma questão que surgiu durante o
trabalho de campo. Como chegar aos acampamentos numa região de confrontos
cotidianos entre indígenas e fazendeiros e na qual não é fácil, e pode resultar até arriscado
estar sozinha em campo, se tornou uma questão nada banal, e de fato foi um dos motivos
que me levaram a mudar o lócus de um dos acampamentos para outro. No projeto inicial,
as áreas indicadas para realização da pesquisa de campo eram os acampamentos Tekoha 1
e Apica’y. Essa escolha pretendia dar continuidade aos contatos e campos anteriormente
realizados que reunia um material etnográfico importante. O acampamento Apica’y se
localizava na margem da BR 455 (que liga Dourados a Ponta Porã) e em 2014 o grupo,
liderado por Dona Damiana realizaram uma retomada e passaram ocupar uma área
localizada dentro da Fazenda São Fernando11.
A dificuldade de circular por esse acampamento, e a preocupação com a
minha segurança em campo fizeram com que começasse contatos em outro
10 Fonte: http://www.cptnacional.org.br/ 11 Dona Damiana, liderança do Apica’y, e mais oito famílias que ocupavam uma parte da Fazenda São
Fernando, foram despejados da área no dia 06 de julho de 2016.
23
acampamento. A minha coorientadora, Aline Crespe, me sugeriu trabalhar no Tekoha 2,
um outro acampamento também próximo da área urbana, o que facilitaria minha
circulação, além disso, ele também fica ao lado da reserva e próximo a outro
acampamento indígena conhecido como Tekoha 3.
Do mesmo modo, foi notável o interesse e a preocupação com que os
moradores dos acampamentos passaram a ter com a minha mobilidade, desde a minha
primeira visita sozinha as áreas12. Minha ida a Dourados, igualmente, foi motivo de
interesse e especulação por parte dos Guarani e Kaiowá, principalmente no início do
campo. Quando as pessoas descobriam que eu não era de Dourados, logo mostravam
interesse em saber de onde vinha, qual era a distância de Campinas a Dourados, quanto
tempo eu demorei para chegar, se tinha ido de ônibus, carro ou avião, se a viagem tinha
sido cansativa. Ao chegar aos acampamentos sozinha, eles também sempre me
perguntavam como eu tinha ido da cidade até lá. Quando falava que havia conseguido
uma carona até as proximidades eles se alegravam e faziam comentários do tipo: “que
bom que conseguiu uma carona”.
A esse respeito é relevante pontuar que, na maioria das vezes, minha
circulação por essas áreas se deu caminhando, eu chegava aos acampamentos a pé,
diferentemente da maioria dos pesquisadores e funcionários do estado, por exemplo, que
utilizam carro. Essa minha forma de acessar os acampamentos, a pé, colocou um “certo
dilema classificatório” aos meus interlocutores (COMERFORD, 2003), uma vez que eu
não me encaixava no perfil de visitantes vindo das universidades, ou de alguma outra
entidade do Estado. Ao mesmo tempo, esta forma de chegar, também me aproximou
deles, pois caminhar a pé e pegar carona é uma das formas mais corriqueiras dos Kaiowá
e Guarani para irem às cidades e visitarem seus parentes. Comerford, em sua pesquisa
sobre os sindicatos rurais, do mesmo modo chamou atenção para o “dilema
classificatório” ao analisar como o “caminhar a pé”, na sua entrada em campo, na zona
rural da Zona da Mata de Minas Gerais, alterou a percepção dos seus interlocutores, que
antes o viam como um integrante do sindicato (aqueles que estão sempre circulando de
carro) para alguém que se busca aproximar e até se aparentar.
12 Minha primeira ida aos Tekoha 1 e Tekoha 2 foi acompanhada por minha coorientadora, Aline Crespe,
que já havia trabalhado em os ambos acampamentos. Nessa primeira visita fui apresentada as lideranças, no
caso do Tekoha 1, já conhecia a liderança, o que facilitava esse primeiro contato. Falei sobre a pesquisa de
mestrado e sobre o consentimento deles em realizá-la. As duas lideranças consentiram e mostraram
interesse pela pesquisa, apenas ressaltando que eu precisaria informá-los sempre das minhas idas, essas
também seriam pautadas na disponibilidade das lideranças em me receberem.
24
Em campo, muitos cuidados e preocupações foram dirigidos ao meu caminhar
a pé. Ao deixar os acampamentos, por exemplo, principalmente a vice-liderança do
Tekoha 2, fazia questão que sua filha me acompanhasse pela estrada de terra que levava
até a rodovia, bem próximo ao Bairro 3, ela mesma me acompanhou uma vez. Em visita a
família de um morador do Tekoha 2, sua esposa também fez questão que ele me
acompanhasse pela estrada de terra. A liderança do Tekoha 1, por sua vez, em uma das
nossas conversas me dizia que ele avisará os moradores do tekoha que eu os visitaria por
um tempo e que não era para ninguém mexer comigo e assim, sempre que eu chegasse ao
Tekoha 1 poderia ficar tranquila pois estaria segura. Quando passei a frequentar o Tekoha
2 com uma amiga, também antropóloga, as lideranças comentavam como era bom eu ter
arrumado uma companhia. Todos esses gestos de cuidados e interesse pela forma de
como chegava e deixava os acampamentos, além de refletir a preocupação com a minha
segurança, diante do cenário de conflito que vivenciam cotidianamente, dizia também
sobre a sociabilidade Kaiowá e Guarani.
***
De modo geral, para a pesquisa do mestrado, o trabalho de campo foi
realizado de janeiro a maio de 2016. Durante esse período me mudei para a cidade de
Dourados e assim pude frequentar cotidianamente os Tekoha 1 e Tekoha 2 e realizar um
levantamento de documentos na regional da Funai de Dourados, no MPF e na Secretaria
Especial da Saúde Indígena (SESAI).
Mas se a escrita consegue condensar resumidamente o que foi o campo, a
pesquisa etnográfica, por outro lado, pertence ao domínio dos “imponderáveis”, pois é
com a vida real que nos defrontamos e não com os nossos cronogramas de projeto, que,
de tão sincrônicos que os construímos, parece até nos trazer alento. Enquanto meu
cronograma previa que o período do trabalho de campo, inicialmente terminaria em
março, eu acabei ficando mais um mês e meio, pois como minha coorientadora já me
alertará, o campo com os Kaiowá e Guarani não acontece quando nós queremos, mas sim
quando eles querem.
Além disso, outros antropólogos, interlocutores fundamentais no meu
trabalho, como Lévi Pereira, me chamavam a atenção sobre como os Kaiowá são
desconfiados tendo também uma temporalidade própria para estabelecer relações de
confiança. Ficava claro, que o tempo da pesquisa e o tempo dos meus interlocutores não
era o mesmo, com certeza. Lidar com as expectativas do que será o campo – no início
imaginava que estaria todos os dias nos acampamentos, mas prontamente os Kaiowá me
25
mostraram que não funcionava bem assim - e de como o campo realmente se mostra,
leva, muitas vezes, o pesquisador a ficar apreensivo e ansioso, é quando o sentimento de
desânimo invade. E não foi diferente comigo. A esse respeito, Malinowski (1922) já
havia escrito como o trabalho etnográfico passa por momentos de desânimo e muitas
vezes por “sentimentos de desespero e desalento” (1922, 23).
No entanto, fui percebendo que meu campo estava sendo o tempo todo e não
acontecia apenas quando visitava as áreas de retomadas. Assim, me atentei mais aos
diálogos com amigos e pesquisadores, a relação com a cidade, com a Funai e MPF e com
interlocutores das universidades.
Por outro lado, aprenderá também a importância de cada uma das visitas
realizadas nas áreas de retomada. As lideranças indígenas e os seus parentes foram as
pessoas com quem eu tive mais contato em campo, toda vez que visitava a liderança do
Tekoha 1, e a vice-liderança do Tekoha 2, essas idas se transformavam sempre numa
nova chegada.
O conflito
Como mencionei antes, as escolhas pelas áreas trabalhadas, em diferentes
etapas da pesquisa, sempre levaram em conta a questão do conflito e da violência
intrínseca a ele. Essa preocupação, não apenas minha, mas, de amigos, de pesquisadores,
de funcionários da FUNAI e do MPF, bem como dos Kaiowá e Guarani me
acompanharam em campo e chegavam até a mim na forma de orientações e pedidos de
cautela. Recordo uma vez, no final de fevereiro de 2016, logo após uma ocupação
indígena nas proximidades do Tekoha 2, em que uma funcionária da Funai entrará em
contato comigo pedindo para que naquela semana eu evitasse ir ao acampamento, pois
como o clima estava tenso por causa da nova ocupação, uma pessoa estranha, não
indígena, circulando nas proximidades seria um tanto perigoso.
No entanto, o conflito não se dava apenas em relação às escolhas pelas áreas
trabalhadas, ou no adiamento de uma visita, por exemplo. O conflito está sempre presente
e tem efeitos na vida dos Kaiowá e Guarani, bem como das pessoas que se encontram
trabalhando ou pesquisando com eles.
No meu caso, não foram poucas vezes que senti medo, mesmo sem um
motivo aparente. Esse medo vinha sempre quando estava a caminho dos acampamentos:
achava que alguém podia me parar e perguntar o que estava fazendo por aquelas regiões.
Mesmo andando pela cidade, as vezes acreditava que alguém estava me observando, ou,
se um carro se aproximasse, pensava que poderia ser alguém que ficou sabendo que eu
26
estava frequentando os acampamentos Guarani e Kaiowá. Esse relato pode parecer
estranho para as pessoas que não conhecem o contexto do MS, acontece que o conflito
entre indígenas e proprietários de terras reverbera nas cidades, nos espaços públicos e
privados. Um exemplo concreto disso pode ser expresso nos acontecimentos que se
iniciaram no fim de fevereiro de 2016 em Dourados, quando aconteceu uma retomada ao
lado do Bairro 3, bem próximo ao Tekoha 2 e ao Tekoha 313. A retomada, que semanas
depois foi desfeita, parece, por outro lado, ter disparado outras retomadas por áreas
próximas, que ficam ao lado do Tekoha 3, nas proximidades com a Reserva de Dourados.
A primeira, aconteceu num sábado, no dia 05 de março de 2016. Essas novas retomadas
causaram um furor na cidade, pois os indígenas ocuparam uma região de chácaras e os
proprietários ficaram muito preocupados e nervosos com a ação dos índios.
Com as retomadas ocorrendo o clima na cidade ficou mais tenso14. Muitas
pessoas falavam sobre o assunto, e faziam comentários de que haveria enfrentamento
entre os proprietários e os indígenas. Nas semanas seguintes às retomadas era frequente
aparecerem algumas notícias nos jornais locais falando das novas ocupações, havia, por
exemplo, uma notícia sobre uma senhora que abandou sua chácara com medo do
conflito15. Nas notícias sempre era relatado o fato dos índios estarem nervosos e armados
com facões e enxadas e, por isso, foram pedidos reforços policiais. Mas, na cidade,
também ouvíamos que os chacareiros estavam revoltados com as ocupações e que
estavam se armando para expulsar os indígenas de suas terras16. O temor do acirramento
do conflito se concretizou no dia 12 de março, quando um indígena foi baleado num
confronto com fazendeiros em uma das áreas recém retomadas17.
É comum, entre os moradores da cidade, principalmente daqueles contrários às
retomadas, a reprodução de um discurso que enfatiza uma legitimidade da manutenção da
13 A retomada citada é a mesma que me referi, quando a funcionária da FUNAI me alertou para não ir a
campo, naquele período, por causa do clima de tensão instaurado com a retomada. 14 Como venho apresentando, o clima de tensão, vivenciado pelos meus interlocutores é algo cotidiano,
mas, determinados acontecimentos, como novas retomadas, ou atentados aos acampamentos Guarani e
Kaiowá, parecem intensificar a tensão e o conflito. 15 http://www.folhadedourados.com.br/noticias/dourados/indiosocupamsitioedeixaproprietariaassustada 16 Seguem alguns títulos de notícias que circularam na época:
- PF investiga conflito indígena em Dourados – Jornal o Progresso
http://www.progresso.com.br/policia/pfinvestigaconflitoindigenaemdourados
- Clima é tenso em área invadida por índios e polícia teme conflito – Dourados News
http://www.douradosnews.com.br/dourados/climaetensoemareainvadidaporindiosepoliciatemeconflito
- Tensão toma conta em região invadida por famílias indígenas – Dourados News
http://www.douradosnews.com.br/dourados/tensaotomacontadeareainvadidaporindigenasepoliciaeacionada
ateolocal 17 Indígena é baleado em área de conflito em Dourados - MS Notícias
http://www.msnoticias.com.br/editorias/interior-mato-grosso-sul/indigena-e-baleado-em-area-de-conflito-
em-dourados/66218/
27
terra por parte dos proprietários, alvo das retomadas, pelo trabalho realizado na
propriedade, sendo muitas vezes, fonte de renda. Esse discurso, ao mesmo tempo é uma
forma de deslegitimar as ocupações e os acampamentos indígenas, vistos pela maioria
como de “desocupados”. Ao discutir o conceito de terra, tendo como pano de fundo os
sem-terra, Borges (2014) mostra exatamente, como a terra é fundamentalmente pensada
enquanto propriedade privada, fortalecida pelo discurso da produtividade e, ainda
acrescenta, que no Brasil, como em outros países, está concepção de terra é intimamente
ligada ao passado colonial, e expressa a relação de poder entre os que tem a propriedade
de um lado, e por outro, os que tem a posse ou, na maioria dos casos, nem isso. Por outro
lado, pontua como, no cenário brasileiro, as reivindicações indígenas aparecem na
contramão do discurso da propriedade, chamando a atenção para outros conceitos, outras
formas de pensar e agir referente a terra.
Em momentos de intensos conflitos como esses, não é difícil que
antropólogos que já realizaram pesquisas ou laudos antropológicos entre os Guarani e
Kaiowá, sejam identificados, pelo senso comum, como articuladores e incitadores das
retomadas no MS. Como vimos recentemente pela CPI do INCRA e da FUNAI 18, e a
PEC 215, junto com o marco temporal19, muitas vezes, esse senso comum, tomado como
base de um processo jurídico, tem implicações e afeta a vida dessas pessoas, que por sua
vez, também se veem vivenciando um clima de insegurança constante e, às vezes, de
ameaças, como é o caso de colegas que residem no estado de MS20.
Para os Guarani e Kaiowá a violência marca seu o cotidiano. Seja através de
ameaças, atentados, assassinatos, ou aparece de maneira não tão direta, como o problema
do alcoolismo, o preconceito que os indígenas enfrentam nas idas as cidades, o
impedimento de fazer roças no Tekoha 1, propostas de acordos para remover os índios da
área de retomada, a construção de um muro numa área de ocupação indígena, ou o
18 Em 30 de março de 2017 o relatório da CPI foi concluído e pediu o indiciamento de mais de 60 pessoas
entre lideranças indígenas e quilombolas, antropólogos e servidores, incluído o antropólogo Levi Marques
Pereira. 19 A PEC 215 prevê alterar os procedimentos para demarcação de terras indígenas no Brasil. Entre as
modificações propostas está a implantação da tese do marco temporal, como principal critério para
demarcação. Segundo a tese passariam a ter direito a terras apenas os povos indígenas que as estivessem
ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando o
processo histórico de esbulho do território indígena pela qual passou povos como os Guarani e Kaiowá. 20 No dia 17 de março de 2016, tomei conhecimento de uma notícia que circulou no site do MPF. Nela o
MPF requisitava que a Polícia Federal abrisse inquérito para averiguar ameaças de fazendeiros ao
antropólogo Lévi Marques Pereira, segundo a notícia, os fazendeiros acreditavam que o antropólogo era o
responsável pelo laudo das áreas que haviam sido ocupadas. Consultar notícia em:
http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-requisita-a-pf-investigacao-sobre-ameaca-
a-antropologo-em-dourados
28
próprio discurso do avanço da modernidade onde o crescimento da agroindústria e o
crescimento urbano são expoentes. A violência mais explícita ou mais velada tem, como
denominador comum, efeitos devastadores na vida dos meus interlocutores.
Um caso, que exemplifica o que estou querendo dizer, foi a situação recente
pela qual passou o Tekoha 1. O Tekoha 1 localiza-se na região metropolitana de
Dourados, nos limites da cidade e com o avanço urbano vem sofrendo com a especulação
imobiliária21. Em junho de 2016 tomei conhecimento de uma proposta feita a liderança da
área. Na ocasião uma “antropóloga”, que não se tinha informações de onde vinha, havia
visitado o acampamento e durante uma reunião com a liderança propôs que a comunidade
do Tekoha 1 deixasse a área que ocupam há mais de 40 anos e em troca eles ganhariam
um outro lugar, onde conforme ela prometia teriam casas, poços artesianos, energia
elétrica, entre outras promessas. A liderança chamou esse acordo de "a trocação". Mas
tarde, ficamos sabendo, que essa proposta veio por parte da Incorporadora Colombo -
dona de parte do território, reivindicado pelo Tekoha 1- que, com esse acordo, poderia dar
continuidade ao loteamento João Carneiro Alves, loteamento esse que se sobrepõe a área
do Tekoha 1 e, por esse motivo, teve seu avanço barrado por recomendação do MPF. A
proposta passou a ser investigada pelo MPF e acabou não sendo aceita pela comunidade.
No entanto, o que gostaria de destacar é que a palavra, especificamente sob a forma de
promessa, da ‘trocação’ teve efeitos no acampamento, desequilibrando a comunidade do
Tekoha 1, uma vez que nem todos os moradores queriam aderir ao acordo. Assim, essa
proposta é um caso concreto que reflete a disputa pelos espaços de vida e que tem como
efeitos o conflito, a violência e a precariedade.
Abrindo caminhos
Nem todas as questões abordadas nesse trabalho foram desenhadas durante o
processo do trabalho de campo, de estar no local, existem aquelas que se tornaram mais
claras e relevantes no processo da escrita pois, como Strathern (2014) salientou, a escrita
cria um segundo campo, que do mesmo modo que o trabalho de campo, também tem
dinâmicas e trajetórias próprias. A violência dos conflitos, por exemplo, não afetará por
tanto, apenas o meu trabalho de campo, ele também afetou a própria escrita deste
trabalho, finalizado num período de intensa crise política a nível nacional e num
momento em que os direitos dos povos indígenas vêm sofrendo violentos ataques.
21 Esse tema será explorado com mais atenção no capítulo II.
29
Nessa conjuntura, faz-se cada vez mais necessário uma discussão ampla
acerca do conflito vivenciado pelos grupos indígenas, entre eles os Guarani e Kaiowá no
Mato Grosso do Sul que estão reivindicando novas demarcações de terra através das
retomadas. Questão que envolve uma discussão sobre o contexto e a ameaça a direitos
fundamentais dos povos indígenas. Ademais, ressalto que existiam poucas pesquisas
antropológicas sobre acampamentos Guarani e Kaiowá, situação essa que vem mudando
nos últimos dez anos, quando a literatura sobre esse grupo indígena vem aumentando.
Meu trabalho vem integrar essa parcela de trabalhos recentes que busca abrir caminhos e
trazer contribuições efetivas sobre as dinâmicas e os sentidos das áreas de retomadas
Kaiowá e Guarani e, por conseguinte, colaborando para dar contornos concretos aos
conflitos territoriais no MS.
Cabe agora apresentar a estrutura da dissertação. A dissertação foi dívida em
três capítulos, o primeiro dele aborda, brevemente o contexto histórico de divisão e
disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de reservamento
das populações indígenas no estado, bem como o processo de reivindicação e ocupação
de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e Guarani. Também é apresentado
um levantamento atual dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados,
baseado em bibliografias recentes que trataram sobre o tema e nos dados etnográficos.
O segundo capítulo trata especificamente da etnografia realizada nos Tekoha
1 e Tekoha 2, tendo como foco a organização social e a mobilidade nessas áreas,
passando pelos conflitos e pelo espaço no interior das áreas de retomada como parte
também daquilo que movimenta e produz vínculos e relações entre seus moradores, com
a reserva, e com outras áreas de retomada.
O terceiro capítulo, tem como objetivo refletir sobre as áreas de retomadas
como uma possibilidade de retorno ao tekoha, que se soma à possibilidade de
fortalecimento das mobilidades tradicionais Guarani e Kaiowá bem como uma das
maneiras desses povos lidarem com o que eles consideram um excesso de mistura (com
brancos e índios de outras etnias) apontada pelos Kaiowá como um dos maiores
problemas dentro das reservas, e um dos fatores que favorece a desarticulação da
parentela. Sendo assim, esse capítulo é dedicado a pensar sobre os sentidos que as áreas
de retomadas têm para os Kaiowá e Guarani.
Por fim é pertinente explicar, porque, na maior parte desse trabalho utilizo
Kaiowá e Guarani, ou apenas Kaiowá. Primeiro, as duas áreas lócus da pesquisa
etnográfica eram de maioria Kaiowá. O segundo motivo e, que complementa o primeiro,
30
é que durante meu campo, em diferentes momentos, tanto os Kaiowá como os Guarani
apresentavam distinções entre eles, seja na forma de cantar, no jeito de ser como também
na utilização de algumas expressões linguísticas. Dessa forma, achei que não fazia
sentido, inclusive para meus interlocutores, usar a designação Guarani-Kaiowá, que passa
a impressão de que eles sejam o mesmo povo e não como povos que pertencem à mesma
família linguística Tupi-Guarani. Porém, é importante ressaltar que tanto para os
indígenas, como para alguns pesquisadores é relevante a utilização do termo Guarani e
Kaiowá para assinalar que são aliados políticos, por esse motivo, quando me referir ao
movimento de retomada no sentido mais geral, optei por usar o termo Guarani e Kaiowá.
31
Capítulo I
A espiral das retomadas: contextualizando os acampamentos indígenas na região sul de Mato
Grosso do Sul.
Embora meu lócus empírico sejam dois acampamentos indígenas, as questões
que os envolvem são mais amplas, pois, como bem pontuou Joan Vincent (1977) os
limites da observação e os limites da investigação são distintos. Buscando apresentar as
questões mais amplas, esse capítulo se debruça na descrição das condições históricas de
divisão e disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de
reservamento das populações indígenas no sul do MS, bem como o processo de
reivindicação e ocupação de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e
Guarani. Nesse sentido, a dimensão histórica é abordada aqui, porque, compreendo as
retomadas indígenas fazendo parte de um quadro mais amplo, tanto histórico, como
social. Juntamente com a problematização, pretende-se apresentar um levantamento atual
dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados, baseado em bibliografias
recentes que trataram sobre o tema.
***
O estado de Mato Grosso do Sul – MS concentra 56,3% da população
indígena da região Centro Oeste do Brasil, são 51.801 indivíduos22, 37% dessa população
vive em áreas de reservas demarcadas pelo o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, entre
1915 e 192823. Somente na Reserva Indígena de Dourados vive 18% dessa população,
numa área de 3.539 hectares, sendo a reserva com maior densidade populacional do
estado. A população Kaiowá, da família linguística Tupi-Guarani, no MS é a segunda
maior do país: são 43. 401 indivíduos, garantindo à região Centro Oeste o terceiro lugar
com a maior concentração de indígenas, segundo informações da FUNAI24 e do Censo
Demográfico de 2010. Ainda, segundos dados do IBGE de 2010, a população
autodeclarada indígena vivendo na área urbana no MS é de 2.803 indivíduos, só em
22 Para Cavalcante (2013) o número da população Guarani e Kaiowá pode chegar a cerca de 60.000
indivíduos, por levar em consideração que, boa parte dos índios que vivem nos centros urbanos, não foram
contabilizados. 23 Apesar da reserva englobar a categoria jurídica de Terra Indígena, isto é, uma terra demarcada, faço a
distinção entre essas duas categorias, optando por usar reserva para mencionar as áreas criadas pelo SPI até
1928 no MS e que não levaram em consideração as especificidades de uma terra indígena, como as
questões de reprodução física e cultural do grupo. 24 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#>. Acesso
em 01 de jun 2017.
32
Dourados são 688. Também estima-se que 2.630 indígenas vivam em acampamentos no
MS25.
Embora esses dados sejam expressivos para dar um panorama da situação
atual dos Kaiowá e Guarani, eles não refletem, por si só os processos por trás dos
números e o que eles representam para as pessoas de carne e osso. É na compreensão
desses processos que me detenho a seguir.
1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do
Mato Grosso do Sul
Os contatos com os Kaiowá e Guarani, por parte dos brancos26, no contexto
da colonização, segundo fontes históricas, datam de meados do século XVII com a
presença das reduções jesuíticas e de viajantes. No entanto, o processo histórico de
esbulho do território Kaiowá e Guarani no sul do MS27 e o contato interétnico mais
intensivo iniciaram no final do século XIX. Esse momento pode ser descrito por três
diferentes e subsequentes fases.
A primeira delas é iniciada, após a Guerra do Paraguai (1864-1870)28, ainda
no século XIX com a instalação da Companhia Matte Laranjeira em 1882, quando
Thomaz Laranjeira29 conseguiu a concessão para explorar a erva mate, em terras
brasileiras30. A Companhia se estabeleceu em território indígena e durante o tempo que
realizou a atividade de extração e exportação da erva nativa se utilizou da mão de obra
indígena (BRAND, 1997). O monopólio da Companhia Matte Laranjeira chegou a ter
cinco milhões de hectares (CAVALCANTE 2013, 22) e atuou na região até 1943. A
25 Os dados apresentados acima constam no Censo Populacional do IBGE de 2010, na SESAI e na FUNAI.
Para mais informações também consultar Cavalcante, 2013. 26 Branco é uma das categorias utilizadas pelos Guarani e Kaiowá (como por outros povos indígenas) para
se referir aos não indígenas, embora em campo também tenha ouvido os termos como bahiano, paraguaio,
maranhense para fazer essa distinção. O termo nativo Karaí também é usado para se referir aos não
indígenas, mas ele, da mesma forma, pode ser usado para falar de índios de outras etnias. De modo geral, a
categoria branco é utilizada com mais frequência, principalmente quando os indígenas falam dos
fazendeiros. Essa categoria e seus diversos sentidos, mereceria um estudo específico e um investimento
etnográfico e reflexão mais aprofundada inclusive, trazendo uma contextualização histórica, uma vez que
contribui também para discutir temas como da mistura entre as sociedades indígenas, temática já tratada por
uma ampla bibliografia da etnologia indígena. Me limito, neste trabalho a mobilizá-la conforme meus
interlocutores a acionavam quando se tratava dos sentidos dados aos acampamentos. 27 Vale ressaltar que até 1978 só existia o estado do Mato Grosso. O estado de Mato Grosso do Sul foi
desmembrado e oficializado em 1º de janeiro de 1979. Sem desconsiderar esse fato histórico, mas, com
uma finalidade prática, nesse trabalho sempre será feita referência ao estado de MS. 28 A Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, também impactou a vida do Kaiowá e Guarani, pois grande
parte das áreas onde se travou a guerra, ocorreram no território ocupado pelos indígenas, afetando
principalmente a mobilidade desses povos. 29 Thomaz Laranjeira, também atuou na comissão de demarcação de fronteiras entre Brasil e Paraguai. 30 Do lado paraguaio, Thomaz Laranjeira já fazia a exploração dos ervais desde 1877.
33
Companhia é apontada por vários autores por ter preservado as áreas sobre o seu
domínio, visto seu caráter extrativista, garantindo que os Guarani e Kaiowá, nesse
momento, não fossem expulsos e continuassem a viver em seus territórios. Em
contrapartida, outro elemento unânime entre os pesquisadores, é quanto a exploração da
mão de obra indígena, sendo muitas vezes caracterizado como um regime de escravidão
ou semiescravidão, que acabou contribuindo para a desagregação social dessa população.
A esse respeito Crespe escreveu:
Se a companhia teve pouco impacto sobre os territórios, o mesmo não
pode ser afirmado no que se refere à mobilidade indígena. À época
muitos homens saíram para trabalhar nos ervais, promovendo o
deslocamento de muitas famílias, ou parte delas, para os acampamentos
de trabalhadores da companhia (2015, 95).
Nesse mesmo sentindo, Chamorro (2015) afirma que uma das principais
consequências da atuação da Companhia para os Kaiowá da região foi o fim do
isolamento dessa população, uma vez que favoreceu o crescimento de centros
populacionais - muitas pessoas vinham em busca de trabalho nos ervais. Os
deslocamentos dos Kaiowá, é apontado pela autora como uma “mobilidade forçada, que
dispersou as comunidades indígenas e perturbou as suas formas de produção, consumo e
sociabilidades tradicionais” (2015, 122).
A segunda fase, faz referência ao período entre os anos de 1915 a 1928,
quando o Serviço de Proteção ao Índio (doravante SPI) 31 criou oito reservas no sul de
MS destinadas aos índios dos povos Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva (ambos da
família linguística Tupi-Guarani) e Terena (pertencentes à família linguística Aruak). De
1915 a 1924 foram criadas as seguintes reservas: Benjamin Constant (1915), atualmente
TI Amambaí; Francisco Horta (1917), TI Dourados e a reserva José Bonifácio (1924), TI
Caarapó. Em 1928 foram criadas mais cinco reservas: TI Aldeia Limão Verde, no
município de Amambaí; TI Pirajuy em Sete Quedas; Porto Lindo, hoje, TI Yvy-Katu, em
Japorã; TI Sossoró em Tacuru e TI Takuapiry em Coronel Sapucaia. É flagrante
mencionar que destas oito Terra Indígenas, apenas a Takuapiry, não teve sua área
reduzida no processo de demarcação (Crespe, 2015: 112).
31 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi criado em 1910 pelo tenente-coronel Cândido Marino Rondon,
visando não apenas a proteção dos povos indígenas, mas também a garantia do processo de integração dos
índios. No início dos anos 1960, o SPI foi abalado por denúncias de corrupção e genocídio das populações
indígenas. E em 1967 ele é extinto para dar lugar à recém-criada Fundação Nacional do Índio - FUNAI,
órgão que perdura até os dias atuais.
34
Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016, 48).
Segundo Souza Lima (2002) o SPI, se utilizava da forma de atuação de
tradição sertanista, isto é, as populações indígenas, assim como ocorria no período
colonial, foram atraídas e pacificadas – no período colonial, o processo de reservamento
da população indígena contou com a ajuda das missões jesuíticas e com a catequização
dessa população. Contudo, no tempo do SPI, a política sertanista apareceu também com o
rótulo de proteção dessas populações, se veicula essa imagem ao mesmo tempo em que
liberavam as terras indígenas para o “interesse nacional” e ocupação colonial. A criação
dessas reservas são, portanto, reflexo de uma política indigenista que, tinha como
objetivo a integração e a tutela dos povos indígenas, esses últimos usurpados de suas
terras, sempre que havia interesses econômicos pelo território, com a finalidade de abrir
novas fronteiras de colonização agrícola, como o caso do MS.
Com a criação das reservas, a população indígena no sul do MS sentiu o
impacto da colonização. Diversas famílias destas etnias foram retiradas do seu território e
“confinadas” nas reservas, como defendeu o historiador Antônio Brand (1993; 1997). As
reservas se tratavam de pequenas unidades administrativas que não levavam em
consideração a organização social dos diferentes grupos étnicos relacionados. Assim,
esses espaços não apresentavam as condições necessárias para a reprodução física e
cultural das sociedades em questão (PEREIRA, 2014; BARBOSA da SILVA, 2007;
CRESPE, 2009). Segundo Barbosa da Silva, “o SPI territorializaria os indígenas,
35
obrigando-os a residir em espaços restritos, com fronteiras fixas. Tal processo,
obviamente tinha como corolário a liberação de terras para a colonização da região”
(2007:46).
Anteriormente a isso, os Kaiowá nunca haviam vivido a experiência da
reserva e nem concebiam a existência das fronteiras em seu território, estas fronteiras
tomaram contornos concretos ao serem instituídas pelo órgão indigenista oficial e pelas
cercas das fazendas. As oito reservas demarcadas no MS se localizavam perto de cidades
e/ou vilarejos, mais uma estratégia que destinava aos Kaiowá o papel de mão de obra
barata para agricultura e pecuária na região. Para Antônio Brand, o processo de esbulho
das terras Kaiowá e a violência contra essa população indígena aconteceu com a omissão
e a conveniência do SPI, que estava a serviço da terra produtiva (1993:68).
Outra estratégia praticada pelo SPI no estado de MS foi a de inserir alguns
grupos de indígenas da etnia Terena, principalmente na reserva de Dourados, para
acelerar o processo de integração dos Kaiowá à sociedade, pois os Terena eram vistos
pelos indigenistas, que instituíam as políticas de Estado, como um povo pacificado e mais
“civilizado”.
Os anos de 1930 é marcado pela chegada de Getúlio Vargas ao poder, depois
da Revolução de 30. Durante o Estado Novo, entre os projetos de maior destaque desse
período está o da política intitulada Marcha para o Oeste. O governo, neste momento,
volta seu interesse aos interiores do país, principalmente a região central, com o intuito de
povoar, colonizar e aumentar as fronteiras agrícolas no interior. Essa política atingiu
diferentes populações indígenas, como os Kaiowá no MS, dado que, esses povos, na
maior parte das vezes, eram obrigados a deixar suas terras, sendo levados para as áreas de
reservas criadas pelo órgão indigenista oficial - SPI.
É nessa conjuntura que em 1948 é criada a Colônia Agrícola Nacional de
Dourados (CAND). A CAND tinha como plano a instalação de colonos em pequenas
propriedades estimulando a agricultura (BARBOSA da SILVA, 2007). Essa política
representou um aumento demográfico na região da grande Dourados, principalmente nos
anos 1950 com a chegada de migrantes vindos, principalmente, do Nordeste e nos anos
1960 e 1970, vindo do Sul do país. As áreas das colônias destinadas aos
migrantes/colonos, foram implementadas em território indígena - embora isso não tenha
sido levado em consideração pelo governo. Por isso, a terceira fase do processo de
colonização do MS foi marcada pela chegada da CAND, que representou o aumento de
fazendas na região e o avanço das atividades agropecuárias, agravando ainda mais a
36
situação dos Kaiowá e Guarani, expulsos de suas terras e coagidos pelas cercas das
fazendas.
Nos anos de 1970 o MS vive um grande período de desmatamento, reflexo do
aumento das plantações de soja e cana-de-açúcar no estado, gerando um impacto
ambiental com a consequente destruição dos restos de mata que ainda existiam nas
fazendas. Muitas famílias indígenas conseguiram permanecer nestas áreas de mata, ou
escondidos do fazendeiro, ou mantendo com ele vínculos de trabalho. Esses índios
ficaram conhecidos na literatura como índios de “fundos de fazenda” (BRAND, 1997;
PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009). Essas áreas eram habitadas por índios que além de
resistirem ao modelo de aldeamento, permaneciam nesses espaços de mata em troca de
trabalho, como uma maneira de não se afastar de seus locais de origens (BRAND, 1997;
PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009 e 2015). Circular pelas mediações do seu antigo
território era uma possibilidade de manter viva a esperança de retorno ao seu lugar.
Acontece que, o desmatamento quase total do sul do MS completou o processo de
“expulsão dos índios das suas terras tradicionais, intensificando o confinamento nas
reservas” (BRAND, 1997:88).
Observa-se, que as transformações do modo de vida dos Kaiowá estão
intimamente relacionadas com o processo de colonização do sul do MS, bem como com o
projeto indigenista, ambos adotados num determinado contexto, amparados por um
discurso teórico e por estratégias políticas que deram sustentação para tais ações. As
retomadas e os acampamentos indígenas não podem ser compreendidos fora dessa lógica,
pois eles são reflexos desses mesmos processos (CRESPE e CORRADO, 2012).
1.2 A vida na aldeia antiga
A situação de contato e o interesse pela “terra produtiva” atingiram os
Kaiowá e Guarani promovendo alterações nas suas formas de vida, principalmente no que
se refere a sua territorialidade32. Além do mais, não foram apenas as fronteiras que as
reservas instituíram na vida desses povos. O processo, quase sempre violento de ida para
esses espaços, causou a dispersão de famílias e a dissolução de alianças. Novos padrões
de ocupação, convivências e o e surgimento de novos tipos de lideranças foram
instituídos.
Cardoso de Oliveira (1968), ao estudar o “processo de assimilação” entre os
Terena, identifica a constituição das reservas como potentes para desencadear o que
32 Essas questões serão abordadas com mais detalhes nos capítulos subsequentes.
37
chamou de “crise de valores”, uma vez que a formação das aldeias passa a ter um modelo
urbano de organização: casas enfileiradas e separadas por ruas. A presença dos Postos
Indígenas, segundo Oliveira, também reforçava essa crise de valores, principalmente por
controlarem as relações interétnicas e ter um modelo assistencialista (1968: 52).
Para os Kaiowá e Guarani, similarmente, um dos principais impactos foram a
criação dos Postos Indígenas e, principalmente, a instituição da figura do capitão e de
chefe de posto nas áreas de reservas. Essas duas figuras instauradas pelo SPI, representou
uma concentração de poder para esses povos. Acontece que anterior às reservas, na maior
parte das vezes, a autoridade era representada pela liderança religiosa, ñanderu (rezador)
e ñandesy (rezadora). Barbosa da Silva (2007) relata que “a instituição do cargo de
capitão veio a subverter toda a lógica sócio-política tradicional desses grupos” (2007:
53)33.
Dessa forma, assim também como apontou Cavalcante (2013) a vida na
reserva em paralelo com a figura do capitão gerou uma sobreposição de lideranças de
parentelas, que por sua vez geraram tensões e outras formas de liderança, nem sempre
aceitas pelos Kaiowá e Guarani. O conflito pela liderança é apontado, por muitos
estudiosos dos Kaiowá, como um dos motivadores das retomadas de terras, pois, na
maior parte das vezes, esse conflito acaba com a mudança da parte mais enfraquecida do
grupo: “a sobreposição de lideranças em situações insustentáveis dá vazão a importantes
episódios de retomadas de terras observadas no território Kaiowá em Mato Grosso do
Sul” (Cavalcante, 2013: 155).
É importante salientar, que numa situação de não escassez de terra, como era
antes das instituições das fronteiras, o conflito entre as lideranças não era um problema
para os Kaiowá, pois em caso de indisposições, o grupo descontente procurava um novo
local, constituindo um novo tekoha e uma nova liderança. No entanto, a situação de
reserva e suas cercas dificulta essa dinâmica, mas, não interrompe, uma vez que, do meu
ponto de vista, os acampamentos e as retomadas tem sido também reflexo de tentativas
de resolver o problema da pouca terra e da densidade populacional nas reservas.
33 Nimuendaju ([1914] 1987), também escrevera que os Guarani não reconheciam outro líder, sem ser o
religioso. Segundo ele: “a subordinação espontânea (voluntária) á teocracia de seu pajé-principal era a
única organização profundamente alicerçada no caráter e nas concepções destas hordas, não substituível por
nenhuma outra” (76). E, ainda acrescentou, que além do Estado não ter levado em consideração esse fato,
ao instituir a figura do capitão, essa também foi uma estratégia adotada com o objetivo de “educar melhor
para o trabalho” os indígenas, uma vez que, os confrontos entre a liderança tradicional e as lideranças
autoritárias (os capitães) desarticulavam e desfaziam o grupo.
38
Crespe, inspirada na noção de estabelecidos de Nobert Elias e John L Scotson
(2000), menciona que a reserva não é ruim para todos, pois os grupos que se assentaram
primeiro nelas conseguiram se consolidar e recompor, pelo menos em parte, sua
parentela. Acontece que os grupos que foram chegando posteriormente, principalmente
quando foram diminuindo os “fundos de fazendas”, tiveram mais dificuldades de se
estabelecer:
Neste sentido, as famílias que chegaram primeiro já estavam
estabelecidas quando os demais grupos chegaram a partir da década de
1980. O termo estabelecido remete aos grupos que se assentaram
primeiro e conseguiram se acomodar com suas famílias nas reservas
(2015: 183).
Sobre esse assunto, a vice-liderança do Tekoha 2, me contava que muitos
índios não concordam com as retomadas e, quando ocorre reintegração de posse, disse
que já ouvira indígenas dizendo: “era bem feito, quem mandou ir invadir terra”. Na
visão dela, isso ocorria, porque, para aquelas famílias estabelecidas na reserva, “eles não
precisam invadir terra mesmo, porque no passado alguém já fez isso para eles”, se
referindo ao processo de ocupação dos lotes na reserva de Dourados. Também disse, que
as pessoas da aldeia antiga, como ela comumente se refere as áreas de reserva, falam
dessa maneira, porque não procuram se informar e complementa: “se o meu filho não for
malcriado, reconhecer a luta, no futuro ele não vai falar isso para alguém, pois sabe que
seus pais precisaram invadir para ele ter terra”.
Todavia, o ponto de convergência entre os indígenas da região é quanto ao
problema da densidade demográfica nas reservas. Somente na reserva indígena de
Dourados vivem 11.880 indivíduos numa área de 3.474 hectares34, isso representa uma
média de 1,46 hectares por família35.
Tabela 1. Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928.
Terra
Indígena
Grupo
étnico
Município População Área
(ha)
Área em
posse
dos
indígena
s (há)
Hectares
por família
– média de
5 pessoas
Amambai Kaiowa Amambai 7.934 2.429 2.429 1,53
Dourados Guarani
/ Kaiowa
e Terena
Dourados
/ Itaporã
11.880 3.474 3.474 1,46
34 Atualmente a coordenação da FUNAI de Dourados estima uma população de cerca de 13.000 pessoas. 35 Consultar tabelas abaixo.
39
Caarapó /
Te’yikue
Guarani
/ Kaiowa
Caarapó 5.200 3.594 3.594 3,45
Porto
Lindo /
Jacarey
Guarani Japorã 4.242 1.649 1.649 1,94
Taquaperi Kaiowa Coronel
Sapucaia
3.180 1.777 1.777 2,79
Sassoró /
Ramada
Kaiowa Tacuru 2.300 1.923 1.923 4,18
Limão
Verde
Kaiowa Amambai 1.330 668 668 2,51
Pirajuí Guarani Paranhos 2.184 2.118 2.118 4,84
Totais
38.525 17.632 17.632 2,82
Dados fornecidos pela FUNAI, população estimada a partir do Censo populacional de 2010 e do SIASI –
Sistema de Informações sobre Atenção à Saúde Indígena da SESAI – Secretaria Especial de Saúde
Indígena, Ministério da Saúde. Os dados refletem a situação até fevereiro de 2013.
Fonte: CAVALCANTE (2008: 89).
A superpopulação das reservas não afeta apenas a agricultura praticada pelos
Kaiowá e Guarani como também causa a diminuição progressiva das áreas de matas,
afetando consequentemente as áreas de coletas e caças (Cavalcante, 2013). As principais
reclamações que ouvia dos Kaiowá e Guarani, quanto ao número de pessoas na reserva de
Dourados era: a falta de espaço para poder ter uma roça, a preocupação com a falta de
terras para os filhos, o aumento do número de casos de violência em conjunto com a
dificuldade de atuação da liderança nesses contextos. Nesse mesmo sentindo Bruno
Morais, ao escrever sobre a violência e morte entre os Guarani e Kaiowá, apresenta a fala
de uma das suas interlocutoras: “Aqui na reserva, nem defunto tem lugar” (2016:34).
Outro ponto levantado principalmente pelos Kaiowá era em relação a mistura36com
outros povos, pois, desde o início da criação da reserva os Kaiowá foram obrigados a
viverem com os Terena. Algo que só se agravou com o tempo e com o aumento da
população. Para Cavalcante (2013) a situação atual das reservas
[...] permite afirmar que essas áreas são hoje verdadeiros
aglomerados de exclusão, onde os indígenas num movimento de
reterritorialização permanecem precariamente territorializados enquanto
buscam maneiras alternativas para voltar a se territorializar de uma
forma que julguem mais apropriada a seus padrões sociais e culturais
(2013, 94).
36 Esse tema será abordado com mais detalhe nos próximos capítulos.
40
Tabela 2. Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031.
Reserva
Indígena
População
1991 2001 2008 2011 2021 2031
Amambai 2.416 5.106 7.108 7.934 10.694 13.434
Dourados 6.300 9.090 11.036 11.880 14.670 17.460
Caarapó 1.800 3.500 4.682 5.200 6.900 8.600
Limão
Verde
350 840 1.185 1.330 1.675 1.820
Sassoró 2.692 - 2.178 2.300 2.700 3.000
Taquaperi 1.400 2.290 2.912 3.180 3.802 4.070
Pirajui 604 1.394 1.939 2.184 2.729 2.974
Porto
Lindo
1.237 2.877 4.030 4.517 5.670 6.157
Adaptado de (CAECID et alli, 2010, p. 6), com dados do CIMI, FUNASA, ISA, NEPPI e NEPO. A
população de Sassoró apresentou decréscimo entre 1991 e 2008. Isso se deve provavelmente a um
intenso movimento em direção a esta reserva por razões políticas em 1991, população que ali não
permaneceu nos anos seguintes.
Fonte: CAVALCANTE (2013, 92).
Segundo Crespe (2015), a imposição do modelo de vida em reserva não
atende às lógicas organizacionais dos Kaiowá, a imposição de viverem em fronteiras
demarcadas com outras parentelas e povos dos quais não tinham afinidade, somados aos
problemas atuais como a falta de terra e a superpopulação das reservas, é o que acaba
agravando os conflitos interno e cria a condição de possibilidade de demandas pela
demarcação dos territórios indígenas. A esse respeito a autora escreveu:
Os novos problemas que surgem na reserva é o ponto central para se
compreender a não permanência de algumas parentelas nelas, e
consequentemente, o estabelecimento de formas alternativas de
assentamentos. Estas novas modalidades de assentamento são formas de
recusa à reserva e às formas de vida experimentada dentro delas, assim
como, tentativas de recompor formas de sociabilidade possíveis no
passado (2015, 115).
Para Morais, as reservas não são apenas medidas do Estado, mas também,
“um projeto colonial de reorganização do espaço e do sistema social que passa pelo
corpo” (2016:75). E, em outra parte, ainda acrescenta: “Ora, se as reservas são ‘o melhor
produto da política tutelar’, os acampamentos são o melhor produto da resistência
indígena” (2016:149).
É nesse sentindo, que uma das hipóteses consensuais entre autores,
principalmente historiadores e antropólogos que tem se dedicado ao estudo dos
acampamentos Kaiowá e Guarani é a de que, insatisfeitas com a vida na reserva, muitas
famílias passam a retornar as áreas das quais foram expulsos e reivindicar sua
demarcação.
41
1.3 A espiral das retomadas indígenas: vai fazendo a cabeça37
Nos finais dos anos 1970 alguns grupos de índios Guarani e Kaiowá
começaram a retornar aos seus antigos tekoha, ou, como em outras situações, grupos que
conseguiram permanecer vivendo em pequenas áreas do seu território, como no fundo de
matas, passaram a reivindicar a demarcação de suas terras. O antropólogo Levi Marques
Pereira, chamou esses acontecimentos de “movimento étnico-social” no seu artigo
intitulado O movimento étnico-social pela demarcação das terras guarani em MS (2003),
onde relata o processo de recuperação das terras indígenas e o movimento que surgiu em
seu entorno.
No artigo, Pereira destacou o caso de Pirakuá, uma área de fundo de fazenda
onde viviam algumas famílias Kaiowá. Em 1989, o líder da comunidade Lázaro Morel
liderou um amplo movimento que, ao se recusar a deixar suas terras, se mobilizou em
busca de apoio de outras comunidades guarani. Através de visitas, Lázaro foi informando
as outras lideranças sobre o conflito que a comunidade de Pirakuá passou a enfrentar
com o fazendeiro, o qual queria expulsá-los de suas terras. Juntamente com o apoio de
outras lideranças, Lázaro também pediu apoio de setores do Estado e exigiu que a Funai
se posicionasse diante do conflito. Para Pereira, esse movimento foi fundamental para
que outras comunidades passassem a se mobilizar:
Os líderes das comunidades cujas terras ainda não foram reconhecidas e
demarcadas pelo Estado, denominadas por eles como "áreas de
conflito", constataram, a partir da experiência de Pirakuá, que a garantia
de suas terras só virá se forem capazes de mobilizar o apoio de outras
comunidades guarani, de setores do indigenismo e da sociedade civil,
como afirmou Liderança do Tekoha 2, líder da comunidade de
Guyraroká: “se o índio ficar só esperando do governo e não tomar a
frente e lutar pelos seus interesses, nada acontece, o governo só fica
sentado atrás da mesa". (2003, 140)
Rancho Jacaré é outra Terra indígena que foi demarcada no ano de 1983,
após os indígenas retornarem ao seu território de ocupação tradicional em 1978, uma vez
que esses haviam sido deslocados forçosamente para outra área. A retomada de Rancho
Jacaré é, assim, outro evento emblemático no processo de luta pela demarcação de terras,
sendo umas das primeiras áreas demarcadas após 1928. Outras Terras Indígenas
37 Conforme será descrito, a espiral das retomadas, refere-se a uma sucessão de retomadas de antigas áreas
de ocupação indígena. A espiral inicia principalmente nos anos 1980 e desde então as áreas retomadas
estão de alguma forma relacionadas umas com outras através de laços principalmente de parentesco e que
vincula de alguma forma a primeira delas, de 1980, aos acampamentos mais recentes. Esta ideia inspira-se
no livro de Loera (2006), A espiral das ocupações de terra, que descreve a existência desta forma social
para o caso dos sem-terra, no qual um assentamento está sempre vinculado com outro em formação ou em
processo, como é o caso dos acampamentos sem-terra.
42
demarcadas após 1980, sempre depois de terem resistido aos conflitos com fazendeiros
são: Takuaraty-Yvykuarusu, Jaguapiré, Jaguari, Jarara, Guasuti, Sete Cerros.
Durante uma conversa com Luciano Arevolo, antiga liderança da Aldeia
Bororó, por cerca de 18 anos, ele me relatou a história das retomadas, me contando que
elas começaram com a retomada da aldeia Pirakuá, ele mesmo teria participado dessa
retomada e posteriormente outras teriam acontecido: a da aldeia Sete Cerros, nos anos
1990, Sossoró, a Aldeia Jaguapiré e a Aldeia Jarará, na Vila Juti (município Juti), depois
teria sido a Aldeia Jaguari, localizada no município de Amambaí, seguida da Aldeia
Paraguasu (referência a Takuaraty-Yvykuarusu) e depois “já veio o Marcos Verón, da
área de Taquara”.
Luciano citou essas áreas nessa ordem, sem dar muitos detalhes e contou que
participou de algumas dessas retomadas, e que elas aconteciam porque “vai fazendo a
cabeça”. Quando perguntei o que ele queria dizer com isso, ele falou que “vai sabendo
que é tekoha”, os índios durante os Aty Guasu38 recordavam e falavam sobre os antigos
tekoha e se mobilizavam para enviar cartas de reivindicação para a Funai de Brasília.
O tekoha é um termo polissêmico que corresponde, não apenas ao espaço
físico que é reivindicado, mas também às relações sociais (PEREIRA, 2004). Para Pereira
(2004) o tekoha pode também ser compreendido como uma rede político-religiosa entre
fogos39 e parentelas: “o lugar (território) onde uma comunidade Kaiowá vive de acordo
com sua organização social e seu sistema cultural (cultura)” (2004: 116).
Na tese de Tonico Benites (2014) ao descrever o processo de recuperação de
quatro áreas: Jaquapiré, Potrero Guasu, Ypo’i e Kurusu Amba, ele mostra como essas
retomadas só se efetivaram após deliberações nos Aty Guasu. Segundo o antropólogo, os
Aty Guasu são realizados há mais de três décadas e são reflexo das primeiras lutas por
demarcação, quando se discutia com mais ênfase sobre “os tekohas retirados”, bem como
sobre outros problemas que passaram a afligir essa população. Benites ainda, ao contar a
história do Aty Guasu, na visão dos indígenas, pontua, que desde de 1979 o Aty Guasu
atua “para reverter ou contestar a dominação colonial dos territórios tradicionais (...)”
(2014: 191). Para Pimentel, desde os anos 1980, o objetivo central dos Aty Guasu é a
recuperação das terras Guarani e Kaiowá (2012:235).
38 Os Aty Guasu (Grandes Assembleias) são reuniões organizadas pelos Guarani e Kaiowá para discutir
principalmente as retomadas de terras, mas também abordam temas como educação e saúde. 39 Referência ao “fogo doméstico”: conjunto de relações entre parentes próximos que compartilham os
alimentos e a residência (Pereira, 2004).
43
Nesse sentindo os Aty Guasu foram importantes para a “articulação de
líderes das famílias extensas guarani e kaiowá expulsas dos seus tekoha” (2014: 188).
Essas reuniões caracterizadas por serem uma ocasião festiva e de reencontro de parentes,
são ao mesmo tempo um lugar de transmissão de saberes, onde as lideranças mais jovens
tem a oportunidade, por exemplo, de relembrar as trajetórias de lideranças assassinadas,
ou, como colocou Luciano e Benites, de aprenderem sobre antigos tekoha. Do mesmo
modo, que Luciano, Benites também acrescenta que são nos Aty Guasu que se discutem
as formas e as táticas de retomada e onde as lideranças encontram apoio e reforçam suas
decisões.
Loera (2006) que realizou etnografia em acampamentos sem-terra no estado
de São Paulo descreve, para o caso dos movimentos sem-terra, a existência de uma rede
de relações que se estende no tempo e no espaço ligando os acampamentos mais recentes
aos primeiros assentamentos configurando uma forma social que ela chamou “a espiral
das ocupações de terra”. Essa rede entre acampados e assentados que possibilita o
surgimento e a manutenção de novas ocupações, uma vez, que os velhos assentados ou
acampados mobilizam novas ocupações.
No caso das retomadas indígenas, a exemplo das mobilizações de Pirakuá e
Rancho Jacaré, desencadearam outras retomadas40. Na fala de Luciano e nas etnografias
citadas, destaca-se o papel fundamental dos Aty Gasu, como espaços que surgiram quase
que concomitantemente às primeiras retomadas, como espaço de sociabilidade e de
consolidação de redes de relações, onde informações e conhecimentos vão sendo
trocados. Em referências ao movimento de demarcação dos anos 1980, Crespe também
salientou:
A partir do sucesso de reconhecimento das primeiras áreas que passam
a ser reivindicadas no início da década de 1980 outras famílias que
haviam sido expulsas começaram a se organizar para retornar as áreas
das quais foram expulsas. As mobilizações da década de 1980 também
podem ser pensadas à luz da Constituição Federal de 1988 que ampliou
os direitos indígenas no que se refere à demarcação de terras
tradicionais. É dentro deste contexto de abertura política e
fortalecimento dos movimentos sociais que ocorreu a formação do
movimento étnico-social Guarani e Kaiowá (PEREIRA, 2003).
Também é durante a década de 1980 que começaram a surgir os
primeiros acampamentos em beira de estrada, resultado das expulsões
das fazendas e da recusa à vida na reserva (2015, 135).
40 Uma vez, em visita ao acampamento Apyca’i encontrei uma militante do MST, que durante a nossa
conversa me disse que seu pai, também militante, contara a ela que o MST havia se inspirado nas
retomadas indígenas para realizar as ações de ocupação.
44
Dessa maneira, podemos pensar as demarcações das Terras Indígenas nos
anos de 1980 como fruto de um primeiro momento da espiral das retomadas Guarani e
Kaiowá que vão culminar com os acampamentos indígenas nos anos de 1990, criando
condições para a continuidade de outras retomadas e acampamentos, na atualidade, como
forma de reivindicação de terras41. Assim os acampamentos e as retomadas Guarani e
Kaiowá se configuram enquanto linguagem simbólica e como tal, como uma
possibilidade para os indígenas reorganizar e levantar o tekoha, limpando a mistura e
abrindo a possibilidade de voltar a viver como antes dos primeiros sarambi42, como será
visto ao longo do trabalho.
Variações da “forma acampamento”
A antropóloga Lygia Sigaud (2000), ao analisar os processos sociais e
históricos que levaram Pernambuco a se tornar, nos anos 1990, o estado com maior
número de ocupações de terra, observou como o ato de ocupar terra somado a montagem
de acampamento se transformou numa forma apropriada de reivindicar a reforma agrária
ao Estado brasileiro, que por sua vez, legitimou
essa “forma de demanda” ao desapropriar e redistribuir terra as famílias acampadas. É
através desse estudo que a antropóloga propõe “a forma acampamento” ao se atentar aos
aspectos “ritualizados de realizar ocupação” e aos elementos simbólicos presentes nas
ocupações e nos acampamentos. Assim, “a forma acampamento” é uma linguagem
simbólica, uma forma de reivindicar terras ao Estado através de um movimento, das
reuniões para organização das ocupações, da escolha da área a ser ocupada, da
organização do acampamento, da bandeira e da lona preta. Além disso, essa forma se
tornou eficaz para dialogar com o Estado, uma vez que, quando ocorre uma ocupação se
cria um fato social: o conflito por terra, que por sua vez gera processos para uma possível
desapropriação, ou seja: “as ocupações de terras com montagem de acampamentos
constituem uma linguagem simbólica, um modo de fazer afirmações por meio de atos, e
um ato fundador de pretensões à legitimidade”. (2000: 66)
Esta proposta como modelo de análise pode iluminar outros contextos
etnográficos e, neste caso é inspiradora para pensar a especificidade indígena. Loera
(2006) em seu estudo sobre a trajetória de acampamentos e assentamentos no interior de
41 Loera para o caso dos acampamentos sem-terra menciona que, as “ocupações se institucionalizaram
como modalidade apropriada para reivindicar a reforma agrária ao Estado brasileiro” (2006: 61). 42 Fragmentação da parentela causada principalmente após a expulsão dos grupos de seus territórios. Esse
termo será explorado no Capítulo III.
45
São Paulo, mostra como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi
central na produção da “forma acampamento” como uma estratégia legítima e
fundamental para reivindicar desapropriações de terra. Marcelo Rosa (2009), inspirado
em Sigaud e ao analisar uma ocupação urbana em Belford Roxo/RJ, menciona que a
“forma acampamento” era uma linguagem em expansão e que extrapolava os espaços
agrários, concluindo ainda: “que lutas (...) existem socialmente quando reconhecidas, isto
é, quando tornadas linguagem, quando pronunciadas e quando refutadas” (2009a: 110).
Crespe & Corrado (2012, 2013), a respeito dos acampamentos Guarani e
Kaiowá, na região de Dourados, do mesmo modo, escreveram que as retomadas e os
acampamentos fazem parte de uma linguagem social, que se soma as práticas tradicionais
para demandar ao Estado a demarcação de terras. Ao discutir sobre o termo acampamento
em sua pesquisa sobre os Guarani e Kaiowá, Morais menciona a diversidade de formas
que ele abarca, mas, principalmente os acampamentos seriam espaços de resistências, nos
termos do autor: uma modalidade de “territorialização de resistência” (2016:87).
Nesse sentindo, concordo quando Morais escreve: “Assim pensando como
uma perpetuação das relações de troca de objetos, pessoas e afetos, essas redes de
acampamento aparecem como espaços de resistências e contestação da territorialidade
impostas nas reservas” (2016: 146). Os acampamentos indígenas podem, portanto, serem
entendidos como parte das reivindicações políticas dos Guarani e Kaiowá, tal como uma
tentativa de recriar essas relações sociais vividas no tekoha e que o modelo de reserva
implementado pelo SPI inviabilizou. Os acampamentos Kaiowá e Guarani neste sentido
são um espaço de sociabilidade onde se procura reorganizar as relações sociais. (CRESPE
e CORRADO, 2012, 2013), uma oportunidade de retornar a viver de acordo com o teko
katu43, de reconstruir o tekoha.
A ideia de territorialização de resistência conforme tratada analiticamente
pelo Morais pode ser profícua, uma vez que se caracteriza empiricamente o que está
sendo chamado de resistência no contexto das mobilizações por terra entre os Kaiowá por
exemplo, pois não é um termo autoexplicativo. No entanto, discordo do autor quando ele
acredita ser um “deslize” pensar os acampamentos de retomada como uma estratégia de
pressão do movimento indígena ao Estado. O autor, também faz uma crítica à
comparação possível na forma de mobilização de sem-terra e indígenas contrapondo uma
43 Forma bonita e correta de se viver (Pereira, 2004).
46
suposta unidade do movimento sem-terra à multiplicidade dos Kaiowá e Guarani44. Desta
maneira, me parece que pensar os acampamentos Guarani e Kaiowá como uma
linguagem simbólica não exclui a possibilidade deles serem uma forma de resistência,
como coloca Morais, ao mesmo tempo que é uma forma de reivindicação ao Estado.
Benites (2014) argumenta que os Aty Guasu são fundamentais para o
movimento de retomada, ao escrever que a base fundamental da organização política
Kaiowá e Guarani é a articulação de famílias extensas aliadas, e essas alianças são
fortalecidas pelos aty gassu e pelos jeroky guasu, grandes rituais religiosos (2014:39).
Pimentel também argumenta, ao descrever uma teoria Kaiowá da política, que a Aty é “o
terceiro elemento necessário à compreensão de uma teoria Kaiowá da ação coletiva...”
(2012:235)45.
Alarcon (2013), ao analisar o conflito fundiário envolvendo os Tupinambá da
Serra do Padeiro, também chama a atenção para a forma acampamento como um modelo
profícuo para pensar os processos de reivindicação territorial indígena, além de propor “a
forma retomada” como uma linguagem de ação coletiva. Ao trazer exemplos de
retomadas indígenas que aconteceram no final dos anos 1970 e início de 1980, como o
caso dos Kiriri e da retomada da Ilha de São Pedro pelos Xokó, a antropóloga coloca a
retomada de terra como uma forma de ação política da mobilização indígena no Nordeste
brasileiro. No caso descrito por ela, sobre os Tupinambá da Serra do Padeiro, a retomada
é uma “maneira encontrada pelos indígenas para ‘fazer pressão’, em favor do avanço do
processo demarcatório da TI” (2013: 106). Alarcon também reconhece que “fazer
pressão” é apenas um dos elementos acionados na retomada, é o elemento que dialoga
com o Estado.
Para Fábio Mura: “os tekohas reivindicados representam a soma de espaços
sob jurisdição dos integrantes de determinadas famílias extensas, onde serão
estabelecidas relações políticas comunitárias e a partir dos quais esses sujeitos poderão
determinar laços de parentesco inter-comunitários numa região mais ampliada” (2006:
122, 123).
Ainda, em relação ao trabalho de Alarcon (2013) é interessante olhar para a
descrição dos processos da retomada realizadas pelos Tupinambá da Serra do Padeiro. Os
elementos que compõem essa “forma retomada” são: a realização do toré, logo após a
44 Os estudos empíricos realizados em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, citados anteriormente, e a
série de etnografias que debatem a questão da “forma acampamento” demonstram a diversidade do
movimento sem-terra, sendo a ideia de unidade um senso comum. 45 Os outros dois elementos são, respectivamente, o lugar da chefia ameríndia e o xamanismo.
47
retomada; a vigia da área a ser retomada e após essa ação; limpeza do local e realização
de rezas, com intuito de afastar os inimigos; consulta aos encantados (realizadas antes e
durante a retomada) e adoção de processos de segurança, como cuidado com a água,
escolha do horário e das pessoas que vão realizar a retomada. Alarcon ainda enfatiza,
como o respaldo dos encantados e suas orientações são fundamentais para a proteção e a
realização da retomada (2013, 116, 117).
Na descrição de Benites sobre “as táticas do Jaike Jevy (recuperação) dos
territórios tradicionais”, podemos vislumbrar uma “forma retomada” guarani e kaiowá,
que se aproxima dos elementos acionados pelos Tupinambá da Serra do Padeiro. Assim,
ao falar das táticas de recuperação, Benites apresenta a seguinte expressão: “o termo jaha
jaike jevy é para dizer algo parecido com ‘vamos entrar e morar outra vez no tekoha’, e é
marcadamente uma resposta ou reação, organizada através do Aty Guasu, para fazer
frente à expulsão de seus territórios” (2014: 195). Essa organização é marcada por três
elementos principais: a necessidade de envolvimento de lideranças políticas juntamente
com as lideranças espirituais, os ñanderu (rezadores); a participação nos jeroky guasu
(grande ritual religioso), realizados dentro dos Aty Guasu. A esse respeito, Benites
explica que:
A realização dos rituais religiosos durante os Aty Guasu é para buscar a
proteção dos nossos irmãos invisíveis (ñande ryke‘y) do cosmo e dos
guardiões das terras (tekoha jára kuera). Assim, cotidianamente os
integrantes das famílias se sentem protegidos pela presença de seus
parentes invisíveis (divindades) nos locais reocupados em que passam a
viver. Já a proteção dos seres invisíveis dos yvaga (patamares celestes)
evocada através da ação dos líderes espirituais é vista pelas pessoas
como uma técnica de luta ou de guerra para ter êxito nos processos de
enfrentamento com jagunços das fazendas, principalmente no momento
de reocupação dos tekoha (2014: 196)
E por último, quando o grupo já se encontra reunido, deve-se pedir o apoio
(ñomoiru ha pytyvõ) a outras lideranças do Aty Guasu:
O significado de ñomoiru ha pytyvõ é muito importante para se
compreender a articulação dessas diversas lideranças. Ñomoiru significa
“se articular”, “se juntar em grupo”, “se proteger”, “ser companheiro
(a)”. A expressão Pytyvõ quer dizer “prestar apoio”, “cooperar”, “dar
força”, “encorajar”, “solidarizar”, “escoltar”, etc. Nesse sentido,
Ñomoiru ha Pytyvõ pode ser definido como uma série de táticas que são
postas em prática no momento de reocupação dos tekoha. O Ñomoiru
ha Pytyvõ foi sendo cada vez mais refletido e melhorado ao longo de
vários anos no seio do Aty Guasu (idem).
Observa-se que a “forma retomada” entre os Guarani e Kaiowá passa
impreterivelmente pelo Aty Guasu. Além disso, outros elementos são acionados: “a
48
equipe de frente das retomadas”, formada principalmente pelos casais de lideranças
políticas e lideranças religiosas, nos cinco dias que antecedem a retomada, tem que
participar, obrigatoriamente do jeroky, durante três noites, no mínimo. O rezador é quem
autoriza a partida para a retomada. Elementos como pintura corporal e o porte de arcos e
flechas também são acionados na descrição de Benites, que ainda acrescenta:
As pessoas se deslocam a pé em direção à terra antiga indicada,
localizada a distância variável do local de partida, em geral, a partida é
de uma reserva indígena ou de um acampamento. No momento da
partida cada integrante do grupo deve levar consigo seus pertences
pessoais assim como alguns alimentos, um pedaço de lona para armar
barraca e utensílios e os instrumentos rituais para proteção. Feita a
reocupação da terra, os integrantes do grupo procuram caçar e pescar no
interior do tekoha reocupado (que já bastante conhecido por eles),
buscando alimentação.
Em todas as terras reocupadas é imediatamente construído um altar
sagrado (yvyra‘i Marangatu) pelos rezadores (Guarani ou Kaiowá),
onde são realizados com frequência rituais religiosos (Jeroky) e
assembleias (Aty), sendo também um espaço de recepção de visitantes -
indígenas e não indígenas (autoridades e apoiadores). (2014: 198)
É difícil afirmar que todas as retomadas Guarani e Kaiowá acontecem da
mesma maneira, pois há uma diferença significativa, mas, essa é a forma legitimada tanto
pelo Aty Guasu e até recentemente pelo Estado46. Para meus interlocutores, o insucesso
de uma retomada, seguida por uma reintegração de posse ou com a morte de algum
integrante são diretamente relacionados ao descumprimento dessa forma - principalmente
a não participação nos rituais religiosos (jeroky) ou a falta de apoio dos conselheiros do
Aty Guasu. Em campo, também percebi, que os Guarani e Kaiowá, quando não apoiam
alguma retomada, justificam esse posicionamento, mencionado que ela não foi realizada
da maneira correta e que por isso também teria grande chances de não se efetivar.
***
Atualmente, no sul do MS, presume-se que exista uma média de 50
acampamentos indígenas47 (conforme tabela abaixo). Assim, em Dourados, foram
contabilizados doze acampamentos indígenas: Boqueirão, Apyka’i (também conhecido
como Curral de Arame), Ithaum, Ñu Porã (também conhecido como Mudas MS), Ñu
Verá, Pacurity, Passo Piraju, Aldeinha, Chácara Califórnia, Ita Poty, Yvu Verá e o
46 Da mesma maneira, para o caso das ocupações sem-terra, como já demonstrou alguns autores (ver
Macedo, 2005; Loera, 2015) apesar de existirem formas padronizadas dos movimentos para realizarem
ocupações e acampamentos, há também diferenças significativas entre elas. O fracasso ou sucesso de uma
ocupação entre os sem-terra, pode também ser avaliada a partir do respeito ao cronograma estabelecido e
conforme demonstra Loera (2016) a ter mantido ou não o segredo sobre a mobilização. 47 Esse número é aproximativo, pois, novos acampamentos podem ser criados, enquanto outros são
desfeitos. Também há uma questão sobre a classificação das áreas, que como será visto adiante, interfere na
contabilização.
49
acampamento conhecido pelo nome de Dona Edite. Esses três últimos acampamentos,
foram retomadas que aconteceram no mês de março de 2016.
Tabela 3. Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive
áreas em estudo48
Município Acampamento População
estimada
Etnia Localização e Classificação
Aral
Moreira
(1)
Guaiviry 320 Kaiowá
e
Guarani
Área retomada em 2011. Ocupam partes
de uma fazenda que reivindicam.
Acampamento de retomada
Antônio
João
(1)
Nhanderu
Marangatu
160
(famílias)
Kaiowá
e
Guarani
Área homologa em 2005 com 9.300
hectares, mas, foi posteriormente
anulada pelo STF. Acampamento de
retomada.
Amambai
(2)
Ka’ajary 268 Kaiowá
e
Guarani
Perto da reserva Limão Verde
Samakuã 52 Kaiowá
e
Guarani
Perto da reserva Limão Verde
Bataguassu
(1)
Bataguassu (São
José)
09 Kaiowá Acampamento de beira de estrada. Sem
reivindicação de terra tradicional.
Caarapó
(5)
Nova América 11 Kaiowá
e
Guarani
Localizado na periferia do distrito de
Nova América. Acampamento em
contexto urbano.
Guyra Roka 22
(famílias)
Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de retomada.
Pindo Roky 33
(famílias)
Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de retomada.
Itaguá - Kaiowá
e
Guarani
Grupo que se desmembrou de Pindo
Roky. Acampamento de retomada
Tey Jusu 06
(famílias)
Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de retomada
Coronel
Sapucaia
(1)
Kurusu Amba 245 Guarani
e
Kaiowá
O acampamento dentro da fazenda
reivindicada. Acampamento de
retomada.
Douradina
(2)
Itay Ka’aguy
Rusu
190 Kaiowá Área contígua à aldeia Lagoa Rica,
dentro de área já delimitada.
Acampamento de retomada.
Guyra Kambiy 85 Kaiowá Área contígua à aldeia Lagoa Rica,
dentro de área já delimitada.
Acampamento de retomada.
Dourados
(12)
Passo Piraju 120 Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de retomada. Área
parcialmente ocupada, resultado de um
acordo judicial, os índios estão
48 Essa tabela foi feita com dados em Cavalcante (2013), em Chamorro (2015) e no levantamento de
documentos na regional da Funai de Dourados e de Ponta Porã, bem como dados fornecidos pela SESAI e
colhidos na pesquisa etnográfica. Os dados correspondem até o período de abril de 2016.
50
ocupando cerca de 40 hectares da área
em estudo.
Aldeinha
Picadinha
19 Guarani
e Terena
A comunidade ocupa 1ha, faz 40 anos,
próximo à área reivindicada.
Acampamento na margem da rodovia.
Ñu Porã (Mudas
MS)
97 Kaiowá
e
Guarani
Há 5 Km do centro de Dourados. Ocupa
área reivindicada. Acampamento de
retomada.
Apyka’i (Curral
de Arame)
7 Kaiowá
e
Guarani
Localizada na margem da rodovia que
liga Dourados a Ponta Porã. O grupo já
dentou ocupar várias vezes a área
reivindicada. Acampamento de beira de
estrada.
Ñu Verá 101 Kaiowá
e
Guarani
Área de 23 há contígua à aldeia Bororó.
Acampamento de retomada.
Itahum –
Jaguary
100 Kaiowá
e
Guarani
Vivem na periferia do distrito de
Itahum, município de Dourados.
Pakurity 62 Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de beira de estrada.
Acampamento de retomada.
Chácara
Califórnia
19 Terena Localizada na periferia de Dourados.
Pedido de usucapião por parte dos
indígenas.
Boqueirão 34 Kaiowá
e
Guarani
Comunidade ocupa área de 5 há,
contígua à aldeia Bororó. Acampamento
de retomada.
Ita Poty - Kaiowá
e
Guarani
Próximo a aldeia Bororó. Acampamento
de retomada.
Yvu Verá - Kaiowá
e
Guarani
Próxima a aldeia Bororó. Acampamento
de retomada.
Dona Edite - Kaiowá
e
Guarani
Próximo a saída para o município de
Itaporã. Acampamento de retomada
Guia Lopes
da Laguna
(1)
Cerro’i (Ita
Vera’i)
41 Kaiowá
e
Guarani
Até 2007, à margem da rodovia BR
267, a 75 Km de Maracaju, na direção
de Jardim. Depois, sobre 17 há cedidas
por um fazendeiro.
Iguatemi
(2)
Pyelito Kue 170 Guarani
e
Kaiowá
Localizado no perímetro da Terra
Indígena Iguatemipegua I. A área foi
retomada em 2011.
Mbaraka’i 120 Guarani
e
Kaiowá
À beira do Rio Iguatemi. Com
dificuldade de permanecer no varjão da
área reivindicada e sem liderança
efetiva, parte da comunidade de
Mbaraka’i circula por Sassoró,
Jaguapiré e Yvy Katu, e parte está
misturada com a comunidade de Pyelito
Kué. Acampamento de retomada.
51
Japorã
(2)
Agrolac/São
Jorge (Yvy Katu
1); Fazenda
Brasil (Yvy
Katu 2); Paloma
(Yvy Katu 3)
211 Guarani Ocupam uma pequena parcela da área
reivindicada.
Remanso Guasu 211 Guarani Ocupam uma pequena parcela da área
reivindicada.
Jardim
(3)
Laranjal
Takuaju
45 Kaiowá
e
Guarani
Dista 11 Km do município de Jardim na
margem da rodovia. Acampamento de
beira de estrada.
Bouqueirão 54 Kaiowá
e
Guarani
Acampamento sobre uma área de terra
cedida pela fazenda que fica a 30 km de
Jardim e é fruto de um acordo.
Acampamento de beira de estrada.
Água Clara 07
(famílias)
Kaiowá
e
Guarani
Acampamento de beira de estrada.
Juti
(3)
Aldeinha IBC 30 Kaiowá
e
Guarani
Trata-se de uma área cedida de 3
alqueires, que a comunidade ocupa
desde o início da década de 1980. A
área fazia parte da Fazenda ICB,
vendida em 2009. A comunidade
reivindica a terra. Acampamento de
fundo de fazenda.
Juti 205 Kaiowá
e
Guarani
Não estão aglomerados em um único
ponto da cidade. Vivem de maneira
esparsa na periferia da cidade.
Acampamento urbano.
Taquara49 ___ Guarani
e
Kaiowá
Ocupam uma parcela da área
reivindicada.
Laguna
Carapã
(1)
Urukuty 109 Kaiowá
e
Guarani
A comunidade reside transitoriamente
na Terra Indígena Guaimbé.
Reivindicam terra.
Naviraí
(5)
Tarumã 55 Kaiowá
e
Guarani
Reivindicam a área de Santiago Kue.
Acampamento de beira de estrada.
Juncal 27 Kaiowá Aproximadamente 50 km de Naviraí.
Reivindicam a área de Santiago Kue.
Acampamento de beira de estrada.
Mborevi Arroio 111 Kaiowá
e
Guarani
Parte da comunidade reside na cidade
de Naviraí, outra parte foi para o
acampamento Tarumã e outra continua
no local. Reivindicam terra.
Acampamento em contexto urbano.
Aquino 15 Kaiowá
e
Guarani
Periferia de Naviraí. Acampamento em
contexto urbano.
49 A área de Taquara não aparece na lista da FUNAI classificada como acampamento, mas sim como aldeia,
no entanto por se tratar de uma área que enfrenta problema judicial e por estar reivindicando a
regularização e demarcação do seu território que a incluo nessa tabela.
52
Teju’i 14 Kaiowá
e
Guarani
A comunidade acampa há 10 anos nas
proximidades de Naviraí.
Acampamento de beira de estrada.
Paranhos
(2)
Arroio Kora 250 Kaiowá
e
Guarani
O acampamento está na área contígua
às 700ha ocupadas pela comunidade,
cuja a população total chega a 650
pessoas. O acampamento é uma
pequena fração das 7.175ha já
homologadas e suspensas.
Acampamento de retomada.
Ypo’i 180 Guarani Ocupam 10% da reserva legal da
fazenda reivindicada. Acampamento de
retomada.
Ponta Porã
(1)
Kokue’i 120 Kaiowá
e
Guarani
O grupo ocupa há 10 anos uma área
abandonada, ainda não identificada.
Acampamento de retomada.
Rio
Brilhante
(3)
Aldeinha Sete
Placas
(Acampamento
Wilson
25 Kaiowá Rodovia Rio Brilhante-Maracaju
Acampamento de beira de estrada.
Alegam terem sido expulsos de
fazendas da região, mas continuam
trabalhando como diaristas nestas
mesmas áreas. Não reivindicam terra.
Aroeira 80 Kaiowá Localizado na periferia do Distrito
Prudêncio Thomaz. Acampamento em
contexto urbano.
Laranjeira
Nhanderu
166 Kaiowá Acampamento de retomada.
Vicentina
(1)
Vila Rica 51 Guarani
e
Kaiowá
18 Km do centro de Douradinha. O
grupo reside no distrito de Vila Rica.
Não reivindicam terra. Acampamento
em contexto urbano.
Novo
Horizonte
do Sul
(1)
Novo Horizonte
do Sul
40 Guarani
e
Kaiowá
Estrada para São Paulo, perto de
Ivinhema. Reivindicam terra.
Acampamento de fundo de fazenda
Além dos dados como número de acampamentos, número de famílias e
localização, na quinta coluna há uma classificação dos tipos de acampamentos. Nela
observa-se que nem todos os acampamentos são de retomadas ou em beira de estrada.
Existem acampamentos em contexto urbano e nas periferias das reservas e até mesmo
dentro delas. Outro ponto importante a ser ressaltado, é que nem todos os acampamentos
indígenas estão reivindicando a demarcação de terra tradicional, como o caso do
acampamento Bataguassu e Aldeinha Sete Placas. O acampamento Chácara Califórnia,
em Dourados, apresenta outra situação, pois os indígenas, na sua maioria Terena, estão
com pedido de usucapião da área em que ocupam. Essa diversidade de situações de
acampamento foi chamada por Crespe (2015) de “outras modalidades de assentamentos”,
53
possíveis como formas alternativas a vida nas aldeias, destacando as fazendas, as áreas de
retomadas, os centros urbanos e as periferias das reservas.
Dessa maneira, o termo acampamento é um debate, não um consenso; é uma
categoria analítica que me permite pensar o processo e a forma de reivindicação dos
Guarani e Kaiowá no MS.
As fases do acampamento
Existe uma disputa classificatória em relação aos acampamentos e seus
sentidos, seja pelos indígenas ou por representantes do Estado. A esse respeito, a
conversa que tive com o coordenador da regional da Funai de Dourados e com o
funcionário responsável pelo pedido de cestas básicas é ilustrativa. Quando perguntado a
eles se sabiam quando se passou a chamar as áreas de ocupação indígena de
acampamento, foi me dito que não havia um marco, era apenas uma das maneiras que
passaram a chamar as ocupações indígenas. Então perguntei que termo utilizavam para
falar dessas áreas. A resposta foi que não havia um termo específico e, que na verdade
dependeria com quem estivessem falando. Por exemplo, se precisassem entrar em contato
com a Companhia de Energia Elétrica para fazer algum pedido a uma área de retomada,
prefeririam dizer o nome da comunidade, ao invés de tekoha - que é o termo que os
indígenas preferem - pois para ele o primeiro termo comunicaria mais. No entanto, se ele
fosse escrever para a Funai de Brasília, não haveria nenhum problema em utilizar o termo
Tekoha. Contudo, o funcionário informou, que no setor dele, por se tratar de pedidos de
cestas básicas, eles só utilizam a palavra acampamento, pois esse termo passa a ideia de
vulnerabilidade que os grupos vivem nesse contexto. É válido pontuar que as políticas
sociais do Estado priorizam os grupos considerados em situação de vulnerabilidade50.
Assim, no contexto apresentado pelo funcionário, a categoria acampamento é aquela que
comunica e dialoga com as políticas do Estado, ou seja, nessa situação, acampamento se
configura como uma categoria de intermediação com o Estado.
Em campo, uma funcionária da FUNAI de Ponta Porã quando interroguei
sobre qual era o critério de classificação das áreas de retomada indígenas ela mencionou:
se a ocupação ainda era recente e/ou área fosse muito precária, como falta de saneamento,
de água, de luz elétrica, dificuldade de acesso à escola e a saúde, essa área era
50 Segundo consta no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública são considerados grupos vulneráveis
aquelas “populações historicamente subalternizadas e invisibilizadas em suas demandas sociais”. Integram
essa categoria: LGBT, deficientes, situação de rua, indígenas, estrangeiros, crianças e adolescentes pessoas
idosas, população negra, entre outros.
Disponível em: http://justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/diversidades/grupos-vulneraveis
54
categorizada como acampamento, no entanto, se na área de ocupação já tivesse alguma
estrutura, como poço artesiano, para captar água, e escola, por exemplo, essas áreas não
seriam chamadas de acampamentos, mesmo se a situação da terra ainda não estivesse
regularizada. A esse respeito, o antropólogo do MPF, me explicava que havia “fases dos
acampamentos”, esses poderiam ser mais precários ou “mais consolidados”. Os mais
consolidados, com postos de saúde e escola, dificilmente continuavam sendo
classificados, por essas instituições, como acampamento51.
Além disso, existem diferentes situações fundiárias em que se encontra o
território Guarani e Kaiowá, podem ser acampamentos: a) com ou sem reivindicação de
terras; b) áreas que estão em estudo; c) áreas em que os indígenas têm permissão judicial
para permanecer no local; d) áreas que foram declaradas e homologadas e, como vimos,
não há um consenso uno na Funai para classificar essas locais, o que dificulta um
levantamento mais preciso da quantidade de acampamentos. Morais, ao se referir aos
“imbróglios nas classificações” menciona que a área Guyraroka, que é uma área
declarada, conta na FUNAI como acampamento, por outro lado, Taquara que enfrenta há
anos problemas jurídicos é classificada como aldeia (2016: 137). Eu mesma, no momento
da construção da tabela, apresentada acima, tive dificuldade de classificar o que era
acampamento, pois as classificações são disputadas entre pesquisadores, funcionários do
MPF e Funai, tanto que, a área de Guyraroka está contemplada na tabela - lembrando que
estou chamando de acampamentos indígenas as áreas de retomadas ou de fundo de
fazenda, bem como as ocupações de beira de estrada que tem como finalidade a
reivindicação da terra tradicional, o que acredito que tenha consonância com a afirmação
de Morais de que, nem todo acampamento é uma retomada. “mas, seguramente toda
‘retomada é, ou foi, um acampamento” (2016: 100).
Em relação aos meus interlocutores indígenas eles preferem que use a palavra
tekoha ao invés de acampamento, também sendo muito frequente a utilização do termo
retomada, ou área de retomada, por eles. A liderança do Tekoha 1, por exemplo, me disse
que era para chamar o Tekoha 1 de aldeia ou tekoha. Para ele, o termo acampamento
51 As benfeitorias nas áreas de retomadas são conseguidas através de Termos de Ajustamento de Conduta
(TAC). Segundo consta no site do MPF, os “TACs, são documentos assinados por partes que se
comprometem, perante os procuradores da República, a cumprirem determinadas condicionantes, de forma
a resolver o problema que estão causando ou a compensar danos e prejuízos já causados”. Alarcon (2013),
para o caso dos Tupinambá da Serra do Padeiro, descreve o convênio com órgãos do estado para a
construção de casas de farinhas, como um elemento legitimador das retomadas. Acredito que os TACs
tenham esse mesmo efeito, e talvez por isso, as áreas que passaram por esses acordos deixam de ser
consideradas acampamentos, tanto pelo MPF, como pela FUNAI, uma vez, que de certo modo, o Estado
passa a reconhecer os direitos como água e educação nas áreas de retomada.
55
passa uma ideia de que o fazendeiro pode tomar as terras de volta, “porque só é um
acampamento”, além de que, para a liderança esse termo transmite uma ideia de
impermanência, porém, existem retomadas com mais de dez anos, como a do Tekoha 1,
então “já é aldeia, e o fazendeiro não tem mais como tomar”. O tempo neste sentido se
torna também um elemento a mais considerado na disputa classificatória.
Como se observa, acampamento ou tekoha são categorias relacionais, pois
depende do contexto de enunciação e de quem é o interlocutor. Ou seja, para
entendermos os termos, é preciso localizá-los em situação (MALINOWSKI, [1935] 1965:
22). Colocar os termos em contexto era o que os funcionários da Funai de Ponta Porã e
Dourados faziam quando me explicavam como e quando eles usavam a categoria
acampamento.
Como os próprios Kaiowá e Guarani preferem que chamem os acampamentos
indígenas de área de retomada e principalmente de tekoha, ou seja, são esses os termos
que tem significado e particularidades para eles, utilizo-os, também, ao me referir aos
espaços de ocupação indígena em que o grupo reivindica a demarcação da terra
tradicional, principalmente quando estou descrevendo essas áreas, sem contudo, deixar de
acionar a categoria acampamento indígena, visto sua importância, como uma linguagem
simbólica de demanda, que tem significados e sentidos próprios.
***
A breve reconstituição histórica apresentada aqui, teve como finalidade situar
a conjuntura mais ampla, na qual estão inseridos os acampamentos indígenas no sul do
MS, bem como apresentar a espiral das retomadas Guarani e Kaiowá, que ilumina as
reflexões sobre a “forma retomada” e os atuais acampamentos como elementos
constituintes de uma linguagem simbólica acionadas na busca dos Guarani e Kaiowá,
para recuperarem seus territórios de ocupação tradicional, e como uma forma de
reorganizar e levantar o tekoha.
56
Capítulo II
“A gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para sair”
Nesse capítulo descrevo a trajetória das duas áreas de retomadas que são o
lócus empírico da pesquisa, ambos localizados no município de Dourados/MS. O foco
aqui é a organização social e a mobilidade nesses dois acampamentos, passando pelas
lutas e conflitos cotidianos e pelo espaço no interior dos acampamentos como parte
também daquilo que movimenta e produz vínculos e relações entre seus moradores, com
a reserva, com outras áreas de retomada e com a cidade.
2.1 Tekoha 1 – O acampamento que sempre foi tekoha
O Tekoha 1 está localizado nas proximidades da Rodovia, dentro de uma área
arrendada. Diferentemente de outras áreas de retomada o Tekoha 1 permite refletir, não
apenas sobre a fluidez e mobilidade desses espaços, mas também, acerca da permanência
como parte deste processo, pois esse tekoha está fixado nessa área há mais ou menos 40
anos.
A liderança e a vice-liderança do Tekoha 1 são irmãos (no croqui 3, pode se
ver a localização dos barracos onde eles moram, estão representados pelos números 1 e
12, respectivamente). Os agregados a esse tekoha, estão vinculados principalmente por
laços de parentesco com a vice-liderança e a sua esposa52. A história de espoliação desse
território é narrada pela liderança. Na sua fala, sua família retornou para o Tekoha 1 no
final dos anos 1970, início dos anos 1980, após terem passado por diferentes reservas da
região. Segundo ele desde 1910 lá morava sua família, seus pais e avôs e já era
considerado tekoha. Mas, por volta dos anos 1930, a área foi comprada por um fazendeiro
que os expulsou de seu território.
Após a expulsão, a família das lideranças foi morar na Reserva de Amambaí
(1915) - aproximadamente 130 km de Dourados - depois passam por Rancho Jacaré53 e
eles estavam na Reserva de Caarapó quando seu pai decidiu retornar com a família, cerca
de 18 pessoas, para o seu antigo tekoha. Nessa época a liderança tinha 14 anos, como me
contou. Também me explicou que seu pai veio quietinho, não disse que ali era terra de
índio e pediu emprego em troca de morar no local. Essa teria sido a estratégia de seu pai,
52 Segundo Crespe (2009, 2015), as áreas de retomadas liderados por um casal conseguem agregar mais a
parentela. 53 Essa é uma das mobilizações, mencionadas no capítulo anterior, que faz parte da espiral das retomadas
na região.
57
para voltar a morar no seu tekoha, e ao mesmo tempo evitar o confronto direto com o
proprietário, pelo menos num primeiro momento.
Na narrativa do meu interlocutor, a figura do seu pai foi muito importante
para ele se constituir enquanto liderança. Ele disse que “roubou a sabedoria54” do seu pai
“para saber viver no meio do seu povo”. Sobre a sua luta pelo tekoha, a liderança
também aponta o papel central que o pai teve, pois, é o pai quem lhe ensinou muita coisa,
o pai “deu uma história” e ele “marcou tudo no papel”. Essa é a história do Tekoha 1 e
como seu pai, a liderança também fez o seu filho continuar marcando a história deles.
Marcar tudo no papel, mais do que uma forma de não esquecer sua história, é um modo
de contar a história para os brancos, já que são eles quem produzem e regulam os termos
para a demarcação de suas terras. Nesse sentindo, a escola também foi fundamental para
a liderança poder organizar o conhecimento que adquiriu do seu pai55. Davi Kopenawa
(2016), a esse respeito, fala que o branco só aprende olhando para as peles de imagem,
por esse motivo entregou suas palavras a Bruce Albert para que os brancos pudessem
conhecer a história do povo da floresta.
Conhecer a história é um elemento ressaltado pela liderança do Tekoha 1 e
por outros interlocutores como indispensável a retomada. No contexto das ocupações
Guarani Ñandeva no sul de São Paulo, Ribeiro (2016) também menciona como o resgate
da história foi central para o grupo, oriundo da Reserva de Araribá (município de
Avaí/SP), realizar a ocupação de suas terras tradicionais. A autora conta que a retomada
aconteceu após Claudemir Marcolino (antiga liderança), sustentado pelos relatos de Curt
Nimuendajú em seu livro As Lendas da Criação e Destruição do Mundo (1987) ter feito
um levantamento documental em cartórios e paróquias que confirmaram a existência de
um antigo aldeamento indígena, localizado na região conhecida como “Mata dos Índios”
54 A liderança sempre utilizava a expressão roubar, para se referir a algo que aprendeu: como a viver no
meio do seu povo, aprender a luta pelo tekoha, bem como aprender o português. Acredito que é preciso
fazer um investimento etnográfico maior a expressão, que podem integrar pesquisas futuras. Roubar me
parece que se refere a “tomar” para si algo que era dele, um conhecimento, que é uma palavra, o que só é
possível “ouvindo”. Acredito que não seja possível “roubar” a palavra porque a palavra/conhecimento não
pode ser “roubada”, pois ela existe por si, é a própria existência/vida que é transmitida. O termo roubar
aqui é um empréstimo que muito provavelmente nada tem a ver com os sentidos que atribuímos a palavra. 55 A liderança sempre costuma ressaltar a importância de marcar tudo no papel. Uma vez em campo quando
perguntei se podia gravar nossa conversa ele disse que preferia que eu anotasse no papel. Comecei a
perceber também que ele ficava satisfeito quando eu anotava o que me contava no meu caderno, com o
passar do tempo ele mesmo me dizia: “anota isso também no seu caderno”. Em vista disso, o significado
que tem o papel nesse contexto, se tornou um dos temas que merecerá um investimento etnográfico na
pesquisa de doutorado. Os documentos do MPF podem ser uma entrada de reflexão, pois neles encontro
cartas da liderança e da comunidade. Vale ressaltar, que os Guarani e Kaiowá reconhecem a importância do
papel, pois é através dele que os não indígenas e o Estado ditam as regras, por isso, é muito comum, no
processo de reivindicação, que as lideranças enviem cartas tanto para a Funai como para o MPF, para fazer
pedidos, denúncias ou mesmo informar mudanças de liderança.
58
no município de Itaporanga (SP). A história passa operar então, como uma categoria que
faz parte da linguagem de demanda, nesse sentido a história também é um elemento
mobilizado para reivindicar o pertencimento a terra.
No caso da liderança do Tekoha 1, “além do conhecimento da história, ele
precisou assimilar outros recursos e saberes necessários para a mobilização de um grupo,
assim como, para formalizar a demanda de regularização fundiária da área via FUNAI”
(CRESPE, 2015: 217). A esse respeito, a passagem dos irmãos por Rancho Jacaré é
central para entender onde eles aprenderam como é que luta56. Em Rancho Jacaré, os
irmãos, junto com seu pai tiveram a oportunidade de acompanhar as lideranças na
retomada e na luta política pelo tekoha. “Então ele me contou, ele me deu uma escola,
como é que luta. Eu não sei naquele tempo como é que luta, eu aprendi”
(CORRADO,2013: 144). Sobre as lideranças com quem aprendeu o processo de luta a
liderança do Tekoha 1 citou Gabriel Cavalheiro57, Agostinho Almeida e Lídio Moraes,
todos, na época, de Rancho Jacaré. Nesse período ele contou que tinha por volta de 12,
13 anos de idade e que também aprendeu ouvindo as conversas de seu pai com essas
lideranças nas rodas de tereré58 e complementa: “eu vi a luta dele e guardei isso”.
Ouvir as pessoas mais velhas, como pais e avós, é uma das formas de se
adquirir conhecimento para os Guarani e Kaiowá. Era comum a liderança do Tekoha 1
me falar sobre a importância de se dar e ouvir um bom conselho. Em campo também
observei como as crianças e os jovens ficavam próximas aos locais onde conversava com
as lideranças, elas não interrompiam a conversa, porém percebia que sempre prestavam
muita atenção. Adriana Testa, ao falar sobre criação e cuidado entre os Mbya, descreve a
fase pela qual os jovens devem aprender a falar com moderação e a sempre escutar,
chamada de omboguapy vy oendu aguã, cuja a tradução possível seria, ser conduzido para
sentar ouvir (2014: 90). Na própria descrição do meu interlocutor, ele diz que aprendeu
“como é que luta” e como ser uma boa liderança principalmente ouvindo e
acompanhando seu pai e outras lideranças. Ao analisar os relatos de seus interlocutores
Testa também observou “a importância de sentar (- guapy) e se concentrar/ escutar
atentamente (- japyxaka) para ouvir (- endu), pegar (- jopy) e guardar/cuidar (- ereko) das
palavras que são passadas pelas pessoas mais velhas” (2014: 152). Essa passagem é
elucidativa sobre esse modo de aprender e desse “pegar saberes”, que parece ter
56 Rancho Jacaré é uma das reservas demarcadas no MS nos anos de 1980, após intensas mobilizações
políticas de luta pela terra. É justamente nesse período que a família das lideranças viveu lá. 57 Gabriel Cavalheiro também foi casado com Damiana Cavanha, liderança do Apyka’i. 58 Bebida gelada feita com erva-mate.
59
ressonância com a expressão roubar, utilizada pela liderança para se referir a algo que se
aprendeu.
Ainda sobre a retomada do Tekoha 1, os irmãos a descrevem por fases, pois,
“não entramos pelo atropelo” foi “estudando como a gente pode retomar essa área”.
Assim, a vice-liderança me descreveu quais são os primeiros passos para se fazer uma
retomada: “primeiro tem que saber fundamento”, o que seu irmão completou dizendo “a
história”, e depois é preciso “saber batalhar”. Esse batalhar se refere a retomar a área,
mas não de qualquer maneira, há todo um procedimento. Aqui, para meus interlocutores
toma um sentido de um evento produzido na minúcia, pensado, planejado, no trabalho de
estabelecer alianças, de chamar a parentela, de aprender a história da ocupação
tradicional daquela área, que implica roubar sabedoria e pedir ajuda. Em outras palavras,
como mencionava a liderança, é “cavucando por baixo”. Através das falas é
significativo perceber que elas não expressam apenas os passos de uma retomada, na
visão dos meus interlocutores, mas também imprimem as trajetórias e as vivencias dessas
lideranças. Por isso, ao me narrarem os passos da retomada, eles me relatavam a
possibilidade de “levantar o tekoha” (opuã) que se efetiva com a volta ao lugar de origem
e a liderança complementou: “a gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para
sair”. Sair do tekoha, para meu interlocutor, não está no horizonte de possibilidades. Ele
prefere “sofrer aqui mesmo”, porque no Tekoha 1 estão entre parentes e é lá que está o
cemitério onde foram enterrados membros de sua família.
Ainda sobre as fases de fazer uma retomada, me foi dito, que é muito
importante, após a entrada do grupo, batizar a terra. Sobre o batismo do Tekoha 1, a
liderança contou que foi seu pai quem o fez, porque, ele também era rezador: ele lavou o
Xirú e com essa água, ele a derramou nos quatro cantos da terra, “aí a área já está
batizada, confirmada”.59
Mauss definiu inicialmente no texto A Prece [1909] como “um rito é pois,
uma ação tradicional eficaz” (2013, 266). Na fala da liderança, ele me chamou atenção
justamente, para a eficácia do batismo, pois é ele que leva o medo para o coração do
fazendeiro, é ele que garante e confirma o retorno, e principalmente, a permanência no
tekoha, uma vez que, “os atos rituais [...] são por essência, capazes de produzir algo mais
59 Aponto para a relevância de se fazer um investimento analítico, em pesquisas futuras, sobre essa
‘linguagem de luta’ que meus interlocutores me apresentavam ao narrar suas histórias: guardar a luta, a
história, batalhar, cavucar, batizar, confirmar, saber o fundamento, remetem a uma série de práticas e
sentidos relacionados a esse contexto de demanda pelo tekoha.
60
do que convenções; são eminentemente eficazes; são criadores; eles fazem” (Mauss,
2003: 56.). Sobre isso Pereira escreve:
Levantar uma comunidade tem como implicação o balizamento do
espaço físico no qual as relações sociais serão novamente erguidas, o
ato implica em tornar essa porção de terra bendita. As rezas purificam e
sacralizam as pessoas e o local onde vivem. É por esse motivo que os
xamãs kaiowá sempre batizam as terras que as comunidades vêm
reocupando em Mato Grosso do Sul, elas são inclusive nominadas a
partir do vocabulário religioso. Todo gesto de fundação ou refundação
de uma comunidade reproduz o ato original do criador, realizado pela
primeira vez em Yvy Pyte (2004, 360).
Além do batismo da terra é importante levar rezadores para a retomada. O
trabalho dos rezadores nessas áreas é considerado fundamental, porque, segundo os
Kaiowá e Guarani, os protegem dos conflitos violentos, além de assegurar a permanência
na área, através de suas rezas60. Além disso, como destacou Pereira:
O retorno da comunidade ao seu antigo território ressalta a importância
crucial da retomada das rezas e da recomposição do modo correto de se
viver – teko katu. Em conjunto, teriam o poder de fazer a mata crescer
novamente, trazer de volta os animais acompanhados de seus donos e
tornar as pessoas novamente fortes, saudáveis, calmas e felizes. Mais
que definir a condição humana ideal, a atualização das rezas possibilita
superar os condicionamentos históricos atuais. Retomando a prática das
rezas, os homens reatam o contato direto com as divindades e podem
conseguir que elas atuem em seu favor (idem).
Em A Prece, Mauss nos dá elementos para pensar a palavra como um ato
simbólico e que como tal imprime uma ação e tem efeito. Há por tanto um ponto de
convergência entre o ritual e a crença e “a oração sendo uma palavra, acha-se por isso
mesmo, mais próximo do pensamento” (2013, 233-234). Conforme Mauss:
A oração é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem
meta e um efeito; no fundo, é sempre um instrumento de ação. Mas age
exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem externamente
e substantivam. Falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar: eis por que a
prece depende, ao mesmo tempo, da crença e do culto (2013: 230).
A antiga liderança do Tekoha 1 era o pai das atuais lideranças. É apenas após
a sua morte que os irmãos passaram a dividir a liderança. A liderança tem papel
fundamental para a organização da retomada, pois é ela a responsável por articular o
grupo da sua parentela, bem como conseguir aliados políticos. Além disso, como
mencionado, outros atributos foram se fazendo necessários ao longo do processo de luta
política pelo território, como dominar o português, saber ler e escrever e estar em contato
60 Em uma reunião, ouvi uma indígena dizer que a morte de seu parente, num conflito em uma área de
retomada, se deu pela falta de rezas no local.
61
com organizações do Estado como Funai, MPF, Universidades, entre outras. É nesse
sentido que entendo a divisão da liderança no Tekoha 1, pois a liderança é quem sabe ler
e escrever, além de ser ele quem dialoga com a FUNAI e com o MPF, sobre o pedido de
cestas básicas e sobre a situação das terras (CORRADO, 2012). Por outro lado, a vice-
liderança, por ser casado, reúne melhores condições de juntar os parentes e reorganizar a
parentela. Casados, ele e sua esposa, reúnem em torno de si mais parentes para apoiá-los
(CRESPE, 2009).
Os pais das lideranças não estão enterrados no Tekoha 1, eles estão enterrados
na Reserva Indígena de Dourados, na Aldeia Bororo. Sobre isso a liderança expressou:
“naquele tempo eu não estava com a cabeça boa”. Ele se referia ao fato de não ter
podido enterrar os pais no Tekoha 1, pois não sabia que eles tinham esse direito, na
época, “mas agora quem falece no Tekoha 1 é enterrado aqui mesmo”. No contexto das
retomadas os cemitérios, além de seu significado simbólico para os Kaiowá, têm se
tornado uma prova material importante no que se refere ocupação tradicional indígena na
área. Por causa disso, é comum ouvir denúncias de que fazendeiros mandaram destruir
antigos cemitérios. Outra questão, como a própria liderança levanta, é a proibição aos
indígenas de enterrarem seus mortos nas áreas de retomadas, o que muitas vezes leva ao
agravamento dos conflitos entre indígenas e fazendeiros.
A vice-liderança do Tekoha 2, também destacava como central o aprendizado
nas retomadas, e o processo no qual as pessoas vão adquirindo conhecimento na vivência
cotidiana na área de retomada e no circular por outras áreas, seja em reuniões como no
Aty Gasu, seja recebendo ou visitando parentes. Na fala tanto da liderança do Tekoha 1,
como da vice-liderança do Tekoha 2 é muito presente a saída para eventos em Brasília e
em conferências, é na circulação por esses espaços que eles também vão adquirindo
conhecimento. Como se verá no próximo capítulo, a mobilidade é um aspecto
fundamental da sociabilidade Guarani e Kaiowá, pois é no caminhar que também se
adquire conhecimento.
***
O Tekoha 1 é uma área de retomada “estável”, comparada com outras áreas.
O fato de estar localizado numa área arrendada, evita o conflito direto com o proprietário.
No entanto, acredito que essa situação também reflete a estratégia utilizada pelas
lideranças do local, pois como elas mencionaram, seu pai chegou “quietinho” e não disse
que ali era “terra de índio”, estabelecendo desde o início uma relação de trabalho com o
proprietário, em troca da permanência na área. A liderança reproduz o aprendizado e
62
sempre fez questão de me afirmar, que ele “não abusava”, não plantava e nem construía
barracos onde existe a plantação do arrendatário.
A postura das lideranças com uma estratégia de não enfrentamento,
possibilitando a permanência de sua parentela no local, sem entrar em conflito direto com
o arrendatário é uma de muitas outras possibilidades de entrada nas terras na região, mas
conforme mencionado na introdução deste trabalho, nesta aposta é preciso levar em
consideração o contexto de extrema violência vivenciado pelos Guarani e Kaiowa61. Essa
postura também se expressa na organização do tekoha, com o crescimento e a
manutenção da sua parentela.
Através de dados existentes desde de 2008, percebe-se um pequeno aumento
do número de moradores nessa área. Em 2008, por meio de um censo realizado no
tekoha, por Crespe (2009), ela contabilizou 40 moradores e 11 casas no Tekoha 1. Em
junho de 2011, em meu primeiro campo, como parte do projeto Jovem Pesquisador,
fizemos um levantamento e contabilizamos 23 barracos e cerca de 48 moradores, o que já
apontava para uma estabilidade da área, uma vez que o número de moradores,
permaneceu quase o mesmo ao longo de três anos. Os barracos no tekoha eram feitos,
com troncos de árvore que são fincados ao chão e cobertos com lona preta que os
indígenas conseguem via Funai, ou podem ser lonas de caminhão ou algum outro
material que conseguiram coletar ou de madeiras que também coletam principalmente das
indústrias e galpões próximos ao Tekoha 1. Em 2011 todos os barracos estavam
montados dentro da faixa de mata.
Apenas a família das lideranças morava numa casa de madeira, que
antigamente era a casa do caseiro da propriedade. Os indígenas também haviam
construído um pequeno prédio de madeira com chão de cimento, que se localizava à
frente da casa das lideranças e funcionava como escola. O restante dos barracos estava
localizado em pequenas clareiras, dentro das matas. Os moradores costumam transitar
pela área, por trilhas conhecidas pelos Guarani e Kaiowá como tapes ou tape po’i62.
Os caminhos são um tema recorrente na cosmologia desses povos. É no
caminhar que os Kaiowá vão conhecendo, mapeando e tecendo seu território. Logo o
tekoha é composto pelos caminhos, tape po’i e pelos lugares e é essa intensa mobilidade
61 Não estou querendo dizer que existem estratégias melhores do que outras. Mas sim, que essa foi uma
estratégia possível para a área do Tekoha 1, a qual a liderança atual deu continuidade após o falecimento do
seu pai. Isso também não significa a inexistência de um conflito, ele só não é tão aparente como em outras
áreas de retomadas. Além disso, é flagrante o fato do grupo estar, aproximadamente, 40 anos ocupando a
região. 62 Significa caminho estreito.
63
que fortalece a rede de relações entre os parentes. Para Pimentel (2012) os caminhos
seriam fontes importantes para pensar as relações sociais. Sobre os caminhos Crespe
expressa:
Acredito que tanto os caminhos, como os lugares conectados por eles,
são importantes para a construção e reprodução dos grupos, bem como
são importantes para uma melhor compreensão da territorialidade
produzida no passado e atualmente, pelos Kaiowá e Guarani. (2015:
301,302
Figura 3. Croqui 1 - Tekoha 1, junho de 201163
Em janeiro de 2012, realizamos um novo levantamento de moradores do
Tekoha 1, constatando 31 barracos e 22 duas famílias instaladas na área de retomada,
num total de 66 pessoas64. Em relação a distribuição pelo espaço, não havia muitas
alterações a não ser pela construção de novos barracos por causa da chegada de novas
famílias. Na época, a chegada de uma família vinda da reserva de Caarapó, cerca de 50
km de Dourados, nos chamou atenção. O homem se mudou para o Tekoha 1 com sua
família. Ele havia sido liderança na reserva de Caarapó, o que lhe garantia certo prestígio
63 Tekoha 1 (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6.
Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Diego Amoedo Martínez. 64 Família aqui tem o mesmo sentido que “fogo doméstico”, ou seja, “é o local onde a solidariedade e a
mutualidade atinge seu grau máximo de expressão, baseada na cooperação económica, co-residência e no
comensalismo” (PEREIRA, 2004: 154). Nesse sentido, o fogo doméstico é composto por um casal e seus
filhos, podendo também abrigar agregados, como genros. Como descrevi em trabalhos anteriores
(CORRADO, 2013), nos acampamentos, o fogo doméstico pode ser constituído por mais de um barraco,
pois existem o barraco para dormir, o barraco onde se cozinha e, também é comum que o filho mais velho
tenha um barraco só para ele, o mesmo acontece quando um filho e/ou uma filha se casa, no entanto, esses
barracos continuam pertencendo ao fogo dos seus pais, pois é apenas com a construção da sua própria
cozinha que irá se formar um novo fogo doméstico. Neste trabalho, também uso o termo fogo, quando falo
de família, transitando entre os dois.
64
social. Quando veio morar no tekoha, ele se transformou num importante aliado das
lideranças nas reivindicações pela demarcação do território, ocupando, inclusive uma
área relativamente grande no Tekoha 1.
Figura 4. Croqui 2 - Tekoha 1, janeiro de 201265
Refletindo sobre a organização do Tekoha 1 e levando em consideração a
localização dos barracos e as relações de parentesco e mobilidade Crespe e Corrado
mencionam:
“...a localização dos barracos também diz sobre o status que a família
ocupa dentro do acampamento e o grau de proximidade que ela tem
com a liderança, bem como sua inclinação no processo da luta política
pelo território. Assim, de fato, a organização do acampamento e a
posição dos barracos representam a tentativa de reprodução do tekoha,
ou seja, várias famílias ligadas por laços de parentesco e de aliança com
a liderança, conformando assim uma parentela extensa, isto é, a
organização do tekoha, também pode ser observada na configuração
espacial dos acampamentos”. (CORRADO e CRESPE, 2012; 2013;
2016).
Não aceita mais pessoa que não é aparentada
Bem na entrada da área, logo quando sai da rodovia e entra na estrada de
terra, tem uma placa escrita “Aldeia” e embaixo a frase “Tekoha 1, Respeitar”. Em
visitas anteriores, durante a pesquisa de iniciação, as placas estavam no interior da área; a
65 Tekoha 1 (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6.
Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Marcia Soares.
65
primeira delas era uma placa, próxima a antiga casa de madeira das lideranças, estava
escrito PARE!. Nas últimas visitas havia notado uma placa, pregada a uma árvore escrita:
“Área de conflito”. Mas nunca tinha visto uma placa próxima à rodovia, logo na entrada
da estrada de terra.66
Antes quando caminhava pela estrada de terra até chegar à casa da liderança,
podiam ser vistos alguns barracos entre a mata. Agora a mata parecia estar mais densa,
dificultando ver os barracos que ficam próximos da estrada. A mata também havia
avançado por onde existia anteriormente uma clareira que servia como um pátio, onde os
indígenas se reuniam e se sentavam para conversar e tomar tereré.
No local, onde antes residia o “fogo”67 da família da ex-liderança de Caarapó,
atualmente está tomado por uma parte de mata. A vice-liderança, desde 2013, mudou-se
para uma parte de mata, onde se chega atravessando a plantação do arrendatário, observei
que desde a última vez que estive lá, sua família já ocupa um espaço maior na região.
Conversando com Liderança do Tekoha 1 ele contou que foi o arrendatário quem
autorizou seu irmão a se mudar para aquele novo espaço.
Outra mudança perceptível era como a cidade havia crescido em torno do
tekoha. Atualmente, encontra-se um loteamento com casas já construídas bem próximo
ao fundo da área do Tekoha 1, o Bairro 1, que em 2013 estava em formação. Do outro
lado da Rodovia, também havia aumentado consideravelmente o número de galpões
comerciais que ficam próximos a estrada68. E, atrás dos balcões onde antes só existiam
terrenos, hoje é o Bairro 2 ainda em processo de urbanização, inclusive foi andando por
esse bairro que eu chegava ao Tekoha 169.
Ao andar com a liderança pelo tekoha também percebi que alguns moradores,
inclusive ele, tinham plantado roças. Essas roças eram motivo de alegria para seus donos
que me mostravam com orgulho suas pequenas plantações, pois significam a
possibilidade de plantar e consumir seu próprio alimento, seguido do desejo de poderem
ter roças maiores, o que era impossibilitado pelo o arrendatário da terra que os proibia de
avançarem na área de suas plantações. Próximo de alguns barracos também avistei alguns
pés de tomate e mamão plantados em vasos e, em alguns lugares pés de árvores frutíferas.
66 Como descreveu Marcelo Rosa (2009, 2009b), para o caso do movimento sem-terra, o conflito nesses
contexto, de ocupações e das retomadas Guarani e Kaiowá é um conflito específico que é gerado a partir da
demanda por terra. Uma vez o conflito instaurado, chama-se a atenção do Estado para as reivindicações
dessas populações. 67 Categoria sociológica referência ao fogo doméstico: conjunto de relações entre parentes próximos que
compartilham os alimentos e a residência (Pereira, 2004). 68 Ver em anexos Foto 2, pp. 132. 69 Veja croqui 3, pp. 68.
66
Das cinco roças que foram me mostradas, os cultivos mais comuns eram: feijão,
mandioca, rama, além de pés de canas, e mamão70.
Figura 5. Roça de um morador. Foto: CORRADO, 2016.
Figura 6. Roça de um casal de moradores. Foto: CORRADO, 2016
A liderança, em diferentes ocasiões e visitas enfatizava a configuração atual
do tekoha ao afirmar que agora só mora parente no Tekoha 1: irmãos, tios e primos.
70 Uma vez em visita ao Tekoha 1 encontrei a liderança cuidando de sua roça, que fica ao fundo do seu
barraco (barraco 1, consultar croqui 3). Me contou que havia plantado mandioca, rama, feijão, cana, além
de alguns pés de árvores frutíferas como manga e mamão.
67
Segundo a liderança, ele “não aceita mais pessoa que não é aparentada”, pois estar só
entre a família é mais “fácil para aconselhar e corrigir”.
Até abril de 2016 o Tekoha 1 estava composto por 26 famílias e cerca de 97
pessoas71. Dessas 26 famílias, constatei que apenas três não tinham relações de
parentesco com as lideranças (barraco 1 e 12). A maior parte do grupo era formado pelos
filhos da vice-liderança (barracos 5, 7, 8, 13 e 16) e da sua irmã e sobrinha
(respectivamente barracos 20 e 21) e pelos parentes da sua esposa: filho (barraco 11),
irmãos (barraco 3 e 10) e sobrinho (barraco 14). O único filho da liderança (barraco 26)
também vive no Tekoha 1 e este trabalha para o arrendatário da terra. Nesse cenário,
compreende-se porque a Liderança do Tekoha 1 insistia em reafirmar que agora só
morava parente no tekoha: irmãos, tios, primos, sobrinhos. Das três famílias que não
tinham laços de parentesco com as lideranças, duas delas eram parentes da ex-liderança
de Caarapó (barracos 17 e 18), mas uma dessas famílias (barraco 17) deixaram o Tekoha
1 no final de abril de 2016. A família da ex-liderança de Caarapó havia deixado o tekoha
no final do ano anterior e se mudara para o Tekoha 2.
O terceiro caso é o do morador do barraco 15. Segundo este morador,
antigamente sua família vivia no tekoha gassu que era composto pelo Tekoha 1 e
mencionara que já havia viajado muito e conhecido muita coisa72. A liderança ainda
contou que esse morador se mudou para o Tekoha 1 depois que rompeu com a esposa e
deixou sua casa se mudando de Caarapó para o Tekoha 1. Nas palavras da liderança, ‘deu
permissão para ele morar lá, mesmo não sendo parente, porque ele estava sozinho’ e,
também comentou que esse morador o ajudava em algumas coisas. Esse morador parecia
assumir um papel de articulador junto com as lideranças, relação que se expressa
inclusive espacialmente pois a localização do seu barraco é muito próxima ao barraco da
liderança, e na maioria das vezes, ele sempre acompanhava parte das conversas que eu
tinha com as lideranças.
Através da análise da organização e das relações entre os parentes do Tekoha
1, num dado período (2008-2016), assim como a constituição de alianças políticas, as
áreas de retomadas são espaço privilegiados para pensar tanto a mobilidade das pessoas
por esses espaços, como pensar os tekoha enquanto lugares de paradas e permanência.
71 Localizei algumas pessoas pelos números de barracos que pode ser consultado no croqui 3, pp. 68. 72 Entre os Guarani e Kaiowá noções como andar e caminhar são importantes porque se referem a modos de
conhecer e adquirir conhecimento. Esse tema será melhor explorado no próximo capítulo.
68
Figura 7. Croqui 3 - Tekoha 1, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa etnográfica realizada no
período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia Soares.
69
Não é muito nem é mais
Quando perguntei a liderança do Tekoha 1 qual era a importância da
liderança ele respondeu que “não é muito nem é mais”, depois foi trazendo mais
elementos do que significa ser liderança, me explicava através de exemplos, ao dizer
que “é como mãe e pai” e com desenhos feitos no chão. Porém a característica que ele
mais ressaltava era ter sabedoria. Assim, no chão, com ajuda de um graveto, ele traçou
três linhas, as duas linhas externas se referiam respectivamente a sabedoria e ao
entendimento, e a linha do meio significa caminhando, a figura, desenhada na terra do
Tekoha 1 acompanhava a seguinte frase, dita por ele: “caminhando sabedoria para
corrigir”. Com esse desenho ele traduzia a figura da liderança através da metáfora de
uma caminhada73, ou seja, a liderança era uma caminhada guiada pelas margens da
sabedoria e do entendimento e, ainda acrescentou, que nesse caminho era “preciso
vigiar”.
Figura 8. Reprodução do desenho da liderança74
Essa sabedoria, segundo meu interlocutor, começou a ser adquirida, como
mencionado anteriormente, ainda na infância da liderança, “aprendendo ouvindo” a
conversa de seu pai e posteriormente de outras lideranças. Contudo, saber ouvir é algo
que uma boa liderança nunca deixar de fazer: “eu estou falando, mas também estou
ouvindo, meu ouvido está escutando”. Segundo ele, outras qualidades de uma boa
73 Exemplo esse nada banal para os Guarani que considerando o caminhar como uma das formas de se
adquirir conhecimento. O tema sobre mobilidade Kaiowá e Guarani será abordado no próximo capítulo. 74 Reprodução do desenho que a liderança do Tekoha 1 me fez, no dia 01 de março de 2016, quando
perguntei sobre como era ser liderança. Após fazer três traços no chão, ele acrescentou as iniciais das
palavras de cada linha, que se referem respectivamente a sabedoria, caminhando e entendimento, depois
fez um círculo envolta.
70
liderança são pensar em toda a parentada, não beber e não brigar, “andar bem no meio
do povo”. Ser uma boa liderança também representa se corrigir e pensar: “corrigindo
minha sabedoria” e “tem que sofrer também”, se referindo ao processo de luta pelo
tekoha. Loera, em relação aos acampamentos do MST, mencionou que o “‘sofrimento’
se constitui como a medida legitimadora da luta” (2006: 94) para os acampados do
Terra Sem Males. Para meu interlocutor a luta também está associada ao sofrimento e
enquanto liderança “tem que sofrer também” como os outros moradores do Tekoha 1.
Outra característica ressaltada por ele é que a “liderança tem que pensar, tem que ter
vigilância para não cair em laçada do branco, do fazendeiro”.
Entre as obrigações da liderança, “dar um bom conselho” e corrigir era
algo sempre lembrado. Quando perguntava como ele lidava com as divergências dentro
do Tekoha 1, ele me dizia que primeiro tinha que conversar, levar um bom conselho.
Pereira descreve, que entre os atributos para ser uma cabeça de parentela (hi’u) - aquele
que tem a capacidade de reunir e manter parentes próximos e aliados – a capacidade de
proferir boas e belas palavras (ñei em porã) é essencial, uma vez que dar conselhos aos
seus co-residentes é uma das atribuições principais do hi’u (2014: 104).
Outro papel da liderança, e que lhe será exigido, é a sua capacidade de lidar
com o exterior. Acerca das lideranças indígenas, Clastres escreveu: “o líder primitivo é
principalmente o homem que fala em nome da sociedade quando circunstâncias e
acontecimentos a relacionam com outros” (2014 [1977]:139). Na conjuntura das
retomadas, esse elemento se faz ainda mais necessário e se soma a outras habilidades,
como saber ler e escrever, fundamental no diálogo com as instituições do Estado. No
caso do Tekoha 1, também é a liderança quem sempre busca a FUNAI e o MPF para
fazer alguma denúncia, reivindicar cestas básicas, atendimento médico a comunidade e
lonas, bem como solicitar informações e orientações75. Muitas das reivindicações feitas
são via carta, escrita pela liderança que posteriormente as entrega pessoalmente nas
instituições.
Certa vez, em uma das minhas idas a Funai, encontrei a liderança do Tekoha
1, nessa ocasião ele tinha ido conversar com o coordenador, porque, queria saber como
75 Além disso, a liderança do Tekoha 1 tinha o hábito de ouvir rádio diariamente, instrumento esse que se
utilizava para se informar desde o clima - era comum ele me passar a previsão do tempo quando
conversarmos, me alertando sobre a possibilidade de chuva – a política nacional e os aumentos de preço
dos combustíveis e alimentos. Outra característica, digna de nota, era como essa liderança aproveita a ida
de qualquer pessoa ao Tekoha 1, para tirar dúvida de um assunto que tinha ouvido (podia ter sido no rádio
ou em alguma reunião que tivesse participado), ou saber sobre algum conflito de outra área. Era comum
também, quando dizia que iria passar na FUNAI ou no MPF, ele dizer: “então aproveita que você está lá
e pergunta isso para mim”.
71
andavam as negociações com a Concessionária CRR MSVia para a construção de uma
plataforma próxima a entrada do Tekoha 1 - reivindicação da comunidade - para evitar
atropelamentos, como ocorrera antes, causando inclusive a morte de um morador. Outro
momento que encontrei a liderança fora do Tekoha 1 foi na IV Sessão de Audiência –
Violação de direitos Indígenas na UFGD, numa postura sempre quieto, mas muito
atento, ele parecia estar ouvindo tudo com atenção.
Como liderança, participar de reuniões e de encontros como esse, além dos
Aty Guasu são habituais. Nesses espaços a liderança do Tekoha 1 sempre se informava
sobre os novos debates em torno das áreas de retomadas e se alguma decisão fosse
tomada, como, por exemplo, a decisão de não usar mais o termo área de conflito para se
referir aos tekoha, a liderança prontamente adotava a medida no Tekoha 1.
Tanto as explicações do meu interlocutor sobre ser uma boa liderança,
quanto os exemplos apresentados aqui o qualificam como um cabeça de parentela
(hi’u), aquele que “reúne seus descendentes e aliados pelo carisma, representa-os e por
eles fala nas reuniões gerais – aty – [...] devendo defender os interesses do seu grupo
familiar acima de qualquer outro interesse” (PEREIRA, 2014: 85). Outros requisitos
apontados por Pereira como fundamentais para um cabeça de parentela são a sabedoria
(o principal elemento elencado pela liderança do Tekoha 1 para ser uma boa liderança),
a capacidade de estabelecer vínculos políticos e expressar a generosidade. Clastres,
sobre a filosofia da chefia indígena também apresenta a generosidade como um dos seus
traços centrais, os outros traços, congruente com o cabeça de parentela são o talento
oratório e sua capacidade como conciliador de conflitos76.
Assim, embora meu interlocutor não seja idoso, nem tenha muitos filhos,
também características de um hi’u, é ele quem atua na vida política, e junto com seu
irmão, consegue manter parte da sua parentela unida, bem como agregar aliados. Nessa
caminhada como liderança há um autocorrigir e um corrigir o outro, que faz parte da
sabedoria e entendimento que é preciso ter, ao mesmo tempo em que “a liderança não é
muito nem é mais”.
A vila tá vindo, chegando a cada ano
Tanto no Tekoha 2 como no Tekoha 1, os comentários sobre a especulação
imobiliária da região e de como a cidade vem crescendo ao redor da reserva indígena de
76 Nesse trabalho Clastres ainda acrescenta um quarto traço, a poligamia, “como privilégio mais
frequentemente exclusivo do chefe” (2013 [1962]: 51).
72
Dourados e de áreas que estão sendo reivindicadas pelos indígenas foi tema de várias
conversas. Assim, a questão do avanço da cidade nas áreas indígenas foi algo que
apareceu muito na fala dos meus interlocutores, e principalmente nas conversas com a
liderança do Tekoha 1. Não teve uma vez que ele deixou de falar que estavam querendo
construir um loteamento no seu tekoha e que inclusive já haviam feito as medições dos
terrenos. Ainda, segundo a liderança, o loteamento só não se concretizou porque o MPF
interveio.
Assim, da mesma maneira que Evans-Pritichard, teve que se dedicar ao
estudo da bruxaria e se “tornar um especialista em gado” (2005, 245), pois essa era a
gramática local entre os Zande e os Nuer respectivamente; no meu caso, o loteamento
era uma questão que parecia estar no centro das preocupações dos meus interlocutores.
Deste modo, em entrevistas com o perito antropológico do MPF, e através das consultas
aos documentos do mesmo órgão, tomei conhecimento, que atualmente, a área onde se
localiza o Tekoha 1 tem três títulos de propriedade: um pertence a Fazenda Coqueiro, o
outro a empresa BR FOODS e o terceiro a Incorporadora Colombo responsável por
fazer o loteamento na área do Tekoha 1.
Em 26 de junho de 2012, após diferentes idas da liderança ao MPF,
declarando a intenção dos proprietários de lotearem a área e um relatório produzido pelo
analista pericial em antropologia do MPF - depois de uma visita ao Tekoha 1, para
averiguar as denúncias - o Procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida
remeteu o OFÍCIO N° 899/2012/MADA/PRM-DRS/MS/MPF ao Prefeito Municipal de
Dourados pedindo informações sobre o loteamento que se sobreporia a área do Tekoha
1. Em 26 de setembro de 2012, o mesmo Procurador expediu a Recomendação
MPF/DRS/MS/MADA n° 25/2012, endereçada ao Prefeito Municipal de Dourados e o
Secretário Municipal de Planejamento da mesma cidade pedindo a paralização do
loteamento, embora os lotes já tivessem sido vendidos, alegando que a área está em
processo de estudo.
Contudo, a recomendação não foi seguida a contento e o MPF interveio
novamente, para barrar o avanço do loteamento João Carneiro Alves no ano de 201577.
O MPF só conseguiu impedir esses empreendimentos temporariamente, porque o
Tekoha 1 é uma retomada que já passou por estudos antropológicos realizado pela
77 Em 03 de outubro de 2014 o site do MPF publicou uma notícia a esse respeito: “MPF alerta para
loteamento incidente sobre área indígena de Dourados”. Consultar:
http://www.prms.mpf.mp.br/servicos/sala-de-imprensa/noticias/2014/10/mpf-alerta-para-loteamento-
incidente-sobre-area-indigena-de-dourados
73
FUNAI, e os laudos, realizados pelo Grupo de Trabalho responsável (GT) pela região,
estão em processo de análise na FUNAI em Brasília. Por outro lado, o Tekoha 1
localiza-se na região metropolitana de Dourados, nos limites da cidade e com o avanço
urbano vem sofrendo com o assédio da especulação imobiliária e com os
descumprimentos das recomendações emitidas pelo MPF, que culmina no caso da
proposta de troca de área, apresentada na introdução desse trabalho.
A proposta, chamada pela a liderança de a trocação, foi feita durante uma
reunião no Tekoha 1 em 24 de junho de 2016, por uma mulher que se apresentara como
antropóloga. Nessa ocasião, conforme me relatou a liderança, essa antropóloga havia
dito ter uma área de 42 hectares no município de Douradina/MS e, se a comunidade
aceitasse o acordo, além da terra, eles teriam casas, escola, poço artesiano, entre outras
promessas. Segundo meu interlocutor, ela ainda acrescentou que a Funai e o MPF
estavam sabendo do acordo e que o mesmo havia sido supostamente sugerido pelo
MPF, pois sabiam que o "arrendatário não vai entregar nada para o indígena". No
entanto, a liderança pontuou que a maioria da comunidade não tinha aceitado o acordo
principalmente por causa do cemitério, onde estão enterrados parentes dos atuais
moradores e que as mulheres não queriam sair do Tekoha 1, justificando que ali existem
mais recursos.
Na época, o MPF e a FUNAI, não tinham conhecimento sobre essa
proposta. Em conversa com o coordenador da regional da FUNAI em Dourados, ele
comentou que houve um parecer administrativo sobre um acordo de troca da área no
Tekoha 1; no entanto, o procurador da Funai alegou impossibilidade de uma proposta
desse tipo, uma vez que se tratava de direito originário garantido pela Constituição
Federal de 1988. O coordenador afirmou que, de fato, ouvira algumas conversas sobre
uma mulher que estava andando pelas redondezas da cidade de Douradina/MS querendo
comprar terrenos na região. Essa história chegou até o coordenador, porque um indígena
desse município havia ligado perguntando por que a FUNAI iria comprar terra para
índio de Dourados, sendo que os índios de Douradina também estavam em área de
retomada e não queriam a chegada de outro grupo78.
78 A esse respeito, o perito analista pericial em Antropologia do MPF, no Laudo Técnico nº 6/2017
solicitado pelo Procurador da República Marco Antônio de Almeida, justamente para averiguar o suposto
aceite do acordo para a saída da comunidade do Tekoha 1, escreveu: “No que concerne à área de 42
hectares no Município de Douradina há dois pontos importantes a ressaltar. Primeiramente, que a
proposta apresentada foi a de aquisição de uma propriedade inserida no perímetro já identificado e
delimitado pela FUNAI da Terra Indígena Panambi/Lagoa Rica. Roubar Pedro para pagar Paulo. Cobrir a
cabeça para descobrir os pés. Cobrir um santo para descobrir o outro. Seja lá qual for o ditado utilizado, a
74
Após mais de seis meses desse acontecimento, a proposta de troca de área
não apenas continuou como tomou grandes proporções. No início de 2017, após o MPF
ter sido notificado pelo advogado da Incorporadora Colombo sobre o suposto aceite da
proposta que removeria a comunidade do Tekoha 1 para outra área - podendo dessa
forma dar prosseguimento ao loteamento - o Procurador da República Marco Antônio
de Almeida solicita a elaboração de um laudo pericial para averiguar a suposta anuência
da comunidade do Tekoha 1 ao acordo. O Laudo Técnico nº 6/2017, realizado por
Marcos Homero Ferreira Lima, analista pericial em Antropologia, aponta para várias
falhas no processo de consulta à comunidade, entre elas o não seguimento dos
pressupostos para que essa seja prévia, livre e informada, conforme prevê a Convenção
169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse sentido o analista pericial
arguiu:
O argumento defendido, desde o início, é o de que o que foi
apresentado pela pesquisadora contratada pela “Altomare e
Gonçalves” não foi uma “Consulta” nos moldes da Convenção
169/1989 da OIT, mas, tão-somente, um “projeto” que, sem muita
fundamentação, na melhor das hipóteses, poderia ser visto como de
“etnodesenvolvimento” (2017: 61). 79
Esse caso é um exemplo concreto dos conflitos vivenciados por essa
comunidade em relação ao avanço imobiliário e que tem efeitos na vida das pessoas; um
possível atrito com os indígenas de Douradina e a pressão vivenciada pela comunidade
do Tekoha 1 são só alguns exemplos dos efeitos desencadeados a partir dessa disputa.
***
A vice-liderança do Tekoha 2, ao qual irei me referir adiante, em algumas
conversas também me chamava atenção para a proximidade da cidade com a reserva, e
isso era facilmente observado. Eu mesma percebia o crescimento da cidade, comparado
com as primeiras vezes que estive em Dourados. Ademais, para acessar as áreas de
retomadas, circulei por bairros que cinco anos atrás não existiam.
Atenta a essas questões, também passei a pesquisar sobre o Plano Diretor de
Dourados e descobri que no ano de 2011 a câmara de vereadores da cidade aprovou o
aumento de 150% do perímetro urbano da cidade passando de 82 km² para 211,69km²80.
Além disto, ainda no ano de 2015 foi aprovada uma nova ampliação do perímetro aparente resolução da situação [no Tekoha 1] criariam problemas muito mais graves em Douradina,
colocando índios de uma comunidade contra outra. Qualquer antropólogo minimamente informado sobre
o que ocorreu com os Kaiowá durante os deslocamentos para as Reservas até os anos 1980 saberia as
consequências desastrosa de se colocar grupos distintos para conviver lado a lado”. 79 Destaque do autor. 80 Fonte:http://www.campograndenews.com.br/cidades/interior/camara-aprova-ampliacao-em-quase-150-
do-perimetro-urbano-de-dourados
75
urbano, sendo que apenas um vereador votou contra a proposta, o vereador Elias Ishy
(PT)81. Em entrevista com Elias Ishy ele disse que o motivo de ter votado contra a
proposta de ampliação, foi porque ela não passou por um amplo debate público82.
Pelas razões acima expostas, a questão do crescimento urbano se torna uma
questão a ser levada em consideração para pensar os acampamentos indígenas na região
de Dourados, não apenas no sentido de que a cidade está avançando nas áreas indígenas,
o que por si só já é relevante, mas também pensar, como já pontuou Crespe (2015),
como os indígenas também estão “cercando” a cidade em suas mobilizações para
retomar seus territórios.
Nessa perspectiva, a obra de Andrello (2006) traz alguns elementos
interessantes. Andrello, em seu trabalho com a comunidade de Iuaretê, opera uma
dissolução da oposição entre os estudos de contato e da etnologia clássica. Para
desenvolver sua pesquisa se preocupa em entender a história, bem como entender quem
são esses povos indígenas, mas também parte da perspectiva do conhecimento
etnológico para buscar compreender o que os próprios indígenas pensam sobre Iauaretê.
A escolha de Iauaretê pelo autor se dá por ser uma localidade plural e apresentar
diferentes modalidades de relacionamento entre os indígenas da região e outros atores
sociais e por apresentar uma alta concentração populacional e aspecto urbano.
Assim, em Cidade do Índio (2006), Andrello se pergunta em que medida
as etnografias clássicas o ajudam a entender Iauaretê e quais são os novos processos que
estão lá ocorrendo. Nas palavras do próprio antropólogo: “no rio Negro a pergunta que
eu não podia deixar de fazer dizia respeito às novas dinâmicas de urbanização e ao
grande interesse demonstrado pelos índios em participar dos debates e dos
encaminhamentos relativos ao desenvolvimento da região” (2006: 33). Em busca de
responder essas questões Andrello observa que o termo civilização vai ganhando mais
contorno na própria fala dos indígenas, o que levou a civilização a se tornar o conceito
chave de sua análise. O autor também incorpora as reivindicações indígenas à análise e
se preocupa em como se expressa a consciência multiétnica em Iauaretê, bem como
mostra como os povos indígenas estão entendendo e procedendo com as transformações
causadas pelo contato. Essa visão permitiu que Andrello, pensasse as populações
81Fonte:http://www.douradosnews.com.br/dourados/ishyquestionanovaampliacaodoperimetrourbanodedo
urados 82 Elias Ishy também falou que a ampliação do perímetro urbano é motivada principalmente pela
especulação imobiliária. Em outros trabalhos consultados, também são apontadas que as questões
ambientais não foram levadas em conta no projeto de ampliação do perímetro urbano.
76
indígenas como também englobando a sociedade nacional, ou seja, como um
movimento de mão dupla e não unidirecional.
Andrello, contudo, não nega a voracidade do capitalismo entre a população
indígena. No entanto, aponta que apesar de os indígenas do Rio Negro estarem
conscientes de que se transformaram, acreditam que se transformaram de uma maneira
própria; ora, está mostrando que os “rionegrinos” são sujeitos do contato bem como são
transformados por ele, porém, através das suas perspectivas, pois, a cosmologia do Rio
Negro está em constante desenvolvimento e transformação. Isso se torna claro quando
os indígenas dizem que são civilizados e que se fazem brancos, o que não significa dizer
o mesmo que se virou ou que se é branco.
Partindo de uma concepção parecida, Cristiane Lasmar em De volta ao Lago
de Leite (2005), que também tem como lócus de pesquisa o Alto Rio Negro, está
interessada em entender as transformações que ocorrem no modo de vida indígena
quando esses deixam a sua comunidade para viverem em cidades como São Gabriel da
Cachoeira. Assim, também busca compreender, como Andrello, qual a visão dos
próprios indígenas sobre as suas relações com os brancos. A novidade do trabalho de
Lasmar é que ela aborda esse tema pela problemática do gênero, ou seja, quer conhecer
as perspectivas das mulheres indígenas sobre suas experiências na cidade tal como suas
relações com os brancos.
A cidade para os Kaiowá e Guarani é também um ponto importante para
acessar recursos. É na cidade que muitos indígenas fazem as suas compras, pedem
ajudas para os comerciantes conhecidos para conseguirem doações de lenha, materiais
que ajudem nas construções dos barracos e as vezes roupas e alimentos. Além disso, a
proximidade com a cidade é importante pois representa a oportunidade de se arrumar
um emprego e dos jovens continuarem seus estudos em escolas técnicas e faculdades.
Porém, a proximidade com os centros urbanos pode trazer problemas, por isso a relação
com a cidade nunca deixa de ser uma relação tensa e controlada.
Em conversa com a liderança do Tekoha 1, ele me relatava que um dos
motivos de gostar de viver no Tekoha 1 era porque estava perto da cidade, assim,
quando ele precisava ir à Funai ou ao MPF resolver algum problema, ou fazer alguma
reivindicação para a sua comunidade, ele conseguia acessar esses lugares facilmente.
Outro ponto positivo apontado por ele, era de estar perto da UPA83. Através da narrativa
83 Unidades de Pronto Atendimento.
77
da liderança, também percebia sua relação com as pessoas da cidade, conseguindo
inclusive articular “benfeitorias” para o Tekoha 1. Nesse sentindo duas histórias são
relevantes. A primeira dela foi quando ele conseguiu 30 cadeiras e mesas para escola
que funciona no Tekoha 1. Quando eu perguntei como ele conseguira essas carteiras
escolares, ele me contou, que um freteiro, que costuma levar algumas coisas ao tekoha,
o avisou que haviam mesas na escola que descreveu como “Terra Roxa” - é uma escola
que fica na cidade, perto do estádio Douradão, como ele me explicou. Então ele e seu
irmão foram ver as carteiras e conseguiram trazer para o Tekoha 1 junto com a ajuda do
freteiro.
A outra história se refere as caixas de madeira que estavam espalhadas na
área e que me chamavam atenção desde a minha primeira visita. A liderança havia
conseguido essas caixas, de uma fábrica que as descartara como resíduo de produção e
os moradores as utilizavam como lenha. A relação com a cidade se dava também nas
idas ao mercado e com vendedores que vendem carne, sorvete e outras coisas no Tekoha
184. Assim, ao circular pela cidade os indígenas também vão conhecendo pessoas e
articulando uma rede de ajuda que somada a capacidade da liderança pode garantir
alguns recursos para o grupo. Por outro lado, a cidade também representa perigo,
principalmente pelo acesso fácil, como menciona a liderança, “a bebida alcoólica e as
drogas”, por isso, uma das regras do Tekoha 1, como do Tekoha 2, é a proibição de não
indígenas nos tekoha. A liderança do Tekoha 1 também relatava que ‘colocou segurança
no tekoha’ justamente para o pessoal da cidade “ter respeito”, aliás, a palavra respeito
está na placa logo no início da estrada que dá acesso ao Tekoha 1.85 A liderança em
outro momento também falou que uma das intenções de colocar a placa era por causa do
pessoal dos bairros vizinhos, principalmente o Bairro 1, que entram no Tekoha 1 para
levar bebida. Nas palavras da liderança, “essas pessoas não têm respeito”, todavia,
colocando a placa eles viriam que ali era uma aldeia e que não se pode fazer o que quer,
ficando mais receosos para entrarem.
Controlar o que é de fora é importante para manter a estabilidade do grupo e
evitar conflito, além disso, a preocupação do que vem de fora está associado
diretamente ao controle da mistura, como será visto no próximo capítulo. Enquanto que,
estar entre parentes é “mais fácil para aconselhar e corrigir”.
84 Esses vendedores são conhecidos como mascateiros, pelos indígenas. 85 Essa segurança mencionada pela Liderança do Tekoha 1, se refere a um grupo de jovens e adultos,
alguns sobrinhos da liderança, além da vice-liderança. Algumas vezes quando eu cheguei ao tekoha, esse
grupo vestia um coleto escrito SEGURANÇA.
78
2.2 O Tekoha 2: um barraco colado no outro
O Tekoha 2 é uma retomada Kaiowá e Guarani que está localizado numa
área contínua a aldeia Bororó e a margem da estrada, próximo à área urbana, onde se
localiza o Bairro 3. Além da proximidade com a reserva e com a cidade, ao lado do
Tekoha 2, também às margens da estrada, se encontra outra retomada, o Tekoha 3 86.
A liderança do Tekoha 2 é um senhor entre 50 e 60 anos de idade. Sua
família é oriunda da Reserva de Amambai. Ele é casado e sua esposa é quem conseguiu
reunir alguns de seus filhos na área (três filhas e um filho). O espaço em que está
montado o barraco da liderança fica próximo da estrada (ver croqui 4, abaixo) e está
cercado por madeiras. Existe uma entrada larga, que dá acesso aos barracos. Logo na
frente, colado com a cerca tem um barraco de madeira que não é muito alto, próximo a
esse barraco existe um outro ainda maior.
A área da liderança está dividida pela plantação de bananeiras que fica do
lado direito mais próxima à rodovia e pelas construções dos barracos, no lado direito.
Na área mais ao fundo é onde costuma-se plantar milho e ramas, e seguindo a plantação
de bananas, ao fundo, tem o barraco de uma das filhas de sua esposa. O terceiro barraco,
mais ao meio da área, coberto com palha é a cozinha, e ainda existiam mais dois outros
barracos. Esses barracos são construídos de madeira e estavam cobertos de telha Eternit.
Apenas a cozinha era coberta com lona e folhas secas. A configuração da área que a
liderança ocupa no tekoha tem um formato de um U, o espaço aberto é uma espécie de
pátio para onde os barracos estão voltados e onde está a cozinha. A plantação de banana
estava muito bonita, havia vários pés, e a maioria deles estavam com grandes cachos, a
liderança me falava com orgulho do número de cachos de bananas.
A vice-liderança e sua família vivem na outra extremidade do Tekoha 2,
próxima a uma escola da aldeia Bororo. A vice-liderança é uma mulher de 34 anos de
idade, casada e mãe de três filhos: uma menina adolescente e mais dois meninos, um de
9 anos e outro de 11 anos de idade87. A área onde a família da vice-liderança mora é
bem espaçosa. Nela existe uma casa em construção88. Ao lado do barraco da casa tem
um barraco grande, maior do que o primeiro utilizado como cozinha. Na frente da
86 Ver croqui 4, pp. 81. 87 Detalhes sobre a trajetória da vice-liderança do Tekoha 2 será apresentada no Capítulo III. 88 Na primeira vez que estive no acampamento havia bastante materiais e madeiras espalhadas pelo chão.
Das outras vezes que estive no local o pátio estava limpo e a vice-liderança falou que tinha adiantado a
reforma do barraco, mas que ainda estava terminando. Também encontrei algumas vezes seu marido
trabalhando nessa reforma.
79
cozinha há um barracão que serve como uma varanda e nos fundos tem um espaço
fechado para guardar materiais e ferramentas. Do lado esquerdo desse barracão tem um
barraco menor, com piso no chão e existe um balcão que separa da área construída na
frente. Dentro desse cômodo havia chinelos pendurados, biscoitos salgados e doces,
bem como chicletes e balas. Esse espaço funciona como uma venda e lanchonete que
atende os moradores do tekoha, mas principalmente as crianças e adolescentes que
frequentam a escola.
Todos os barracos são feitos de madeiras grossas que envolvem as laterais
da estrutura, segundo a vice-liderança, ela costuma pedir madeira para algumas pessoas
da cidade. Apenas a cozinha é coberta com lona preta, os outros três barracos são
cobertos com telhas Eternit que ela comprou ou aproveitou de outros espaços. O chão
do barraco que serve como dormitório é feito de cimento.
As lideranças vivem em lados opostos da área do Tekoha 2, essa localização
permite que as lideranças acompanhem o movimento de entrada e saída de pessoas no
tekoha89. Assim, a localização dos moradores nas áreas de retomadas, também são
importantes para pensar, não só em termos de organização, mas também de estratégia de
vigilância e de segurança, uma vez que os moradores dessas áreas, temem algum tipo de
ataque.90
Em relação a estrutura física dessa retomada, os moradores não têm luz
elétrica nem água encanada. Para ter acesso a água eles abrem poços. As lideranças já
haviam feito pedido, tanto para conseguirem água, como energia elétrica para o Tekoha
2, mas por ser uma área de ocupação, na qual ainda não foi realizado nenhum estudo, a
Funai avisou que o fornecimento de energia elétrica poderia não se concretizar.
89 Era notório como as lideranças com quem eu conversei estavam sempre muito atentas com tudo que
acontecia ao seu redor. A liderança do Tekoha 1, por exemplo, avista uma pessoa chegando a área a uma
longa distância, uma vez também, enquanto conversámos ele viu um carro branco na rodovia e comentou
que era o carro da Sesai, tempo depois esse carro chegou ao tekoha. 90 A preocupação com a segurança é cotidiana, visto o longo histórico de ataques que a população
Guarani e Kaiowá vem sofrendo no MS. Exemplos disso são os ataques que ocorreram nos meses de
junho e julho de 2016 no Tekoha Guapoy, no município de Caarapó. Pistoleiros com tratores e
caminhonetes atacaram os moradores. No primeiro ataque, no mês de junho, o agente de saúde Clodiodi
Souza foi assassinado e mais seis indígenas foram hospitalizados. Um mês depois, na mesma área, outro
ataque a população e mais três indígenas foram baleadas. A violência desses ataques, foi tamanha, que
algumas pessoas passaram a denominá-lo de “massacre de Caarapó”
(http://cimi.org.br/massacredecaarapo/cronologia/). Em Dourados, em março, após retomadas que
aconteceram nas proximidades do Tekoha 2 e Tekoha 3, o indígena Isael Reginaldo foi baleado durante
um ataque de fazendeiros contra o tekoha Ita Poty, na divisa dos municípios de Dourados e Itaporã (MS).
Infelizmente, esses são só dois exemplos da violência cotidiana enfrentada pela população Guarani e
Kaiowá.
80
O tekoha conta com uma área de 26 hectares, as famílias estão espalhadas
pelo terreno ocupado. Essa distância entre os barracos e o relativo espaço da área
permite que as famílias plantem algumas coisas, como rama, feijão e as vezes milho. É
comum ver próximos aos barracos dos moradores áreas cultivadas. A vice-liderança por
exemplo, além dos cultivos costumeiros, já citados, e de hortas, também cria patos e
galinhas. Além disso, ela e seu marido plantaram várias árvores frutíferas. As árvores
frutíferas, além das suas qualidades práticas como a produção de frutas e sombras para
as pessoas, podem ser pensadas, nesses contextos, como expressões simbólicas do
desejo de permanência no tekoha retomado. Micaelo (2014) ao estudar um
assentamento rural na Zona da Mata dedicou parte do seu trabalho para falar da
“importância das árvores enquanto elemento indissociável da posse da terra para os
habitantes de Arupema e a história das suas tensões na região” (2014, 167). As árvores
frutíferas são descritas como um atributo de autoridade por estabelecer uma relação
mais duradoura com o local, motivo pelo qual, muitos fazendeiros proibiam que os
trabalhadores rurais as plantassem nos seus locais de moradia, e acrescenta: “as árvores
de fruto ganham com efetividade um lugar específico nesta luta pela posse da terra que
se articula também com outros sentidos de uma identificação entre pessoa e o chão [...]”
(2014, 168).
81
Figura 9. Croqui 4: Tekoha 2, fevereiro de 2016. Representação elaborada a partir da pesquisa etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do
croqui: Marcia Soares.
82
A organização desse tekoha foi um dos elementos que me chamou atenção.
Distinto de outras áreas de retomada que conheci, no Tekoha 2 há um cadastro de
moradores, ele foi feito e era atualizado pela vice-liderança. Os barracos dos moradores
são numerados e há um regulamento, o qual foi escrito e, inclusive enviado para a Funai
e o MPF. Nesse regulamento constam as normas de convivência na área, a principal
delas refere-se a proibição de bebida alcoólica no tekoha. Ademais, no Tekoha 2,
também existe a figura dos conselheiros. Segundo a vice-liderança são 12 conselheiros
divididos por áreas: saúde, educação, criança e adolescente, mulheres, segurança e
agricultura.
Também é realizado no Tekoha 2 reuniões com os moradores, a cada 15
dias. Nessas reuniões, que as lideranças chamam de “reunião da comunidade”,
geralmente são discutidas as normas do tekoha, bem como informações sobre o
processo de estudo da terra e os principais problemas que eles enfrentam. Em conversa
com a ex-liderança de Caarapó91, atualmente morador e conselheiro de saúde no Tekoha
2, ele me contou que foi ele quem pediu para as reuniões acontecerem com maior
frequência:
Nós pedimos para reunião, reunião 15 em 15 dias né, conversar
com a comunidade, né. Conversei com a [vice-liderança], com
[liderança], aí nós tivemos reunião. Aí nós agendamos a cada
15 dias vai ter que ter reunião, conversar com o pessoal,
organizar. O que quer dizer organização, o pessoal tem que
entender, porque se eu falar organização eles não sabem, mas
tem que explicar o que quer dizer organização, né. Por isso que
eu falei lá, muitas vezes se fala, ‘vamos se organizar?’ Todo
mundo fala vamos, mas, você não sabe se ele está entendendo o
que ele está falando. Organização não é tão fácil, como se
organizar. Estava falando, nós somos equipe de 11 pessoas né,
da comissão, eu estava falando, para a [vice-liderança] esses
dias, estava aqui sentado, eu falei para ela: ‘vamos organizar
primeiro uma equipe, porque se a equipe não se organizar,
como que nós vamos organizar a comunidade. Tem que
organizar a equipe primeiro, para depois organizar a
comunidade. Como começamos, agora já teve primeira reunião,
domingo que passou né, esse domingo vai ter, outra vai ter de
novo, então vamos começar.
Esse tipo de organização é incomum nas áreas de retomadas indígenas. Por
outro lado, há uma extensa bibliografia, sobre a temática do mundo das ocupações sem-
terra, que descreve as organizações de acampamentos, como os do Movimento Sem
91 A ex-liderança de Caarapó e sua família são antigos moradores do Tekoha 1, como mencionado
anteriormente.
83
Terra (MST), situando os cadastros de moradores, a numeração de barracos e o
regulamento interno, com a proibição de bebidas e agressões dentro dos acampamentos
como uma das principais regras para gerir o cotidiano nesses espaços92.
As reuniões acontecem num barracão que foi construído especialmente para
ocasiões como essa. Segundo me informou a vice-liderança, o barracão foi construído
por iniciativa dela, quando ainda não era vice-liderança, e de outras mulheres do tekoha,
elas o ergueram em conjunto. O barracão é feito com madeiras e troncos de árvores, o
teto e suas laterais são cobertos com uma grande lona. Nas duas laterais estão dispostas
tábuas em cima de pedaços de troncos de árvores que servem como bancos para as
pessoas se sentarem nos dias de reuniões, além desses bancos o outro objeto que fica
dentro do barracão é uma mesa, também de madeira.
A reunião da comunidade
Em um domingo de abril de 2016, participei pela primeira vez da reunião
da comunidade, após o convite da vice-liderança, a quem já vinha mostrando meu
desejo de participar dessas reuniões há um tempo. Quando cheguei ao Tekoha 2 para a
reunião, ainda não tinha ninguém no barracão, mas, aos poucos algumas mulheres
foram chegando e a vice-liderança pediu para nós nos dirigirmos ao barracão. Seus
filhos levaram uma cadeira para ela se sentar e outra para mim. Nessa reunião, a maioria
das pessoas que participaram foram mulheres que vieram junto com seus filhos
pequenos. A presença masculina se restringia a liderança, ao marido da vice-liderança e
a ex-liderança de Caarapó. Como eu, mais dois mascateros (vendedores) que
comercializam no Tekoha 2, também foram convidado para participar dessa reunião (os
motivos exponho a seguir), a liderança, fez questão de agradecer a nossa presença, em
mais de uma ocasião.
A reunião foi conduzida pela liderança, o único que não se sentou, ficando
atrás de uma mesa, alocada mais ao fundo do barracão. Em cima da mesa tinha os
documentos que a liderança havia levado, dentro de uma pasta e que foram espalhados
pela mesa e uma garrafa de dois litros com água usada para preparar o tereré faziam a
composição final da mesa. Nessa reunião os principais temas tratados foram: as eleições
para prefeitos e vereadores de 2016, o fornecimento de energia elétrica ao Tekoha 2, o
cultivo de roças na área, as regras de participação nas reuniões e, como se aproximava o
92 Para mais informações consultar Sigaud, 2002, 2009; Macedo, 2005; Loera, 2006, 2014; Rosa, 2009.
84
dia 19 de abril, a maior parte da reunião foi para organizar a festa do dia do índio, para a
qual foi pedida contribuições, principalmente aos mascateros.
Figura 10. Dia de reunião no Tekoha 2. Foto: CORRADO, 2016.
A liderança começou a reunião falando a respeito do encontro que havia
participado na Aldeia Jaguapiru, onde estavam presentes políticos locais que buscavam
apoio para as eleições de 2016. Segundo a liderança esse é um assunto relevante para o
Tekoha 2 porque “uma retomada também é política, está na política”. Depois de algum
tempo transcorrida a reunião, ele voltou a falar do encontro com os políticos/candidatos
e disse, que nessa ocasião, pediu para que eles visitassem “acampamento por
acampamento, porque retomada faz parte da política”, era preciso que eles chegassem
ao acampamento e perguntassem como estavam, “ver nossa situação” e perguntar que
tipo de ajuda a ‘comunidade’ precisa e mais uma vez mencionou que “uma retomada
não está fora da política”. A ex-liderança de Caarapó, ainda complementou dizendo
que “todas as coisas são com política que se faz”. Com relação a esse assunto a vice-
liderança disse que não vendia seu voto e que era preciso que o candidato trouxesse uma
proposta, dizer “que propósito você tem para povos indígenas” e “ouvir nossos
propósitos e ver o que a gente precisa”, ela citou, por exemplo, que o tekoha precisava
de muita segurança, de uma vigilância 24 horas.
Boa parte dessa discussão aconteceu em guarani, a questão era se eles iam
apoiar os candidatos da reunião, da qual a liderança do Tekoha 2 participara, ou não. Por
isso, levantaram a necessidade dos candidatos conhecerem as áreas de retomadas, as
85
realidades de seus moradores e apresentarem proposta, não bastava eles visitarem
apenas as áreas de reserva, como é comum em época de eleições.93
Outro ponto da reunião foi a respeito do documento sobre o fornecimento de
energia elétrica. O documento apresentado pela a liderança, que também pediu para a
ex-liderança de Caarapó ler e dar sua opinião, era da agência de fornecimento de
energia. Esse assunto não tomou muito tempo e a maior parte dele foi dita pela liderança
em guarani, um dos poucos comentários ditos em português foi que a “energia faz parte
da saúde”.
Depois disso os temas abordados na reunião giraram entorno das questões
internas ao Tekoha 2. Nessa parte, a vice-liderança é quem tomou a frente da reunião.
Foram citados os nomes das pessoas que, pela segunda vez, não vieram à reunião; a
vice-liderança também apresenta reclamações de algumas famílias e acrescenta que
quem não comparecer a três reuniões seguidas terá que ir embora do tekoha. Outro
ponto mencionado foi sobre o que eles chamam de ‘lotes sujos’, as áreas que não estão
sendo cultivadas pelos seus moradores e estão com mato alto. A esse respeito, decidiu-
se que os moradores que não tem terra plantada, vão ter seu lote dado a outra família,
ficando apenas com o local da sua casa, pois, como a vice-liderança disse, “eles iriam
dar prioridade para quem plantar”. Ela ainda ressaltou que tudo que eles plantam dá
para ser vendido, porque eles estão próximos da cidade.
Por fim, o tema central da reunião era acerca da organização da festa de
comemoração do dia do índio e sobre a contribuição dos mascateros que, por venderem
no Tekoha 2, deveriam colaborar com três eventos ao ano. Nessa parte da conversa, que
também foi coordenada pela vice-liderança, ela dissera que “quem entrar vai pagar
tudo”. Nessa discussão foi levantada a questão de quais mascateros continuariam
liberados para vender no Tekoha 2, com a proposta, inclusive, de criar uma licença para
aqueles que conseguissem a permissão. Então a vice-liderança começou a fazer uma
lista dos mascateros que conheciam e vendiam para os moradores do tekoha, com a
ajuda dos outros participantes da reunião. Essa lista tinha duas finalidades: escolher a
contribuição de cada mascatero para a festa do dia do índio. O mascatero que não
ajuda, ou ajuda pouco, teria que contribuir com uma maior parte. A segunda função da
lista era decidir quais mascateros continuariam tendo permissão para vender na área.
Assim, os nomes dos mascateros foram sendo citados e aqueles que sempre ajudavam e
93 As falas durante a reunião se dividiram entre o português e o guarani. O que não consegui entender
durante a reunião perguntei para a vice-liderança ao final.
86
vendiam bons produtos, recebiam um ‘OK’, aqueles que nunca ajudaram, ou que foram
acusados de levar produtos de má qualidade, ou estragados, seriam suspensos.
Com a reunião chegando ao fim, a vice-liderança colocou um caderno em
cima da mesa e pediu para que todos que participaram da reunião assinassem a lista de
prresença, feita por ela numa folha de caderno.
A descrição dessa reunião, além de mostrar uma das formas de organização
interna das áreas de retomadas, nos diz acerca das relações, trocas e arranjos
estabelecidos. Por exemplo, as pessoas que mais falaram na reunião foram as
lideranças, mas a esse respeito, um ponto interessante a ser ressaltado é que a fala da
liderança tratava sobre questões externas do Tekoha 2, como o encontro com candidatos
na aldeia Jaguapiru e a questão da carta sobre a energia elétrica, enquanto todas as
questões relativas as regras de condutas no tekoha, as regras das reuniões, bem como
toda a discussão sobre os mascateros foram conduzidas pela vice-liderança. Isso pode
nos dizer sobre o papel que cada liderança assume na área. A liderança do Tekoha 2 é
conhecido pelas pessoas de fora e em nossas conversas também percebi que era ele
quem ia a Funai fazer algum pedido ou reivindicação, era ele também, como
mencionado, que estava cuidando do pedido da energia elétrica para a retomada. Por
outro lado, a vice-liderança se debruçava sobre as questões internas da área, a própria
liderança, me dizia que sobre os assuntos de regulamento do Tekoha 2 eu poderia
perguntar para sua vice, porque era ela quem cuidava disso.
A ex-liderança de Caarapó também participou mais ativamente da reunião.
Ele se sentou próximo da liderança do Tekoha 2 e a carta da agência de energia elétrica
foi compartilhada apenas com ele. Embora a ex-liderança de Caarapó esteja a pouco
tempo no Tekoha 2, ele já tem uma conduta de destaque na área e, como mencionado
anteriormente, foi ele quem sugeriu que essas reuniões acontecessem com mais
frequência.
A questão dos mascateros é um caso interessante para perceber como essas
relações não são pautadas apenas pela compra e venda como, num primeiro momento,
podem parecer, mas operam também pelo princípio da dádiva, de dar, receber e retribuir
(Mauss, 1925). O mascateiro que não ajuda é aquele que não deve ter a licença para
vender no Tekoha 2, ou seja, é aquele que deixa de participar da troca, enquanto que
aquele que ajuda e contribuí nos dias de festas, mantem sua relação com a comunidade,
que por sua vez retribuí mantendo a permissão de comercializar na área e comprando
seus produtos.
87
A fofoca também foi um elemento presente. A partir das fofocas que
circulam é possível aprender como se organizavam as relações nestes espaços. Em
momentos de conflito e disputa, tanto a fofoca como “a feitiçaria é um aspecto central
na vida dos grupos Guarani, e as acusações constituem um aspecto fundamental no
estabelecimento dos conflitos – e das relações em geral - entre as pessoas” (BARBOSA
da SILVA, 2007: 56). O cotidiano Kaiowá e Guarani, envolve disputas, acusações,
fofoca e feitiçaria, mas antes de serem elementos desagregadores, eles fazem parte de
uma forma específica de se relacionar com os espaços e com as pessoas, bem como de
se fazer política. Através das fofocas, informações vão circulando, tornando-se um
mecanismo da verdade que pode tanto agregar como excluir coisas, pessoas e relações.
A História da retomada
A retomada do Tekoha 2 aconteceu no final do mês de maio de 2011, numa
manhã de domingo. A antiga liderança do tekoha foi quem organizou a retomada. Nas
palavras da minha interlocutora, a antiga liderança organizou a retomada, chamando
principalmente conhecidos da aldeia Bororo, “então eles foram convidando as famílias
para irem morar no acampamento para reforçar a retomada”. A vice-liderança e sua
família foi uma das convidadas.
Essa retomada foi motivada principalmente por duas questões: a primeira
delas é por causa da falta de terras e da superpopulação na Reserva de Dourados, sendo
que muitas famílias, contam com espaços muito restritos de moradia e sem lugar para
plantar. Essas famílias são principalmente, aquelas que chegaram após os anos 1980 e
tiveram dificuldade para se assentar nesses locais (CRESPE, 2015). Sobre essa questão
Crespe escreveu:
“Se acomodar em outras áreas, onde já viviam outros grupos, não se
trata de uma tarefa fácil, ainda mais quando levado em consideração a
falta de espaço dentro das reservas. Assim, depois da expulsão é
comum que as famílias fiquem passando de reserva em reserva até se
“lembrarem” de voltar ao tekoha.
Quanto ao [Tekoha 2], chama atenção a não acomodação do grupo à
situação de reserva. Os moradores que vem para o [Tekoha 2] não são
estabelecidos dentro dela. A tentativa das pessoas do local é produzir
condições de vida melhores daquelas encontradas dentro da reserva”
(2015: 246).
A segunda questão, se refere a diminuição do perímetro da Reserva de
Dourados quando está foi criada. Como foi pontuado anteriormente, das reservas
criadas pelo SPI entre 1915 a 1928, apenas uma não teve seus limites diminuídos. No
88
caso da Reserva de Dourados a área prevista para sua criação era de 3.600 hectares, mas
de fato, foram demarcados 3.539 hectares, ou seja, 61 hectares a menos. São esses
hectares subtraídos no ato da demarcação da reserva, que, tanto o Tekoha 2, como o
Tekoha 3 reivindicam. Somam a essa reivindicação as informações dos indígenas de
parentes e conhecidos que viveram nessa região, dos quais foram sendo expulsos e
empurrados para reserva com as chegadas das fazendas.
Numa reportagem que saiu na época da ocupação destaco dois trechos que
tocam nessas questões:
O grupo justifica a ocupação alegando que as terras são indígenas, já
que os antepassados guaranis teriam residido no local. Eles citam o
indígena guarani Sapriano Gonçalves, avô de uma das lideranças. “Ele
era dono destas terras. Arrendou para um branco plantar, que por sua
vez vendeu as terras, sem que fossem dele”, explica. (Jornal o
Progresso, 06 de jun. de 2011)
E logo abaixo:
Segundo o cacique, a ampliação da Reserva de Dourados é necessária,
porque as famílias indígenas estão “sufocadas” nas aldeias. O fato,
segundo ele, contribui para que a população local sofra com a miséria
e violência que tomaram conta das aldeias. (idem)94
A retomada chegou a contar com o apoio de 120 famílias no início, como
relatou meus interlocutores. Mas, após o primeiro momento da ocupação,
permaneceram no local quatro famílias e só depois foram chegando novas famílias ao
tekoha. Essa fase é narrada pela vice-liderança como um momento de muita tensão. Ela
conta que eles montaram os barracos próximos a estrada, e que naquela época o Tekoha
2 não tinha a configuração que tem hoje – as residências estão espalhadas pelo terreno
ocupado e muitas famílias mantêm hortas próximas aos seus barracos. Assim, no início
do acampamento morava todo mundo junto, “um barraco colado no outro”. O motivo
principal dessa configuração era por causa do medo de represália do proprietário da
terra, dessa forma, os moradores ficaram próximos para garantir a segurança do grupo.
Sabia falar bem, sabia das coisas
Nas narrativas das atuais lideranças do Tekoha 2, a antiga liderança passou a
apresentar problemas. A antiga liderança era acusada de alcoolismo e de não controlar
a entrada de bebida alcoólica na área e havia reclamações do excesso de sua autoridade.
Segundo minha interlocutora, esses foram os motivos, que após morar durante quatro
94 Fontes: http://www.progresso.com.br/caderno-a/rural/indios-das-etnias-caiuas-e-guaranis-ocupam-
fazenda-em-dourados
89
meses no Tekoha 2 a fizeram ir embora, voltando com sua família para a Aldeia Bororo.
Porém, ela contou que, transcorrido um tempo, a antiga liderança a procurou e pediu
que ela e sua família voltasse a morar no Tekoha 2. Ela voltou com a condição de que
não moraria mais “perto de todo mundo”, que iria “escolher um canto para ela” e
acrescentou que quando se mudou havia transito de jagunços armados pela região, mas
que ela não tinha medo e que continuou no lugar atual. Ela ainda relata que foi só após
montar o barraco em outro local que as outras famílias começaram a se espalhar pela
área.
As indisposições com a antiga liderança reiniciam quando minha
interlocutora recebe a ajuda de um antigo professor e funcionário da Funai. Ele levava
mudas de plantas e ela as distribuía com os outros moradores do tekoha. Segundo
descreveu, a antiga liderança começou a se incomodar e, certa vez, ao ver o funcionário
sozinho falou que não era para ele levar mudas para ela, mas para a liderança. As
tensões entre os dois foram agravando a relação entre moradores e a antiga liderança,
sempre somadas a alguma nova denúncia. Uma delas, relatada pela liderança atual,
acusava a antiga liderança de ter recebido dinheiro e uma camionete num suposto
acordo com os fazendeiros em troca de sair da área. Para a liderança atual essa não era a
atitude que correspondia a um “Pai de Comunidade”95. Meu interlocutor também me
contou sobre o episódio do dia em que a antiga liderança chegou bêbado em sua casa
dizendo que era para ele e sua esposa, pegarem suas coisas e irem para o Tekoha 3.
Nessa ocasião, a liderança atual disse que passou um sermão, falou sobre o estado dele,
se ele achava certo um líder andar daquele jeito.
O desfecho dessas desavenças se deu quando a atual vice-liderança pediu
para ele ser a liderança do Tekoha 2, pois ele era “um homem correto e que não bebia”.
Meu interlocutor disse que aceitaria se as pessoas o vissem como um “Pai de
Comunidade”. Em reunião com a comunidade do Tekoha 2 foi produzido um
documento onde descreviam as denúncias da antiga liderança e o comunicado que a
partir daquele dia as novas lideranças assumiam as responsabilidades do Tekoha 2.
Cópias desse documento foram posteriormente entregue a Funai e ao MPF pela a
liderança atual.
Na narrativa dos meus interlocutores, percebe-se, como a vice-liderança
teve um papel essencial na saída da antiga liderança, estando presente, inclusive, nas
95 Pai de Comunidade era o termo que muitas vezes a liderança do Tekoha 2 usava para se referir a seu
papel como liderança. Não ouvi outras pessoas usarem essa expressão, além dele.
90
articulações da escolha por uma nova liderança para o tekoha. A liderança do Tekoha 2,
aliás, se referia a vice-liderança como uma defensora das mulheres e sobre o seu
trabalho de proteção as crianças no tekoha96. Na época da pesquisa, era a vice-liderança
quem registrava e mantinha atualizados o cadastro de moradores da área.
Segundo minha interlocutora, ela havia indicado o nome da liderança atual,
porque ele não bebia e “ele sabia falar bem, sabia das coisas”. Falar bem não é um
atributo nada banal para uma liderança, pois “saber falar, no sentido de proferir palavras
edificantes para a boa convivência, é um atributo imprescindível para a sociabilidade
Kaiowá” (PEREIRA, 2004: 100)97. Ela ainda disse que nunca pensou em ser a vice-
liderança do Tekoha 2 e não esperava que aquele dia o pessoal a aceitasse. Quando
perguntei a ela sobre onde tinha adquirido conhecimento para lidar com as atribulações
de uma área de retomada, ela me contou sobre um dos seus irmãos, que mora no tekoha
Pueblito Kuê, no município de Iguatemi – área retomada desde 2008 – foi ele quem a
orientou em alguns momentos, e acrescentou que também aprendeu vivendo na área de
retomada.
Outro evento no qual a vice-liderança teve papel importante foi quando
chegou um pedido de reintegração de posse da área. Quando isso aconteceu, a liderança
do tekoha já havia mudado. No entanto, na ordem de reintegração de posse constava o
nome da antiga liderança, então ela disse: “vocês levam esse pedido pra ele, ele e o
pessoal dele que tem que sair daqui, porque o papel veio no nome dele, agora a
liderança daqui sou eu e [o pai de comunidade], então ninguém vai sair daqui, quem
tem que sair é ele”. Na fala dela, sua astúcia em perceber que o pedido de reintegração
de posse não estava no nome das lideranças atuais, impediu que ocorresse um despejo
no Tekoha 2, pois a ordem não pode ser entregue.
Por outro lado, a mudança de liderança gerou um clima de instabilidade no
Tekoha 2. Além disso, não foram todas as famílias que apoiaram as lideranças atuais,
ficando, por sua vez, do lado da antiga liderança. Como essas famílias permaneceram no
tekoha, elas demandam bastante habilidade das novas lideranças. Essas famílias são
geralmente acusadas também de não estarem seguindo as regras do Tekoha 2.
96 A vice-liderança é conhecida por alguns indígenas e por alguns representantes do estado, como uma
defensora dos direitos das mulheres. 97 Como visto, saber falar é uma das características principais do líder indígena (Clastres, 1962).
Trabalhos recentes realizados em outros contextos etnográficos tendo como lócus outros coletivos
indígenas também vêm destacando como o poder oratório e a capacidade de proferir belos discursos são
atributos centrais de uma boa liderança (ver Farage, 1998; Pichinao Huenchuleo, 2012; Guerreiro Júnior,
2015).
91
A esse respeito o episódio de troca de liderança é central, para se
compreender algumas particularidades do Tekoha 2 em relação ao Tekoha 1, pois se a
segunda é apontada por ser uma área relativamente estável, o mesmo não acontece com
a primeira, tendo uma rotatividade de moradores. Mais que a localização do Tekoha 2,
as desavenças com a antiga liderança contribuíram para uma maior circulação de
moradores.98
Ainda, ao contrário do Tekoha 1, as lideranças do Tekoha 2 não estão
amparadas por uma parentela extensa, mas sim por algumas alianças políticas. Essa
característica pode refletir na instabilidade das lideranças e nas divergências dentro da
área, pois “o acampamento só existe enquanto unidade estável se estão associadas em
parentesco as famílias que os compõem. Quanto mais distantes em grau os parentes
efetivos ou em potencial, maior o risco de facção” (MORAIS, 2016: 145). A liderança
atual, embora reúna algumas qualidades de um hi’u como saber falar e proferir
conselhos, não conseguiu reunir a maior parte da sua parentela, ele mesmo não tem
nenhum filho vivendo no Tekoha 2. Além disso, no contexto atual outras, qualidades
estão sendo exigidas da liderança; o jeito calmo e respeitoso do meu interlocutor, que
está sempre disposto a conversar nas situações de conflitos, qualidades essas muito
apreciadas para ser uma liderança, no cotidiano do Tekoha 2 se confundia com falta de
pulso. Por outro lado, a vice-liderança também não conseguiu agregar sua parentela na
área e ela é acusada de ser muito autoritária, traço esse pouco tolerado pelos Kaiowá e
Guarani99. Essa situação, por sua vez, abalou a vice-liderança que ao final do meu
campo já apresentava sinais de desgastes.
Como a liderança do Tekoha 1 me falava, “é mais difícil corrigir quem não
é aparentado”, algo perceptível no Tekoha 2, pois as desentendimentos com a antiga
liderança e o grande número de moradores sem laços de parentesco na retomada
impunham dificuldades as lideranças que lidavam com uma gama de problemas:
alcoolismo, casos de agressões, desemprego, falta de água e energia elétrica, fora as
questões relativas a retomada da terra, como a possiblidade de uma violência vinda do
proprietário da terra e o medo de uma reintegração de posse. Na tentativa de lidar com
essa diversidade de questões, um conjunto de regras e as reuniões da comunidade foram
98 Em conversa com o indigenista especializado da Funai de Dourados, ele também apontou os
desentendimentos pela liderança como um dos fatores da instabilidade dos moradores na área. 99 Clastres (1962) pontuou que a propriedade mais notável de um chefe indígena era a obliteração da sua
autoridade. Trabalhos recentes sobre os Kaiowá e Guarani mencionam medidas para evitar os excessos da
liderança (Ver Pereira, 2004; Benites 2012; Pimentel 2012, Morais, 2016).
92
estabelecidos. A liderança me contava que não aceitava bebida no tekoha e nem
permitia roubos e, quando sabia de alguma coisa ele chamava a polícia e dizia:
“estamos fechados com a polícia civil e ambiental aqui, no começo o pessoal também
estranhou esse modo, mas era necessário para organizar o Tekoha 2”.
Contudo, não conseguir agregar a parentela reflete também na dificuldade
em manter a liderança, essa pode ser disputada por uma outra pessoa que reúne
qualidades suficientes para isso. Nesse sentido, nas últimas semanas de campo, a vice-
liderança passou a reclamar muito da ex-liderança de Caarapó e na sua intervenção nas
decisões tomadas para o tekoha. O status desse morador dentro do Tekoha 2 tinha
crescido tanto que passou ameaçar, principalmente, a vice-liderança.
A atuação da família desse morador nas retomadas e a experiência dele
como ex-liderança da Reverva de Caarapó lhe conferem certo prestígio. Ele, por sua
vez, voltou a ter um status, tanto no Tekoha 1, como no Tekoha 2, que perdera após
deixar a liderança em Caarapó. Ele e a sua esposa também conseguiram manter sua
parentela unida – todos os filhos e filhas do casal moram no Tekoha 2, bem como seus
genros, uma qualidade distintiva de um hi’u (cabeça de parentela). Todos esses aspectos
o qualificam como uma pessoa que tem experiência e cujo conhecimento pode ser
aproveitado. A liderança do Tekoha 2, por exemplo, sobre a vinda dele, comentou que
ele veio reforçar a luta do tekoha. Mesmo com pouco tempo no tekoha, esse morador já
tinha estabelecido laços importantes com as lideranças e inclusive já era conselheiro da
saúde no Tekoha 2. Quando perguntei porque ele havia sido escolhido para essa função
ele respondeu:
eu já trabalhava em Caarapó como presidente do conselho de
saúde local. Da saúde a gente conhece um pouco. Pergunta
como é que é, a gente foi contanto a história, o povo sabe
conhece né. Eu trabalhei oito anos como conselho da saúde
local, por isso que chamaram.
A ex-liderança de Caarapó e sua família estavam estabelecidos na área e sua
roça, na qual plantava milho, banana, cana, abobrinha, maxixe e mandioca, já era
motivo de orgulho. Outro exemplo da sua importância no Tekoha 2 se reflete nas
reuniões da comunidade, que passaram a ser a cada quinze dias após suas sugestões,
como aludido anteriormente. Percebia que esse morador acabará assumindo um papel de
conselheiro das lideranças, algo que já havia acontecido no Tekoha 1, pois as duas
lideranças passaram o consulta-lo para a tomada de decisões. O status que ele passou a
ocupar dentro do Tekoha 2 era expressiva, status esse que não passou desapercebido
93
pela vice-liderança que se viu ameaçada, pois esse morador não é apenas um bom apoio
na luta, ser um cabeça de parentela, somada as suas experiências o qualificam também
como uma potencial liderança. E diferentemente da liderança do Tekoha 1 que reunira
grande parte da sua parentela no tekoha, o mesmo não acontecia com as lideranças do
Tekoha 2.
***
Nesse capítulo percorremos as narrativas de pessoas que se entrelaçam com
as histórias dos Tekoha 1 e Tekoha 2. Ademais de olhar para organização social das
áreas de retomada, apresentamos o cotidiano das lideranças e as suas estratégias, e das
suas famílias, na luta pelos seus espaços de vida e pelo espaço de seus mortos,
resistindo ao avanço da cidade sobre seus territórios tradicionais. Se nesse capítulo
falamos dos efeitos das áreas de retomada na vida das pessoas, no próximo capítulo
vamos em busca dos sentidos que essas áreas têm para os Kaiowá e Guarani, onde terra
e mobilidade nos dizem a respeito de um jeito de ser e de estar no mundo.
94
Capítulo III
“Uma retomada é uma criança pequena”: Os sentidos dos
acampamentos para os Kaiowá e Guarani.
“... não é que a terra pertença aos
indígenas, são os indígenas que pertencem
a terra. Pertencer à terra em vez de ser seu
proprietário é o que caracteriza um
indígena. Está é a diferença que, à primeira
vista, aos nossos olhos parece
incompreensível”
(Dom Roque Paloschi, presidente do CIMI)
Esse capítulo será dedicado a pensar sobre os sentidos que têm as áreas de
retomada para os Kaiowá e Guarani. Nessa perspectiva dois temas se tornaram
essenciais: os sentidos de terra e o tema da mobilidade. Dessa forma, o objetivo desse
capítulo será refletir sobre as áreas de retomadas como uma possibilidade de retorno ao
tekoha, que se soma a possibilita de fortalecimento das mobilidades tradicionais
Guarani e Kaiowá, bem como uma das maneiras desses povos lidarem com o excesso de
mistura (com brancos e índios de outras etnias) apontada pelos Kaiowá como um dos
maiores problemas dentro das reservas e um dos fatores que favorece a desarticulação
da parentela.
***
Um dia caminhando com a liderança Tekoha 1 chegamos ao barraco de sua
sobrinha, onde vivia com seu marido e filhos, logo as crianças se aproximaram, curiosas
com a minha presença. Nesse dia eu andava com a máquina fotográfica na mão para
tirar as fotos dos barracos e das roças que a liderança estava me mostrando e aproveitei
para tirar algumas fotos das crianças. A liderança, ao ver meu interesse chamou as
crianças para que eu tirasse uma foto delas juntas e pedia para que elas sorrirem para
mim. Quando o pai das crianças chegou, perguntei se não tinha problema em tirar as
fotos, ele respondeu dizendo que seria bom para elas, porque assim, elas poderiam ver
sua luta pelo tekoha e completou dizendo que essa luta era para garantir o futuro das
crianças.
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Figura 11. Ao futuro das crianças. Foto: CORRADO, 2016.
Uma vez a vice-liderança do Tekoha 2 me disse: “uma retomada é uma
criança pequena” e, portanto, ela tem que ser cuidada como tal. A sombra das crianças
se projeta na terra, a mesma terra onde se apoiam seus pés descalços e que representa
seu futuro e que compartilha no presente os mesmos cuidados proferidos às crianças
pequenas.
3.1 A terra como corpo
Em uma das conversas que tivera com a vice-liderança do Tekoha 2, pedia
para ela me explicar por que os Kaiowá e Guarani começaram a fazer retomada, ela por
sua vez dissera que no início também não sabia: “quando falava de retomada nem eu
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não sabia, né”. E posteriormente complementa: “mas já tinha os outros que já
reivindicavam... o tekoha né, então, só que eu não entendia”. Porém, ao se mudar para
o Tekoha 2, embora tenha vivido em outras áreas de retomadas, é que ela passou a
entender o porquê, o motivo. E após essa explicação, ela segue com o seu entendimento
sobre o processo de retomada:
Mas na verdade, retomada de volta o tekoha, porque, como eu
disse anterior, semana retrasada para o pessoal, é que as
aldeias tão ficando pequenas, as aldeias ficam pequenas,
aumenta família, e o espaço está sendo bem apertado lá dentro
né, e sendo que a gente tem o nosso tekoha. Só que está ocupado
pelos fazendeiros, plantava soja, plantava milho né. Então a
gente... é .... como diz... a gente pensou na maneira da gente
querer de volta a nossa terra, porque, se nós não fizéssemos
isso, ou seja, aqui ou em qualquer lugar, que foi retomada, se a
gente não fizer isso, a gente nunca mais vai ter a terra de volta,
porque os fazendeiros sempre né, plantando, colhendo né,
ficando rico em cima da terra e nunca disse: não eu vou
devolver para os povos indígenas, né, nunca disse, ao contrário
né, esse lugar é meu, comprei, sempre eles falam isso aí, né.
Então a única forma de querer de volta a nossa terra é
entrando, né, entrando de volta, ocupando.
E quando inquirida sobre se essa era melhor forma para recuperar as terras,
minha interlocutora fez uma analogia aos tekoha com a de um objeto emprestado, que
quando não é devolvido, o seu legítimo dono tem que ir atrás para poder tê-lo de volta:
Seria essa mesma, porque a gente esperou tantos anos e nenhum
né, chegou e falou: toma aqui a terra é de vocês. Não disse e
nem vai dizer. Então foi dessa forma, a gente entra para ocupar
de volta, para avisar e dizer para eles que a gente está voltando
e a gente quer de volta o que era o nosso tekoha, né. Então, e
dessa forma funcionou, em cada lugar, em cada terra, aqueles
que falam invadiu, isso e aquilo, mas na verdade, não é invasão,
é apenas né, a mesma coisa que você for emprestar um objeto, a
pessoa te empresta você vai usar... se você não devolver,
esquecer de devolver, uma hora o dono vai vir e vai levar de
volta e tem todo esse direito, porque a pessoa é dona do objeto.
Então é dessa forma a terra também, então já ocuparam, já
fizeram e outra nós, é, ocupamos mais as terras porque estão
acabando com as plantas, as árvores né, as terras estão bem
sugadas já. Então nós índios, povos indígenas, a gente nunca
precisa desmatar árvore para plantar, para ter uma roça, nunca
precisou.
Na fala da vice-liderança do Tekoha 2, ela comprara a terra a um objeto
emprestado. O problema maior seria não o fato de outros terem pegado “emprestadas”
as terras dos indígenas, mas sim não as terem devolvido.
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Autoras como Strathern (2009) e Borges (2014) pontuaram, em contextos
etnográficos distintos (melanesiano e brasileiro, respectivamente), como as
reivindicações indígenas aparecem na contramão da noção de propriedade privada
prevalecentes na nossa sociedade. Chamam a atenção para outros conceitos, outras
formas de pensar e agir referente à terra, que era o que minha interlocutora tentava me
traduzir ao dar continuidade a sua fala:
Somente né, não tem um pé de árvore, algum lugar que tem,
outros lugares que não tem né. Então, como diz o outro, é um
pouco para a gente defender também as árvores que existem
ainda, porque se depender deles [os fazendeiros] acaba com
tudo, e a gente sempre preservou. É antes, no passado tinha as
plantas, eu lembro do meu vô né, que eu era menininha, eu
lembro como se fosse num sonho, meu vô tinha uma plantação
de mandioca, milho e de melancia, que se você olhava assim era
tudo mato, eles não derrubavam nada, ali no meio eles
limpavam, eles plantavam o que tinha para plantar ali, quando
você vê assim se vê é somente mato, mas se você entrar de
baixo, você acha tanta planta e dava cada planta nesses meios
de mato. Eu lembro, a roça do meu vô, quando ele falou para
nós que era para buscar melancia, nós tínhamos acabado de
chegar né, aí ele falou: se vocês não tiverem muito cansados
vão lá e arranca melancia, que a gente estava com vontade, aí
nós fomos lá, eu e as minhas tias, fomos lá. Quando eu cheguei
lá, eu olhei assim, você, olha árvore fechada, mas as plantas
coisa mais linda no meio. Então, nossos antepassados não
derrubavam as árvores, não precisavam destruir como eles
destroem agora para poder plantar soja, isso, isso aquilo, então
não precisava e hoje é tudo destruído.
Nesse sentido, as falas da minha interlocutora ainda apresentam duas
considerações importantes. A primeira, sobre o processo de ocupação das terras que
desconsiderou a presença indígena na região, ou seja, os antigos tekoha passaram a ser
ocupados pelos fazendeiros, que legitimam seu direito a terra através do ato de compra.
Em a Queda do Céu, Davi Kopenawa faz uma crítica semelhante ao dizer:
Seus antepassados não descobriram esta terra, não! Chegaram como
visitantes! Porém, logo depois de terem chegado, não pararam mais de
devastá-la e de retalhar sua imagem em pedaços, que começaram a
repartir entre si. Alegaram que estava vazia para se apoderarem dela, e
a mesma mentira persiste até hoje. Esta terra nunca foi vazia no
passado e não está vazia agora! (2015: 253)
A segunda consideração é a terra, definida como propriedade e como
produtora de riqueza, contraposta ao que minha interlocutora chamou de nossa terra, ou
como os Kaiowá e Guarani preferem, o tekoha. É justamente sobre as concepções e os
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sentidos de terra, descortinados a mim pelos Kaiowá e Guarani, que pretendo me
debruçar agora.
Chaguri (2016) no seu artigo intitulado “A terra como ponto de vista”
também alerta para as diferentes noções de terra, ou seja, o que é terra para o grande
proprietário, não é percebida da mesma maneira pelo camponês e pelo trabalhador rural,
esses últimos, percebem a terra por outros ângulos. Por isso, a autora defende a
necessidade de promover um alargamento das definições sociais, simbólicas e políticas
sobre terra.
A retomada, é para meus interlocutores, tanto a volta quanto a defesa e
proteção dessa terra que foi espoliada no passado e que vem sofrendo com a
monocultura. Esse argumento, aliás, é recorrente entre os Guarani e Kaiowá. Por
exemplo, como nos Aty Guasu, os ouvi defendendo a importância de retomarem seu
tekoha, porque a terra estava doente, não havia mais árvores, os rios estavam poluídos e
apenas restavam pastos e a plantação de monoculturas. A terra precisava ser cuidada e
tratada para que ela voltasse a ficar forte. E por sua vez, isso não beneficiaria apenas os
Guarani e Kaiowá, mas os não indígenas também, porque quando a terra fica doente, ela
pode causar o fim do mundo. Os kaiowá Anastacio Peralta e Eliseu mencionaram,
respectivamente, durante a IV Sessão de Audiência – Violação de direitos Indígenas:
“nós indígenas não somos problemas somos solução”, pois podem “ensinar o bom
viver” e “lutando pelas nossas terras, estamos lutando pela vida”.
Pimentel (2012), ao analisar o xamanismo, como uma das partes
constitutivas do que chamou teoria Kaiowá da política, também observou a relação
entre o discurso pela a retomada das terras somada ao discurso ambiental, assinalando
que a volta ao tekoha também é uma questão ambiental presente no discurso profético
dos ñanderu e ñandesy. O antropólogo ainda aponta que “há uma relação direta entre a
luta pela a terra, o xamanismo e a política” (2012: 212), sendo que no discurso profético
a natureza aparece como aliada da luta pela terra:
... o discurso profético sobre a recuperação das terras tradicionais
adquire feições ecológicas, fala frequentemente das consequências
desastrosas das alterações ambientais geradas pela ação dos Karai, por
um lado, ao mesmo tempo em que exalta a recuperação do meio
ambiente - dos poderes e forças relacionadas aos xamãs,
consequentemente - que advirá com a recuperação dos tekoha. (2012:
217)
Outro profetismo que une o direito pela terra ao discurso ambiental, se
tornou famoso nas palavras de Davi Kopenawa. Em A queda do Céu o xamã avisa ao
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povo da mercadoria que a busca pelo ouro e a destruição da floresta acarretará a morte
dos xamãs e quando todos esses desaparecerem “a terra e o céu vão despencar no caos”
(2015: 491), pois são eles, através dos xapiri (espíritos da floresta) e das suas rezas que
sustentam o céu para que este não caia. Os Kaiowá e Guarani também alertam para um
fim do mundo que está próximo, caso não mudemos nossas práticas predatórias que
colocam em risco a estabilidade da terra, através da destruição da floresta e rios,
assolados pela mineração e pela monocultura100. Para os Kaiowá e Guarani é necessário
que seus tekoha sejam devolvidos para que dessa forma eles voltem a cuidar da terra
para que essa se torne sã novamente e é assim que “lutando pelas nossas terras,
estamos lutando pela vida”.
Ao longo da pesquisa passou a me chamar muito atenção uma gramática do
cuidado acionada para falar da terra. Em diversos momentos, meus interlocutores me
descreviam uma terra como se fosse uma pessoa, ‘pode ficar doente’, ‘triste’ e,
principalmente, ‘precisa ser cuidada’. Sobre o cuidado entre os Mbya, Adriana Testa
(2014) menciona que assim como criam sujeitos e relações, os lugares também são
criados e por isso precisam ser sempre cuidados. Em outra passagem ao relatar os
cuidados com o umbigo da criança e com a placenta, que é enterrada na terra onde esta
nasceu, Testa, através de explicações de um rezador, escreveu:
A terra, além de ter dono (yvyja), também é um corpo, constituído por
carne (barro) e sistema circulatório (cursos d’água, principalmente os
subterrâneos). Então, o enterro da placenta também colocaria em
relação dois corpos: o da criança e o da terra (2014, 257).
A liderança do Tekoha 1, ao me explicar a importância do tekoha, destacou
que a terra é “a mesma coisa a gente”, por isso ela também “fica fraca” se não cuidar
dela corretamente. Contudo, a liderança, ao falar do tekoha disse que ele é “tipo de pai e
mãe” e complementou ao apontar que a “terra cuida do povo, porque dá alimentação,
se planta”. Assim, na explicação do meu interlocutor a terra não é apenas cuidada, ela
também cuida. Cuidar e ser cuidado são condições plausíveis, justamente se pensarmos
o corpo humano e a terra como dois tipos de corpos que estão em relação. E, é nesse
sentindo, que o rezador destaca a importância de enterrar a placenta na terra, pois “a
placenta da criança vai alimentar a terra que por sua vez, também vai produzir (ou
permitir a produção de) alimentos para a criança” (TESTA, 2014: 257).
Como descreveu Strathern (2009), para o contexto melanésio, a terra cria as
pessoas e tudo o que elas produzem (extensão análoga a criação). Existe uma distinção
100 Sobre as profecias Guarani de catástrofes (cataclismologia) ver Nimuendaju, 1987.
100
entre terra estática, o que é intangível e a terra móvel, que é o que cresce nela: “existe
uma distinção, então entre a terra e as extensões, entre terra como criativa e extensões
como criações” (2009: 27). As criações da terra são consumíveis e transferíveis,
enquanto que a própria terra não. Essas distinções trazem um duplo sentido de
pertencimento: a ideia das pessoas possuindo a terra, ou seja, como fonte de recurso e
riqueza, e por outro lado a ideia da terra possuindo as pessoas, vista como a fonte da
vida.
Pereira, no tocante a terra, a descreveu como tendo o sentido, para os
Kaiowá, “como algo dinâmico que, semelhante aos homens e a formação social, nasce,
vive e morre” (2004, 250). Outro ponto levantado pelo antropólogo é sobre as causas de
infortúnios da terra que também teria correspondência entre os homens: “os Kaiowá
apresentam firme convicção de que os fatores que abalam a estabilidade da terra são de
natureza semelhante àqueles responsáveis pela desarticulação das formas societárias
entre os homens” (2004, 249). Dito isso, a terra e o homem teriam uma relação de
retroalimentação, relação essa que sempre implica cuidado.
No trabalho de Meliá, Grünberg e Grünberg (1976), ao escreverem sobre os
Paí – Tavyterã do Paraguai, assinalam o sentido da terra para este grupo em oposição a
propriedade privada, pois, “la tierra, igual como la gente, el agua, mbaraka, takuapu y
otros objetos rituales no se pueden comprar ni vender (no es mercancia)” (1976, 212).
E, a respeito do sentido de terra para esse povo, eles ainda escreveram:
La tierra es un bien común y el medio de producción principal,
entrega a los hombres por el Dios- Creador para el uso conforme a las
leyes divinas. Por eso, igual como el agua, los Paí rehusanen principio
comprar tierra, porque no puede ser privatizada. Sólo Dios posee la
tierra: el cultivo de la tierra y el cuidado de los cultivos es lo mismo
que criar niños. Comprar tierras, por consiguiente, sería lo mismo que
comprar al hombre, lo que significaría que ellos perderían el concepto
moral de seres humanos y en consecuencia la trascendental
determinación de ser hombre. Tierra y cuerpo humano es lo mismo:
porque los cuerpos se convierten en tierra después de la salida del
alma y asi ‘somos nosotros la tierra, nuestro antepasados y nuestros
hijos al mismo tiempo’. Como el cuerpo tiene pelo, la tierra tiene
árboles (yvyrague). No se debe alterar el equilibrio ecológico para no
enfermar a la tierra; así consideran el desmonte en grandes
extensiones para plantar pastos para ganadería como algo irracional
(omoperõmbañandeyvy). Observan y comentan problemas de erosión
de agua y viento (yvyeve) como indicios de la destrucción inminente
del mundo (1976, 204)101.
101Grifos meus.
101
Nessa passagem os autores afirmam que a terra não é como corpo, mas que
são ambos a mesma coisa, que o corpo se transformaria em terra depois da saída da
alma. Nas áreas de retomadas, um dos discursos muito presentes entre meus
interlocutores é a relação da terra com seus mortos, concretizada com a presença dos
cemitérios, ou seja, a relevância de viver num território onde estão enterrados seus
antepassados. Borges (2011), no contexto sul africano entre o povo Zulu, também
assinala a importância da relação dos mortos e a terra. Nesse contexto a batalha é dos
farm dwellers, moradores negros em fazendas de proprietários brancos, para enterrar
seus mortos junto com seus ancestrais e os túmulos se tornam um documento que
inscreve a passagem dos farm dwerllers por aquele território. Marcelo Rosa que
também dedica reflexões acerca do sentido que os túmulos têm para os farm dwerllers
no contexto sul-africano, menciona que cumprem um “papel narrativo importante na
decisão de querer continuar vivendo em uma fazenda” (2012: 375). No contexto aqui
analisado, entre os Guarani e Kaiowá, os cemitérios se tornam uma prova material da
sua pertença a esse território.
Benites, ao descrever e analisar o processo de recuperação do tekoha
Potrero Guasu (retomada localizada no município de Paranhos – MS), relatou: “... o
sentimento de pertencimento à terra de ocupação antiga (em que foram enterrados os
seus antepassados) era determinante para o processo de recuperação do Potrero Guasu”
(2014: 120,121). Essa representação do corpo transformado em terra justificaria a
importância dos Kaiowá de permanecerem nas áreas onde formam enterrados seus
parentes. Nesse sentido, o direito à terra está imbricado da luta política de vivos e de
mortos (BORGES, 2011; ROSA, 2012). Além disso, Morais (2016), ao escrever sobre
os corpos Kaiowá, observou que na perspectiva Kaiowá o corpo e a terra partilham de
uma mesma substância (p. 204). A relação da terra com os mortos também é outro
ponto abordado pelo antropólogo, que a descreve como uma “relação de comunhão” (p.
217). No trabalho de Crespe encontramos outra passagem que é muito expressiva em
relação a esses sentidos:
Segundo um rezador que conheci no Apyka’y, eles querem viver na
terra porque são feitos da terra, têm a mesma substância que ela, a
mesma cor e por isso precisam viver nela, plantar e comer o que ela
produz. Na terra eles também podem permanecer próximos aos
parentes que já morreram, pode-se ter alimentos, bichos, matas, jára,
logo, ter saúde e viver bem. Sem a terra ocorre o contrário, o índio vai
ficando triste” (2015, 384).
102
A vice-liderança do Tekoha 1, na ocasião em que me explicava sobre como
a mãe tem que cuidar do filho que nasceu mencionava: cuidar da criança igual cuida do
milho. A vice-liderança do Tekoha 2, me explicando sobre a retomada, mencionou:
“uma retomada é uma criança pequena”, por isso ela precisava ser cuidada,
principalmente nos primeiros anos. A liderança do Tekoha 1 também me explicava que
nos anos 1970 o tekoha “estava engatinhando”, se referindo aos primeiros anos de
retomada e que agora ele já andava. Retomada e terra aqui aparecem como sinônimos,
porque, não é qualquer terra que é retomada, mas sim o tekoha, que tem uma história,
onde viverem e foram enterrados seus ancestrais.
Melliá et al. ao descrever a concepção de terra para os Paí – Tavyterã do
Paraguai, compara o cuidado da terra com o cuidado das crianças: “o cultivo da terra e o
cuidado dos cultivos é o mesmo que criar crianças” (1976:2014). Pereira, ao discutir o
termo “levantar um tekoha”, descreve que “o verbo ‘levantar’ - opuã - é usado para se
referir ao crescimento de crianças, plantas cultivadas, parentela e tekoha” (2004: 224).
O tekoha é comparado a uma criança pequena, o cuidado da criança é comparado ao
cultivo do milho, o milho que nasce do cuidado com a terra e que também é cuidado é o
mesmo que alimenta as crianças e por sua vez também cuida dessas crianças. Neste
sentido o mesmo verbo opuã dá conta para os Kaiowá de descrever o crescimento de
todos eles. O ato de cuidar é pensado em extensão, não se cuida apenas de pessoas, se
cuida da terra e das plantas e essas por sua vez também cuidam das pessoas.
No ato do batismo estes cuidados extensíveis a diversos seres se fazem
visível. Como nos conta a liderança do Tekoha 1, o batismo da terra é uma das
primeiras coisas a ser feita após a retomada; já o batismo da criança (mita ñemongarai)
é importante, pois é através do batismo, nos primeiros anos de vida da criança, quando
se recepciona sua alma. Da mesma forma, os Kaiowá costumam realizar o batismo do
milho, conhecido como avati kyry.
Para os Kaiowá, o primeiro ano de vida das crianças é o que exige maior cautela,
porque se as crianças forem maltratadas a alma pode ficar triste e deixar o corpo, “por
essa razão, no primeiro ano de permanência no corpo, esta alma é sempre tratada com
reza (ñembo’e) e com carinho, no intuito de alegrá-la e fixá-la definitivamente no
corpo” (BENITES, 2009: 61). Como apresentado nos capítulos anteriores, as rezas são
fundamentais nas áreas de retomadas, principalmente se ela for recente, pois protegem
contra o conflito com os fazendeiros. Crianças com mais de sete anos (mitã tuixama) já
podem ser repreendidas, quando necessário. De modo geral, o cuidado com a criança
103
implica uma atenção e vigilância constante. Nessa perspectiva, terra e criança estão
sempre em fabricação.
A gramática da terra acionada pelos meus interlocutores não está apenas
circunscrita a um espaço físico, a um lugar de produção de alimento, seus sentidos
extrapolavam essas categorias. A terra diz, acima de tudo, sobre o corpo, sobre práticas
de cuidados e sobre relações de parentesco, ou seja, uma terra pensada não apenas como
suporte de relações, mas também como componente das relações. Ao perguntar sobre a
terra, os Kaiowá me fizeram olhar para as crianças, ao perguntar sobre as crianças eles
me fizeram olhar para milho102.
Índio igual [formiga] lava-pé, só mora eles, não tem um pretinho no meio
Conforme descrito no capítulo II, sobre o episódio da placa e o incomodo da
liderança do Tekoha 1 com os não indígenas que não tem respeito e entram no tekoha,
me permite refletir acerca de outra questão que apareceu com força em campo e que
está intimamente relacionada aos sentidos que as retomadas têm para meus
interlocutores. A placa pedindo respeito na entrada do Tekoha 1, como afirmação
simbólica pretendia também um controle da circulação e principalmente da passagem
livre de não indígenas pelo local, uma vez que um bairro urbano está, por assim dizer
“comendo” o tehoha. Para os Kaiowá e Guarani o cuidado com as áreas de retomada
deve ser feito principalmente em relação ao controle com a mistura, em guarani Japora.
Pois como me falavam as lideranças do Tekoha 1, “mistura é perigo”.103
Em conversas com esses interlocutores eles me falavam que “o que estraga
é branco”. Eles também se referiam à mistura como causante dos problemas existentes
na reserva de Dourados – alcoolismo, violência, alta densidade demográfica. Segundo
eles, isso acontecia “porque lá tudo misturado, não é bom”. Morais (2016) aponta a
mistura como “categoria crucial para o entendimento das implicações do cerco na vida
Kaiowá e Guarani” (2016, 61). Para o autor, entre os Kaiowá, existe a “ideia de que
mistura (japora) se inscreve no sangue, na substância” (2016, 67).
Para meus interlocutores, os problemas começaram com o indígena
morando com branco, “leva para aldeia”, e ainda acrescentaram: “entrou terena,
102 Clarice Cohn aponta para a necessidade de analisar as concepções de infâncias, pois a noção de criança
está “ligada a uma concepção também de sentidos e percepção - e, portanto, de aprendizagem e de
possibilidades de conhecer e apreender o mundo – e de corporalidade e fabricação dos corpos” (2013,
225). 103 Sobre o tema da mistura entre os povos indígenas consultar também Kelly, 2005; Goldman, 2015
104
paraguaio, brasileiro, baiano”. Como vemos, a categoria “branco” é uma categoria de
diferenciação para meus interlocutores, e pode englobar não apenas não indígenas, mas
também outros coletivos indígenas, como os Terena.
A vice-liderança do Tekoha 1, explicava o problema da mistura, usando uma
analogia com as formigas lava-pé: índio igual lava-pé, só mora eles, não tem um
pretinho [se referindo a outra espécie de formiga] no meio”, então, o índio tem que ser
igual a formiga lava-pé, “o índio não pode misturar com o branco”, porque “estraga”.
Testa (2014), no seu trabalho entre os Mbya - realizado, na maior parte em
Terras Indígenas do estado de São Paulo, onde acompanhou os Mbya percorrendo seus
próprios caminhos - escreveu que assim como os não humanos, os não indígenas
também representam perigo para os seus interlocutores, pois a atração que ocorre entre
humanos e não humanos está em paralelo a atração recíproca entre Mbya e não
indígenas, sendo o risco da predação o mesmo. Além disso, o casamento entre Mbya e
não indígena acarreta o enfraquecimento da vida ritual, porque os rezadores vão
enfraquecendo.
Outra expressão, comum para se referirem a mistura com branco é que “já é
diferente”. Quando indaguei porque é diferente, a vice-liderança do Tekoha 1 começou
a dizer o nome de várias “comidas de índio”, e disse que branco “já estranha”, já
comparou comida diferente”. A diferença entre os Kaiowá é estabelecida através de
outra substância, os alimentos consumidos, não somente o sangue, conforme encontrou
Morais (2016). Se o ato de cuidar conecta o tekoha, as plantas e as crianças, não
comer/estranhar comida de índio, é também romper com a comunhão entre terra e
pessoa, significa deixar de partilhar dessa relação. ‘Virar branco’ para meus
interlocutores parece uma diferença estabelecida no comportamento, intimamente
vinculado, dentre outras ações e substâncias, ao que se come.
A liderança do Tekoha 1, ainda preocupado em me fazer entender a questão
do perigo da mistura com o branco, me contou a história de uma moça moradora do
tekoha que tem um filho com “um branco”. Ele disse que foi aconselhá-la, porque, ela
não estava querendo “ensinar a criança pelo nosso idioma”, então ele havia advertido
que se ela não ensinasse a criança “ela vai estranhar nossa cultura”, “se não ensinou a
criança, não vai aprender nada”, e “vai se aproximar do pai”. Conforme Testa (2014),
entre os Mbya é explicitado o medo da criança virar branco, da transformação, pois, “é
possível observar que os jovens passam por um outro tipo de transformação ao se
“misturarem com os não indígenas” (2014, 62).
105
Na história da liderança, ele me indicava que o problema da criança, fruto
de uma relação com não índio, poderia ser resolvido se a mãe ensinasse a cultura dela, a
sua língua, bem como, fazer a criança “comer comida de índio”. É através do alimento e
da sua partilha cotidiana, como já foi mencionado anteriormente, que se pode virar
parente. E ainda, acrescentava que as crianças são importantes porque são elas, quando
eles morrerem, “que vão levar a cultura do índio puro, vai ficar no nosso lugar,
levando a aldeia”.
Como alertou Testa, também para o caso dos Mbya, os processos de produção da
pessoa passam pelas práticas de alimentação, contribuindo para o desenvolvimento de
relações de parentesco. Por isso, o corpo deveria se alimentar de comidas consideradas
verdadeiras e originais (2014, 239), muito semelhante ao que meus interlocutores
tentavam me explicar em relação a comida de índio. E assim, como menciona Atanásio,
um dos interlocutores de Pimentel (2012), a volta ao tekoha também apresenta a
possibilidade de produzir novamente a comida de índio:
“Porque nós não temos dinheiro, nós apenas ficamos olhando à toa as
coisas (mercadoria). Então, pra gente não passar necessidade,
queremos a nossa terra, para poder plantar, para não se preocupar com
as coisas dos outros. Nós queremos o que é nosso, nós vamos nos
juntar e produzir nossa comida, para nossa carne vamos criar bichos.
Por isso é que nós lutamos para conseguir a nossa terra”. (2012: 206)
***
Os dados etnográficos, anteriormente apresentados, descrevem relações
entre cuidado, respeito, pessoa, crianças, retomada e terra. Elementos que meus
interlocutores me apresentam como constantemente conectados. Isso nos coloca uma
questão que é pensar a terra, não apenas como suporte das relações de parentesco, mas
também como componente dessas relações e que envolve tanto humanos quanto não
humanos.
Como coloca Borges (2014), terra é uma categoria etnográfica que só faz
sentido em contexto. A autora acrescenta: “terra é um conceito que, a despeito de sua
suposta transparência de significado, evoca conflitos de ordem tanto interpretativa
quanto política” (2014: 432). Chaguri (2016), por sua vez, chama atenção, em como o
Estado, na relação de mediador de conflito entre os proprietários e “as demais categorias
de não proprietários”, acaba reforçando a terra “como categoria a produzir hierarquias
que classificam e desclassifica socialmente o conjunto de atores envolvidos” (2016:11).
Direcionando o olhar para as populações indígenas brasileiras, a
antropóloga Dominique Gallois (2004), argumenta a necessidade de distinguir terras
106
ocupadas, território e territorialidade. Através dessas distinções propõe ruir com a
equivalência entre terra e território, pois embora reconheça que a categoria terra é um
dos elementos constitutivos do território, um não é equivalente ao outro.
Na abordagem de Gallois dois pontos são relevantes e foram tratados
anteriormente para pensar os sentidos de terra: a questão do contato colonial e a questão
de pensar concepções mais abertas de território. Para a autora a situação de contato
gerou um confronto de lógicas espaciais. Dessa forma, o impacto colonial obrigou
muitas populações indígenas a se refugiarem em outras áreas, diferentes daquelas que
constituíam originalmente. Por isso, para a antropóloga, as Terras Indígenas “seriam
simplesmente uma parcela dentro de um território historicamente mais amplo” (2004:
39). Além disso, como já citado, Terra Indígena e território são termos completamente
distintos para Gallois, o primeiro se refere ao processo político-jurídico do Estado,
enquanto o segundo “remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da
relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (2004: 39).
As concepções de território indígena abrangem condições materiais,
ecológicas, ambientais como descreve a autora sobre a noção zo’é de –koha104. No caso
de povos indígenas no Brasil não podemos pensar o território em oposição a
mobilidade, e sim a mobilidade como parte da própria noção de território, como por
exemplo, a noção de territorialidade Guarani que é ativada na prática da mobilidade
territorial. Além disso, o território, para os Guarani não remete apenas a espaços físicos,
mas também a concepções cosmológicas. Para a antropóloga toda sociedade imprime no
espaço que ocupa uma lógica territorial.
Portanto, a análise de Gallois possibilita mostrar que a concepção de
território é fruto das relações de contato e das regularizações fundiárias que promoveu à
conversão dos territórios indígenas em terra. Essa transformação de território em terra
teve como consequência uma nova concepção que vincula terra a posse ou propriedade.
Sobre isso Carneiro da Cunha (2009), em diálogo com Strathern, menciona: “uma
cultura dominada pelas ideias de propriedade só pode imaginar a ausência dessas ideias
sob determinadas formas” (2009: 328). O contato trouxe o confronto de lógicas
espaciais e agora se faz necessário tanto o reconhecimento de direito à terra como a
necessidade de solucionar esse confronto, alerta Gallois.
104 Termo zo’é que expressa ‘modo de vida’, ‘bem viver’, como descreveu Gallois (2004, 38).
107
Aqui é preciso tomar cuidado para “não jogar o bebê junto com a água do
banho”, ou seja, por que descartar a noção de terra, justamente quando ela está sendo
acionada pelos povos indígenas para encarar as restrições e retrocessos em relação aos
seus direitos frente a medidas do Estado como a tese do marco temporal105? Faz sentido
situar o modo como a categoria terra tem sido mobilizada por coletivos indígenas no
Brasil na demanda dos seus territórios tradicionais, muito semelhante à maneira como a
categoria cultura é acionada, conforme tratado por Carneiro da Cunha (2009), uma vez
que esta é retomada e resignificada pelos povos indígenas, transformando-se num
argumento político, a “cultura”.
Strathern (2009), através da pesquisa que realizou entre os Papua Nova
Guineenses, nos provoca a questionarmos sobre os outros possíveis sentidos de terra
que não esteja, necessariamente, ligado a noção de produtividade e propriedade. Borges
também propõe pensar a terra como propriedade intelectual e ressalta, que as
concepções de terra, como para os farm dwellers, escapam as nossas lógicas cartesianas,
“a terra é o que se conhece da terra e, por isso, trata-se de um bem precioso” (2011: 20).
Ora, não era isso que os Kaiowá estavam querendo me dizer ao me explicarem seus
sentidos de terra através das relações de cuidado de crianças e de plantas?
Uma análise dos sentidos de terra para os Yanomami, suas disputas e seus
efeitos é apresentada por Davi Kopenawa na seguinte narrativa:
Tornado fantasma, no tempo do sonho ou sob efeito da yãkoana, eu
costumava ver os brancos retalhando nossa terra, como fazem com a
deles... Não podemos aceitar que voltem [os brancos] para desenhá-la
e recortá-la desse modo! Talvez seja a vontade dos grandes homens
deles. Mas, se cedermos, morreremos todos! Com nossas palavras,
dizemos que os antigos brancos desenharam sua terra para retalha-la.
Primeiro cobriram-na de traços entrecruzados, formando recortes, e,
no meio deles, pintaram manchas redondas. É assim que os xamãs
podem vê-la. Esse traçado de linhas e pontos, como manchas de onça,
parece deixa-la muito bonita. Porém, esses desenhos são em seguida
colados num livro e aqueles que querem plantar sua comida nesses
espaços têm de devolver seu valor. Assim, os brancos alegam que
esses desenhos de terra têm um preço, e é por isso que os trocam por
dinheiro”. (2015: 327)
Marisol de la Cadena (2010), ao analisar as alianças do movimento indígena
com o movimento campesino no Peru,106 sugere terra como “equivocação”. Recuperar a
105 Segundo a tese do marco temporal passariam a ter direito a terras apenas os povos indígenas que as
estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988. 106 Marisol de la Cadena parte da noção de equivocação de Viveiros de Castro (2004). Segundo esclarece
o autor: “A equivocação é um conceito epistemológico que diz respeito a uma teoria da tradução, de
como o antropólogo dá sentido ao material que ele está descrevendo nos termos de seu próprio aparelho
108
terra para os indígenas diz acerca das suas relações com a montanha, rios, plantas e
animais (other-than-humans) no entanto, essa noção de terra excedia a noção dos
ativistas de esquerda, assim pensar terra como equivocação foi o que possibilitou a
aliança entre os políticos de esquerda e os camponeses indígenas.
No processo de retomada os Guarani e Kaiowá reivindicam junto ao Estado
seus tekoha, associado comumente aos seus territórios tradicionais. Mas, para além
disso, realizar uma retomada significa a possibilidade da volta e da proteção de uma
terra que está em comunhão com o corpo Kaiowá e Guarani. É voltar para uma terra que
também é corpo e está em relação, uma relação de retroalimentação e de cuidados
mútuos. É uma terra que assim como as crianças está em constante fabricação e por isso
o controle da mistura é essencial. São sentidos de terra que extrapolam as noções de
propriedade, de economia e das próprias reivindicações políticas.
3.2 ‘igual maribondo’: circulação e modalidades de perambular
Para os Guarani e Kaiowá mover-se faz parte da constituição da pessoa,
fundamental também para adquirir conhecimento, sabedoria, para conhecer a história,
para conseguir mobilizar a parentela, conforme vimos anteriormente, mas também é
central, como veremos, para levantar tekoha e na produção cotidiana do território.
Na literatura sobre os Guarani e Kaiowá, duas modalidades de mobilidade
são destacadas: o oguata e o jeheka. Elas são consideradas modos de circulação e eram
mais comuns antes do contato colonial, quando as populações indígenas ainda viviam
nos seus territórios tradicionais. O oguata é o caminhar entre as casas dos parentes, se
refere ao fazer visitas, participar de cerimônias religiosas ou casamentos e festas.
Alexandra Barbosa da Silva (2007) traduz [o] guata como andança, caminhada e
acrescenta:
[...] é desta forma que se faz visitas a parentes em locais diversos, e se
realiza uma exploração e ampliação do conhecimento sobre o
território (e o mundo), sendo isto fundamental para o estabelecimento
e /ou para a manutenção das redes sociais entre esses grupos (2007:
78).
O jeheka foi descrito por Crespe como “uma forma de mobilidade
diretamente relacionada aos mecanismos de obtenção de recursos, mas que são produtos
e produtores de relações sociais” (2015: 320). A antropóloga ainda acrescenta que essa
modalidade contribuiu para o vínculo com o território tradicional que atualmente os
conceitual, o qual deve ser afetado, deslocado e contaminado pelo aparelho conceitual alheio” (Viveiros
de Castro, 2014).
109
Guarani e Kaiowá reivindicam, fomentadas pela memória e pelas narrativas
relacionadas à mobilidade: “Trata-se de uma mobilidade realizada em espaços
humanizados pelos próprios Guarani e Kaiowá, marcados pelas suas fronteiras e por
uma malha de caminhos, como sugeriu Pereira (2004)” (2015: 321, 322).
A colonização e posteriormente a chegada das fazendas e suas cercas, bem
como as estradas e as cidades, não apenas impediram algumas formas de mobilidade,
como também gerou outros padrões de mobilidade para os Guarani e Kaiowá. As
principais são o sarambi e a changa.
A changa é o trabalho prestado pelos Guarani e Kaiowá nas fazendas.
Como esses trabalhos podem durar meses, os homens ficam longos períodos afastados
da sua parentela. Pesquisadores como Schadem (1974) já apontavam a changa, como
um dos fatores, responsável pela desorganização da economia doméstica Kaiowá.
O sarambi ou sarâmbipa é descrita como a mobilidade provocada após a
chegada das frentes de exploração, descritas no primeiro capítulo, que resultou no
processo de expulsão desses povos das suas terras tradicionais. Para Graciela Chamorro
“esse evento é um divisor de águas na história Kaiowá” (2015: 206). O sarambi,
também traduzido entre os indígenas como esparramo, foi considerado por alguns
autores como uma espécie de diáspora (CAVALCANTE, 2013) ou como um tipo de
mobilidade negativa (CRESPE, 2015; CHAMORRO, 2015), por ser identificado com
um momento de desordem, no qual os parentes foram esparramados:
Na língua indígena, esse processo costuma ser chamado de sarambi,
que significa “bagunça e espalhamento”. É uma ação realizada por
outrem, o que vem indicado pela partícula -mo-, que significa fazer
com que”. Assim, amosarambi quer dizer “espalho ou bagunço algo
ou alguém” e oremosarambi significa “alguém nos espalha, nos joga
daqui para lá, nos bagunça”. A época em que a maior parte das
comunidades indígenas vivia sob a iminência de ter que abandonar
seus lugares de referência costuma ser chamado de ñemosarambipa
(CHAMORRO 2015, 206).
Nas falas dos Guarani e Kaiowá, como apresentou Crespe (2015), também é
comum ouvir o verbo perambular, bem como expressões do tipo: “não encontrar
parada” e estar sem aldeia”, para se referir a essa mobilidade que está impressa nas vida
das pessoas que não conseguiram se estabelecer, ou não quiseram, dentro das reservas.
Como analisou Crespe, através da noção de estabelecidos de Nobert Elias e John L
Scotson (2000), os grupos que se assentaram primeiro nas reservas conseguiram se
consolidar e recompor sua parentela. Acontece que os grupos que foram chegando
posteriormente, principalmente quando foram diminuindo os “fundos de fazendas”,
110
tiveram mais dificuldades de se estabelecer na reserva, é essa não acomodação nas áreas
pelos quais alguns indígenas passam que está expressa no perambular.
Crespe, ao se debruçar sobre a trajetória das lideranças das áreas em que fez
pesquisa descreve o perambular dessas pessoas até chegarem a fazer a retomada.
Conforme a autora, Dona Damiana Cavanha - liderança do tekoha Apyka’i - está
inscrita esta história deste perambular. Essa liderança e sua família, após serem expulsos
de uma área em que viveram até os anos 1980, passaram por diferentes reservas na
região, como a Reserva de Caarapó e a Reserva de Dourados, quando decidiu, junto
com o seu marido, retomar o tekoha onde viveu com sua parentela. Dona Damiana que
hoje é viúva, já vive há quase duas décadas acampada - nesse período fez retomadas,
passou por reintegração de posse e viveu na beira da estrada.
A vice-liderança do Tekoha 2, descreve o esparramo como aquilo que
descreve a situação e a atual relação com a reivindicação dos tekoha e seus ‘donos’,
pois, quando acontece uma retomada, os Kaiowá e Guarani vem de diferentes lugares:
…anteriormente eles conseguiam colocar a gente numa aldeia,
pegava daqui levava para outra. Porque cada dono dos tekoha
estava esparramado, um está aqui, outro está para lá em
Amambaí e assim por diante né, aí quando eles resolvem
reivindicar de novo a terra, onde se encontravam tudo de novo,
aí vem de outro lugar, então é assim, não estão só num lugar os
donos dos tekoha, eles estão esparramados né.
Quando perguntei o que ela queria dizer com estar esparramados e o motivo
pelo qual isso aconteceu, ela apontou tanto o processo de reservamento, quanto a
relação com os fazendeiros, como suas causas:
estão esparramados porque, as pessoas, os fazendeiros
pegavam os povos indígenas, aqueles que não conseguia matar,
eles levavam para uma aldeia, as vezes os povos indígenas não
aceitavam o lugar né, não gostavam do lugar, mudava para
outros lugares, onde eles habitam melhor. Então por essa razão
eles se esparramam, porque por eles, como eu disse para o
pessoal, que eles fizeram a aldeia, na verdade não é aldeia, na
verdade é um chiqueiro, que pode prender todo mundo ali, dali
para cá não pode passar, de lá também não. Então no caso eles
pensavam que jamais né, a gente ia volta a ocupar a nossa
terra. Então por essa razão eles juntavam a gente e colocava
ali, e as pessoas que não quisessem ficar, dali ia para outro
lugar, e ali formava família e assim por diante ia. Então as
pessoas se esparramaram né, não está só num lugar.
111
Na fala da vice-liderança do Tekoha 2 é interessante perceber que, se o
processo de reservamento tinha como objetivo prender os Guarani e Kaiowá, na prática,
muitos grupos resistiram a imposição dessas fronteiras, não aceitando o lugar e se
mudando para onde viveriam melhor. Nesse sentindo, o esparramo, também pode ser
entendido como uma mobilidade de resistência e uma forma de buscar melhores
condições de vida:
As famílias as vezes procuram melhoria, então por isso que
cada um se esparrama. As vezes estão atrás de serviço, as vezes
o lugar é melhor, produz melhor, quem gosta de plantar né.
Então por essa razão eles mantem a distância um do outro. Aí
quando a gente ocupa, eles voltam tudo naquele lá.
Se por um lado a reserva foi uma tentativa de limitar os processos de
mobilidade espacial, ao impor um padrão territorial e uma fixação numa terra com
fronteiras delimitadas, por outro, ela também possibilitou a articulação de diversas
formas de mobilidade, uma vez que os indígenas continuaram a caminhar pelo seu
território, como demostrou Barbosa da Silva (2007) e a resistirem a se fixarem na
reserva, como esclarece minha interlocutora. A reserva também possibilitou que as
parentelas fossem reconstituídas e reelaboradas, após terem passado pelo sarambi, pois
se tornaram áreas de grande densidade e centros radiadores de relações (CRESPE, 2015,
BARBOSA da SILVA, 2007).
Nesses cenários de mobilidade estão também as retomadas indígenas, que
além de serem um processo de luta para o retorno ao seu território tradicional, também
se configura como mais uma alternativa de mobilidade, onde as teias de relações de
parentesco e de aliança se ampliam, bem como outras formas de sociabilidade são
produzidas.
Andar igual marimbondo
Se a bibliografia descreve a mobilidade Kaiowá e Guarani através das
categorias oguata, jeketa, sarambi, foi, contudo, na busca pelo sentido que as retomadas
e a terra tinham para meus interlocutores que a mobilidade apareceu como fundamental.
O movimento atravessava, ou era referido o tempo todo nas histórias dos meus
interlocutores. Numa conversa descontraída com a liderança do Tekoha 3, ao me contar
suas passagens pelas reservas e por outros tekoha, ele disse que “ficava igual
marimbondo”, até conseguir se fixar no local atual. Pensando tanto na sua história,
como a de tantos outros Kaiowá e Guarani, percebi que dizer que andava “igual
112
marimbondo”, se referia menos as dificuldades de permanência pelos locais que passou,
e mais, a um modo específico de se movimentar, intrínseco a um modo de adquirir
conhecimento e capital político, ou, como me contava a liderança do Tekoha 1, de
aprender “como é que luta”.
A liderança do Tekoha 3, por exemplo, me relatava que no período em que
viveu no tehoha Passo Piraju atuou como vice-liderança - quando a liderança precisava
se ausentar da área era ele quem passava a ocupar seu lugar. Algo semelhante também
aconteceu quando este morara na Reserva de Dourados, porém, me descreveu essa
relação através do termo ajuda. Assim disse que ficou três anos ajudando a liderança da
aldeia Bororó. A circulação por diferentes lugares, incluindo áreas de retomadas, e sua
atuação como liderança, em alguns momentos, fez com que ele fosse convidado pela
antiga liderança do Tekoha 3, a participar da retomada e ser seu vice. Nesse sentindo, ao
me narrar suas andanças igual marimbondo, ele também falava dos espaços de
aprendizado e dos papéis políticos que assumira, o que de certa forma, o qualificava
como a liderança atual.
A trajetória da vice-liderança do Tekoha 2:
A trajetória dessa vice-liderança resume esse andar “como marimbondo”.
Até se estabelecer no Tekoha 2 ela circulou por “ambientes diversos” (BARBOSA da
SILVA, 2007), entre fazendas, cidades, reservas e áreas de retomada. Conforme ela me
contou, “cresci em fazenda e em cidade”. O período nas fazendas se referia ao tempo da
tenra infância quando seu pai trabalhava em fazendas em troca de moradia, prática
comum entre os indígenas da região:
Cresci na fazenda onde o meu pai trabalhou, naquela época eu
tinha o que, uns nove, oito anos, mais ou menos. Os fazendeiros
já mandavam os povos indígenas embora, demitia né. Porque os
povos indígenas, aqueles que não foram embora, que não foi
morto, permanecia e trabalhava para o fazendeiro, e onde o
meu pai trabalhou nessa fazenda, tinha os povos indígenas e
estavam trabalhando para o fazendeiro.
Ainda jovem muda-se para o Paraná onde passa a trabalhar como
empregada doméstica. Também morou um período no Paraguai e na cidade de Ponta
Porã, onde também trabalhou como empregada doméstica. Por volta dos 18 anos de
idade, quando morava na cidade de Iguatemi, casa-se. Já casada, vai morar com o
marido junto com o pai que na época trabalha numa fazenda na região de Iguatemi.
Porém conta que retornou a esta cidade quando engravidou da primeira filha e por lá
113
permaneceu até seu nascimento. Contudo, deixam a cidade quando seu marido sofre um
acidente e perde o emprego. Nesse momento volta para perto do pai que se encontrava
morando em Taquara, uma área de retomada, localizada no município de Juti. Por
desavença com a liderança, ela e sua família ficam pouco mais que um mês em Taquara
e se mudam para outra área de retomada Jarará, também em Juti, motivada por uma
prima: tinha uma prima que morava em Jarará: aí ela falou para mim que o lugar era
bom, era assim, que tudo que plantava dava, isso aquilo, aí eu queria né, aí fomos para
lá. Fiquei lá um tempo, só que as coisas não são assim do jeito que ela falava né, e era
difícil, era recém retomada. Em Jarará ficou morando alguns meses e é onde tem seu
segundo filho. Segundo me contou, mais uma vez sentiu necessidade de mudar, porque
nessa área, pela distância que estava da cidade, ficava difícil conseguir a documentação
de seus filhos e ter acesso a saúde:
como as coisas eram muito difíceis, em Jarará não tinha serviço
e o pessoal de lá não dava emprego para os indígenas né,
estava difícil. E médico acho que em 15, 15 dias ou mais. Não
tinha escola, não tinha nada ainda, era recente ainda... e para
mim ficou difícil, meus filhos não tinham documento, não tinha
como tirar, e as coisas...cidade longe né, e os documentos tem
que vir para cá, aí foi onde que eu vim para cá.
É então quando se muda para o Tekoha Pyelito Kue, no município de
Iguatemi, área essa que também reside um dos seus irmãos. No entanto, motivada pela
possibilidade de estar mais perto da cidade, decide procurar uma irmã que morava na
aldeia Bororó, decidindo se mudar para lá, pois como me contava é diferente morar em
aldeia perto da cidade e em aldeia longe da cidade, na primeira “as coisas eram mais
fáceis”.
Ela e sua família moraram na aldeia Bororó por mais ou menos oito anos.
Logo quando chegaram ficaram alojados na casa da sua irmã e posteriormente seguiram
para um terreno no fundo da reserva, lá conseguia plantar e ter criações. O marido
arrumara um emprego na cidade: saia todos os dias as três da manhã de casa e seguia
para cidade a pé para poder entrar no serviço as sete horas da manhã. Para ficar mais
próxima da escola, mudam-se de novo, mas agora dentro da aldeia Bororó, porém para
um terreno menor, tendo que desfazer do cavalo que tinha e das suas 200 galinhas.
O desejo de poder voltar a ter a sua roça e as suas criações é a que leva
aceitar o convite, da antiga liderança do Tekoha 2, para fazer parte da retomada e
complementa: “quem tem terreno pequeno veio tudo para cá”. É nesse período que ela
se depara com um novo tipo de mobilidade, a mobilidade que leva a mobilização. Ao
114
participar de uma retomada, a vice-liderança passou a frequentar os espaços da Aty
Guasu, a ir nas viagens para Brasília, e nessas viagens, conversando com as pessoas, diz
que começou a aprender, “a necessidade que me levou a conhecer essas coisas”, e em
outra fala acrescentou: tomei o gosto, como diz o outro, lutar pelas terras que foram dos
povos indígenas, não só o meu, da minha família, mas tem outras famílias. Porque
como todos os indígenas lutavam, eu também vou. Porque eu faço parte desses povos
né, então eu também vou e comecei.
A trajetória da ex-liderança de Caarapó:
Outro caso que pode ser expressivo desse andar igual marimbondo é o da
ex-liderança de Caarapó. Eu conheci ele e sua família pela primeira vez em janeiro de
2012, quando este tinha se mudado da Reserva de Caarapó, no município de mesmo
nome (cerca de 52 km de Dourados) para o Tekoha 1. Ele trouxera ao tekoha sua família
e sua experiência como ex-liderança da Reserva de Caarapó e como participante ativo
das Aty Gasu, como, na época, fazia questão de mencionar. Todas essas qualidades
davam prestígio a esse homem, passando a desempenhar um papel político na área com
a anuência das lideranças do Tekoha 1 (CRESPE e CORRADO, 2012).
Em 2016 encontrei a ex-liderança de Caarapó e toda a sua família, morando
no Tekoha 2. Essa mudança tinha apenas alguns meses, eles haviam se mudado em
novembro de 2015. É nesse novo encontro que ele me conta com mais detalhes sobre
sua vinda para Dourados. Ao perguntar o motivo pelo qual deixará a Reserva de
Caarapó ele responde prontamente:
Olha isso é uma coisa muito importante para mim, você
perguntar isso aí, por que nós saímos de Caarapó. Caarapó eu
tenho uma casa boa lá. Uma casa boa 6x12, uma casa material,
bem-feita. Só que nós saímos de lá porque não tinha serviço
para gente trabalhar. Eu trabalhava de liderança e a gente
conseguia alguma coisa. E a mulher trabalhava na escola, aí
entrou o vereador, elegeu o vereador lá e tiraram ela da escola,
aí eu saí da liderança, não tem serviço para mim e ela saiu da
escola, todo mundo ficou sem serviço. Aí nós começamos a se
preocupar, porque não tem onde nós conseguirmos nada né,
tinha que correr para cá, o único caminho era correr para cá.
Largamos a casa e viemos embora para cá. Cheguei aqui em
Dourados, no outro dia, eu trabalhei no sindicato, no sindicato
aqui em Dourados. Cheguei aqui e fui direto para sindicato, eu
trabalhei lá três meses no sindicato, depois fui trabalhar mais
30 dias numa empresa, trabalhei aqui no clube Indaía, 30 dias
também, aí eu fui para a Seara. Na Seara já estou com cinco
anos.
115
Ele e sua família mudaram para Dourados no ano 2010. Eles foram primeiro
para a Reserva de Dourados onde moraram, por um tempo, na aldeia Bororó numa casa
doada pela irmã de sua esposa. Ainda na reserva de Dourados, vão morar na aldeia
Jaguapiru, na casa de uma prima da sua esposa. Como não encontraram uma casa para
morar na reserva, pois como me relatou o casal, não tinha lote, ele começou a procurar
uma casa na cidade para poder alugar:
não tinha lugar para morar, eu comecei a procurar casa de
aluguel para mim. Uma semana, quase duas semanas
procurando casa de aluguel, para alugar casa. Nós tínhamos
uma carroça e uma animal, e todo lugar que tem casa para
alugar me perguntava se tinha animal, carroça, e falei que
tinha. Então não pode, porque na cidade tem que ser uma área
grande para ter animal, né. E aí eu não consegui arrumar casa
para mim morar.
Após não conseguir alugar uma casa na cidade, ele decidiu, junto com sua
esposa mudar para o Tekoha 1, onde moraram durante cinco anos. Sobre o Tekoha 1 ele
ainda acrescenta:
... meu pai morava lá, finado meu pai. Mas não morava lá
mesmo, morava mais para cá, ali perto do Douradão mesmo...
muito tempo atrás. É que a cidade foi tomando lugar, tinha
cemitério ali. Eu não me lembro bem onde que era o cemitério,
mas me falaram que tinha cemitério, perto do brejo...
Antes de morarem no Tekoha 1 a antiga liderança de Caarapó e a sua esposa
contaram que há muito tempo participavam de retomadas. A primeira retomada que
participaram foi em Antonio João, depois em Iguatema, na área de retomada de Ivy
Katu. Também estiveram em Rancho Jacaré, em Laguna Carapã, em Taquara, e na
retomada Guaimbé em Amanbaí. Mas eles participaram dessas retomadas como apoio,
contaram que ficavam uns 15, 20 dias nas áreas de retomada, depois retornava para a
sua casa. Esse era o período da entrada, que como eles me disseram é o período mais
difícil, depois que normalizava, voltavam para a casa. A atuação dessa família em
importantes retomadas e seu tempo no Tekoha 1 e agora no Tekoha 2 era o que fazia sua
esposa dizer, ao se referir aos filhos e netos, que essa meninada que tá aí, crescemos na
luta mesmo, conhecemos tudo como que é regra de luta.
Como pontuaram meus interlocutores, muitas vezes eles se mudaram para
áreas nas quais tinham algum parente ou conhecido: “uma ação orientada por uma rede
de relações construídas, rede está fundamentada pelo parentesco” (Barbosa da Silva,
2007: 79). Além disso, através das narrativas aqui apresentadas, percebe-se que esse
116
andar como marimbondo se refere a busca por um lugar, de preferência o retorno ao
tekoha, onde as relações familiares e a socialidade possa ser reproduzida. O
marimbondo, conforme breve pesquisa feita, é a única espécie de vespa, das mais de
30.000 conhecidas, que constrói casa, as outras espécies são chamadas de espécies
solitárias. Essa especificidade faz com que esses insetos gastem parte de sua vida
procurando um lugar adequado para construir o vespeiro. Coincidência ou não, a
liderança do Tekoha 3 não me falou que andava como uma vespa, ou como uma abelha,
ele falou que andava como marimbondo.
Andanças pela vizinhança
Os dados etnográficos dos Tekoha 1 e Tekoha 2, também permitem observar
como os moradores desses espaços tecem relações com outras áreas de retomadas, com
a reserva e com a cidade. Ambas as áreas estão localizadas próximo ao perímetro
urbano da cidade de Dourados. O Tekoha 1 está localizado próximo à Rodovia, há 5 Km
do centro de Dourados e o Tekoha 2 está próximo a margem de uma estrada, ficando
apenas alguns metros de distância do Bairro 3.
O Tekoha 2 é um bom exemplo para pensar a mobilidade, pois sua
localização inclusive a favorece, pois, além de estar próxima a cidade de Dourados, ele
ainda é vizinho da reserva indígena de Dourados e vizinho de uma outra área de
retomada, o Tekoha 3. Existe uma circulação dos moradores entre os dois tekoha. Essa
circulação é motivada principalmente pelas visitas de amigos e parentes, por pedidos de
ajudas, principalmente com o auxílio de alimentos, ou em relação a segurança das áreas.
Outro motivo para a circulação entre o Tekoha 2 e o Tekoha 3, é o atendimento médico.
Existe uma agente de saúde que mora no Tekoha 3 e que é responsável por atender as
duas áreas de retomadas. O atendimento da Sesai107 é realizado a cada quinze dias
intercalando as visitas entre as duas áreas de retomadas, ou seja, quando a Sesai está
atendo no Tekoha 3 todos os moradores do Tekoha 2 que precisam receber atendimento
médico vão para o Tekoha 3, quando o atendimento é no Tekoha 2, é a vez dos
moradores do Tekoha 3 irem para lá receber atendimento médico. Essa circulação
favorece com que os moradores das duas áreas se encontrem e possam conversar sobre
os últimos acontecimentos em ambas as áreas e sobre suas vidas.
107Secretária Especial de Saúde Indígena.
117
A relação entre esses dois tekoha também é favorecida pela relação entre as
suas lideranças. Como me relatou a vice-liderança do Tekoha 2, a liderança do Tekoha 3
atualmente os ajuda. Essa ajuda se refere principalmente as questões relativas a
segurança das áreas de retomadas, problemas com o alcoolismo e com a violência
dentro da área, onde a liderança do Tekoha 3 é chamada para aconselhar sobre qual a
melhor medida a ser tomada, ou até mesmo conter uma situação de violência.
A proximidade com a reserva é uma via de mão dupla, garante a circulação,
proporcionando assim, a ligação com os parentes amigos e conhecidos, bem como,
permite acessar recursos importantes, como o posto de saúde, o acesso a água limpa e a
energia elétrica. No Tekoha 2 não são todas as famílias que tem poços de água, além
disso, em tempos de chuvas a água do poço fica suja, e não há energia elétrica. O acesso
à escola da reserva é outro recurso importante, possibilitado por essa proximidade, a
maioria das crianças e jovens que moram no Tekoha 2 frequentam a Escola que fica
próxima ao tekoha. Essa mobilidade entre as áreas de retomadas e reservas, contribui
para a manutenção de acampamentos existentes, além de fomentar o surgimento de
outros novos.
Mas, se por um lado a reserva é uma alternativa para acessar recursos, dos
quais são mais difíceis de conseguir em uma área não regularizada, por outro lado, a
reserva representa um modelo de vida do qual os moradores dos tekoha querem se
afastar. Assim a proximidade com a reserva, embora tragam benefícios, também
apresenta reclamações quanto aos problemas de violência. Segundo informações das
lideranças do Tekoha 2, existe um fluxo de moradores da Aldeia Bororó que vão para o
acampamento para “bagunçar” e levar bebida alcoólica, o que gera conflito entre os
moradores da Bororó e as lideranças do Tekoha 2.
A cidade, como mencionado anteriormente é ao mesmo tempo um ponto de
acesso a diferentes tipos de recursos, mas a relação com ela também passa por tensões e
controles. A liderança do Tekoha 1 sempre insistia na necessidade de construir uma
plataforma ou colocar uma sinalização na rodovia para os índios poderem circular mais
tranquilamente e diminuir o número de mortes por atropelamento. Essa reivindicação
tem como objetivo facilitar a circulação dos moradores do Tekoha 1, pois o tekoha não é
pensado como um espaço de confinamento, como a reserva muitas vezes é considerada.
Os tekoha também são visitados pelos parentes da reserva. Em uma das
visitas ao Tekoha 1, encontrei uma moça que contou que morava na aldeia de Bororó e
que estava ali visitando sua tia. Ela havia saído da Aldeia de Bororó pela manhã de
118
bicicleta, atravessado a cidade e chegado ao Tekoha 1 por volta das dez horas da manhã,
lá acompanhou sua tia nas suas atividades, como lavar roupa e aproveitou para tomar
banho no açude, o que fez com muita satisfação lembrando que na reserva existem
muitos poucos lugares para se tomar banho de rio. No Tekoha 2, a irmã da vice-
liderança, que mora em outra cidade, veio visita-la com seus filhos, ela ficou quase duas
semanas na área, pois além da visita existia a expectativa dela se mudar para o tekoha.
Em uma das minhas visitas pelo Tekoha 2, encontrei uma moradora que me
contou que morava do Pacurity, outra área de retomada, mas que decidiu se mudar para
aquele tekoha porque sua filha estava matriculada na Escola, assim, a proximidade do
tekoha com a reserva foi o que impulsionou a mudança de uma área de retomada para
outra.
As visitas entre reserva, áreas de retomadas, cidade são um aspecto
relevante, pois nelas não circulam apenas as pessoas, circulam objetos, notícias de
outras áreas e de parentes, há uma intensa troca de informações. Esse fluxo é ilustrativo
desse andar “igual marimbondo” para pensar como as redes de circulação e as redes de
relações continuam a se desenvolver e como chamou atenção Barbosa da Silva, as
pessoas continuam circulando por vários “ambientes do seu território” (2007, 239).
Acredito que as retomadas indígenas possibilitam as tradicionais
mobilidades Guarani e Kaiowá, como o oguata e o jeheka descritas acima. Do mesmo
modo que uma mobilidade marcada pela circulação por espaços como a Funai, o
Ministério Público Federal, as Universidades e até mesmo as reuniões e os encontros
em Brasília para tratar das questões sobre as demarcações das terras e para reivindicar e
tentar resolver os problemas das suas comunidades. Este andar, “igual marimbondo” –
aponta também para articulação de novos modos de mobilidade e de reivindicações
políticas, bem como a criação de novas estratégias.
Os Kaiowá e Guarani não me falaram sobre sua mobilidade através dos
termos oguata, jekete e sarambi. Eles me explicaram suas formas de circulação pelos
aprendizados e pelas relações que teceram em cada lugar de parada, pelo seu
aprendizado da luta pela retomada do tekoha, por suas atuações, como lideranças, como
empregadas domésticas, como agentes de saúde, como merendeiras. Sua mobilidade
também era expressa pelo desejo de visitar um parente na reserva ou nos tekoha, pelo
desejo de arrumar um emprego ou continuar os estudos na cidade. Mas esse andar
como marimbondo, também expressa a esperança de encontrar parada numa terra onde
119
se possa unir e viver com sua parentela. Onde os conflitos possam ser mediados com
mais facilidade e a mistura ser controlada.
120
Considerações Finais
Em 13 de fevereiro de 2017 o então presidente da FUNAI Antonio Fernades
Toninho Costa em entrevista ao Jornal Valor Econômico disse “O momento da Funai
assistencialista não cabe mais, temos que produzir sustentabilidade, ensinar a pescar”.
No dia 08 de março de 2017 o então Ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB – PR)
em entrevista a folha de São Paulo proferiu a seguinte frase: "O que acho é que vamos
lá ver onde estão os indígenas, vamos dar boas condições de vida para eles, vamos parar
com essa discussão sobre terras. Terra enche a barriga de alguém?”.
E no dia 01 de novembro de 2017, quando finalizava esse trabalho, o atual
Ministro da Justiça, Torquato Jardim, noticiou que Michel Temer, pressionado pela
bancada ruralista, enviará ao Congresso Nacional a proposta de arrendamento de terras
indígenas para produtores rurais. E no Informativo 2017/2018 do Ministério da Justiça,
ainda acrescenta que, sobre a questão indígena, “busca por soluções inovadoras que
beneficiem tanto as comunidades indígenas quanto a produção agrícola brasileira.”108
Essas frases, além de apresentarem um senso comum e um desconhecimento
sobre os sentidos de terra para os grupos indígenas, expressa justamente as “disputas
entre visões de mundos” (BORGES, 2011). De um lado temos a terra da diferença, de
crianças, velhos e ancestrais, de outro temos a terra homogênea, retalhada pela
monocultura e pelos loteamentos. E essas disputas tem efeitos na vida das pessoas,
como tentei mostrar através das etnografias do Tekoha 1 e do Tekoha 2.
Como apresentado as retomadas no MS fazem parte de um quadro histórico
e social mais amplo, reflexo do processo de colonização e desenvolvimento do estado
do MS, somado à política indigenista praticada pelo SPI de reservamento da população
Kaiowá e Guarani. É na conjuntura do processo de esbulho das terras desses povos e
dentro das reservas superpovoadas e que não representam condições ideais para a vida
Kaiowá e Guarani que muitas famílias passaram a retomar e reivindicar seus antigos
tekoha.
O retorno está associado a uma “forma retomada” que reúne diversos
elementos. Além disso, destacou-se o papel fundamental dos Aty Gasu, como espaços
que surgiram quase que concomitantemente às primeiras retomadas, como espaço de
108 Ver noticia em: em https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2017/11/01/governo-retoma-ideia-de-
arrendar-terra-indigena/
121
sociabilidade e de consolidação de redes de relações, onde informações e
conhecimentos vão sendo trocados.
As etnografias do Tekoha 1 e do Tekoha 2, além de contar a história dessas
retomadas e apresentar os elementos acionados em cada uma delas, também mostrou
como no cotidiano das áreas de retomadas existe uma diversidade de relações. O
Tekoha 1, uma ocupação muito mais longa, é marcada pelo traço de uma liderança
estável articulada entre dois irmãos que conseguiram reunir sua parentela. Hoje no
Tekoha 1 só mora parente.
O Tekoha 2, por sua vez reúne diversos grupos de parentelas, exigindo
muita habilidade de suas lideranças. Na tentativa de controlar os conflitos dentro da área
e a mistura passaram a se organizar de uma maneira muito semelhante à adotada pelos
movimentos sem-terra - há um cadastro de moradores que sempre é atualizado, as
reuniões da comunidade são realizadas com frequência e há uma preocupação em
manter os lotes limpos e com roças.
Contudo é o “tekoha como uma criança pequena”, que me permitiu
visualizar os sentidos das áreas de retomadas para meus interlocutores. Pois, como
menciona Cayón, em sua etnografia sobre os Makuna, “[...] para os indígenas, o espaço
vai muito além de uma construção cultural ou da representação simbólica de uma
topografia previamente dada, posto que é parte fundamental do pensar, viver e sentir o
mundo, modificando e colocando em movimento conhecimentos profundos sobre o
mesmo” (2010: 189).
Para os Kaiowá e Guarani, retomar o seu tekoha, significa retomar sua
relação com a terra que faz crescer plantas e alimentos, tal como pessoas. Ao mesmo
tempo, significa entregar seus mortos na mesma terra que estão seus ancestrais. São
outros sentidos. A terra é pensada como um corpo, que assim como as crianças deve ser
cuidada e fabricada constantemente, ao mesmo tempo, gera “a comida de índio”.
Assim, a terra para os Kaiowá e Guarani, acima de tudo, diz sobre o corpo, sobre
práticas de cuidados e sobre relações de parentesco, ou seja, uma terra pensada não
apenas como suporte de relações, mas também como componente delas. Desta maneira,
parece estar tudo conectado: pessoas, terra, frutos da terra e corpos, que forma um
conjunto capaz de controlar a mistura.
A gramática da terra, acionada pelos meus interlocutores, não está apenas
circunscrita a um espaço físico, a um lugar de produção de alimento; seus sentidos
122
extrapolam essas categorias a partir das quais tentam defini-la. Por outro lado, não só a
terra, mas seus sentidos estão sendo disputados.
A violência e assédios que a comunidade do Tekoha 1 vem sofrendo com
especulação imobiliária da cidade de Dourados é flagrante. Além disso, a disputa por
uma terra indígena dentro da área urbana do munícipio, também suscitou uma discussão
sobre o lugar do índio. Dourados é marcada por um senso comum entre habitantes da
cidade que veem os índios como preguiçosos, avessos ao trabalho, alcoólatras, violentos
e todo tipo de estereótipo que associa esses povos com algo ruim, perigoso e que deve
ser evitado. Estamos falando de um lugar marcado por preconceito étnico, muitas vezes
acompanhados de violência física contra pessoas destas etnias. Assim, para a população
local principalmente dos moradores da cidade de Dourados, que tem uma relação
cotidiana com as pessoas indígenas que circulam pela cidade, os índios devem viver nas
reservas, criadas pelo Estado, não tendo assim a necessidade de novas demarcações. Na
visão dos moradores locais, do setor do agronegócio e imobiliário, as terras indígenas já
foram demarcadas, mas não consideram em que condições estas terras foram
demarcadas e nem a condição atual em que elas se encontram. Esse argumento é um dos
exemplos, que demostra o quanto é necessário discutir os conflitos envolvendo o
conceito de terra para os grupos indígenas e para os demais segmentos locais.
Essa divisão do mundo social que “abarca relações de forças que são tanto
materiais como simbólicas” (BOURDIEU, 2003) é disputado por diferentes lógicas,
como fica expresso nas frases acima, nos comentários de que lugar de índio é na reserva
e na proposta do setor imobiliário de deslocar a comunidade do Tekoha 1 para uma
localidade previamente escolhida por eles. No caso do Guarani e Kaiowá, se no passado
o processo de reservamento no MS levou em consideração interesses econômicos e os
Guarani e Kaiowá se viram confinados (BRAND, 1997) nas reservas. Na atualidade,
além do agronegócio, os indígenas se defrontam com o crescimento das cidades e da
especulação imobiliária.
Nessa disputa, terra como propriedade privada tende a eclipsar a noção de
que “para o índio, a terra é um elemento central, ela não só enche a barriga, mas enche
também o sentido da vida para os indígenas"109.
109 Frase proferida por Cleber César Buzatto do CIMI em reação a fala de Osmar Serraglio: “terra não
enche barriga de ninguém”.
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desenvolvimento passados e presentes”. IN: Feldman-Bianco, Bela (org). Antropologia
das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
VIVEIRO de CASTRO. Contra-antropologia, contra o estado: Uma entrevista com
Eduardo Viveiros de Castro. Revista Habitus. Vol.12, N. 2, pp. 89- 100, 2014.
129
Anexos
Glossário
Aty Guasu: grande assembléia
Avati kyry: batismo do milho
Hi’u: cabeça de parentela
Jaike Jevy: recuperação
Japora: mistura
Jeroky guasu: grandes rituais religiosos
Mita ñemongarai: batismo da criança
Mitã tuixama: criança com mais de sete anos
Ñandeci: rezadora
Ñanderu: rezador
Ñei em porã: palavra boa e bela
Opuã: levantar
Sarambi: fragmentação da parentela/esparramo
Tape po’i: caminho estreito
Te’yi: parentela
Teko katu: forma bonita e correta de se viver
Tekoha: termo polissêmico, compreendido como território
Xapiri: espírito da floresta (Yanomami)
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Sessão Fotográfica
Foto 1: Barracos e mata do Tekoha 1
Foto 2: Barraco Tekoha 1, ao fundo pode- se ver a cidade, que fica logo atrás da
rodovia.
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Foto 3: Caminhando pelos tapes poi no Tekoha 1.
Foto 4: Moradores do Tekoha 1 reunidos no dia 19 de abril.
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Foto 5: Barraco da vice-liderança do Tekoha 2, nesse período ela e seu marido estavam
ampliando-o.
O cotidiano nos tekoha
Foto 6: Mulheres do Tekoha 1, reunidas para tomar tereré
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Foto 7 e 8: Mulheres lavando roupa no açude do Tekoha 1
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As crianças nos tekoha
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