ANÁLISE DA OBRA "POEMA SUJO", DE
FERREIRA GULLAR_____________________________________________________
O AUTOR
Em 1970, Ferreira Gullar é obrigado a deixar o Brasil, vivendo em várias
cidades, foi em Buenos Aires, que o poeta escreveu em 1975 entre maio e outubro o
“Poema Sujo” que foi muito bem acolhido pelos intelectuais.
Eram realizados encontros e foi na casa de Augusto Boal, em Buenos Aires,
entre grupo de amigos, liderados por Vinícius de Moraes que conheceram e se
apaixonaram pelo “Poema sujo”, assim Vinícius de Moraes leva o poema para o Rio de
Janeiro escondido em fita-cassete, por razões de segurança.
Já no Brasil Vinícius promove sessões de audição privada para intelectuais e
jornalistas, e o editor Ênio Silveira resolve publicá-lo no ano seguinte, sem a presença
do poeta, ainda exilado. Esse poema abriu as portas para o seu retorno ao país, que
foi em março de 1977.
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OS CRÍTICOS
Publicado em 1967, Poema Sujo é considerada a obra mais ousada de Ferreira
Gullar. Produzido no exílio, em Buenos Aires, surgiu da necessidade de, como ele
mesmo afirmou, “escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que
me calassem para sempre”.
A crítica foi benevolente com o poema, segundo Vinícius de Moraes, esse “é o
mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”; Otto Maria
Carpeaux considera-o um “poema nacional”, uma verdadeira “encarnação do exílio”,
trazendo todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças de vida do homem
brasileiro. Clarice Lispector classifica-o de “escandalosamente belíssimo”.
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A PROPÓSITO DO TÍTULO
Ferreira Gullar, a despeito do título de sua obra, afirma: “(...) é porque eu pego
o que tem de escuro, de sujo, as cadeiras velhas, os armários velhos, e coloco uma
luz. Vou até embaixo, no fundo, e subo trazendo tudo junto: o que é poesia e o que
não é poesia”.
Ao questionar o título do Poema sujo, indaga se esse adjetivo teria a mesma
conotação de pornográfico, imoral, contrário às normas tradicionais de boas maneiras.
Ma o “sujo” não se localiza nos palavrões, nas tiradas eróticas;
O “sujo” está na miséria, na fome, na obscena divisão de classes. O “sujo” está
inserido no tempo da enunciação do texto: anos 70, ditadura militar, milagre
econômico a enriquecer uma minoria, tortura e censura obscurecendo o país, o poeta
exilado, em sua vida clandestina, prestes a ser preso ou fuzilado a qualquer momento;
O Poema sujo é um painel-memorial onde se acham acontecimentos tristes de
sua vida até aquele momento.
É poema sujo por não seguir as regras poéticas de métrica, rima, palavras
adequadas e vocabulário. Há gírias, palavrões e, até mesmo, obscenidades na
linguagem. Ainda pode ser poema sujo por ser de um autor perseguido na época,
contrário ao regime do seu tempo de rapaz.
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O ESTILO DA ÉPOCA
Gullar afirma que suas obras são fruto de reflexões sobre os acontecimentos, a
vida e as pessoas, escrita com coerência. O Poema sujo, que é seu livro mais
conhecido internacionalmente, já foi publicado na Alemanha, Espanha, Colômbia e
EUA, é considerado a obra mais ousada de Ferreira Gullar.
Esta obra como diz o autor, é uma obra que traz uma reflexão vigorosa e
penetrante sobre a infância e o resgate.
O poeta escreveu as cinco primeiras laudas em um só fôlego:
“Ao terminá-las, sabia de tudo: que o poema ia ter por volta de cem páginas,
que teria vários movimentos como uma sinfonia e que se chamaria 'Poema sujo'. Hoje,
ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou: quando a
vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, invente,
através dele, outro destino.”
Escreveu-a numa época de forte repressão política, Gullar sentia-se perseguido
pela ânsia de relembrar o passado e a dificuldade de expressar, em linguagem
poética, o universo interior, o que transparece logo nos primeiros versos, no nível
formal do texto:
turvo turvoa turvamão do soprocontra o muroescuromenos menosmenos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo escuromais que escuro:claro
Como água? Como pluma? Claro mais que claro claro: coisa algumae tudo(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas (GULLAR, p.1)
Há, nessa passagem, o uso consciente de vogais e consoantes que sugerem um
conflito entre o desejo pela expressão exata e a impossibilidade de transpor para o
verso as impressões da vida real. Esse embate repercute na utilização das consoantes
oclusivas [t] e [p], que reproduzem sons fortes e pesados, mostrando que o poema
começa a se revelar, mas ainda se acha à mercê dos óbices de transformar em
linguagem poética a experiência profunda, armazenada como sentimentos, emoções e
recordações. Por outro lado, as vogais [o] e [u] também causam a sensação de
fechamento e escuridão, sem mencionar que a palavra muro realça esse labor com a
linguagem.
Logo em seguida aparecem outros estilísticos que demonstram a superação das
primeiras barreiras. O jogo de antíteses (escuro x claro, menos x mais, mole x duro)
reforça uma ambigüidade: ora a imagem emerge espontânea, ora se esconde no
pensamento. No primeiro caso, brotam do interior como uma explosão, ou seja, “como
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas”. No entanto,
em certo momento, os versos fluem com mais nitidez e as palavras revelam imagens
mais consistentes:
claro claro mais que claro
raroO relâmpago clareia os continentes passados: (GULLAR, p.15)
Em razão de uma originalidade sempre buscada (Gullar, de certa forma,
antecipou o Movimento Concretista, de 1956, com os poemas do final do livro A Luta
Corporal, de 1953), no Poema sujo ele se esmera (aprimora) na coragem despudorada
de revelar explicitamente a sordidez e a impureza do cotidiano humano em passagem
insólitas (incomum), embora amparadas por uma consciência poética que torna esses
rompantes expressivos alheios a um simples e pueril desejo de subverter ou chocar.
Em alguns momentos, o poeta declara abertamente:
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre [as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta] como uma boca do corpo (nãocomo a tua boca de palavras) como uma entrada para (GULLAR, p.2)
O poema é estruturado em versos livres (em alguns momentos, há versos em
redondilha maior – quadra de versos de sete sílabas, na qual rimava o primeiro com o
quarto e o segundo com o terceiro, seguindo o esquema abba) explorando com
liberdade o espaço gráfico, recorrendo, às vezes, a expedientes concretistas:
nadavalenadavalequemnãotemnadavale TCHIBUM!!! (GULLAR, p.26)
O poema é um corpo constituído de quatro temas principais: infância/ família –
corpo/prazer – tempo/tempos – cidade/vida. Nele há uma mistura de tristeza e alegria,
esperança e angústia, caráter histórico e mistério existencial, corpo humano e espaço
urbano. A forma poética é também híbrida (misturada), recorrendo a versos curtos e
longos, versos livres e metrificados, linguagem clássica e linguagem chula, narrativas
e fragmentos, léxico popular e erudito, anáforas, sinestesias, aliterações, assonâncias,
onomatopeias.
Ao observar o movimento de versos e estrofes, as páginas e seus
espaçamentos, pressente-se que existe de fato uma arquitetura nesse corpo poético.
A paginação rigorosa obedece a um desenho que pode ser assemelhado às partituras,
e o número de páginas do poema corresponde à média de páginas que possui a
edição de uma sinfonia.
Há a influência do concretismo/neoconcretismo pode ser identificada em várias
passagens da obra, em que o espaço em branco é ocupado graficamente pelo verso.
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MONTAGEM DO POEMA
Embora o poema não apresente subtítulos, capítulos ou subdivisões, podemos
apontar, através de espaços deixados entre as suas 93 páginas, 09 blocos distribuídos
assimetricamente: enquanto o menor tem quatro páginas, o maior tem 26.
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PRIMEIRO BLOCO: da página 1 a 18
Na oposição entre o turvo e o claro, o poema nasce no nível da inconsciência,
da pré-fala, buscando atingir a fala consciente.
O primeiro grande impacto do poema vem nos seguintes versos:
azulera o gatoazulera o galoazulo cavaloazulteu cu. (GULLAR, p.1)
Como observa Turchi, a última palavra chula quebra o encantamento azul da
infância e da fantasia, “e fecha como que o inconsciente para acordar o consciente na
busca da realidade da vida”.
Acentuando uma fixação pelo corpo que se torna o instrumento essencial na
interpretação do mundo. Um dos elementos que comprova o vigor poético do livro são
as referências ao corpo, escritas numa linguagem prosaica e explosiva, como o que
habilita o homem a conviver e explorar, simultaneamente, o mundo da cidade exterior
e interior, enriquecendo a obra pela tensão causada pela conciliação de contrários. A
matéria corporal contém, por associação ou comparação, os significados do mundo
exterior. Assim, inscreve-se no corpo do poeta o que existe no mundo concreto:
e os carinhos mais doces mais sacanas mais sentidospara explodir como uma galáxia de leite no centro de tuas coxas no fundo de tua noite ávidacheiros de umbigo e de vagina graves cheiros indecifráveis como símbolos do corpodo teu corpo do meu corpo (GULLAR, p. 9)
São recorrentes então as relações entre o “corpo” da cidade e o corpo do poeta,
aproximação que confirma aquilo que contém todo o mundo exterior e dele participa
com autonomia. Essa presença do corpo em todos os acontecimentos é, na verdade, o
reconhecimento de uma consciência formada pela junção de elementos reais e
imaginários, concretos e abstratos, revelados numa belíssima metáfora.
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio de tudo como um monturode trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias sambas e frevos azuis (GULLAR, p.12)
Assim, o corpo é elemento intermediário entre o mundo e a consciência do
poeta. Noutra passagem, a tentativa de valorização do corpo como elemento salutar
na descoberta do mundo ocasiona a busca, gradativa, pela especificação da própria
individualidade.
Mas sobretudo meu corpo nordestino
mais que isso maranhense
mais que isso sanluisense
mais que isso ferreirense newtoniense alzirense (GULLAR, p.12-13)
Por outro lado, a ausência de pontuação marca o fluxo associativo do
pensamento que, muitas vezes, aproxima imagens logicamente desconexas. Assim, a
eliminação da vírgula reflete a correlação entre os elementos mencionados, fundindo-
os em blocos de imagens inusitadas. Como nem sempre se pode distinguir o que é
memória e o que é fantasia ou imaginação, essas associações insólitas ocorrem com
frequência devido à natureza recordativa da obra. Na seguinte passagem, é evidente
a enumeração caótica, conscientemente utilizada para evidenciar o tom febril e
vigoroso do seu temo:
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade sob
as sombras da guerra:a gestapo a wehrmancht a raf a feb a blitzkrieg
catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os facistas os nazistas os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o querosene o sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
(GULLAR, p.7)
É desse modo que o poeta amalgama, numa estrutura dissonante e
fragmentária, evocações da infância e da juventude na cidade de São Luís do
Maranhão, na tentativa de reviver o passado no presente para, assim, reconstituir um
mundo em que a imaginação e a realidade se confundem de modo condensado e
comovente. Tendo em vista a multiplicidade de lembranças e associações que ora
atualizam o passado, ora relembram o presente, o poeta criou o que alguns críticos
denominaram “poema do simultâneo”, já que entre a imaginação e a realidade se
dissolve e tudo se atualiza em forma de diálogo interior. Nesse sentido, mais uma vez
os sinais de pontuação desaparecem em favor de uma técnica moderna de
enumeração que transporta para a linguagem o fluxo sempre caótico da mente
inconsciente, como na passagem que relembra:
constelações de alfabetonoites escritas a gizpastilhas de aniversáriodomingos de futebolenterros corsos comíciosroleta bilhar baralho (GULLAR, p.2)
Ou então quando o poeta fixa imagens isoladas que rememoram um mundo
primitivo e inocente, evocado pela presença constante do corpo depósito da
experiência vivida:
Mas a poesia não existia ainda.Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.Olhos. Braços. Seios. Bocas.Vidraça verde, jasmim.Bicicleta no domingo.Papagaios de papel.Retreta na praça.Luto.Homem morto no mercadosangue humano nos legumes.Mundo sem voz, coisa opaca. (GULLAR, p.7-8)
Mais que isso, essa simultaneidade de imagens e lembranças, capaz de
fomentar um diálogo constante entre elementos do tempo e do espaço, tem um
objetivo: a superação do tempo pela concretização de tudo aquilo que, cotidiano ou
não, garante um olhar mais apurado e crítico da própria existência, daí a
impossibilidade de separação entre o que é memória, fluxo de consciência e
cronologia. É isso, aliás, que caracteriza a universalidade de Poema sujo: a
transcendência do espaço/tempo, fundidos na consciência e eternizados numa
linguagem realista e ao mesmo tempo psicológica, lírica e cinematográfica, que
aglutina o universo vivido.
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SEGUNDO BLOCO: da página 19 a 26
Neste segundo bloco, o poeta começa evocando o rio Anil, sujo e miserável,
com seus bagres e lama podre. Num tempo em que o menino não conhecia Homero,
Dante nem Boccaccio, evoca a locomotiva que se parecia com um paquiderme (de
pele espessa com um elefante), o poema abusa das onomatopéias (“tchi tchi/ trã trã
trã trã”) e compõe esses versos singelos e líricos:
lá vai o trem com o meninolá vai a vida a rodarlá vai ciranda e destinocidade e noite a girarlá vai o trem sem destinopro dia novo encontrarcorrendo vai pela terra (GULLAR, p.20)
Percebe-se queo poeta distribui as palavras de acordo com o movimento
melódico do verso, subtraindo as formas tradicionais de versificação. Por isso, as
onomatopeias, recorrentes na obra, causam estranheza ao leitor desavisado, que se
surpreende com certas reproduções auditivas, como:
tchi tchitrã trã trã
trã TARÃ TARÃtchi tchi tchi tchi tchi
TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ (GULLAR, p.20)
VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ
tuc thuc tuc thuc tuc thuc (GULLAR, p.21)
IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
tuc thuc tuc thuc tuc thuc (GULLAR, p.21)
lará lará larará
lará lará larará
lará lará larará
lará lará larará lará larará lará larará
lará lará lará
lará lará lará (GULLAR, p.21-22)
Esses recursos auditivos transmitem o despojamento de uma consciência
poética atenta ao aspecto intuitivo, àquilo que não é pensado, mas sentido e, por isso,
alheio a regras gramaticais. É a ousadia de reconhecer o valor imaginativo das
associações sonoras porque, no Poema sujo, nada é proibido, tanto que as
“lembrancimagens” refletem o processo de simultaneamente responsável, em muito,
pelo caráter polissêmico do livro.
O isolamento deliberado de algumas palavras realça e concretiza cada uma
delas, criando assim novos níveis de significação vocabular. Em alguns trechos, o
autor se vale de recordações da infância em passagens que se assemelham a jogos
infantis, verdadeiros momentos lúdicos em que a assimetria do texto acompanha a
espontaneidade sempre presente nesse jogos, destituídos de qualquer rigor coercitivo:
café com pãobolacha não
café com pãobolacha não
vale quem temvale quem tem
vale quem temvale quem tem
nada valequem não tem
nada não valenada vale quem nadatem
neste vale (GULLAR, p.25)
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TERCEIRO BLOCO: da página 27 a 52
O poeta prossegue escavando a memória, remexendo na terra suja do quintal,
evocando os mortos do passado e, simultaneamente, falando de seu presente.
De volta ao passado, o poeta voa sobre a miséria de São Luís, na fábrica de
Camboa, onde os operários eram explorados (não deixa de ser uma crítica); referente
ao amigo de infância (Esmagado) e às casas de palafitas. Nas lembranças do poeta,
acionadas pela noite, há o contraste entre a burguesia e os operários. Neste bloco, “a
noite” é uma imagem recorrente:
Maria do Carmoque entregava os peitos enormespros soldados chuparemna Avenida Silva Mariasob os oitizeirose deixava que eles esporrassementre suas coxas quentes (sem meter)mas voltava para casacom ódio do pai(e malsatisfeita da vida) (GULLAR, p.35)
Com um realismo quase sempre doloroso, Gullar elabora um dos temas mais
caros de sua poética, também presente no Poema sujo: a fragmentação e a
temporalidade das coisas e dos homens, ou seja, a evidente submissão do homem ao
tempo, que a tudo destrói impiedosamente:
Numa coisa que apodrece― tomemos um exemplo velho:
uma pêra ―o temponão escorre nem grita,
antes se afunda em seu próprio abismo,
se perdeem sua própria vertigem,
mas tão sem velocidadeque em lugar de virar luz viraescuridão (GULLAR, p.40-41)
A intertextualidade é evidente, nesta passagem, com o poema As peras, de A
Luta Corporal:
As peras, no prato,apodrecem.O relógio, sobre elas, medea sua morte?Paremos a pêndula. De-teríamos, assim, a morte das frutasOh as peras cansaram-sede suas formas e desua doçura! As peras,concluídas, gastam-se nofulgor de estarem prontaspara nada.O relógionão mede. Trabalhano vazio: sua voz deslizafora dos corpos.(...)_____________________________________________________
QUARTO BLOCO: da página 53 a 59
Este bloco será pontuado com a história dos pássaros, reproduzindo as
ocupações profissionais, os pássaros serão relacionados com as histórias humanas: o
curió que cantava na barbearia puxa o caso da filha do barbeiro que fugiu com o filho
do carteiro, provocando um comentário racista das vizinhanças:
(a filha do barbeirofugiu com o filhodo carteiroum mulatoque trabalhava nos Correiros.As vizinhas cochichavam:“se tivesse fugidocom um brancoao menos ia poder casar”) (GULLAR, p.55)
As diferenças sociais são apontadas a partir da referência aos pássaros. Através
dos pássaros, o poeta evoca outros dramas, como o de seu Neco, que matou a mulher
que punha chifres. O autor encerra esse bloco com referências míticas aos guerreiros
(que conhecem a história dos pássaros) e ao vento que sopra nas árvores de São Luis,
que irá soprar a memória do poeta no próximo bloco.
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QUINTO BLOCO: da página 60 a 67
O protagonista deste bloco é o pai do poeta, Newton Ferreira:
Não seria correto dizerque a vida de Newton Ferreiraescorria ou se gastavaentre cofos de camarões, sacas de arroze paneiros de farinha-d'águanaquela sua quitandana esquina da Rua dos Afogados com a Rua da Alegria. (GULLAR, p.60)
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SEXTO BLOCO: da página 68 a 77
Os versos giram em torno da cidade de São Luis, verde e úmida, com seus
ventos sonoros. A memória do autor busca os capinzais e sinestésicas evocações
sexuais:
vertigem de vozes brancas ecos de leite de cuspo morno no membro
o corpo que busca o corpo (GULLAR, p.70)
A sujeira acompanha implacável cada lembrança:
buscandoem mim mesmo a fonte de uma alegriaainda que suja e secreta (GULLAR, p.70)
Ainda neste bloco, o título do poema se esclarece nesta confidência do
sanluisense:
Ah, minha cidade sujade muita dor em voz baixa
de vergonha que a família abafaem suas gavetas mais fundasde vestidos desbotadosde camisas mal cerzidasde tanta gente humilhadacomendo pouco
mas ainda assim abordando de floressuas toalhas de mesasuas toalhas de centro
de mesa com jarros (GULLAR, p.71)
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SÉTIMO BLOCO: da página 78 a 81
A cozinheira Bizuza, no seu “universo de panelas e canseiras”, é a personagem
citada neste bloco, ao lado da cidade de São Luís:
Outra velocidadetem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lencóis lavados e passadosa ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna. (GULLAR, p.78)
De novo, surge a reflexão sobre tempo e espaço, de novo o poeta evoca os
mortos, os habitantes que não existem, mas são ressuscitados pela força da memória:
E se não eraeterna a vida, dentro e fora do armário,o certo é quetendo cada coisa sua velocidade
(a do melado escura, clara
a da água a derramar-se)
cada coisa se afastavadesigualmentede sua possível eternidade. (GULLAR, p.79)
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OITAVO BLOCO: da página 82 a 88
Este bloco trata da reflexão a respeito das coisas do cotidiano, a crença no
trabalho humano, a valorização das coisas, etc.
Porquediferentemente do sistema solar
a esses sistemasnão os sustém o sol e simos corposque em torno dele giram:não os sustém a mesamas a fomenão os sustém a camae sim o sononão os sustém o bancoe sim o trabalho não pago (GULLAR, p.86-87)
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NONO BLOCO: da página 89 a 94
Neste bloco, o poeta, antecipando o seu último livro publicado, busca relacionar
as coisas umas com as outras, deixa o fragmento e atinge a totalidade; o poeta, ao
falar da sua infância, da família e dos objetos, cria uma intensa e tensa rede de
relações, que se prendem à história. Dando um balanço em sua vida e em sua obra,
em seu livro memórias, Ferreira Gullar conclui: “A vida não é o que poderia ter sido e
sim o que foi. Cada um de nós é a sua própria história real e imaginária”.
Há quem reconheça a obra como um “poema de memória”, embora não haja
uma visão idealizada de sua cidade, nem a fuga em reconhecer que a miséria se
esconde tanto nas relações sociais e políticas no interior do homem moderno,
angustiado pelo eterno descompasso entre a realidade e o sonho que, embora suavize
o sofrimento, ainda esconde, de certa forma, o real circundante. Esse descompasso se
camufla em comparações que denunciam as correspondências entre as coisas e os
homens, ou seja, uma coisa, de certa forma, está na outra:
O homem está na cidadecomo uma coisa está em outrae a cidade está no homemque está em outra cidade
mas variados são os mortoscomo uma coisaestá em outra coisa:o homem, por exemplo, não está na cidadecomo uma árvore estáem qualquer outra (GULLAR, p.91-92)
Assim, a vida reside no interior de cada objeto e de cada homem, emergindo,
no poema, e imagens comparativas que tentam superar a dificuldade de
esclarecimento tanto da linguagem quanto do sentido da existência humana:
mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meucorpo?)
lampeja o jasmim (GULLAR, p.69)
O isolamento de “lampeja” acentua o poder de significação desse vocábulo que
se mostra, assim, marcado pela sensação do descobrimento abrupto de um enigma.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda obra literária autêntica revela o poder de expressão de seu autor. Essa
capacidade de transformação em linguagem a experiência interior requer, por parte
do artista, sensibilidade para reconhecer a inseparável relação entre esse universo
íntimo, de onde brota o calor da imaginação que anima o artista, a habilidade pessoal
de transmutar em linguagem esse magma disperso e a experiência exterior, que
servirá como alimento permanente desse fluxo de vida capaz de fazer do poeta um
moinho a gerar sempre novos significados em sua relação com o mundo. É bem
verdade que situações históricas relevantes foram imortalizadas em grandes obras
por artistas que sabiam, como o poeta Ferreira Gullar, com o Poema sujo, exprimir
com maestria os sentimentos que a realidade suscita no homem sensível, sempre
alerta e consciente de sua participação como ser social.
A força poética da obra gullariana reside, portanto, na qualidade das sugestões
psicológicas, no emprego inusitado da palavra e na capacidade de, como o próprio
autor afirma: “explodir a linguagem” em versos que marcaram, pela singularidade, os
rumos da criação poética brasileira. Isso sem mencionar a dignidade e a sinceridade
co que assume a dureza da existência humana e a transfigura em poemas que
evocam não apenas o universo paradisíaco da infância, mas também inscrevem um
novo sentido ético, que seguramente nos torna mais conscientes dos mistérios de
existir num mundo que, como diz Gullar, “espanca e comove”.
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TESTES - QUESTÕES OBJETIVAS
01. Assinale o comentário incorreto sobre “Poema sujo”, de Ferreira Gullar:
a) A alma da cidade de São Luís aparece como símbolo da saudade que é a memória afetiva.b) Há uma geografia viva de ruas e becos da capital maranhense no humano roteiro traçado.c) A cidade não é apenas símbolo da própria infância, mas também de todas as cidades humilhadas.
d) A terra natal é um espaço edênico, seja pela topografia privilegiada, seja pelas riquezas naturais.
02. Ferreira Gullar escreveu livros denominados “Barulhos”, “Muitas vozes”, “A luta corporal” e “Crime na flora”. Os versos abaixo, de “Poema sujo”, apresentam relações com tais títulos, exceto:
a) as casas, as cidades, são apenas lugares por onde
passando passamos
b) A morte se alastrou por toda a rua, misturou-se às árvores da quinta
c) tchuc tchuc tchuc tchuc tchuc tchuc TRARÃ TRARÃ TRARÃ
d) corpo que pode um sabre rasgar um caco de vidro uma navalha
03. Leia o trecho de “Poema sujo”: “Quando chegaram os americanos/ (...) compraram todas as frutas e legumes/ (...) pagaram um salário incrível (...)/ e puseram o pé em cima da mesa”. Assinale a afirmativa incorreta:
a) O poema evoca episódios da Segunda Guerra, ocorridos em São Luís.b) Os quatro verbos utilizados evidenciam, dentro da guerra geral, uma guerra particular.c) Embora aliados dos brasileiros na luta contra o Eixo, os americanos contrastam com os nativos.d) Verifica-se no trecho e ao longo do poema uma visível atitude pacifista defendida pelo poeta.
04. A intertextualidade ocorre nas passagens abaixo de “Poema sujo”, exceto em:
a) Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?b) bela bela/ mais que bela/ mas como era o nome dela?c) Te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinemad) Sambas e frevos azuis/ de Fra Angelico verdes/ de Cézanne/ matéria-sonho de Volpi
05. A fala popular está presente nos versos de Ferreira Gullar, exceto em:
a) (e os canários,/ nem-seu-souza: improvisam/ em sua flauta de prata)b) Mas de Newton Ferreira, ex-/ Center-foward da seleção maranhensec) (“Caniivetada nas costas,/ pegou bem aqui, lá nela./ Não saiu um pingo de sangue,/ foi hemorragia interna”)d) e deixava que eles esporrassem/ entre suas coxas quentes (sem/meter)
06. Todas as correspondências estão corretas, exceto:
a) Símile– nem a miséria dos homens/ escravos de ouro/ que ali vivem agora/ feito caranguejosb) Metáfora – Desce profundo o relâmpago/ de tuas águas em meu corpoc) Neologismo – mais que isso/ sanluisense/ mais que isso/ ferreirense/ newtoniense/ alzirensed) Sinestesia – pelo meu carneiro manso/ por minha cidade azul/ pelo Brasil salve salve
07. Todos os aspectos relacionados estão presentes em “Poemas sujo”, exceto:
a) O sentido trágico da realidade, associando o caráter histórico e o mistério existencial.b) A dualidade do tempo e do espaço, alternando corpo-matéria e velocidade-tempo.c) A visão idílica do passado, como forma de o eu-lírico esquecer sua condição de exilado.d) Reiteração de episódios marcados pela sexualidade evidenciando forte acento de paixão corporal.
08. Leia a passagem do “Poema sujo”:
“um rionão apodrece como as bananasnem como, por exemplo,uma perna de mulher- (da mulherque a gente não viamas fedia durante toda a manhãda casa ao lado de nossa escola,na épocada guerra)”
Assinale a afirmativa incorreta sobre o texto:
a) As experiências e lembranças do poeta formam uma continuidade dentro dele e da história.b) Os contrastes estão presentes, pois, enfatizando a visão da paz, aumenta o horror da guerra.c) A guerra que acontece na Europa tem relação com o que acontecer na cidade do poeta.d) Ao relacionar uma coisa com a outra, o poeta vai criando uma totalidade.
09. Ferreira Gullar recorre ao enjambement ou encavalamento nos versos abaixo, exceto em:
a) E a noite mais tarde pronta passaria aos trambolhões com sua carruagem negra
b) De noite, comoa luz é pouca,a gente tem a impressãode que o tempo não passa
c) o canário-da-terra (na gaiola
de seu Neco)...
d) eu não sabia tu não sabias fazer girar a vida.
10. Os versos evidenciam a temática social em “Poema sujo”, exceto:
a) Enquanto isso/ o dr. Gonçalves Moreira mantinha na sua sala/ um casal de canários belgas numa gaiola de prata/ (...) E trouxe uma caboclinha/ de suas terras em Barra do Corda/ para arrumar as gavetas (lençóis/ de linho branco cheirando a alfazema)b) Debaixo da capa, do paletó, da camisa/ debaixo da pele, da carne,// combatente clandestino aliado da classe operária/ meu coração de meninoc) Vale quem tem/ nada vale/ quem não tem/nada não vale/ nada vale/ quem nada/tem/ neste valed) Mas na cidade havia/ muita luz./ a vida/ fazia rodar o século nas nuvens/ sobre nossa varanda/ por coima de mim e das galinhas no quintal
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