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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
ANA CLARA CORREA HENNING
CONEXES ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA:RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NA PRTICA DE PESQUISA
JURDICA DO CURSO DE DIREITO DA ANHANGUERAEDUCACIONAL/FACULDADE ATLNTICO SUL EM PELOTAS
Pelotas2008
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ANA CLARA CORREA HENNING
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Educao da Universidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial para a obteno do grau de Mestre emEducao.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Ceclia Lorea Leite
Co-Orientador: Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira
Pelotas2008
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ANA CLARA CORREA HENNING
CONEXES ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA:RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NA PRTICA DE PESQUISA
JURDICA DO CURSO DE DIREITO DA ANHANGUERAEDUCACIONAL/FACULDADE ATLNTICO SUL EM PELOTAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Educao, da Universidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial para a obteno do grau de Mestre emEducao.
Aprovado em:............de..........................de......
Banca Examinadora:
Orientadora: Prof. Dr. Maria Ceclia Lorea Leite
Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira
Prof. Dr. lvaro Hyplito
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Este trabalho foi resultado da colaborao e inspirao de inmeras pessoas.
Assim, a vo os agradecimentos.
Ao Mrcio, por encantar os meus dias, e pelo companheirismo sob as
atribulaesdas pesquisas de campo e da elaborao desta dissertao:
Tira-me o po, se quiseres, tira-me o ar,mas no me tires o teu riso.No me tires a rosa, a lana que desfolhas,a gua que de sbito brota da tua alegria,a repentina onda de prata que em ti nasce.A minha luta dura e regresso com os olhos cansadoss vezes por ver que a terra no muda,
mas ao entrar, teu riso sobe ao cu a procurar-mee abre-me todas as portas dessa vida [...]Ri-te da noite, do dia, da lua,ri-te das ruas tortas da ilha,ri-te deste grosseiro rapaz que te ama,mas quando abro os olhosquando os fecho,quando meus passos vo,quando meus passos voltam,nega-me o po, o ar,a luz, a primavera,mas nunca o teu riso,porque seno, amor, eu morreria.
Pablo Neruda
toda a Famlia Trapo, evidentemente:
Didi, Eva, Bibi e Tia Chininha, nossas razes: to fortes que com eles sentia-
se o prazer que se experimenta junto a uma montanha (Paul Veyne).
Rosinha e Fernando. O tema desta pesquisa no mera coincidncia. Oamor incondicional que atravessa todas as distncias tambm fruto da admirao
pela generosidade, senso de justia e confiana na superao de obstculos.
s minhas Gmeas, Paula e Clarissa. Parte da minha identidade foi forjada
em meio ao barulho e reunio, aos encontros e desencontros de nossa
convivncia familiar.
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Ao Fernando Alberto, cujos passos segui durante a infncia e, mais tarde,
ao longo da Faculdade de Direito. E Elena, modelo de profissional dedicada ao
direito e a famlia.
Ao Igor, Laurinha e ao Henrique, nova gerao que nos torna melhores.
Nbia, irm mais velha e confidente, agradeo pela doao e
companheirismo ao longo da maior parte de minha vida.
Aos Andrade: Ambrsio, Loiva e Isabela, exemplo de dedicao acadmica
e rigor cientfico, pelo apoio e incentivo na concluso deste texto. Especialmente D. Loiva, pela ajuda inestimvel em momentos de crise metodolgica.
Bia Cunha, pela tarefa cotidiana de construo e reconstruo da minha
identidade. Sem ela, nada disso seria possvel.
Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul Pelotas, no nome da
Diretora Executiva, Professora Renata Lobato Schlee e do Coordenador do Cursode Direito, Professor Marcelo Nunes Apolinrio.
Agradeo, especialmente, ao Professor Renato Duro Dias, amigo de
sempre, pela confiana atribuda a minha proposta docente.
A todos os funcionrios da Instituio, especialmente querida Gabriela
Amaral Bastos, responsvel pela Secretaria das Coordenaes da Faculdade.
Aos professores que participaram do projeto de pesquisa analisado. Maria
Amlia Dias da Costa, Elis Radmann e Paulo Csar Barboza Neves. Maria Amlia,
da qual ainda sou aluna e de quem me orgulho de ser amiga. Elis, primeira
idealizadora da conjuno entre Sociologia e Antropologia Jurdicas na prtica da
pesquisa de campo, com saudades das nossas parcerias acadmicas. E ao PC,
amigo leal, companheiro de ideologias, irmo.
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Aos alunos-pesquisadores e professores que, gentilmente, concederam as
entrevistas para este trabalho.
professora Maria Fernanda Wanglon Montagna, amiga de tantas
caminhadas, pela reviso textual desta dissertao.
s minhas monitoras Dani Weidle e Kelen Calcagno, que, alm de
cumprirem de maneira irretocvel os deveres da monitoria, colaboraram com a
realizao desta pesquisa.
Agradeo, ainda, aos alunos, professores e funcionrios do Programa dePs-Graduao em Educao, especialmente Ana Luiza Barros, da Secretaria do
PPGE, pela ateno e gentileza constantes.
Ao meu Co-Orientador, Professor Dr. Avelino da Rosa Oliveira, por ter
suscitado, na sua prtica pedaggica, o desejo de aprofundamento terico das obras
de Marx, Adorno e Horkheimer, que aqui utilizo.
Por fim, um agradecimento especialssimo. minha Orientadora, Professora
Dra. Maria Ceclia Lorea Leite, no apenas por ter confiado na possibilidade deste
projeto e por ter me apresentado a obra de Basil Bernstein, mas pelo equilbrio entre
firmeza, suavidade, conhecimento e alegria em nossas sesses de orientao. Suas
inmeras qualidades me inspiram e motivam docncia.
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RESUMO
A presente dissertao foi desenvolvida na Linha de Pesquisa Currculo,Profissionalizao e Trabalho Docente, tendo por fundamentos principais asinvestigaes acerca dos Estudos Culturais, de Basil Bernstein, especialmente sobreclassificao e enquadramento, Boaventura de Sousa Santos e a transioparadigmtica da cincia contempornea e Max Horkheimer e Theodor Adorno,quanto relao dual entre razo instrumental e emancipatria.
Nesse texto examinada a proposta docente de recontextualizao curricularda prtica de pesquisa jurdica, abrangendo a pesquisa terica, jurisprudencial e decampo, realizada por trs professores e efetivada por vinte e um alunos do primeiroe do segundo semestre do Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade
Atlntico Sul de Pelotas, Rio Grande do Sul, entre maro e dezembro de 2007, e, emdois casos, estendendo-se at o comeo de 2008, em atividade envolvendo oscomponentes curriculares de Metodologia da Cincia do Direito, AntropologiaJurdica e Sociologia Jurdica.
Essa prtica pedaggica teve como objetivo construir um conhecimentoemancipatrio e crtico atravs de uma investigao transdisciplinar e multicultural,que conectasse o saber acadmico-jurdico com os saberes populares e prticos degrupos e comunidades locais e que, ao final, proporcionasse aos alunos umapercepo de direito mais ampla e inclusiva. Para isso, pretendeu modificar o cdigopedaggico tradicional dos cursos de Direito, baseado na escola positivista,investindo na flexibilizao do poder e do controle social e orientando-se pelas
caractersticas do paradigma emergente, segundo as teorizaes utilizadas naproposta inicial.
Foi realizado um estudo de caso de abordagem qualitativa, por meio deentrevistas semi-estruturadas, cujos resultados confirmaram a possibilidade dainverso dos plos da racionalidade ocidental, ainda que de maneira tnue, e daconstruo de um conhecimento-emancipao junto aos alunos, voltado autonomia de pensamento, anlise crtica do direito estatal e incluso de outrosregramentos jurdicos, elaborados e aplicados pelas comunidades locais.
Palavras-Chave: Ensino Jurdico. Prtica de Pesquisa Jurdica. ParadigmaEmergente. Cultura Acadmica e Cultura Popular. Recontextualizao.
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ABSTRACT
This thesis follows Curricular Research, Professionalization and TeachingStudies, and is based on investigation of Cultural Studies, Basil Bernsteins analyseson classification and framing, Boaventura de Souza Santos interpretation of theparadigmatic transition of contemporary science, as well as Max Horkheimers andTheodor Adornos analyses on the dual relationship between instrumental andemancipative reason.
The teachers proposal of curricular recontextualization of legal practice andresearch encompassing theoretical, jurisprudential and field research was performedby three professors and was put into practice by twenty-one undergraduate students
attending the first and second terms of the Law Course at AnhangueraEducational/Atlntico Sul College in Pelotas, Rio Grande do Sul, from March toDecember 2007 and, in two specific cases, up to the beginning of 2008. Theactivities included curricular components of Legal Science Methodology, LegalAnthropology and Legal Sociology.
The pedagogic practice aimed to build emancipative and critical knowledgeby means of interdisciplinary and multicultural research that was able to connectacademic legal knowledge to the popular and practical lore of groups and localcommunities, eventually providing students with a broader, more inclusive view oflaw. For such it intended to modify the traditional pedagogic code of Law Courses,which is based on the Positivist Theory, by investing on flexibility of power and socialcontrol, being guided by the characteristics of the emerging paradigm according tothe theorization used in the initial proposal.
A case study of qualitative approach was performed by means of semi-structured interviews whose results confirmed the possibility of inverting the poles ofwestern rationality, however small, and that of building emancipative knowledgedirected towards the autonomy of thought in students, the critical analysis of statelaw, and the addition of other legal rules, prepared and applied by local communities.
Key words: Legal Teaching. Legal Research Practice. Emerging Paradigm.Academic Culture and Popular Culture. Recontextualization.
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SUMRIO
INTRODUO 01
1 CONSIDERAES INICIAIS 05
1.1 QUESTO DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA 05
1.2 OBJETIVOS:GERAL E ESPECFICOS 07
1.3 AEXPERINCIA DA PESQUISADORA E A DEFINIO DO TEMA 08
2 METODOLOGIA DA PESQUISA 16
2.1 PESQUISA QUALITATIVA NA REA DO ENSINO JURDICO 16
2.2 FONTES DA PESQUISA REALIZADA:BIBLIOGRFICAS,DOCUMENTAIS E
ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS 17
2.3 A PESQUISA INSERIDA NOS ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAO E
COMO ESTUDO DE CASO 20
3 AS DIFERENTES CONCEPES DO DIREITO 22
3.1 DIREITO COMO GARANTIA DE PAZ E LIBERDADE SOCIAL 233.2 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS GARANTIDOR DA ESTRUTURA
ECONMICA-SOCIAL 28
3.3 DIREITO COMO CONJUGAO DAS RACIONALIDADES INSTRUMENTAL
E EMANCIPATRIA 32
4 ENSINO JURDICO: RAZO INSTRUMENTAL/CONHECIMENTO-
REGULAO E RAZO EMANCIPATRIA/CONHECIMENTO-EMANCIPAO 40
4.1 CONCEPES POSITIVISTA E EMANCIPATRIA DO DIREITO NO
ENSINO JURDICO 41
4.2 CRTICA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS MODERNIDADE E O
ENSINO JURDICO EMANCIPATRIO 47
4.3 REFLEXES SOBRE PRTICAS PEDAGGICAS: ALGUMAS
CONTRIBUIES TERICAS DE BASIL BERNSTEIN 51
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5 POSSIBILIDADES DE TRANSGRESSO AO PODER HEGEMNICO:
CURRCULO JURDICO E RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NO
CURSO ANALISADO 63
5.1 POSSIBILIDADES DE RESISTNCIAS LOCAIS HEGEMONIA GLOBAL 64
5.2 CURRCULO COMO ARTEFATO CULTURAL: ARENA DE RELAES DE
PODER 68
5.3 ESCOLHAS DE SABERES CURRICULARES:MINISTRIO DA EDUCAO
E IESSOB ANLISE 73
6 A PROPOSTA DE PESQUISA JURDICA NAS COMPONENTES
CURRICULARES DE METODOLOGIA CIENTFICA DO DIREITO,
ANTROPOLOGIA JURDICA E SOCIOLOGIA JURDICA 80
6.1 CLASSIFICAO DOS CONTEDOS PELA IES E PROPOSTA DE
RECONTEXTUALIZAO E ENQUADRAMENTO NOS PLANOS DE ENSINO
ELABORADOS PELOS DOCENTES DOS COMPONENTES CURRICULARES
ENVOLVIDOS 81
6.2 PESQUISA JURDICA COMO ATIVIDADE INTEGRADORA DE
COMPONENTES CURRICULARES E O PRINCPIO DA TRADUO 866.3 DESCRIO DA PROPOSTA DA PESQUISA JURDICA ANALISADA 90
7 ENQUADRAMENTO E AUTONOMIA NA PRTICA PEDAGGICA DA
PESQUISA JURDICA SOB ANLISE 97
7.1 PAPEL DOS ALUNOS E PROFESSORES NA ELABORAO DAS
PESQUISAS JURDICAS 98
7.2 ENQUADRAMENTO: DEFINIO, RITMO E DESENVOLVIMENTO DASPESQUISAS JURDICAS 100
7.3 ENQUADRAMENTO: AVALIAO E APRESENTAO PERANTE AS
BANCAS 104
8 CLASSIFICAO DO CAMPO DO DIREITO NA PRTICA DA PESQUISA
JURDICA INVESTIGADA 112
8.1 INTEDISCIPLINARIDADE E CONEXO ENTRE TEORIA E PRTICA 113
8.2 CONEXO ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA NA
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x
PESQUISA JURDICA SOB ENFOQUE 118
8.3 APLICAO DOS RESULTADOS DAS PESQUISAS DE CAMPO NOS
COMPONENTES CURRICULARES PERTENCENTES AO TERCEIRO
SEMESTRE 121
9 RELAES ENTRE ENQUADRAMENTO E CLASSIFICAO:
POSSIBILIDADE DE CONSTRUO DE UM CONCEITO CRTICO DE
DIREITO 132
9.1 VISO PANORMICA DOS TRABALHOS REALIZADOS PELOS ALUNOS 133
9.2 TRANSIO PARADIGMTICA DO CONCEITO DE DIREITO E DA
CLASSIFICAO DO CAMPO JURDICO NA PERCEPO DOS
ENTREVISTADOS 143
9.3 CONHECIMENTO-EMANCIPAO E VISO CRTICA DA SOCIEDADE
ATRAVS DA PRTICA PEDAGGICA ANALISADA 150
10 SOCIALIZAO DO CONHECIMENTO JURDICO E RESISTNCIA AO
PODER HEGEMNICO 162
10.1 PROPOSTAS DE RETORNO DO CONHECIMENTO JURDICO SOCIEDADE E IMPORTNCIA DA SOCIALIZAO DO DIREITO NA
PERCEPO DOS ALUNOS 163
10.2 POSSIBILIDADE DE RESISTNCIA AO ENSINO MERCADOLGICO E
TEORIZAES DE BASIL BERNSTEIN NA PRTICA PEDAGGICA SOB
ENFOQUE 169
10.3 CONTRIBUIES DOS ENTREVISTADOS PARA O APRIMORAMENTO DA
PRTICA PEDAGGICA INVESTIGADA 174
CONCLUSO 184
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 197
ANEXOS 205
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INTRODUO
O trabalho que apresento analisa a proposta docente de recontextualizao
curricular da prtica de pesquisa jurdica realizada pelos alunos do primeiro e do
segundo semestre do Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade
Atlntico Sul de Pelotas, iniciada em maro de 2007, no componente curricular de
Metodologia da Cincia do Direito, e complementada entre agosto e dezembro do
mesmo ano nos componentes curriculares de Antropologia Jurdica e de Sociologia
Jurdica. Em certos casos essa prtica se estendeu at o comeo de 2008, uma vez
que a socializao do conhecimento adquirido para a comunidade foi efetivada pelos
discentes nesse perodo.
A proposta dessa prtica pedaggica pretendeu a elaborao de um
conhecimento jurdico multicultural e emancipador estruturando a ao dos alunos e
professores envolvidos em, basicamente, trs etapas. Inicialmente, no componente
curricular de Metodologia Cientfica do Direito, foram elaborados anteprojetos de
pesquisa por grupos de discentes, prevendo uma pesquisa de campo a ser aplicada
em bairros, comunidades ou instituies pblicas de Pelotas, no semestre seguinte,
nas disciplinas de Antropologia e Sociologia Jurdicas. Da mesma forma, foi previsto
um retorno dos estudantes aos locais onde aplicaram os instrumentos de pesquisa,
questionrios ou roteiros semi-estruturados, a fim de socializarem os conhecimentos
adquiridos.
A elaborao dessa pesquisa teve por fundamento a construo do
conhecimento, a qual ocorre atravs da compreenso de que a realidade jurdica
no se restringe aplicao de normas abstratas, mas faz parte de um mundo mais
vasto do que aquele encontrado em cdigos e legislaes esparsas. Na verdade, a
essncia do direito, em minha concepo, reside na sua conexo com a concretude
social, com as aspiraes e necessidades das comunidades locais e com o seu
objetivo ltimo que o de garantir o exerccio da cidadania e da dignidade
proporcionalmente s necessidades dos diversos grupos e indivduos que formam asociedade.
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Entendo que a compreenso do currculo recontextualizado pelos
professores nesse curso e das relaes pedaggicas da advindas so essenciais
para definirmos o tipo de identidade profissional que desejamos construir com
nossos alunos, ou seja, que tipo de ser humano queremos que nosso currculo
contribua para formar. Essa viso do direito como instrumento social de
emancipao passa por uma relao pedaggica que possibilite a construo crtica
de um conceito de direito que abranja uma sntese entre a cultura erudita,
acadmico-jurdica, e a cultura popular, advinda da comunidade. Isso inclui, na
prtica da pesquisa de campo aqui investigada, a interdisciplinaridade organizada ao
redor de temas comuns aos componentes curriculares envolvidos, os trabalhos
individuais e em grupos, a pesquisa bibliogrfica, a relao entre pesquisa, ensino eextenso, a nfase no estudo humanista, a insero na vida real de nossa
comunidade, enfim, o debate e a crtica ao processo de conhecimento.
A recontextualizao curricular ao longo de uma prtica em implementao
tornou-se uma tarefa cotidiana, a qual requereu boas doses de criatividade e
dedicao. A preocupao dos professores envolvidos era a de oportunizar um
ensino crtico e inovador, que assumisse a condio de ser o sistema jurdico,
muitas vezes, instrumento de perpetuao de injustias e descaminhos.Entendamos ser este o momento e o espao que tnhamos para, de uma maneira
solidria, construirmos um outro conceito dedireito, mais prximo das comunidades
locais, mais inteligvel e desafiador para nossos alunos.
Frente ao exposto, restou claro o recorte que fiz a partir da apresentao do
projeto de pesquisa a este Programa de Ps-Graduao, o qual teve seu tema
considerado por demais amplo para a elaborao de uma dissertao. Assim, a
delimitao do campo de estudo do presente trabalho no apenas temporal (o anode 2007 e, em dois casos, algumas experincias efetivadas pelos alunos no primeiro
semestre de 2008), mas igualmente quanto aos sujeitos que concederam as
entrevistas: dois professores dos componentes curriculares envolvidos e seus
alunos, vinte e um discentes, os quais participaram da prtica pedaggica analisada.
Os discentes voluntrios entrevistados so aqueles que pertencem aos cinco grupos
que alcanaram a nota mxima ao final da proposta pedaggica. Tambm minha
prtica foi analisada, uma vez que fui a professora responsvel pelos componentes
curriculares de Metodologia da Cincia do Direito e de Antropologia Jurdica e
coordenadora da prtica pedaggica em foco.
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O texto ora apresentado encontra-se construdo sob uma premissa: a de
tornar-se compreensvel para ambos os campos principais de sua fundamentao,
ou seja, o direito e a educao. Para tanto, procurei utilizar exemplos prticos - no
intuito de tornar a exposio o mais didtica possvel - e conectados com os
trabalhos de pesquisa elaborados pelos alunos. O trabalho est dividido em dez
captulos. Inicialmente, teo algumas consideraes preliminares, que abrangem a
justificativa do tema escolhido frente minha experincia pessoal e profissional,
minha questo de pesquisa e aos objetivos da investigao realizada. O captulo
segundo foi reservado para a exposio da metodologia utilizada para a realizao
da pesquisa, identificando-a como um estudo de caso.
No captulo terceiro apresento diversas concepes de direito com as quaisconvivemos diariamente, tanto em sala de aula quanto nas relaes jurdicas que
organizam nossa vida cotidiana. Em seguida, no decorrer do quarto captulo, procuro
estabelecer conexes entre esses conceitos de direito e as relaes pedaggicas
perpetradas no ensino jurdico, e identificar caractersticas do ensino
tradicionalmente existente em nossas faculdades, alm de formas alternativas e
emancipadoras de educao.
No quinto captulo, trato das relaes de poder que regulam nossas vidas,tecendo breves comentrios sobre a chamada globalizao e as formas de
resistncia hegemonia cultural da advinda, especialmente no campo da educao.
Tambm fao referncia s relaes de poder que fundamentam as decises
curriculares, evidenciando o currculo como um artefato cultural, social e
economicamente condicionado. essa a premissa da anlise da recontextualizao
curricular realizada pela Instituio de Ensino Superior (IES) pesquisada, a partir das
diretrizes nacionais estabelecidas pelo Ministrio da Educao (MEC) para oscursos de direito.
O sexto captulo destinado exposio de conceitos relativos integrao
curricular e sua relao com a prtica de pesquisa jurdica, tanto bibliogrfica quanto
emprica. Nessa parte do texto, analiso tambm a recontextualizao das ementas
dos componentes curriculares atravs dos planos de ensino e da proposta da prtica
de pesquisa feita pelos professores nela envolvidos. Ao final, apresento a proposta
de pesquisa jurdica em foco.
No captulo subseqente, identifico a percepo dos entrevistados a
respeito do papel dos alunos e professores na relao pedaggica tema deste
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trabalho. Da mesma forma, considero a maneira como ocorreu o enquadramento
dessa prtica no que se refere definio, ao ritmo, ao desenvolvimento e
avaliao, assim como a apresentao perante s bancas avaliadoras dos trabalhos.
A maneira como o enquadramento concretizado na pesquisa jurdica
efetivada pelos alunos e professores pode, ou no, enfraquecer as relaes de
poder o tema do captulo oito. Nele, ressalto a opinio dos entrevistados a respeito
da interdisciplinaridade, da conexo entre a teoria e a prtica e da possibilidade de
aplicao dos resultados das pesquisas de campo nos componentes curriculares
pertencentes ao terceiro semestre.
O captulo nove destina-se anlise da conceituao de direito por parte
dos professores e dos alunos. Procurei comparar, no que diz respeito aos discentes,seus conceitos de direito anteriores pesquisa e os atuais, aps a prtica
pedaggica, a fim de saber se houve, ou no, alterao nestes. Para isso, foi
necessrio que eu fizesse breves comentrios a respeito dos trabalhos dos cinco
grupos de alunos entrevistados no intuito de melhor reconhecer as relaes
possveis entre o conhecimento-emancipao e a nova viso do direito proposta por
essa prtica.
As propostas de socializao do conhecimento jurdico elaboradas pelosalunos encontram-se expostas no captulo dez, da mesma forma que os retornos
efetivados por dois dos grupos entrevistados. Nessa parte, fao uma breve
discusso sobre a possibilidade de, mesmo no interior de uma organizao
empresarial como a Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, existirem
possibilidades de luta emancipatria atravs da criao de redes de solidariedade
entre os participantes da prtica analisada: alunos, professores e as comunidades
locais. Ao final, apresento algumas sugestes concedidas pelos entrevistados erelacionadas ao aprimoramento da proposta pedaggica analisada, uma vez que ela
est sendo realizada novamente no decorrer deste semestre e ter seqncia no
segundo semestre de 2008.
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1 CONSIDERAES INICIAIS
(...) O riso que me interessa aqui aquele que um componente dialgico dopensamento srio. E um elemento essencial da formao do pensamentosrio. De um pensamento que, simultaneamente, cr e no cr, que, aomesmo tempo, se respeita e zomba de si mesmo. De um pensamento tenso,aberto, dinmico, paradoxal, que no se fixa em nenhum contedo e que nopretende nenhuma culminncia. De um pensamento mvel, leve, que sabetambm que no deve se tomar, a si mesmo, demasiadamente a srio, sobpena de se solidificar e se deter, por coincidir excessivamente consigomesmo. De um pensamento que sabe levar dignamente, no mais alto de si,
como uma coroa, um chapu de guizos (LAROSSA, 1998, p. 212).
As palavras de Jorge Larossa traduzem uma forma leve e antiformalista de
construo do conhecimento. Um ensino ldico e dinmico, que recusa a
cristalizao dos saberes e incentiva sua construo autnoma. Entretanto, o que
vem sendo observado no ensino jurdico encontra-se bem distante dessa proposta.
A relao pedaggica estabelecida , geralmente, centrada na figura do professor e
fortemente apartada da realidade social. O seu objeto: a letra da lei, muitas vezes
petrificada no tempo e sem conexo com o substrato econmico e social.
A partir dessas consideraes, procuro nesse primeiro captulo apresentar
minha questo de pesquisa e a importncia de sua realizao, especialmente no
campo do ensino jurdico, to marcado por essa pedagogia fundamentada em uma
concepo formal e legalista do direito. Exponho, da mesma forma, o objetivo geral
e os objetivos especficos desta pesquisa. Ao final, discorro, ainda que de forma
breve, sobre minhas motivaes na escolha desse tema, direcionadas pela
construo de minha identidade discente e docente.
1.1 QUESTO DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA
Para fins deste estudo foi realizado um recorte no currculo do Curso de
Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul de Pelotas, Rio Grande
do Sul, delimitando como objetivo principal a anlise da prtica de pesquisa nos
componentes curriculares de Metodologia Cientfica do Direito, Antropologia Jurdica
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e Sociologia Jurdica, efetivada no decorrer do ano de 2007 e, em certos, casos
estendida ao comeo de 2008.
Minha investigao partiu do seguinte questionamento: como essa prtica
pedaggica conectou o conhecimento acadmico-jurdico e a cultura popular atravs
da recontextualizao curricular efetivada, especialmente no que se refere sua
etapa de pesquisa de campo? Da mesma forma, como ocorreu essa conexo na
previso de socializao do conhecimento jurdico, a qual, em alguns casos, foi
materializada no incio de 2008?
O desenvolvimento da reviso da literatura e da anlise de documentos, no
decorrer do ano de 2007 e do primeiro semestre de 2008, abrangeu a bibliografia
indicada ao final deste texto, as diretrizes curriculares do MEC (Ministrio daEducao e Cultura) para os cursos de direito, o projeto pedaggico da faculdade
investigada, a grade curricular do curso, as ementas da instituio de ensino
superior, os planos de ensino dos professores envolvidos na pesquisa, o projeto da
prtica pedaggica analisada, os anteprojetos, as monografias e os resumos
elaborados pelos alunos, os instrumentos de pesquisa de campo por eles
elaborados e aplicados, assim como alguns materiais utilizados pelos estudantes em
sua pesquisas. Minha pesquisa de campo foi desenvolvida no perodo de maro ajunho de 2008, contando com a participao de alunos e professores. Foi aplicado o
mtodo de estudo de caso buscando evidncias atravs de entrevistas semi-
estruturadas.
A relevncia cientfica deste estudo pode ser constatada tendo em vista a
forma como o ensino do direito ministrada na maioria dos cursos no Brasil,
fundamentados em uma viso legalista, descontextualizada da prtica e da realidade
das comunidades locais, sem incentivar seus alunos a pesquisas de campo, tonecessrias construo do conhecimento integral, multicultural e emancipatrio.
Atravs dessa proposta inovadora feita pelos docentes dos componentes
curriculares envolvidos, os alunos de direito foram inseridos na comunidade em uma
tarefa acadmica orientada que pretendeu prepar-los para exercer a prtica
profissional de uma maneira mais abrangente do que a mera consulta legislativa e
jurisprudencial. Assim sendo, a relao pedaggica que se estabeleceu possibilitou
aos alunos a conexo, atravs de suas vivncias, entre a cultura erudita, acadmico-
jurdica, e a cultura popular.
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Considero que essa pesquisa feita pelos discentes possibilitou, tambm,
exercitar a interdisciplinaridade atravs de temas comuns aos componentes
curriculares do curso. Os trabalhos individuais e em grupo, a pesquisa bibliogrfica,
a nfase no estudo humanista, as vivncias compartilhadas com colegas,
professores e comunidade, oportunizaram ao aluno a construo do saber, a
produo intelectual, a reflexo no ensino e na pesquisa projetados em razo dos
reais interesses locais e comunitrios.
O presente trabalho pretende, ao final, contribuir para o aprimoramento dessa
prtica pedaggica, suscitando questionamentos e propondo modificaes na sua
estrutura e organizao. Acredito que o ensino jurdico deve ser construdo e
desconstrudo permanentemente, e a reflexo sobre nossa prtica, minha, de meuscolegas e de nossos alunos, deve ser um instrumento de socializao do
conhecimento jurdico, objetivo importante do nosso fazer pedaggico.
1.2OBJETIVOS:GERAL E ESPECFICOS
OBJETIVO GERAL
Investigar a construo do conhecimento emancipatrio e da maneira como
ocorreu a conexo entre o conhecimento acadmico-jurdico e a cultura popular na
recontextualizao curricular proporcionada pela prtica pedaggica de pesquisa
jurdica, especialmente na sua etapa de pesquisa de campo. Essa etapa foi
implementada por meio de ao conjunta dos componentes curriculares de
Metodologia Cientfica do Direito, Antropologia Jurdica e de Sociologia Jurdica do
Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Atlntico Sul de Pelotas, e realizada nodecorrer do ano de 2007. Da mesma forma, analisar a previso de socializao do
conhecimento jurdico, que, em alguns casos, foi efetivada no incio de 2008.
OBJETIVOS ESPECFICOS
Analisar, sucintamente, a problemtica que cerca a concepo do direito,
sob diferentes perspectivas, propondo novas formas de compreend-lo;
Demonstrar a inter-relao entre o campo do direito e o campo do ensino
jurdico;
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Discutir a possibilidade de, mesmo no interior de uma organizao
empresarial, existir possibilidades de luta emancipatria atravs da criao de redes
de solidariedade entre os participantes da prtica analisada;
Evidenciar o currculo como artefato culturalmente construdo e social e
economicamente determinado;
Desenvolver breve estudo sobre a estruturao curricular do ensino jurdico
no Brasil, tanto no campo da pedagogia oficial quanto na recontextualizao
realizada pelo Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul,
em Pelotas, nos planos de ensino elaborados pelos professores dos componentes
curriculares envolvidos na prtica investigada e na proposta de pesquisa jurdica por
eles construda;Analisar a recontextualizao curricular, a classificao e o enquadramento
realizados na prtica de pesquisa investigada atravs de entrevistas com os
professores e alunos-pesquisadores envolvidos, estudando a conexo
proporcionada entre o conhecimento acadmico-jurdico e o conhecimento popular e
a possibilidade da construo de um conhecimento jurdico emancipatrio.
1.3AEXPERINCIA DA PESQUISADORA E A DEFINIO DO TEMA
War um jogo que privilegia a lgica, a estratgia na tomada de decises, a
frieza do raciocnio linear a conquista de territrios ou a dominao do mundo seria
uma decorrncia natural dessa maneira de agir. Portanto, era uma surpresa quando,
nas noites de vero na Praia do Laranjal, eu alcanava o resultado final que me
coubera no sorteio dos objetivos, aps ter estabelecido os passos a serem trilhados
e, com dificuldade, blefado o suficiente para que meus oponentes nodesconfiassem dos meus propsitos. Meu irmo mais velho costumava chamar de
sorte no jogo, azar no amor as poucas ocasies em que eu vencia no jogo em que
ele era imbatvel, o que no abalava de modo algum o gosto por ter ousado
suplantar aquele conhecimento, a meu ver caracterstica do mundo masculino que
ele possua.
Essa e diversas outras vivncias so elementos importantes na construo de
minha identidade docente, a qual como a de todos ns, encontra-se impregnada por
relaes de poder. A maneira com que estas se estruturaram na minha formao
reflete diretamente nas questes que movimentam e direcionam meus olhares.
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Assim, permitam-me digresses necessrias compreenso das motivaes que
aqui apresento.
A concepo do conhecimento como instrumento de dominao, arraigada
na sociedade moderna, impe uma separao entre o conhecimento erudito, e a
capacidade de raciocnio, e o conhecimento prtico e cotidiano, no decorrente da
racionalidade cientfica prpria de nossas academias. A estratificao social, a etnia
ou o gnero, como no caso explicitado acima, impem determinadas posies no
discurso, criam um mundo de representaes que constroem nossas identidades.
[...] sendo [a cultura] em grande medida arbitrria e convencional, elaconstitui os diversos ncleos de identidade dos vrios agrupamentos
humanos, ao mesmo tempo que os diferencia uns dos outros. Pertencer aum grupo social implica, basicamente, em compartilhar um modo especficode comportar-se em relao aos outros homens e natureza (ARANTES,2006, p. 26).
Essa nfase no saber instrumental e tcnico, que possibilita a dominao do
mundo da natureza e de outros homens, e que privilegia o mecanismo formal da
estruturao desse conhecimento, desconsidera a sua dimenso emancipatria,
construda atravs da crtica autnoma do sujeito e de indagaes a respeito dos
contedos e finalidades do conhecimento (SANTOS, 2001a; ADORNO e
HORKHEIMER, 1985).
Alm dessa rgida separao entre o conhecimento dominador e o
emancipatrio, houve, ainda, inmeras vivncias que moldaram minha viso de
mundo. As freqentes mudanas de cidade que ramos obrigados a fazer, em
decorrncia do cargo pblico de meu pai, nos proporcionavam o contato com todo o
tipo de gente e de cultura, realidades que nunca vivenciaramos se no nos fosse
dada essa oportunidade. Hoje, vejo que um dos aspectos o qual mais procuropreservar (a que custo!) a aceitao do diferente. Mais, a capacidade de absorver
os aspectos positivos de cada pessoa ou situao. Nas palavras de Fernando
Pessoa (2002, p. 133):
As viagens, os viajantes tantas espcies deles!Tanta nacionalidade sobre o mundo! Tanta profisso! Tanta gente!Tanto destino diverso que se pode dar vida, vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!Tantas caras curiosas! Todas as caras so curiosasE nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.A fraternidade afinal no uma idia revolucionria. uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,
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E passa a achar graa ao que tem que tolerar,E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!
A valorizao do conhecimento acadmico, como mencionei, faz parte de
nossa cultura social. Assim, o ingresso na Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel) em 1989 foi um elemento importante na motivao desta
pesquisa. A expectativa com as aulas, o conhecimento de novas pessoas, a
disciplina do estudo jurdico tudo era novo para mim.
Entretanto (e apesar desta instituio ter sido imprescindvel para o meu
desenvolvimento profissional) logo me deparei com aulas expositivas, formalistas e
desconectadas do mundo real, alm de teorias ultrapassadas e currculo estanque
com disciplinas fortemente individualizadas.
A pesquisa era relegada a um segundo plano e o currculo, por sua vez, no
previa componentes curriculares que, hoje, considero essenciais para a formao
jurdica: Metodologia da Pesquisa, Antropologia e Linguagem Jurdicas, apenas para
citar disciplinas pertencentes, geralmente, ao primeiro ano do curso. De uma forma
geral, assim so estruturados os curso de direito no Brasil.
O saber meramente tcnico, descontextualizado e reprodutor, apartado do
sistema econmico em que vivemos e das transformaes polticas e sociaiscontemporneas, tanto por parte das instituies de ensino superior (IES), quanto
dos docentes e alunos, reduzia o espao da sala de aula a lies dogmticas e
leituras de cdigos, impedindo o desenvolvimento da crtica do direito e da prpria
relao pedaggica desenvolvida. Em outras palavras, a concepo jurdica
meramente positivista foi um importante instrumento para a estagnao e ausncia
de aprofundamento terico do ensino jurdico.
Por outro lado, o Centro Acadmico Ferreira Vianna (CAFV), da Faculdadede Direito, no qual ingressei ainda no primeiro semestre do curso, e do qual sa
somente por ocasio da formatura, em 1995, proporcionou a descoberta de um
mundo novo, porque me oportunizou o desenvolvimento do pensamento crtico, do
sentimento de equipe, de uma viso mais humanitria, interdisciplinar e concreta do
direito, em contrapartida estrutura formal e estratificada do currculo institucional.
Aprendi a me expressar, a investigar autores com os quais dificilmente teria
contato dentro da sala de aula e, mais uma vez, a visualizar vrios aspectos de uma
mesma questo, convivendo com pontos de vista diferentes dos meus. A utopia da
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transformao social tomou forma e, relembrando aquela poca, eu sempre recordo
da dupla Kleiton & Kledir:
Ns vamos semear, companheiroNo coraoManhs e frutos e sonhosPara um dia acabar com essa escuridoNs vamos preparar, companheiroSem ilusoUm novo tempo, em que a paz e a farturaBrotem das mos (RAMIL e FOGAA, 2007).
Aps a formatura, pude vivenciar realidades diferentes em relao ao
ensino jurdico, tanto no curso de Especializao em Direito Comercial na
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), em So Leopoldo, quanto na
Escola Superior da Magistratura Estadual, na Associao dos Juzes de Direito do
Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), em Porto Alegre. Algumas caractersticas
do ensino jurdico tradicional, entretanto, continuavam presentes. A razo
instrumental e sua nfase na dominao da sociedade perpassava todos os
contedos, especialmente nas disciplinas de Direito Civil e Direito Penal. Ainda havia
a compartimentalizao disciplinar, a abstrao da teoria em relao prtica e a
formalidade das aulas expositivas.Alguns professores, entretanto, demonstraram com suas prticas
pedaggicas a viso do direito realmente concretizado, no mais abstrado do
mundo real. Tal efetivao, nesse entendimento, passava necessariamente pela
reconfigurao da percepo do direito e por uma reforma na estrutura curricular e
na relao pedaggica desta decorrente.
A prtica como professora substituta das disciplinas de Direito Internacional
Pblico e Privado da Faculdade de Direito da UFPel iniciada em janeiro de 2002proporcionou mais um espao para a construo da minha identidade docente.
Procurei desenvolver nos alunos a percepo de que o combate contra as injustias
uma das funes do estudante e do profissional do direito:
Porque ali onde um homem no tem voz,Ali, minha voz.
Onde tratem os negros a pauladas,
Eu no posso estar morto.Quando no crcere entrem meus irmos,Eu entrarei com eles.
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Quando a vitria,No a minha vitria,Mas a grande vitriaChegue,Ainda que esteja mudo, vou falar:
Eu a verei chegar, ainda que cego (NERUDA, 1994, p. 130-133).
Na relao estabelecida com os alunos pude perceber a dimenso da
cincia na contemporaneidade. O estudo do direito, fruto do positivismo e da
racionalidade cientfico-instrumental, possui uma estrutura rgida e formal que no se
adapta realidade em constante transformao na qual vivemos, especialmente se
percebermos a situao econmico-social precria existente em nosso pas. A crise
do ensino jurdico advm, ainda que no exclusivamente, dessa inadequao e do
reflexo dessas caractersticas tanto na organizao curricular como na inter-relao
em sala de aula.
A hierarquizao do saber, a postura formalista do professor, a passividade
do aluno e a ausncia de solidariedade entre ambos relacionam-se diretamente com
a falta de flexibilidade curricular concomitantemente desatualizao dos
contedos. Assim, no componente curricular de Metodologia da Pesquisa em Direito,
o qual lecionei, estudvamos estes aspectos e o debate gerado pela leitura de Um
Discurso sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos (2001a), deu origem avrios artigos cientficos interdisciplinares, abrangendo variveis como
renascimento, arte moderna, msica e poesia contemporneas.
Dessa experincia com trabalhos acadmicos e construo de anteprojetos
de pesquisa, surgiu o convite para a implantao da disciplina de Trabalho de
Concluso de Curso (TCC) e sua coordenao. A exigncia da elaborao e
apresentao do TCC pelas turmas de bacharelandos no Curso de Direito da UFPel
teve incio em 2003. Procurei, sempre com o apoio do Chefe do Colegiado de Curso,concretizar tudo aquilo que foi analisado na disciplina de Metodologia, incentivando
a produo cientfica interdisciplinar, a quebra de paradigmas, a ousadia criativa e a
autocrtica.
Alm disso, a minha turma de orientandos assumiu um carter solidrio,
visvel nas sesses de orientao em grupo, nas quais cada aluno contribua com
sua experincia para a preparao dos trabalhos individuais. Assim, o resultado da
conjugao das orientaes particulares com aquelas sesses conjuntas foi umadas experincias docentes que mais me realizou. O importante que, apesar da
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seriedade e da disciplina de estudo que nos dedicvamos, tudo fluiu de maneira
espontnea e alegre, resultado de nossa convivncia acadmica.
O magistrio tornou-se um modo de vivenciar mudanas necessrias para a
estrutura do ensino jurdico amalgamadas na interdisciplinaridade, na revitalizao
dos contedos, na relao com os alunos, no espao-tempo para a formao
humanista e profissional que podem proporcionar reflexes a respeito da inaptido
do direito em garantir a paz e a justia sociais. A docncia, agora em um Curso de
Direito de uma IES privada, a Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, em
Pelotas, uma contnua construo dessa utopia.
As indagaes sobre teoria e prtica do ensino do direito, dessa forma, so
fundamentais para que possamos avaliar o que vem sendo desenvolvido nos cursosjurdicos e, a partir desta constatao, procurar construir novas e contemporneas
formas de ensino. Para alcanar tal objetivo, devemos reconhecer a nossa prpria
concepo do direito e quais as nossas expectativas a seu respeito. Dependendo
dessa compreenso, o currculo, o professor e o aluno, iro assumir determinadas
posies na relao pedaggica - se o direito for entendido como forma de
manuteno do status quo, atravs da mera reproduo da letra da lei, no h
sentido em trabalhar com um currculo integrado, com o dilogo com outras cincias,com a conexo entre a cultura popular e a cultura erudita, por exemplo.
Por outro lado, importante visualizar como deve ser construda a relao
padaggica se nos indagarmos sobre o lugar que deve ser ocupado pelo direito em
uma sociedade dividida, empobrecida, condicionada por vises de mundo que,
historicamente, impem uma razo direcionada dominao, estratificao dos
ramos da cincia, separao da teoria e da prtica, do sujeito e do objeto, da vida
acadmica do mundo real.Tal resposta, entretanto, no ser nica nem final. A contemporaneidade
revela um mundo para alm da elaborao de respostas estanques e fechadas,
onde a noo de historicidade, com realidades mutveis e no acabadas, nos faz
vivenciar a cincia como processo. Nesse sentido, a interpretao terica da prtica
realizada a partir de um recorte da realidade, sobre o qual o pesquisador elaborar
a sua verso, oseu ponto de vistaentre muitos outros igualmente possveis. No h,
portanto, a to defendida neutralidade cientfica, ou seja, o distanciamento do sujeito
em relao ao objeto estudado.
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O ensino jurdico, especialmente, possui uma caracterstica histrica
fortemente embasada na neutralidade da lei e da vontade estatal. A pesquisa de
campo no faz parte dos currculos das escolas de direito, nem mesmo da prtica de
pesquisadores nessas academias. A investigao cientfico-jurdica se resume, na
grande maioria das vezes, pesquisa bibliogrfica. Entretanto, no paradigma
emergente, os conhecimentos produzidos somente sero possveis com o processo
investigativo e com a democratizao deste a toda a sociedade. Para isso, a ruptura
epistemolgica acontece de forma diferenciada da concepo clssica positivista na
qual o ensino do direito foi estruturado:
Para que esta configurao de conhecimentos ocorra, necessrioinverter a ruptura epistemolgica. Na cincia moderna a rupturaepistemolgica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do sensocomum para o conhecimento cientfico, na cincia ps-moderna o saltomais importante o que dado do conhecimento cientfico para oconhecimento do senso comum (SANTOS, 2001a, p. 57).
Faz-se necessria a identificao dos elementos caractersticos de uma
transio do paradigma tradicional para o paradigma emergente na
recontextualizao do currculo no curso de direito analisado. As crises e mudanas
de paradigmas so necessrias ao aprimoramento e procura por uma melhor
adaptao do direito realidade social contempornea, podendo favorecer uma
atuao mais igualitria, geradora de maior solidariedade social. Para que isso
ocorra, como j foi referido, tanto a concepo do direito quanto a conseqente
seleo de saberes feita na elaborao do currculo e a relao pedaggica so
instrumentos essenciais de transformao.
Conforme exposto acima, a conjugao desses instrumentos, no entanto,
no definitiva. A recontextualizao do currculo pelo professor ocorre de maneiradiferente a cada prtica efetivada. Para Santos (2001b), vivenciamos um tempo de
quebra de paradigmas, onde a ps-modernidade de oposio assume a
impossibilidade de desenvolver um princpio nico de transformao da sociedade,
uma vez que no h apenas uma nica forma de dominao. Assim, existem
mltiplas formas de resistncia, pelos mais variados agentes. O que deve ser
buscado, o que o autor denomina de princpio de traduo, tornar essas diversas
lutas mutuamente inteligveis, permitindo trocas de experincias e aspiraes.
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A prtica da pesquisa de campo analisada parte desse princpio, procurando
assumir as diferenas de percepo do mundo entre a cultura popular e acadmica,
com o objetivo de criar pontes que conectem ambas na experincia dos alunos,
professores e, ao final, da prpria comunidade investigada, possibilitando a
construo de um conhecimento emancipatrio e crtico. Atravs disso, entendo que
o ensino jurdico possa transformar a percepo do direito nas pessoas envolvidas
nessa proposta pedaggica, tornando-o mais prximo da comunidade, mais
inteligvel para aqueles que se dedicam ao estudo e prtica jurdica.
O desafio da transformao tambm faz parte da minha histria de vida: aos
poucos, percebo e experimento minhas capacidades e minhas limitaes, a
possibilidade de superar o antigo dogma de que o mundo existe para serconquistado pelos homens. No existe. Nem pelos homens, nem pelas mulheres.
Uma das frases que mais ouvamos, em criana, era: no dominar, mas
compreender.
No final de tudo, o que buscamos a compreenso maior de que a vida no
pode ser desperdiada na estagnao, na rigidez de pensamento, na indiferena
quanto ao resto de ns. Acredito firmemente que para isto que o ensino jurdico
deve se voltar. E me identifico com Murilo Mendes, quando se compara a umachama com dois olhos andando, sempre em transformao (MENDES, 2001, p.
69).
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2 METODOLOGIA DA PESQUISA
A teoria precisa ser traduzida em uma prtica que faa diferena, queassegure que as pessoas vivam suas vidas com dignidade e esperana [...]Levar em considerao a prtica da vida cotidiana no significa privilegiar opragmtico em oposio teoria, mas ver essa prtica como inspirada porconsideraes tericas reflexivas e, ao mesmo tempo, como transformandoa teoria (GIROUX, 1995, p. 97).
As consideraes de Henry Giroux relacionam-se, diretamente, com a
proposta de pesquisa que apresento neste captulo. A unio entre a teoria e a
prtica essencial, na medida em que ambas se complementam, podendo, a partir
da, gerar novas formas de ver o mundo em que vivemos, mais solidrias e
emancipatrias.
Nessa parte do texto, portanto, apresento a metodologia que direcionou
minha pesquisa, situada no mbito das pesquisas qualitativas e de estudo de caso.
Tal deciso, conforme ser percebido no decorrer dos captulos deste trabalho, foi
essencial para a anlise terica dos dados empricos, advindos do estudodocumental e de entrevistas semi-estruturadas.
2.1 PESQUISA QUALITATIVA NA REA DO ENSINO JURDICO
A abordagem da pesquisa teve em vista a compreenso de que a formulao
objetiva de um projeto, especialmente em cincias sociais, no um ato neutro,
eqidistante, meramente positivista, j que provm de um sujeito histrico e social,imerso e participante no fenmeno que ser estudado. A este respeito, Luiz
Fernando Coelho (1991, p. 221) faz esta referncia:
A tese que sustento a de que essa circunstncia (do objeto) determinada pelo sujeito, portanto o significado do objeto no autnomo,como algo que sai dele e que o sujeito apreende, mas heternomo,porque atribudo ao objeto pelo sujeito. Quando o objeto o social ou umaexpresso do social, como a moral e o direito, mesmo o significadoessencial heternomo, pois no existe uma essncia do socialpreviamente dada, como no existe uma essncia do jurdico anterior aosujeito; este quem constri o social e o jurdico, construo que ocorre no
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plano real pela participao do sujeito no objeto que conhece, e conceitual,por meio da atividade terica (1991, p. 221).
A presente pesquisa est inserida no campo da pesquisa qualitativa, mais
especificamente em um estudo de caso. Seu campo de investigao: o Curso de
Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, em Pelotas. A
delimitao do seu tema: a possibilidade de construo de um conhecimento
emancipatrio atravs da recontextualizao curricular realizada por meio da
atividade de pesquisa nos componentes curriculares de Metodologia da Cincia do
Direito, Antropologia Jurdica e Sociologia Jurdica durante o ano de 2007 e, em
alguns casos, no incio de 2008.
Este captulo estruturado, principalmente, a partir dos ensinamentos de
Robert C. Bogdan e Sari Knopp Biklen. Nas suas palavras:
Os investigadores qualitativos freqentam os locais de estudo porque sepreocupam com o contexto. Entendem que as aes podem ser melhorcompreendidas quando so observadas no seu ambiente habitual deocorrncia. Os locais tm de ser entendidos no contexto da histria dasinstituies a que pertencem [...] Para o investigador qualitativo divorciar oacto, a palavra ou o gesto do seu contedo perder de vista o significado(BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 48).
2.2 FONTES DA PESQUISA REALIZADA: BIBLIOGRFICAS, DOCUMENTAIS E ENTREVISTAS
SEMI-ESTRUTURADAS
As evidncias para este estudo de caso vieram de trs fontes distintas:
reviso bibliogrfica, documentos e entrevistas semi-estruturadas gravadas em
vdeo, incluindo respostas por escrito feitas pelos alunos a respeito dos prs e
contras da prtica pedaggica analisada. A anlise documental abrangeu as
diretrizes curriculares do Ministrio da Educao para os cursos de direito, o projeto
pedaggico da Faculdade Atlntico Sul, sua matriz curricular, as ementas das
disciplinas de Metodologia da Cincia do Direito, Antropologia Jurdica e Sociologia
Jurdica e seus respectivos planos de ensino, o projeto da prtica pedaggica
analisada, os anteprojetos, as monografias e os resumos elaborados pelos alunos,
os instrumentos de pesquisa de campo por eles elaborados, assim como alguns
materiais utilizados pelos estudantes em suas investigaes, tais como as
manifestaes artsticas interpretadas pelos alunos no momento da elaborao de
seus projetos de pesquisa.
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Minha pesquisa de campo foi desenvolvida no perodo de maro a junho de
2008 e teve como sujeitos os professores e alunos que realizaram a prtica de
pesquisa acima referida. Os docentes entrevistados so os que lecionaram a
disciplina de Sociologia Jurdica no segundo semestre de 2007, com uma exceo,
devido a problemas de agenda de uma das professoras. Tambm minha prtica ser
analisada, tendo em vista ser professora das disciplinas de Metodologia da Cincia
do Direito e de Antropologia Jurdica, alm de coordenadora do projeto de pesquisa
em foco.
Cabe ressaltar, neste momento, a inerente subjetividade do pesquisador,
em qualquer investigao efetuada. Especialmente, no meu caso, em que serei
tambm sujeito da pesquisa. Entretanto, Bogdan e Biklen (1994, p. 67-68) afirmam:
Os investigadores qualitativos tentam identificar os seus estados subjectivose os efeitos destes nos dados, mas no acreditam que possam ser 100%bem sucedidos. Todos os investigadores so presas dos enviesamentosinerentes ao observador. Quaisquer questes ou questionrios, porexemplo, reflectem os interesses daqueles que os constroem, o mesmo sepassando nos estudos experimentais. Os investigadores qualitativos tentamreconhecer e tomar em considerao os seus enviesamentos, como formade lidar com eles.
Os discentes foram escolhidos tendo por base seu desempenho acadmico
durante a pesquisa realizada no segundo semestre-a avaliao final dos trabalhos
de pesquisa. As avaliaes variaram entre 5,0 e 10,0 (sem contar uma
desclassificao, devido ao grupo ter utilizado fontes da internetsem identificar seus
autores), tendo por critrios a realizao da pesquisa bibliogrfica, da pesquisa de
campo (elaborao e aplicao dos instrumentos de pesquisa), da interpretao dos
dados, da elaborao do texto final e da apresentao perante as bancas
avaliadoras.As entrevistas foram realizadas por grupos. Os cinco grupos que
participaram da pesquisa foram: Ensino Jurdico, Mediao em Direito de Famlia,
Delegacia da Mulher, Navegantes II e Quilombolas. Eles foram escolhidos por terem
sido avaliados com grau mximo, ou seja, 10,0. Eu realizei o convite e o nmero de
discentes que participou da pesquisa variou de trs a seiscomponentes por grupo,
sendo vinte e um alunos entrevistados no total. Os grupos no semestre passado
possuram, em mdia, seis componentes.
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A questo escrita (em anexo) foi entregue aos alunos antes do
desenvolvimento do roteiro das entrevistas semi-estruturadas (roteiro em anexo) e
propunha que eles indicassem os pontos positivos e negativos do trabalho de
pesquisa por eles realizado, sem a identificao dos nomes daqueles que a
responderam. Essas contribuies podem ser observadas no captulo dez deste
trabalho. A filmagem das entrevistas semi-estruturadas proporcionou uma anlise
mais aprofundada das relaes de poder e controle que fundamentam as prticas
pedaggicas, o seu grau de classificao e enquadramento, a forma como a
recontextualizao curricular foi realizada pelos professores e, em certos casos,
pelos alunos (BERNSTEIN, 1996, 1998). Assim, pude perceber a maneira pela qual
os discentes desenvolveram suas pesquisas e de que maneira suas percepes dodireito e do ensino jurdico puderam ser entendidas, ou no, como possveis
instrumentos da construo do conhecimento-emancipao (SANTOS, 2001a,
2001b).
Utilizei tpicos previamente desenvolvidos e que serviram como guia
durante as entrevistas, evitando que estas ocorressem de maneira rgida e que, por
outro lado, permitissem o livre desenvolvimento das idias dos sujeitos investigados.
A importncia do guia de perguntas a serem feitas evidenciada na citao quesegue:
Mesmo quando se utiliza um guio, as entrevistas qualitativas oferecem aoentrevistador uma amplitude de temas considervel, que lhe permitelevantar uma srie de tpicos e oferecem ao sujeito a oportunidade demoldar o seu contedo. Quando o entrevistador controla o contedo de umaforma demasiado rgida, quando o sujeito no consegue contar a suahistria em termos pessoais, pelas suas prprias palavras, a entrevistaultrapassa o mbito qualitativo (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 135).
A pesquisa bibliogrfica, como foi visto, teve como abrangncia obras de
vrias reas do conhecimento: Estudos Curriculares, Filosofia e Filosofia do Direito,
Sociologia e Antropologia Jurdicas, Histria da Arte, exemplos extrados da
dogmtica jurdica, entre outras.
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2.3 APESQUISA COMO ESTUDO DE CASO
A constatao de que o currculo, assim como a relao pedaggica no
ensino do direito produto da cultura humana, sociolgica e economicamente
condicionada, aproxima esta investigao dos estudos culturais, por isso concordo
com Bogdan e Biklen (1994, p. 61) quando afirmam:
Em primeiro lugar, a perspectiva dos estudos culturais insiste que todas asrelaes sociais so influenciadas por relaes de poder que devem serentendidas mediante a anlise das interpretaes que os sujeitos fazemdas suas prprias situaes. Em segundo lugar, defendem que toda ainvestigao se baseia numa perspectiva terica do comportamento
humano e social.
Por todo o exposto, a pesquisa qualitativa desenvolvida configura-se em um
estudo de caso, o qual consiste na observao detalhada de um contexto, ou
indivduo, de uma nica fonte de documentos ou de um acontecimento especfico
(BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 48). Para esses autores:
O plano geral do estudo de caso pode ser representado como um funil [...]
O incio do estudo representado pela extremidade mais larga do funil [...]Os investigadores [...] comeam pela recolha de dados, revendo-os eexplorando-os, e vo tomando decises acerca do objectivo do trabalho.Organizam e distribuem o seu tempo, escolhem as pessoas que iroentrevistar e quais os aspectos a aprofundar. Podem pr de parte algumasidias e planos iniciais e desenvolver outros novos. medida que voconhecendo melhor o tema em estudo, os planos so modificados e asestratgias selecionadas. Com o tempo acabaro por tomar decises noque diz respeito aos aspectos especficos do contexto, indivduos ou fontede dados que iro estudar. A rea de trabalho delimitada. A recolha dedados e as actividades de pesquisa so canalizadas para terrenos, sujeitos,materiais, assuntos e temas. De uma fase de explorao alargada passampara uma rea mais restrita de anlise dos dados coligidos (BOGDAN e
BIKLEN, 1994, p. 90).
Os captulos seguintes, portanto, visam conceder o embasamento terico e
prtico para esse estudo de caso a fim de que, ao contrapor o entendimento dos
diversos autores analisados com os dados da pesquisa de campo e documental por
mim realizada, eu pudesse alcanar uma compreenso mais aprofundada sobre a
prtica pedaggica efetivada tanto por mim e meus colegas quanto por nossos
alunos.
A intencionalidade inicial da proposta dessa pesquisa jurdica foi a deproporcionar aos alunos a elaborao de um conceito de direito qualitativamente
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mais complexo e inclusivo atravs de mudanas de poder e controle no campo do
ensino do direito visando construo conjunta de um conhecimento emancipatrio
e multicultural. Se tal objetivo foi alcanado, o que ser visto na anlise dos dados
empricos do presente trabalho.
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3AS DIFERENTES CONCEPES DO DIREITO
As pessoas acreditam estar salvas quando se orientam conforme regrascientficas, obedecem a um ritual cientfico, se cercam de cincia. Aaprovao cientfica converte-se em substituto da reflexo intelectual dofatual, de que a cincia deveria se constituir. A couraa oculta a ferida. Aconscincia coisificada coloca a cincia como procedimento entre si prpriae a experincia viva. Quanto mais se imagina ter esquecido o que maisimportante, tanto mais procura-se refgio no consolo de se dispor doprocedimento adequado (ADORNO, 2000, p. 70).
A citao acima se relaciona concepo de direito que, em maior ou
menor grau, acompanha a todos ns: aes e procedimentos estabelecidos pela
legislao que devem ser observados tanto pelos cidados, independentemente de
sua situao individual, quanto pelos juristas, no momento da interpretao e
aplicao da lei, o que ser feito de maneira igualitria a toda a sociedade. O direito,
muitas vezes, reduzido fonte normativa escrita e a uma aplicabilidade
distanciada da vida real da comunidade, valendo o que se encontra descrito na
norma jurdica. Tal entendimento do direito, entretanto, no nico, apesar deexercer muita influncia sobre o ensino jurdico.
Neste primeiro momento terico, portanto, se faz necessrio o
desenvolvimento de um breve estudo sobre algumas concepes de direito que
influenciaram, e ainda influenciam, nossa percepo do sistema jurdico estatal.
Procuro apresentar, em rpida exposio, alguns fundamentos da escola positivista
do direito, especialmente os estudos de Hans Kelsen na sua obra Teoria Pura do
Direito.Em seguida, busco desenvolver a compreenso do direito como instrumento
de manuteno do sistema econmico de mercado. Para isso, utilizo as lies de
Karl Marx em diversos textos e de Hans-Georg Flickinger, no livro Em Nome da
Liberdade, ambos realizando crticas teoria hegeliana.
Ao fim, proponho uma nova viso do direito, mais ampla e solidria, tendo
por base, principalmente, a Dialtica do Esclarecimento, de Theodor W. Adorno e de
Max Horkheimer, conjugada com a Teoria Tridimensional, de Miguel Reale e com oPluralismo Jurdico, o qual analiso atravs da teoria de Norbert Rouland, na obra
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Nos Confins do Direito, e de Boaventura de Sousa Santos, na Crtica da Razo
Indolente.
3.1DIREITO COMO GARANTIA DE PAZ E LIBERDADE SOCIAL
As faculdades de direito, em sua maioria, logo no primeiro ano do curso
procuram demonstrar que o direito est, intrinsecamente, ligado norma jurdica
escrita, positivao estatal e sano. A teoria positivista, da qual Hans Kelsen
(1996) foi um dos grandes pensadores, nos diz que o direito oriundo de um fato
ocorrido no do mundo do ser, onde os fenmenos encontram-se pr-determinados
por uma relao de causa e efeito, regida pelo princpio da causalidade1. Uma vezescolhido o fato a ser normatizado, devido sua importncia e valorao pela
sociedade, ou seja, pelo legislador, ele torna-se previsto na lei positivada,
transferido, portanto, ao mundo jurdico. Importante ressaltar que a escolha do fato
realizada de maneira aparentemente neutra, partindo do pressuposto de que todos
os cidados so iguais perante a lei.
Em decorrncia, a cincia do direito deve ser vista como cincia autnoma e
independente, com um objeto prprio: a norma jurdica. Esta se situa no mundo dodever ser, sendo regida pelo princpio da imputao, ou seja, as relaes jurdicas
so estabelecidas pela vontade humana normativa, a vontade estatal (enquanto
representante da sociedade), que escolhe o que ser, ou no, proibido, prevendo
uma sano em caso de descumprimento2.
Resta clara a diferenciao entre os dois princpios e as cincias por eles
regidas. Kelsen agrupa cincias tais como a Fsica, a Qumica, a Psicologia e a
Histria sob o mesmo princpio da causalidade, conforme pode ser observado aseguir:
Uma vez conhecido o princpio da causalidade, ele torna-se tambmaplicvel conduta humana. A Psicologia, a Etnologia, a Histria, aSociologia so cincias que tm por objeto a conduta humana na medida
1O exemplo dado pelo autor o seguinte: se aquecermos um determinado metal at um certo grau,ele dilatar. Tal evento no pode ser modificado pelos seres humanos uma vez configurada acausa, o efeito ocorrer. Como exemplos de fatos que do origem norma jurdica podem ser citadoso nascimento, a morte ou algum evento da natureza, como uma enchente.2Temos a liberdade de escolha nas condutas sociais. No entanto, segundo este princpio, assumimosa possibilidade de nos ser imputada uma sano uma vez descumprida a ordem normativa. Porexemplo, o art. 121 do Cdigo Penal Brasileiro Matar algum. Pena: de seis a vinte anos derecluso.
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que ela determinada atravs de leis causais, isto , na medida em que seprocessa no domnio da natureza ou da realidade natural [...] Uma distinoessencial existe apenas entre cincias naturais e aquelas cincias sociaisque interpretam a conduta recproca dos homens, no segundo o princpioda causalidade, mas segundo o princpio da imputao; cincias que no
descrevem como se processa a conduta humana determinada por leiscausais, no domnio da realidade natural, mas como ela, determinada pornormas positivas, isto , por normas postas atravs de atos humanos, sedeve processar (KELSEN, 1996, p. 95-96).
Aps a estipulao das normas positivas, a inteno humana criadora
abstrada, por ser objeto de outros estudos, tais como os realizados pela Cincia
Poltica ou pela Sociologia. A valorao do fato, da conduta tipificada em lei, apenas
interferiu no momento da sua criao, no mais sendo levada em considerao. Ou
seja, a concretizao da norma jurdica, a unio entre a prtica do ato e a previsoabstrata do direito, ocorrer, para este autor, independentemente de sua valorao
atual pela sociedade.
Kelsen procurou especificar o objeto do estudo do direito, desconectando-o
de qualquer interferncia externa. A ns, juristas, caberia estudar apenas a validade
formal da norma jurdica e o dever de atuao de acordo com o estipulado no
comando legal. A pirmide kelseniana explicita que normas infraconstitucionais
somente sero formalmente vlidas e, portanto, obrigatrias a todos os cidados, seno confrontarem as normas constitucionais, hierarquicamente superiores e
situadas, portanto, no topo da pirmide. A questo da justia resta comprometida,
conforme citao a seguir:
Normas valem. Sua existncia especfica sua validade. Para que umanorma valha, a vontade do autor apenas uma condio, mas no a razoessencial. Esta se localiza na competncia normativa do autor, competnciaesta conferida por outra norma e assim por diante [...] Cada norma vale no
porque seja justa, ou porque seja eficaz a vontade que a institui, masporque est ligada a normas superiores por laos de validade, numa sriefinita que culmina numa norma fundamental [...] Kelsen, neste sentido, foium ardoroso defensor da neutralidade cientfica aplicada cincia jurdica.Sempre insistiu na separao entre o ponto de vista jurdico e o moral epoltico (grifos no original) (COELHO, 1997, p. 16-17).
A citao deixa claro que, para a Teoria Pura do Direito, uma norma jurdica
no justa ou injusta, mas vlida ou invlida. Na pirmide kelseniana, a
estrutura de competncias da Constituio Federal deve ser respeitada - o
ordenamento jurdico uma construo hierrquica de regras que mantm entre si
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uma relao de subordinao. A irregularidade da norma conduz declarao de
sua invalidade.
A neutralidade cientfica, calcada na descrio imparcial, portanto, baseia-se
em duas delimitaes: uma, de carter epistemolgico, impondo o estudo exclusivo
da norma, sem a sua conexo com outras cincias. A outra, primeiramente fundada
na elaborao da lei pelo Estado de maneira eqidistante dos diferentes grupos
sociais e, aps, na no-valorao da lei ou da deciso judicial no momento da
interpretao do direito, abstradas da sociedade e de seus meios de produo.
Basil Bernstein (1996), autor ingls que trabalha com noes de poder e
controle nas relaes pedaggicas, conforme veremos adiante, expe uma
teorizao que pode ser utilizada neste momento. O autor entende que relaes depoder realizam classificaes entre grupos (e mesmo no interior deles) e que quanto
mais fortes essas diferenciaes, mais individualizados seus componentes ficaro
em relao aos demais. Exemplos que podem ser indicados so as separaes
entre o conhecimento cientfico e o conhecimento do senso comum ou entre o
conhecimento oriundo da cultura popular e o da cultura erudita eles, a princpio,
no se misturam, vivem independentemente uns dos outros, devido s suas
especificidades. O autor afirma que:
Se as categorias [...] so especializadas, ento cada categorianecessariamente tem sua prpria identidade especfica e suas prpriasfronteiras especficas. O carter especial, especfico, de cada categoria criado, mantido e reproduzido apenas se as relaes entre as categorias,das quais uma dada categoria faz parte, so conservadas. O que deve serconservado? O isolamento entre as categorias. a intensidade doisolamento que cria um espao no qual uma categoria pode se tornarespecfica. Se uma categoria quiser aumentar sua especificidade, ela temque se apropriar dos meios de produzir o isolamento necessrio, que acondio prvia para adquirir sua especificidade. Quanto mais forte oisolamento entre categorias, mais forte ser a fronteira entre uma categoriae outra e mais definido o espao que qualquer categoria ocupa em relaoa qual ela especializada (itlico no original e sublinhado meu)(BERNSTEIN, 1996, p. 42).
Essa individualizao impe uma classificao forte ao campo do direito,
individualizado em relao s demais categorias, tais como a Histria, a
Antropologia ou a Economia, como observamos no pensamento kelseniano. Esse
isolamento determina uma voz especfica para cada campo, e sua particularizao
construda atravs das diferentes caractersticas de uns e outros.
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A total separao entre o reconhecimento da validade da norma jurdica e o
substrato social , portanto, um instrumento utilizado pela teoria positivista para
manter o isolamento do direito em relao aos demais campos, excluindo de sua
interpretao qualquer outro elemento que no decorra da leitura formal da regra ou
do sistema jurdico sob anlise. A interpretao da norma privilegiar mtodos
abstrados da moral ou da poltica, tais como o gramatical e o sistemtico, atravs
de regras tcnicas de linguagem e de remisses s demais normas constantes no
sistema jurdico.
Uma vez elaborada a norma jurdica, reconhecida sua validade e realizada
sua interpretao pelos profissionais do direito, nos moldes expostos acima, a sua
imposio garantida pelo monoplio da fora fsica pelo Estado, visando asegurana coletiva e a paz na comunidade. A vingana pessoal, por conseguinte,
vedada em nosso sistema jurdico, apesar de serem mantidas algumas excees,
como a legtima defesa. O ente estatal detm em suas mos a possibilidade de
aplicao do sistema de sanes e coeres, tal como a efetivao da sano
restritiva de liberdade por intermdio do sistema penitencirio ou a aplicao da
pena de multa por descumprimento contratual. Para isso, utiliza-se da violncia se
assim entender necessrio para a manuteno da regra de direito e da ordempblica.
Por tudo isso, o antroplogo jurdico Norbert Rouland (2003, p. 108), em seu
livro Nos Confins do Direito, entende: o que o Estado modernoerradicou no foi a
violncia nem a vingana, mas o sistema vindicativo3 (itlico no original). Nesse
sentido, a afirmao de Kelsen (1996, p. 41):
A paz do Direito, porm, uma paz relativa e no uma paz absoluta, pois oDireito no exclui o uso da fora, isto , a coao fsica exercida por umindivduo contra o outro. No constitui uma ordem isenta de coao, talcomo exige um anarquismo utpico. O Direito uma ordem de coero e,como ordem de coero, conforme o seu grau de evoluo umaordem de segurana, quer dizer, uma ordem de paz.
Podemos notar, assim, que o direito tem-se estruturado sobre certos
paradigmas: classificao forte do direito frente aos demais campos do
conhecimento, neutralidade na escolha dos fatos a serem considerados pelo direito
3 Por sistema vindicativo o autor entende a organizao social da vingana, como a prtica dasvendettas ou a estipulao de penalidade pela prpria comunidade, independentemente doordenamento jurdico estatal (p.ex., o linchamento).
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e neutralidade, novamente, no momento de sua elaborao e aplicao, validade
formal da norma jurdica e monoplio da fora fsica pelo Estado. A esses
fundamentos positivistas some-se a igualdade formal de todos os cidados perante
a lei e a atribuio da cidadania a todas as pessoas, reunidas por aquilo que tm em
comum (territrio, linguagem e etnia, por ex.). Stephen Ster, Antonio Magalhes e
David Rodrigues (2004, p. 78) alertam para esse entendimento: [...] essa
construo da incluso com base naquilo que as pessoas partilham, no que tm em
comum, conduziu inevitavelmente a diferentes formas de excluso ecmica, social,
poltica e cultural.
Tal afirmao baseia-se no fato de que a igualdade formal no pressupe a
igualdade material ao contrrio, para alguns crticos, o objetivo do princpio daigualdade jurdica o de ocultar a desigualdade real dos agentes econmicos. Paulo
Freire (1981, p. 163-164) fala sobre o mito dessa igualdade:
[...] o mito de que todos, bastando no ser preguiosos, podem chegar aser empresrios mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelasruas, gritando doce de banana e goiaba um empresrio tal qual o donode uma grande fbrica [...] O mito da igualdade de classe, quando o sabequem est falando? ainda uma pergunta dos nossos dias.
Esses paradigmas traduzem o sistema jurdico como rbitro e garantidor da
pacificao social, responsvel por organizar uma comunidade onde todos seriam
iguais, impondo a paz atravs da fora. O culto lei, ao direito estatal e sua
sano e coero, encontram-se fortemente presentes no pensamento jurdico
ocidental. Nas palavras de Norbert Rouland:
O direito no chega at a solicitar as cores para tornar-se mais imperativo?Preta a roupa dos magistrados e dos auxiliares de justia, escura asforas da polcia. Cores que fazem eco ao preto do uniforme do rbitro e dabatina do padre. Todas essas personagens esto a para lembrar a regra e,se preciso, forar sua observao. O fnebre no est longe. Mas tambmo vermelho, a cor de que gosta o poder (pensemos nos prpuras imperial ecardinalcio, nos diversos tapetes vermelhos): os magistrados das altasjurisdies se revestem dele; ele colore a capa da maior parte dos cdigosfranceses; deu seu nome aos sinais de trnsito que prescrevem parar [...]O direito se impe at nossa retina (ROULAND, 2003, p. 06-07).
O estudo do sistema jurdico, com o tempo, me fez indagar sobre a garantia
jurdica da igualdade e da paz social. De que forma um conjunto normativo estatal,
em uma economia de mercado, poderia implementar tais objetivos? Estaria na
essncia do direito a superao das diferenas entre as classes sociais? Como
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observamos, a Teoria Pura do Direitodesconecta o conceito de direito da realidade
econmica e social do territrio em que vigora determinado sistema normativo.
Assim, para formular essas perguntas, meu marco de anlise dever retroceder,
alcanando no a estrutura jurdica posta em nosso Estado, mas as finalidades e
motivos pelas quais foi, de incio, elaborada.
3.2 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS GARANTIDOR DA ESTRUTURA ECONMICO-
SOCIAL
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que teve forte influncia no pensamento
kelseniano, afirma que o direito tem por fim a garantia da liberdade a todos oscidados. Nas suas palavras, o domnio do direito o esprito em geral; a, a sua
base prpria, o seu ponto de partida, est na vontade livre, de tal modo que a
liberdade constitui a sua substncia e o seu destino e que o sistema de direito o
imprio da liberdade realizada (HEGEL apudFLINCKINGER, 2003, p. 15). Segundo
Atlio Born (2003, p. 73), o autor alcana o seu objetivo de:
[...] apresentar o Estado o Estado burgus e no qualquer Estado comoa esfera superior da eticidade e da racionalidade, como o mbito onde sedesenvolvem as contradies da sociedade civil. Em suma, um Estado cujaneutralidade na luta de classes se materializa na figura de uma burocraciaonisciente e isolada dos srdidos interesses materiais em conflito, tudo oque lhe faculta aparecer como o representante dos interesses universais dasociedade e como a encarnao de uma juridicidade despojada de todacontaminao classista (aspas no original).
Note-se, entretanto, que por liberdade queremos dizer, sob as condies
de produo burguesas atuais: mercado livre, venda livre e compra livre (MARX e
ENGELS, 1998, p. 35). Percebendo o direito de uma forma mais crtica, diversosautores o compreendem como um intermediador de conflitos, estando sua mediao
fundamentada em valores estabelecidos pelo legislador, sendo sempre parcial, por
traduzir a ideologia do poder legiferante (AGUIAR, 1990, p. XVII).
Michael Apple (2002, p. 03) ressalta essa contingncia histrica da
construo da cultura hegemnica na citao a seguir:
Devemos ter sempre presente que as lutas culturais no so umepifenmeno. Elas so importantes e so-no nas instituies em toda asociedade. Para que os grupos dominantes possam exercer a sualiderana, necessrio que um vasto nmero de pessoas acredite que as
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representaes da realidade veiculadas pelas pessoas com mais podereconmico, poltico e cultural fazem mais sentido do que as restantesalternativas. Os grupos dominantes exercem a sua liderana relacionandoessas representaes com os elementos de bom senso das pessoas emodificando o sentido profundo de conceitos fundamentais e das
respectivas estruturas de sentimentos que fornecem as referncias para asnossas esperanas, receios e sonhos na sociedade.
Karl Marx realiza sua crtica ao pensamento hegeliano em sua obra Crtica
da Filosofia do Direito de Hegel (1985),desconstruindo a idia de um Estado neutro
e mediador de conflitos entre os cidados. A conexo entre estrutura e
superestrutura o ponto de partida para a compreenso dessa anlise.
A estrutura abrange duas relaes, a relao de propriedade e,
conseqentemente, de domnio dos meios de produo e do trabalhador, e a deapropriao real, oriunda da combinao dos meios de produo e dos
trabalhadores na produo econmica (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1994,
p. 446-449). Por sua vez, a superestrutura formada por relaes sociais, jurdicas,
polticas e culturais, oriundas do Estado Capitalista. Dentre as duas, a primeira , em
ltima anlise, a instncia reguladora:
[...] na produo social da prpria existncia, os homens entram emrelaes determinadas, necessrias, independentes de sua vontade; estasrelaes de produo correspondem a um grau determinado dedesenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O conjunto dessasrelaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a basereal sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qualcorrespondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo deproduo da vida material condiciona o processo de vida social, poltica eintelectual. No a conscincia dos homens que determina a realidade; aocontrrio, a realidade social que determina sua conscincia (sublinhadomeu) (MARX, 2003, p. 05).
O confronto com Hegel torna-se inevitvel. Marx liga, irreparavelmente, odireito estatal s relaes de produo. O Estado liberal, como representante das
classes dominantes, organiza o sistema jurdico dentro de seus moldes, o qual seria
garantidor de uma determinada organizao das foras de produo, no caso em
anlise, do sistema de mercado. E, uma vez que a propriedade privada um dos
pressupostos desse sistema, uma das grandes funes do direito seria preserv-la
de quem quer que tenha interesse em sua violao. Nas palavras de Hans-Georg
Flickinger (2003, p. 12-13):
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Orgulhamo-nos de um sistema de direito que garante a todos a liberdade eigual chance de participar, tanto nos bens comuns e decises polticas,quanto na construo do espao social do mundo da vida. At hoje,nenhuma outra sociedade conseguira instaurar estrutura de liberdade toabrangente quanto a nossa. Por outro lado, inegvel que essa mesma
sociedade alcana estgio de disparidade social extremo. Frente misriacrescente de vrios segmentos da populao, chega-se, por vezes, aolimiar de severos conflitos sociais na formao de movimentos que fogem integrao no corpo formal da sociedade na qual se observam,simultaneamente, processos globais de migrao de capitais e riquezas,aparentemente desenraizadas dos seus contextos naturais de produo(isto , dos lugares da criao de valores e bens materiais) (aspas nooriginal).
Flickinger (2003) evidencia, na citao acima, a contradio entre o direito
formalizado pelo Estado e a realidade scio-econmica na contemporaneidade. O
autor demonstra que a liberdade de todos os cidados, fundamento do Estado
moderno, e formalmente garantida pelo direito liberal, exclui a possibilidade de o
mesmo direito regrar juridicamente o que ele denomina de jogo material-
econmico. Dessa impossibilidade de conjugao, surge o paradoxo analisado pelo
autor em sua obra Em Nome da Liberdade.
Segundo Flickinger, Hegel entende a expresso da vontade humana como
pressuposto da liberdade, tal como pode ser visto em um acordo de vontades para a
elaborao de um contrato de compra e venda, por exemplo. Uma vez que o direitoseria instrumento para a garantia da liberdade, onde no houvesse vontade humana
consciente, no haveria possibilidade de imposio de regramentos jurdicos. Da os
diversos vcios de vontade contratuais, previstos no Cdigo Civil Brasileiro (CCB)4.
Nas palavras do autor:
Em consonncia com o auto-entendimento da conscincia moderna, asociedade liberal pressupe que todos os indivduos, em princpio, sejam
capazes de tomar seu destino nas prprias mos, impondo ao seuambiente os prprios interesses como fio condutor do agir.Conseqentemente, cada um deveria conquistar espao suficiente paraapropriar-se, livremente, do mundo material e social. Ao sistema do direitoliberal caberia, portanto, a funo de instncia estruturadora dessesespaos. Nada mais natural do que aceitar, imediatamente, asconfiguraes jurdicas como apoio por excelncia, por meio do qual cadapessoa poderia, no apenas reivindicar sua liberdade, mas tambm v-laassegurada (FLICKINGER, 2003, p. 18-19).
4So eles: Erro ou Ignorncia (art. 138 a 144); Dolo (art. 145 a 150); Coao (art. 151 a 155); Estadode Perigo (art. 156); Leso (art. 157); Fraude Contra Credores (art. 158 a 165) e Simulao (art. 167).Aos vcios contratuais esto previstas as penas de nulidade (art. 166) e anulabilidade (art. 171 e 178)dos contratos realizados.
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A questo sob enfoque surge, assim, quando os homens encontram-se
sujeitos a situaes que lhes retiram essa voluntariedade, tais como as regras do
jogo material-econmico, arena onde desenvolvida a busca pela sobrevivncia. De
que maneira ser possvel a conciliao do direito liberdade individual com o
mundo da necessidade, na realidade social de um sistema de produo
fundamentado nas diferenas entre classes e na formao das conscincias prpria
de um sistema liberal, o qual exclui o desenvolvimento da autonomia e da crtica
devido ao processo de alienao dos homens?
A alienao do homem decorre da sua coisificao pelo processo de
produo capitalista. O trabalhador igualado mercadoria, ambos sendo fonte de
rendimento ao sistema. A unidade da coletividade manipulada consiste na negaode cada indivduo; seria digna de escrnio a sociedade que conseguisse transformar
os homens em indivduos (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 62-63).
Marx (2005) descreve essa alienao em trs nveis de aprofundamento. A
mercadoria, aps sua produo pelo trabalhador, torna-se independente deste,
colocando-se fora do seu alcance. O produtor no percebe na coisa produzida,
inacessvel ao seu poder aquisitivo, traos que a conectem a ele, ela torna-se um
ser estranhoa sua realidade.Em um segundo nvel, o trabalhador aliena-se da sua prpria atividade
laboral:
[...] o seu trabalho no voluntrio, mas imposto, trabalho forado. Noconstitui a satisfao de uma necessidade, mas apenas um meio desatisfazer outras necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que ohomem se aliena, um trabalho de sacrifcio de si mesmo, de martrio [...]Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece nofato de que ele no o seu trabalho, mas o de outro, no fato de que no
lhe pertence, de que no trabalho ele no pertence a si mesmo, mas a outro(grifos no original) (MARX, 2005, p. 114).
O processo de reificao impe, inclusive, a alienao do homem da
espcie humana. Ele perde a autonomia, a capacidade de pensamento crtico sobre
o mundo em que vive. Uma vez entendida a liberdade como sinnimo de
autoconscincia, ocorre uma desumanizao do trabalhador. por isso que Adorno
e Horkheimer (1985, p. 30) afirmam que a venda sobre os olhos da Justia no
significa apenas que no se deve interferir no direito, mas que ele no nasceu daliberdade.