Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo
Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 0
A CRTICA MARXIANA DA QUESTO DE MTODO THE MARXIAN CRITIQUE OF THE QUESTION OF METHOD
Antnio Jos Lopes Alves
RESUMO
No presente artigo se explicita o modo como a questo de mtodo aparece no
desenvolvimento maduro da crtica marxiana da economia poltica. Neste
sentido, a argumentao indica o carter particular que o problema da
determinao da esfera dos procedimentos tem na cientificidade marxiana.
Evidencia-se uma distino radical para com a forma com que esta temtica
emerge e se desenvolve a partir dos primeiros momentos da filosofia moderna e
medra nas elaboraes kantiana e hegeliana. Em Marx, no somente o mtodo
no ocupa o lugar central da teorizao, submetendo-se, ao contrrio regncia
do objeto, como o problema mesmo da delimitao gnosio-epistmica como
elemento decisivo se acha superada. Por assim dizer, o prprio discurso do
mtodo se encontra negado.
PALAVRAS-CHAVE: Marx; Crtica da Economia Poltica; Ontologia; Teoria;
Mtodo; Fundamento
ABSTRACT
In this article explains how the question of method appears in the mature
development of the Marxian critique of political economy. In this sense, the
argument indicates the particular character that the problem of determining the
sphere of scientific procedures has the Marxian. It is evident to a radical
distinction with the way this theme emerges and evolves from the first moments
of modern philosophy and thrives in Kantian and Hegelian elaborations. In
Marx, the method not only does not occupy the central place of theorizing,
submitting instead to the regency of the object, as the same problem of
delimitation gnosio-epistemic as a decisive element finds himself overcome. So
to speak, the discourse of the method as such is denied.
KEYSWORD: Marx; Critique of Political Economy; Ontology; Theory;
Method; Foundation
Doutor em Filosofia, Professor da UFMG e Membro do Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos
Confluentes, CNPq. E-mail. [email protected]
Antnio Jos Lopes Alves
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INTRODUO
Em seus contornos mais especficos a investigao da qual resulta a discusso a
seguir teve como objeto o padro de cincia que formata e determina a crtica marxiana da
economia poltica em sua fase mais desenvolvida. O mbito problemtico no se
circunscreveu propriamente esfera metodolgica, nem mesmo como captulo de um
desvendamento epistmico, mas acabou por configurar-se numa aproximao explicativa
do estatuto das categorias no pensamento de Marx. Um terreno, portanto, bem mais amplo,
em cujas demarcaes se abarca, obviamente a questo de mtodo. O projeto assim
delimitado e efetivado teve por inspirao e orientao intelectuais e tericas a propositura
chasiniana do Retorno a Marx, buscando desdobrar aspectos indicados pelo pensador
brasileiro, mas igualmente intentando descobrir outros aspectos da questo da cientificidade
marxiana.
Neste sentido, tratou-se tanto de uma continuao quanto de um desdobramento
diferenciados, animado pela proposta de aprofundar o conhecimento acerca da resoluo do
problema do conhecimento na reflexo terica marxiana. O resultado a que se chegou, e ao
qual se subsume necessariamente a especfica temtica do mtodo, de o talhe terico da
cientificidade da economia poltica a configura como uma inteleco cujo o marco principal
determinar e explicitar a differentia specifica dos processos sociais em sua objetividade
prpria. Deste modo, o caminho do conhecimento depende do feitio eminentemente
particular e finito da processualidade societria em exame, seja num sentido histrico, seja
num sentido ontolgico. Em outros termos, a soluo do conhecer est necessariamente
subsumida pelas determinaes que conformam e delimitam os complexos sintticos
categoriais que perfazem o objeto tomado. O que vale para o rastreamento das distines de
natureza precisamente histrica, na diversidade que comportam os desenvolvimentos das
formas de sociabilidade, como igualmente para a identificao da esfera de pertinncia e
vigncia das categorias nos diferentes momentos e modos de relao dentro de uma mesma
totalidade histrico-social. Resulta disso, no haver no pensamento de Marx uma
delimitao unvoca e definida em termos assertricos acerca "do" mtodo adequado.
possvel encontrar, ao contrrio, antes, a indicao de determinado Weg, demasiado geral,
no qual o conhecimento mesmo desenha porquanto se proceda, sem a cauo da suposio
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de autonomia transcendental da razo nem a de uma figurao espiritual objetiva
considerada princpio do mundo. O caminho por isso um dado roteiro, sujeito aos
percalos, s idas e vindas, s dificuldades prprias da lida com a objetividade do concreto
que necessariamente transcendente, num sentido fsico e efetivo, o sujeito real que dele se
aproxima e entabula a conhec-lo.
Nada mais distante, por conseguinte, das pretensas garantias de validade, e (por que
no?) verdade, a priori que tanto seduziu a filosofia moderna e a embalou em seu sono
gnosio-epistmico. Por um parte, o roteiro do efetivo conhecer acorda o sujeito das iluses
onricas da autoimagem construda em torno da racionalidade autoposta e autossustentada.
O que no significa, de outra parte, a interdio do conhecer, to a gosto das tendncias
predominantes e ainda em alta voga na atualidade. Diversamente, a propositura marxiana
"to somente" - o que no pouco, contudo - reposiciona a atividade cognitiva, e seus
desdobramentos efetivos, num devido lugar, determinado pela posio concreta estatuda
pela conformao particular do objeto da teoria do social. Como no possvel evadir-se ou
isolar-se da efetividade em que est imerso o sujeito real do conhecimento, seno,
novamente, no mundo encantado do cogito e de suas deidades congneres, a apropriao
terica da realidade social se d num conjunto de condies objetivas que podem tanto pr
no horizonte quanto retirar da vista as possibilidades de inteleco1. A imagem do cientista
no corresponde mais quele de um analista que, dispondo de uma ferramenta pas-par-tour
metodolgica esquadrinhe, de sua posio autrquica, o conjunto da extenso ou de um em-
si, ou ainda na suposio de uma continuidade necessria e homloga entre a lgica da
cabea e a forma do existir. Ao contrrio, revela-se o investigador em sua contextura de
coisa concreta determinada s voltas com a objetividade que precisa vitalmente deslindar.
Ser objetivo que no se apresenta num primeiro momento mais que um registro intuitivo e
representacional, mas que no esgota nisso seu ser existente, tem uma da dada espessura de
ser, a qual se ergue como convite e desafio cognitivos. Quem conhece, situado antes do
mais, como um determinado que concreto socialmente delimitado, forceja por conhecer e
apreender em passos de aproximao que destrinche a malha plena do existir. Analisando
1 No se delonga aqui muito acerca da questo da posio (Standpunkt) que determina o conhecer como
posicionamento social, na medida em que esta apresentao se ocupa mais especificamente da descrio
crtica do conhecer como atividade in actu. Para maiores esclarecimentos especificamente sobre a questo do
Standpunkt em Marx: Cf. Alves, A.J.L. A questo do Standpunkt na cientificidade marxiana: a querela do
trabalho produtivo na economia poltica, In Verinotio, n. 12, 2011, p. 87 a 93.
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sim, mas como um anatomista, as fibras determinativas que tecem urdidura e trama do
objeto, para descobrir e fazer visvel as formas especficas de Dasein que perfazem o tecido
vivo da realidade social. Anatomia que se concretiza na vigncia inarredvel da
corporalidade particular que fendido desde suas mais imediatas epidermes at o conjunto
de elementos e funes que se conectam pelas vias da construo efetiva de relaes
histricas de produo da vida humana. O que torna manifesto tambm o alcance da
analogia travejado pela estrutura ontolgica particular do social em diferena com o
orgnico, ao mesmo tempo em que afasta qualquer suspeita de uma suposta orgnica da
sociabilidade. A sociabilidade, como conjunto de relaes, existe efetivamente se reproduz
no tempo pela via das prprias interaes concretas dos indivduos sociais na configurao
particular, no caso do mundo do capital, dada pela viger das classes. E a analogia cessa a.
No se recobre o social pelo orgnico, assim como no se abre a alameda ao sentido oposto.
Produo que da interatividade objetiva, a vida societria no tem num suposto princpio
nico ou determinador da sua essncia para atualizar-se, mas de natureza transiente e
mutvel, na medida das transformaes das condies historicamente produzidas e
mobilizadas pelos homens reais. Que se retenha esta ltima observao como advertncia
s interpretaes enviesada ou mesmo m-f da imputao.
I. FUNDAMENTO E MTODO
O carter da pesquisa supracitada, bem como os resultados nela obtidos, e que aqui
sero apresentados, permitem definir que o problema do conhecimento, em Marx, no
resolve por sua remisso, nem muito menos sua reduo, quele do mtodo. O que se
observa exatamente o afastamento explcito para com o padro epistemolgico da
reflexo filosfica dominante acerca da cientificidade. Essa objeo tradio
preponderante das leituras se d num duplo registro. Primeiro como oposio ao
vnculo imediato a Hegel, no, evidentemente, na direo de uma total inexistncia de
relao, mas tentando demonstrar a distancia crtica, de natureza ontolgica, que os separa.
O que permite, ao mesmo tempo, preservar o Hegel que h na reflexo marxiana, e em
nada traz prejuzo em que esteja l. Segundo, talvez o mais complicado, mas exigido pelo
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primeiro lado da polmica, a apresentao do que anteriormente j foi referido como
antimtodo em Marx. Ou seja, no apenas o mtodo marxiano no um derivado da
dialtica de Hegel ou de qualquer outra , mas que a prpria questo de mtodo perde o
sentido em Marx, se posta nos termos tradicionais desde Descartes ou Kant. Neste
momento possvel situar de modo mais exato o significado radical da distino do
pensamento marxiano com relao tradio que lhe imediatamente anterior, uma vez
que a posio de que Marx, por assim dizer, desmonta o discurso do mtodo. Sendo um
tanto ousado, e arriscado, poderamos dizer mesmo que em Marx no h a operao de um
mtodo, de um conjunto de procedimentos que conformem a subjetividade cientfica
qualificando-a ao conhecimento do verdadeiro. No h estrada real {Landstrae} para a
cincia, adverte Marx no prefcio edio francesa de O Capital, no havendo assim um
caminho nico, privilegiado ou previamente configurado de acesso cognio de mundo. A
seguir, arremata afirmando que, s aqueles que no temem a fadiga de galgar suas
escarpas abruptas que tm a chance de chegar a seus cimos luminosos (MARX, 1998,
p.31).
O ponto de partida de nossa recusa da leitura epistemologista da obra marxiana se
ancora, conforme se explicitou no primeiro captulo desta tese, na conquista terica
produzida por Jos Chasin no interior de sua proposta filosfica de retorno a Marx, cujos
primeiros resultados analticos se acham consolidados em seu Marx: Estatuto Ontolgico e
Resoluo Metodolgica, publicado, inicialmente, como posfcio a Pensando com Marx,
em 1995. Neste escrito, Chasin expe o que denomina de ontologia estatutria,
determinao do carter presente na obra marxiana, a qual se apresenta como produto de
uma dcada e meia de pesquisa rigorosa na obra de Marx, em especial s questes relativas
ao processo de formao do pensamento marxiano em suas feies prprias. Neste sentido,
os estudos de Chasin se situam nos antpodas das correntes majoritrias, uma vez que se
prope escavao cuidadosa dos escritos marxianos. Busca encontrar, nos prprios
textos e termos de Marx, o padro de racionalidade que os conforma e que, ao mesmo
tempo deles resulta.
Mas qual a natureza desta ontologia, desta referncia terica ao ser das coisas e a
forma de ser dos entes? Metafsica? Hermenutica? Fenomenolgica? Estatutria. Numa
palavra, antissistmica, no afeita a construes apriorsticas nem exercitada como puro
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jogo de categorias. Tema pela primeira vez levantado por Lukcs, num dos captulos de sua
penltima obra intitulada, Para uma Ontologia do Ser Social (v.I, 2012, p. 281-302), a
existncia de uma ontologia na obra marxiana, e das relaes desta com a questo de
mtodo, foi tambm objeto de exame rigoroso no texto chasiniano acima referido. Chasin,
seguindo os passos analticos e os indicativos recolhidos da prpria obra de Marx acerca
desta questo, em especial os contidos em Introduo de 1857, desenvolve um exame
cuidadoso das principais determinaes dos procedimentos marxianos, buscando configurar
um esboo de conjunto desta problemtica. Pesquisa atenta, a qual se teve por motivao
certas observaes lukacsianas, em muito acabou por super-las, e, em certa medida,
corrigi-las. A este respeito, Lukcs explicitamente termina por confinar o carter ontolgico
da obra marxiana em termos bastante tradicionais e acadmicos dentro de contornos usuais
na filosofia, em sua relao como ponto de partida e arrimo de um sistema. Alm disso, h
tambm uma demasiada aproximao a Hegel, atravs da postulao de que haveria neste
ltimo uma ontologia tendente ao efetivo, por ele no desenvolvida, desvirtuada pelo
esquematismo lgico, a qual teria sido recolhida e modificada por Marx no sentido da
apreenso do mundo concreto por si. Chasin, ao contrrio, baseando-se no que denomina
trs crticas ontolgicas, da poltica, da especulao hegeliana e da economia poltica,
produzidas por Marx, pretende mostrar o movimento de constituio do pensamento
marxiano em exata oposio ao idealismo. No apenas, e em primeiro lugar,
metodologicamente, mas do ponto de vista da questo do ser. Em Hegel h uma identidade
entre Ser e Ideia, em Marx no. Haveria no pensamento marxiano uma prioridade na ordem
do ser do mundo efetivo em relao s formas de conscincia e idealidade. No h um
princpio racional que explique o mundo e se realize por meio da histria, ao revs, h a
histria efetiva da produo humana de mundo, atravessada por toda sorte de contradies e
tenses. Como padro de reflexo que apreende e reproduz a trama do real, os fundamentos
do pensamento marxiano no podem se articular num sistema ou esquematismo, mas num
conjunto de evidncias e proposies gerais, obtidas pela prpria pesquisa do mundo.
Deste modo Chasin destaca, num escrito postumamente referido, que,
(...) a ontologia marxiana no uma resoluo de carter absoluto, nos moldes do
sistema convencional, mas a condio de possibilidade de resoluo do saber. ,
em outras palavras, um estatuto movente e movido de cientificidade, orienta e
orientado pela cincia e pela prtica universal dos homens. Orienta e orientada,
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guia e guiada, corrige e corrigida. Ou seja, no um absoluto inquestionvel,
uma certeza estabelecida por deduo a partir de axiomas, de uma vez para
sempre (CHASIN apud VAISMAN, 2001, p. IX).
A ontologia marxiana, deste modo, nunca se apresenta como um todo fechado de categorias
encadeada numa ordem de determinaes a priori e sistemtica, nem se postula como
ltimo e permanente delineamento das formas de ser. Ao revs, coloca-se, antes de tudo,
como,
Afirmao da objetividade do mundo e a possibilidade de ser conhecido,
possibilidade determinada que scio-historicamente, exercendo a funo de
base e guia para a cincia da histria, especificamente como ontologia regional do
ser social, e que se nutre das cincias e a elas respondem tanto quanto elas
mesmas tm de responder aos lineamentos ontolgicos pelos quais se guiam, mas
os quais no tomam como cogulos de saber imutvel. De sorte que ontologia e
cincia se potencializam e se criticam recproca e permanentemente (CHASIN
apud VAISMAN, 2001, p. VII).
No sendo ento um conjunto de noes abstratas das quais, sob a gide de um esquema
que seria conformado por estas mesmas, se extrairiam os resultados particulares. Em
verdade, desta ltima etapa, a compreenso dos resultados, que se ergue uma ontologia
estatutria. Assim, a esfera mais geral e a mais particular, no ato de conhecimento, guardam
uma relao bem especfica, no de concorrncia ou oposio, mas de promoo e correo
mtuas e contnuas.
Neste sentido, clarifica-se como improcedente supor base da crtica da economia
poltica uma forma de lgica ou de sistema de categorias qualquer construdo a priori,
independentemente de sua sofisticao ou de permitir uma compreenso de algum tipo da
contraditoriedade imanente ao real. Em havendo a explicitao de elementos contraditrios
na ordem do capital pelo pensamento marxiano, e h, com certeza, tais traos, antes de
configurarem um princpio de inteligibilidade puro ou de indicar uma substncia,
pertencem ao carter imanente das coisas abordadas. Em Marx, a contradio no um
postulado metodolgico a priori, nem regra de procedimento (tratar o mundo pela tica
da contradio), mas caracterstica da sntese efetiva que preside a existncia concreta de
dados produtos humanos numa sociabilidade atravessada por um tipo especfico de
determinaes. Assim sendo, em havendo algo de dialtico na obra marxiana, no seu
mtodo, mas a prpria coisa, objeto de estudo. No se trata aqui da operao, mediante a
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qual um determinado contedo seja conformado no ato de sua abordagem por uma teoria
geral ou lgica da contradio de qualquer espcie. Muito ao contrrio, trata-se da
investigao do objeto, que parte de sua forma de existir a mais imediata, como se
apresenta efetivamente, seu Dasein, para, a partir da, descortinar por meio da anlise de
suas determinaes a sua forma essencial, a qual contraditria. Por exemplo, a
mercadoria, um ente atravessado em sua essncia pela contradio entre valor de uso
(conjunto de propriedades concretas que a tornam aptas a satisfazer alguma necessidade
social) e, por outro lado, valor (propriedade social que a torna trocvel por outro produto
qualquer). No uma lgica da contradio que rege a pesquisa, mas esta ltima que
desvela, ou no, a contradio imanente forma da mercadoria.
E aqui cabe um esclarecimento. No se trata, evidente, de afirmar uma dialtica da
materialidade, independente de saber-se o que seja isso, ou mesmo da sua existncia ou
no, mas de explicitar a posio reciprocamente contraditria das determinaes na
imanncia da forma mercadoria. Forma que no pode ser identificada como "natural" aos
produtos como produtos, mas assumida por estes em seu existir concreto no modo de
produo capitalista. Neste sentido, igualmente patente que no a cadeira, por exemplo,
em sua materialidade concreta, como coisa feita deste ou daquele material, que possui uma
articulao contraditria de determinaes, como poderia supor-se partindo de um
materialismo abstrato e empiricista (dialtico ou no), mas a da sua existncia, objetiva,
como mercadoria. A contradio se afirma como cerne da forma de ser das coisas como
mercadoria, e no apenas por serem resultados do trabalho humano. Que a forma
mercadoria apresente consequncias efetivas limitadoras ou promotoras de
desenvolvimento para a prpria produo humana outra questo, a qual concerne
relao progressivamente contraditria entre o desenvolvimento das foras produtivas e a
prevalncia das relaes capitalistas de produo. O que confirma e no nega, pois que
determina de maneira precisa seu estatuto, o carter efetivo e objetivo da contradio no
pensamento marxiano. Pois, uma vez que a compreenso daquela se instaura de maneira
diversa seja da questo de mtodo moderna, de Descartes a Kant, seja da identidade entre
mtodo e desenvolvimento real, tese que atravessa o sistema hegeliano.
neste diapaso que Marx afirma no posfcio segunda edio de O Capital que
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Meu mtodo dialtico, em seu fundamento {Grundlage}, no somente diferente
do hegeliano, mas tambm seu oposto direto {direktes Gegenteil}. Para Hegel,
o processo do pensamento {Denkproze}, que ele, sob o nome de ideia {Idee},
transformada num sujeito autnomo, o demiurgo do efetivo {Wirklichen}, este
apenas a sua manifestao externa (MARX, 1998, 23, p. 27).
Ou seja, a distino entre Marx e Hegel se d num nvel muito mais essencial que aquele
circunscrito esfera dos procedimentos. O fundamento hegeliano a da identidade entre
ser e ideia antes referida. Identidade que inverte a relao de determinao real entre ser e
pensar, fazendo do primeiro um modo de ser particular ou fugidio, e em si inconsistente de
manifestao do segundo. a postulao de um ser para alm dos entes, parte deles, o
qual o determina a multiplicidade de coisas e processos como a srie de modos
contingentes de seu aparecer. Por isso, a histria humana, em Hegel, fenomenologia da
substncia racional automovente, uma coisa/pensamento autnoma e viva. Para Marx,
continuando o texto acima citado, pelo contrrio, o ideal {Ideelle} nada mais seno o
material transposto {bersetzte} e traduzido {umgesetzte} para a cabea do homem
(MARX, 1998, p. 23). Resulta disso que a natureza da teoria traduo da coisa enquanto
efetivamente existente para a forma do pensamento. Sendo assim, a explicitao de uma
lgica, de um modo de ser especfico de um ente especfico. No h uma homologia direta
entre ser e idealidade, entre o processo pelo qual a coisa o que ela e aquele outro atravs
do qual a rede de suas determinaes abordada e apropriada conceitualmente pela cabea.
Neste sentido, tambm no posfcio, numa conhecida passagem, a qual tomada (e
traduzida) unilateralmente, Marx arremata a discusso. Assevera que em Hegel a dialtica
em sendo um processo de desenvolvimento da Ideia, de um ente da pura razo, que por suas
mais variadas diabruras pe efetivamente o mundo, ela, a dialtica, est assentada sobre
a cabea [steht bei ihm auf dem Kopf]. preciso invert-la [Man mu sie umstlpen], para
que possa ser descoberto o seu ncleo racional [rationellen Kern] envolvido no invlucro
mstico (MARX, 1998, p. 23). Em outros termos, no se trata de uma inverso de cunho
metodolgico ou lgico, mas remete ordem de determinao dos entes como tais. Ao
invs de assentar as categorias na cabea, isto , na racionalidade pura da substncia
ideal, deve-se assent-las na efetividade do mundo. Da razo como postulado forma de
ser como descoberta, eis a rota do distanciamento entre Marx e a especulao hegeliana, e
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permite o descortino tanto dos mritos do grande pensador quanto das mazelas que
pervertem as conquistas tericas.
Assim, ncleo racional a evidncia da contradio e da dinamicidade como
traos imanentes aos modos de ser e aparecer ferido de morte pelo invlucro mstico, a
transformao de um carter dos entes em substncia que lhes subjaz, para aqum e para
alm deles. Sendo entes e processos to somente formas de aparecer, ainda que necessrias,
da substncia. Neste sentido, acaba por tomar uma face eminentemente conservadora na
medida em que faz do desenvolvimento efetivo to somente momento do evolver da
substncia mstica, uma etapa de realizao da racionalidade posta desde o princpio como
pressuposto e no como conquista possvel. Como resultante mais que conhecida tem-se a
santificao do existente em nome da razo pressuposta em todo processo e o estancamento
da prpria mudana.
Nada mais distante disso que a compreenso das categorias como Daseinsformen,
formas de ser (de estar a) e no do ser Existenzbestimmungenen, determinaes de
existncia, como aparece explicitado pela primeira vez em Introduo de 1857, aos
Grundrisse (MARX, Bd.42, 1983, p.40) a qual aparece plenamente exercitada em O
Capital2. As categorias no so entes da pura razo, existentes apenas e diretamente na
forma conceitual ou como regras de ao dos sujeitos, mas so formas de ser da efetividade
que podem ser capturadas e transformadas em conceitos. No contexto estrito definido pelo
conhecer, produo de conceitos pela atividade da cabea humana, os quais correspondem,
ou no, na forma do pensamento, ao fim do processo, ao objeto concreto abordado. um
roteiro que vai da coisa enquanto complexo imediato de determinaes, o concreto tal qual
se apresenta, a populao ou a mercadoria, por exemplo, reproduo de sua articulao
ntima e imanente como concreto representado no pensamento. No final, o que se deve ter
a apreenso das relaes sociais de produes e das classes nelas implicadas, bem como do
valor como determinao social da mercadoria em contradio com o valor de uso. Das
categorias na forma do ser (in der Form des Seins) quelas do pensamento e da
racionalidade. Pressuposto aqui est evidentemente a posio do real e do ser como
objetividade, como complexo de categorias, de determinaes articuladas em uma rede de 2 Para maiores esclarecimentos, remete-se o leitor cientificidade na obra marxiana de maturidade: uma
teoria das Daseinsformen, conforme consta das referncias deste artigo, tese de doutorado, da lavra do autor,
em especial ao captulo IV intitulado O valor e suas formas.
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relaes recprocas, e por vezes antitticas, que existem independentemente das operaes
mentais pelas quais venham a ser capturados. Complexo de ser que por si mesmo e reage
ao sujeito nas suas mais variadas formas de atividade, e no apenas na cognio.
Objetividade que aponta, ao mesmo tempo, tanto para o carter de por si da coisa, quanto
sua possibilidade de vir-a-ser objeto de uma dada atividade, inclusive do pensamento.
Alm disso, vale ressaltar que Daseinsformen apontam em seu sentido direto para formas
do efetivamente existente, ou seja, das coisas, da mundaneidade, do concreto, e no do ser
em sentido geral. V-se confirmado mais uma vez a natureza no especulativa do
movimento cognitivo, pois, este no tem como pressuposto o ser em sua generalidade, mas
a multiplicidade dos entes, dos quais cabe apreender seu ser, a forma nas quais as
determinaes de existncia se articulam e o fazem ser o que e como .
A pesquisa, no obstante a sua aparncia, no se reduz pura recolha e justaposio
empirista de caracteres, nem a posio destes num esquema silogstico qualquer. o
processo no qual as abstraes produzidas pela investigao da coisa, a extrao de dados
aspectos, perdem seu carter simples e extremamente geral, ganhando em concretude e
especificao. a investigao de uma dada poca concreta da produo humana, por
exemplo, partindo de seu aspecto mais imediatamente constatvel em direo
determinao de suas principais categorias, de suas formas de ser, passando pelo processo
de extrao de abstrao de dentre seus elementos aqueles comuns a outros momentos
histrico-sociais, bem como, e principalmente, daqueles que a distingue das demais. um
traado no qual se tem em tela a diferena especfica a cada ente ou processo estudado. Por
exemplo, a determinao da forma social particular que assumem os meios e condies de
produo da vida humana, bem como o intercmbio, no modo de produo capitalista. No
a subsuno da concretude a uma tipologia ou a um princpio gerais, mas a dilucidao
das determinaes particulares do concreto, assim como a sua reproduo pelo pensamento.
apreenso da sntese das categorias conforme sua articulao na realidade. No se trata de
simples reflexo ou impresso, mas de traduo da sntese concreta de determinaes
na forma da efetividade para a de uma sntese de determinaes na forma do representado.
Traduzir comporta, evidentemente, uma mudana necessria de registro. Frente s palavras
de um dado idioma tem que se apresentar outras, na lngua do sujeito que traduz, que
comportem a rede de significados original e no apenas um nome. O que por si pode abrir
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caminho, involuntariamente ou no, ao adensamento ou mesmo desvirtuao de sentido.
De modo anlogo, a traduo do concreto existente em concreto pensado exige no a
introjeo pura e simples da coisa - entes ou processos - no crebro ou uma representao
imagtica qualquer, mas a posio da rede de determinaes numa forma especfica de
reproduo ideal.
o exato roteiro que vai das abstraes razoveis s determinaes de existncias -
conforme tematizado tambm por Chasin em Marx: Estatuto Ontolgico e Resoluo
Metodolgica - que se v realizado na anlise da mercadoria. Parte-se da mercadoria como
forma elementar (Elementarform) da riqueza no mundo do capital para se alar
identificao do valor como categoria determinante da produo (MARX, 1998, Bd.23,
p.49). Forma elementar, por que modo de ser particular assumido pelos produtos da
atividade humana vital no interior da sociabilidade capitalista, enquanto realizaes do
trabalho assalariado, inserido na troca entre fora de trabalho e capital. O ponto de partida
da anlise marxiana no o valor, que exatamente o que cabe ser elucidado, nem muito
menos o conceito de valor, mas a mercadoria tal qual ela na efetividade, na
mundaneidade do capital. Neste sentido, Marx nunca parte de conceitos, mas da coisa tal
qual ela se apresenta, para, atravs da sua anlise, da investigao da srie de suas
determinaes, das mais aparentes s mais essenciais, alcanar um conjunto de categorias
simples que conformem a lgica da coisa estudada. No caso especfico da mercadoria,
valor e valor de uso, na sequncia, trabalho abstrato e trabalho concreto, e a partir da num
movimento crescente de especificao, a delimitao do trabalho abstrato, simples gelatina
de trabalho humano social, sans phrase, como substantia do valor da mercadoria (MARX,
1998, Bd.23, p. 56-61). O caminho assim percorrido pela atividade do conhecimento
comea tomando a mercadoria em sua aparente simplicidade, com a qual os agentes da
troca esto acostumados e nela imersos, bem como de opacidade imediata, para chegar
mercadoria como figura desvelada, um plenum de determinaes de existncia. Momento
final este em que agora se torna visvel no somente um conjunto de abstraes, mas a
articulao das mesmas, as quais perfazem a coisa como ente enquanto tal. Articulao esta
parametrizada pela identificao precisa do que constitui o momento predominante
(bergreifendes Moment), da categoria que determina em ltima instncia a forma de ser
especfica do objeto. Momento, ou elemento constitutivo duma dada totalidade de
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determinaes, o qual delimita a natureza da relao entre as categorias. No caso da
mercadoria, o valor, e sua substncia, o trabalho abstrato. No que as demais categorias
sejam simplesmente negadas em sua vigncia ou existncia, mas estas tm definida sua
esfera em relao quela que delimita a coisa como coisa especfica. Assim, o valor no
pode existir, na pura abstrao, par soi mme. To somente o pela sua existncia como
determinao social de dado produto do trabalho humano concreto. Entretanto, no por
ser apenas produto do trabalho, dirigido a uma necessidade especfica, que algo se torna
mercadoria. Um produto no por si imediatamente mercadoria, somente o sob a
condio de ser tambm imediatamente, ser-para-outro, ser para a troca, realizao e
relao de trabalho social geral incorporado num valor de uso. Da a regncia ser do valor,
da categoria atravs da qual a trocabilidade universal das coisas e atividades efetivada
como aspecto imanente ao produto. Realizao do trabalho humano na particularidade
histrica da troca de fora de trabalho por salrio. Como momento predominante da forma
mercadoria, o valor uma determinao central obtida pela anlise da efetividade da
mercadoria, e no um pressuposto analtico ou princpio do qual se deduziriam as demais
formas como modos de sua existncia particulares. A este respeito, num manuscrito datado
de pouco antes de sua morte, Marx observa contra Adolph Wagner, crtico alemo de sua
obra que atribua categoria valor papel similar quelas desempenhadas nos sistemas
filosficos pelas ideias claras e distintas das quais se deduz o mundo que,
(...) eu no divido o valor em valor de uso e valor de troca, como termos
antitticos em que se decomponha o abstrato, o valor, mas afirmo que a forma social concreta do produto do trabalho, da mercadoria, por uma parte valor de uso e por outra parte valor, no valor de troca, posto que este uma simples forma de manifestar-se e no seu prprio contedo (MARX, 1962, p.369).
O que se tem desenhado, ainda que sumariamente, na analtica da coisa mercadoria,
poderia ser descrito como um mtodo? Por certo um caminho dado foi percorrido, mas
valeria ele para todo e qualquer objeto? O que podemos observar no o exerccio de uma
metodologia universal ou a descrio de uma chave de interpretao dos fenmenos, mas
um simples roteiro de percurso. Passos por meio dos quais se atravessa as sendas de
aspectos e elementos de uma dada concretude, uma via que no est dada, mas que se
percorre. Neste sentido, e apenas neste, talvez, um mtodo (), um caminho que se
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segue em direo a um algum objetivo ou lugar. A palavra grega que marxianamente
tomada em seu sentido o mais literal, pois, h apenas caminhos especficos para o
desvelamento da verdade de coisas especficas. Da mesma maneira que somente caminhos
especficos podem nos levar a lugares especficos. Certamente, caminhos e atalhos, desvios
e bifurcaes, podem nos levar, como roteiro alternativo ao destino. Mas isso ao preo de
nos perdermos em sendas e, mesmo, nos afastar-nos demasiado do objetivo.
Assim, como nem todos os caminhos no nos levam a todos os lugares, sendo o
roteiro definido pelo objeto, o conhecimento, ao menos em seus incios, no possui um
mapa detalhado de antemo. Resta-nos o parmetro oferecido pela prpria coisa, no
havendo uma fundao a priori que decida a questo do saber anteriormente ao prprio
saber. Portanto, todo movimento de conhecimento uma caminhada pelas escarpas
tortuosas do objeto enfrentado. Marx assim se acha aqui em franca oposio a toda a
tradio filosfica moderna anterior. Para essa, a posse de um mtodo seria a garantia de
verdade da cincia. Em consequncia, o momento de prefigurao da subjetividade do
pesquisador seria o momento central de constituio do saber, e o objeto, um produto do
modo de conceb-lo. Na obra marxiana d-se o oposto, a cientificidade tem seu fundamento
na investigao minuciosa das determinaes da coisa sob o mando da prpria coisa
tornada objeto da atividade cientfica. Neste sentido, afirmamos com Chasin, com certa
tranquilidade e uma dose inevitvel de ousadia que, a rigor no h uma questo de mtodo
no pensamento marxiano (CHASIN, 2009, p.89). Melhor ainda, no haveria sequer
mtodo strictu senso, se todo mtodo pressupe um fundamento gnosiolgico, ou seja,
uma teoria autnoma das faculdades humanas, preliminarmente estabelecida, que sustente,
ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento (CHASIN, 2009, p.89). Assim
sendo, nunca ocorre em Marx uma preponderncia da questo do conhecimento, da sua
possibilidade ou das vias de se atingi-lo. No que isto seja descurado. Mas de muito
evidente o fato de que tais questes somente apaream referidas aps um dado percurso,
mais ou menos acabado, no qual certa articulao do material se torna coerentemente
apresentvel. Disto testemunha o lugar destinado por Marx questo do mtodo da
economia poltica na supracitada Introduo de 1857, como terceira parte, aps a
dilucidao das relaes entre produo, consumo, troca e distribuio no interior da
produo de mercadorias. Igualmente a questo da possibilidade da verdade do
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conhecimento, que depende mais da determinao histrico-social do pensamento, do
Standpunkt no qual se faz a cincia, do que da posse de uma metodologia especial. A este
respeito, vale referir a anlise, feita por Marx no mesmo posfcio a segunda de O Capital,
acerca da impossibilidade social da economia poltica na Alemanha de seu tempo, na exata
medida do descompasso da realidade alem com aquela predominante nas duas outras
potncias europeias (MARX, 1998, p. 19-22).
De toda esta questo resulta no haver em Marx tambm uma garantia prvia da
verdade, ainda que possa haver verdade, a obteno de um dado conhecimento pela
investigao e exame da coisa. Neste contexto, Marx se situa a uma segura distncia tanto
frente tradio epistemolgica moderna, a afirmao da garantia a priori do verdadeiro
mediante a posse de um mtodo universal de conhecimento, quanto da pura negao in
limine da possibilidade do conhecimento do verdadeiro. Essa ltima, advogada pelas
diversas correntes que compartilham do perspectivismo, que caracteriza a linhagem
filosfica de origem em Nietzsche, a qual desaguou nas vrias propostas de hermenuticas
surgidas no decorrer do sculo XX e ainda vigentes. A possibilidade do conhecimento, na
obra marxiana, afirmada como evidncia da relao prtica com o mundo e a verdade
posta como meta a ser alcanada mediante o exame da efetividade e o descortino das
determinaes que a enformam objetivamente.
A seguir, sero apresentados de forma mais detalhada dois momentos nos quais o
exame do caminho (Weg) percorrido pela crtica marxiana da economia poltica em sua
feio mais madura em direo apreenso da differentia specifica do capital. Marx no se
dedicou com muita frequncia a esse tipo de incurso ao problema do conhecer, e do
mtodo em especial, de forma destacada, mas podem-se destacar duas ocasies em que isso
se deu em sua obra. Primeiramente, na famosa Einleitung zun den Grundrisse, redigida
em 1857, qual o prprio Marx refere no prefcio Para Crtica da Economia Poltica, de
1859. No obstante seu autor a tenha considerado inadequada, dado o risco de antecipar
contedo e concluses somente compreensveis na medida em que o texto integral, escrito
entre 1857-1858, fosse ento apropriado pelo leitor, em razo deste ter se mantido na forma
de manuscrito no publicado, acaba a introduo em questo tendo grande importncia para
a compreenso do pensamento marxiano. A segunda ocorrncia desse tipo de discusso a
registrada no posfcio segunda edio de O Capital, j em resposta a certas objees que
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demonstraram incompreenses acerca do caminho do conhecimento trilhado pela crtica da
economia poltica em sua principal obra.
II. A CRTICA DO MTODO O exame especfico acerca do mtodo na Introduo de 1857 se localiza na sua parte
terceira, no obstante a questo j tenha sido referida ou mesmo sumariamente discutida
nos dois itens anteriores. Tal exame se dava no contexto da circunscrio inicial do estatuto
das categorias, o qual tambm se apresenta em Die Methode der politischen konomie, em
igual mbito. Isso decisivo para a compreenso do espao determinado, nunca
determinante, que o problema do mtodo possui no pensamento marxiano. Esse tema
jamais abordado em sentido autnomo, desconectado do objeto, como a elaborao de um
sistema de procedimentos a ser aplicado no enfrentamento cognitivo a qualquer complexo
categorial. No por acaso, o exame do modo (Weise) ou do caminho (Weg) mais adequado
ao conhecimento da realidade social principia no com uma simples discusso de
fundamentao a priori do mtodo, com o estabelecimento de um preceito ou de uma regra
procedimental, mas com o exame da contextura do prprio objeto. A questo primeira no
afinal qual o melhor modo de organizar previamente a aproximao, e sim afinal do que
que nos aproximamos. A determinao da contextura ntica do objeto precede a do modo
de apropri-lo conceitualmente. Em outros termos, o que o concreto? Essa interrogao se
desdobra pelas pginas da Einleitung e passa a retracejar, na sequncia de seu
desenvolvimento e discusso, o caminho percorrido pela apreenso das categorias mais
essenciais ao modo de produo capitalista. Frise-se que se trata da compreenso de um
itinerrio de viagem j concluda, de percorrer sob a forma do objeto aquelas sendas que o
foram sob o modo da prtica cognitiva da cincia. No tem esse excursionar pelas vias do
mtodo nenhum talhe prescritivo, mas um carter puramente demonstrativo, sinttico e
representativo. H que atentar para o fato de que Marx somente expe a questo do Weg
aps a identificao das categorias mais importantes da produo (produo, distribuio,
troca e consumo), do carter especfico destas e, principalmente, do exame da articulao e
das relaes recprocas havidas entre elas.
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A parte do escrito em questo comea exatamente pela determinao do prprio
concreto. Com a investigao acerca da diferena entre o concreto propriamente dito e o
imediato, o dado puro, conforme este se oferece intuio e representao. A
populao, p.ex., tal qual esta aparece diretamente, uma Abstraktion, uma noo ou uma
percepo emprica vazia, quando no se leva em considerao as determinaes que
delimitam e ordenam a sua existncia enquanto efetividade. O que no significa a
postulao da existncia de um princpio a priori ideal ou suprassensvel, frente ao qual o
emprico como tal seria declarado como falso ou irreal. Os entes ou processos que se
encontram na experincia so o ponto de partida irrecusvel de qualquer propositura
cientfica. Nesse sentido, o existir-a, concretamente, da populao die Grundlage und das
Subjekt des ganzen gesellschaftlichen Produktionsakts ist (MARX, 1983, p.35). A questo
no discutir a efetividade da populao, mas sim encontrar as categorias, bem como a
concatenao que vige entre estas, que a determinam e a perfazem como tal. A concretude
da populao, como ente, no posta em suspeita. O adversrio marxiano no o emprico,
o finito, o que equivaleria posio especulativa de negar concretude ao mundo objetivo
por-si, mas sim, o empirismo, a reduo da concretude ao conjunto de determinidades
imediatamente perceptveis e mensurveis do concreto existente. Alm disso, importante
frisar que a cada nova determinao ou pressuposio que se descobre, uma srie de outras
trazida tona. Ou seja, no discurso cientfico marxiano no possvel definir uma
categoria em ltima instncia, que determine em absoluto, como fundamento primeiro ou
qual os complexos categoriais realmente existentes possam ser simplesmente reduzidos
conceitualmente. A analtica escava e abstrai das figuras empricas sejam tais, processos
ou entes as suas determinaes.
A anlise tem como meta extrair e fixar determinaes que encaminhem a cognio
na direo do ultrapassamento da chaotische Vorstellung des Ganzen, da apreenso do
finito dado em sua determinidade imediata. um procedimento de cunho analtico, ou seja,
cuja dmarche reside no destrinar o concreto na figurao em que este se apresenta, e
assim separar os aspectos nele presentes. O que indica haver duas pressuposies bsicas,
que se situam aqum da ordem propriamente metodolgica, mas que a delimitam e
orientam. Primeiro, a afirmao da existncia por-si, e no somente em-si, da efetividade
sensvel. A citerioridade do finito , por conseguinte, um ponto de honra central para a
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posio marxiana. No o ato conceitual ou terico que d realidade concreta a um objeto
efetivo - Gegenstand, para retomar as Ad Feuerbach (MARX, 1969, p. 5) - mas, ao
contrrio, aquele, como atividade de um ente igualmente concreto, deve ter como
Ausgangspunkt a plenitude do efetivo, do que , como referencial para a apreenso, e o
posterior estabelecimento em nvel terico, do ser, da determinao, deste. Em segundo
lugar, e como corolrio necessrio da posio analtica de Marx, emerge a afirmao de que
as categorias como tais so formas determinativas do finito efetivamente existente. Em
outros termos, os aspectos essenciais obtidos analiticamente no so entendidos como
apangios da inteleco, mas como determinaes da prpria coisa teoricamente
enfrentada, no caso, da produo dos indivduos sociais produzindo como uma populao
particular. No se trata da recusa do emprico em favor de outra dimenso de realidade que,
supostamente, se situaria acima ou alm do finito. O ente ou o processo a ser
esclarecido j, de sada, objetivamente, uma totalidade de categorias. Ao contrrio, a
questo a de discernir o aspecto essencial, ou o conjunto deles, que determina a forma de
existir, do Dasein, no caso, da populao. A populao como tal, em sua finitude, j o
concreto. O que se debate a definio do que a torna essa populao particular,
produzindo segundo o modo historicamente determinado pelo capital. O que, de certo
modo, afasta a posio marxiana do registro hegeliano, apesar das aparncias discursivas. O
concreto como Zusammenfassung vieler Bestimmungen uma pressuposio antes de tudo
de talhe ontolgico. A sntese ou concatenao categorial das diferentes determinaes
existe como forma da efetividade da coisa, e na coisa, independentemente da inteleco.
Coisa e inteleco so momentos do processo, mas no esto nem necessariamente
dispostos um ao outro adequadamente, nem tm a mesmo contextura de ser. O primeiro
termo do processo, a coisa, delimita e, a sim, est obrigatoriamente pressuposta
cognio. O movimento desta ltima que, ao aproximar-se analiticamente, tem por
finalidade a produo de uma sntese pensada (MARX, 1983, p. 35). Em Marx, o ser e o
pensar permanecem existindo como momentos diversos de uma relao real e determinada,
no se identificam, apesar de poder estabelecer-se entre ambos uma dada conexo qualquer.
A partir do esclarecimento da questo que necessariamente est pressuposta naquela
do conhecimento, se d a distino entre dois Wege frente efetividade imediatamente
dada, populao. De um lado, o caminho seguido pela economia poltica, o qual consiste
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em obter por meio da anlise da totalidade imediata de relaes, categorias cada vez mais
simples, com base nas quais se construram os sistemas explicativos clssicos acerca da
produo capitalista. Este caminho contempla um granu de verdade, porquanto se efetive
na abstrao de determinados pontos importantes e os fixe como categorias cientficas,
conceitos. No entanto, a operosidade conceitual das categorias acaba por resumir-se seja
elaborao de um sistema que as toma como expresses da produo em geral como
absoluto ou natural, seja como conceitos gerais dos quais se deduzem dadas relaes
particulares como seus casos. De outro lado, est aquele ltimo (Das letztre), seguido por
Marx, o qual inclui como etapa necessria a que se empreende a viagem de volta (die Reise
wieder rckwrts) ao concreto efetivamente existente, populao, mas no mais como
uma representao ou figurao catica do todo, e sim como uma reproduo conceitual do
fundamento e sujeito reais da produo. A totalidade categorial por-si retomada agora
como conjunto de categorias, devidamente articuladas, no pensamento, como sntese
pensada. O caminho cientfico marxiano opera, portanto, num roteiro que vai do concreto
conforme este se oferece imediatamente ao concreto compreendido como tal pelo
pensamento, passando pelo trecho da abstrao, no qual os momentos isolados (einzelnen
Momente) so mais ou menos fixados e abstrados (mehr oder weniger fixiert und
abstrahiert) (MARX, 1983, p. 35). Procedimento esse que o modus operandi de Marx tem
em comum com aquele da economia poltica clssica. No entanto, o movimento de
aproximao cientfica da realidade no cessa na obteno daqueles momentos abstratos, ao
contrrio, estes so remetidos concretude que perfazem a cada complexo particular
analisado (por exemplo, a produo ou o intercmbio) e obtm uma determinada feio e
um alcance determinativo prprio que depende do efetivamente existente. No h, por
conseguinte, como j se o assinalou, uma instncia categorial que seja o fundamento do
discurso, ao redor do qual, as demais figuras conceituais se moveriam como peas de um
mecanismo terico de carter sistmico. De certo modo, pode-se afirmar que no existe, ao
menos num sentido tradicional, um sistema em Marx.
Nesse sentido, o caminho (der Weg) propriamente marxiano, em distino ao que
ocorria nos autores da Economia Poltica, no se estaca na posse das categorias mais
simples em seu isolamento, nem mesmo faz delas o arrimo conceitual que sustenta, lgica
ou arbitrariamente, uma arquitetnica teortica. Tais figuraes abstratas, as quais assim o
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so no somente por seu teor ideal, e sim por seu carter vcuo e indeterminado, no tem,
portanto, um peso especfico de princpios irrevogveis, a partir dos quais os processos
explicados seriam deduzidos ou arrimados. Essas so to somente abstraes, ao menos
nas etapas mais primaciais do processo de aproximao cientfica. Formas ideais nas quais
se capturam e se expressam determinados lineamentos categoriais do concreto. Alm disso,
e por isso mesmo, no tm tais figuras o modo de existncia da universalidade a priori, da
qual o existente particular e finito seria uma simples ecloso. Como as categorias pensadas
no possuem preexistncia e nem autonomia frente ao concreto, essas devem ser sempre
cotejadas e matizadas pelo desenvolvimento processual efetivo que se tem em exame.
Assim, a produo em geral no tem legitimidade cientfica seno com base na sua
remisso a um dado modo de produzir concreto e particular. A procedncia ou adequao
de uma categoria cientfica no assegurada simplesmente por sua coerncia, interna ou
com a teoria. E, portanto, nem mesmo por seu contedo. So normalmente apenas certos
traos gerais e ainda informes do complexo categorial investigado. Essa qualidade depende
acima de tudo da aproximao do concretum objetivamente posto, em sua particularidade
imanente e inerente, a fim de tomar posse dele como Gedankenkonkretum. No por outra
razo, Marx define seu modo de proceder como aquele que vom Abstrakten zum Konkreten
aufzusteigen (MARX, 1983, p. 35). Elevao que tem como alvo no o encontro de formas
puras do pensamento, tomadas ento como a verdade ltima do concretamente existente,
como o seria nos marcos do idealismo stricto sensu.
Retomando o problema da determinao da questo de mtodo em funo daquela
atinente delimitao do estatuto de realidade do objeto, Marx fornece como sustentao
da indicao do caminho que inclui a Reise wieder rckwrts como die wissenschaftlich
richtige Methode a pressuposio bsica de que o concreto como tal uma sntese de
muitas determinaes. Ou uma unidade dos diversos (Einheit des Mannigfaltigen). No se
trata, por conseguinte, de uma assertiva cuja legitimidade seja instaurada
metodologicamente, mas assentada num ponto de partida acerca da natureza de entes ou
processos como objetividade e imanncia. Carter objetivo de ser que se perfaz exatamente
pela articulao plena de suas categorias, pela concatenao particular que fornece a
delimitao de sua finitude e distino. No o ato de conhecer um arranjo dado pela
subjetividade metodologicamente orientada a um mero em-si ou informidade de um real
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absolutamente desconexo. Ao contrrio, a cognio se aproxima de um processo ou ente
real, o qual tem em-si e por-si uma dada configurao objetiva, uma forma de ser, que cabe
capturar conceitualmente, traduzindo-a numa figurao mental que reproduza e tambm
explique o modo de ser da concretude. A sntese categorial no , a um nvel mais primrio
e essencial, uma dao terica, mas o carter especfico dos prprios existentes. Tal fato
explicaria inclusive o porqu de o pensar reproduzi-lo como articulao de categorias. E
aqui importante repisar que tanto o pensar quanto o existir, ambos permanecem como
momentos de uma relao, de uma defrontao, efetiva; ou seja, mantm cada qual seu
estatuto prprio, sem se identificarem. Com evidente acento categorial pendendo para a
prioridade do existente, do concreto, frente ao pensamento que o vasculha e forceja por
conhec-lo. Como tal, o que existe no obra do pensamento, nem o que como simples
momento da transitividade da substncia racional. A concretude sinttica, o existente, em
Marx, nesse contexto, se diz de dois modos: primeiro como este ente ou processo efetivo
por-si; depois, como totalidade de pensamentos. Assim, O sujeito real permanece
existindo como sempre em sua autonomia fora da cabea; at quando a cabea se comporta
apenas teoricamente, apenas especulativamente {Das reale Subjekt bleibt nach wie vor
auerhalb des Kopfes in seiner Selbstndigkeit bestehn; solange sich der Kopf nmlich nur
spekulativ verhlt, nur theoretisch}. A cientificidade no definida em separado da
efetividade sobre a qual se debrua, ao invs, deve delimitar-se sempre em funo da
processualidade concreta a ser explicada. Em outros termos, Tambm para o mtodo
terico, por conseguinte, deve o sujeito, a sociedade, ter-se sempre vista como
pressuposio da representao {Auch bei der theoretischen Methode daher mu das
Subjekt, die Gesellschaft, als Voraussetzung stets der Vorstellung vorschweben} (MARX,
1983, p. 36).
A esse respeito, bastante revelador o fato de que Marx, ao invs de elaborar uma
justificativa epistmica ou metodolgica, atinente prioritariamente esfera procedimental,
passe a discutir a natureza mesma das categorias. As formas so abordas em sua dplice
existncia possvel; como integrantes imanentes concretude da coisa e tambm como
figuras ideais que representam teoricamente estes elementos. A longa exposio que se
segue apresentao dos Wege - seu prprio e aquele incompleto seguido pela Economia
Poltica - se debrua sobre questes que remetem ao modo de existncia das categorias e
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sobre os contornos e parmetros que definem a validade cientfica das mesmas. O problema
central est sempre em delimitar o alcance explicativo e discursivo das categorias em
referncia ao estatuto do objeto, s diversas formas de sociabilidade e de interatividade,
buscando encontrar o papel que aquelas cumprem na particularidade concreta. Nesse
sentido, a existncia antidiluviana de algumas categorias da vida social, como o valor de
troca ou o dinheiro, por exemplo, no fazem delas um princpio trans-histrico da
produo. Essas, ao contrrio, existem exprimindo relaes sociais particulares,
determinadas numa dada poca, e delimitando-se por esta funo expressiva. A categoria
pode ter existido historicamente de maneira abstrata, isolada e antes da srie de conexes
e elementos histrico-sociais, que a transformam em uma forma societria plenamente
desenvolvida; que a remeta a um conjunto mais complexo e multiforme de relaes sociais.
Complexidade essa que se determina pelo grau de reciprocidade e de interdependncia
efetivamente existentes entre os diversos nichos e dimenses da produo social da vida
humana. A resposta inquirio acerca da possibilidade de existncia independente
(unabhngige) da assim chamada categoria mais simples frente quela concreta revela, na
sua aparente simplicidade, o quanto a soluo deriva da prpria analtica da coisa
examinada e no de uma diretriz de carter epistmico: a depend (MARX, 1983, p.36). A
dependncia irremedivel do estatuto das categorias como conceito e da articulao destas
numa forma discursiva do talhe concreto do objeto sua contextura e maturao uma
dmarche caracterstica da cientificidade marxiana. De um ponto de vista jurdico, exempi
gratia, a posse pode aparecer como uma existncia ou forma de existncia social real, mas
pressupondo sempre uma configurao particular, finita e concreta, na qual agrupamentos
determinados exercem domnio sobre condies materiais e elementos do mundo.
As observaes acerca da categoria trabalho so ainda mais esclarecedoras,
porquanto apontem para o fato de que esta somente pde vir a existir nesta simplicidade,
como Arbeit berhalpt, a partir do prprio desenvolvimento histrico. O aumento da
complexidade da prpria interatividade social, com a emergncia na modernidade da forma
do capital, o arrimo efetivo da categoria. Nesse contexto, a existncia da categoria
aparentemente simples oculta toda uma rota de transformaes histricas na forma da
produo que colocam a atividade mesma como pressuposio essencial,
independentemente do cunho particular de cada ofcio produtivo. O que aponta para o fato
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de que o carter, simples ou complexo, de uma categoria no advm somente do ato
cognitivo, da abstrao, mas, acima de tudo, ao do evolver efetivo da coisa ou processo
por-si, da produo social como tal. O carter geral ou universal de uma categoria uma
emergncia posta pelo desenvolvimento da produo da vida. Nesse sentido, Assim as
abstraes mais gerais s surgem no desenvolvimento mais geral do concreto, onde aparece
uma srie comum, partilhada por todos {So entstehn die allgemeinsten Abstraktionen
berhaupt nur bei der reichsten konkreten Entwicklung, wo eines vielen gemeinsam
erscheint, allen gemein} (MARX, 1983, p. 38).
Esse aspecto do problema aponta para uma das questes mais importantes
envolvidas na posio marxiana acerca da produo do conhecimento. O trabalho em geral
como categoria no tem apenas um princpio de existncia, aquele referente atividade de
conhecer operada pelos sujeitos reais, vivos e ativos, no confronto das propriedades
concretas de seu aparelho sensrio-cognitivo com aquelas pertencentes efetividade
objetiva externa a eles. Alm disso, a categoria simples, mais depurada de elementos
particulares e acessrios ou contingenciais, por isso, mais oca, requer como condio de
possibilidade a existncia de uma forma societria na qual as diversas modalidades de
atividade produtiva fsica ou ideal tenham um mesmo metro social. Ou seja, a categoria
trabalho em geral tambm implicada e explicada por uma sociedade onde os vrios
tipos de trabalho se equivalem, sejam equiparveis, cotejados objetivamente a partir de um
mdium ou terceiro que desempenhe a funo de mediao social. O trabalho como
produtor de riqueza-capital, de mais-valor , portanto, a pressuposio social efetiva do
trabalho em geral como categoria cientfica. O que d bem a dimenso da particularidade
concreta a qual se subsume a prpria cientificidade. A aproximao cientfica da realidade
social historicamente produzida pelos prprios homens est irremediavelmente
condicionada pelo talhe especfico deste mesmo objeto. No existindo uma instncia que
possa ser tomada como exterior coisa a ser elucidada. O que torna mais complexa a
questo da objetividade, se comparada ao modo como esta se d no campo das cincias
naturais e lgico-matemticas. O carter objetivo do conhecimento do social no negado,
mas condicionado pelo desenvolvimento mesmo dessa esfera, a qual abarca como parte
integrante tambm o sujeito concreto que faz cincia. A sensibilidade a determinadas
variaes das condies - num sentido, extremo, a existncia plena do objeto como tal -
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bem maior que nas cincias da natureza ou matemticas. O fato da situao social do
cientista e do locus no qual se produz o conhecimento ganha um relevo proeminente. Mas
ilusrio tomar esse aspecto como constante somente da cientificidade social. Basta pensar
na constelao de problemas observveis na histria da fsica, por exemplo, de Aristteles a
Galileu/Descartes/Newton, para perceber o alcance efetivo dos condicionamentos histrico-
sociais, tanto num sentido limitador quanto facilitador, tm para a construo do edifcio da
cientificidade em geral. Essa consequncia j afasta, pois, da reflexo marxiana acerca do
problema qualquer pretenso a esboar um paradigma nico, abstrato e universalizador da
cientificidade, do fazer cincia. O desenvolvimento real do objeto condiciona e determina
as possibilidades de sua aproximao:
Por conseguinte, a abstrao mais simples, a qual a moderna economia coloca
acima de todas e que exprime uma conexo antiqussima e vlida para todas as
formas de sociedade, porm apenas aparece nessa verdadeira abstrao prtica
como categoria da sociedade moderna (MARX, 1983, p. 39)3.
A seguir, adverte Marx para o limite da validade cientfica das categorias mais simples,
mais abstratas, aparentemente mais vazias de contedo determinante, o qual a cientificidade
dominante tende a exacerbar. A economia poltica confere quelas um carter universal que
atravessaria as mais diferentes formas de produo social, como um elemento a-histrico e
permanente tanto em sua vigncia abstrata como em seus lineamentos mais essenciais. Da
derivaria, em parte, a concepo das leis da produo como leis naturais e imutveis. Ao
contrrio, as leis ou regras que regulam a produo nas diversas sociedades histricas
concretas, com as formas de ser e modos peculiares de existncia, no tem a fixidez suposta
na natureza, nem muito menos so marcas antropolgicas indelveis e inalterveis no
tempo. Por um lado, como formas sociais, concretas e finitas de existncia, so as leis da
produo indefinitamente transformveis, podendo vir a sofrer reconfiguraes que lhes
alterem o talhe da vigncia e mesmo seu contedo mais determinante. Por outro lado,
aquelas que se caracterizam pela sua mxima universalidade, no so igualmente
fundamentos do itinerrio histrico, princpios a priori de determinao da interatividade
societria. Diversamente,
3Die einfachste Abstraktion also, welche die moderne konomie an die Spitze stellt und die eine uralte und
fr alle Gesellschaftsformen gltige Beziehung ausdrckt, erscheint doch nur in dieser Abstraktion praktisch
wahr als Kategorie der modernsten Gesellschaft.
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(...) mesmo as categorias abstratas apesar de sua validade justamente por sua abstrao para todas as pocas so, no entanto, na determinidade desta abstrao mesma, igualmente produto de relaes histricas e possuem sua plena
validade {Vollgltigkeit} apenas para, e no interior, destas relaes (MARX,
1983, p. 39).
A universalidade das categorias tem a espessura no de um fundamento absoluto que se
desdobraria como histria, mas aquela de pontos comuns que se tornam, ou no, pela via do
desenvolvimento concreto das formas societrias, traos determinativos potencialmente
irreversveis. A validade terica de um conceito geral tem seu fundamento real no carter
categorial efetivo que se expressa idealmente como universal. Este um dos sentidos em
que se pode entender a observao marxiana, frequentemente malbaratada, de que a
anatomia do homem uma chave para a anatomia do macaco. Certas categorias, no
obstante sua existncia antediluviana, somente ganham consistncia ntica plena quando
incorporadas num complexo de maior estatura e de interconexes internas mais matizada.
O que no resulta, bem entendido, em atribuir ao passado os sentidos efetivos do presente,
nem, ao contrrio, em simplesmente explicar a categoria no presente acompanhando seus
desdobramentos histricos. A compreenso do valor como medium social somente
possvel porquanto este o seja mais que um episdio ou fenmeno acessrio da
sociabilidade, quando a prpria troca se tornou um elemento vital da produo como tal e,
principalmente, quando a atividade produtiva e seu princpio subjetivo circulam como
valores.
Ainda no contexto desta discusso, mas num outro registro, aparece um dos
momentos mais referidos da discusso de Marx sobre o conhecer, mas que talvez um dos
mais desentendidos. A partir da delimitao das condies histricas da existncia concreta
das categorias simples, em especial, da remisso questo da determinao dessa pelo
desenvolvimento social, Marx passa a abordar as relaes existentes entre os modos mais
medrados de interatividade societria com aqueles que os antecederam. A realidade
histrica capitalista, em sendo a forma mais desenvolvida da sociabilidade baseada em uma
forma qualquer de propriedade privada das condies da produo, aparece, por
conseguinte, como o modo a partir do qual as categorias podem ser tomadas, no que tange,
inclusive, dilucidao de formaes societrias anteriores ou ainda no propriamente
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desenvolvidas. No por um motivo de carter epistmico ou em funo de uma simples
arbitrariedade. Mas na exata medida em que ela [a sociedade moderna] edificou-se com
aqueles destroos e elementos, dos quais certos restos ainda no superados nela se
conservam {mit deren Trmmern und Elementen sie sich aufgebaut, von denen teils noch
unberwundne Reste sich in ihr fortschleppen} (MARX, 1983, p.39). Em outros termos, a
forma mais desenvolvida, em que pese sua differentia specifica, sua particularidade,
edificou-se (sich aufgebaut) a partir da reconfigurao ntica de, ao menos, algumas das
categorias pertencentes a formaes que as antecederam no tempo. Remodelao que, em
certos casos, correspondeu dao de carter universal s categorias, como a do trabalho,
por exemplo, que eram preenchidas na realidade social efetiva por um contedo
extremamente particularizante. As categorias, como as condies objetivas da produo que
se tornam propriamente capital apenas dentro de uma dada relao social objetiva, tm sua
forma de existncia societria concreta reconfigurada e oferecem com isso um novo
contedo determinativo para a atividade produtiva. Ainda que estas permaneam material
ou objetivamente (os meios de trabalho, por exemplo) existentes com suas propriedades
fsicas e objetivas que lhe sejam inerentes. somente a partir desse contexto bem preciso
que se pode tomar com justeza e correo a observao marxiana de que A anatomia do
homem uma chave para a anatomia do macaco (Die Anatomie des Menschen ist ein
Schlssel zur Anatomie des Affen) (MARX, 1983, p. 39).
Em primeirssimo lugar, h que ressaltar com nfase que duas das tradues da
Einleitung zun den Grundrisse, daquelas examinadas no curso de elaborao do presente
trabalho uma delas, brasileira (MARX, 1974, p.126)4 ao estranhamente elidirem o
vocbulo ein (um/uma) do a entender ao leitor ou ao estudioso menos atentos que se trata
de uma prescrio de talhe epistmico. Ou mesmo da indicao de uma norma marxista
universal e obrigatria pela qual as formas menos desenvolvidas ou menos complexas de
existncia necessariamente, por assim dizer, se resolveriam no remetimento de suas
categorias, ou do modo particular destas existirem, quelas das mais maturadas. Nada mais
falso, levando-se em considerao tanto as observaes que antecedem quanto aquelas que
4 Cabe aqui referir a existncia de duas outras tradues brasileiras, as quais no comentem a eliso acima
apontada: uma referente apenas ao item O Mtodo da Economia Poltica, publicada na Coleo Primeira
Verso,n. 71, IFCH-UNICAMP, 1997, e aquela j constante da primeira traduo completa dos Grundrisse
em portugus publicada pela Boitempo Editorial em 2011.
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se sucedem clebre afirmao. Marx, certamente, argumenta no sentido de haver uma
relao entre modalidades historicamente diversas, em termos de grau de complexidade, de
vida e produo sociais. No obstante, isto no significa asseverar que o modo de ser
concretamente mais desenvolvido de uma categoria numa dada sociedade hodierna fornea,
por si s, a possibilidade do entendimento desta mesma forma do ser social em sociedades
anteriores. Afora isso, h perigo desse tipo de entendimento epistmico resultar na
atribuio, ainda que implcita e no deliberada, de um tipo de evolucionismo ao
pensamento marxiano. Ainda que as categorias que perfazem a interatividade social
burguesa possam ser um dos elementos que auxiliem na decifrao do modo de ser destas
em momentos histricos anteriores, tal no se d, entretanto, sob o signo da pura e simples
identidade. Nesse sentido,
A economia burguesa fornece assim a chave para a antiga etc. Mas de modo
algum moda dos economistas, que borram todas as diferenas histricas e veem
a burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a
corveia etc. quando se o faz com a renda fundiria. Mas no se o deve identific-
las. Alm disso, sendo a sociedade burguesa mesmo apenas uma forma opositiva
de desenvolvimento, por isso, relaes de formas anteriores frequentemente
apenas so nela encontradas totalmente atrofiadas ou at travestidas (MARX,
1983, p. 39)5.
A funo heurstica desempenhada pela figurao moderna das categorias, tendo em vista o
conhecimento de pocas anteriores (ou menos complexas) da produo social da vida
humana, porquanto possuam aquelas uma verdade (eine Wahrheit), somente pode ser
tomada (zu nehmen) cum grano salis (MARX, 1983, p. 40). Essa prudncia cientfica se
torna tanto mais essencial, quanto mais se deva ter em mente que a atividade de conhecer
para Marx, antes de tudo, o ato de apreender, fixar e, posteriormente, estabelecer
teoricamente o conjunto de determinaes, e da articulao destas, que perfazem um dado
modo de existncia histrico da sociabilidade. Ou seja, a distino o mais precisa possvel,
a indicao da differentia specifica permanece como meta e diretriz inegociveis da
aproximao cientfica no discurso marxiano. Essa cautela cientfica na identificao do
5Die brgerliche konomie liefert so den Schlssel zur antiken etc. Keineswegs aber in der Art der
konomen, die alle historischen Unterschiede verwischen Und in allen Gesellschaftsformen die brgerlichen
sehen. Man kann Tribut, Zehnten etc. verstehn, wenn man die Grundrente kennt. Man mu sie aber nicht
identifizieren. Da ferner die brgerliche Gesellschaft selbst nur eine gegenstzliche Form der Entwicklung, so
werden Verhltnisse frhrer Formen oft nur ganz verkmmert in ihr anzutreffen sein oder gar travestiert.
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papel das categorias traz como consequncia o que pode ser identificado como antimtodo
marxiano. No no sentido, evidentemente da ausncia de procedimentos ou regras de
produo da inteleco, mas como elemento que relativiza o papel central atribudo
metodologia, pelo menos desde as auroras da modernidade. A esfera dos procedimentos
cognitivos se resolve apenas na medida em que remeta ao modo de existncia objetivo do
objeto e no aos modos como um suposto sujeito autnomo, este na realidade igualmente
determinado histrico-socialmente, se aproxime deste ou daquele modo dado a priori do
efetivamente existente.
No por outra razo, Marx definir como principal ponto a reter (festzuhalten) o fato
de que o concreto a ser explicado, o sujeito, aqui, a moderna sociedade burguesa, est
dado tanto na efetividade quanto na cabea (in der Wirklichkeit so im Kopf, das Subjekt,
hier die moderne brgerliche Gesellschaft, gegeben ist) (MARX, 1974, p.126). Em outros
termos, a base do mtodo marxiano no se situa numa pressuposio epistmica, mas no
reconhecimento de que o ente ou o processo examinado est duplamente dado, no somente
como conjunto articulado de categorias mentais, mas, antes de tudo, como uma srie
articulada de categorias que perfazem a concretude. A sntese categorial est dada, positiva
e prioritariamente na realidade em relao ao ato da cognio. Como corolrio, die
Kategorien daher Daseinsformen, Existenzbestimmungenen. Da tambm resulta a j
assinalada inexistncia da chave de cunho conceitual a partir da qual um construto
metodolgico pudesse ser erigido e passasse assim a funcionar. A analtica das formas da
concretude no pode, por conseguinte, ser sobreposta ou substituda por um receiturio
procedimental de carter prescritivo. Apenas a decifrao categorial, da qual a extrao das
abstraes mais gerais to somente um momento, pode abrir caminho compreenso e
explicao dos complexos efetivamente existentes. Nesse sentido, no parece haver no
discurso marxiano nada que autorize a sua identificao com uma metodologia qualquer,
seja esta de talhe lgico seja de cunho historicista. Ademais, acerca dessa ltima questo
importante notar como reiteradamente Marx chama a ateno para o quo equivocado pode
ser meramente acompanhar o desenvolvimento histrico, cronolgico, de uma da categoria.
Por outro lado, como die politische konomie ist nicht Technologie (MARX, 1974, p. 21),
a questo da decifrao da differentia specifica dos modos de produo social da vida no
se soluciona com o exame da atividade produtiva em sua figura mais imediata, como
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produo de valor de uso, de seus elementos objetivos ou da forma abstrata e emprica da
relao dos homens com a natureza. Ao contrrio, o problema apenas encontra soluo
porquanto se atinja a aproximao a mais rigorosa possvel da forma de ser social
particular na qual aquela atividade transcorre num determinado modo de produzir a vida
humana. Trata-se, portanto, de identificar analiticamente um dado padro de existncia
categorial, o qual configura propriamente um modo, ao qual, uma vez subsumidas, as
categorias ganham sua pertinncia histrico-concreta:
Em todas as formas de sociedade uma produo que determina todas as outras e
cujas relaes por isso designa {anweist} tambm a todos os outros, seu lugar
{Rang} e influncia {Einflu}. um matiz {Beleuchtung} geral, no qual todas as outras cores esto imersas {getaucht sind} e [que] as modifica em sua
particularidade. um ter {ther} particular que determina o peso especfico de
todo o existente (Daseins) que nele eclode {hervorstechend} (MARX, 1983,
p.41).
A metfora atmosfrica tem aqui uma especial importncia na medida em que acentua tanto
a imerso das categorias num dado modo particular de existncia social concreta, quanto o
espraiamento desse halo societrio por todos os nichos e meandros da sociabilidade, como
determinao essencial, qual esto subsumidas as demais relaes e formas e que estas
realizam. Pode ser compreendido igualmente como um determinado matiz ou tonalidade
(Beleuchtung) dominante que enquadra e formata as outras cores e matizes, fornecendo-os
seu espao e configurao adequados. Como princpio eficiente cujo escopo reside em
matizar as relaes que lhe so subordinadas e dependentes, a forma social da produo
humana no borra ou apaga as demais coloraes societrias, mas as define, ou mesmo
redefine, tornando leve, ou intensamente, diferente a tonalidade anterior. O que altera
sobremaneira os modos de interao dos elementos, na medida em que estes passem a
refletir tons de outros comprimentos. Esse recurso torna, alm disso, mais palpvel a
natureza eminentemente relacional da determinao categorial.
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III. PARA ALM DE HEGEL: O FUNDAMENTO MATERIALISTA DA CRTICA
O tratamento que encontra em Introduo de 1857 o problema da relao entre o
estatuto das categorias e a definio dos procedimentos adequados cognio das conexes
da interatividade social, permite colocar a questo de mtodo conforme aparece em O
Capital sob um ngulo diverso do predominante na tradio das leituras da obra marxiana.
O desafio no tornar palatvel a pretensa absoro marxiana do mtodo dialtico
hegeliano, mas o de explicitar as bases mesmas do procedimento da crtica da economia
poltica, a qual contempla a abordagem da relao contraditria entre as determinaes que
perfazem as formas da produo social capitalista. A questo do fundamento (Grundlage)
e no da fundamentao, como quer a traduo, altamente enviesada pelo imprio da
gnosiologia, oferecida na coleo Os Economistas (MARX, L. I, 1985, p. 20)6 do mtodo
de O Capital no se resolve mediante sua ancoragem numa pretensa herana hegeliana de
talhe lgico, mas somente com a compreenso da sua dplice determinao pelo objeto.
Primeiro, da subsuno ativa coisa que se investiga. Em segundo lugar, como resultante
necessria do primeiro aspecto, da forma analtica de proceder.
Esse problema exige sua remisso a outro, que ser referido por Marx prximo ao
fecho do posfcio em questo, mas que no mais das vezes absolutamente ignorado pelos
intrpretes afiliados convico da existncia de uma herana hegeliana que orientaria au
fond o discurso marxiano. Referimo-nos aqui indicao de que se deve distinguir o modo
de apresentao formal daquele do modo de pesquisa (mu sich die Darstellungsweise
formell von der Forschungsweise unterscheiden) (Cf. MARX, 1998, 23, p. 27). O modo de
apresentar, que se configura como uma totalidade de enunciados que tm como alvo tornar
disponvel compreenso um dado contedo, a crtica da economia poltica, no pode ser
sobreposto ou fazer recobrir quele mediante o qual o conhecimento foi efetivamente
conquistado e produzido. Ou seja, entre o modo de apresentar, o qual obviamente contm
como Marx mesmo o reconhece uma srie de elementos ou formas de mediao
recolhidos ao jargo hegeliano, e o modo de descobrir as determinaes, analtico por
excelncia, h, seno uma convivncia tensa, ao menos uma diferena essencial. Afora isso,
6 O que pode ser observado com especial clareza em O Capital, livro I.
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h que atentar tambm para o fato de que, mesmo incorporando os insights formais da
dialtica hegeliana, o modo de exposio dialtico de Marx, se este existir, no
necessariamente precisa ser idntico ou simples caso daquele de seu mestre. A exposio
dialtica das relaes categoriais determinativas no pensamento marxiano so, ao menos
como telos declarado, exposio de relaes reais diferente em cerne de uma pura dialtica
de conceitos, de uma armao lgica autossustentada. A trama de desenvolvimento
categorial, ao contrrio do que ocorre grosso modo em Hegel, no a descrio da histria
da categoria real, mas a exposio crtica das conexes daquela com as demais constantes
do complexo examinado. Os passos apresentados so modos de remetimento concreto e
finito das determinaes entre si, cuja logicidade, num sentido assaz amplo, somente vigora
no mbito circunscrito na e pela finitude da coisa efetiva. Assim, quando se acentua em
demasia o papel do modo de apresentar, extravasando sua validade para alm de seu peso
especfico na elaborao marxiana, normalmente se perde de vista o modo de descobrir,
aquele que caracteriza propriamente o procedimento marxiano diante da concretude social
capitalista, bem como como este modula e delimita as etapas da apresentao do material
conhecido. As posies tericas que aproximam Marx a Hegel, ou melhor, a crtica da
economia poltica Wissenschaft der Logik passam ao largo dessa questo e no abordam o
problema do estatuto das categorias marxianas. Portanto, tambm tratam da resoluo
metodolgica, a partir de uma inquirio que se centra unicamente na economia interna do
discurso apresentado, sem interrogar-se pelo como se armam os conceitos assim expostos.
Como Marx procede ante a seu objeto? Dialeticamente? Deixemos pois que o
prprio discurso marxiano nos ajude a esclarec-lo: A pesquisa tem de apropriar-se em
detalhe da matria, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e detectar sua
conexo interior {Die hat den Sto sich im Detail anzueignen, seine verschiednen
Entwicklungsformen zu analysieren und deren innres Band aufzuspren. Erst nachdem
diese Arbeit vollbracht, kann die wirkliche Bewegung entsprechend dargestellt werden}.
Somente uma vez efetivada essa aproximao da articulao categorial que perfaz a coisa
que possvel empreender uma exposio do conhecido, na qual se espelha agora
idealmente a vida da matria {spiegelt sich nun das Leben des Stoffs ideell wider}
(MARX, 1998, p.23). O que se tem aqui uma retomada sinttica da apresentao da
discusso do mtodo de O Capital feita por um peridico russo, citada e avalizada por
Antnio Jos Lopes Alves
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Marx no posfcio segunda edio. importante ressaltar que numa passagem, igualmente
transcrita por Marx, o autor do mesmo artigo russo faz notar, ainda que de modo cido, a
distino entre Darstellungsweise e Forschungsweise, assinalando o talhe analtico do
segundo em oposio ao aparentemente idealista do primeiro.
Nesse sentido, parece ser de utilidade apanhar alguns dos pontos principais do
extrato da resenha em questo, contido no corpo do posfcio. Em primeiro lugar, h que
indicar o fato de o ponto de partida (Ausgangspunkt) no ser um princpio conceitual a
priori ou uma chave de interpretao previamente interposta entre o pesquisador e a
matria examinada, nem mesmo um conceito anteriormente fixado. Como analtica, o
procedimento tem sempre como referencial a apario ou manifestao externa (uere
Erscheinung) (MARX, 1998, 23, p. 26) com a qual aquela se depara. No se trata ento de
uma crtica de conceitos ou formas puramente ideais, nem, por conseguinte, de prover uma
articulao cujo arrimo e balizamento se situem no terreno de uma logicidade previamente
desenhada. O incio do processo de pesquisa tem sempre como material a coisa tal qual ela
se apresenta na efetividade social, na dimenso mais citerior da prtica social, na qual os
homens reais tm de defrontar com o cotidiano e os desafios desta. Citerioridade que
referida logo na abertura da obra, quando se indica a uere Erscheinung do modo de
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