a l m a n a q u eh i s t ó r i c o
A Luta pelos Direitos Humanos
ACOMPANHA
GUIA D
O
PROFESSOR
A Luta pelos Direitos Humanos
Almanaque Histórico
João Cândido – A luta pelos Direitos Humanos
Coordenação Geral
Elizabete Braga
Coordenação de Produção
Flávia Diab
Assessoria de Produção
Stanley Whibbe
Coordenação de Administração
Ruy Godinho
Textos
Paulo Corrêa Barbosa
Schuma Schumaher
Consultoria de Conteúdos e
Finalização de Texto
Marco Morel
Equipe de Pesquisa
Coordenadores
Marco Morel
Tânia Bessone
Auxiliares
Gabriel Labanca
Rodrigo Cardoso
Silvia Capanema
Revisão de Textos
Adriane Lorenzon
Projeto Gráfico e Diagramação
Miriam Lerner
Editorial
Flávia Diab
Capa
Lula Ricardi – XYZ Design
Produção
Abravídeo
Fundação Banco do Brasil
Presidente
Jacques de Oliveira Pena
Diretores Executivos
Elenelson Honorato Marques
Jorge Alfredo Streit
Gerente de Educação e Cultura
Marcos Fadanelli Ramos
Assessor
Claudio Alves Ribeiro Brennand
Petrobras
Presidente
José Sergio Gabrielli
Gerente Executivo de Comunicação Institucional
Wilson Santarosa
Gerente de Responsabilidade Social
Luis Fernando Nery
Gerente de Patrocínios
Eliane Costa
Gerente de Patocínios Culturais
Tais Wohlmuth Reis
Coordenador de Tecnologias Sociais
Lenart Nascimento
Associação Cultural do Arquivo Nacional (ACAN)
Diretoria Executiva
Licio Ramos de Araujo (Presidente)
Oscar Boëchat Filho (Vice-presidente)
Fernando João Abelha Salles
Jose Gomes de Almeida Netto
Presidente do Conselho Fiscal
Wanderlei Pinto de Medeiros
Presidente do Conselho Consultivo
Hans Jürgen Fernando Dohmann
SumárioApresentação, 5
I. Primeiros passos
1. Dos pampas para o mar, 7
2. Do mar para o mundo, 10
II. Adulto, contra a chibata
3. Explode a revolta no mar, 17
4. Explode a repressão em terra, 35
III. A longa vida de um homem do povo
5. Um pescador artesanal, 41
6. João Cândido vive nas memórias, 57
Bibliografia básica, 63
Cronologia, 64
5João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Em sua 11ª edição, o Pro-
jeto Memória apresenta
a você, professor(a), a traje-
tória do marinheiro negro
João Cândido, que esteve à
frente de importante episó-
dio de nossa história na defe-
sa dos Direitos Humanos. Em
22 de novembro de 1910,
cerca de 2.300 marujos –
homens pobres, entre os
quais muitos negros e pardos
– rebelaram-se, tomaram à
força os mais possantes na-
vios de guerra da Marinha
brasileira e exigiram o fim dos
castigos corporais que so-
friam (chibatadas). Se não
fossem atendidos, bombar-
deariam o Rio de Janeiro, en-
tão capital do país. Gritavam
vivas à liberdade. Saíram vi-
toriosos em suas reivindica-
ções e, assim, mudaram para
melhor a sociedade ainda
marcada pela escravidão, ex-
tinta apenas 22 anos antes.
Logo depois, os mesmos re-
beldes sofreriam duras re-
pressões: demissões injustas,
prisões arbitrárias, torturas e
até assassinatos. Porém, não
Durante 15 anos navegou
pelas águas doces e salgadas
de todo o Brasil, percorreu
quatro continentes, aprendeu
técnicas e ofícios, foi instru-
tor de marujos iniciantes,
encharcou-se das paisagens
exuberantes, das realidades
sociais e suas contradições,
acompanhou personagens e
episódios políticos importan-
tes – até ser expulso da cor-
poração, por causa da rebelião
em que participou com desta-
que, defendendo a dignidade
da condição humana.
A partir daí, João Cândido
viveu por quatro décadas co-
mo pescador artesanal, na
mesma condição de milhões
de trabalhadores pobres: lu-
tando com dificuldade e criati-
vidade para ganhar o pão de
cada dia, sentindo na carne a
“chibata” do transporte precá-
rio, do preconceito racial, da
moradia sem saneamento bá-
sico, das escolas com poucos
recursos para os filhos e da
falta de assistência médica de
qualidade, enfim, dos Direitos
Humanos básicos. No fim da
se apagou a página da histó-
ria que eles escreveram com
seus próprios corpos, pala-
vras e gestos.
Criado em 1997, o Projeto
Memória (iniciativa da Fun-
dação Banco do Brasil em
parceria com a Petrobras)
consolidou uma trajetória de
valorização da cultura e da
história do país, homena-
geando personagens que
colaboraram para a transfor-
mação social e construção de
nossa identidade – contri-
buindo, assim, para o fortale-
cimento da cidadania e das
liberdades.
Mas quem foi mesmo João
Cândido Felisberto, reconhe-
cido como principal líder da
Revolta da Chibata? Filho de
escravos, nasceu em 1880
(nove anos depois da chama-
da lei do Ventre Livre, que
não considerava cativos os
filhos de escravos nascidos a
partir dali) numa fazenda em
Encruzilhada do Sul, interior
gaúcho. Entrou para a Ma-
rinha de Guerra aos 14 anos,
onde teve carreira exemplar.
Apresentação
Projeto Memória6
longa vida, voltou a ser reco-
nhecido por seus feitos, rece-
beu homenagens e faleceu
pobre e altivo, aos 89 anos.
João Cândido e seus com-
panheiros de revolta foram
anistiados em 1910, mas o go-
verno desrespeitou o perdão
que concedera, violando os
direitos de cidadãos brasilei-
ros. Somente agora, quase
um século (1910–2008) de-
pois, receberam anistia pós-
tuma: o governo atual reco-
nhece os valores de dignida-
de e justiça pelos quais os
rebeldes lutaram. Ainda as-
sim, esta nova anistia é par-
cial, pois ficaram de fora as
promoções e indenizações
que seriam recebidas por
seus descendentes.
Este conjunto pedagógico,
distribuído a quase 18 mil es-
colas públicas em
todo o Brasil, é
composto por:
um Almana-
que Histórico,
um Guia do
Professor e
um DVD–ROM
que inclui todas
as outras peças do
Projeto Memória – um
vídeo documentário, um livro
fotobiográfico, uma expo-
sição e um site. Todas unifica-
das sob o mesmo tema: João
Cândido e a luta pelos Direi-
tos Humanos. É um convite
para conhecer as possibilida-
des de abordar, em sala de
aula, o episódio da Revolta da
Chibata, suas conseqüências
e significados atuais, ligando-
o com outras histórias e si-
tuações, ao cotidiano de seus
alunos, às atitudes, perspecti-
vas e projetos de vida que
construímos a cada dia, sem-
pre a partir de variadas áreas
do conhecimento.
Além disso, no endereço
eletrônico www.fundacao-
bancodobrasil.org.br (Pro-
gramas e Ações/ Educação/
Projeto Memória) você en-
contra mais informações so-
bre João Cândido que po-
derão ser úteis no desenvol-
vimento de seu trabalho –
além da oportunidade de co-
nhecer os homenageados em
edições anteriores do Projeto
Memória. Sua opinião e ava-
liação sobre o material são
muito importantes e você po-
derá fazê-las chegar até nós.
Repare que também está
recebendo uma ficha de ava-
liação, no formato de carta-
resposta. Basta colocá-la no
Correio, pois já está selada.
É responsabilidade coleti-
va garantir que os Direitos
Humanos sejam realidade pa-
ra todos, independentemente
de posição social, nível de
instrução, sexo, gênero, reli-
gião, cor da pele e opção po-
lítica. Nesse campo, o papel
da escola é importante. A vi-
da de João Cândido traz mui-
tas lições para aprendermos
e ensinarmos.
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entre os cativos no Sul do país.
Apesar dos limites e controles,
os escravos tropeiros tinham
maior possibilidade de loco-
moção e certa autonomia na-
quela sociedade opressora.
João Cândido, então menino,
acompanhava o pai, percor-
rendo os pampas largos e lon-
gínquos, com sua típica vege-
tação rasteira e ondulante,
embalado pelo mugido dos
animais e coberto pelo vasto
7João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Omundo, na época em que
João Cândido nasceu (na
fazenda Coxilha Bonita, En-
cruzilhada do Sul, RS, a 24 de
junho de 1880), apresentava
muitos desafios e passava por
importantes transformações.
No caso do Brasil, sociedade
fundada em mais de três sé-
culos de escravidão, justa-
mente o escravismo estava
em crise, mas teimava em per-
manecer, enraizado.
Álbum de famíliaJoão Cândido (um dos sete
filhos de Inácia e João Cân-
dido Velho, escravos da fa-
zenda da família de Vicente
Simões Pereira) veio ao mun-
do numa choupana em que
seus pais moravam, nas pro-
ximidades da casa-grande,
mas fora da senzala. No pe-
ríodo de infância (os “causos”
contados mais tarde por Jo-
ão Cândido a sua filha Zee-
lândia1), ele sentia forte o mi-
nuano, vento típico do Sul do
país. Inácia, sua mãe, honesta
e severa, tinha muitos sabe-
res: parteira conhecida na re-
gião, fazia nascer também fo-
lhas e frutas, conhecedora de
ervas e plantas medicinais.
Além dos próprios filhos (três
meninos e quatro meninas),
vários foram “os de peito”,
como considerava aqueles a
quem amamentou e ajudou
a criar, fertilizando a vida a
seu redor.
Sobre João Cândido Velho,
o pai, de quem o futuro maru-
jo herdou o nome, sabemos
que lutara na sangrenta Guerra
do Paraguai (1864–1870) e era
tropeiro, isto é, conduzia tro-
pas de gado, atividade comum
Parte IPrimeiros passos
o minuano é um vento frio que
tem origem em uma massa de ar
que vem do pólo Sul? Ele chega
ao Brasil pelo Rio Grande do Sul
e, algumas vezes, consegue até
mesmo atingir os estados da
Amazônia e Nordeste. Em meio a
este vento, vivia o menino João
Cândido: ajudava os pais nos
trabalhos da fazenda. E, ele
mesmo recordou: quando criança
era um “potro bravio”. Corria
pelos campos, nadava em rios,
subia em árvores, conhecia ani-
mais e aves e aprontava traqui-
nagens comuns na sua idade.
voce sabia que...ˆ
1 Entrevista concedida por Zeelândia Cân-
dido de Andrade, em 2002, a Carla Araújo e
Cláudio Estevam, por ocasião da pesquisa
Personalidades e Imagens da Baixada Flu-
minense.
1. DOS PAMPAS PARA O MAR
Projeto Memória8
céu, alimentando-se de char-
que e arroz-de-carreteiro, mo-
vimentando-se com agilidade
entre os pesados animais,
repetindo as cantigas de tra-
balho que alimentavam a soli-
dão dos descampados.
O chão muda de nome
O local de nascimento de
João Cândido mudou de no-
me várias vezes, mas foi e é
sempre o mesmo: ainda hoje
existem restos da choupana.
A origem desse território é o
município de Rio Pardo, cida-
de principal da região e que o
marujo considerava como seu
berço natal, por ter passado
boa parte da infância ali, sua
primeira porta para transpor
os limites locais. Aliás, em mui-
tos lugares do Brasil aconte-
ceu coisa parecida. Milhões
de brasileiros vivem em cida-
des e estados que já altera-
ram o nome, fazendo com
que os mapas em que estuda-
mos não sejam eternos e ne-
cessitem de atualização.
O território de Rio Pardo,
inicialmente o maior município
do Rio Grande do Sul ao ser
criado em 1809, foi dividido e
subdividido ao longo do tem-
po: existem hoje mais de 300
municípios em sua área origi-
nal. Em todo o Brasil surgiu
uma tendência à municipaliza-
ção, ou seja, criação de novas
administrações locais. Desse
modo, quando João Cândido
nasceu, a fazenda Coxilha Bo-
nita não ficava mais em Rio
Pardo e, sim, em Encruzilhada
do Sul, emancipada desde
1849. Logo, ele era na realida-
de um encruzilhadense, em-
bora rio-pardense de criação e
coração. Hoje, após nova divi-
são, a mesma choupana da
fazenda encontra-se no mu-
nicípio de Dom Feliciano, cria-
do em 1963. Assim é a vida,
como a história e a ocupação
Por dentroda história
�“(...) até a idade de doze
anos as crianças (...) apenas
limpam os feijões e outros
cereais destinados à ali-
mentação dos escravos ou
cuidam dos animais e exe-
cutam pequeninos traba-
lhos domésticos. Mais tar-
de, as moças e os rapazes
são encaminhados para os
campos. Quando um me-
nino mostra disposições
especiais para determinado
ofício, é-lhe este ensinado,
a fim de que o pratique na
próxima fazenda”.
(Rugendas, pintor alemão que
esteve no Brasil entre 1821 e 1825,
sobre as crianças escravas nas
grandes plantações) RUGEN-
DAS, J. M. Viagem pitoresca atra-
vés do Brasil. 7. ed. São Paulo/
Brasília: Martins/INL, 1976.
Igreja Matriz em Rio Pardo, RS
A cidade de DomFeliciano, RS
Roberto Jesinski
9João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
humana das áreas: dinâmica,
com mudanças. Se até os ter-
ritórios alteram suas identida-
des e registros, vale uma inda-
gação para pensarmos: os
problemas sociais, que tam-
bém parecem imutáveis e
eternos, não podem se trans-
formar pela ação humana?
Contadores de histórias
Contar histórias para crianças
é muito bom e importante:
deixa lembranças pela vida
toda. Os “causos” escutados
nesse começo da vida por
João Cândido traziam uma
literatura oral tão importante
quanto a escrita. E alguns de
arrepiar os cabelos, alimen-
tando a imaginação e vindas
da tradição regional: a mu-
lher enorme, com um vestido
branco bem comprido, que
assombrava os acendedores
de lampião, saindo da fortale-
za e andando para a ponte
sobre o rio; do escravo morto
pelo dono, condenado por
uma doença, logo após o
enterro do baú com toda a
fortuna na praça Barão de
Santo Ângelo; do Homem da
Capa Preta; da Carroça e de
Nossa Senhora do Rosário;
do Lobisomem, da Mula-sem-
cabeça, e assim por diante.
De todas, porém, a preferida
de João Cândido era a do
Negrinho do Pastoreio que
muitos anos depois contava
aos filhos e filhas.
Nascimento, novos
tempos
Na época em que João Cân-
dido nasceu, a escravidão
estava morrendo.
Se em 1660 o Brasil tinha
uma população estimada de
184.000 habitantes (dos quais
74.000 brancos e índios em
contato com estes e 110.000
escravos), em 1890, dois anos
Negrinho do Pastoreio é uma lenda tradicional do Rio Grande do Sul? De
origem africana, fala de um estancieiro que mandou castigar seu escravo,
um menino, porque havia deixado fugir um de seus cavalos. Após a surra,
teve de sair à noite pelos campos para encontrar o animal. Enfrentou a
escuridão com um toco de vela e uns pavios de fogo. Retornou para a
fazenda sem o animal e após ser novamente espancado, foi atirado, por
ordem do fazendeiro, dentro de um formigueiro. No dia seguinte, para sur-
presa de todos, o menino estava bem, vivo e feliz ao lado do animal per-
dido. Desde então, ficou sendo o “achador de coisas”. Basta fazer o pedi-
do e acender um toquinho de vela. (Adaptado de Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul de Antonio Augusto Fagundes.Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1996. Capturado em http://www.paginadogau-cho.com.br/lend/negr.htm)
voce sabia que...ˆ
Por dentroda história
�O primeiro Censo Demo-
gráfico realizado no Brasil,
em 1872, contou 10 milhões
de habitantes, incluindo es-
cravos e escravas. O analfa-
betismo estava presente
em cerca de 80% da popu-
lação. Mas isso não signi-
ficava falta de cultura ou de-
sinformação generalizada: a
transmissão pela oralidade
atravessava todos os seto-
res sociais e as identidades
culturais, mesmo quando
não reconhecidas como tais,
permitiam estratégias de
resistência e sobrevivência.
Jakare
d
Projeto Memória10
depois da proclamação da
República (João Cândido es-
tava na primeira década de
vida), a população total já
ultrapassava 14 milhões. E o
perfil dos brasileiros mudou
muito nesses 200 anos. Os
dois principais grupos da
população eram os chama-
dos pardos e brancos (se é
possível falar de tantos bran-
cos numa sociedade mestiça
como a brasileira), o que in-
cluía os imigrantes europeus
e seus descendentes que che-
gavam em levas crescentes e
iam para as lavouras de café.
Apesar do escravismo ter
sido a relação social marcan-
te durante três séculos, des-
de meados do século XVIII o
Brasil já não estava mais divi-
dido apenas entre um punha-
do de senhores brancos e
uma multidão de escravos ne-
gros. A mestiçagem sempre
foi uma realidade, embora
não eliminasse o racismo, a
violência e as desigualdades
sociais. Tanto que no começo
do século XIX calcula-se que
um terço da população na-
cional era composta pelos
chamados pardos livres. Mui-
tos negros haviam conquis-
tado alforria (liberdade) e
seus descendentes imediatos
atuavam nos diversos traba-
lhos artesanais, nas irmanda-
des religiosas, em milícias
(tropas militares não regula-
res) e alguns poucos até
integravam as elites políticas,
como o senador e visconde
de Jequitinhonha (Francisco
Gê Acaiaba Montezuma,
1794–1870) e o advogado e
deputado Antonio Pereira
Rebouças (1798–1880), am-
bos baianos.
Abolição feita por
muitas mãos
Os homens e mulheres escra-
vizados sofreram muito e
enfrentaram desafios duros,
mas não foram apenas víti-
mas. Como agentes históricos,
participavam e interferiam,
dentro de suas possibilidades,
nos rumos da sociedade e em
seus próprios destinos. Vale
chamar atenção para um pon-
to: a Abolição, oficializada
pela Lei Áurea em 13 de maio
de 1888, não se realizou ape-
nas “por cima”, isto é, pela ini-
ciativa das elites parlamenta-
res, de abolicionistas ilustres,
dos proprietários “esclareci-
dos” e da Coroa Imperial (ou
mais simplesmente da prince-
sa Isabel). Foi, na verdade, um
longo e penoso processo de
embates no qual participaram,
também, setores variados da
população, como as camadas
médias, pobres livres, libertos
e os próprios cativos. De for-
ma direta ou indireta, as ações
individuais ou coletivas dos
escravos ajudaram a minar o
sistema escravista, por meio
de pequenos e grandes qui-
11João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
lombos, fugas coletivas ou
individuais, cometendo violên-
cias contra a violência opres-
sora, enfim, com variadas ati-
tudes de resistência.
Além do enfrentamento
direto, muitos cativos opta-
vam por sobreviver abrindo
espaços de negociação com
seus senhores ou com a so-
ciedade da época, buscan-
do – e às vezes conseguindo
– melhor qualidade de vida
no interior de um sistema
injusto. Eram freqüentes,
aliás, os exemplos de cati-
vos que, conseguindo a li-
berdade, tornavam-se eles
próprios donos de escravos.
Era a lógica de uma estrutu-
ra que predominou durante
muito tempo.
escravas prostituídas pelos
donos (ou donas) como forma
de rendimento.
No meio rural, a maioria era
de escravos do eito, isto é,
que trabalhavam nas grandes
plantações, em geral em con-
dições desumanas, com gran-
de índice de mortalidade. Mas
existiam nas fazendas escra-
vos artesãos, domésticos e
também capatazes, que vigia-
vam o serviço dos demais.
A grande agricultura mo-
nocultora e exportadora, ba-
seada nos trabalhadores es-
cravizados, deu a tônica no
país por mais de três séculos
e deixa suas marcas ainda
hoje. Porém, havia brechas,
As diferentes faces dos
escravos
Não é possível falar de um
tipo único de escravo. A con-
dição do cativeiro era bem
variada. Havia os escravizados
urbanos e os rurais. No meio
urbano, alguns ficavam no ser-
viço doméstico no interior das
residências. Outros, os chama-
dos escravos de ganho, traba-
lhavam para fora e davam
renda a seus senhores, não
raro recebendo remuneração
(jornal, ou pagamento por jor-
nada). Atuavam em ofícios
artesanais (ferreiro, marcenei-
ro, sapateiro, alfaiate, etc.) ou
no comércio (como quitandei-
ras, doceiras, vendedores am-
bulantes, prestadores de ser-
viço, entre outros), sem contar
Na primeira Constituição brasi-
leira, de 1824, não havia sequer
referência aos escravos e aos
índios, embora se falasse de
passagem nos libertos (ex-cati-
vos)? A categoria indígena só foi
incluída na Constituição de 1988
e no Censo Demográfico de 1991,
mesmo que a investigação da cor
estivesse presente desde o pri-
meiro recenseamento. O Censo
mais recente, de 2000, leva em
conta a autoproclamação (como
cada um se declara) étnica e
divide a população em cinco
categorias: branco, preto, amare-
lo, pardo e indígena.
voce sabia que...ˆ
Alguns escravos atuavam em ofícios artesanais ou no comércio
Projeto Memória12
contradições e espaços diver-
sos por onde a população ca-
tiva transitava. Nas pequenas
propriedades rurais, que fo-
ram se acentuando no Brasil a
partir do século XVIII, em geral
pela economia de subsistência
e abastecimento de alimentos,
os cativos também trabalha-
vam duro, mas não havia ca-
sa-grande e há inúmeros tes-
temunhas, como o viajante
inglês Henry Koster e o fran-
cês Auguste de Saint-Hilaire,
que presenciaram pequenos
proprietários e escravos mo-
rando na mesma habitação.
Antes de ocorrer a Aboli-
ção oficial, o panorama da
escravidão no Brasil já estava
bem mudado. Encerrado o
tráfico atlântico (os escravos
que vinham da África) em
1850, acentuou-se depois o
tráfico interprovincial, ou se-
ja, venda de escravos entre as
províncias. Isso causou um
crescimento da mão-de-obra
cativa nas grandes áreas es-
cravistas exportadoras do
principal produto, o café (com
destaque para São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais) e,
ao mesmo tempo, um dese-
quilíbrio nas áreas periféricas
desta região do poder eco-
nômico e político.
As Abolições e suas
conseqüências
Tal situação permitiu o surgi-
mento de movimentos aboli-
cionistas regionais. Assim, no
Ceará, em março de 1884, foi
decretada oficialmente a
Abolição da escravidão, de-
pois de uma luta de três anos
envolvendo jangadeiros, pes-
cadores, homens negros li-
vres e libertos, ao lado de
Por dentroda história
�Viajantes
Centenas de pesquisadores
estrangeiros percorreram o
Brasil ao longo do século XIX
fazendo levantamentos, de-
senhos e publicando livros
sobre os mais diferentes as-
pectos da sociedade. Eram os
viajantes naturalistas, a van-
guarda científica da época.
Um destes foi Charles Darwin
(1809–1882), que elaborou a
teoria da evolução das espé-
cies. Numa viagem para os
lados de Cabo Frio (RJ), em
1832, Darwin vivenciou episó-
dio que lhe impressionou. Es-
tava numa canoa conduzida
por um negro escravo alto e
corpulento quando, numa
tentativa de comunicar-se
com o cativo, o inglês come-
çou a gesticular e falar com
ênfase. Foi o bastante para
que o canoeiro se encolhesse
apavorado, supondo que se-
ria espancado pelo viajante.
Darwin ficou chocado com a
postura de submissão de uma
pessoa muito mais forte que
ele e desabafou em seu diá-
rio: “Esse homem havia sido
treinado para suportar uma
degradação mais abjeta do
que a escravidão do animal
mais indefeso”.
Fu
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uiv
o
O jangadeiro José Nascimento, apelidado Dragão do Mar, lutou pela liberdade
13João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
mulheres pobres e, também,
com expressiva presença fe-
minina das camadas médias,
além da adesão de setores
das elites locais. Também no
Rio Grande do Sul, em 1884,
foi proclamada a Abolição
em Porto Alegre, todo o lito-
ral gaúcho e alguns municí-
pios do interior. Do mesmo
modo e época, no Amazonas.
A Lei Áurea, tardia, foi ante-
cedida de tais iniciativas. E se
a escravidão foi extinta sem
indenizar os proprietários,
como estes reivindicavam,
também não se criaram con-
dições de inserir os ex-cati-
vos na sociedade: não houve,
apesar das demandas, distri-
buição de terras nem outras
formas de apoio ou assistên-
cia que poderiam dar um
novo rumo ao Brasil.
Dessa forma, na província
em que João Cândido nasceu,
a escravidão estava abalada.
Em sua infância e mocidade,
o marujo pode perceber, ao
lado dos demais habitantes
C omo resultado da Abolição com tais característi-cas, apesar de avanços que podem ser percebi-
dos, as desigualdades ainda persistem. Segundo oestudo Desigualdade Racial no Brasil, elaborado pelo
economista Mario Theodoro, do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (IPEA) e divulgado na data dos 120
anos da Abolição (13 de maio de 2008), sobre escolaridade, rendae pobreza da população negra, que inclui negros e pardos (confor-me a classificação do IBGE), registram-se melhoras entre 1996 e2006, mas as condições de vida continuaram inferiores quan-do comparadas às da população não classificada como negra.
Cuba (em 1886) e Brasil foram osdois últimos países das Américas aacabar com a escravidão? Que SãoDomingos, colônia francesa noCaribe, foi a primeira nas Américas aabolir a escravidão (1794) e a segun-da a proclamar a Independência(1804), tornando-se o Haiti? O casohaitiano apresentou Abolição eIndependência originais. Pela únicavez na história da humanidade umarebelião de escravos chegou ao po-der: transformou-se em revolução e,após guerras sangrentas, eliminou aescravidão, exterminaram-se os do-nos de escravos e a dominação co-lonial, formando uma nação, aindaque com paradoxos e injustiçasque se acentuaram nos dias atuais.O principal líder e símbolo da Revo-lução do Haitifoi o ex-cati-vo ToussaintLouver ture ,chamado deN a p o l e ã oNegro.
voce sabia que...ˆPor dentroda história
�
A vida de hoje
Recebido com música, e da boa!
Por ocasião do nascimento
de João Cândido, década de
1880, surgiam nos botequins
e quintais dos subúrbios do
Rio de Janeiro os primeiros
conjuntos de “chorões” que
se reuniam para tocar “de
ouvido”, já que não sabiam
ler as partituras vindas da
Europa. Considerado por
muitos como a primeira mú-
sica brasileira tipicamente
urbana, o choro ou chorinho,
como é carinhosamente cha-
mado, tem fortes influências
africanas e mistura elemen-
tos das danças de salão
européias e da música popu-
lar portuguesa. Dentre seus
mais famosos compositores
estavam Ernesto Nazareth,
Pixinguinha, Zequinha de
Abreu, Jacob do Bandolim,
Anacleto de Medeiros, Joa-
quim Callado e Patápio Silva.
Destacava-se entre eles uma
mulher: Chiquinha Gonzaga.
Filha de uma negra e de um
oficial do Exército Imperial
sofreu vários preconceitos.
Foi autora da primeira mar-
cha carnavalesca (Ô Abre
Alas, 1899) e também a pri-
meira mulher, no Brasil, a re-
ger uma orquestra.(Acessado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Orquestra)
Projeto Memória14
gaúchos, que a dominação
escravista não era in-questio-
nável nem eterna. Esse foi o
berço histórico do futuro líder
da Revolta da Chibata.
A economia baseava-se
principalmente na exporta-
ção de açúcar, algodão, cou-
ros, borracha, cacau, mate,
fumo e, sobretudo, café. Suas
lavouras foram responsáveis
pelo deslocamento do centro
financeiro do país, das áreas
agrícolas do Nordeste para o
Centro-Sul e, também, pelo
grande fluxo de imigrantes
europeus que vieram para o
Brasil em busca de melhores
condições de vida. Ao mes-
mo tempo, nessas áreas mais
desenvolvidas, surgiam con-
tingentes expressivos de
classes trabalhadoras. Nas
duas primeiras décadas do
século XX proliferaram mo-
vimentos operários, por meio
de associações e sindicatos,
com grande presença do
anarquismo. Ocorreram, en-
tão, greves locais e mesmo
greves gerais que afetaram
parcialmente a vida urbana e
a produção industrial que se
desenvolvia, movimentos que
vinham dos primeiros anos
do século e se acentuaram
depois da Revolução Sovié-
tica (1917). Saíam de cena os
últimos escravos e entravam
os primeiros operários.
Dois jornalistas e escritores famosos e decisivos na cam-panha abolicionista nasceram escravos? José dePatrocínio (1854–1905) e Luis Gama (1830–1882), filhos decativas com seus senhores, foram alforriados aindacrianças. Publicaram livros, manifestos, redigiram e diri-giram importantes jornais engajados na luta contra oescravismo, criaram entidades e participaram de açõesdiretas para libertar escravizados. Tornaram-se figurasdestacadas entre as elites culturais e políticas.
voce sabia que...ˆ
Os meios de comunicação sempre tiveram atuação política no Brasil? Isso
ocorreu desde os primeiros jornais impressos no país, a partir de 1808 (ano
da chegada da Corte portuguesa), como a Gazeta do Rio de Janeiro e o
Correio Braziliense (editado em Londres). Os meios de comunicação não são
inocentes e têm a tradição de interferir no destino de todos. Parte da impren-
sa desempenhou importante papel no processo de Independência, mas outros
jornais eram contra. Na Abolição ocorreu o mesmo: jornais apoiavam a escra-
vidão, outros o combatiam. Nos anos 1830 surgiram pequenos periódicos que
discutiam a questão racial, entre eles O Homem de Cor, considerados precur-
sores dos jornais abolicionistas que surgiram meio século depois.
voce sabia que...ˆ
Imigrantes chegam ao Brasil no iníciodo século XIX
José de
Patrocínio
15João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
A difícil conquista da
liberdade
Com respaldo legal, a popula-
ção negra e parda, por inter-
médio das irmandades religio-
sas (existentes desde o século
XVII e se expandindo no sécu-
lo seguinte), passou a arreca-
dar fundos para comprar a
libertação dos escravizados.
Essa ação antiescravista con-
sentida conquistou, aos pou-
cos, adesão de outros seg-
mentos sociais. Tais grupos
eram estimulados pelas auto-
ridades como espaço de asso-
ciação ao catolicismo pela
população negra. A maioria
das irmandades acabou ser-
vindo como espaço de resis-
tência e sobrevivência das
populações de origem africa-
na, muitas vezes praticando o
sincretismo cultural. De cará-
ter beneficente, prestavam
auxílio aos enfermos e fune-
rais, bem como assistência
jurídica. Entre as irmandades
que se espalhavam por várias
localidades do país, construin-
do suas próprias igrejas, esta-
vam as devotas de Nossa Se-
nhora do Rosário, Santa Ifi-
gênia e São Benedito.
Quilombos por
todo o país
Enquanto existiu a escravi-
dão, existiram quilombos.
O centenário de aboliçãodo cativeiro foi tema dosamba-enredo do GrêmioRecreativo Escola de Sam-ba Estação Primeira deMangueira, do Rio de Janei-ro, no carnaval de 1998. 100
Anos de Liberdade – Reali-
dade ou Ilusão?, pergunta-vam os compositores.
Por dentroda história
�Quilombo dos Palmares
Localizado na Serra da
Barriga, em Alagoas. For-
mado por escravos fugi-
dos, principalmente, dos
engenhos de açúcar per-
nambucanos, contava com
inúmeros mocambos (abri-
gos de fugitivos, habitação
rústica): Andalaquituche,
Subupira, Dambrabanga,
Zumbi, Tabocas, Arotirene,
Aqualtene, Amaro e Maca-
co – que acabou tornando-
se uma espécie de capital.
Considerado como um “es-
tado africano no Brasil”,
surgiu em fins do século
XVI e sobreviveu até 1694,
quando foi destruído pelas
tropas enviadas pela Coroa
portuguesa. Zumbi, seu
principal líder, conseguiu
escapar. Capturado um
ano depois, foi esquarteja-
do e sua cabeça exposta
na cidade de
Olinda.
por dentro da história João Cândido nos Palmares
Mendes Fradique (pseudônimo de José Madeira de Freitas,
1893–1944), um dos mais famosos humoristas do Brasil no início
do século XX, em sua História do Brasil pelo Método Confuso
(1920), ao abordar a organização militar do Quilombo dos Pal-
mares confunde propositalmente as épocas e afirma: “As forças
do mar eram comandadas por João Cândido”. Fazia, assim, a li-
gação simbólica entre os dois momentos históricos.
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O que cantaa história
Projeto Memória16
Desde o grande Quilombo dos
Palmares, que por um século
desafiou o sistema dominante,
até os milhares de pequenos e
médios quilombos que se es-
palharam por todo o Brasil du-
rante o século XIX.
No século XIX, vários qui-
lombos trocavam ou vendiam
mercadorias nas cidades pró-
ximas. Nas últimas décadas,
tornaram-se comuns aqueles
constituídos por escravos de
uma mesma fazenda, não
raro instalados em terras do
próprio senhor. Após a Aboli-
ção, muitos quilombolas per-
maneceram nos mesmos lo-
cais – um solo pelo qual ainda
hoje lutam seus descenden-
tes para garantir a regulariza-
ção, enfrentando especula-
ção imobiliária e invasores.
Em meio àquela sociedade
onde as mudanças conviviam
com injustiças que permane-
ciam, João Cândido viveu mo-
mento importante em sua vi-
da. Superada a escravidão no
país, o jovem gaúcho saiu da
área rural e, em Porto Alegre,
alistou-se na Marinha. Nave-
gando pelos mares e rios, ele
descobriria um grande mundo.
voce sabia que...ˆE m 2007 existiam 3.524 comunidades quilombolasidentificadas no Brasil. Segundo dados divulgados
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvol-vimento (PNUD), quase 91% dos descendentes de qui-
lombos viviam em domicílios com renda familiar inferior aR$ 424,00 por mês e, 57,5%, em lares com renda inferior a R$
207,00. Apenas 3,2% das crianças moravam em residências com esgo-to, enquanto 28,9% dispunham de acesso à fossa higiênica2. Somenteno Rio Grande do Sul de João Cândido existem 37 comunidades járeconhecidas oficialmente como remanescentes de quilombos.
A vida de hoje
Na ponta da língua
Charqueada era o nome das es-tâncias (fazendas) gaúchas onde,escravos e também homens livres,preparavam o charque? Emborasejam todos de carne bovina,existem diferenças para a elabo-ração do charque, da carne secae da carne de sol? A carne de sol,que necessita de um clima muitoseco, é típica do Nordeste. Depoisde cortada, e ligeiramente salga-da, é colocada em locais cobertose bem ventilados. A secagem érápida e cria um tipo de cascaprotetora que conserva macia aparte interna. A carne seca, tam-bém conhecida como jabá, recebemaior quantidade de sal sendoempilhada em lugares secos edepois estendida em varais, aosol. O charque, típico da regiãoSul, é preparado de modo pareci-do ao da carne seca. A diferençaé que recebe ainda mais sal e aexposição ao sol, que lhe garanteuma maior durabilidade.
(Adaptado de http://www.sic.org.br/pergun-
tasfrequentes.asp)
A cidade de Porto Alegre noinício do século XX
Quilombo dos Palmares
2 http://www.pnud.org.br/raca/reportagens/index.php?id01=2736&lay=rac
Dentre as possíveis origens dapalavra gaúcho (quem nasce noRio Grande do Sul), destaca-se aque teria vindo do árabe Chaouch(tropeiro) e na Espanha se adap-tado para “Chaucho”, até ganharno Brasil a forma como aconhecemos. Sua origempode ser ainda,Guahú, que querdizer “canto dosíndios”.
17João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
A os 13 anos, João Cân-
dido foi alistado à força
e lutou numa guerra que pro-
vavelmente mal conhecia o
motivo. Esteve nas tropas
governistas que reprimiram a
Revolta Federalista no Rio
Grande do Sul, em 1893. Esta
é uma realidade presente no
Brasil de hoje, sobretudo nas
grandes cidades: crianças e
adolescentes envolvidos com
armas e violência, inclusive
nas áreas mais pobres.
Alistado em seguida no
Arsenal de Guerra do Exér-
cito, em Porto Alegre (1894),
em janeiro do ano seguinte
João Cândido foi transferido,
como aluno, para a Escola de
Aprendizes de Marinheiros,
também em Porto Alegre. Aí
permaneceu 11 meses. Devido
à falta de pessoal pela expul-
são de muitos marinheiros
após a Revolta da Armada
(1893–1894), João Cândido foi
enviado em janeiro de 1895
para o Rio de Janeiro, tornan-
do-se grumete (iniciante) da
16ª Companhia da Marinha. A
partir de então, passou a levar
vida de marinheiro, sobre as
águas do Brasil e de outras
partes do mundo.
A entrada para a Marinha e
as viagens consecutivas re-
presentaram para João Cân-
dido, a explosão definitiva do
2. DO MAR PARA O MUNDO
Aí fui nascendo, fui crescendo, fui crescendoaté que o milho deu a espiga desejada.
João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968
“ “
Pinheiro Machado, comandante daprimeira tropa servida por João
Cândido, quando tinha apenas 13 anos.
Grumetes (ao centro) na porta da Igreja Candelária, no Rio de Janeiro
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Projeto Memória18
mundo rural e escravista em
que nasceu. Segundo suas
palavras: “Eu entrei na Mari-
nha com 14 anos e entrei
bisonho. Toda luz que me
iluminou, que me ilumina,
graças a Deus, que é pouca,
foi adquirida, posso dizer, na
Marinha”. Bisonho, não cus-
ta lembrar, significa pouco
adestrado, novato, recruta
inexperiente.
João Cândido percorreu
todo o litoral brasileiro, as
principais bacias hidrográfi-
cas (Prata e Amazônica) e
navegou por quatro conti-
nentes (África, Europa, Amé-
rica do Norte e América do
Sul). Conheceu e presenciou
personagens e eventos histó-
ricos. Instruiu-se e instruiu
nas artes militares; recebeu
elogios, promoções, rebaixa-
OS SABERES DE UM TRABALHADOR
Cada ser humano, em seu traba-lho, possui saberes e técnicas.João Cândido, nascido “embaixo”na hierarquia social, acumuloumuitos conhecimentos. Na Mari-nha, foi instrutor na Escola Naval(RJ), na Escola de Aprendizes deMarinheiros de Recife (PE) e naDivisão de Instrução dos navios-escola Benjamin Constant e Pri-meiro de Março. Exerceu, ainda,as seguintes funções a bordodas embarcações em que serviu:
Artilheiro – Marinheiro da arti-lharia (conjunto de canhões eoutras bocas-de-fogo para lan-çar projéteis à grande distância).Faroleiro – Encarregado do farol,lanterneiro a bordo de uma em-barcação.Gajeiro – Marinheiro que tem aseu cargo um dos mastros, zelapor ele e dirige os trabalhos quenele se executam, e a quem ou-trora competia, também, subir aocesto de gávea, nas proximida-des de terra, a fim de procuraravistá-la antes dos demais ele-mentos da tripulação.Maquinista – Aquele que operaas máquinas do navio.Sinaleiro – Indivíduo incumbidode dar sinais a bordo.Timoneiro – Aquele que governao timão da embarcação; o homemdo leme.
João Cândido sofria de tuberculose pulmonar, a forma mais comum da doença, queé típica de países pobres? No Brasil, ela mata cerca de seis mil pessoas por ano.O tratamento é feito gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), nospostos e hospitais. Contudo, por ser longo, acaba muitas vezes sendo abandonadopelo paciente, com sérios riscos à sua saúde, pois os sintomas da doença dimi-nuem, mas ela continua se alastrando. O dia 24 de março, mesma data em que omédico alemão Robert Koch descobriu, em 1882, o bacilo da tuberculose, foi insti-tuído como o Dia Mundial de Luta Contra a Tuberculose. Para mais informaçõessobre essa e outras doenças presentes no país, o Ministério da Saúde disponibi-liza o telefone do DISQUE SAÚDE: 0800 61 1997.
voce sabia que...ˆ
Na ponta da língua
19João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Por dentroda história
�Amazônia e escravidão
O contato com a Bacia
Amazônica (que percorreu
durante sete meses, ocasião
em que viajou por rios do
Amazonas até o Acre) mar-
cou profundamente João
Cândido. Em depoimento já
no fim da vida ao Museu de
Imagem e do Som ele diria:
“Eu conheci o Amazonas
em criança e é a mesma
coisa de hoje, escravatura,
escravidão aqui na mão
dos seringueiros”. Impres-
sionou-se ainda, ao presen-
ciar em 1903, no Acre, a luta
do gaúcho Plácido de Cas-
tro, que mesmo não sendo
militar ou contando com o
apoio do governo brasileiro,
organizou um exército im-
provisado para defender a
permanência dessa parte do
território ao Brasil, obtendo
sucesso na iniciativa.
mentos e punições. Aprendi-
zados múltiplos, marcados
pela presença das águas, pre-
sença soberana do mar.
Em 1906 João Cândido
partiria para outras longitu-
des: esteve em Cabo Verde,
no continente de seus ances-
trais africanos, no dia 1º de
junho. Nessa viagem, conhe-
ceu os canais de Kiel (Ale-
manha) e da Mancha, os
mares do Norte e Báltico e
várias cidades, como São
Petersburgo (Rússia).
Em julho de 1909 o maru-
jo gaúcho partiria em outro
itinerário europeu, dessa
vez para acompanhar o fim
da construção e compor a
tripulação do encouraçado
Minas Gerais, em Newcastle-
on-Tyle, Inglaterra. Viajou por
terra de Marselha até Paris,
Cidade Luz, no esplendor da
O mar é meu amigoJoão Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968“ “
Em suas viagens João Cândidopôde conhecer as mais diferentes
realidades pelo mundo.Nas fotos, França e Cabo Verde,países que o marinheiro passou
Projeto Memória20
dentro de suas convicções e
peculiaridades. O corpo de
Nabuco seria sugestivamente
seguido pelos marinheiros
que, nove meses depois, aca-
bariam com a chibata na Ma-
rinha, um dos resquícios do
escravismo no Brasil.
A revolta dos marinheiros russos
em 1905, contra as condições de
vida nas embarcações impostas
pelo governo do czar Nicolau II e
no âmbito do “ensaio geral” da
Revolução Soviética (1917), foi
tema em 1925 do filme O Encou-
raçado Potemkin, de Sergei Ei-
seinstein, e tornou-se um clássi-
co do cinema mundial? João Cân-
dido esteve nos mares russos um
ano após esta rebelião.
voce sabia que...ˆ
Joaquim Nabuco (1849–1910) além de político, diplomata, his-
toriador, jurista, jornalista, foi um dos fundadores da
Academia Brasileira de Letras? Além de sua intensa cam-
panha contra a escravidão nas tribunas parlamentares e
na imprensa, fundou, em 1878, a Sociedade Brasileira
Antiescravidão. Ao falecer, era diplomata em Washington.
voce sabia que...ˆ
O encouraçado Minas Gerais
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Belle Époque . Em feverei-
ro de 1910, o Minas Gerais
faria sua viagem inaugural
até Hampton Roads, EUA,
para acompanhar o traslado
ao Brasil dos restos mortais
de Joaquim Nabuco, um dos
grandes líderes abolicionistas,
21João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
P ara João Cândido, o mar era umamigo. Mas nós somos amigos
do mar? E do planeta?João Cândido amou o mar, por toda a vida! Nelecresceu, fez amigos, conheceu o mundo, fez históriae se fez homem. Mais tarde, expulso da Marinha,dele continuou sustentando a família.
A humanidade e os oceanos caminham juntos hámilhões de anos. A vida terrestre veio de lá, comoresultado do processo de evolução pelo qual passa-ram as espécies no planeta. Planeta chamado Terra,mas que é conhecido como planeta azul, justamentepor causa das águas que lhe formam 3/4 do total dasuperfície – das quais, 97% são salgadas.
Pois é. Apesar da imensidão, as águas dos ocea-nos vêm sofrendo com a poluição que produzimos eque já atinge o Ártico e a Antártida, onde já é possí-vel perceber sinais de degradação.
Mares e oceanos vêm, há tempos, sendo utiliza-dos como depósitos de detritos o que, combinado
com a poluição do ar, causada pela espécie huma-na, provoca mudanças climáticas na atmosfera co-mo o degelo dos pólos, com o conseqüente aumen-to do nível do mar. Se medidas urgentes não foremtomadas, segundo o relatório In Dead Water (EmÁguas Mortas), elaborado por cientistas do Pro-grama da ONU Para o Meio Ambiente (Pnuma), empoucas décadas a vida marinha, em grande parteresponsável pela alimentação e sustento de mi-lhões de pessoas em todo o mundo, poderá sofrerextinção em massa. Algumas espécies já estãoameaçadas e outras desapareceram.
O mar de João Cândido e de todos nós pede socor-ro! O meio ambiente como um todo também! Me-didas já estão sendo adotadas por países que enten-dem que não apenas a destruição do mar, mas tam-bém das florestas, da fauna e dos recursos hídricos(água) representa nossa destruição enquanto espécie.Entretanto, na contramão dessa luta, algumas naçõesainda insistem em desafiar os limites da Terra.
A vida de hoje
E o caso era este. Nós que vínhamos da Eu-ropa, em contato com outras Marinhas, nãopodíamos admitir que na Marinha do Brasilainda o homem tirasse a camisa para ser chiba-teado por outro homem.
João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968
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“
Salvar oceanos, preservar vidas
Projeto Memória22
Adegradação ambiental passou
a chamar atenção e exigir
cuidado, principalmente a partir do
século XIX. A natureza não acompanhava mais o
ritmo de destruição que nossa espécie causava
ao meio ambiente. Era possível perceber que,
mantida a superexploração dos recursos naturais
e o contínuo crescimento da população, as gera-
ções do futuro enfrentariam sérios problemas de
sobrevivência.
Era o preço do progresso, defendiam alguns! A
desigualdade torna-se visível: poucas regiões com
uma população desfrutando de conforto, sanea-
mento, saúde, alimentação e educação enquanto
outras, a maior parte do mundo, convivendo com a
miséria e a destruição e poluição do meio ambien-
te. Crescimento econômico e melhoria de vida da
população não andam necessariamente juntos. Afi-
nal, muitas nações se desenvolveram e grande par-
te do povo permaneceu em condições precárias. Era
preciso repensar a questão, investir em propostas
que permitissem um desenvolvimento regional sus-
tentável, ou seja, crescer economicamente sem
destruir as culturas locais, o meio ambiente e o
futuro. Não tem sido fácil, mas aos poucos esta ten-
dência vem se fortalecendo e aumentando.
A ECO 92, ocorrida no Rio de Janeiro, no ano
de 1992, foi um desses momentos em que mui-
tos se reuniram. Eram pessoas de todas as par-
tes do mundo, movimentos sociais organizados e
representantes de governos de 175 países. Um
dos principais resultados desse encontro foi a
criação da Agenda 21, documento que estabele-
ceu a importância de que cada país se compro-
meta a refletir, global e localmente, sobre a
forma pela qual governos, empresas, organiza-
ções não governamentais e todos os setores da
sociedade podem cooperar no estudo de solu-
ções para os problemas socioambientais.
A Agenda 21 foi adotada pelo governo brasi-
leiro e incorporada como um dos programas
do Plano Plurianual (PPA) para os períodos
2004–2007 e 2008–2011. O PPA é o instrumen-
to onde são estabelecidos objetivos, diretrizes e
metas do governo e, por sua importância, define
o destino de toda uma geração. Entre nós, é im-
portante a participação da sociedade na discus-
são da Agenda 21, na qual se encontra a indica-
ção de políticas públicas. Ainda há muito para
fazer e monitorar!
A vida de hoje
Da preocupação do século XIX, uma Agenda 21 desde o século XX
23João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Em que situação surgiu
a Revolta da Chibata?
O que levou milhares de
marinheiros, até então anô-
nimos, ignorados pela im-
rança de João Cândido no
meio deles?
A nova esquadra brasileira,
fabricada na Inglaterra, ficou
pronta em 1910. O mais pos-
sante era o encouraçado Minas
Gerais, com seus 34 canhões,
recebido em clima festivo por
milhares de lenços brancos
acenados pela multidão que se
espremia no cais do Rio de
Janeiro. Nos meses seguintes
vieram o encouraçado São
Paulo (também de grande
porte) e o cruzador-ligeiro
Bahia. Proporcional ao tama-
prensa e desprezados pelo
governo, a se tornarem
os principais protagonistas
da História naquele mo-
mento? Como surge a lide-
3. EXPLODE A REVOLTA DO MAR
Parte IIAdulto, contra a chibata
por dentro da história A República recuou
Inicialmente, o governo da República aboliu os castigos físicos na
Marinha em 17 de novembro de 1889, dois dias depois da sua
Proclamação. Mas logo tratou de reintroduzi-los, em 1890, tornan-
do-os novamente legais. Junto ao enorme poderio bélico e da
modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disci-
plinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso da
chibata e outras punições, como prisão solitária, diminuição da
comida e ficar “a ferros” (acorrentado).
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O cais Pharoux (hoje Praça XV, no Rio deJaneiro) era um porto estratégico
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Projeto Memória24
nho das embarcações, foi o
valor da dívida contraída junto
aos bancos internacionais.
Com a nomeação do en-
genheiro Pereira Passos para
Capital vem do latim, capitale,
relativo a cabeça? O Rio de Ja-
neiro, como capital colonial, Im-
perial e republicana (desde 1763
até 1960) do Brasil, era a “cabe-
ça” de uma sociedade multiface-
tada, complexa, autoritária e cen-
tralizadora. Por um lado, expres-
sava de modo intenso as desi-
gualdades sociais, misturando,
num mesmo espaço urbano, luxo,
riqueza e pobreza. Por outro,
além de sediar os poderes polí-
ticos e econômicos dominantes,
apresentava também uma espé-
cie de síntese das várias faces
do país, do ponto de vista cultu-
ral, étnico e político. Assim, no
Rio capital, sentia-se de modo
agudo a miséria e as injustiças,
como também se presenciava de
forma mais evidente a presença
das classes pobres e o espetá-
culo do progresso tecnológico.
voce sabia que...ˆ
a prefeitura do Rio de Janei-
ro, iniciou-se o que a popu-
lação chamou de política do
bota abaixo: ampliação do
porto, remoção de morros,
O Rio de Janeiro modernizava-se. Na imagem a atual Avenida Rio Branco
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om
25João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
abertura de praças, demoli-
ção de antigos quarteirões
com seus cortiços e sobra-
dos, alargamento de ruas e
abertura de novas avenidas,
entre elas a avenida Central,
atual avenida Rio Branco, com-
parada à avenida Champs-
Elysées, em Paris (França).
Empurrada para fora do
Centro da cidade, a popula-
ção pobre começou a subir
os morros, surgindo as pri-
meiras favelas.
A palavra República significa“coisa pública” e tem origem nolatim? A primeira Constituiçãobrasileira republicana é de 1891. Apartir dela se instituiu a eleiçãodireta para Presidente da Repú-blica. Embora tenha acabado coma exigência de uma renda mínimapara direito ao voto – o chamadovoto pecuniário –, manteve a proi-bição às mulheres, mendigos esoldados. Só podiam votar oshomens a partir de 21 anos. Entre-tanto, por excluir também os anal-fabetos, deixava fora do processoeleitoral grande parte da popula-ção masculina, sobretudo aquelacomposta por negros e pobres.Como resultado, sabe-se que, em1910, cerca de 3% da população,apenas, puderam comparecer àsurnas. Na Constituição de 1988 éque se deu direito de voto aosanalfabetos – e aos jovens, a par-tir de 16 anos, se cadastrarem co-mo eleitores.
voce sabia que...ˆ
Inspirada na Campanha deOswaldo Cruz para erradi-car a peste bubônica, trans-mitida pelos ratos e fazendovítimas fatais, os cantoresCasemiro Rocha e Manuelda Costa gravaram o grandesucesso do carnaval do Riode Janeiro, em 1904: “Rato,Rato... por que motivo turoeste meu baú?...”
O que cantaa história
Mulheres elegantespasseiam pelo Rio deJaneiro urbanizado
por dentro da história Considerada a primeira favela carioca, o Morro da Favela, nas
proximidades da Estação Central do Brasil, ainda existe e
chama-se Morro da Providência. Faz parte de um conjunto de
favelas que hoje se espalha por todos os bairros do Rio de Ja-
neiro. Nas grandes e médias cidades do Brasil também a
situação de miséria e pobreza leva ao crescimento de favelas.
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Projeto Memória26
1910, o ano em que o
açoite terminou
Os marujos conspiraram em
encontros secretos, organi-
zando um Comitê Revolucio-
nário que se reunia nas áreas
pobres da cidade, como os
bairros de Saúde, Santo Cristo
e Gamboa. Alguns desses en-
contros aconteceram em ca-
sas de cômodo, ou cortiços,
típica habitação popular urba-
na daquele momento.
Na madrugada, um
grito de dor
No fundo da Guanabara,
ainda madrugada do dia 21
de novembro de 1910, Mar-
celino Rodrigues Menezes,
marinheiro, recebia no con-
Marinheiros rebelados do navio Bahiaesperam momento de arriar a
bandeira vermelha
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27João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
vés do Minas Gerais, 250 chi-
batadas na frente de toda a
tripulação. Castigo que con-
tinuou, apesar do desfaleci-
mento da vítima. Foi a gota
d’água que faltava! Ou, me-
lhor, a gota de sangue! Tanto
Apicuim como Alípio, apeli-
dado de O Carrasco do Minas
Gerais, eram velhos conheci-
dos da marujada. O primeiro
era famoso por sua meticulo-
sidade na elaboração do ins-
trumento de tortura, que pre-
parava com agulhas de aço.
exigiram o fim dos castigos
corporais vigentes na Marinha.
O movimento, que ficaria co-
nhecido por Revolta da Chi-
bata, trouxe para a cena públi-
Cerca de 2.300 marinhei-
ros, entre os dias 22 e 27 de
novembro de 1910, tomaram
cinco possantes navios de
guerra (Minas Gerais, São Pau-
lo, Bahia, Timbira e Deodoro)
e, apontando os canhões so-
bre a então capital do Brasil,
Segundo o Programa Habitat, da Organização dasNações Unidas (ONU), criado em 1976, e que tem
como missão promover social e ambientalmente o de-senvolvimento sustentável dos assentamentos huma-
nos, no ano de 2005, cerca de 52,3 milhões de brasileirosviviam em favelas (28% da população)? A informação está pre-
sente no documento O estado das cidades do mundo 2006–2007.(Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=386537)
A vida de hoje
O uso de açoite em réus escravosfoi proibido por lei em 1886? Por-tanto, quando João Cândido tinhaapenas seis anos de vida – e 24anos antes da Revolta da Chibata.
voce sabia que...ˆ
“Ninguém será submetidoà tortura, nem
a tratamento oucastigo cruel, desumano oudegradante.”Artigo 5º da Declaração
Universal dos Direitos
Humanos, Assembléia Geral das
Nações Unidas – ONU, 1948
Marcelino Rodrigues Menezes foi oúltimo marinheiro a ser castigado
antes do levante
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Marinheiros do cruzador Bahia mobilizados na revolta
Projeto Memória28
bela caligrafia, apresentavam-
se como “cidadãos brasilei-
ros e republicanos” e exigiam:
“desapareça a chibata”. Caso
não fossem atendidos, esta-
vam dispostos a bombardear
a capital do país e as embar-
cações que os hostilizassem.
Castigos, violenta tradição brasileira
Ao lado: Marinheiros exigiam o fimdos castigos
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ca setores oprimidos da popu-
lação, como agentes históri-
cos transformadores.
Os marujos enviaram um
manifesto em forma de carta
e vários telegramas ao gover-
no com suas reivindicações.
No manifesto, manuscrito em
por dentro da história “Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte tempo-
ral sobre a parada militar e o desfile naval. A marujada ficou cansada
e muitos rapazes tiveram permissão para ir a terra. Ficou combina-
do então que a revolta seria entre 24 e 25. Mas o castigo de 250 chi-
batadas no Marcelino precipitou tudo. O Comitê Geral resolveu, por
unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. O sinal seria a cor-
neta das 22 horas (...) Às 22h50, quando cessou a luta no convés,
mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à
fala os navios comprometidos.”
(João Cândido em relato ao jornalista Edmar Morel, publicado no livro A Revolta da
Chibata, 4ª edição, Rio de Janeiro: Graal/Paz & Terra, 1986).
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29João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Além das atitudes e das falas,
é importante verificar que os
marujos se expressaram tam-
bém por escrito, colocando
no papel seus propósitos.
Uma parte da população fu-
giu, apavorada com a possibili-
dade da cidade ser bombar-
deada. O então famoso jorna-
Por dentroda história
�Trecho da carta dos
marinheiros da Revolta
da Chibata
“Ilmo. Exmo. Sr. Presidente
da República brasileira.
Cumpre-nos, comunicar a
V. Excia. como chefe da
Nação Brasileira: Nós, mari-
nheiros, cidadãos brasilei-
ros e republicanos, não
podendo mais suportar a
escravidão na Marinha Bra-
sileira, a falta de proteção
que a Pátria nos dá; e até
então não nos chegou;
rompemos o negro véu,
que nos cobria aos olhos
do patriótico e enganado
povo(...)”.
(Trecho da carta enviada
pelos rebeldes ao presidente
da República)
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lista Gilberto Amado registrou
no jornal O Paiz: “Na minha rua
quase não ficou ninguém; hou-
ve lágrimas, ataques, soluços
ruidosos e o berreiro alarmado
das crianças, que viam na face
A bandeira vermelha (mastro àdireita) manteve-se hasteada no São
Paulo e nas demais embarcações.
Abaixo: Marinheiros, com as armasnas mãos, conseguem dar fim à
chibata ma Marinha
Projeto Memória30
por dentro da história Surge uma liderança
O marinheiro de 1ª classe João Cândido, da 16ª Companhia da Marinha nacio-
nal foi, sem dúvida, o principal líder da Revolta da Chibata, seja pela ativida-
de que exerceu durante a rebelião, seja pelo reconhecimento de seus com-
panheiros da Armada que o aclamaram como chefe. Também oficiais, gover-
no, parlamentares, imprensa e a população em geral o viam nessa condição,
ainda na época do episódio. Foi escolhido pelos companheiros por vários
motivos: era um dos mais velhos e com mais tempo de serviço, considerado
um excelente marinheiro, bem-visto por marujos e oficiais, construiu ao
longo dos anos uma liderança sólida em sua posição de marujo. Intitulado
Almirante-em-chefe da esquadra rebelde, logo a população e os jornais da
época o apelidaram de Almirante Negro.
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Vale é saber que as carnes de um servidor dapátria só serão cortadas pelas armas dos inimi-gos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta.
João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910
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Jornal O Malho publica charge ilustrando a fuga de parte da população.Já alguns cariocas preferiram admirar aevolução dos navios no cais
fim do mundo”. Outras pes-
soas, em vez de se afastarem,
foram para a beira do cais, cu-
riosas, assistir à movimenta-
ção dos navios – e não faltou
quem aplaudisse.
materna a consternação e o
pasmo. Vez em vez, atulhados
de bagagens e de pessoas,
automóveis fuzilavam nervosa-
mente numa velocidade im-
prevista. Era o pavor; parecia o
Por dentroda história
�Surgem várias lideranças
Dentre os 2.300 marujos re-
belados, formou-se uma
“oficialidade rebelde” para
comandar as embarcações
durante a revolta, composta
por 28 homens. No navio
São Paulo destacaram-se o
cabo Gregório do Nasci-
mento, músico e cozinheiro,
e o cabo André Avelino San-
tana, baiano. No Bahia, o co-
mandante rebelde foi o ma-
rinheiro cearense Francisco
Dias Martins, ao lado de
Ricardo Freitas e Adalberto
Ribas. A bordo do Deodoro
a liderança ficou com os ma-
rujos Antonio Alves Lessa e
José Alves de Sousa.
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31João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
placáveis ódios, vinganças e
difamações que o acompa-
nhariam por toda vida. Ates-
tam isso a quantidade de fo-
tos, charges e artigos publica-
dos em destaque nos princi-
pais jornais, os discursos na
Câmara Federal e no Senado,
diálogos registrados nas ruas,
casas e cafés.
“E combinaram / uma revol-ta na surdina / se lançaram /nessa sina e saíram triunfan-tes. / Por ser o líder / que as-sume, que ensina / os maru-jos com estima / lhe fizeramalmirante.”
(Música Nobre Almirante, da peçateatral do Grupo Mambembe, en-cenada em 1983, durante a ditadu-ra civil-militar no Brasil)
O que cantaa história
Em cinco dias o marujo
gaúcho transformou-se, de
ilustre desconhecido, na
maior celebridade do Brasil
naquele momento, atraindo
sobre ele não só entusiasmo e
admiração, mas também im-
Projeto Memória32
Anistia vem do grego Amnistia esignifica esquecimento. Segundoo Dicionário Aurélio é o “ato peloqual o poder público declaraimpuníveis, por motivo de utili-dade social, todos quanto, atécerto dia, perpetraram determi-nados delitos, em geral, políti-cos, seja fazendo cessar as dili-gências persecutórias, seja tor-nando nulas e de nenhum efeitoas condenações”.
Na ponta da língua
O que canta a história: “Notempo da revolta / João Can-dido era almirante / Avelinoimediato / E Gregório co-mandante. / João Cândidoalmirante / ainda deve selembrar / que tem seu nomegravado / no barco MinasGerais...”
(Canção entoada por marinheirose relatada por Zeelândia Cândido,em entrevista à Silvia Capanema P.de Almeida, em 2002)
O que cantaa história
É bem doloroso para um país forte ealtivo ter de sujeitar-se às imposiçõesde 700 ou 800 negros e pardos que,senhores dos canhões, ameaçaram aCapital da República.
Fanfulla, jornal de São Paulo, em 1910
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A notícia correu o mundo,
transformou-se em manchete
nos principais jornais brasilei-
ros (e, também, argentinos,
uruguaios, parisienses, italia-
nos, alemães e ingleses, entre
outros) que enfatizavam a
“rendição” das lideranças go-
vernamentais brasileiras. Po-
líticos, membros do governo
33João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
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Manifesto dos marinheiros: contra a“Escravidão na Marinha”
Projeto Memória34
e, sobretudo, os altos oficiais
da Marinha sentiram-se pro-
fundamente irritados com o
desfecho do episódio.
Além de exigirem o fim da
chibata os rebeldes pediam,
também, anistia. O governo
do marechal Hermes da Fon-
seca (empossado há uma se-
mana como oitavo Presi-
dente da República no Brasil)
e o Congresso Nacional, acua-
dos, aceitaram rapidamente
todas as condições.
Jornal O Malho divulga foto em que João Cândido discute o texto da anistia com o comandante Pereira Leite
Abaixo: Na charge de oposição à Revolta dos marinheiros, o marechal Hermes da Fonseca assina a anistia
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35João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
A nistiados, os marinhei-
ros devolveram os na-
vios e largaram as armas em
27 de novembro de 1910.
Doze dias depois, ocorre ou-
tra rebelião, dessa vez envol-
vendo as guarnições do Ba-
talhão Naval (na Ilha das Co-
bras) e do cruzador-ligeiro
Rio Grande do Sul. Os com-
bates foram rápidos, porém
mais violentos do que na
insurreição de novembro,
pois o governo partia para
esmagar os rebeldes, dos
quais 24 foram mortos, além
do falecimento de soldados
do Exército fiéis ao governo
aquartelados no mosteiro de
São Bento e de oito civis
(entre os quais um monge
beneditino) atingidos por dis-
paros na cidade, que levaram
132 feridos aos hospitais. Os
navios com os marujos da
4. EXPLODE A REPRESSÃO EM TERRA
Revolta da Chibata não tive-
ram qualquer participação
nesse segundo episódio. Mas
o governo se aproveitou do
pretexto para fazer uma per-
seguição das mais violentas.
O saldo final da repressão:
1.216 expulsões da Marinha
(dados oficiais), ou seja, nú-
mero equivalente a quase
metade dos participantes da
Revolta da Chibata; seiscen-
tas pessoas presas, inclusive
os líderes do movimento (que
sofreram maus-tratos); de-
gredo e trabalho escravo para
centenas. E número ainda não
contabilizado de assassinatos,
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Projeto Memória36
dos quais cerca de 30 são
conhecidos os nomes e o
modo como foram mortos.
João Cândido preso
Acusado de participar da
nova rebelião, João Cândido
foi preso no dia 24 de
dezembro, véspera de Natal
de 1910, e conduzido à Ilha
das Cobras, onde ficava o
Batalhão Naval. Sob pretex-
to de que todas as cadeias
da cidade estavam
lotadas, foi o pri-
meiro a ser jo-
gado numa
cela solitá-
ria, encrava-
da na rocha,
úmida, de as-
pecto tenebroso e
apertada. Apesar da
denominação do local – soli-
tária – foram a seguir colo-
cados na “jaula” (expressão
do carcereiro) mais 17 maru-
jos. Na “solitária” ao lado
ficaram outros 13 marinhei-
ros. Ao todo, 31 detidos, des-
pidos, num espaço onde mal
cabiam duas pessoas. Eram
os considerados “elementos
perigosos”, no linguajar ofi-
cial. Ocorreu aí uma das vio-
lências mais fortes. Os deti-
dos ficaram assim, amontoa-
dos e sem poderem se me-
xer direito ou mesmo respi-
rar durante quatro dias, sem
receber água ou alimentos.
Ao abrirem as portas, havia
18 mortos lá dentro, alguns
já inchados e apodrecendo.
João Cândido foi um dos
que sobreviveram.
A população carcerária no Brasil
é composta por 440 mil pessoas?
Os dados constam do relatório da
Comissão Parlamentar de Inqué-
rito (CPI) do Sistema Carcerário e
tem por base levantamento do
Departamento Penitenciário Na-
cional (Depen), do Ministério da
Justiça. A preocupação com os
Direitos Humanos inclui ainda, a
necessidade, segundo a Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfa-
betização e Diversidade (Secad),
do Ministério da Educação, de
implementação do Plano Nacional
de Educação no Sistema Pri-
sional. Atualmente, cerca de 22
mil presos são analfabetos, 56 mil
apenas alfabetizados, e 145 mil
têm somente o ensino fundamen-
tal completo.
(Adaptado de
http://www.agenciabrasil.gov.br/noti-
cias/2008/06/20/materia.2008-06-
20.4618774042/view e
http://noticias.terra.com.br/brasil/inter-
na/0,,OI2044669-EI306,00.html de 03/11/2007)
voce sabia que...ˆCentenas de marinheiros (inclusive os anistiados) foram detidos
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Fundação Biblioteca
Nacional
O controle psiquiátrico
Diante das brutalidades sofri-
das e presenciadas na Ilha
das Cobras, João Cândido,
nos primeiros momentos,
ficou traumatizado e tinha
visões dos companheiros
dos, no bairro da Urca, próxi-
mo à praia Vermelha (hoje no
prédio oitocentista funciona
um campus da Universidade
mortos, que reapareciam em
sua memória gritando e ago-
nizando, deformados e so-
frendo. Examinado por uma
junta médica, rapidamente
concluíram que estava louco
e resolveram enviá-lo para o
Hospital Nacional dos Aliena-
Por dentroda história
�O navio da morte
Também na véspera de
Natal de 1910 foram embar-
cados no navio mercante
Satélite, do Lóide brasileiro,
com destino ao desterro na
Amazônia, 441 presos as-
sim qualificados em relató-
rio oficial: 105 ex-marinhei-
ros, 292 vagabundos e 44
mulheres. O grupo ia escol-
tado por tropas do Exército.
No trajeto, 14 marinheiros
foram fuzilados, a pretexto
de que tentaram promover
uma rebelião, e os corpos
jogados ao mar. Entre estes,
vários participantes da
Revolta da Chibata, como
Vitalino José Ferreira, que
presidira o Comitê Revo-
lucionário. Ao chegarem na
Amazônia, os presos foram
entregues aos donos dos
seringais para trabalhos for-
çados. Sabe-se de poucos
sobreviventes.
Na primeira metade do século XIX existiram no Brasil os navios-prisões,
chamados de presigangas? Eram centros de detenção flutuantes onde
ficavam soldados estrangeiros prisioneiros de guerra, soldados brasileiros
punidos por alguma falta, escravos condenados, índios destribalizados,
presos políticos e outros detidos por crimes variados. Nessas embarca-
ções havia constantes maus-tratos, torturas e não raro os presos morriam
a bordo. Tais navios foram trazidos por D. João VI ao Brasil e serviram no
reinado de D. Pedro I (1822–1831) e durante as Regências (1831 – 1840). O
jornalista Cipriano Barata que esteve preso numa dessas embarcações
escreveu, em 1829, uma longa denúncia sobre as torturas.
voce sabia que...ˆ
37João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Ficha de João Cândido no HospitalNacional dos Alienados
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sumida foi publicada em 12 arti-
gos na Gazeta de Notícias
entre dezembro de 1912 e janei-
ro de 1913. Os textos vinham
assinados pelo autor, com
alguma intervenção de jornalis-
tas do periódico, entre eles o
famoso Paulo Barreto (João do
Rio) e hoje fazem parte do
acervo da Biblioteca Mário de
Andrade, em São Paulo.
A Biblioteca Mário de Andrade
tem o segundo maior acervo do
Brasil, atrás apenas da Biblio-
teca Nacional (RJ)? Seu nome é
uma homenagem ao escritor Má-
rio Raul de Morais Andrade
(1893–1945), nome destacado no
Movimento Modernista brasileiro
que se inaugurou com a Semana
de Arte Moderna em 1922. Um de
seus principais livros é Macu-
naíma (1928), romance que utili-
za mitos indígenas, lendas, pro-
vérbios e registra alguns aspec-
tos da cultura do país até então
pouco conhecidos, na busca de
traçar o “caráter” (identidade)
nacional. Para saber mais sobre
o autor e a biblioteca acesse
http://www.prefeitura.sp.gov.br/c
idade/secretarias/cultura/bma/.
voce sabia que...ˆEm 1990, o Brasil assinou a Declaração de Caracascomprometendo-se a reestruturar a assistência aos
portadores de necessidades especiais na área da psi-quiatria? A atual Política de Saúde Mental originou-se na
Lei Federal 10.216, de 2001. Tem como objetivo substituiras internações de longa permanência (nas quais o paciente é isolado doconvívio familiar e social) por meio da desativação dos antigos manicô-mios, substituindo-os pela implantação dos Centros de AtendimentoPsicossocial (CAPS) e utilização de leitos em hospitais gerais. Dados doMinistério da Saúde indicam que, em 2007, havia 841 CAPS em todo opaís. Contudo, ainda existiam 228 hospitais psiquiátricos tradicionais.Apesar das mudanças, o novo tipo de atendimento ainda é insuficien-te. A demora para marcar consultas é um dos obstáculos na execuçãoda política de desinternação, segundo conclusões apresentadas duran-te o XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro de2007, em Porto Alegre (RS).
A vida de hoje
João Cândido tem alta do hospital. Os psquiatras concluiram que não
estava louco.
Projeto Memória38
Durante a estada no hospi-
tal, João Cândido resolveu co-
locar no papel suas memórias,
com destaque para os recentes
acontecimentos. O manuscrito
desse livro, que ele intitulara
A vida de João Cândido ou O
Sonho da Liberdade, está desa-
parecido. Mas uma versão re-
Federal do Rio de Janeiro). En-
tretanto, os médicos logo
constataram que João Cândi-
do apresentava “perfeita orien-
tação autopsíquica”. O marujo
ficou quase dois meses inter-
nado, ocasião em que pode se
refazer dos maus-tratos que
sofrera na Ilha das Cobras.
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Mário deAndrade
39João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
Julgamento e liberdade
Ao ter alta do hospital, João
Cândido foi novamente preso
e assim ficou por quase dois
anos, até ser julgado pelo
Conselho de Guerra em fins
de 1912, ao lado de mais nove
marujos que haviam partici-
pado da Revolta da Chibata.
Eram acusados de atuação
no segundo levante, ocorrido
em dezembro de 1910. Os
advogados de defesa foram
chamados pela Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, antiga
agremiação criada por escra-
vos alforriados e que se ca-
racterizou por abrigar e pro-
teger cativos na época da
escravidão. Evaristo de Mo-
raes, Caio Monteiro de Barros
A tualmente, apesar das conquistas e da pro-mulgação em maio de 1990 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, a sociedade brasileira aindaprecisa garantir a cidadania desses futuros cidadãos,
combatendo a falta de escolarização, exploração sexual,violência e o trabalho infantil. Segundo a Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), 11% das crianças brasileiras são usadascomo mão-de-obra nas cidades e no campo.
A vida de hoje
João Cândido sai do carro-prisão para ser julgado no Conselho de Guerra.Abaixo: Charge de O Malho retrata o marinheiro como um bandido
João Cândido absolvido, ainda évigiado por um guarda
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e Jerônimo José de Carvalho
aceitaram com entusiasmo a
causa e se recusaram a rece-
ber qualquer honorário.
Monteiro de Barros, apon-
tando a vingança executada
pelo governo, chamou aten-
ção para a situação de um
dos presos, o grumete Al-
fredo Maia: “(...) conta 16 anos;
Projeto Memória40
com essa idade (...) essa crian-
ça, foi bárbara e impiedosa-
mente encerrada em mas-
morras terríveis, imundas,
onde cumprem penas crimi-
nosos da pior espécie”.
A juventude está cada vez mais atenta aos proble-mas atuais da sociedade brasileira, como educa-
ção, meio ambiente, violência, trabalho e doençassexualmente transmissíveis, dentre vários outros. E,
mais que isso, envolvida e buscando formas de participar.As conclusões estão na pesquisa Adolescentes e jovens do Brasil: par-ticipação social e política, publicada pelo Unicef3, em 2007. Ao todoforam entrevistados 3.010 jovens, entre 15 e 19 anos, residentes nascapitais e interior de todas as regiões do país. Um grupo complemen-tar formado por 210 jovens adolescentes indígenas de 15 municípios,também foi entrevistado para que se pudesse apontar as peculiarida-des dessa população. A pesquisa deu continuidade ao estudo A Voz dosAdolescentes, lançado em 2002, pelo Unicef.
A vida de hoje
Tem aumentado a mortalidade
entre os jovens brasileiros de 15
a 29 anos, não-brancos, homens
e pouco escolarizados? Isso
ocorre principalmente pelo uso
de armas de fogo e acidentes de
trânsito entre os moradores das
áreas mais pobres das grandes
cidades. Os dados estão presen-
tes no 15º Boletim de Políticas
Sociais, publicado pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), em 21/05/08.
(Acessado em
http://www.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?t
tCD_CHAVE=4653)
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Ao final do julgamento, veio
a sentença: absolvidos por
unanimidade. Pela primeira
vez desde que fora preso, Jo-
ão Cândido chorou, de emo-
ção, enquanto os demais co-
memoravam efusivamente.
41João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
A o sair da prisão em 30
de dezembro de 1912,
João Cândido, sentindo o
gosto da liberdade, teve notí-
cia ruim (embora não sur-
preendente): acabava de ser
excluído dos quadros da
Marinha de Guerra do Brasil.
Foi o último dia em que usou
a farda. Surgia assim mais um
trabalhador civil, desempre-
gado naquele momento.
Menos de um mês
após ser solto,
João Cândido,
que passara
por verdadei-
ro círculo de
horrores, pre-
senciou ex-
pressiva home-
nagem, assim noti-
ciada por O
Paíz: “Circo Spi-
nelli – Compa-
nhia Eqüestre
Nacional da Capital Federal –
Grandiosa função em benefí-
cio do ex-marinheiro nacional
João Cândido com um pro-
grama cheio de novidades e
atrações.” Tratava-se do gru-
po circense do famoso palha-
ço negro, Benjamim de Oli-
veira, que empolgava e fazia
rir as multidões.
Um cineasta pioneiro no
Brasil, Alberto Botelho, este-
ve a bordo do encouraçado
Minas Gerais durante a Revol-
ta da Chibata e captou ima-
gens de João Cândido e de
outros marujos. Em
janeiro de 1912,
uma sala de ci-
nema na rua
Marechal Flo-
riano, Centro
do Rio de Ja-
neiro, espalhou
cartazes pela ci-
dade anunciando a
estréia de A vi-
da de João Cân-
dido, dirigido
por Botelho. Mas
o chefe da polícia, Belizário
Távora, censurou a fita, proi-
bindo a exibição e até apre-
endendo os cartazes de pro-
5. UM PESCADOR ARTESANAL
Parte IIIA longa vida de um homem do povo
Benjamin Chaves (1870–1954),
depois conhecido como Benja-
min de Oliveira, nasceu em Pará
de Minas, no estado de Minas
Gerais? Escravo, como a mãe
Leandra, fugiu com um circo aos
12 anos. É considerado o primei-
ro palhaço negro do Brasil e,
segundo o pesquisador Brício de
Abreu, o primeiro palhaço negro
do mundo. Ao longo da vida
atuou ainda como ator teatral,
cantor, instrumentista, composi-
tor e foi um dos principais atores
do cinema brasileiro que surgia.
Apresentava-se com o rosto pin-
tado de branco. Sua trajetória de
vida será enredo do carnaval da
Escola de Samba São Clemente,
do Rio de Janeiro, em 2009.
(Adaptado de http://www.acordacultura.org.br)
voce sabia que...ˆ
João Cândido, que aqui lê a anistia concedida, é expulso
da Marinha
Car
et
a/
Fundação Biblioteca Nacional
Projeto Memória42
por dentro da história “Os circos chegavam em lombos de burro e carros de boi, de
tempos em tempos, passavam pela minha aldeia, Pará de Minas
(MG), naquele tempo não era mais que uma aldeia. E a única atra-
ção que existia para a imaginação das crianças
eram precisamente aqueles circos que vinham
de longe em longe, com palhaços que per-
corriam as estradas, de costas, em cavalos
enfeitados, berrando: ‘Hoje tem espetáculo?
Tem, sim sinhô! O palhaço, o
que é? É ladrão de mulher!’”
(Benjamim de Oliveira, depoi-
mento para Brício de Abreu,
Esses populares tão desconheci-
dos, Rio de Janeiro, Editora R.
Carneiro, 1963)
� �O cinema foi inventado pelos
irmãos Auguste e Louis Lumière e
a primeira sessão pública ocor-
reu em Paris, em 28 de dezembro
de 1895? Cerca de seis meses
depois já acontecia a exibição
cinematográfica (chamado de
cinematographo) inaugural no
Brasil, por meio do projetor
omniographo, no Salão Paris, rua
do Ouvidor, Centro do Rio de
Janeiro, em 8 de julho de 1896.
Nas primeiras décadas o cinema
era mudo, isto é, sem som – e as
salas de exibição providencia-
vam música (ao vivo ou em gra-
mofones) para acompanhar as
imagens. A partir de 1927, come-
çaram a ser feitos os “filmes fa-
lados”. O cinema tornou-se rapi-
damente um veículo de massas,
p e r d e n d o
uma parte do
público com
o advento da
televisão nos
anos 1950.
voce sabia que...ˆ
Depois da revolta caí na penúria, no ódio. Quandohouve a epidemia espanhola [que causou 50 milhõesde mortes em todo o mundo], em 1919, estive a serviçodos navios ingleses que estavam aqui, no momento dalimpeza, desinfecção, enterrando ingleses.
João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910
“
“
paganda. Esse material pas-
sou décadas esquecido e,
antes que o assunto voltasse
a chamar atenção, a única
cópia da película foi destruí-
da num incêndio na Filmo-
teca do Museu de Arte Mo-
derna, São Paulo, em 1957.
Nos primeiros tempos de-
pois de sair da prisão, João
Cândido morou na rua Ipi-
ranga, no então bucólico
bairro de Laranjeiras, Zona
Sul carioca. Foi abrigado pe-
lo carpinteiro naval Freitas,
que lhe ofereceu um quarto.
Por essa época, o ex-marujo
ainda conseguia emprego na
Marinha Mercante e em bar-
cos particulares. Trabalhou
43João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
pressão de oficiais da Marinha
sobre os patrões. A persegui-
ção continuava, implacável.
Foi então que, em 1919, jun-
tando o dinheiro que restava,
o líder da Revolta da Chibata
comprou o modesto caíque
Três Marias para pescaperto
dali, no mercado do cais
Pharoux (Praça XV). Em con-
dição de pobreza, mas perto
dos elementos entre os quais
ficava mais à vontade (cais,
navios, marinheiros, o mar) e
no meio de sua gente, viveu
por quatro décadas, sem salá-
rio fixo e garantias sociais,
como os demais pescadores
pobres em todo o Brasil.
Em 1930, às vésperas do
movimento que levaria Getulio
sucessivamente em diversos
navios, voltando a percorrer
as águas. O trabalho excessi-
vo e pesado na carga acabou
por prejudicar sua saúde e
teve que baixar hospital. Sem
esquecer que, de todos esses
empregos, foi demitido por
Honestidade, a viga mestra
de João Cândido. Apesar
das necessidades que pas-
sava com a família, diante
da dificuldade para conse-
guir trabalho, João Cândi-
do, coerente com os princí-
pios de liberdade e justiça
que manteve ao longo da
vida, prosseguiu buscando
biscates e vendendo peixes
na praça XV. Ele recusou
convite para integrar os
Cravos Vermelhos, apeli-
do da polícia de repressão
política na ditadura Vargas
(1937–1945), perseguindo
aqueles que eram contra o
governo – conforme narrou
ao jornalista Edmar Morel.
Manifesto do Movimento dos Pescadores contra aPrivatização do Mar e dos Rios
“Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pescaartesanal como argumento para legitimar um investi-
mento maciço em aqüicultura de grande escala. De fatoexiste uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadaspelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calaré: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos comocausas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimen-to insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais,concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental edesrespeita a legislação.”
(Fonte: MOPEBA, 1/8/2008 http://www.politicaspublicasbahia.org.br/spip.php?article176)
A vida de hoje
Retratos de uma vida
Após sua expulsão da Marinha, JoãoCândido trabalhou como pescador nocais Pharoux (Praça XV, no Rio deJaneiro)A
cerv
o A
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Projeto Memória44
Vargas ao poder, João Cân-
dido foi detido pela polícia,
acusado de conspirar com
os integrantes da Aliança Li-
beral (formada por grupos
que apoiavam a candidatura
Vargas). Tal acusação era in-
fundada, fruto da imagina-
ção de um delegado. Mas o
calejado marujo percebeu
que estava por demais mar-
cado e qualquer pretexto
seria válido para importuná-
lo, 20 anos depois da Re-
volta da Chibata.
Após essa prisão extempo-
rânea, João Cândido mudou-
se para São João de Meriti, na
Baixada Fluminense – em
busca de um local mais retira-
do para preservar a ele e seus
filhos das perseguições, mas
também por dificuldades fi-
nanceiras, já que longe do
Centro a moradia era mais
barata. Passou a sair de casa
por volta das 23 horas para
pegar o trem da Central e
encarar o batente no entre-
posto de pesca de madruga-
da, enfrentando a cada dia
uma longa e penosa trajetória
de ida e volta. Morava num
local sem luz elétrica e calça-
mento e não tinha assistência
de saúde constante.
Deste modo, na vida do
ex-marujo, a batalha agora
era outra – semelhante a que
era (ainda é) encarada por
milhões de trabalhadores po-
bres. Desafios hoje enfrenta-
dos na sociedade brasileira,
como: trabalhadores sem vín-
culo empregatício formal,
sem direitos trabalhistas e
previdenciários, sistema de
transporte coletivo descon-
fortável e demorado, falta de
apoio sistemático à terceira
idade, moradias urbanas nas
periferias afastadas do local
de trabalho, precariedade de
saneamento (falta de energia
elétrica regularizada, esgoto,
água encanada e calçamen-
to), ausência de atendimento
de saúde adequado. Nessa
luta cotidiana e anônima, o
líder da Revolta da Chibata
também mostrou fôlego, efi-
ciência e capacidade de resis-
São João de Meriti, com 449.476
mil moradores (IBGE, 2000) é a
cidade com mais habitantes por
metro quadrado da América La-
tina? São 12.897,81 pessoas por
km2. Localizada na região do
Grande Rio e considerada “cida-
de dormitório”, fica na Baixada
Fluminense (RJ), distante 20 km
da capital do estado.
voce sabia que...ˆ
A situação dos 400 mil pescadores artesanais nopaís ainda hoje é difícil, devido à baixa renda,
pouca estabilidade, concorrência da pesca industrial degrande escala e degradação do meio ambiente. Em 2008
foi aprovado na Câmara dos Deputados projeto que conce-de direitos aos pescadores artesanais, como o de receber seguro-desemprego nas temporadas de interdição de pesca para preservaçãode pescados. Também tais pescadores começam a receber títulos decessão de uso das águas da União. A transformação da Secretaria daPesca em Ministério, em 2008, aponta a preocupação do governo emtratar da questão e expressa as lutas dos pescadores artesanais.
A vida de hoje
João Cândido passou a sobreviver da pesca
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45João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
tência. As formas de domina-
ção e desigualdade que ele
enfrentou na rebelião e na so-
brevivência podem ter mu-
dado, mas não desapareceram
e em boa dose permanecem
ainda hoje, apesar das con-
quistas e avanços de direitos
humanos e garantias sociais.
Mesmo depois da Revolta
da Chibata, João Cândido
não ficou totalmente afasta-
do das lutas políticas. Duran-
te o longo governo Vargas
(1930–1945), o ex-marujo te-
ve contato com as principais
correntes políticas, mas optou
nitidamente por uma, o inte-
gralismo. João Cândido en-
controu-se várias vezes com
Plínio Salgado, o líder
máximo dessa ten-
dência: vestiu a ca-
misa verde que ca-
racterizava o gru-
po, repetia a sau-
dação “Anauê!”
com o braço er-
guido. Tal opção
de João Cân-
dido era coe-
rente com as-
pectos de sua
O integralismo foi um movimento
de inspiração fascista criado no
Brasil sob a liderança do escri-
tor Plínio Salgado, em 1932, por
intermédio da Ação Integralista
Brasileira (AIB)? Extinguiu-se
após uma fracassada tentativa
de golpe armado contra o gover-
no Vargas seis anos depois.
Calcula-se que chegou a contar
entre seiscentos mil e um
milhão de adeptos de variados
segmentos sociais.
voce sabia que...ˆPor dentroda história
�Aliança Nacional Liberta-
dora (ANL) foi criada em
janeiro de 1935 sob hege-
monia do Partido Comu-
nista Brasileiro (PCB). Abri-
gava socialistas indepen-
dentes, democratas, cris-
tãos e nacionalistas de es-
querda, além de variados
setores sociais, chegando a
ser um movimento de mas-
sas de âmbito nacional,
com participação em sindi-
catos, em associações civis,
estudantes e militares. Ti-
nha um programa de refor-
mas profundas na socieda-
de, como reforma agrária e
controle do capital estran-
geiro. Foi colocada na ile-
galidade em julho e esteve
à frente do fracassado le-
vante de novembro do
mesmo ano, sob a liderança
de Luiz Carlos Prestes.
Plínio Salgado e a propaganda
integralista
Luiz Carlos Prestes
Projeto Memória46
vida: seja pela formação tra-
dicional militar e até militaris-
ta (que incluía a valorização
de uma autoridade forte),
seja pela presença massiva
de integrantes da Marinha
que o atraíam neste movi-
mento (sobretudo oficiais,
mas também marujos, além
de soldados e operários). O
líder da rebelião de 1910 par-
ticipou, em 1º de novembro
de 1937, da marcha integralis-
ta coordenada pelo escritor
Gustavo Barroso, com cerca
de 50 mil pessoas (inspirada
na Marcha sobre Roma co-
mandada por Benito Mus-
solini). Acabou decepcionan-
do-se pela “falta de iniciativa
e coragem” dos líderes inte-
gralistas e pela predominân-
cia de oficiais entre eles. Na
verdade, João Cândido teve
atuação periférica nestes
episódios.
Antes de aderir ao inte-
gralismo, João Cândido che-
gou a freqüentar de modo
esparso a Aliança Nacional
Libertadora, apenas assistin-
do a alguns comícios. Guar-
dou, sobretudo, a ligação
com Octávio Brandão, um
dos principais teóricos mar-
xistas da época, que escre-
veu sobre a Revolta da Chi-
Através do samba 2000 –
Trabalhadores do Brasil: a
época de Getulio Vargas, oGrêmio Recreativo Escolade Samba Portela, do Rio deJaneiro, abordou o períodoem que Getulio Vargas este-ve no poder. A censura, aindustrialização, os traba-lhadores e a era do rádio fo-ram tratados pelos composi-tores. As contradições dapaixão que despertou Getu-lio, também estão presentesna melodia.
O que cantaa história
Fascismo... Regime político instau-rado por Benito Mussolini na Itália,entre 1922 e 1943. Caracterizou-sepela ditadura e totalitarismo, ondehá subordinação dos indivíduosaos interesses do Estado, que pre-tende ter poderes absolutos sobrea vida política, social, cultural,religiosa e econômica do país, comperseguição aos opositores.
Nazismo... Regime político instau-rado em 1934, na Alemanha, porAdolf Hitler. Além das característi-cas fascistas, prometia prosperida-de ao povo alemão, a quem exalta-va a superioridade diante dos de-mais povos. Defendia também o an-ti-semitismo (ódio aos judeus) e oracismo e foi responsável pela mor-te de milhões de pessoas, sobre-tudo nos campos de concentração.
Comunismo... O comunismo tem vá-rias tendências e definições, maspode ser compreendido por umconjunto de propostas sociais, po-líticas e econômicas para a im-plantação de uma sociedade semclasses sociais. Indústrias, terras emeios de produção deixariam deser privados – ter um dono –,transformando-se em bens públi-cos. No campo político, o comunis-mo defende, como objetivo final, aausência do Estado. Entretanto, associedades que se organizarambaseadas nessa ideologia, no sé-culo XX, caracterizaram-se por terum Estado forte.
Na ponta da língua
Marcha integralista, em 1937, reúnecerca de 50 mil pessoas
47João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
bata em seu livro O Caminho
(1950). No campo das es-
querdas surgiram outras ini-
ciativas de se escrever a his-
tória da rebelião dos ma-
rujos. O médico Adão Pe-
reira Nunes, militante comu-
nista, publicou clandestino,
sob pseudônimo de Bene-
dito de Paulo, o livreto A
revolta de João Cândido, em
1934, apreendido pela polícia.
Ainda em 1934, no mês de
outubro, o humorista Apa-
rício Torelly, conhecido por
Barão de Itararé, publica em
seu jornal de orientação co-
munista, Folha do Povo, uma
série de pelo menos dez ca-
pítulos do folhetim intitula-
romper a produção. E seria
por esse motivo que colocou
na porta da redação do jornal
a placa: “Entre sem bater”.
Fora da Marinha, João
Cândido buscou estruturar
família. Foi casado três vezes
e ficou viúvo nos dois primei-
ros matrimônios (com Ma-
rieta e Maria Dolores). Teve 11
filhos, dos quais dois são
vivos e moram no Rio de Ja-
neiro, Arnaldo e Adalberto
(Candinho), ambos da tercei-
ra esposa, Ana do Nasci-
mento. Ela foi a mais longa
ligação afetiva do marujo:
foram casados durante 39
anos, até o falecimento dele.
Durante muitas décadas
não era fácil escrever sobre
João Cândido. Alguns jornais
e revistas publicavam de vez
em quando matérias sobre
do A insurreição dos mari-
nheiros de 1910, valorizando
a atitude dos rebeldes. O
humorista foi seqüestrado e
espancado por oficiais da
Marinha, tendo que inter-
PERSEGUIÇÃO
Hélio Silva: Nos arquivos da Marinha não consta absolutamen-
te o nome de João Cândido, como se ele não tivesse existido.
João Cândido: Foi sonegado, foi sonegado mesmo.
HS: Mas pelo fato da sua exclusão ou por um outro fato?
JC: Pelo fato de haver tomado a posição que tomara na revol-
ta, pelo ódio. Muitos oficiais da Marinha não conseguiram
comandar o Minas Geraes, e eu tive o sobejo poder de dominá-
lo, fazer o que ele jamais faria na baía do Rio de Janeiro.
(Revista de História da Biblioteca Nacional – 01/04/06.
Trecho de entrevista com João Cândido feita em 1968.
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=962&pagina=4)
João Cândido com filhos e sua terceira esposa, Ana do Nascimento, em São João de Meriti, RJ.
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Projeto Memória48
ele. Porém, o ex-marujo saíra
de evidência e vivia na po-
breza e no ostracismo: as
décadas iam passando e a
constante perseguição de
oficiais da Marinha contra
quem escrevesse ou valori-
zasse o tema criou um véu de
silêncio em torno do persona-
gem. Mesmo que presentes na
memória coletiva de setores
da população, as lembranças
iam se diluindo. Salvo alguns
marinheiros, jornalistas, mili-
tantes políticos e amigos pes-
soais, poucas pessoas ainda
lembrariam de seus feitos,
praticamente desconhecidos
das novas gerações.
O adeus a velhos amigos
De seus companheiros de
revolta, que jamais o aban-
donaram, despediu-se em
1946, quando faleceu Fran-
cisco Dias Martins e, em
1954, de Marcelino Rodri-
gues, o das 250 chibatadas.
Em 1953, foi a hora de despe-
dir-se do encouraçado Minas
Gerais. João Cândido soube
pelos jornais que, depois de
43 anos e algumas reformas,
seria vendido como sucata,
já despojado de todos os
seus equipamentos.
Sobre o adeus, contou o
jornalista Aor Ribeiro: numa
João Belchior Marques Goulart,conhecido como Jango, nasceuem 1919 no Rio Grande do Sul, efoi o único presidente brasileiroa morrer no exílio, em 1976, noUruguai, impedido de retornar aoBrasil? Com a renúncia de JânioQuadros, Goulart, que era vice-presidente, assumiu o governoem 1961. Em janeiro de 1964,Jango assinou lei que limitava aremessa dos lucros das empre-sas estrangeiras para fora dopaís. Em 13 de março, participoude um comício que reuniu 200mil pessoas na Central do Brasil,em frente ao então ministério daGuerra, no Rio de Janeiro. Naocasião anunciou medidas parainiciar a reforma agrária, desa-gradando os grandes proprietá-rios de terras, além de anunciara estatização das refinarias depetróleo. Em 31 de março de 1964,por meio de um golpe de Estado,grupos civis e militares depuse-ram o governo eleito e assumi-ram o comando do país. A dita-dura civil militar durou de 1964 a1985: foi implantada a censuraaos meios de comunicação emuitos brasileiros resultaramcomo perseguidos, exilados, pre-sos e mortos. As eleições diretaspara presidente só foram resta-belecidas em 1989.
voce sabia que...ˆPor dentroda história
�O Almanhaque – O gaúcho
Aparício Torelly (1895–1871)
foi um dos mais famosos e
combativos humoristas do
Brasil no século XX. Publi-
cou em 1949 e 1955 o seu
Almanhaque (almanaque
da manha, sátira a essas
tradicionais publicações)
que se apresentava com o
patrocínio da Sociedade
Gráfica Ltda., cuja abrevia-
ção era SOGRA. O material
foi escrito, segundo o au-
tor, “sob a carinhosa e per-
manente vigilância das
exmas. autoridades fede-
rais e internacionais da or-
dem política e social”. Entre
seus “títulos” militares esta-
va o de Marechal, Almirante
e Brigadeiro do Ar-Condi-
cionado. O Barão de Itararé
(a batalha que não houve,
no Movimento de 1930)
definia a ditadura varguista
do Estado Novo como “o
estado a que chegamos”.
49João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
madrugada de março, sur-
preendeu João Cândido su-
bindo em um pequeno bar-
co, no cais do mercado e
rumando para o ancoradouro
onde estava parado o antigo
gigante. Beijou orgulhosa-
mente o casco enferrujado e
não conteve as lágrimas en-
quanto o acariciava.
sou por algumas mudanças.
O tema, abafado durante dé-
cadas, causava inquietação e
curiosidade – e o autor, Edmar
Morel, era jornalista conheci-
do, com o nome presente
desde a década anterior nos
principais meios de comuni-
cação. Daí que centenas de
notícias e críticas literárias
saíram em jornais e revistas
Homenagens em vida
Com a publicação do livro A
Revolta da Chibata, Editora
Irmãos Pongetti, em 1959, a
vida de João Cândido pas-
A luta pelos direitos de
cidadão acompanhou João
Cândido por toda a vida.
Certa vez comprou um
coco na quitanda e ao che-
gar em casa percebeu que
estava estragado. Voltou
para trocá-lo, o que foi re-
cusado pelo dono do esta-
belecimento. Inconforma-
do, avisou que ia à delega-
cia reclamar e dirigiu-se ao
ponto para pegar um ôni-
bus. Foi então atendido e
conseguiu trocar o artigo.
Naquela época, João Cân-
dido não podia contar com
o Código de Defesa do
Consumidor, aprovado em
1990. Atualmente, em to-
dos os estados existe o
Procon, órgão responsável
pela coordenação e execu-
ção da política de prote-
ção, amparo e defesa do
consumidor.
Retratos de uma vida
Edmar Morel e João Cândidoautografam A Revolta da Chibata paragráficos e trabalhadores queproduziram o livro
Primeira edição de A Revolta da Chibata
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arc
o M
ore
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Projeto Memória50
de todo o país, colocando o
ex-marujo no foco das aten-
ções, algo que só havia ocor-
rido na época da rebelião,
quase meio século antes.
A segunda edição de A
Revolta da Chibata foi lança-
da em 1963, em pleno gover-
no João Goulart. Entre 1958 e
1964, o Brasil viveu clima de
liberdade democrática que
possibilitou a ampliação de
manifestações em vários se-
tores da sociedade. João
Cândido, que continuava a
vender peixes na praça XV,
recebera diversas vezes
Edmar Morel, prestara de-
poimentos e esclarecimen-
tos. Agora o Almirante Negro
considerava o livro como
“minha história” e literalmen-
te assinou embaixo, partici-
O ministério da Previdência Social lançou em abrilde 2008 a cartilha Idoso – Cidadão Brasileiro:
informações sobre serviços e direitos – Destinada aosaposentados com mais de 60 anos, apresenta os serviços
e políticas do governo voltados à terceira idade. Como JoãoCândido, (ainda que por razões diferentes) muitos brasileiros aindaenvelhecem sem direito à aposentadoria. E muitos trabalharam duro avida inteira. Entretanto, por atuarem por conta própria, ou não teremsido registrados pelos patrões, acabaram ficando excluídos. A situaçãocomeçou a mudar a partir da Constituição de 1988, quando todos, dacidade e do campo, acima de 65 anos e que não tinham nenhuma fontede aposentadoria, passaram a ter direito a receber mensalmente dogoverno federal um salário mínimo, por intermédio do Benefício dePrestação Continuada de Assistência Social (BPC). Para mais informa-ções sobre a Cartilha do Idoso e aposentadorias, o governo federal dis-ponibiliza o telefone 135 ou o site www.previdencia.gov.br.
A vida de hoje
Edmar Morel e João Cândido autografam a 2a edição de A Revolta da Chibata, no IV Festival do Escritor Brasileiro. Abaixo à esquerda, João Cândido, ao lado deseu filho Adalberto Nascimento Cândido (Candinho), faz sua única viagem aérea
para receber uma homenagem
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51João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
pando de sessões de autó-
grafos junto com o autor. Na
noite de autógrafos dessa
edição, no IV Festival do Es-
critor Brasileiro, o velho ma-
rujo foi cumprimentado por
escritores como Jorge Ama-
do, Clarice Lispector, Vinicius
de Morais, Rubem Braga e
Manuel Bandeira.
Na mesma noite, quando
autografava livros, o líder da
Revolta da Chibata viu che-
gar um grupo barulhento e
empolgado de jovens mari-
nheiros fardados que, can-
tando o Cisne Branco, joga-
ram os gorros para o alto gri-
tando o seu nome.
Mesmo voltando a ser re-
conhecido por sua história,
João Cândido não estava
livre de sentir na pele o pre-
conceito. Como a noite de
autógrafos em 1963 foi até
tarde, o velho marujo resol-
onde foi recebido pelo prefei-
to, vereadores e autoridades
locais, o mesmo ocorrendo em
Cachoeira do Sul. A Assem-
bléia Legislativa gaúcha con-
cedeu-lhe pensão de um salá-
rio mínimo, com apoio do en-
tão governador Leonel Brizola
(PTB) que, entretanto, cance-
lou o encontro que teria com o
marujo, em virtude dos protes-
tos de oficiais da Marinha.
Logo a seguir, o governadorveu pernoitar perto dali, no
Centro da cidade: passou por
dez hotéis e em todos foi re-
cusado, sob pretexto de falta
de vaga. O impiedoso racis-
mo continuava presente na
sociedade brasileira. Depois
das tentativas, foi aceito no
pequeno Hotel Globo, na rua
Riachuelo.
Entre as homenagens que
recebeu, o marujo gaúcho foi
ao Rio Grande do Sul, em sua
única viagem aérea, para uma
sessão promovida pela Socie-
dade Floresta Aurora. Na oca-
sião, retornou a Rio Pardo
João Cândido passou os últimosanos de sua vida em sua casa, emSão João de Meriti
por dentro da história A censura prévia esteve imposta a todos os jornais, rádios, esta-
ções de tevê, bem como ao teatro, música e cinema, até 1977.
Deste ano até o fim da ditadura em 1985, ainda vigorou a perse-
guição (oficial ou oficiosa) às expressões culturais, cujos autores
ou produtores poderiam sofrer processo e prisão. Sem contar os
atentados à bomba praticados por grupos paramilitares contra
entidades políticas e culturais (como Associação Brasileira de
Imprensa –(ABI) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e con-
tra bancas de jornais entre fins dos anos 1970 e início dos 1980.
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Projeto Memória52
O hábito de leitura
João Cândido, pobre, perse-
guido e filho de escravos nu-
ma sociedade desigual, sem-
pre demonstrou interesse pela
leitura. Era leitor ávido e aten-
to: sabia escrever, falava bem
espanhol e grego, além de ter
noções de inglês e francês. O
escritor João do Rio, depois
de entrevistá-lo, ficou bem
impressionado: “É um homem
imensamente inteligente, com
Quantos são os leitores no Brasil?
É comum a referência ao pouco hábito de leitura noBrasil. Existem dados diferentes sobre o assunto.
Para a Câmara Brasileira do Livro (CBL), cada brasileiro liaem média 1,8 livros por ano em 2007. Quantidade conside-
rada baixa para a média de outras localidades: cinco livros por habitan-te nos EUA e, de cinco a oito na Europa, variando em cada país. Dos189 milhões de brasileiros, 26 milhões (14%) são considerados leitoresativos (mais de três títulos por ano), sobrando, portanto, 163 milhões(86%) sem esse hábito.
Já a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – encomendada aoInstituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) peloInstituto Pró-Livro do Ministério da Cultura (MINC) em 2008 – chegouà conclusão de que o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano.Segundo esses dados, 55 % da população são leitores, enquanto 45 %foram classificados como não-leitores. Porém, ambas as pesquisasapontam que a leitura vem aumentando no Brasil, em comparação alevantamentos anteriores.
A vida de hoje
João Cândio lê à luz do lampião
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Bib
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do estado do Rio de Janeiro,
Roberto Silveira (PTB), rece-
beu João Cândido e entregou-
lhe um auxílio financeiro para
que pudesse terminar a cons-
trução de sua nova casa, em
Coelho da Rocha, também em
São João de Meriti.
Em 1959, ao completar 79
anos de idade (dos quais 40
como pescador artesanal),
com os filhos criados, João
Cândido enfim parou de tra-
balhar e desejou passar os úl-
timos anos usufruindo de sua
modesta casa que ficara pron-
ta, ainda que no alto de um
barranco, sem calçamento e
luz elétrica. Foi procurado por
emissoras de televisão: conce-
deu entrevistas e compareceu
aos estúdios de gravação.
53João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
uma inteligência muito supe-
rior à de vários sujeitos que
passam por notabilidade”.
Surgiram referências ao
líder da Revolta da Chibata
como iletrado: sem instrução,
analfabeto, semi-analfabeto,
entre outros. Seja por seus
adversários, do ponto de vis-
ta conservador, para desqua-
lificá-lo, seja, ao contrário,
por seus admiradores para
valorizar a autenticidade de
sua condição popular.
As supostas provas de seu
analfabetismo são discutíveis.
O fato de ser negro no perío-
do Pós-Abolição não o colo-
ca automaticamente na con-
dição de analfabeto, o que
seria repetição de surrados
preconceitos. Sua dificuldade
na escrita se explica pela
amputação da falangeta de
seu dedo indicador direito,
durante o serviço na Marinha.
O jornalista Edmar Morel tes-
temunhou que a caligrafia do
marujo era ruim e que o trau-
ma no dedo o atrapalhava.
Mas ainda assim, João Cân-
dido participou ao lado do
escritor de várias noites de
lançamento e um de seus au-
tógrafos está guardado na
Fundação Biblioteca Nacio-
nal (RJ). Há muitos registros
de que João Cândido escre-
cionando-se a respeito. Esteve
na redação da Gazeta de
Notícias, em 1913, para fazer
uma correção na publicação
de suas memórias, do mesmo
modo que em entrevista ao
jornal O Dia, em 1959, criticaria
com clareza autores como
Vivaldo Coaracy e o almirante
Luis Autran de Alencastro
Graça que investiam contra
ele. Anote-se, ainda, que ne-
nhum de seus filhos ficou sem
alfabetização, como assinalou
a filha Zeelândia.
veu bilhetes e cartas e não
consta que tenha pedido
ajuda para tal.
Quanto à leitura, as referên-
cias são numerosas: desde a
foto em que aparece lendo o
decreto de anistia no Diário
Oficial, durante a revolta, às
anotações de sua ficha no
Hospital dos Alienados sobre a
leitura diária de três jornais,
hábito, aliás, que manteria nos
últimos anos de vida, quando
lia diariamente, na Baixada
Fluminense, o Correio da
Manhã. Em sua mesa de cabe-
ceira sempre havia livros, em
geral emprestados por ami-
gos: romances policiais, a
Bíblia e obras do nacionalismo.
João Cândido sabia de tudo
que se escrevia sobre ele, posi-
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PD
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JB
Até o fim de sua vida,João Cândidodedicou-se à leitura.Na imagem, detalheda cômoda em seuquarto, com livros ejornais
Projeto Memória54
Ditadura rima com
censura
Com a ditadura civil-militar
implantada a partir de 1964, o
nome de João Cândido não fi-
cou mais em evidência, ao
contrário, era perigoso men-
cioná-lo. Tanto que ele conce-
deria de forma clandestina o
depoimento ao Museu da
Imagem e do Som, em
1968. Edmar Morel
teve seus direitos
políticos cassados e
não pode mais so-
breviver da profissão
de jornalista devido,
sobretudo, à perse-
guição de oficiais da
Marinha.
Últimos momentos
Sempre morando na casa
nova (arejada, limpa, orde-
nada e com uma varanda
onde gostava de ficar), em
rua de terra batida, cercado
de filhos e netos, o líder da
Revolta da Chibata tornou-se
evangélico e freqüentava re-
gularmente os cultos na Igreja
Metodista do Brasil, em São
João de Meriti. Em sua mesa
de cabeceira acumulavam-se
livros, papéis, recortes de jor-
nais e outros materiais que ele
constantemente lia.
Os pulmões, enfraquecidos
pela antiga tuberculose e pelo
hábito de fumar, levaram o ex-
marujo a ser internado às pres-
sas num precário hospital pú-
blico. Diagnosticaram câncer
em estado avançado e, nesta
mesma noite, 6 de dezembro
de 1969, falecia o líder da Re-
volta da Chibata, aos 89 anos.
Ainda assim, não deixaram seu
corpo em paz. Apesar de ser
uma típica “morte de causa
natural”, enviaram-no para
autópsia. A morte foi noticiada
nos principais jornais, mas ao
enterro compareceram poucas
pessoas. Vivia-se um dos pe-
Estou no fim da vida. Pobre e doente. Masrepetiria tudo que fiz, se a Marinha, mais umavez, precisasse de mim.
João Cândido em entrevista ao jornal O Dia, 21/12/1958
““
João Cândido em suacasa, em São João deMeriti.
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55João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
ríodos mais violentos da dita-
dura, com perseguições, pri-
sões e assassinatos.
O medo pairava no ar. No
sepultamento estavam apenas
familiares, o pastor Lucas
Manzon da Igreja Metodista e
um pequeno grupo de jornalis-
tas dirigentes da ABI. Chovia
Almirante Negro, por Aurora,
esposa de Edmar Morel, foram
carregadas pelo temporal. Um
grupo de policiais à paisana
vigiava o local e fotografava
ostensivamente os presentes.
O autor do livro A Revolta da
Chibata pronunciou apenas
uma frase à beira do túmulo:
“Adeus, João Cândido, você
dignificou a espécie humana”.
torrencialmente; no céu, espo-
cavam relâmpagos, a lama do
cemitério grudava nos sapa-
tos, as águas encharcavam a
todos. As chuvas do verão ca-
rioca, que ainda hoje paralisam
a cidade, acentuavam a deso-
lação do momento. As únicas
flores levadas no enterro do
À frente, segurando o caixão, o filhocaçula Adalberto Cândido e ojornalista Gumercindo Cabral (depaletó) e, atrás deste, parcialmenteencoberto, Edmar Morel
Em meio de todas as tristezas de sua vida humilde e traba-lhosa, das perseguições e dos tormentos que passou, teve JoãoCândido pelo menos o consolo de uma longa vida, que lhe per-mitiu, já octogenário, ver que há no Brasil de hoje quem o vejacom outros olhos, com alguma simpatia e compreensão.
Historiador, jornalista e teatrólogo Raimundo Magalhães Jr., em artigo no Diário Carioca, 13/9/1963
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Edmar Morel, biógrafo de JoãoCândidoA
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Projeto Memória56
Os compositores João Bosco e Aldir Blanc transfor-
maram em música, em 1975, a saga de João Cândi-
do e companheiros da Revolta da Chibata. Cantada
por Elis Regina, a letra sofreu várias modificações
impostas pela censura, o que não impediu que a
canção fizesse grande sucesso, até hoje. Comparan-
do as duas letras, percebemos as mudanças sofridas:
O Almirante Negro
(Letra original antes da censura)
João Bosco e Aldir Blanc
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas
Jorravam das costas dos nneeggrrooss
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração
De toda tripulação
Que a exemplo do mmaarriinnhheeiirroo gritava: não!
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!
Glória à farofa, à cachaça, às baleias!
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa História
.........................................Não esquecemos jamais...
Salve oo aallmmiirraannttee negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
(Mas, salve ...)
Salve o aallmmiirraannttee nneeggrroo
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais!
O Mestre-Sala dos Mares
(letra censurada e divulgada)
João Bosco e Aldir Blanc
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo ffeeiittiicceeiirroo
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi sau-
dado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas
Jorravam das costas dos ssaannttooss
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração
Do pessoal do porão
Que a exemplo do ffeeiittiicceeiirroo gritava, então:
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!
Glória à farofa, à cachaça, às baleias!
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa História
.........................................Não esquecemos jamais...
Salve o nnaavveeggaannttee negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
(Mas, salve ...)
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
O que canta a história
57João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
A memória de João Cân-
dido se mantém viva e
palpitante. Aproximando-se o
centenário da Revolta da
Chibata (2010), ampliam-se o
interesse e as manifestações
de pessoas e grupos que
reconhecem, na figura dele, a
imagem de suas próprias lu-
tas e esperanças. Ele tornou-
se um típico herói da plebe,
esquecido, atacado ou ques-
tionado por grupos mais con-
servadores e admirado pelos
movimentos sociais e outros
setores da sociedade que
buscam um país mais justo.
Relembrar João Cândido
hoje significa compreender
que seus gestos trazem à
tona problemas ainda inquie-
tantes para a sociedade bra-
sileira, como o racismo, a
desigualdade social, a violên-
cia cotidiana do Estado sobre
as camadas pobres da popu-
lação e a democratização das
Forças Armadas – sem es-
quecer o mito de que existe
uma tradição ordeira e pacífi-
ca na história do Brasil.
Movimentos contra a desi-
gualdade racial e em defesa
da consciência negra fazem
constantes referências ao lí-
6. JOÃO CÂNDIDO VIVE NAS MEMÓRIAS
C erca de mil marinheiros expulsos da corporação,presos ou perseguidos durante a ditadura civil-
militar (1964–1985), organizados em duas entidades,consideram João Cândido como Patrono dos Marinheiros
do Brasil. A Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia(UMNA, criada em 1983) e o Movimento Democrático pela Anistia eCidadania (MODAC, criado em 2002 por ex-integrantes da UMNA), aomesmo tempo em que lutam para conseguir os direitos de seus asso-ciados a uma reparação justa pelas arbitrariedades que sofreram,fazem o mesmo em relação a João Cândido e sua memória. Promovemdiversos atos nesse sentido, sendo os principais responsáveis pelainauguração da estátua do marujo nos jardins do Palácio do Catete.Alguns integrantes dessas associações conheceram pessoalmente JoãoCândido e o homenagearam em vida.
A vida de hoje
João Cândido recebe título postmortem de cidadão honorário
de São João de Meriti
der da Revolta da Chibata.
Seu rosto aparece reproduzi-
do em faixas, camisetas, li-
vros, agendas e pôsteres.
Uma exposição de fotos so-
bre a Revolta da Chibata foi
organizada por integrantes
desses movimentos e da Se-
cretaria Municipal de Cultura
do Rio de Janeiro, no saguão
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Projeto Memória58
da Central do Brasil, em 1989.
Atualmente existe o movi-
mento Conexão Zumbi –
João Cândido. Em 20 de no-
vembro de 2005 ocorreu
uma marcha com 10 mil parti-
cipantes em Brasília, ocasião
em que Zeelândia Cândido,
filha do marujo, foi recebida
pelo Presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva.
Ainda criança, ao sair do
meio rural em busca de me-
lhores condições de vida após
a Abolição, seguindo os pais
libertos, João Cândido faria
um movimento de migração
ainda hoje repetido por milha-
res de famílias pobres. A
questão agrária está nas ori-
gens de vários desafios da
sociedade brasileira atual, que
dizem respeito não só ao
campo, mas às cidades.
Uma estátua-monumento
de João Cândido, com três
metros de altura, foi inaugu-
Apesar de superado o sistema escravista, existempermanências de longa duração. Uma delas é o
chamado trabalho escravo, que ainda aprisiona milha-res de brasileiros em condições desumanas, sem liberda-
de de locomoção, sem direitos trabalhistas e remuneração.O Plano Nacional Para Erradicação do Trabalho Escravo, coordenadopela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em ação conjunta comoutros órgãos (Polícia Federal, ministérios da Saúde e do Meio Ambien-te, autoridades estaduais e entidades da sociedade civil, como aComissão Pastoral da Terra), tem resultado em medidas nesse sentido,como a elaboração de um Cadastro de Proprietários (“lista suja”) e aproibição de crédito oficial para os condenados por tal crime.
A vida de hoje
João Cândido existiu e seu nome jamais sairáda história do Brasil.
Crônica de Rubem Braga, Diário de Notícias, 23/12/1958
““
Uma estátua de três metros de alturahomenageia o Almirante Negro, noMuseu da República (Rio de Janeiro)A
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59João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
rada nos jardins do Museu da
República (Palácio do Catete,
Rio de Janeiro) em 22 de
novembro de 2007. De costas
para o palácio que abrigava a
sede do poder central, a está-
tua de João Cândido está
voltada para o mar. Ele agora
ocupa lugar destacado no es-
paço onde o marechal Her-
mes da Fonseca e outras au-
Entre as homenagens pós-
tumas, João Cândido mere-
ceu o título de Cidadão Ca-
rioca em 1984. Confirmava-se
o tributo daquela que ele
considerava sua “cidade má-
tria” e na qual viveu e freqüen-
tou durante 74 anos. Já não
era mais a capital federal dos
palacetes e cortiços que ele
poupou do bombardeio em
toridades tramaram a san-
grenta repressão ao movi-
mento. O líder da Revolta da
Chibata não tem mais por
monumento apenas “as pe-
dras pisadas do cais”, como
na música O Mestre-Sala dos
Mares. Um busto de marujo
também foi erguido em Porto
Alegre, no ano de 2001, no
Parque da Marinha.
Busto de João Cândido inauguradoem Porto Alegre
Ninguém mais do que esse lutador negro mos-trou aos brasileiros que todos os sacrifícios se jus-tificam no combate pela dignidade básica dohomem: o direito inalienável de ser respeitado.
Escritor e crítico literário Antonio Candido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil –
A Revolta da Chibata, Teatro Popular União e Olho Vivo
“
“
Posse da terra. A concentração da propriedade fun-diária, herdada dos tempos coloniais e com perfil
modificado em diversas conjunturas, permanece emdoses altas: 1,6% dos proprietários controlam 47% das
terras do país, segundo dados do Instituto Nacional de Co-lonização e Reforma Agrária (INCRA). As grandes propriedades (áreasuperior a 2 mil hectares) são responsáveis por apenas 2,5% dosempregos gerados no campo. Daí resultam em torno de 4 milhões defamílias de trabalhadores sem-terra no Brasil, de acordo com dados ofi-ciais do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003). Até início de2008, o governo federal informou que existiam 824.483 famíliasassentadas. Portanto, mais de 3 milhões de famílias pobres rurais aindaaguardam pela terra prometida. Pelos dados do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE), existem 120 milhões de hectares de ter-ras improdutivas e mais 130 milhões de hectares de terras devolutas.Diante desse quadro, surgem iniciativas como os movimentos de tra-balhadores sem-terra, que buscam soluções para o problema.
A vida de hoje
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Projeto Memória60
1910, mas ainda guardava
lembranças e traços da pre-
sença do gaúcho que chega-
ra aos 14 anos, sozinho, para
ser grumete. Também São
João de Meriti, onde o maru-
jo morou por quatro décadas,
concedeu-lhe o mesmo título.
Nas telas e palcos
Ainda não existe um filme de
longa-metragem sobre a
Revolta da Chibata, mas três
curtas já circularam em salas
de exibições: o documentá-
rio/ficção João Cândido, um
Almirante Negro, 1987; João
Cândido e a Revolta das Chi-
batas, 2004, documentário;
Memórias da Chibata, de
2005, ficção.
No teatro, o Grupo Mam-
bembe, de Minas Gerais, en-
cenou em vários estados, du-
rante a ditadura (em 1983), a
peça musical A Revolta da
Chibata. E, desde 2001, o gru-
po Teatro União e Olho Vivo
(TUOV), de São Paulo, já fez
mais de mil apresentações de
João Cândido do Brasil – a
Revolta da Chibata em mui-
tas partes do país. O União e
Olho Vivo tem quatro déca-
das de experiência em apre-
sentar teatro para popula-
ções que não estão acostu-
madas a freqüentá-lo, fazen-
do exibições nas ruas, praças,
periferias e, também, em sin-
dicatos, associações de mo-
radores e movimentos so-
ciais, além dos teatros con-
vencionais. Os integrantes
João Cândido e a Revolta da Chibataforam tema de inúmeras publicações.
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61João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
desse grupo cênico verificam
que muitas das pessoas que
assistem à peça nunca ti-
nham visto uma apresenta-
ção teatral antes.
O líder da Revolta da Chi-
bata mereceu, em 2006, ou-
tra homenagem póstuma: a
Medalha Chico Mendes de
Resistência, do Grupo Tortu-
ra Nunca Mais, entidade
criada para garantir os di-
Camisa Verde e Branco (SP),
no Carnaval de 2003, desfilou
com enredo mais claro: A re-
volta da chibata. Sonho, co-
ragem e bravura. Minha His-
tória: João Cândido, um so-
nho de liberdade. Em ambos
os casos, milhões de brasilei-
ros puderam assistir, ao vivo
ou pela televisão, a saga dos
marujos de 1910.
reitos dos cidadãos tortura-
dos durante a ditadura civil-
militar de 1964 e para de-
nunciar e investigar os cri-
mes praticados no período
pelas forças repressivas, co-
mo os “desaparecidos” po-
líticos e, ainda, para lutar
pela defesa dos Direitos Hu-
manos na atualidade.
Duas escolas de samba já
desfilaram na avenida usando
a Revolta da Chibata e João
Cândido como temas: a Uni-
ão da Ilha (RJ), em 1985, com
o enredo descaracterizado
por pressão de oficiais da
Marinha, embora exibisse um
carro alegórico com enorme
busto de João Cândido, não
citava seu nome nem uma
vez no samba; já a escola
Nome de escolas
E m São João de Meriti, onde o líder da rebelião de1910 morou durante 39 anos, foi inaugurada uma
escola CIEP (Centro Integrado de Educação) com o nome deMarinheiro João Cândido. Há também a Escola Marinheiro JoãoCândido, no bairro de Santa Cruz, município do Rio de Janeiro.
A vida de hoje
Grupo Teatro Olho Vivo: mais de milapresentações sobre João Cândido e aRevolt a da Chibata.
Chico Mendes, por sua atuação ao lado de outrosseringueiros e, também, com os índios, tornou-
se um símbolo mundial na mobilização em favor dajustiça social, preservação do meio ambiente e defe-
sa da Amazônia? O conflito entre as propostas e lutasde Chico Mendes e os interesses dos que defendem a devastaçãodas florestas (e expulsão de povos que nela habitam) causou seuassassinado no Acre em 1988.
A vida de hoje
O Grupo tortura Nunca Mais fezhomenagem post mortem ao líder daRevolta da Chibata, por meio daMedalha Chico Mendes de Resistência
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Também nas vozes da po-
esia de cordel a vida e o no-
me de João Cândido se per-
petuam.
No Brasil de antigamente
Vivia-se a lei do cão
O negro pobre não tinha
Direitos de cidadão
Privilégios não teria
Conceito ou cidadania
Liberdade ou posição...
E hoje só recordação
Deste herói negro ficou
Que a lei seca da chibata
Junto à marinha acabou
Os seus feitos e sua história
Todos guardamos em memória
A tua fibra e valor
(Trecho do cordel A Revolta
da Chibata, de Jota Rodrigues)
Alunos que não sabem ler
OBrasil ainda tem 2,4 milhões de analfabetos comidade entre 14 e 17 anos em 2008, dos quais 2,1
milhões (87%) freqüentavam a escola no ano anterior. Ouseja, estudantes que não sabem ler e escrever. Os dados são do IBGE(Síntese de Indicadores Sociais). Constata-se também que entre osjovens de 21 anos, 8% dos negros estão nas universidades, cifra quecorresponde a 24% entre os brancos da mesma idade.
A vida de hoje
Anistia. Os marujos lutaram pela justiça
Aanistia póstuma a João Cândido e aos demais mari-nheiros da Revolta da Chibata foi sancionada (Lei
11.756) pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula daSilva, em 23 de julho de 2008, no Palácio do Planalto. Em nota oficial,a presidência da República afirmou “reconhecer os valores de justiça eigualdade pelos quais lutaram os revoltosos”. O projeto, de autoria dasenadora Marina Silva (PT/AC) e do ex-deputado Marcos Afonso(PT/AC), fora aprovado no Senado por unanimidade e, também damesma forma, na Câmara dos Deputados, em 13 de maio de 2008,data dos 120 anos da Abolição da escravatura. Não houve qualquer crí-tica ou restrição da parte de representantes de todos os partidos.Aprovado pelo Senado também de modo unânime, ainda tramita naCâmara projeto do senador Paulo Paim (PT/RS) que inscreve o nome deJoão Cândido no Livro dos Heróis da Pátria.
A vida de hoje
De lá para cá muito cresceu a consciência dos direitos hu-manos, fazendo com que um homem não possa prevalecer-se de sua posição superior para se tornar senhor e amo deseu subordinado. Afinal, já escreveu Nietzsche que a revol-ta é a nobreza do escravo, por isso mesmo, sendo legítimae justa a repulsa contra a tirania e os abusos do poder.
Jurista e sociólogo Evaristo de Moraes Filho, da Academia Brasileira de Letras, no prefácio ao
livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata
“
“62 Projeto Memória
63João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos
ALMEIDA, Sílvia Capanema P.
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ano II, n. 27, Duetto Editorial, p.
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Bibliografia básica
Fu
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Bib
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acio
nal
Projeto Memória64
1880 – Nasce na fazenda Coxilha
Bonita, em Encruzilhada do Sul,
atualmente município de Dom
Feliciano, RS.
1895 – Aos 14 anos, entra para a
Escola de Aprendizes de Mari-
nheiros do Rio Grande do Sul.
1904 – Interna-se no Hospital da
Marinha para tratamento de
tuberculose.
1910 – É enviado à Inglaterra
para conduzir o encouraçado
Minas Gerais ao Brasil. Lidera a
Revolta da Chibata, contra as
punições corporais na Marinha
de Guerra. É preso e sobrevive a
tentativa de assassinato na Ilha
das Cobras.
1911 – É internado no Hospital
Nacional de Alienados, na praia
Vermelha, no Rio de Janeiro (RJ).
1912 – Volta à prisão e é absol-
vido em seu julgamento, em 29
de novembro.
1913 – Emprega-se no veleiro
Antonico. Conduz a embarcação
dos portos do Sul do país ao Rio
de Janeiro como comandante.
No mesmo ano, casa-se pela pri-
meira vez na Igreja Nossa Se-
nhora da Glória, em Laranjeiras,
no Rio de Janeiro, RJ.
1930 – Muda-se com a família
definitivamente do Rio de Ja-
neiro para São João de Meriti, na
Baixada Fluminense.
1946 – Morre seu companheiro
de Revolta, Francisco Dias Mar-
tins, o Mão Negra.
1953 – Despede-se do navio
Minas Gerais, vendido como
sucata à Itália.
1961 – Volta à terra natal para
receber homenagem, cancelada
por ordem da Marinha.
1969 – Morre em 8 de dezembro,
no Hospital Getulio Vargas. É
sepultado no Cemitério do Caju,
no Rio de Janeiro. Deixa uma
herança de coragem e dignidade,
além de esposa e filhos.
2002 – A Senadora Marina Silva
e o ex-deputado Marcos Afonso
apresentam um projeto de anis-
tia post mortem a João Cândido
e seus companheiros da Revolta
da Chibata.
2005 – Acontece a “Marcha dos
10 Mil”, em que líderes e integran-
tes de movimentos pelos direitos
humanos e pela inclusão racial
rumam a Brasília reforçando o
pedido de anistia.
2008 – Em 23 de julho de 2008,
o Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sancionou a Lei 11.756, que
concede anistia post mortem a
João Cândido e outros marujos
participantes da revolta.
Cronologia
Fu
nd
ação
Bib
liote
ca N
acio
nal
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