CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO
UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA
Douglas Martins de Oliveira
ALIMENTANDO PERSPECTIVAS DE VIDA: contribuições de um curso de
panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens
em situação de acolhimento institucional
Americana
2016
Douglas Martins de Oliveira
ALIMENTANDO PERSPECTIVAS DE VIDA: contribuições de um curso de
panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens
em situação de acolhimento institucional
Dissertação apresentada à Comissão Julgadora do
Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação sob a orientação da Professora Dra. Fabiana
Rodrigues de Sousa.
Americana
2016
Oliveira, Douglas Martins de.
O46a Alimentando perspectivas de vida: contribuições de um curso de
panificação industrial na promoção da revinculação familiar de
crianças e jovens em situação de acolhimento institucional / Douglas
Martins de Oliveira. – Americana: Centro Universitário Salesiano de
São Paulo, 2016.
120 f.
Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.
Orientadora: Fabiana Rodrigues de Sousa.
Inclui bibliografia.
1. Acolhimento institucional. 2. Educação popular.
3. Educação sociocomunitária. 4. Revinculação familiar.
I. Título.
CDD 362.732
Catalogação elaborada por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539
Bibliotecária UNISAL – Americana
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pelo livre arbítrio, num desejo de levar a vida com mais fluidez e
amorevolezza. Obrigado meu eterno Herói por se fazer tão presente a cada alvorada!
À minha esposa Cláudia, pelo seu companheirismo que transcende uma relação
matrimonial, me encorajando a enfrentar os desafios e me apoiando com sua personalidade
marcante ou até mesmo num belo sorriso, numa jornada histórica que nos acomete desde o dia
que eu a conheci aos dias que passamos e passaremos juntos!
À professora Fabiana, minha orientadora, pela confiança na realização deste trabalho,
partilhando comigo sua atenção, seus conhecimentos além das prozas boas da vida,
proporcionando enriquecer os desafios num caminho que viria a ser descoberto e
experienciado, galgando assim meu crescimento.
Ao professor Severino a quem tive como exemplo pelos encantos de suas aulas que
contribuíram e me incentivaram nesta caminhada e que sempre levarei comigo sua simpatia e
sua visão poética da vida!
À professora Regiane, quando na qualificação tive o privilégio de poder contar com
suas contribuições que foram tão relevantes para a conclusão deste trabalho, apontando
caminhos que favoreceram elucidar a clareza das palavras numa interpretação simbólica do
contexto.
A todos os colaboradores do Lar Feliz, que sempre me acolheram e cada um de alguma
forma colaborou para que pudesse realizar meu trabalho!
A todas as crianças, jovens e familiares do Lar Feliz, pelos momentos vividos, por me
permitirem ensinar e aprendermos juntos.
Aos participantes deste trabalho, pela confiança e boa vontade, por abrirem o livro de
suas vidas me fazendo compreender suas histórias para que pudéssemos atingir nosso objetivo
de dialogar.
RESUMO
O presente estudo buscou analisar as contribuições de um curso de panificação industrial
realizado dentro de uma instituição de acolhimento (casa abrigo) para a promoção da
revinculação familiar. Consideramos pertinente ouvir os familiares que participaram deste
curso, buscando conhecê-los com mais afinco na expectativa de identificar suas considerações
valorativas, os significados e sentimentos que são atribuídos ao curso e ao contexto familiar,
tendo o alimento e a atividade alimentar como um fomento à revinculação e consolidação de
processos de ensino e aprendizagem. Para compreender a realidade do cenário no qual
estávamos envolvidos, destacamos recortes históricos da situação de acolhimento institucional
no país paralelamente ao desenvolvimento do terceiro setor. A pesquisa configurou-se como
estudo qualitativo tendo como sujeitos da pesquisa quatro famílias, constituídas por dois
casais e duas mães que aceitaram participar da pesquisa e que foram as vozes da entrevista.
As informações foram obtidas por meio de entrevista narrativa aplicada aos participantes, em
momentos particulares a cada envolvido, contendo perguntas abertas que foram transcritas e
analisadas posteriormente. Os resultados da pesquisa demonstram que a revinculação familiar
é alimentada no curso de panificação por meio de aprendizagens que envolveram uma nova
postura de consciência crítica diante de suas próprias vidas, ao relatarem a importância de
prezar pela boa convivência familiar e no relacionamento com outras famílias em situações
semelhantes, resgatando valores humanos como carinho, compaixão, alteridade, repensar
sobre suas atitudes e comportamentos, o prazer de estar e conviver em família, num sonho que
foi governado pelo desejo de tornarem-se pessoas melhores para si próprias e para seus
descendentes. Apontamos, ainda, que os princípios da Educação Sociocomunitária e da
Educação Popular fomentam novas possibilidades de uma educação humanizadora nos
abrigos para que seja possível realizar uma aproximação mais efetiva dos familiares,
favorecendo assim a revinculação familiar.
Palavras-chave: Acolhimento Institucional. Educação Popular. Educação Sociocomunitária.
Revinculação Familiar.
ABSTRACT
This present study aimed to analyze the manufacturing bakery course’s contributions,
performed inside a host organization (shelter) that promote family reintegration. It was
relevant to consider hear the relatives who participated in this course, trying harder to know
them, holping identify their valuative, meanings and feelings considerations attributed to the
course and the family context, presenting food and cooking practice as a reposition and
consolidation of teaching and learning processes. To understand the setting reality, we are
involved, it was needed to highlight historical moments about the situation of care institutions
in the country alongside the development of the third sector. The research configured as a
qualitative study, it take for subjects four families, they were formed by two couples and two
mothers who agreed to participate and they were the interview voices. Information was
gathered through interview applied to participants at particular points one at a time, with open
questions later transcribed and analyzed. The research’s results show that family reconnection
is fed in the baking course through learning, involving a new posture of critical conscience
toward their own lives, reporting the good cherish family life and relationships importance
with other families in similar situations, rescuing human values like affection, compassion,
otherness, rethink their attitudes and behaviors, the pleasure of being and living in the family,
a dream that was governed by the desire to become better with themselves and their
descendants. We point out also that the principles of socio-communitarian Education and
Popular Education foster new opportunities for a humanizing education in shelters so that it
would be possible achieve a more effective approach of the family, promoting this way,
family relinking.
Key-words: Institutional Shelter. Popular Education. Community Education. Family
Reintegration.
SUMÁRIO
MEMORIAL .............................................................................................................................. 8
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
1 - A EDUCAÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE HUMANIZANTE .............................. 16
1.2 - UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE O TERCEIRO SETOR .................................... 26
2 - A SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL ................................................ 29
2.1 - O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A REVINCULAÇÃO FAMILIAR ............. 36
2.2 - O ABRIGO PROJETO LAR FELIZ E O CURSO MÃO NA MASSA .......................... 47
2.2.1 - CONHECENDO O LOCAL E A EQUIPE DE TRABALHO ..................................... 55
2.2.2 - O AMBIENTE E O DESENVOLVIMENTO DO CURSO MÃO NA MASSA ......... 59
3 - PERCURSO METODOLÓGICO ....................................................................................... 62
3.1 - OBJETIVOS E NATUREZA DA PESQUISA ................................................................ 62
3.2 - CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA .................................. 65
3.3 - PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS: ...................................................... 67
4 - O SABOR DA VIDA... AO DEGUSTÁ-LA ...................................................................... 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 100
APÊNDICE A - CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA ..................................... 104
APÊNDICE B - TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS .................................................... 105
MEMORIAL
Escrever este Memorial me faz ir ao encontro comigo mesmo através de trajetórias
significativas que me fizeram decidir, escolher e enfrentar os caminhos. Nessa jornada tão
enriquecedora, trazemos na bagagem os nossos valores, grandes aprendizados realizados na
experimentação e na vivência, juntamente com um compartimento todo especial: a família.
Nasci em 18 de julho de 1984, segundo filho de Helena Martins de Oliveira e Sinésio
Sílvio Oliveira Rodrigues e irmão de Diego Martins de Oliveira. Mineiro da cidade de Poços
de Caldas - MG, local onde passei toda minha infância e adolescência, sempre rodeado de
amigos e pelos meus familiares onde sempre nos encontrávamos aos domingos para o
tradicional almoço na casa de meus avós.
Desde muito cedo tive contato com a sala de aula, minha mãe era professora de
Biologia e muitas vezes eu e meu irmão acompanhávamos o ambiente acadêmico. Como eu
gostava de ir para escola com ela, me orgulhava de ver minha mãe ali com os alunos. E em
casa ela sempre me ensinava, mas não era somente a ler e escrever, ela passava para mim a
tradição da família: a culinária! Sempre muito curioso ficava a seu redor quando ia cozinhar e
ela com toda sua paciência sempre me dava oportunidade de colocar a mão na massa, lembro
como se fosse hoje dos primeiros pratos que preparei.
Meu pai desenhista mecânico, foi e sempre será meu grande exemplo de hombridade, a
maneira como ele foi educado pelos meus avós, conferiu a ele a sua nitidez. Algo tão
encantador que me chamou a atenção desde pequeno, quis ser meu pai diversas vezes e
atualmente por não o ter tão perto de mim como gostaria, vejo que sou tão semelhante a ele no
lado pessoal e profissional.
Sei que meus pais nos criaram, refletindo em nós aquilo que eles eram e desejavam.
Frases de efeito sempre foram alimentadas e muitas vezes foram um de nossos alicerces
“meus filhos serão fortes, sadios inteligentes responsáveis e bonitos”, “tu te tornas
eternamente responsável por aquilo que cativas” 1, além de tantas outras que não me recordo
mais, que eram faladas para corrigir, educar e sonhar. Em muitas situações o silêncio e a
maneira de se expressarem facialmente já diziam tudo quando algo não estava saindo como
aquilo que eles consideravam correto.
1 SAINT-EXUPÉRY, Antoine. de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir. 1986. p. 68
Fomos o sonho e frutos de um amor advindo desse casal, em nosso lar, nunca
deixaram faltar amor, tínhamos a convivência, fazíamos nossas refeições procurando respeitar
os horários e com todos sentados à mesa. A escola era muito próxima da casa que morávamos
e a rua se tornou um ambiente de diversão e liberdade, aos finais de semana íamos visitar
nossos avós, percebíamos que havia até uma espécie de ritual, nossos pais caprichavam na
nossa aparência, meu pai como de costume sempre estava vestido socialmente e minha mãe,
com sua notável beleza, parecia estar mais radiante.
Meu irmão, outra figura marcante na minha vida, o qual eu tive e tenho o privilégio de
tê-lo como irmão. A diferença de idade é de aproximadamente um ano e meio, então podemos
viver grandes momentos juntos, pois a idade e a maturidade estavam bem próximas.
Convivíamos nos mesmos espaços, tínhamos os mesmos amigos, as mesmas brincadeiras,
enfim, ele sempre estava ao meu lado. Meus pais me criaram tendo ele como um espelho, pois
ele era o mais velho e a ele era dado um dever de cuidar e me proteger. Acredito que tínhamos
tantas liberdades e afetividade que não sentíamos isso como uma obrigação ou um dever, não
era um fardo era um grande prazer.
Esse prazer de tê-lo e admirá-lo, confesso que foi algo tão orgânico, simbólico ou
natural que seja involuntariamente tenho ele como um segundo pai. Se algum dia alguém me
perguntasse “se lhe fosse dado o poder de ser alguém quem você gostaria de ser?”
Responderia no ato: “O meu irmão Diego”. A irmandade que nos identificam ficará por toda
vida e quem sabe possamos multiplicar esse espírito de amor aos nossos futuros filhos e nas
pessoas que convivemos, deixando algo de bom para o mundo.
Toda minha vivência foi marcada por um tripé, no qual eu me sustentava, meu pai,
minha mãe e meu irmão. Os desejos dessas três figuras lapidavam a minha maturidade
fazendo acreditar num sonho de liberdade, confiança e coragem.
E então chegou a hora de escolher o caminho a seguir, terminei o segundo grau e optei
por fazer cursos técnicos ligados a Gastronomia, minha primeira professora chef de cozinha
foi Ana Cristina Maio, figura exponente de uma culinarista, a qual eu devo todo meu respeito
e carinho. As contribuições que ela construiu no meu desenvolvimento formaram em mim o
conhecimento necessário para que eu me tornasse aquilo que eu viria a ser um dia, um chef de
cozinha. Muitas vezes não damos a atenção necessária àqueles que passam por nós, mas
devíamos parar um pouco que seja e darmos credibilidade às simbologias do outro ser. Digo
isso porque minha formação foi incentivada por uma bela professora que acreditou no meu
potencial e alimentou meus sonhos.
Esta fase foi de grande importância para decidir a graduação juntamente com calorosa
contribuição do meu irmão que acreditava no meu potencial. Na visão dele teria que fazer
escolhas na vida e buscar fazer sempre o melhor, o melhor enquanto futuro trabalhador, o
melhor para as pessoas, o melhor para mim, enfim, deixava bem claro que essas escolhas
demonstrariam quem eu era, quais eram meus valores, quem sou eu afinal e o que quero.
Sempre procurando ouvi-lo e interpretando-o, deixei Poços de Caldas e fui morar em São
Paulo, em 2006, onde me graduei em Gastronomia pela faculdade Anhembi Morumbi.
O caminho para docência ainda estava um pouco distante, pois para ensinar era
necessário incorporar novos aprendizados e praticá-los. Então procurei galgar minha carreira
enquanto culinarista, em diversos setores da área de alimentos e bebidas, como restaurantes,
bistrôs, buffets, assumindo o posto de chef de cozinha de uma rede hoteleira. Nesses quatro
anos, pude adquirir grandes aprendizados que envolvem a carreira profissional, onde adquiri
experiência, conhecimento e habilidade. Comecei a obter maior clareza e certeza daquilo que
eu queria ser e daquilo que eu não desejo mais.
Como era meu desejo partir para docência, em 2010 iniciei minha especialização em
docência no Ensino Superior e então surgiu a oportunidade de ministrar aula na Universidade
Pinhalense de Ensino no curso Superior de Gastronomia e as oportunidades foram surgindo
em outras faculdades, em cursos técnicos, cursos livres.
A vontade de aprender, conhecer, superar obstáculos sempre esteve presente; então me
inscrevi no Mestrado em Educação na UNISAL em 2012, na expectativa de me tornar um
mestre. Nesta fase tive um grande exemplo e apoio do meu tio Dr. Antônio Carlos de Oliveira
Ruellas.
A princípio ingressar no Mestrado em Educação era algo além de minhas expectativas,
uma mistura de desejos que aos poucos foram emergindo a necessidade de mudanças
atitudinais, enfrentando as inseguranças comuns em situações diante do desconhecido.
Recordo-me em uma das minhas primeiras aulas a importância de ter atitudes de um
mestre e não apenas fazer parte de um mestrado almejando um diploma. Conviver com
professores e colegas de diversas áreas do conhecimento, foram galgando a multiplicidade dos
saberes e o prazer de estar junto com eles ao longo desses anos. As problemáticas dos temas
ou dos debates iam circunscrevendo minha postura e o anseio de novas descobertas. As aulas
foram fazendo parte da minha rotina e por diversas vezes me deparava nas madrugadas
afinco, ou em algum momento de descanso, procurando aprender um conhecimento novo, que
seria utilizado nos debates, na realização dos exercícios e para a construção desta pesquisa.
Descobri que incorporar novos aprendizados se torna algo maravilhoso, mas o desafio é algo
encantador.
Mais uma vez retomo a importância de prezar por um bom relacionamento, minha
esposa nesta fase foi crucial para a minha organização e na manutenção do equilíbrio. Por ela,
consegui concretizar esse trabalho e descobri em mim outros potenciais, no qual agradeço a
todos os instantes que estivemos juntos neste desafio. “Ser mais” como diria Paulo Freire,
acredito que possa ser encarado como um estilo de vida dando sentido a nossa existência que
perfaz numa relação humana e com o mundo.
Já morando em Jaguariúna, trabalhando também na Faculdade de Jaguariúna e com a
vida profissional bastante ativa, em 2013, fui escolhido para ser o professor responsável de
um projeto em uma instituição de acolhimento de menores que acabava de ser aprovado. O
projeto é um curso de Confeitaria e Panificação - Mão na Massa realizado na Instituição Lar
Feliz em Jaguariúna com atividades para os acolhidos e seus familiares. E deste curso nasceu
o meu projeto de mestrado que tem contribuído ricamente com o meu desenvolvimento como
docente e na esfera pessoal.
Os acontecimentos benéficos para meu crescimento não pararam, sendo professor da
Unipinhal e colaborando para o crescimento e qualificação do curso, fui convidado para ser o
coordenador do curso de Gastronomia assumindo o posto no início de 2015, não poderia
deixar de mencionar que nesta trajetória tive a oportunidade e o privilégio de convidar a fazer
parte da equipe a minha primeira professora a Chef Cristina para fazer parte da minha equipe
uma amizade que perdurou e trouxe bons frutos.
12
INTRODUÇÃO
A pesquisa “Alimentando perspectivas de vida: contribuições de um curso de
panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens em situação
de acolhimento institucional” está pautada no referencial da Educação Popular promovida por
Paulo Freire e outros educadores que consideram que a educação se efetiva por meio de
processos contínuos e permanentes de formação e pela intencionalidade de transformar a
realidade a partir do protagonismo dos sujeitos.
A ONG “Projeto Lar Feliz” foi constituída em 02 de maio de 2001 e no decorrer
desses anos passou por várias mudanças. Hoje oferece acolhimento institucional para crianças
e jovens por meio de medida protetiva de abrigo2. Eles são encaminhados pelo Juizado da
Infância e Juventude, em decorrência de abandono, negligência, maus tratos ou porque suas
famílias ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua
função de cuidado e proteção. Permanecem no local até que seja viabilizado o retorno ao
convívio com a família de origem ou, na sua impossibilidade, seguem para família substituta
(adoção). Essas crianças e jovens são encaminhados por diversos municípios de toda a região,
majoritariamente da cidade de Jaguariúna e de Santo Antônio de Posse.
Torna-se relevante destacar que sob a medida de proteção preconizada pelo Estatuto da
Criança e do adolescente (ECA) é fundamental a preservação dos vínculos familiares e da
provisoriedade da situação de abrigo, resguardando a história de vida das crianças e jovens
acolhidos, na valorização do afeto e no tratamento oferecido pelas instituições de acolhimento
na tentativa de reorganizar a estrutura familiar quando possível, além da participação da vida
na comunidade local, dentre outras definições constituídas na lei a fim de concretizá-las.
Diante do exposto, a meta do “Lar Feliz” é proporcionar um ambiente de família,
pautado pela convivência e fomentação do desenvolvimento humano, ofertando segurança,
confiança, aprendizados coletivos das relações sociais que são constituídas e nesse sentido,
busca ser mais do que um lugar institucional. Lá os acolhidos aprendem a viver em
comunidade, com ensinamentos cristãos, considerando que a vida deles é especial e
exercitando o respeito por eles mesmos e pelos outros. Para isso, desempenham atividades
com uma equipe de trabalho técnica qualificada para aconselhar, ensinar, educar, ajudar na
2 Medida protetiva é, portanto, diferente da medida socioeducativa, já que esta se destina a jovens que
cometeram atos infracionais perante as leis do Estado.
13
sua higiene diária e na alimentação adequada. Fato que a qualidade do atendimento prestado
aos acolhidos e de toda a manutenção, para que haja a existência da ONG prestando serviço
de acolhimento institucional, está diretamente correlacionada com a situação econômica e
social do país, além da credibilidade junto aos seus mantenedores.
A equipe de trabalho é composta por dez funcionários da área administrativa que
envolve diretores, coordenadores, psicólogos, assistentes sociais, assistentes administrativos,
que são responsáveis pelos departamentos de recursos humanos, compras e marketing. A área
operacional possui sete funcionários que atuam nos serviços gerais e manutenção do espaço
físico, além de trinta colaboradores que atuam como educadores sociais, apenas um professor
de musicalização e dois professores autônomos que desenvolvem as atividades de teatro e
culinária no curso de panificação e confeitaria.
As crianças e jovens, no abrigo, são preparados para a área espiritual, física e mental a
fim de se tornarem adultos independentes, com vidas frutíferas, o que possibilita
aprendizados, os quais implicarão em reintegração com as famílias envolvidas, no
desenvolvimento da educação, domínios técnicos, responsabilidades, desejos e sonhos que
perpassam o ser humano.
Dentre essas atividades há o curso de confeitaria e padaria. No dia 04 de maio de 2013,
foi realizado o lançamento oficial do curso de padaria e confeitaria intitulado “Mão na Massa”
elaborado e redigido, no ano de 2012, pela psicóloga da instituição Solange Wagner, com o
auxílio de patrocinadores. Para a execução desse projeto foi criada uma parceria com o curso
de Gastronomia da Faculdade de Jaguariúna que ficou responsável pela metodologia,
execução e certificação, tendo a mim como representante e professor das atividades.
O projeto inicial visava à produção de pão francês consumido diariamente pelos
acolhidos, à qualificação profissional dos jovens e seus familiares, bem como ao
fortalecimento dos vínculos familiares com a participação ativa dos mesmos na vida dos
acolhidos e na dinâmica da instituição de acolhimento. Como um dos responsáveis pela
execução e vinculação desse projeto, na qualidade de professor de padaria e confeitaria,
relacionando-me com as crianças e jovens da ONG e seus familiares, observei a necessidade
de exercitar outro olhar, mais humanizado, aos marginalizados pela sociedade.
Nesse contexto, a educação é percebida como elemento que permite ao ser humano
envolvido desenvolver protagonismo para construir e reconstruir seus caminhos. O alimento,
neste caso, é considerado como um grande facilitador de inserção de signos e símbolos, que
14
permitem a descoberta de si como sujeito, motivando ações humanas, aprendizagens e
geração de renda.
Alimentar perspectiva de vida implica atribuição dos sentidos, além de entendê-los nas
práticas pedagógicas, sociais e humanas como reflexos da sociedade que nela se formam,
espelhando a complexidade da dinâmica social e da interação humana. Conhecer tais práticas
e desvendá-las é fundamental para a tomada de consciência dos contextos sociais e decisivo
para que sejam efetuadas ações no sentido de superação motivacional e de conscientização.
A implementação da Gastronomia, no espaço da ONG Projeto Lar Feliz por meio do
curso de panificação e confeitaria, visa desmistificar representações que retratam a criança ou
jovem em acolhimento como alguém apenas digno de pena, sem futuro, como se a condição
de ser acolhido determinasse características sem possibilidade de transformação.
A formação do gosto alimentar, não se dá exclusivamente pelo seu aspecto nutricional.
A comida não é apenas uma substância alimentar, mas também um modo, um estilo e um jeito
de alimentar-se. Portanto, alimentar-se é um ato nutricional e comer é um ato social ligado a
usos, costumes, condutas, protocolos e situações. Logo os sentidos conotativos dados ao
alimento no prazer de comer, os desejos, a atividade de produzir o alimento, a partilha, entre
outros, elucidam um ato de comensalidade que se caracteriza como um dos elementos de
relação e interação humana, contribuindo com a identidade cultural de um grupo e uma
sociedade (SANTOS, 2005).
Neste caso, além de atender as necessidades fisiológicas vitais, o ato de comensalidade
incorpora uma ação de compartilhamento, solidariedade, união, diálogo e cooperação.
Fomenta uma atividade que passa a ser coletivizada, os prazeres e desprazeres geram emoções
que acabam fundando as simbologias para com o alimento e a necessidade de se relacionar.
Assim podemos argumentar que ensinar e aprender culinária, junto ao curso Mão na
Massa, é tão importante quanto qualquer outra atividade que favoreça a revinculação familiar,
a sua relevância reside nas simbologias criadas, bem como nos processos educativos que
favorecem a comunhão e a autoestima que estão diretamente correlacionadas com a
autoconfiança no desenvolvimento de atividades práticas e relacionais, além da partilha, não
apenas de um alimento ou de um momento onde todos executam uma refeição coletiva, mas
no desejo de galgar prazeres não mensuráveis de pertencimento, de vínculos e de novas
perspectivas de vida.
15
Com base no referencial teórico metodológico da Educação Popular e da Educação
Sociocomunitária, a observação participante e a entrevista constituíram-se como instrumentos
metodológicos apropriados para a investigação de processos educativos consolidados nas
relações estabelecidas por crianças e jovens participantes do Curso Mão na Massa, juntamente
com as simbologias e sentimentos que podem fomentar a revinculação familiar.
Assim, o primeiro capítulo aborda a concepção de uma educação como processo
humanizante, advindo de um estudo que busca elucidar a valorização do sujeito como ser de
dignidade e liberdade, agindo e aprendendo com seu contexto histórico social, visando uma
sociedade com um olhar mais humano. Além disso, aborda-se também nesse capítulo o
terceiro setor como uma oportunidade de ação no processo de acolhimento.
O segundo capítulo busca elucidar o contexto histórico da situação de acolhimento
institucional no Brasil, tratando de sua historicidade e momentos importantes que
colaboraram para a configuração da situação de acolhimento atual. Destacamos a importância
da família na questão da formação identitária de seus filhos a partir dos vínculos afetivos e as
questões dos processos que envolvem revinculação familiar. Por fim apresentamos a Ong
Projeto Lar Feliz no seu contexto histórico, suas atividades desenvolvidas e em especial ao
Curso Mão na Massa.
No terceiro capítulo, descreve-se o percurso metodológico escolhido para a realização
da pesquisa, ilustrando o processo para o desenvolvimento da pesquisa, sua tipologia,
temática, participantes, local e instrumentos de análise.
O quarto capítulo é destinado à interpretação e análise das entrevistas, destacamos a
voz dos participantes, suas convergências e divergências, seus sonhos, seus valores e suas
simbologias, permitindo assim conhecer uns aos outros, sendo o alicerce para nossa análise.
Nas considerações finais sintetizamos alguns recortes das falas dos participantes que
foram preponderantes para ilustrar o desejo dos familiares de recuperar a guarda dos seus
filhos, demonstrando a importância significativa de prezar pelos valores humanos com ética e
dignidade, alimentando novas perspectivas de vida.
16
1 - A EDUCAÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE HUMANIZANTE
“Eu sempre fui afastado do mundo [...] sempre fui sozinho, tudo que
eu faço é sozinho, nunca fui de fazer nada em grupo e o primeiro
lugar é aqui que estou tentado entrosar mais com o grupo”.
(Aílton)
Na ótica do cenário capitalista e de uma globalização que unifica apenas os interesses
de mercado, as condições de exclusão devem ser encaradas como uma situação-problema,
pois são tratadas como um determinante histórico, ou seja, uma situação comum de um
mundo de competições, onde não existem alternativas para problema dessa natureza a não ser
a aceitação. Contrapondo-se a essa percepção, Freire (2001), ao discorrer sobre a exclusão e
marginalização das classes populares e oprimidas, apresenta o conceito de situações-limites,
ou seja, situações que perpassam extremos e barreiras que precisam ser vencidas, pois estão
diretamente vinculadas à vida social e pessoal de grupos sociais como o composto por jovens
e crianças em situação de abrigo. Muitas vezes, a ingenuidade marca o enfrentamento dessa
situação, de forma que os envolvidos no processo a encaram como obstáculo que não
conseguem transpor, assumido assim sua fragilidade, medo e aceitação diante das condições
que lhes impuseram, por outro lado, existe a possibilidade de um posicionamento crítico que
poderá levá-los a assumir sua condição de sujeito, empenhando-se na superação deste cenário.
O enfrentamento das “situações-limites” parte de uma prática problematizadora e
libertária que se faz na interação entre sujeitos que vivenciam o contexto histórico, político e
social, buscando condições para superá-las, contribuindo diretamente com o desejo de uma
emancipação, pois essa prática se funda na crença do potencial criador do ser humano, na
medida em que este desenvolve diálogo consigo e com o meio, tornando-se assim um sujeito
do processo de construção social. Tal conceito perfaz uma visão holística do compromisso da
educação, configurando um imprescindível processo da unidade dialética de reflexão e ação,
mediada pela práxis em um diálogo problematizador que possibilita uma gradativa alteração
de contexto, no qual o indivíduo, na sua percepção ingênua ou inocente da realidade, passaria
para um estado de percepção crítica, podendo adquirir condições subjetivas de inserir-se no
mundo, engajando-se em compromissos de atuação na realidade (FREIRE, 1987).
Assim, a educação libertadora e problematizadora proposta por Freire (1987)
constituem na tomada de consciência para a construção de um novo ser humano,
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possibilitando a luta política contra a opressão, concebendo a educação como um dos
instrumentos de uma ação cultural libertadora. Portanto, existe um grande desejo de que
homens e mulheres possam sempre tornar-se sujeitos indagadores capazes de assumirem o seu
poder de atuação crítica. Essa seria uma das práticas voltadas para a inserção do ser humano
na história como sujeito e não objeto, conforme podemos identificar no próprio contexto
histórico-colonial de formação do nosso país e, posteriormente, marcado pela “cultura do
silêncio”.
Nos ideais da educação libertadora, o educador não se entrega ao modelo opressor e
fatalista, encara o educando, seja ele homem ou mulher, como agente de sua transformação.
Diz Freire (2000, p. 32) que: “Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a
vida, explorando os outros, discriminando os índios, o negro, a mulher, não estarei ajudando
meus filhos a serem sérios, justos, e amorosos da vida e dos outros (...)”.
As segregações históricas não cabem mais ao educador compartilhar, atuando como
sendo reprodutor desse modelo que legitima o discurso opressor ele estaria negando ao
oprimido sua condição histórica de ser agente de transformação e liberdade. Assim, a
“educação problematizadora” ou “educação para a liberdade” ocorre em uma relação
horizontal, onde educador e educando estabelecem diálogos, fomentando a consciência de que
não apenas estão no mundo, e sim com o mundo, buscando transformar a realidade.
Para Freire (1987, p. 40) “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela
que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado
do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”. A
diversidade, que engloba todo e qualquer indivíduo, independente de sua condição existencial
(estrutura física, psíquica e/ou emocional, cor, etnia, religião etc.), começa a mobilizar
diversos setores da sociedade, já que a luta pela aceitação do outro é travada por grupos
diferenciados, objetivando a incorporação de um pensamento libertador. Uma das
preocupações do autor estava voltada para a construção de ações práticas que inserissem o ser
humano como sujeito de sua realidade e de sua história, contrapondo-se ao modelo de
alienação.
A reflexão acerca da concepção de problematizar e libertar-se expressa a importância
da subjetividade, ou seja, a maneira como cada indivíduo atribui seu julgamento de valores e
símbolos perante sua leitura de mundo, julgando assim suas crenças, identidades,
simbologias, num momento que envolve a sua criticidade que perfaz num momento de
18
enfrentamento de novas descobertas, alimentando a capacidade de criar, sonhar e agir sobre
sua existência. Como seres conscientes de si, os humanos conseguem basicamente através da
linguagem, criar e recriar sua natureza, conferindo traços humanos no seu habitat e
transformando esse meio num espaço que constitui a história e a sua identidade. Assim o
homem e a mulher como agentes transformadores não são seres acabados e definidos, em sua
consciência crítica desejam transcender seus limites e superar seus desafios, fazendo escolhas
e enriquecendo seus desejos, conferindo o que o autor denominou como vocação ontológica
de transformar o mundo e não apenas adaptá-lo, constituindo um meio com características
mais humanas, aprendendo, assim, a se humanizarem (FREIRE, 1987).
A educação humanizadora visa a formar seres conscientes de si, na perseverança de
valer um mundo mais justo, quando se incorpora suas características humanas, formando uma
sociedade regada de atitudes solidárias, democráticas, com princípios de igualdade e
dignidade.
Para entendermos a questão da humanização, devemos trazer à tona a questão da
conscientização, isto é, a maneira como o sujeito se vê no mundo e como ele enxerga a sua
relação com diversos contextos sociais tão marcantes na sua contemporaneidade. A proposta
de Freire advém de buscar caminhos distintos frente às condições desumanizadoras, ou seja, a
humanização prevalece quando o meio se enquadra nas condições das ideias, sonhos, desejos
e autonomia dos sujeitos, configurando um cenário construído e transformado pelo próprio ser
humano. A desumanização propõe o oposto, nela o meio condiciona o ser humano, suas
vontades são aquietadas, não há um diálogo democrático, o indivíduo silencia-se em meio às
ordens, distanciando-se cada vez mais de si e dos outros.
Freitas (2004) afirma que somente o ser humano é capaz de se distanciar do mundo
para aprender a admirá-lo. Conscientemente propõe reflexões críticas sobre a realidade
objetivadas, numa práxis, ou seja, envolvendo atitude, prática, desafios do enfrentamento da
natureza humana. Assim o homem e a mulher alimentam sua conscientização que decorre de
uma criticidade e não apenas de uma espontaneidade. Configuram sua maneira de ser, além de
assumirem seu compromisso histórico com a atualidade e sua perspectiva de futuro que
deixará para futuras gerações. Dessa forma o ser humano passa a ser sujeito da criação de sua
história na relação com e no mundo.
Nesta concepção de educação humanizadora, além de tratarmos da conscientização
como uma forma de reflexão e conduta do ser, circunscrevem-se nessa concepção o
19
estabelecimento de valores simbólicos, a compaixão com o próximo, a busca por felicidade e
valores éticos, a importância do saber ouvir e do falar, estabelecendo dessa forma o diálogo.
Podemos observar que o trabalho de um educador está diretamente ligado à formação
humana e aos elementos que constituem a compreensão e dimensão da sua profissão,
superando o aspecto estritamente pedagógico. Freire (2002) destaca a preocupação de
assumirmos uma postura vigilante contra todas as práticas que sejam desumanizantes, fazendo
leituras críticas e analíticas das causas e consequências da degradação humana que se ocultam
por trás da pretensa fatalidade dos discursos da globalização hegemônica.
As fatalidades que assolam o processo de humanização estão sedimentadas na violação
dos direitos de grande parte da população infanto-juvenil, refletindo a marca e a distância
entre o mundo dos incluídos e dos excluídos. Falar em direitos humanos, direitos da criança e
do jovem torna-se essencial para tratá-los em sua condição de sujeito, acentuando-lhes sua
essência humana, ancorada nos princípios de liberdade e dignidade.
As condições sociais refletem julgamentos da ideologia neoliberal que modela valores,
atitudes e até mesmo políticas públicas. Logo, a sede por riqueza de bens materiais sustenta a
ideia de que não existem outras maneiras de agir no mundo longe da ótica do mundo
globalizado (ANTUNES, 2002). Esse modelo neoliberal deu luz ao manifesto de diversas
formas de controle, discriminação e opressão. Ou seja, é no contexto histórico-social que cada
vez mais novas formas de preconceito ou aceitação são somatizadas e encaradas como algo
possível.
Freire (2001, p. 86) destaca o papel do sonho e da utopia como forma de se contrapor
ao fatalismo neoliberal. “O meu discurso em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da
democracia é o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto de
ser gente, que o fatalismo deteriora.”
Ao tratarmos da educação libertadora é fundamental trazer à tona os estudos com
ênfase nas práticas sociais, como princípio educativo que se perfaz no relacionamento social
com desenvolvimento e identificações de valores. Para Oliveira e colaboradores (2014, p. 33),
as “práticas sociais decorrem de e geram interações entre indivíduos e entre eles e os
ambientes natural, social, cultural em que vivem”. Nesse processo relacional, criam-se raízes
que permitirão atuar na formação de identidades, conhecimentos e tradições que passam ao
longo dos tempos. Segundo a autora e seus colaboradores, o rompimento dessas raízes
permite criar novas ramificações que se conectam a outras problematizações de experiência,
20
de descobertas, possibilidades, enfim, permitir-se ao novo. Podemos dizer então que práticas
sociais são frutos de um processo que fomenta a conscientização, ao mesmo tempo, que
produz condições de desenvolvimento.
O estudo da educação em práticas sociais surge na busca de desvelar a complexidade
de processos educativos que se desenvolvem nessas práticas. As práticas sociais são
constituídas por atores que participam de grupos sociais, ou seja, no encontro direto de
princípios de relações sociais que configuram uma determinada sociedade em suas maneiras
de agir, comportar, comunicar e significar o contexto histórico na construção ativa desse
momento, formando-se ordem de valores que contribuíram para a sua existência. Demandam
uma ação ativa que relata a sua existência. Muitas dessas práticas são construídas nos desejos
de mudanças para que fomentem novas atribuições de valores humanos, como respeito,
direito e ética nas relações. Outras pressupõem a configuração da sua natureza, assim são
formadas as crenças, ações culturais, ações políticas, a espontaneidade ou restrições, expondo
os desejos e interesses sociais (OLIVEIRA et al, 2014).
Desta forma, a educação assume uma conotação significativa junto aos familiares de
cooperação na formação de um indivíduo, de integração nos grupos, de aceitação das
diferenças individuais e na valorização de cada pessoa, de convivência e incentivo na
aprendizagem por meio das relações. Uma delas seria a capacidade do indivíduo fazer
escolhas possibilitando a quebra dos mecanismos de alienação social, ajudando-o a
compreender a sua realidade e a refletir sobre ela.
O educador assume, assim, um papel importantíssimo de estimular essa formação ativa
no educando. As inquietações que perfazem o aprendizado na busca de soluções para
determinados problemas e enfrentamento das atividades desenvolvidas coletivamente geram
no educador o estímulo de buscar novos aprendizados, mantendo-se atualizado para atender às
necessidades desse educando, propondo assim uma mediação do conhecimento e firmando
nessa interação que ensinar é ao mesmo tempo aprender. Dessa maneira, os aprendizados que
vão ocorrendo ao longo do tempo possibilitam a percepção de que é possível e preciso
trabalhar novas maneiras, caminhos e métodos de ensinar.
Nas afirmações de Freire (2002, p. 22), “não há o papel do professor sem a existência
do aluno”, as relações constituídas partem de um processo de socialização. Ao ensinar
aprende-se e quem aprende ensina ao aprender.
21
Essa mediação do conhecimento passa a ser encarada como um processo
comprometido na descoberta de si, envolvendo seleções do que será aprendido, por meio da
apropriação e assimilação do conhecimento, não apenas a formação intelectual. Aguça as
emoções, colaborando para uma educação mais significativa, com grande impacto sobre o
comportamento. A eficácia ou durabilidade dos conhecimentos aprendidos passam a ser
consequências da autodescoberta.
A aprendizagem de novos saberes se constitui em cenário de descobertas e de
vivências participativas, de constante diálogo e interesse por desfrutar novas experiências.
Freire (2002) retrata que aprendizagem é posse de novas capacidades, muitas vezes
inexistentes anteriormente, assumindo, portanto, uma posição de pertencimento, já que a
dimensão do educar se resguarda de três aspectos que ele considera como relevante. O cunho
político, delineando decisões a serem tomadas; a epistemologia rompendo com a educação
bancária, no sentido de depósito do conhecimento, ou seja, respaldada pela ação do pensar e
criar; e por último, a estética, envolvendo as emoções e belezas que se formam no ato de
aprender. As preocupações e indagações de Freire com a educação acompanham suas obras
dando clareza nas suas perspectivas de mudança na maneira de aprender e educar, o manejo
de todo entorno político e social para que se estabeleça uma educação de qualidade.
A proposta do diálogo incentiva a valorização do universo temático3 dos educandos e a
reflexão crítica dos indivíduos sobre sua realidade, contestando a passividade e assumindo o
papel de construtor cultural e do mundo. O desejo por uma emancipação educativa está ligado
diretamente com as premissas da Educação Sociocomunitária, a partir do momento em que
valorizamos as potencialidades humanas, com liberdade de atuação no mundo, na esfera civil,
cultural, artística e política. Neste caso é no fazer democrático que criamos os princípios de
participação ativa na expectativa de garantir a liberdade individual.
Assim podemos observar que a prática além de ser um elo de relações humanas,
fomenta a capacitação das pessoas para a atuação no meio social, numa expectativa que pode
promover a autoestima e a resiliência frente às situações desumanas ou adversas. Assim,
podemos estabelecer relações entre a Educação Popular e a Educação Sociocomunitária
praticada e vivida pelos salesianos em suas instituições educativas, tendo como um grande
3 Segundo Freire o “universo temático”, perfaz uma educação libertadora e problematizadora, tendo como
alicerce o diálogo e a conscientização, a partir do que ele chamaria de “temas geradores”, ou seja, a percepção
que o homem cria ou recria da realidade, envolvendo a sua relação social e com o mundo. (FREIRE, 1987, p.
50).
22
expoente São João Bosco (Dom Bosco) na dedicação aos excluídos e marginalizados
socialmente. A Educação Sociocomunitária constitui-se como ação que fomenta a
emancipação social, numa perspectiva de preparar cidadãos para uma vida com dignidade e
perspectiva de vida, isto é, aptas ao enfrentamento das adversidades imbricadas pelo domínio
de poder. A educação praticada por Dom Bosco possuía uma dimensão humanística e
centrava-se na importância das relações afetivas, procurando interações com jovens,
entendendo sua maneira de agir e pensar, assim, incorporava uma formação que transcendia o
crescimento pessoal e religioso, tendo em vista a necessidade do contexto da época, ou seja,
uma formação voltada para a profissionalização. Dom Bosco preconizava uma relação de
proximidade com os jovens e seus familiares, ressaltando uma autonomia cidadã que pairava
na racionalidade, amorevolezza e religiosidade (ISAÚ, 2007).
Tanto a Educação Popular como a Educação Sociocomunitária visam à autonomia do
educando possibilitando que este possa questionar os processos de exclusão, bem como os
discursos fatalistas neoliberais. O alimento de uma postura acomodada e ingênua constitui o
pensamento fatalista do opressor que pretende manter o status quo face àqueles que não
podem prestigiar dos mesmos direitos. Assim podemos relatar que o desenvolvimento
econômico, entre outros tipos de abrangências advindas da globalização no cenário capitalista,
distancia-se cada vez mais das acessibilidades.
De acordo com Freire, quando os sujeitos rompem com a visão fatalista da realidade,
“se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está
implícito o inédito viável4 como algo definido, a cuja concretização se dirigirá, sua ação.”
(FREIRE, 1987, p. 53). Assim, a história de um mundo contemporâneo pode sim ser uma
possibilidade de mudanças vividas e não uma determinação imposta, na presença e atuação de
sujeitos capazes de mudar e configurar o amanhã. A mudança parte de uma decisão atitudinal
do indivíduo que não cruza os braços frente aos desafios ou acomoda-se diante das
fatalidades.
A princípio, a globalização estava fortemente aplicada aos interesses do comércio com
a superação e rupturas de fronteiras. Uma fatalidade eficaz, com um discurso que nos torna
4 Para Freire o “inédito viável”, assume uma posição do próprio ser em transcender sua existência, a partir de
uma situação limite que contrapõe ao modelo opressor. Assim a percepção critica e consciente do homem
governa suas ações, num cenário em que se pretende fomentar novas possibilidades. (FREIRE, 1987, p. 50).
23
cada vez mais cegos, sem poderio de voz ativa ou débeis do contexto histórico, já que não
podemos participar dos acontecimentos, pois esse prestígio não é ofertado aos oprimidos.
Assim as ideologias neoliberais vão ganhando poder, à medida que conseguem convencer
cada vez mais as pessoas, como se as condições do contexto histórico atual fossem naturais ou
boas para toda a humanidade. Percebe-se claramente que essa é uma medida de controle
político, de controle do poder causado nas pessoas e, sem perceber, aos poucos vamos nos
tornando reféns e oprimidos pelo poder.
Na insatisfação desse movimento de dominação, voltado para o prisma do interesse de
mercado e não dos interesses humanos - que aumenta cada vez mais os índices de desemprego
e de exclusão social - há competição para a manutenção da sobrevivência. Uma sociedade
silenciada pelo medo na ausência de sentimentos de compaixão fez surgir diversos
movimentos contra-hegemônicos voltados para o restabelecimento de uma sociedade mais
justa com princípios de fraternidade. Assim surgem os cosmopolitismos subalternos e a
globalização contra-hegemônica. Percebem-se claramente as diferenças dos fundamentos de
ambas as partes. Uma – globalização hegemônica – está voltada para as leis de mercado,
acumulação de capital e, dessa forma, quem detém o capital é quem prevalece no poder, pela
ótica do capitalismo. A outra – globalização contra-hegemônica – está voltada para a
democratização social, na esperança de solidariedade, com valores de dignidade e justiça para
todos os seres humanos (SANTOS, 2007).
Dessa maneira, os movimentos contra-hegemônicos, como exemplo algumas
instituições ligadas ao terceiro setor, referem-se a uma prática advinda da própria sociedade,
em contraposição aos modelos de dominação e opressão gerados pelo capitalismo. Essa
prática é formada e organizada por grupos das classes oprimidas, enaltecendo a pertinência de
acreditar na solidariedade, cooperativismo, compaixão, diálogo, acessibilidade, no exercício
de buscar viabilidades para os caminhos da democracia, da justiça e novas formas de atuação
e trabalho.
As colaborações desse movimento incluem: o tratamento qualitativo voltado para
novas formas de relacionamento com países estrangeiros, consolidando fortalecimento da
relação de países do Sul; as relações de trabalho e filantropia transnacional com países do
Norte; desenvolvimentos de atividades voltadas para a preservação da vida no planeta. Daí
surgem medidas cautelosas para o uso dos recursos naturais como a ecologia, à participação e
acesso da mulher no meio artístico, cultural, político, cargos que envolvem gestão e liderança,
entre outros (SANTOS, 2007).
24
Nessa perspectiva, observamos que o eixo central da globalização contra-hegemônica
está firmada no ser humano; cria-se um sistema aberto onde poderão surgir novas
possibilidades de manifestação cultural, artística, de expressão do movimento
sociocomunitário, enraizando uma sensibilidade para a construção da contemporaneidade
composta por traços humanizantes.
Devido às repercussões do modelo capitalista na década de 90, com grande impacto no
modelo econômico e social, repercutem também mudanças nas estruturas sociais que
permitiram o engajamento e maior atuação do terceiro setor, embasados em um modelo
educativo que pudesse solucionar os desengajamentos ocasionados por esse sistema que visa à
produção e acúmulo de capitais. Para Martins (2007), a Educação Sociocomunitária se faz no
desenvolvimento de uma práxis social que se ocupa de uma práxis comunitária. Ações no
foco social têm sido alimentadas por instituições não governamentais com iniciativas de
atender a uma demanda educativa. Assim, surgem práxis comunitárias, atuando na esfera
social para que a própria sociedade pudesse aplicar seus conhecimentos e aprender novos
conhecimentos, não para fomentar a ordem produtiva advinda do capital, mas sim para uma
sociedade usufruir de valores, de atitudes e sonhos.
Esse modelo de atuação, na esfera social, propõe alternativas como projetos
educativos, os quais estimulam que os indivíduos estejam em atividade seja para almejar
sonhos ou ter uma renda, assim surgem cursos, treinamentos e auxílios para a abertura de
microempresas, reciclagem, produções alimentares como confeitaria, padarias, artesanatos,
entre outros, fomentando a cooperatividade e a garantia de subsistência econômica. Um dos
problemas citados por Martins (2007), e até mesmo pela interpretação do contexto é que esse
modelo de atuação não caia em contradição e passe a reproduzir a ótica do modelo capitalista.
Acreditamos que esse modelo de educação para o trabalho, para o empreendedorismo
solidário deva continuar existindo para alimentar a esfera da ação social, apesar de lidar
empiricamente com os problemas coletivos.
Groppo (2013) demonstra que se formam empresas e organizações não
governamentais para a “captação de recursos”, planejamento e execução de ações no foco
social que, porventura, possam criar instituições especializadas formando o mercado social,
como uma ação financeira. O campo social é formado por agentes que atuam na esfera social
por meio da inculcação de valores, modos de ser e pensar, hábitos que serão transmitidos e
incorporados em uma sociedade. Assim, representam-se os valores simbólicos e suas
25
particularidades que são orientados por princípios regulatórios, formando capitais intelectuais,
simbólicos culturais e não apenas aqueles que visam lucros.
Talvez tenhamos que reaprender a viver, pensar no modo como conduzimos a vida no
presente e as contribuições que fazemos e deixamos para as gerações conseguintes. A
pertinência do aprendizado se faz conforme ensinamos ao aprender. A constância de novos
aprendizados não se desenvolve apenas em uma sala de aula. Estão presentes na natureza
humana a constância, o desejo e a curiosidade de tecer novos aprendizados. Á medida que
constroem seus caminhos pautados por elementos centrais de aprender sempre e aprender a
viverem juntos, os seres humanos configuram o seu existir.
A convivência com o meio e com os outros permite criar aprendizados conscientes.
Esse meio envolve o familiar, matrimonial, amizades, institucional, comunidade (rua, bairro,
igrejas, crenças, etc.), o conjunto de pessoas que vivenciam interesses comuns. Percebe-se
então que todos os meios de contato ou que culminem no ser humano geram influências
impactantes sobre a regência de sua maneira de viver.
O que está em jogo é a valorização das pessoas no seu contexto de relacionamento e na
construção de sua história, fomentando novas formas de aquisição de saberes, conhecimentos,
capacidades, curiosidades, coragem, desejo que partam não apenas do ensinar, mas do
aprender, da conquista de novos aprendizados significativos e vinculados à sua práxis, nos
modos de vida em comum. Dessa forma, o objetivo do ensino-aprendizagem não será apenas
a transmissão de conhecimentos, mas a construção cotidiana de responsabilidade de todos.
Uma das missões da Educação Sociocomunitária é contribuir para que cada ser
humano aprenda a viver com os outros, a tornar-se cidadão, pleno de direitos e de deveres,
membro de uma comunidade. Assim poderia surgir um entusiasmo ao ser solidário e
responsável. A comunidade humana em construção pode conferir outra pertinência e
relevância educativa ao ensino e pode conferir novos significados ao ato de conhecer,
contextualizando-o, dando-lhe outros sentidos e atribuindo-lhe um leque diverso de utilidades
sociais e humanas. A educação social constitui um instrumento privilegiado do acesso de
todos a tais oportunidades de humanização da vida social, sobretudo aos que se encontram em
situação de maior risco ou vulnerabilidade social, como as crianças e jovens em situação de
acolhimento institucional.
26
1.2 - UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE O TERCEIRO SETOR
O terceiro setor tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida e o fortalecimento da
sociedade civil através de parcerias com o primeiro setor (representado pelo Governo) e o
segundo setor (empresas privadas com fins lucrativos). Essa parceria gera bens e serviços
públicos (KANITZ, 2004).
Segundo Martins (2007), o terceiro setor é organizado por grupos sociais que visam
articular coletivamente ações no meio social, atendendo preponderantemente as necessidades
de classes subalternas. Esse desafio diário alimenta o desejo de propagar atitudes e ideias que
supram essa demanda carente, no atendimento daqueles que são excluídos pela sociedade.
Essas organizações são formadas na sociedade civil, não sendo estatais ou públicas.
Para Rothgiesser (2004, p. 2), “o terceiro setor consiste em cidadãos que participam de
modo espontâneo e voluntário de ações que visam o interesse social. Isto vem mostrar algo
em comum com o Estado, que é o fato de ambos cumprirem com uma função eminentemente
coletiva.”
O terceiro setor é composto por organizações sem fins lucrativos em âmbito não
governamental, onde se pratica a caridade e o altruísmo, que se dá graças às manifestações na
sociedade civil, marcadas pela integração cidadã, promoção dos direitos coletivos,
diferenciando-se desse modo da lógica do mercado que visa o lucro (CARDOSO, 2000).
A questão filantrópica é uma finalidade desse setor que consiste na ajuda aos outros
com altruísmo, piedade e caridade que promovam a felicidade. A palavra filantropia é de
origem grega “philanthropia” e significa amor da humanidade (MOUSSALLEM, 2008).
Em meio a uma sociedade composta por hierarquia e desigualdade, surgem os
movimentos sociais que se opuseram às práticas militares do período para reivindicar direitos
sociais. O processo de mobilização da Constituição de 1988 para o aumento dos direitos de
cidadania política e novas posturas desencadeou um avanço na política social do país, o que
colaborou para o fortalecimento do terceiro setor, que segue rumo a novos movimentos
sociais, criando novas vias para ascensão social, tendendo sobrepor-se ao modelo de
dominação advindo do capitalismo.
A atuação ineficaz do Estado na área social promoveu o crescimento de tal setor e a
consolidação democrática abriu as portas para a atuação das Organizações Não
27
Governamentais (ONGs), que são formadas para atender o interesse público, sem visar o
lucro, mas sim o desenvolvimento humano a priori. O crescimento desse setor e a
participação da sociedade nas obrigações públicas fez com que o Estado reduzisse seu papel
com a sociedade repassando para ONGs suas competências e responsabilidades.
Para Scherer-Warren (1995), ONGs são organizações formais e privadas que utilizam
fins públicos para executar suas atividades, não visam lucro, possuem o objetivo de realizar
intervenções educacional, político, focando em um determinado segmento a fim de gerar de
forma coletiva processos de transformações sociais.
Para o desenvolvimento de seus objetivos, algumas ONGs contam com a ajuda de
trabalho voluntário de pessoas que abraçam uma causa sem troca de benefício financeiro. O
Estado nem sempre está envolvido nas atividades executadas pelas ONGs, as quais também
são subvencionadas por empresas privadas que aplicam recursos para projetos específicos.
Embora o terceiro setor seja organizado com objetivos que visam promover o bem-
estar e garantir direitos para a sociedade, existe uma grande dificuldade de se transpor o
discurso para uma prática bem-sucedida. Mesmo sendo uma organização sem fins lucrativos,
está vulnerável às mesmas condições de uma empresa privada, pois possui atividade
econômica, receitas e despesas, porém não deixam explícita a forma de obtenção de retorno
através das atividades que desenvolvem.
Existe uma grande proximidade do terceiro setor com as empresas privadas no que diz
respeito a seu funcionamento. Pode-se dizer que não existe o acúmulo de capital e distribuição
de lucros, mas sua atuação é como a de um profissional liberal que com a prestação de
serviços obtém seus rendimentos e com isso garante sua sobrevivência (MARTINS, 2007).
Em alguns casos, as empresas privadas mantenedoras do terceiro setor realizam o que
é chamado de filantropia empresarial, destacada pelo discurso de responsabilidade social e
solidariedade. Sua característica é o desenvolvimento e apoio em iniciativas de algum tipo de
segmento, seja educacional, ambiental, social, porém com alvo no objetivo de mostrar que se
está gerando o benefício para sociedade. Pode-se dizer que, antes do compromisso com o
bem-estar à sociedade, a empresa visa seus próprios interesses em obter vantagens
econômicas com ganhos na isenção de impostos, premiações e marketing. Isto traz o
entendimento de que a ligação empresarial ao terceiro setor nada mais é que uma estratégia de
lucratividade (CUNHA, 2005).
28
Além da filantropia empresarial existem também os convênios entre o Governo e
ONGs que prestam serviços que, na verdade, são de responsabilidade do Governo perante a
cidadania. Nota-se que os convênios firmados possuem falhas e até mesmo ausência na
fiscalização, tornando-se objetos de denúncia por corrupção conforme informação contida na
Revista de Informações e Debates do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA):
Ao longo de 2011 a atuação das chamadas organizações não governamentais
(ONGs) ganhou destaque na mídia. Os motivos centrais foram denúncias de
possíveis irregularidades nos repasses de verbas ministeriais para entidades desse
tipo, que levantaram mais uma vez o debate sobre a porosidade da fronteira entre as
esferas pública, privada e estatal no Brasil. (OJEDA, 2012, p. 1).
Dessa forma, por um lado o terceiro setor pode acabar intermediando a atuação do
governo e das empresas privadas para a promoção da solidariedade, já que é financiado por
esses dois setores. Mas por outro lado, o descontrole governamental com relação à prestação
de contas por parte das ONGs e ausência de fiscalização sobre os convênios pode configurar-
se como mais uma oportunidade para que exista o desvio do dinheiro público, corroborando a
obtenção de lucro e mascarando a corrupção.
Essa contextualização acerca das possibilidades de atuação do terceiro setor é
importante, nesse trabalho, uma vez que boa parte dos serviços de acolhimento institucional
brasileiros é ofertada por Organizações Não Governamentais, a exemplo do abrigo Lar Feliz,
local onde foi desenvolvida esta investigação.
No próximo capítulo, será apresentado um breve histórico da situação de acolhimento
no país, o que engloba seu surgimento, criação e aplicação das leis voltadas ao público infantil
e jovem, tratamento ofertado e ainda, a importância da revinculação familiar e as
reconfigurações dos direitos e deveres que permitiram caracterizar o modelo atual de
acolhimento. Apresentamos a Ong Projeto Lar Feliz, procurando explanar sobre seu contexto
histórico, as características que circunscreve o espaço físico, a equipe técnica, o
desenvolvimento de suas atividades e dentre elas o destaque ao Curso Mão na Massa onde foi
efetivada esta pesquisa.
29
2 - A SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
“[...] eu não tinha essa oportunidade do Mão na Massa antes, que
nem tem agora, você pode vir e fazer as coisas com seu filho e estar
junto”.
(Camila)
Historicamente a internação de crianças e jovens em instituições asilares ocorre desde
o período colonial. Atendiam-se todas as classes sociais e incorporavam-se a modalidade
assistencial e as tendências educacionais de cada época. Assim surgem os colégios internos,
seminários com apelo e participação da igreja, asilos educandários entre outros (OLIVEIRA,
2010).
Na Europa, no século XIII, não existia a noção de infância. Nesse período, o “filhote
do homem” ficava aos cuidados da mãe e quando iniciava seu processo de desenvolvimento,
ainda muito rudimentar de cognição, era incorporado em jogos e trabalhos partilhados na
convivência com adultos. As etapas de desenvolvimento eram aceleradas, de mera criança
passava a um homem jovem com responsabilidades que eram incorporadas autoritariamente.
Este pequeno adulto, apesar de não possuir status social, desenvolvia um preparo para sua
autonomia. Esta relação contribuiu para uma sociedade singular em muitos aspectos, pois não
havia discriminação entre adultos e crianças. A consciência estava focada em artifícios de
proteção, seja familiar ou guerras civis e no trabalho camponês, sem acreditar na existência da
inocência (ÀRIES, 1981).
A conscientização do tratamento que caracteriza a infância e sua devida atenção surgiu
entre os séculos XVI e XVIII. A princípio, partindo de sentimentos diferenciados, separaram-
se as realidades vivenciadas no mundo das crianças e no mundo dos adultos. A ternura da
criança, sua maneira de se expressar, sua graça permitiram uma nova reflexão e o adulto passa
a cortejá-la, o que a torna uma fonte de distração e relaxamento (ÀRIES, 1981).
Apesar dessas mudanças ocorridas, ainda permaneceu uma educação fortemente
embasada por princípios de disciplina e razão no século XVII. A inocência infantil e esse
sentimento da infância surgiram no meio familiar, porém, impôs-se uma nova noção de
inocência, fomentando atitudes morais que estavam baseadas na preservação e reflexão sobre
as mazelas da vida, no desenvolvimento do caráter e da razão. Na manutenção e controle das
30
atitudes da criança, encontra-se a agressão física, com o uso de chicote, como uma medida
punitiva e humilhante (ÀRIES, 1981).
A partir do século XVIII, o desenvolvimento infantil tornou-se gradativo, preparando-
se as crianças para a vida adulta através do cuidado. Nesse quesito, a participação e a
contribuição da escola colaboram para este cunho formativo em paralelo ao apoio familiar. De
acordo com Ariès (1981) essa concepção de educação vigora no século XIX, surgindo com a
Modernidade, sendo a escola e a família fundamentais para desmembrar a criança da
sociedade dos adultos.
Além da concepção de infância, as formas de conceber a adolescência e a juventude
também sofreram alterações no decorrer do tempo, possibilitando a visualização de algumas
distinções, nem sempre, tão perceptíveis entre esses conceitos. A terminologia adolescência
denota sua ligação com as teorias psicológicas do indivíduo num período de transição em que
ocorre o desenvolvimento da subjetividade comportamental do indivíduo, a partir do contato
com suas experiências na realidade, além das questões de sua natureza física e biológica,
como no caso da puberdade. Já a terminologia juventude está ligada com a representação do
indivíduo enquanto ser social e constituinte de uma sociedade, ou seja, momento pelo qual
assume uma postura de preparo para a vida adulta, formação e sua obrigatoriedade dos
deveres militares, como sendo uma responsabilidade civil perante a pátria, preparação para a
continuidade de sua formação acadêmica culminando na expectativa do planejamento
profissional e familiar, diretamente relacionado aos estudos sociológicos (GROPPO, 2004).
Para a compreensão dos significados sociais das juventudes modernas e
contemporâneas, o essencial não é delimitar de antemão a faixa etária da sua
vigência. Esta faixa etária não tem caráter absoluto e universal. É um produto da
interpretação das instituições das sociedades sobre a sua própria dinâmica. [...] É
claro que a puberdade, realmente, é algo mais ou menos universal na espécie
humana. Mas a juventude é, sobretudo, uma categoria social e não uma característica
natural do indivíduo. Na modernidade, a juventude tende a ser uma categoria social
derivada da interpretação sociocultural dos significados da puberdade, este sim, um
fenômeno natural e universal que, no entanto, pode adquirir pouca importância
conforme a sociedade em que ocorre. (GROPPO, 2004, p. 9-11).
No Brasil, após a Declaração dos Direitos da Criança, criou-se o primeiro Juízo
voltado para o atendimento exclusivo de crianças e jovens. Trata-se do “Juízo Privativo dos
Menores Abandonados e Delinquentes” ou “Juizado de Menores”, criado em 1923, com a
concepção de que eram necessárias medidas especializadas para reformar e educar aqueles
que viviam em situação de pobreza, abandono ou infração (PILOTTI; RIZZINI, 1995).
31
Em 1927, foi promulgada a primeira legislação, o Código de Menores do Brasil,
conhecido como Código de Mello Mattos, voltado para a assistência e proteção dos brasileiros
menores de 18 anos de idade.
O que o impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo todos os
possíveis detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, por meio de
mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, “reeducação”, “reabilitação”,
“preservação”, “reforma” e “educação”. (RIZZINI, 2000, p. 28).
Desse modo, a autoridade competente obtinha informações da realidade do menor
avaliando o estado mental, físico e moral daqueles que se encontravam em situação de perigo,
abandono e vadiagem. Nesse ano, as crianças e jovens eram categorizadas como “menores
expostos, abandonados, vadios, mendigos, libertinos ou delinquentes”, com base nos artigos
26 ao 30 (BRASIL, 1927).
O Código de 1927 foi válido por 52 anos, sendo substituído em 1979. Nesse processo,
foram incorporadas algumas mudanças na esfera tutelar, advinda da presença de assistentes
sociais que avaliam outros aspectos da criança, jovem e familiares, permitindo ao juiz ter
conhecimento da história de vida do ser em questão. Esses aspectos levam em consideração a
condição essencial de subsistência como saúde, alimentação, moradia, educação entre outros,
além de fatores de negligência dos pais ou responsáveis e casos de infração penal por desvio
de conduta familiar ou comunitária. A mentalidade, porém, continuava a mesma, “ter o
controle da situação”, eram considerados como “menores em situação irregular”.
Não houve mudanças favoráveis ao entendimento da realidade em questão, ao juiz era
dado um grande poder para as decisões mais cabíveis a serem tomadas, ou seja, retirar o
menor dos pais, institucionalizá-lo e posteriormente devolvê-lo, o que denota uma forma
punitiva e educadora nas concepções da época. Era possível retirar a guarda dos pais
biológicos considerando-os como incapazes de cuidar e colocar o menor para adoção. Assim
negligência familiar e infração do menor eram tratadas da mesma forma, a preocupação não
era ensinar caminhos ou reestruturar o seio familiar e sim uma repressão, onde se instalava o
medo e predominava a punição (CRUZ, 2015).
A compreensão das causas de fenômenos sociais advinha de ótica reducionista e a
decisão arbitrária a ser tomada era a institucionalização, ou seja, uma condição singular que
rompia com a convivência familiar e comunitária, por ordem do Estado. No ano de 1964, foi
criada na esfera nacional a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e a
partir dela, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) nas esferas estaduais,
32
sendo um dos marcos da institucionalização de crianças e jovens. Manteve-se por décadas
com um regimento baseado nas severas disciplinas militares, na vigência da ditadura militar,
especialmente para os meninos (RIZZINI; RIZZINI, 2004; CRUZ, 2015).
A década de 80 representou um período de grandes mudanças sociais. O modelo antigo
cai em desuso, não atendendo mais a realidade da época. Os novos valores contrastam com a
elaboração de normas referente aos direitos civis e humanos, dentre os quais estão direito à
vida, saúde, cultura, esporte, lazer, dignidade, profissionalização, liberdade, expressão legal
definida com a Constituição da República de 1988.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, demonstra ser de suma
importância à responsabilidade da família sobre seus membros:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL,
1988, s/p).
Essa normativa legal considera a família como sendo base da sociedade e como
referencial de ação das políticas sociais, compreendendo-a como um agente potencializador
de mudanças frente às situações de vulnerabilidade social presentes nos processos de
exclusão.
A Constituição Federal de 1988, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), marcam a grande conquista de direito à educação, reconhecendo e trazendo uma
atenção especial à criança e ao jovem como prioridade absoluta de proteção integral. Estes se
tornam sujeitos de direitos, cabendo ao Estado e a sociedade destinar recursos e ações que
permitam a garantia e permanência dos direitos aos que se encontram em situações de
vulnerabilidade e risco social (SOUSA, 1998).
A palavra “sujeito” traduz a concepção da criança e do adolescente como indivíduos
autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua
relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou
meros “objetos”, devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo
ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de
desenvolvimento. (BRASIL, 2006, p. 25).
Em vigor desde 13 de julho de 1990, a Lei 8.069/90 que cria o ECA estabelece para o
Direito brasileiro um novo paradigma em relação à infância e juventude. Crianças e jovens
foram elevados à condição de titulares de direitos fundamentais, contando com medidas que
33
garantem a proteção dos direitos de crianças até doze anos de idade incompletos e jovens dos
doze anos aos dezoito anos de idade. O ECA prevê o reconhecimento das crianças e jovens
como sujeitos de direitos e deveres independentes de sua raça, cor e classe social, tendo
direito ao desenvolvimento físico, mental e social. Esse Estatuto conta com medidas para
resguardo da família, seja natural ou substituta. Em poder de guarda, há a obrigatoriedade do
sustento, assistência e educação, já que a família é vista como alicerce para a formação das
crianças (BRASIL, 1990).
Com a implementação do ECA surge o termo “abrigo” com a finalidade de representar
o atendimento e a reestruturação familiar para as crianças e jovens que cumprem medidas
protetivas. Os motivos de inserção nas instituições de acolhimento (abrigos) são diversos,
podendo ocorrer por determinação do Conselho Tutelar ou da autoridade judiciária. A
violência familiar e os maus tratos vivenciados são motivos que levam ao encaminhamento de
crianças e jovens, ainda que de forma provisória, a uma instituição. Além disso, estão
relacionados às circunstâncias de vida das famílias, nas quais, na maioria das vezes, há falta
de recursos financeiros, moradia, desemprego e/ou problemas de saúde. Dentre os casos que
levam a situação de abrigamento de crianças e jovens, na modalidade de medida protetiva,
são: abandono, pobreza, violência doméstica e de rua, dependência química e alcoolismo,
ausência de trabalho e moradia representando a falta de condições por parte dos pais ou
responsáveis para criar e cuidar de seus filhos, além de questões que envolvem a orfandade.
Em função desses fatores de difícil enfrentamento, destacamos que o trabalho com as
famílias de crianças e jovens acolhidos depende do funcionamento efetivo de políticas
públicas e exige a articulação da rede de serviços. Tais fatores influenciaram as políticas
públicas para criação de medidas de proteção aos menores abandonados, conservando o
acolhimento institucional como uma medida social nesses casos especiais de risco. Os abrigos
mantêm um trabalhado ligado com órgãos públicos, Conselho Tutelar, Justiça da Infância e da
Juventude e as Secretarias Sociais dos municípios.
Diante tais fatores, a convivência dentro do abrigo, comumente, é marcada por
histórias de vida dolorosas e por rupturas bruscas e precoces nos laços primordiais
estabelecidos entre crianças e jovens e seus familiares. Por mais sofridas que tenham sido
essas experiências, pensamos que essas marcas devem ser trabalhadas por meio da escuta, do
contato, do afago, do diálogo e de atividades que se preocupem com a qualidade de vida das
crianças e jovens, os quais já carregam uma carga enorme de responsabilidades e problemas
que, por vezes, são incompatíveis com o nível de sua maturidade.
34
Em caso de ausência de cumprimento das obrigações para com a criança ou jovem, a
família fica suscetível à perda da guarda, podendo a criança ser enviada a um abrigo para
adoção. No caso, esse descumprimento acaba sendo o resultado de uma vulnerabilidade social
que atinge em massa as camadas mais pobres, refletindo diretamente na formação e
estruturação familiar. Nessa situação estão, desemprego, dificuldades de inclusão social e
mudanças socioeconômicas. Os pais, sufocados com a necessidade de trazer renda para o lar,
acabam se distanciando de seus filhos ou colocando-os em atividades de trabalho antes de
completarem maioridade.
Em suas características gerais, o abrigo se define como uma unidade que possui clima
residencial e cujo objetivo é acolher provisoriamente crianças e jovens que por diversos
motivos são impedidos judicialmente de permanecer junto à família de origem. Ele oferece
atendimento personalizado preservando os vínculos familiares e a não privação da liberdade,
atuando para o cumprimento das necessidades básicas e sociais e oferecendo aos acolhidos a
participação em atividades da comunidade, por meio da permanência na escola e áreas de
lazer. O dirigente do abrigo é responsável por elas no período em que se encontram
institucionalizadas.
A permanência da criança ou jovem no abrigo pode ser transitória como também pode
ser permanente e isto está diretamente ligado à sua história. Podem permanecer por alguns
dias ou ter uma permanência continuada de meses e anos até serem integradas em família
substituta. Caso isto não ocorra, a criança permanece no abrigo o tempo que for necessário. A
investigação desenvolvida por Vanessa Cruz (2015) revela que, embora o acolhimento seja
caracterizado pela provisoriedade, existem jovens que passam boa parte de sua infância e
juventude em instituições de acolhimento.
No ano de 2004, foi aprovada uma nova Política Nacional de Assistência Social
(PNAS) e a Norma Operacional Básica (NOB/2005), na perspectiva de fundamentar a atuação
da Assistência Social, com suas definições e normatizações federais, para a gestão do
financiamento de assistência social com a criação do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Foi consolidada como uma política pública de direitos, tendo seu marco legal como
Projeto de lei apenas no ano de 2008 com a Lei nº 3.077/2008 e sua promulgação na Lei
12.435 de 2011. Desta forma houve uma contribuição no quesito de padronização e qualidade
dos serviços socioassistenciais em prol aos direitos de cidadania, inclusão social, vigilância,
proteção e defesa social (BRASIL, 2008).
35
Em meio às mudanças ocorridas na política de assistência social, pode observar suas
concepções voltadas à inserção da questão de Seguridade Social, demonstrando suas
características de proteção social no âmbito da garantia de direitos e a questão das condições
de uma vida com dignidade, delineando seus objetivos conforme Plano Nacional de
Assistência Social:
Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou,
especial para famílias, indivíduos e grupo que deles necessitarem; contribuir com a
inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos
bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural;
assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na
família, e que garantam a convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2005,
p.33).
Na questão de Proteção Social Básica estão inseridos os objetivos de prevenir as
situações de vulnerabilidade social, além de priorizar também o fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários aos que se encontram em desigualdade social. Este serviço é
realizado pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), com o Programa de
Atenção Integrado às Famílias (PAIF), o Programa de Atenção Integrado às Famílias, o Bolsa
Família, Proteção Social Básica a Infância e Juventude, Agente Jovem, Proteção Social
Básica a Pessoa Idosa e Proteção Social Básica a Pessoa com Deficiência.
Apesar das proximidades a questão da Proteção Social Especial de Média ou Alta
Complexidade é desenvolvida com o aporte do Centro de Referência Especializado em
Assistência Social (CREAS), tendo como seus objetivos o atendimento aos familiares e às
pessoas que se encontram em questão de risco social e pessoal no caso advindo por motivos
decorrentes de maus tratos físicos, psíquicos, violência sexual entre outros, agindo para a
questão de proteção e garantia de direitos, já a Proteção Social Básica tem o carácter
preventivo. Devido sua complexidade, suas ações são compartilhadas com o poder Judiciário,
Ministério Público e Executivo. Seus programas envolvem: Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (PETI); Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes; Proteção Social à Pessoa com Deficiência; Rede Abrigo - Proteção Social
Especial à Criança, ao Adolescente e à Juventude.
Neste caso entram as prioridades para a reestruturação dos serviços de acolhimento
institucional, destinando aos indivíduos que não contam mais com o cuidado e proteção de
suas famílias, garantindo moradia, alimentação, zelo, proteção, cuidados com as necessidades
básicas de higiene e saúde, acompanhamento escolar e programas de atividades cultural. Aos
36
familiares que perderam a guarda de seus filhos é ofertado o acompanhamento realizado por
assistentes sociais e psicólogos na tentativa de fomentar a revinculação social, que antecede
ao agendamento de mais uma nova audiência. Comumente, esse momento de audiência
realizada na esfera jurídica causa uma tensão entre os envolvidos, podendo ser um momento
de expectativas prazerosas ou de descontentamento.
Além das instituições de abrigo para cumprimento de medida protetiva a crianças e
jovens em situação de vulnerabilidade social, também existem as instituições onde crianças e
jovens cumprem medidas socioeducativas em decorrência da prática de atos infracionais. No
ano de 2006, o governador do estado de São Paulo Cláudio Lembo, que substituiu Geraldo
Alckmin que se ausentou neste ano para concorrer à Presidência da República, aprovou a
lei 12.469/06, alterando a política do atendimento destinado a crianças e jovens que cometiam
atos infracionais. O nome FEBEM foi alterado para Fundação CASA (Centro de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente) com a proposição de questionar a imagem de violência ou
punição advinda das sanções disciplinares praticadas numa institucionalização construída nos
moldes da ditadura militar. A Fundação CASA preconiza o atendimento socioeducativo aos
jovens, vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania, propondo elaborar
e desenvolver programas que se atende à reintegração social, envolvendo a inclusão da
educação, a profissionalização, inserção em atividades socioculturais, participação de
atividades no meio comunitário entre outros. Tal atendimento obedece às regras propostas
pelo Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), que normatiza a configuração desta
tipologia de atendimento em unidades de Internação, Internação Provisória, Semiliberdade e
Liberdade Assistida, determinando assim a padronização dos serviços qualitativos e
quantitativos, envolvendo o número de jovens atendidos, a localização, o tamanho das
unidades, o limite de atendimento, as questões administrativas e de parcerias com os
municípios ou com as organizações não governamentais (SÃO PAULO, 2006, 2014).
2.1 - O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A REVINCULAÇÃO FAMILIAR
“...Agora consigo ter união com eles...”
(Camila)
37
A nomenclatura acolhimento foi instituída pelo Plano Nacional de Promoção, Proteção
e Defesa do Direito da Criança e do Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária,
destinando-se temporariamente ao atendimento e cuidado de crianças e adolescentes que
foram separados de suas famílias por questões que envolvam risco e vulnerabilidade, se
enquadrando em duas modalidades, o acolhimento institucional e o acolhimento familiar.
O acolhimento familiar é destinado às crianças e jovens que foram separados de seus
familiares de origem, sendo incorporados na guarda de outras famílias, previamente
vinculadas a um programa de acolhimento. Neste caso não ocorre à institucionalização, seus
objetivos e estratégias denotam minimizar o impacto que esta questão de separação dos
familiares de origem acaba gerando, como: desconforto, tristeza, solidão entre outros,
buscando qualificar o intuito de família e a revinculação com a família de origem (BRASIL,
2009a).
O acolhimento institucional como o próprio nome diz, ocorre em uma instituição
projetada estruturalmente e planejada com uma equipe de trabalho atuante na prestação dos
serviços de atendimento especiais, podendo ser classificados de acordo com as orientações
técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009),
como: abrigo institucional, casa lar, república e famílias acolhedoras.
Ambos tratam de situações bastante delicadas e, no caso, faz-se necessário o
cumprimento de projetos, objetivos, acompanhamento de resultados entre outros,
demonstrando a veracidade profissional da equipe que compõe o atendimento às crianças,
jovens e familiares, na expectativa de realmente cuidar das vidas que ali se encontram,
garantindo seus direitos de cidadania, pois não basta apenas boa vontade, empatia ou
intuições, deve-se realmente fundamentar as ações rumo a um projeto de atendimento.
Com ênfase no atendimento de Proteção Social de Alta Complexidade, os serviços de
acolhimento, seguem regulamentos estabelecidos pela Norma Operacional Básica de
Assistência Social – NOB-SUAS, lançada em 2009 juntamente com o Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate a Fome, um detalhamento mais objetivo perante as
tipologias de acolhimento, normalizando assim suas orientações técnicas, além de tratá-las
como responsabilidade dos municípios. Seguindo essas orientações que definem as
normatizações atuais, destacamos a Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009a), definindo as tipologias de atendimento aos
acolhidos sendo:
38
Abrigo Institucional
Serviço que oferece acolhimento provisório para crianças e adolescentes afastados
do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo (ECA, Art. 101), em
função de abandono ou cujas famílias ou responsáveis encontrem-se
temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, até
que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem ou, na sua
impossibilidade, encaminhamento para família substituta. (BRASIL, 2009a, p. 63).
O serviço de abrigamento institucional deve priorizar o atendimento qualitativo
destinado a crianças e jovens de 0 a 18 anos sob medida protetiva e aos familiares,
favorecendo a questão de acessibilidade do seu espaço territorial próximo as suas residências
de origem, além de envolver as questões de acessibilidade com a comunidade e promoção da
revinculação familiar. O atendimento é destinado a vinte crianças e jovens por unidade,
contando com um educador para cada dez atendidos segundo dispõe o ECA. Mantiveram-se
os mesmos objetivos nas Orientações Técnicas - Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes (BRASIL, 2009a).
Além dos abrigos, existem outras modalidades de instituições de acolhimento como a
Casa Lar e a República. A Casa Lar constitui-se como:
O Serviço de Acolhimento provisório oferecido em unidades residenciais, nas quais
pelo menos uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente – em
uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e
adolescentes afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo
(ECA, Art. 101), em função de abandono ou cujas famílias ou responsáveis
encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e
proteção, até que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem ou,
na sua impossibilidade, encaminhamento para família substituta. (BRASIL, 2009a,
p. 69).
Esta modalidade de acolhimento é semelhante ao abrigo institucional, atendendo o
mesmo público alvo, crianças e jovens de 0 a 18 anos, mas se difere por preconizar uma maior
relação social com o educador/cuidador que reside junto aos acolhidos em suas residências,
atendendo grupos de no máximo dez por educador em cada unidade. Tão quanto o abrigo
institucional, na Casa Lar promovem-se ações para o desenvolvimento de autonomia de
acordo com a realidade envolvida, trazendo para o ambiente residencial uma proximidade
com a realidade familiar, a interação com a comunidade, entre outros.
39
Seguindo um modelo de trabalho baseado no sistema de casas-lares, a ação do cuidado
é exercida por um responsável técnico, dentro de uma estrutura baseada nos moldes de uma
residência privada em que habitam até dez crianças e/ou jovens. Nelas estão incluídos espaços
coletivos como dormitórios, banheiros, sala de lazer, sala de jantar, sala de estudos ou espaços
individualizados como guarda objetos e pertences pessoais, área de exposição de imagens,
fotografias e afins, atendimento e espaços destinados em casos de situações especiais como
deficiência, separação das casas nas relações de gêneros. Essas residências devem estar
situadas próximas dos espaços residenciais, em condições favoráveis de acesso, sem se
distanciar excessivamente da família de origem. Na esfera e no trabalho como aspecto de seu
desenvolvimento, há uma equipe de profissionais que se dedica à manutenção de uma
qualidade de vida básica com alimentação, atividades de esporte e lazer, acompanhamento
médico e manutenção da saúde, ensino de práticas culturais, leitura, teatro, dança,
musicalização, ensino religioso e atividades técnicas no preparo de um ensino
profissionalizante para a qualificação de um profissional apto para inserção no mercado de
trabalho com segurança e autonomia independente (BRASIL, 2006).
A República é definida como:
Serviço de acolhimento que oferece apoio e moradia subsidiada a grupos de jovens
em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social; com vínculos familiares
rompidos ou extremamente fragilizados; em processo de desligamento de
instituições de acolhimento, que não tenham possibilidade de retorno à família de
origem ou de colocação em família substituta e que não possuam meios para auto
sustentação. (BRASIL, 2009a, p. 85).
Ao completar 18 anos, os jovens que vivenciaram a questão de acolhimento
institucional e não conseguiram incorporar-se a uma família poderão participar de uma
República, já que neste caso são considerados como emancipados, ou seja, atingiram a
maioridade penal tornando-se independentes perante a lei. Eles são desligados da instituição,
mas neste caso a própria instituição que o abrigou deverá proporcionar orientações aos jovens
para que consigam alcançar sua independência e autonomia. Assim, antes de atingirem a
maioridade são estimulados a dar seguimento em suas vidas, condicionando-os aos estudos,
ao trabalho, participação em alguma atividade social, religiosa, cultural e profissional. As
Repúblicas atendem jovens de ambos os gêneros, com idade de 18 a 21 anos e espera-se que a
partir desse período sejam capazes de assumir suas próprias vidas.
40
No ano de 2009, foi incorporado uma nova Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais alterando a Política Nacional de Assistência Social, na Resolução nº 109 de
11 de novembro de 2009, a partir da aprovação do Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS), com a inclusão da modalidade de acolhimento institucional para jovens e adultos
com deficiência que será ofertado em Residências Inclusivas.
As Residências inclusivas são destinadas a jovens e adultos com algum tipo de
deficiência, tendo em sua estrutura física um rol de equipamentos e projetos arquitetônicos,
que permitam e favoreçam a qualidade do atendimento prestado a esses usuários. O
atendimento é ofertado por vinte quatro horas, devendo cada residência contemplar dez
pessoas no máximo. Segundo a Norma operacional básica de recursos humanos do SUAS
(NOB/ RH), a equipe que compõe os cuidadores e auxiliares deverá ser de um cuidador e um
auxiliar para cada seis usuários, levando em consideração as necessidades específicas
particulares.
Entre outras classificações que constam na Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais temos o acolhimento para adultos e famílias, adultos em saída de rua,
idosos, casas de passagem, mulheres em situação de violência, sendo destinado ao público
adulto de ambos os gêneros que difere do acolhimento destinado às crianças e jovens.
Devemos levar em consideração os motivos que corroboram ao acolhimento de um
público adulto composto por pessoas consideradas como emancipadas e capazes de
assumirem a sua própria independência, as condições sócio econômicas do país, município e a
gestão num todo na área da saúde, transporte, lazer, trabalho, habitação entre outros,
impactam diretamente sobre a vida dos adultos na questão das necessidades básicas, além do
desemprego, má distribuição salarial e/ou problemas de drogadição, de modo que nem todos
conseguem arcar com a manutenção de sua subsistência ou ter acesso a oportunidades que
favoreçam a projeção de novas perspectivas de vida.
Nesta ótica, é perceptível a importância dos Serviços Socioassistenciais para este
público que preconizam em seus objetivos gerais, atender provisoriamente, adultos, grupos
familiares e idosos em instituições com características semelhantes a uma residência
domiciliar, oferecendo proteção, atendimento emergenciais, proximidade com o meio urbano,
atendimento as necessidades básicas e lazer. Outros motivos que levam ao acolhimento de
adultos, famílias e idosos envolvem, falta de condições para o autossustento, questões
emergenciais de violência e agressão física, comumente praticada num público feminino,
41
desabrigamento de suas próprias residências, moradores de rua, limitações físicas e mentais,
entre outros.
Assim, observar o percurso histórico permite perceber o grande avanço quanto ao
significado da criança e do jovem no meio social, além do fato de elucidar a importância do
cuidado necessário ao público adulto, com um olhar de compaixão rumo aos desafios. Ao
mesmo tempo, nota-se a incorporação legal de direitos e proteção, como medidas de leis que
regem o embasamento moral e ético do país. Tendo em vista tais aspectos, é crucial refletir
sobre nossos comportamentos enquanto seres humanos e cidadãos. Não é possível ignorar que
os desarranjos sociais não existam e ou deixar para as instituições a total responsabilidade de
criar um espaço acolhedor, como o único lugar de cuidado, proteção e agente formador de
sujeitos afastados do convívio familiar.
Mesmo com as mudanças de paradigmas advindas com o surgimento do ECA, não foi
suficiente o reordenamento do serviço prestado pelas instituições de acolhimento. Além do
cunho qualitativo do serviço prestado, deve-se compreender que o afastamento familiar ou o
seu rompimento tendem a aumentar cada vez mais o abandono, prolongando o tempo de
acolhimento e privando-as do direto ao convívio familiar e social. E é nesse contexto que,
segundo Behring e Bosquetti (2006), o atendimento social do chamado terceiro setor advém
como uma alternativa para viabilizar um olhar mais atencioso aos que se encontram em
situações de vulnerabilidade.
O acolhimento institucional como espaço provisório vai além das questões da garantia
de direitos, proteção, desenvolvimento, entre outros. É crucial que tenha como meta o
acolhimento significativo desde a chegada da criança ou jovem à instituição. O zelo manifesto
na maneira de ouvi-los, permitindo entender sua história de vida, é postura que deveria ser
tratada com mais afinco, pois mostra aos acolhidos que eles têm um significado especial neste
lugar. Após a acolhida, vínculos sociais e da autonomia tornam-se um desafio tanto para o
indivíduo quanto para a instituição acolhedora nas suas rotinas de trabalho.
Falar de autonomia em abrigos como desafio para a instituição implica pensar em uma
forma de obtenção da autossuficiência, não apenas financeira, apesar de este ser um dos
grandes agravantes para a sustentação qualitativa do trabalho realizado. Deve ser uma
autonomia capaz de gerar novas oportunidades de inserção social. Assim, o desafio também
está na estruturação e manutenção das premissas que permitem identificar a instituição.
42
A segurança e o afeto sentidos nos cuidados dispensados, inclusive pelo acesso
social aos serviços, contribuirão para: a capacidade da criança de construir novos
vínculos; o sentimento de segurança e confiança em si mesma, em relação ao outro e
ao meio; o desenvolvimento da autonomia e autoestima; a aquisição de controle de
impulsos; a capacidade de tolerar frustrações e angústias, dentre outros aspectos.
(BRASIL, 2006, p. 26).
Quanto ao indivíduo, deve-se tomar cuidado no uso da palavra autonomia, pois, neste
caso, denota-se uma preparação para o livre-arbítrio, para a liberdade de escolha, a construção
do seu próprio destino e a configuração do seu existir. Chamamos a atenção para que se note
que o desenvolvimento ou preparo da autonomia do indivíduo inserido no contexto de
acolhimento é o oposto da realidade vivida. Por mais que os desejos, valores e a dedicação
das instituições para que os espaços sejam um lugar de autonomia, ainda assim, não é o local
onde a criança ou jovem nasceu, viveu e vivenciou relações de afetividade.
Ao entrar na situação de acolhimento, os sujeitos passam também a incorporar novas
regras. Espaços, instrumentos, jogos, brinquedos são coletivizados. O momento de quietude
pode denotar solidão e, muitas vezes, o que o separa de um horizonte é uma cerca ou um
muro. A escolha por uma atividade ou outra não é resultado de imposição, mas é o que se
oferece, a vida passa a ser metódica e monótona. Torna-se uma sistematização da tristeza e de
um cenário cruel com relação ao projeto de vida que se pretende formar.
A reprodução desse sistema é uma das barreiras que devem ser problematizadas para
que a instituição de acolhimento busque a sua real autonomia, além de se preocupar
preponderantemente com o cunho qualitativo de sua equipe técnica. Para isto, terão que gerar
novos aprendizados, formando novas possibilidades aos desafios que surgem.
Nesse processo de desenvolvimento, as instituições precisam mudar seu contexto,
acreditando e ofertando oportunidades que expressem o potencial de cada indivíduo. Assim
pode-se configurar a autonomia não como uma hipótese e sim como uma ação ativa, para que
as instituições de acolhimento não sejam apenas lugares onde se podem encontrar alimentação
e moradia, mas um ambiente de busca por uma oportunidade de mudança na situação de
precariedade do atendimento oferecido aos seus acolhidos.
Muitos esforços têm se voltado para a capacitação profissional, como uma das
alternativas para o retorno à convivência dos acolhidos com a comunidade, permitindo novas
possibilidades de inserção social e inclusão no mercado de trabalho, além de ser considerado
como uma das atividades que permite a convivência com a família. No entanto, como
construir essa prática?
43
Conforme estabelecido no ECA, no que se refere ao direito à profissionalização e à
proteção ao trabalho, o estatuto determina que a criança não pode trabalhar e que o jovem tem
direito à profissionalização e à proteção no trabalho respaldado pelo respeito à sua condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, preparando-o para a capacitação profissional
adequada ao mercado de trabalho.
Essa tipologia de trabalho educativo com jovens, nos termos legislativos, é
considerada como atividade laboral, ou seja, atividades que são praticadas para o meio do
trabalho. Porém, o destaque na lei para a profissionalização de jovens deve corroborar com
ênfase na esfera educativa, assim as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento
pessoal e social do educando prevalecerá sobre o aspecto produtivo, mesmo que haja uma
remuneração envolvida, não descaracteriza o caráter educativo (BRASIL, 1990).
Por mais que as atividades sejam semelhantes para os abrigados o propósito é
completamente diferente. O foco não está destinado à profissionalização e sim em uma
atividade que proponha cultura, lazer, diversão, interação com colegas, reintegração familiar e
não o aspecto produtivo. Desse modo, o acolhimento institucional deverá possibilitar
oportunidades que visem à efetivação dos direitos de seus abrigados. Dessa maneira, buscam-
se atividades práticas que permitam a eles ingressarem em curso de aprendizagem com ênfase
no desenvolvimento do trabalho educativo, normalmente, este tipo de prática é desenvolvido
dentro da própria instituição.
Embora o acolhimento institucional proporcione a inserção do acolhido em seu novo
ambiente na tentativa de suprir suas necessidades básicas, não será possível suprir a carência
ocasionada pela quebra do vínculo familiar e as necessidades afetivas. A criança passa a ser
cuidada por pessoas desconhecidas pelas quais não possui nenhum referencial afetivo, o que
pode ocasionar prejuízos em seu desenvolvimento global, seja comportamental, mental,
linguístico, social, afetivo, etc. Não se nega que isto não ocorra na sociedade como um todo,
mas as crianças acolhidas advindas de classes subalternas ficam mais suscetíveis a alguns
desses acontecimentos na sua fase de desenvolvimento. A falta da família por tempo
prolongado gera condições desfavoráveis para seu bom desenvolvimento, uma vez que
dificilmente recebem atenção semelhante aos laços paternais.
A família é considerada como um loco do desenvolvimento humano, no qual imprime
suas configurações, valores, sentidos de acordo com as vivências históricas e suas
contemporaneidades (BASTOS; ALCÂNTARA; FERREIRA-SANTOS, 2002). A família é
44
considerada como o primeiro agente de socialização de uma criança e como a família teve e
tem sofrido transformações ao longo da história, ao citarmos família não necessariamente
estamos tratando das famílias de origem, até mesmo porque consideramos a concepção de
família como aqueles que criam, cuidam e zelam pelo ser humano, num critério de relação
social e neste caso, sim, quão importante é a família de origem (biológica), mas não podemos
esquecer a importância de outras estruturas familiares que estão sendo constituídas rumo a
uma ordem democrática, em que também são constituídos vínculos afetivos como casais de
relacionamentos homoafetivos, casos de fatalidades nos quais a criança é adotada por parentes
ou não, entre outras situações.
A questão dos vínculos afetivos é decorrente de um processo de desenvolvimento que
começa desde a infância e percorre toda a existência do indivíduo. Assim, podemos
preconizar a importância da criança estar inserida em um contexto familiar tanto quanto um
olhar mais cauteloso para o mundo que rodeia a infância, ou seja, o desenvolvimento
emocional e socioemocional na interação com os outros, as capacidades motoras, intelectuais
e cognitivas, estabelecimento de valores, crenças, hábitos, entre tantas outras belezas e
cuidados deste espaço de tempo, culminando numa proximidade, dependência e identidades
significativas da relação entre pais e filhos e o meio de um modo geral, composto pelos seus
irmãos, parentes, amigos e afins. Essas interações ocorrem sendo comum que haja discórdias
de opiniões, agentes limitadores que denotam o que é permitido, além de suas oposições,
conflitos, problemas corriqueiros do dia a dia que são resultados das relações de reciprocidade
e dependência afetiva, condicionando a subjetividade num elo de relações (GIMENO, 2001).
Assim podemos perceber a importância da família na questão de cuidados advindos de
uma relação afetiva, remetendo até mesmo a uma questão de sobrevivência dos seus
descendentes. A criança por si só não seria capaz de se autossustentar se não tivesse a
presença de um adulto, a qualidade do seu desenvolvimento está diretamente ligada a uma
questão de relacionamento do ser humano, objetos e meio ambiente. Remeter a uma
vinculação que se consolida numa relação de afetividade e pertença no contexto familiar,
culmina aos pais responsáveis a qualidade da formação e a criação de seus filhos, além da
formação da identidade que coaduna no estabelecimento de valores.
Para tratarmos da formação identitária é preponderante abordarmos primeiramente o
conceito de identidade. Segundo Daunis (2000), a identidade é encarada como um atributo de
qualidade e condição relacional do próprio ser com o meio que, com sua consciência crítica e
personalidade, configuram as suas características de desenvolvimento. Essas mudanças são
45
intrínsecas de cada indivíduo que, com seus próprios julgamentos, constituem um sentimento
de segurança daquilo que pretende representar na sociedade. Segundo o autor a identidade
envolve a formação do eu, a autoestima, personalidade e a individualização.
Segundo Lopes (1995) os instintos governam as atitudes da criança, já que são
desprovidas de juízo moral no seu nascimento, por uma questão de sobrevivência ainda
limitada, choram, engolem, respiram, e aos poucos vão se desenvolvendo e estabelecendo
ordens de valores com suas influências no meio e com os relacionamentos. Posteriormente os
instintos vão sendo ocupados por juízos de valores aprendidos com outras pessoas, que
determinarão a ação do seu comportamento.
A formação identitária é um processo que ocorre da infância à adolescência, sendo a
família grande condutora neste processo de formação e educação do indivíduo. Percebemos
que a desestruturação familiar advinda do desprezo dos pais ou da falta de carinho e cuidados
básicos ou, ainda, a permissividade e falta de limites podem acarretar problemas nesse
processo de formação identitária por parte de crianças e jovens. Esses problemas advindos da
ausência do acompanhamento familiar remetem a uso abusivo de álcool e drogas,
criminalidade, entre outros, presentes em todas as classes sociais. Formam-se pessoas
alienadas de valores e juízo, uma vida sem sentido num mundo onde tudo é permitido,
dificultando a visualização de soluções para saciar os diversos desejos fomentados pelas
propagandas veiculadas na mídia.
Para Daunis (2000) a ineficácia da relação pais e filhos circunscreve-se na palavra
ausência. A qualidade da formação de seus filhos advém de um despreparo emocional e
organizacional no contexto familiar, falta um diálogo aberto com seus filhos, o
acompanhamento nas etapas da vida, a presença marcante de um pai e de uma mãe que está
de braços abertos para receber a criança ou adolescente, antes mesmo do seu nascimento, nas
vivências do dia a dia, além da questão espiritual, no intuito de fomentar suas crenças.
Tratamos da família num contexto importante de vinculação relacional com seus
filhos. Partimos do pressuposto de um olhar familiar considerando as contribuições que a
relação circunscreve na formação identitária e relacional, porém ao tratarmos da revinculação
familiar teremos que considerar a hipótese, será que já existia conceito de família antes?
Revincular quais vínculos, os mesmos do passado ou com uma nova perspectiva de sentido na
vida?
46
Para muitas crianças e jovens acolhidos o retorno à família de origem é uma opção
descartada devido à gravidade do problema em questão, tornando-os muitas vezes vítimas do
esquecimento, quando passam anos sem terem uma definição sobre suas próprias vidas.
Passam isolados, num mundo diferente de um contexto familiar, e independente da qualidade
do atendimento prestado por esses abrigos, dificilmente conseguem apagar o contexto
histórico vivido na família, apesar do sofrimento pelo qual passaram se sentem distantes de
suas famílias e familiares, mas seus sentimentos por eles ainda se mantêm vivos.
A terminologia revinculação familiar significa aproximar novamente os vínculos
afetivos que foram rompidos, podendo ser a família de origem, ou caso esta esteja
impossibilitada devido à perda da guarda, se sugere alguém que a criança ou o adolescente
tenha grau de parentesco (irmãos, avós, tios, primos) ou em último caso outras pessoas com as
quais estabelecerão vínculos de afinidade. Em todos os casos deverão oferecer condições e
motivações para assumi-las. Durante este processo de revinculação, o grande destaque está no
saber ouvir as crianças e os jovens (quais seus desejos, com quem querem ficar), além disso, a
família deve ter o acompanhamento e atendimento oferecido por lei, procurando solucionar os
motivos pelos quais levaram ao abrigamento, passando por avaliações, aproximações entre
indivíduos realizadas gradativamente por um período planejado pela própria equipe de
serviços de acolhimento (OLIVEIRA, 2010).
Trazemos essa discussão com intenção de apresentar o contexto de muitos que se
encontram nessas condições. Uma vida de solidão, sem perspectivas imediatas de mudança,
onde muitas vezes a pessoa se sente silenciada, isolada, marcada por tristeza e ausente de um
enredo onde seria o personagem principal. O prolongamento da indecisão sobre sua vida
acaba afetando o desenvolvimento global do ser, pois seu universo dentro de uma instituição é
limitado, impossibilitando construir uma relação favorável de liberdade com o contexto
comunitário e ampliar suas perspectivas de vida.
Para discutimos essa questão delicada, envolvendo as condições éticas e morais, além
do desprendimento de muita emoção, a revinculação tornou-se assunto de grande destaque na
Lei nº 12.010 de 2009, incluiu nos termos do parágrafo único do art. 23, dos incisos I e IV do
caput do art. 101 e dos incisos I a IV do caput do art. 129 do ECA. “A manutenção ou
reintegração de criança ou adolescente a sua família terá preferência em relação a qualquer
outra providência, caso em que será esta incluída em programas de orientação e auxílio”.
(BRASIL, 1990, p.1).
47
Ora, pois, as situações que levaram às condições de acolhimento muitas vezes são
situações desumanas, mas será que essa inclusão em programas de orientação e auxílio é
capaz de mudar todo o contexto da reestruturação familiar, permitindo assim, seus filhos
retornarem aos lares e família de origem?
As incertezas pairam, não queremos desacreditar no ser humano, de forma alguma, até
defendemos, nesta pesquisa, a importância da humanização, nossas preocupações de debates,
culminam não nos familiares, mas sim nas promessas de ação do governo como sendo
prioritárias, mas não realizadas. Assim, a revinculação familiar na sua complexidade pode ser
compreendida a partir de aspectos históricos, jurídicos, psicológicos, sociais, culturais e pelos
aspectos individuais daqueles que vivenciam essa situação (SERRANO, 2008).
2.2 - O ABRIGO PROJETO LAR FELIZ E O CURSO MÃO NA MASSA
A ONG “Projeto Lar Feliz” é uma instituição de acolhimento institucional para
crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, situada no interior de São Paulo.
Considerada uma instituição da sociedade civil, sem fins lucrativos, visa oferecer um
ambiente familiar com objetivos que vão além da institucionalização. O local é próximo à
moradia dos familiares e de sua comunidade de origem. Atende a demanda de quatro cidades
circunvizinhas e objetiva preservar vínculos familiares e comunitários, além de facilitar o
desenvolvimento do trabalho de reintegração familiar. O atendimento é destinado a crianças e
jovens de ambos os sexos, com idade entre 0 a 17 anos. Ao completarem 18 anos, caso não
tenham possibilidade de ser inserido em uma família, a sua própria ou substituta, e se ainda
não estiverem prontos para se tornar independentes, os jovens são estimulados a viver em uma
república para conquistar sua autonomia e emancipação, além de construir uma rede de
relações pessoais e sociais mais diversificadas. Vale ressaltar que nesta fase eles são
considerados como maiores de idade, assumindo uma carga maior de responsabilidade sobre
sua própria vida.
A instituição proporciona às crianças e jovens moradia em casas separadas por sexo e
idade, totalizando cinco casas, com oferta de alimentação diária, que envolve café da manhã,
almoço, lanche da tarde e jantar. Comumente, os passeios estão voltados ao prazer alimentar,
em pizzarias, sorveterias, restaurantes, entre outros. Cada um possui seu vestuário, muitas
vezes coletivizados entre eles. Não é difícil encontrar debates sobre “quem pegou meu
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chinelo”, “devolve minha camiseta”. Tais itens são adquiridos por donativos ou compras
mediante a necessidade.
Contam com acompanhamento para a manutenção da saúde física e psicológica,
atividades de esporte como futebol, artes marciais, lazer no contato com a natureza, piscina,
passeios, cursos de dança, expressão corporal, artesanato, curso de confeitaria e panificação
industrial intitulado como “Mão na Massa”, além da orientação religiosa voltada a doutrina
evangélica, ministrada pelo fundador, o próprio Pastor.
Atualmente o limite de atendimento restringe-se a 41 acolhidos e possui um plano de
trabalho suficiente para atender até 45 abrigados. O atendimento abrange as cidades de
Jaguariúna, Santo Antônio de Posse, Congonhal, Serra Negra e Águas de Lindoia.
O apoio na manutenção do abrigo é feito através de convênios com as prefeituras de
cada cidade atendida, através de doações, eventos sociais, Nota Fiscal Paulista e parcerias
com o Banco do Brasil, Conselho Municipal das Crianças e Adolescentes (CMDCA) e
empresas privadas.
O acompanhamento aos familiares é feito através de encaminhamento a órgãos de
auxílio como: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Conselho
Regional de Assistência Social (CRAS), Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT),
Unidade Básica de Saúde (UBS). Cada um ocorre conforme sua necessidade para que tenham
auxílio à saúde e oportunidade de emprego. Além disso, a ONG “Projeto Lar Feliz” participa
de atividades que a comunidade desenvolve como campeonatos, atividades culturais
recreativas, esporte, lazer, cultura, apresentações em eventos, entre outros.
Cada criança ou jovem carrega em si suas particularidades e os motivos para estarem
ali. E por mais curta que tenha sido, todos tiveram uma história familiar que foi interrompida
pela violação de alguns de seus direitos, em que a família perdeu a capacidade de manter a
proteção de seus filhos. Consideramos pertinente retratar alguns dos acontecimentos buscando
contextualizar o curso numa relação que acontece entre pais e filhos e grupos específicos, na
tentativa de ilustrar as vivências e discutirmos sobre o termo vinculação familiar além de sua
revinculação e a importância da família como agente de formação identitária.
As crianças e jovens, com todas as mudanças vividas e suas bagagens históricas,
demostram de alguma forma seus sentimentos. É visível o carinho que as crianças têm para
distribuir com aqueles que as rodeiam, querem colo, abraços, beijos, afagos; até mesmo
ocorre uma competição para receber atenção especial. Assim abordamos algumas das
49
experiências vivenciadas no curso Mão na Massa, num período que decorreu do ano de 2013
a 2015, com início de suas atividades entre os meses de março a dezembro, de acordo com
cada ano em questão.
As crianças de até aproximadamente seis anos demonstravam um forte apelo
sinestésico, trocavam facilmente uma chupeta pelo alimento do dia. Podia ser doce ou
salgado, não importava, o que tornava o alimento algo tão gostoso de comer era a vontade de
saborear o novo e experimentar novas possibilidades de diversão e arte. Neste caso citamos a
representação simbólica da arte, que se desfaz num critério de lambança e liberdade, com o
alimento ou com seus insumos. No curso, é comum encontrar as crianças no chão
engatinhando, brincando com seus brinquedos ou no colo de alguém, basta aguardar um
tempo que elas se aproximam abraçando nossa panturrilha ou puxando nossa vestimenta para
baixo. Expressam, no balbuciar, a alegria de estarem juntos e se divertirem, para elas o
ambiente é completamente diferente do mundo do adulto, o curso é visto como um momento
de alegria e compaixão. Quiçá a vida pudesse percorrer com os olhos de uma criança.
Com os meninos e as meninas pequenas (assim como são chamados devido à
organização de suas casas no abrigo) a vivência foi bem maior, mas também houve
convivência com jovens, nos encontrávamos numa rotina semanal, podendo estar mais
presentes um na vida do outro. O vínculo entre pesquisador e participantes do curso foi se
fortalecendo a cada encontro, gostávamos de nos conhecer perguntando sobre diversos
assuntos, entre eles, se tínhamos família e onde eles moravam, a história de vida, nossas
particularidades, os nossos sonhos, entre outros. A qualidade dessas perguntas tornava algo
tão prazeroso, ao passo que estávamos fomentando sonhos ou servindo como referência,
exemplos de vida. Muitas vezes fui surpreendido por algumas dessas crianças, com perguntas
comoventes, no desejo de serem adotadas por mim ou de passarmos os finais de semana
juntos.
Imaginávamos pertencentes a um contexto familiar, o ambiente externo do local de
onde acontecia o curso, não era preponderante, priorizavam fazer o curso e nele foram criadas
suas caracterizações, no estabelecimento de regras, nas divisões de tarefas e na formação das
equipes. Presenciávamos, entre uma situação e outra, os confrontos de ideias, que muitas
vezes se transformavam em discussões ou agressões físicas entre as crianças. Depois de
algum tempo, quando as coisas se acalmavam, pediam desculpas e ficavam o restante do
curso em silêncio, cabisbaixos ou no aconchego de alguém. Traziam recortes de suas histórias
50
de vida, muitos eram realmente mais expansivos e outros gentilmente tentavam apaziguar a
situação. Com os jovens não foi tão diferente, porém tinha suas peculiaridades.
No início do curso em 2013, crianças e jovens compartilhavam os mesmos espaços e
devido às diferenças, criavam situações inusitadas. Alguns jovens acabavam conturbando o
ambiente que era coletivizado, ficavam inquietos e dificilmente acatavam ordens. Outros
tinham uma postura mais amadurecida, facilitavam o andamento do curso e a sua organização,
falavam sobre o desejo de constituírem famílias e continuar os estudos. Uma das meninas
jovens, que frequentou o curso e teve grande destaque, conseguiu seu primeiro emprego numa
padaria. Quando os horários de sua folga cruzavam com os dias do curso ela fazia questão de
compartilhar suas experiências e levar seus aprendizados para o ambiente de trabalho ou
demonstrava para nós o que havia aprendido lá.
A separação dos grupos de crianças e o de jovens, em 2014, facilitou a condução do
curso, foi possível dedicar maior atenção às faixas etárias com suas maturações mais
aproximadas. O horário matutino ficou destinado às crianças e o vespertino aos jovens. No
período da manhã, fazíamos questão de tomarmos o primeiro café da manhã juntos, isso se
tornou uma rotina entre os que estavam presentes, muitos se alimentavam em suas casas
quando acordavam e por volta das 7h30 desciam para compartilhar do momento, tomando o
segundo café da manhã, e às 8h o curso começava. Aos poucos o grupo estava completo
totalizando em média de seis a dez participantes, mas com o decorrer do tempo esse número
foi caindo e terminando o ano com seis participantes mais assíduos. As crianças prevaleceram
no interesse do curso, quando era possível frequentavam ambos os horários, por várias vezes
no período da tarde havia apenas crianças.
Os jovens demonstravam um sinal de cansaço, pois quando o curso começava eles
estavam acabando de chegar do colégio. O grupo oscilava com no máximo seis participantes,
demostravam o interesse de ir ao curso para se divertirem ou distraírem, já que não havia
outra atividade no horário da tarde, porém faltavam bastante no desejo de descansarem em
suas casas, auxiliar na limpeza ou estudar. Os assíduos foram assumindo mais
responsabilidades dentro do curso, concomitantemente às exigências, no caso foram
assumindo autonomia para a execução das atividades, as ordens eram estabelecidas pela
formação do grupo perante a receita do dia, assemelhando-se a uma cozinha profissional. Isso
contribuiu para a tramitação do diálogo, passaram a ouvir e saber se posicionar. A postura
conturbada do passado foi atenuada, mas às vezes presenciávamos o conflito de ideias e a
dificuldade nas relações de gênero, marcante também com as crianças.
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Crianças e jovens tinham a mesma conduta ao término do curso, auxiliavam em
alguma pendência de limpeza e organização, retiravam a produção do forno, fogão ou da
geladeira e todos nos alimentávamos juntos numa relação de servidão e partilha. Outros
gostavam de colocar o alimento em saquinhos e levar para suas casas partilhando da produção
com as educadoras sociais ou com os funcionários em geral. Outro hábito marcante, essa
questão de colocar o alimento em saquinhos. Dentre tantas outras ideias que foram surgindo,
uma das crianças pediu se poderia levar a produção do curso como lanche da escola e se podia
compartilhar com seus colegas de classe. Essa solicitação foi acatada e a produção do curso
tornou-se o lanche da escola dos participantes. No decorrer dos acontecimentos, passamos a
produzir juntos também o lanche da tarde para todos que participavam da vivência da
instituição. O saquinho contendo a produção do dia também foi incorporado aos familiares,
que levavam para suas casas aquilo que haviam produzido no dia. Mais uma vez a
responsabilidade e o enfrentamento das dificuldades foram sendo alimentadas, despertando
um interesse maior no curso, já que o mesmo trazia muitas novidades e curiosidades
alimentares.
Imagem 1 - Aula com crianças no curso Mão na massa: preparo de broa mineira
Fonte: Projeto Lar Feliz (2015, p. 1).
52
Dentre essas curiosidades, eram relativas à produção em si, cores, formatos e
provocações distintas numa alquimia de sabores que alimentavam novos prazeres ainda
desconhecidos como: petit gateau, pão australiano, pão pitta ou pão sírio, popcake, cupcake,
donuts, bolinho de chuva recheado, pão de legumes tricolor, pastifícios na produção de
massas caseiras, panetone, tuilles, entre tantas outras experiências vividas ao longo desses três
anos juntos.
Em 2013, havia de seis a oito familiares que participavam do curso, aos sábados, no
anseio de rever seus filhos, reaproximar as relações e, ao mesmo tempo, aprender culinária.
Tudo era novidade, as pessoas com as quais conviviam, o espaço, a relação com os
funcionários, estagiários e, além disso, ter que presenciar a produção culinária seguindo
orientações técnicas, encarar os desafios e lidar com as circunstâncias.
Outras situações advindas desse cenário cheio de novidades, tão diferente da realidade
no meio comunitário ou de dentro de suas residências, acarretaram certos constrangimentos
que denotaram alguns questionamentos como: Esse curso é para mim mesmo? Posso usar o
que está ao meu redor? Eu que irei fazer? Vou poder levar o que sobrar para casa? Enfim,
tanto eles criavam seus questionamentos, mas eu também criava os meus, porque tudo era
novo, poucos nos conhecíamos, eu nunca havia trabalhado em uma instituição de
acolhimento, além de não ter experienciado situações com o perfil deste grupo ao longo de
minha carreira, enfim, questionava: Como será o curso? Quem ficará com quem nas divisões
de tarefas? Como organizar os horários e o andamento da atividade, estimulando-os a
incorporarem ao curso? Será que eles voltarão daqui a quinze dias?
O curso seguiu sua jornada, famílias novas entraram, outras saíram, algumas se
enraizaram ao curso e, apesar de terem reconquistado a guarda dos seus filhos, ainda mantém
presença ativa nas aulas. O curso é desenvolvido aos sábados, quinzenalmente, com duração
de três horas, no período das 9h às 12h.
Os familiares chegam coletivizados, por meio de transporte público da cidade onde
moram, as crianças demonstram uma empatia maior que a apresentada pelos jovens e
costumam correr para o portão esperando seus familiares chegarem ou ficam emburradas, às
vezes por motivos particulares, que presumimos hipóteses de algum mal-entendido durante o
decorrer da semana, ou devido à tristeza que começa a latejar desejando que seus familiares
não fossem embora nunca mais ou que pudessem levá-los de volta para suas casas de origem.
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Muitos descem a ladeira que existe para chegar ate o refeitório, correndo, de bicicleta
ou acompanhando seus familiares de mãos dadas, num contexto que agita o ambiente
campestre, ouvem-se os pássaros e o som do vento, por um período, acalentam a todos.
Conforme vão chegando se deslocam para suas mesas, já representando um sinal de
pertencimento ao espaço, colocam seus objetos no chão ou próximo a eles, nas cadeiras que
circundam o refeitório, cumprimentamo-nos com abraços, apertos de mão e beijos,
amarramos uma prosa curta perguntando sobre a semana, sobre os acontecimentos e muitos
fazem questão de envaidecer-se de suas conquistas, ter mudado de casa, conseguido um novo
emprego, ter reconquistado a guarda do seu filho ou ainda que a não tenham obtido já se
alegram na certeza de que tudo está dando certo! Contam que haviam refeito as receitas em
casa, configurando seus aprendizados, além de tantos outros assuntos que permitem ainda
mais a aproximação da relação alunos e professor, ou melhor, uma aproximação de
humanidade sem classificações.
O curso precisa ser iniciado na hora prevista, pois a questão do horário de término não
pode se estender, já que há regras internas e também para o uso do transporte, que muitas
vezes os deixavam ou até não buscavam os familiares para a ida ao curso. Assim a equipe
técnica, estagiários e professor chegam por volta das 7h para a separação dos ingredientes por
bancada, além de organizar o espaço, bem próximo das 9h, quando bato palmas, todos sabem
que é hora de fazer silêncio e prestar atenção.
O pastor do abrigo, quando queria silêncio, usava uma expressão adotada por ele, com
o som de “pam, pararam pam pampam!”, que é cantada no coletivo e ao término dessa
expressão realmente todos silenciavam. Desejamos bom dia a todos novamente, cada um
cumprimenta seus próximos e, enquanto isso, sempre há crianças menores querendo subir no
meu ombro para dar aula comigo, numa situação que é revezada por mim, e que traz bastante
alegria a todos. Parece um teatro, com algumas diferenças, não há ensaio prévio é algo
espontâneo, numa relação em que é difícil saber quem é mais criança ali no meio: as crianças
ou o professor.
Os familiares ao verem a criança imitando e demonstrando como se faz a receita,
prestam muita atenção e se divertem, a satisfação e interesse da criança é motivo de alegria e
orgulho para seus pais. Sendo assim, aos sábados, o curso se transformou num ambiente
prazeroso, tanto que entre os anos de 2013 a 2015, a escala de presença saiu de oito para
quatorzes familiares, totalizando no geral cinquenta pessoas aproximadamente de laços
familiares e mais quinze pessoas como equipe técnica.
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Temos um intervalo aleatório que é realizado mediante a produção do dia, como
exemplo podemos citar dias em que produzimos receitas que têm um período de fermentação,
descanso e cocção ao assar, o que gera um período sem atividade, deixando-nos desocupados,
assim podemos, relaxar um pouco, tomar um café, suco de laranja ou iogurte, além de outras
bebidas que são inventadas de acordo com o clima, sucos diferentes para dias quentes como:
melancia com manjericão, abacaxi com hortelã, maracujá com gengibre, que acabaram
entrando no gosto popular, além do leite com açúcar queimado e canela para os dias mais
frios. No intervalo, acontece bastante de familiares e seus respectivos filhos irem para grama e
ficarem conversando em meio ao cenário verde, outros ficam sentados nas cadeiras dentro do
refeitório dialogando em tom de voz baixo ou vão se divertir, num curto espaço de tempo, nos
brinquedos disponíveis, balanços, corda bamba, escorregador e outros.
Ao retornar para executar o desfecho do curso, a hora de ir embora e se despedirem se
aproxima dando uma sensação de desejo que o ponteiro do relógio parasse ou contasse as
horas ao contrário, apenas para ficarem mais um pouquinho. A todo final do curso, é o mesmo
martírio, sentem no peito a dor de um choro ou de uma lágrima escorrendo em silêncio,
dentro de um abraço. Não temos um adjetivo único para expressar esse momento e por mais
que fossemos tentar, seriam citações simbólicas, como tristeza, dor, saudade, amargura, são
múltiplos, acreditamos que a despedida realmente gera uma situação desconfortante, muito
particular.
Todos, independentemente, do tempo de convivência nos ensinaram a interpretar a
vida de outra forma, na sutileza de uma criança de colo, nas aventuras de uma criança, nas
expectativas de um jovem e nos anseios de uma família. Assim podemos aproveitar cada
tempo de vida, vivido, pois sempre existirá algo de novo para aprender e experienciar.
Acreditamos que também deixamos nossas marcas, o passado fará parte de um
presente e talvez, quando vasculharem suas trajetórias, encontrarão um pouco de farinha,
ovos, manteiga, leite, açúcar, sal e fermento, acrescidos de aprendizados, carinhos, risos e
convivências; a figura de pessoas que se tornaram personagens de um enredo, entre tantas
outras vivências desorganizadas na memória, que facilmente remeterão às experiências boas
ou ruins, mas as provocações dos sabores e os momentos de compaixão sempre prevalecerão.
A partir desse contexto narrativo, relatando situações corriqueiras que aconteceram e
acontecem no curso, podemos identificar situações que simboliza aspectos positivos e
negativos que permeiam a vivência de um contexto familiar, repercutindo numa formação
55
identitária, além de galgar novas esperanças de vida que advém dos sonhos, de novas
oportunidades, no fazer diferente ou igual que seja, mas que haja novos encantos.
2.2.1 - Conhecendo o local e a equipe de trabalho
A ONG “Projeto Lar Feliz” está situada na zona rural com uma distância de
aproximadamente três quilômetros do perímetro urbano da cidade de Holambra e cinco
quilômetros do perímetro urbano de Jaguariúna. O acesso se dá através da Rodovia Ademar
de Barros por uma estrada de terra posterior ao distrito industrial de Jaguariúna ou saindo da
avenida principal de Holambra e seguindo a área rural. A instituição fica entre as duas cidades
e ambos os acessos são por estrada de terra.
Ao chegar ao abrigo, vê-se que ele está rodeado por alambrado e não existem muros
que o separam do meio externo, assim percebe-se de dentro ou de fora a movimentação e o
acontecimento de atividades das crianças e jovens, como limpeza dos quartos, brincadeiras,
corre-corre, contato com a terra, ajuda aos funcionários, na quietude sob a sombra de uma
árvore e ou na grama expostos ao sol.
Na frente da entrada principal, existe um espaço para estacionamento e o acesso é feito
mediante identificação, após apertar o interfone. Nesse acesso principal, encontram-se os
funcionários responsáveis pelo canal de comunicação, já que toda visita é realizada mediante
agendamentos, porém, são muito flexíveis e receptivos nesse quesito, não deixando de seguir
ao mesmo tempo as regras estabelecidas. Tais regras envolvem horários de atendimento,
identificação, agendamento de horários, número de visitantes, nome de todos visitantes,
tempo de permanência, limite de visitação aplicada aos familiares, entre outros, para que não
prejudiquem as atividades e a rotina dos acolhidos.
Em meio aos cascalhos e gramas, há o acesso às casas, onde as crianças e jovens
residem; próximo ao limite da parte superior à esquerda, está o berçário; mais abaixo, a casa
dos meninos jovens; de frente à entrada principal, a casa das meninas jovens; descendo à
direita existem duas casas, as das crianças, separadas por gênero. Ambas as casas contemplam
os mesmos espaços com tamanhos e números de quartos distintos, caracterizando-se por
serem construídas no mesmo formato plano. Os banheiros, quartos, salas, cozinha, área
externa com mesa. Lá são realizadas as refeições e atividades escolares; armários construídos
56
em alvenaria são coletivizados; o chão é de piso frio e apesar da incidência de raios solares na
região, o clima do ar dentro delas é fresco com cheiro característico.
Todas as casas possuem um espaço aberto onde são colocadas as fotos das atividades
desenvolvidas e a história de vida de cada membro acolhido, assim pode-se perceber o contato
com quem esteve lá e quais estão presentes. Esse contato com imagens deixa o ambiente
alegre juntamente com objetos e desenhos estampados no intuito de trazer alegorias. Nas
paredes, há pinturas divertidas que indicam o desenho de uma família, mãos pintadas com
cores distintas, além de mensagem de amor e fé.
Os escritórios recentemente reformados contemplam dois espaços, um com estilo de
sobrado e outro plano. No piso superior do sobrado, está a sala da diretoria, juntamente com
uma sala de reunião e outra sala com a equipe de marketing, assistência social e psicóloga,
voltada ao cunho administrativo.
No piso inferior do sobrado, encontra-se o escritório de atendimento ao público e setor
administrativo, voltado a finanças e recursos humanos. Ao lado, encontra-se outro escritório
em cuja entrada está uma sala de estar onde são realizadas as recepções, oferecendo-se café,
bolos ou a produção do curso “Mão na Massa” executada no dia, além de ser um espaço de
lazer e encontro de funcionários. Seguindo por esse espaço de lazer, existem três outros
espaços: à direita, uma sala de reunião e acompanhamento com a psicóloga; à esquerda, uma
sala de reunião voltada para assuntos referentes ao Conselho Tutelar; e à frente uma sala dos
assistentes sociais.
Em meios às árvores, está um espaço de lazer com brinquedos que permitem a
atividade física de crianças e jovens, como escorregador, barra de ferro, balanços de madeira,
corda bamba, quadra de futebol no chão batido, entre outros. Bicicletas, velotrois, patins e
skates desgastados pelo tempo não têm locais definidos, acabam sendo deixados próximos à
área interna ou externa da casa. Árvores frutíferas estão próximas e quando é época de
determinado fruto, facilmente podemos ver crianças e jovens em cima da copa das árvores.
Nas redondezas, pode-se ver o plantio de cana de açúcar, criadouro de animais, estufas
de plantas e camponeses com seu fogão à lenha aceso. Na estrada de terra, é comum encontrar
trabalhadores rurais indo ou voltando do serviço, caminhões de terra, aves soltas ciscando e
sobrevoando a região, caracterizando o ambiente com os sons dos pássaros. Quando chove, o
acesso fica limitado, sendo necessária maior cautela na direção, pois o chão de terra se
transforma em barro e, muitas vezes, a água invade os caminhos.
57
Os aspectos internos e externos denotam a preocupação com a qualidade do serviço
prestado, os administradores investem em infraestrutura e na manutenção qualitativa dos seus
funcionários. Existem melhorias a serem realizadas quanto ao atendimento aos acolhidos,
mas diante de tantas dificuldades, podemos considerá-los razoáveis em comparação com a
história do acolhimento no Brasil.
O papel de educador não pertence apenas a um grupo específico de profissionais ou
àqueles que desenvolvem atividades consideradas culturais, pelo contrário, todos que
compõem a equipe técnica do abrigo e que se relacionam com as crianças e jovens acolhidos
são considerados educadores, seja com maior ou menor convivência, pois fazem parte da
vivência das crianças e jovens que ali se encontram e os envolvidos nesse processo sempre
deixam sua marca na história de vida, no ambiente e na história da instituição. Assim
podemos considerar que a educação se constrói num elo de relação e dentro das instituições
de acolhimento existe algo a ser vivido, experienciado, ouvido, aprendido e participado.
Segue, abaixo, imagem de professores e estagiários do curso.
Imagem 2 - Equipe do Curso Mão na Massa – professores e estagiários.
Fonte: Projeto Lar Feliz (2015, p. 1).
58
Chamamos atenção à importância dos relacionamentos, para além de tornar algo coeso
e profissional, as instituições também deveriam priorizar os significados ali constituídos.
Vimos que as pessoas com as quais nos relacionamos sempre deixam suas marcas, umas
parecem que foram escolhidas a dedo, outras vivenciam o momento e a partir de um tempo
ficam na memória, outras queremos levar para vida toda. Olhando para esse cenário e
observando que crianças e jovens participam da vivência da instituição com suas
responsabilidades envolvidas e relacionando-nos com os membros da equipe, vimos à
importância dos cargos, mas devemos nos atentar aos significados de cada pessoa ali atuante,
que muitas vezes passam despercebidos como os encarregados dos serviços gerais, as
cozinheiras e auxiliares de manutenção. Tanto lidar com a terra ou com alimento trazem
conotações prazerosas, mas nos relacionar com as pessoas pode demonstrar algo mais
precioso.
Assim temos a equipe de trabalho que compôs a Instituição Projeto Lar Feliz no ano de
2015 demonstrado na tabela abaixo.
Tabela 1 - COMPOSIÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA E SUAS ATIVIDADES:
Função Quantidade Atribuições
Presidente 1 Atividades administrativas e se responsabiliza judicialmente
por todos os acolhidos.
Vice-presidente 1 Atividades administrativas e se responsabiliza judicialmente
por todos os acolhidos.
Coordenador
Geral
1 Gestor de processos administrativos e acompanhamento das
atividades e liderança do grupo.
Psicólogo 2 Atuação na esfera administrativa, atendimento aos acolhidos e
acompanhamento aos familiares.
Assistente
Social
2 Processos de relacionamento social entre os acolhidos e
atendimento aos familiares.
Assistente
administrativo
1 Responsável pelo departamento financeiro e recursos humanos.
Gestor
Marketing
1 Responsável pela divulgação do abrigo, para captação de
recursos para a manutenção do abrigo
Comprador 1 Efetua as compras e se responsabiliza pela manutenção do
estoque de alimentos, bebidas, material de limpeza, etc.
Serviços Gerais 4 Limpeza e organização geral e cozinheiras que produzem todas
as refeições do abrigo.
59
Encarregado
manutenção
1 Manutenção geral do abrigo: obras, elétrica, hidráulica,
marcenaria entre outros.
Auxiliar de
manutenção
2 Auxilia na manutenção geral do abrigo.
Professor fixo 1 Aulas de musicalização para os acolhidos.
Professor
autônomo
2 Prestação de serviço por prazo determinado ao decorrer do ano:
Teatro e Coreografia e o Curso Mão na Massa.
Educador social 30 Atividades de monitoria e zelo pela higiene, educação,
incorporação de regras.
2.2.2 - O ambiente e o desenvolvimento do curso Mão Na Massa
“... e não vejo a hora de chegar o sábado par vir aqui aprender...”
(Camila)
Em 2013, ano de inauguração do Curso “Mão na Massa”, o mesmo era executado no
refeitório - um amplo espaço com mesas e cadeiras, móveis, com teto recoberto por telhas e
forrado com madeira. Nas paredes, estão ventiladores para circulação do ar, uma pia grande,
reformada para a lavagem de materiais e equipamentos de uso do curso, também utilizada
para lavagem de pratos dos funcionários. Ao lado, havia uma pequena padaria industrial, os
materiais de grande porte ficavam nas mesas e, na bancada de pedra, eram executadas tarefas
como a sova da massa, o pré-preparo e a divisão dos grupos. No ano de 2015, o curso era
ofertado às sextas-feiras, com oito crianças e seis jovens realizando as mesmas atividades,
apenas no horário vespertino, das 13h30 às 16h30, com início em março e término em
novembro. Aos sábados quinzenais, o curso era ofertado apenas aos familiares e seus
respectivos filhos. Envolvia, na época, de seis a oito famílias que se interessaram a participar
do curso. A presença e assiduidade era algo fundamental na manutenção do curso e nas
perspectivas primordiais que eram voltadas à revinculação familiar.
Em 2014, o curso manteve os ideais, usufruindo do mesmo espaço, porém com
algumas mudanças metodológicas. O curso passou a ser executado às segundas feiras no
período matutino das 08h às 10h30 com seis crianças que estudavam no período vespertino.
Após as 10h30, as crianças saiam para tomar banho e almoçar para ir à escola e muitas vezes
60
voltavam para comer os doces produzidos no curso como sobremesa. O período vespertino
era destinado a cinco jovens e seis crianças que estudavam no período matutino, executando
receitas com maior grau de dificuldade e nível profissional. Porém, o curso representava um
grande atrativo para muitas crianças e o público frequentador, muitas vezes, era composto
apenas por crianças tanto no período matutino e vespertino, até mesmo quando não tinham
aula, o curso envolvia a grande maioria das crianças acolhidas. Tornou-se motivo de alegria e
distração às segundas-feiras.
Aos sábados, o curso destinado aos familiares passou a adotar receitas que eles
pudessem executar em casa. Assim, a panificação e confeitaria deram espaço a produções
culinárias de uso doméstico como lasanha, nhoque, pizza, macarrão, pães, bolachas e bolos
simples. É interessante observar que cinco das famílias do ano de 2013 continuaram
participando do curso.
Em 2015, o curso esteve mais consolidado; a aceitação pelas crianças, jovens e
familiares permitiu à instituição investir em infraestrutura, adquirindo um espaço maior para a
execução do curso, ao lado do refeitório, além de produzirem nesses espaços o lanche da tarde
e, muitas vezes, o café da manhã dos acolhidos.
Às segundas-feiras, manteve-se a mesma organização: no período matutino com seis
crianças participantes e vespertino com cinco jovens no início do ano. Porém, no horário
vespertino, o curso destinado aos jovens executou receitas com cunho culinário e receitas de
uso doméstico. Passou-se a ensinar habilidades básicas de cozinha como lavar folhosos e
produzir saladas, cozinhar arroz, feijão, sopas, assar, grelhar, fritar, entre outros do gênero. Os
jovens foram se desinteressando aos poucos e esse horário de curso passou a incorporar outras
crianças, recém-abrigadas ou que estavam sem atividade.
O motivo do desinteresse advém da falta de acompanhamento por parte dos monitores,
que em muitas situações não deslocavam os participantes ao curso. A disciplina de respeitar
os horários e a postura a ser adotada durante o curso como algo educativo não geravam
interesse a alguns participantes. Tal desinteresse muitas vezes viravam conflitos ou brigas
entre eles, os que queriam aprender e os que não tinham interesse na culinária. Outro fator
preponderante foi à falta de planejamento das atividades, cruzando horários. Ao mesmo
tempo em que estava acontecendo o “Mão na Massa”, havia o curso de musicalização às
segundas-feiras e a fabricação de sabonete como algo esporádico no mesmo dia. Muitos
acabavam não se incluindo em nenhuma atividade, preferindo ficar com o tempo ocioso ou
61
dormindo em suas casas. Frases de desinteresse como “Ah, tio, não quero não, estou com
preguiça” eram usadas, além do movimento com a cabeça de um lado para o outro
simbolizando negação demonstravam que algo estava fugindo das perspectivas iniciais do
curso.
Aos sábados, o curso manteve-se no refeitório, pois o número de famílias aumentou,
totalizando treze com uma média de cinquenta participantes. Um dos fatos que chamou a
atenção e que trouxe grande contribuição à pesquisa, sendo um dos pilares que sustentam o
projeto de pesquisa e um dos norteadores na continuidade do curso Mão na Massa, foi a
permanência de três famílias desde o ano de 2013. Elas não têm mais filhos vinculados ao
acolhimento, pois já obtiveram a guarda de seus filhos novamente, mas se percebe claramente
o desejo de participar do curso.
O refeitório torna-se um local de encontro e desenvolvimento de outras atividades,
além do Curso “Mão na Massa”. É um ambiente organizado e sempre ao término de uma
atividade o mesmo deve ser limpo. Pela sua extensão, muitas vezes, reuniões, palestras e
cursos de capacitação com os funcionários são executadas nesse espaço. As mesas são
deixadas de lado e forma-se o ciclo de debates.
Do lado de fora do refeitório, existe uma sala para aula de musicalização, com baterias,
flauta, guitarra, violão, pandeiro entre outros. Esse projeto envolvendo a música é considerado
também um dos grandes atrativos para crianças e jovens. Juntamente com o curso de teatro e
expressão corporal realizado no espaço do refeitório, a instituição é capaz de realizar eventos
fora da instituição com apresentações musicais e teatrais nas cidades circunvizinhas. Esses
projetos desenvolvidos com crianças, jovens e familiares trazem benefícios à forma como é
conduzido o acolhimento qualitativamente e na esfera social, pois favorece a imagem que se
tem da instituição permitindo maior credibilidade aos que a apoiam e aos mantenedores.
No próximo capítulo apresentaremos o percurso metodológico da pesquisa, os
procedimentos adotados para coleta e análise de dados, bem como a caracterização dos
participantes da pesquisa.
62
3 - PERCURSO METODOLÓGICO
3.1 - OBJETIVOS E NATUREZA DA PESQUISA
O objetivo geral deste trabalho é compreender como o curso “Mão na Massa” pode
contribuir com a revinculação familiar. Esta atividade prática tem o alimento como um grande
potencial incentivador da participação de familiares, buscando integrar pais e filhos que um
dia foram separados por motivos judiciais. No caso, significa retornar à família de origem ou,
em última instância, a criança ou jovem ser colocado em uma família substituta.
O enfoque de pesquisa utilizado para obtenção dos dados foi a pesquisa qualitativa de
caráter exploratório, a qual permite uma interpretação mais profunda dos aspectos envolvidos
na revinculação familiar, sendo possível a compreensão da subjetividade das pessoas
envolvidas (pesquisador e participantes da pesquisa). A sua relevância reside em conhecer uns
aos outros, envolvendo elementos como maturidade e características comportamentais, a
partir da interação de sujeitos em seus diversos contextos, o que impacta diretamente na sua
maneira de ver e agir no mundo. Pode-se dizer que a construção da realidade e a maneira
como se desenvolvem as relações humanas regem um contexto qualitativo, pois envolvem
atribuições de valores não mensuráveis.
O principal interesse dos pesquisadores qualitativos é na tipificação da variedade de
representações das pessoas no seu mundo vivencial. As maneiras como as pessoas se
relacionam com os objetos no seu mundo vivencional, sua relação sujeito-objeto, é
observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sentimentos,
explicações, estereótipos, crenças, identidades, ideologias, discurso, cosmovisões,
hábitos e práticas. Esta é a segunda dimensão, ou dimensão vertical de nosso
esquema [...]. As representações são relações sujeito-objeto particulares, ligadas a
um meio social. O pesquisador qualitativo quer entender diferentes ambientes
sociais no espaço social, tipificando estratos sociais e funções, ou combinações
deles, juntamente com representações específicas. (BAUER; GASKELL, 2002, p.
57).
Nesse enfoque, por meio da entrevista aberta com os familiares das crianças e jovens
em acolhimento institucional, que participam efetivamente do curso quinzenalmente,
buscamos desvendar os processos educativos desenvolvidos como possibilidade de fomentar a
revinculação familiar, no desejo de elucidar a importância das relações afetivas, aquilo que se
aprende e ensina, ouvindo a voz dos participantes ao se expressarem sobre aquilo que muitas
vezes fica emudecido.
63
A escolha da entrevista aberta é utilizada de forma exploratória, pois permite melhor
interpretação dos detalhes, já que sua estruturação favorece o diálogo e a empatia entre o
entrevistador e o entrevistado. Para isso, são selecionados temas abrangentes e o entrevistado
tem a liberdade para expressar e narrar suas interpretações da questão. A informalidade
favorece a aproximação, considerando-se que é desejável não aumentar as barreiras existentes
e sim rompê-las. Dessa forma, o entrevistador adota uma postura de ouvinte, interferindo
minimamente no processo de coleta de dados, o que permite obter maior número de
informações sobre determinado tema. Deve-se estar atento aos detalhes, pois eles ocorrem a
maior parte do todo. O uso dessa ferramenta metodológica é aplicável em casos individuais,
compreensão de contextos socioculturais e, no caso, quando se deseja fazer a comparabilidade
de casos (MINAYO, 2000).
Os temas ligados ao roteiro de pesquisa foram mediações que permitiram a
flexibilidade do processo dialógico, favorecendo ainda mais a proximidade com os
entrevistados, dando abertura de ouvi-los e interpretá-los. Dessa forma, acreditamos que as
respostas favoreceram a descrição empírica daquilo que tratamos como eixo norteador da
pesquisa, ou seja, analisar as contribuições de um curso de panificação no processo de
revinculação familiar, envolvendo o processo de ensino-aprendizagem, juntamente com as
conotações simbólicas que se constituem, além do favorecimento da aproximação familiar
como um incentivo à revinculação. O momento selecionado para entrevista com os familiares
foi um dos sábados em que ocorrem as aulas, no espaço de intervalo do curso.
Nesse sentido, tornou-se relevante considerar os aspectos do relacionamento humano
na ótica do estabelecimento de valores, desejos e atitudes dos sujeitos envolvidos na
interpretação de como se estabelece a relação afetiva entre o grupo, meio e as circunstâncias
envolvidas (MINAYO, 2001).
Desse modo, pode-se dizer que a entrevista busca investigar os sentidos e significados
que são produzidos pelos sujeitos, quando relataram suas experiências na participação do
curso, possibilitando uma maior compreensão da realidade vivenciada por eles. Para Flick
(2009), o uso da entrevista como método de coleta de dados justifica maior probabilidade de
que os pontos de vistas dos sujeitos sejam expressos em um planejamento aberto, mais do que
de um questionário.
O uso de questionário poderia representar pontos negativos para esta pesquisa, uma
vez que estamos tratando de pessoas com baixo grau de escolaridade e muitas não sabem
64
escrever ou até mesmo ler. Assim, as respostas poderiam ser consideradas um dado
inconsistente. No caso de uma entrevista aberta, esse processo é favorecido e até mesmo
permite correções de possíveis enganos.
Tratando-se de pesquisa qualitativa e fazendo o uso da entrevista aberta, é fundamental
esclarecer aos participantes a proteção do anonimato, sendo a priori apresentado a eles o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, resguardando-os do abuso de poder (SPINK,
2010).
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é um documento que permite ao
sujeito entrevistado maior informação e clareza da sua participação na pesquisa, evitando
assim possíveis constrangimentos e exposições desnecessárias. Para isso, o termo deve ser
escrito em uma linguagem didática e estabelecida de acordo com o público-alvo atendido,
destacando os aspectos éticos que envolvem o uso da pesquisa, no respeito à compreensão,
individualidade e tempo de cada pessoa. O termo de consentimento utilizado nesta pesquisa
encontra-se no Apêndice A.
Segundo a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, que esclarece definições e
temos:
II. 23 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE - documento no qual é
explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante e/ou de seu
responsável legal, de forma escrita, devendo conter todas as informações
necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o mais
completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual se propõe participar;
II. 24 - Termo de Assentimento - documento elaborado em linguagem acessível para
os menores ou para os legalmente incapazes, por meio do qual, após os participantes
da pesquisa serem devidamente esclarecidos, explicitarão sua anuência em participar
da pesquisa, sem prejuízo do consentimento de seus responsáveis legais; resolução
466/12 BRASIL 2012;
No quesito dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, temos:
III. 1 - A eticidade da pesquisa implica em: a) respeito ao participante da pesquisa
em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua
vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de
manifestação expressa, livre e esclarecida;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais,
individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o
mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados; e
d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses
envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio humanitária.
65
Ressalta-se ainda que a qualidade das entrevistas esteja, acima de tudo, enraizada em
um processo de confiança entre entrevistador e entrevistado, assegurando o anonimato. Esses
estabelecimentos de valores permitirão criar um ambiente mais harmônico, favorecendo a
coleta dos dados, a comunicação e a fidelidade. As desvantagens dessa metodologia ocorrem
quando não se fomenta o envolvimento no processo de pesquisa ou quando não há um
planejamento feito pelo entrevistado. Por ser dialógica, faz-se pertinente mostrar uma postura
mais segura do pesquisador em relação à preservação do anonimato, o respeito com o
entrevistado e o cuidado com o não envolvimento de manipulação, que contribuirá com a
credibilidade no processo de pesquisa.
Flick (2009) aponta a relevância metodológica na conduta do entrevistador para o
entrevistado na maneira como se conduz a pesquisa mantendo sua postura de ouvinte e não
obstruindo ou interrompendo a voz do entrevistado, sendo ela executada com assiduidade,
pois, desse modo, melhor será o apontamento das transcrições. Como parte integrante do
processo metodológico, a transcrição deverá se respaldar pela fidelidade das narrativas
apontadas, demonstrando as observações que não foram ditas como os momentos de silêncio,
a postura em torno do ambiente, os sentimentos que vieram à tona, os gestos, risos, entre
outros que fazem parte da vivência empírica. Dessa forma, pode-se dizer que a metodologia
adotada permitirá melhor interpretação ao problema de pesquisa, a partir das transcrições.
3.2 - CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA
A pesquisa contou com a participação de quatro famílias entre pais, mães e padrasto
que têm ou tiveram seus filhos acolhidos e que participam efetivamente do curso “Mão na
Massa”, quinzenalmente, aos sábados no decorrer do ano de 2015.
Todas as famílias já passaram pela situação de acolhimento de um de seus filhos e
algumas ainda permanecem na expectativa e na dedicação para reconquistar a guarda de seus
filhos. Muitos desses familiares que tivemos o privilégio de conhecer fazem questão de
marcar presença nas atividades que são desenvolvidas no curso.
No intuito de preservar o anonimato, optou-se por adotar nomes fictícios para os
participantes. Foram usadas as letras A, B, C, D para cada família envolvida na entrevista. A
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Tabela 2 define cada família por letra, a caracterização dos participantes, idade, estado civil,
número de acolhidos, número de filhos e cidade de residência.
Tabela 2 - INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE OS PARTICIPANTES:
Família A B C D
Nomes Camila Selma, Aílton Maria, Márcio Ana
Idade 34 31,28 41, 42 38
Est. civil Solteira Casados Casados Solteira
Filhos/ idade 4 (18,12,6 e 2) 3 (14, 10 e 2) 6 (20, 19, 18, 16,
14, 2)
5 (19, 18, 16, 14
e 9)
Acolhidos Nenhum Nenhum Dois Uma
Cidade S. A. Posse S. A. Posse Jaguariúna S. A. Posse
Camila, a mãe da família “A” participa do curso desde 2013; seu filho foi abrigado por
cinco anos e desabrigado em 2014, porém, devido ao interesse por aprender e gostar de
trabalhar com culinária, a mãe decidiu permanecer no curso, levando consigo todos os seus
filhos para participarem das atividades do curso. A simpatia e seus questionamentos sobre os
aprendizados favoreciam o desenvolvimento do curso e fomentava a aproximação.
O casal que compõe a família “B” teve seu filho de 10 anos acolhido em 17 de
dezembro de 2014, ficando por quatro meses na situação de acolhimento. Ele foi desacolhido
em abril de 2015 e devido ao interesse pelo curso, seus familiares mantiveram a permanência.
A quietude no desenvolvimento do curso chamava a atenção, denotando um ar de tristeza,
talvez estivessem indo forçados ou poderia ser algum sofrimento das circunstâncias vividas.
O casal que compõe a família “C” possui dois filhos acolhidos, desde junho de 2015,
com idade de 16 e de 14 anos. A permanência no curso, aos sábados, é uma das medidas
tomadas para a revinculação familiar e reconquista de guarda dos filhos, esta frequência no
curso acontece também pelo interesse na culinária. A simplicidade dessa família na maneira
de se comportar nas atividades, com um ar de não pertencimento ao curso, denotava um
sentimento de vergonha e ou estranhamento. A quietude mais uma vez chamava a atenção,
pois faziam questão de cumprimentar e se despedir, agradecendo a Deus ou passando
mensagens de positividade, mas, no desenvolvimento do curso o silêncio vinha à tona.
67
Ana, a mãe da família “D”, possui uma filha de 9 anos de idade acolhida desde
dezembro 2014, a frequência no curso se dá também como medida de revinculação familiar e
reconquista da guarda. O interesse na participação dela na entrevista demonstra a assiduidade
e o reflexo de sua filha. A filha participa do curso, às segundas-feiras, nas atividades com as
crianças. A educação e a maneira de agir da criança favoreceram o desenvolvimento no curso,
o que, muitas vezes, encantou a mim como professor e aos assistentes sociais que a
acompanham, pois, suas atitudes de ajudar ao próximo, de envolver-se no curso, de interessar-
se pelo diálogo e busca do conhecimento vão além das expectativas. Nesse percurso,
pensamos que a filha poderia ser o reflexo da educação de seus pais, assim despertou-se o
interesse em entrevistar a mãe.
Os critérios utilizados para a inclusão dos participantes foram:
1) Interesse em participar da entrevista;
2) Participação, assiduidade no curso e proximidade com o grupo;
3) Características pertinentes de cada entrevistado que poderiam favorecer ou não a
coleta de dados na entrevista: introversão, extroversão, curiosidade, educação
transmitida aos filhos, dentre outros;
4) Tempo de convivência no Curso Mão na Massa aos sábados.
Os critérios utilizados para a exclusão dos participantes foram:
1) Ausência de proximidade com o grupo e o pesquisador;
2) Desinteresse em participar das entrevistas;
3) A ausência do familiar no dia em que a entrevista foi realizada.
3.3 - PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS:
No dia 29 de agosto de 2015, vinte dias antes da realização da entrevista, foram
convidados quatro participantes. A princípio, houve a aceitação de todos, porém, muitos não
sabiam do que se tratava, assim foi-lhes apresentada a pesquisa, procurando demonstrar que
eles são o motivo principal pelo qual essa pesquisa acontece. Já que eles são os autores das
atividades do Curso “Mão na Massa”, foi-lhes demonstrado o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (Carta de apresentação da pesquisa – apêndice A), lido em tom de voz para que
68
todos pudessem ouvir, já que muitos não são alfabetizados. Depois desse procedimento, não
houve a recusa dos que se voluntariaram a participar, mas ainda havia dúvida. Para a
entrevista dos participantes, foram utilizados dois gravadores de voz após consentimento,
além de caderno e lápis para possíveis anotações. Estabelecemos diálogo aberto e
aconchegante para que todos se sentissem à vontade.
Portanto, o pesquisador fez a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
explicou novamente do que se tratava a pesquisa, os motivos da entrevista e realizou os
esclarecimentos necessários para que a entrevista ocorresse: sigilo, interrupção da entrevista a
hora em que o participante solicitasse, prezando o máximo de honestidade.
Todas as quatro entrevistas ocorreram no mesmo dia, 19 de setembro de 2015, no
período da manhã. Neste dia, estávamos executando a receita de enroladinho de salsicha, pela
facilidade da produção e pelo fato de unir alunos voluntários das áreas de Psicologia e
Gastronomia no desenvolvimento das atividades. Isso permitiu ao entrevistador dar uma
atenção especial a cada família entrevistada. As entrevistas duraram em média 30 minutos,
sendo executadas dentro do espaço do curso “Mão na Massa”, em uma sala com porta que
corre sobre o trilho, onde ficam alguns dos maquinários, armários, geladeiras e forno.
A primeira entrevista ocorreu às 8 horas, momento em que a primeira mãe entrevistada
chegou à instituição, antes do início da aula, pois nesse dia o ônibus que transporta parte dos
familiares havia adiantado. A segunda e a terceira entrevistas ocorreram durante o intervalo
da aula, momento em que a produção do dia estava sendo forneada. A quarta e última
entrevista ocorreu no final do curso, no momento em que todos estavam degustando a
produção do dia. Todas as entrevistas transcritas estão no Apêndice B, no intuito de transmitir
a vivência de cada família.
Apresentamos no próximo capítulo os resultados da pesquisa decorrentes da análise
das entrevistas. Perguntas que foram respondidas ou ficaram apenas silenciadas, interpretadas,
aqui, como uma miscelânea de sentimentos, valores, desejos, sonhos e curiosidades
particulares.
69
4 - O SABOR DA VIDA... AO DEGUSTÁ-LA
Esta pesquisa caracterizada como qualitativa tem como método utilizado para a coleta
de dados a entrevista que se concentra nos dados da palavra falada e nos comportamentos dos
participantes. Consideramos que a entrevista nos auxiliou a compreender, a partir da conversa
com familiares das crianças e jovens em situação de acolhimento, a maneira como viveram ou
vivenciam suas experiências, procurando analisar os sentidos e significados que são
construídos no contexto de relacionamento familiar que poderão favorecer ou não a sua
revinculação com seus filhos.
Pela abrangência das questões e a multiplicidade das respostas, optamos por analisar
questão por questão, citando as falas dos participantes que permitirão analisar sua vivência
histórica, conotações simbólicas particulares atribuídas à relação entre pais e filhos, além de
suas expectativas de ação familiar. Analisamos aspectos voltados aos significados de
motivação, aprendizagens, ensinamentos e mudanças ocorridas na relação pais e filhos. A
entrevista se torna um instrumento privilegiado, pois a fala permite revelar sistematização de
valores, normas e símbolos (MINAYO, 2000).
Para Minayo (2001) a pesquisa qualitativa está fundamentada num processo de
compreensão das simbologias criadas a partir das relações entre sujeitos. Essas significações
são fomentadas no meio social que envolve crenças, valores e atitudes não mensuráveis.
Assim o universo da pesquisa qualitativa, advém das riquezas vivenciadas das experiências
empíricas.
As análises da transcrição das entrevistas foram embasadas em situações de
convergência e divergência, buscando compreender o que era comum e o que era diferente
nas respostas apresentadas pelos familiares entrevistados.
A princípio em todas as entrevistas com os familiares, a primeira pergunta gerou certa
insegurança e ou expectativa daquilo que poderia vir pela frente, como seriam as perguntas,
ou, como já é de costume que os familiares sejam tão interrogados no acompanhamento
familiar para que haja a revinculação familiar, a situação da entrevista poderia também ser
compreendida como mais uma atividade do abrigo. Diante dessas possibilidades, procuramos
deixá-los bem à vontade, com um diálogo harmônico tendo uma atenção aos aspectos que
envolvem a entrevista como já citado no capítulo anterior. Mas de alguma forma a entrevista
teria que começar e foi de bom senso do pesquisador a decisão quanto a escolha do melhor
70
momento para o início da mesma. Começamos a entrevista conhecendo mais uns aos outros,
logo procurei perguntar, a cidade natal, a cidade em que habitavam o trabalho de cada
participante da entrevista, a sua identificação com a culinária além de outras questões voltadas
ao conhecimento familiar, como: número de filhos (se tem ou não e quantos), se são casados
ou separados, idade dos participantes e dos seus filhos, entre outras. Em muitas situações o
entrevistador por ter permitido esse canal de comunicação, ele acabava sendo interrogado por
outros participantes, pois despertou a curiosidade de alguns dos familiares saberem um pouco
mais sobre sua vida.
As perguntas que direcionaram o roteiro de pesquisa dando embasamento para os
resultados obtidos, foram as seguintes:
1) Qual sua motivação para participar do curso Mão na Massa?
2) O que você aprendeu no curso?
3) O que você ensinou?
4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?
5) Qual o momento mais agradável do curso? O que você faz nesse momento?
6) Qual o momento mais difícil do curso? O que você faz nesse momento?
7) Com sua participação no curso, você acha que houve alguma mudança na relação pais,
filhos e familiares? Qual?
8) Por qual motivo você perdeu a guarda de seu filho?
9) Como você acha que será a sua vida quando recuperar a guarda de seu filho?
Segue, abaixo, a interpretação tecida a partir da análise das entrevistas.
As motivações
As respostas conferidas a primeira pergunta, “Qual sua motivação participar do curso
Mão na Massa?” São muito próximas umas das outras e em todas elas podemos perceber a
palavra aprendizagem como o grande potencial motivador.
Para a mãe Camila, nossa primeira entrevistada (família A), podemos perceber que o
sentido dado à palavra motivação é a aprendizagem, remetendo a uma perspectiva de aprender
para ter os conhecimentos que permitirão vendas futuras “...O que me motiva é a
71
aprendizagem, não é? Para fazer coisas para eu vender futuramente, já aprendendo fazer
salgados e bolos e eu gosto de participar e aprender cada dia mais...”.
Na análise da resposta dada por Aílton e Selma (família B), percebemos a motivação
voltada para aprendizagem de culinária. A mãe diz “...Eu já sou cozinheira, não é? E para
mim, eu aprendendo cada vez mais e melhor...” já para o padrasto Aílton “...Eu gosto de vir
para aprender, porque já cozinho em casa”.
Com Maria e Márcio (a família C), a palavra motivação remete a uma abrangência
maior, além da aprendizagem de técnicas e receitas culinárias, os familiares citaram a
motivação voltada para o âmbito familiar, no desejo que desperta de poder estar presente com
os filhos. Para a mãe “... Por causa dos meninos que estão aqui e a gente também aprende
muita coisa, aprende como está fazendo, não é? As receitas, às vezes a gente faz, mas não
sabe ela bem certinho então aqui a gente aprende melhor...”. Para o pai “...Vai fazendo junto
também, não é? Uma coisa que engloba as crianças a gente, todo mundo junto, fazendo numa
situação só.”
Na análise da entrevista com Ana (a família D), a mãe demonstra que sua motivação
está voltada pelo interesse na culinária, além de ser uma oportunidade de participar e poder
incentivar a filha Laís, em uma de suas falas ela diz: “...Hum, uma porque gostei e, outra,
mais para incentivar a Laís...”, além de demonstrar que os aprendizados adquiridos trazem
motivação, de aprender cada vez mais. “...Fiz mais coisa quando comecei a vir aqui, já fiz
macarrão, já tentei fazer lasanha, então cada dia, aqui, a gente vai pegando um pouquinho
dali um pouquinho daqui e vai aprendendo...”.
Os aprendizados
A segunda pergunta conferida às quatro famílias está relacionada aos aprendizados
adquiridos, tendo o intuito de poder analisar a partir da entrevista, aquilo que eles consideram
como aprendizados. Acreditamos que a escolha da pergunta: “O que você aprendeu no
curso?” A princípio, estava ligada a curiosidade de compreender o que eles carregam com o
curso e levam para suas realidades. Em análise, houve congruência entre os participantes, pois
ambos citaram ou demonstraram a palavra convivência e relacionamento como resposta ao
aprendizado adquirido. Assim podemos perceber que o significado da palavra aprendizado
estava voltado não apenas em aprender à culinária, mas a se relacionar.
72
No diálogo com a mãe Camila (família A), ela iniciou a resposta conferida à segunda
pergunta relatando seu desinteresse de participar do curso em 2013. Não era apenas um
desinteresse de aprender culinária, algo mais além do que isso, havia a dificuldade de se
relacionar com o outro, devido a sua irritabilidade, “É, no primeiro ano, eu passei meio
nervoso, eu não queria ficar muito perto de ninguém...”. Outro aspecto que fazia com que ela
se afastasse era o sentimento depressivo que ela estava vivenciando. “Eu tinha até um tipo de
depressão, eu não queria me relacionar, até reclamava para as psicólogas que eu queria
ficar sozinha, isolada, queria ficar sozinha…”.
Em se tratando de contribuições de um curso de panificação, podemos perceber que
seu enfrentamento de ir ao curso mesmo contra sua vontade pôde favorecer positivamente a
sua visão do curso, sendo ela atualmente considerada como uma das alunas de maior destaque
e aproveitamento. Segundo ela “Agora já não, eu chego feliz! Cumprimentando todo mundo,
não é? Já dividi minha mesa e não vejo a hora de chegar o sábado para vir aqui aprender,
sabe, ver vocês...”.
O relato desta trajetória comportamental citada por Camila, até mesmo ela fazendo
questão de falar sobre, culminou numa mudança de atitudes por parte da entrevistada, o
desinteresse pelo interesse, a irritabilidade que a afastava de tudo e de todos por laços de
amizade e relação com os próximos. As palavras convivência e relacionamento não foram
mencionadas, mas estava implícito no que ela queria dizer. “Eu escrevi até num relatório,
uma vez, que eu não queria dividir minha mesa com ninguém. Agora já dentro da van tenho
amizade com todo mundo, não só das pessoas da Posse como de Jaguariúna também; o que
eles não sabem, eu já gosto de ensinar, amassar, já tenho prática...”.
A mãe Selma (da família B) considerou que aprendeu a interagir mais com as pessoas,
sendo essa relação de interação um grande contribuinte para conhecer a realidade do próximo
e ao mesmo tempo compará-la com a sua própria realidade. Segundo a mãe quando existe a
interação e conhecemos a realidade do próximo, o problema particular se torna pequeno “Às
vezes, a gente acha que o problema da gente é o maior, não, da pessoa do lado é bem maior
que o da gente, então acaba aprendendo com as pessoas...”.
Após Selma terminar sua reposta à segunda pergunta, o padrasto Aílton inicia uma
abertura das suas vivências e do seu comportamento no dia a dia. Ele relata que sempre foi
uma pessoa afastada e sozinha, não gostava de interagir com as pessoas, cita até mesmo o seu
serviço de pedreiro e que, no ambiente de trabalho, ele não gosta de conversar com as pessoas
73
ou trabalhar em equipe. Ele relata que a vinda dele ao curso, quando é possível devido sua
jornada de trabalho, está sendo um momento de aprender a se relacionar com outros
participantes “Costumo geralmente ficar sozinho, nunca fui de trabalhar em grupo e o
primeiro lugar é aqui que estou aprendendo a me entrosar com o pessoal...”. Ao longo da
entrevista, o próprio semblante de Aílton, era de introversão e olhar cabisbaixo, cogitamos
que ele não fosse responder as perguntas ou que, em algum momento, ele desistiria de
participar da entrevista. A algumas perguntas mais adiante, ele se recusou a responder, mas
em nenhum momento pediu para se ausentar. Apesar deste comportamento de introversão, em
alguns momentos conseguimos tirar boas risadas.
Na entrevista com Maria e Márcio (família C), houve apenas a resposta de Márcio e
Maria apenas concordava movimentando a cabeça com um sentido de confirmação às
respostas conferidas pelo seu marido. Márcio foi o primeiro a citar que o aprendizado se dá a
partir do momento em que se produz algo, no caso ele cita o verbo fazer no sentido de
produzir, pois o curso envolve a produção de alimentos e para que essa produção ocorra é
necessário o envolvimento de todos. Além disso, tão importante quanto, está o
relacionamento citado por ele com os demais participantes como uma forma de ajudar a si
próprio e a sua família. “A gente aprende a fazer e aprende o relacionamento e como falei,
todo mundo participa e isso acho que também ajuda a gente”. Em algumas perguntas adiante
o pai Márcio foi o pioneiro no momento de responder e a mãe acabou se recusando, por
motivos que acreditamos ter sido o constrangimento ou por ver o seu marido respondendo
abertamente as perguntas, talvez tenha achado que ele poderia contribuir mais do que ela
nessa entrevista.
Na família D, a mãe Ana trata o curso como um momento que ela tem de poder
conviver melhor com sua filha, além de citar os aprendizados que são aprendidos na prática
“A experiência de mexer no Mão na Massa, a experiência de criança aqui dentro, a
experiência que vocês passam para gente, muita coisa é uma experiência boa de
convivência”.
Os ensinamentos
A terceira pergunta da entrevista com os familiares está relacionada aos ensinamentos,
tendo o intuito de poder analisar a partir da entrevista, aquilo que eles consideram que tenham
ensinado durante o curso. A pergunta: “O que vocês ensinaram no curso?” permite levar em
74
consideração as contribuições dos familiares participantes tendo eles como sujeitos que
aprendem, mas também ensinam, com intuito de elucidar o que eles consideram que tenha
sido ensinado por parte deles e averiguar se eles se sentem nessa liberdade de poder ensinar
algo. Em análise, houve unanimidade entre as quatros famílias participantes. Os familiares
relataram que os aprendizados adquiridos no curso eles levam para dentro de suas casas,
vizinhos e amigos. Apesar dessa unanimidade é importante frisar que entre alguns familiares
(Selma e Aílton, Maria e Márcio, Ana) demonstraram que para ensinar é necessário aprender,
o que eles ensinam é praticado na realidade de cada um desses participantes, mas nenhum
considerou o momento de convivência no curso como uma dessas oportunidades de ensinar.
Apenas a mãe Camila relatou que usufrui dos seus aprendizados advindos com o curso para
ajudar na condução dessa atividade, procurando colaborar com outros participantes na tarefa
de limpeza, na uniformização, no modo de preparo da massa e suas técnicas pertinentes, além
de levar esses conhecimentos adquiridos para dentro de sua casa e no ensinamento dos seus
filhos. Podemos compreender que para ensinar algo, antes, tenha que ter sido aprendido e que
o aprendizado e ensinamento são decorrentes da atitude de interesse e desejos.
Camila afirma com segurança a importância de manter a limpeza e demonstra sua
preocupação na maneira de ensinar seus filhos a forma correta para que haja higiene. O fato
dela ter passado por uma experiência negativa, na maneira como foi criada com uma família
que exigia muito dela, até mesmo cita na quarta pergunta da entrevista, em um pequeno
trecho, que sofria na infância, isso pode ter sido um reforço negativo que ela tenta transformar
em positivo. Assim podemos analisar que esse sofrimento é algo que ela não quer passar para
seus filhos, assim busca estar sempre presente, acompanhando-os em casa e até mesmo
desenvolvendo atividades culinárias juntos. Acreditamos que o tema higiene foi algo que
trouxe interesse, já que se trata de uma mãe asseada na maneira de se vestir, na atenção dada
aos seus filhos atualmente e na conduta de trabalhar com o alimento “Os meus filhos e até
aqui mesmo já cheguei a falar sobre higiene, não é? Que para cozinhar é fundamental
higiene, até em casa eu não cozinhava de toca, de avental, agora todo dia que vou cozinhar
eu uso a touca e o avental, lavo as mãos que nem você falou: as mãos são do cotovelo para
baixo (risos)...”.
No quesito ensinar aos outros durante o curso, Camila afirma que repara nos colegas
ao seu redor, se eles mantêm a conduta correta de manipular alimentos e ainda procura ajudar
aqueles que têm maior dificuldade “E fico reparando se todo mundo… tanto em casa como
aqui… reparando se eles lavam as mãos...”. Aquilo que ela aprendeu a executar muito bem,
75
devido a sua prática culinária, e a preocupação de sempre fazer bem feito faz questão de
repassar aos colegas do curso e auxiliar na condução da atividade “E ensino como amassar o
pão certo, porque tem o modo certo, não é? Você ensinou conforme se amassa de um jeito
descansa mais, de outro jeito descansa menos, não é? Isso daí!”
Com Selma e Aílton (família B), houve apenas a participação da mãe Selma e a
surpresa no final desta enquete com a palavra do seu filho Ricardo contribuindo com o
discurso da sua mãe e mostrando o relato da atividade de fazer pizza em casa. O padrasto
Aílton manteve-se em silêncio, mas participou como ouvinte concordando com o discurso de
sua esposa e expressando sentimentos de alegria enquanto ela relatava.
A mãe Selma relata que o seu interesse é ir ao curso para aprender, pois trabalha como
merendeira e nessa relação de aprendizados busca ensinar suas colegas de trabalho com as
novidades de alguma técnica ou receita nova “Geralmente eu comento com as colegas de
serviço o que eu aprendi aqui e elas acabam até fazendo a receita que eu aprendi, participei
poucas vezes, mas o que eu aprendi acabei levando para elas e para dentro.” Percebemos no
semblante que ela se sente feliz por trabalhar com alimento, o fato de gostar de cozinhar
anseia o desejo de buscar novidades para que gere outros prazeres aos comensais e, ao mesmo
tempo, a realização pessoal.
“Eu aprendi fazer pizza!” Diz seu filho Ricardo, interrompendo a fala de sua mãe.
Selma afirma que seu filho gosta de vir ao curso e, em sua casa, ele pede para executar as
receitas junto com sua mãe na cozinha. Veio por parte do filho Ricardo a ideia deles
venderem pizza, receita trabalhada no curso que trouxe grande aceitação por todos
participantes, tanto que ela foi trabalhada nesses três anos de curso Mão na Massa. O intuito
de vender pizza é trazer mais uma renda para a família e, segundo a mãe, eles estão
executando tão bem que esta ideia pioneira advinda do interesse de seu filho pode se tornar
realidade.
Na entrevista da família C, com Maria e Márcio, tivemos apenas a participação do pai
relatando o que eles ensinam, a mãe ficou em silêncio observando e concordando com as
respostas do marido. Apesar de não ter respondido verbalmente ela expressava sinais de
alegria com os acontecimentos citados pelo marido. Márcio afirma que procura ensinar em
casa aquilo que ele aprende no curso, se referindo ao relacionamento em grupo com seus
familiares na prática de receitas. “Lá em casa, nós ensinamos o que você ensinou para nós
aqui”. Ele cita uma dessas atividades executadas pelos seus filhos, ilustrando a tentativa de
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cozinhar em casa, na relação com dois de seus filhos. A receita era de biscoito de polvilho
azedo e acabou sendo mal sucedida, mas trouxe, segundo ele, muitas alegrias de união e
relação com seus filhos.
Uma das falas citadas por ele, que nos chamou atenção, foi a consideração dele pelo
curso como uma forma educativa que permite a revinculação familiar. “Acho que até assim, o
que a gente vem aprendendo, a educação, o jeito de falar porque é uma situação que envolve
ali a família então a gente vai dar o melhor da gente naquele momento ali, então ajuda
bastante...”
A mãe Ana (família D) demonstra certo desinteresse por não querer responder a essa
pergunta, parecia demonstrar certa expressão de vergonha ou medo de não responder
corretamente à pergunta. Ela relata que procura ensinar aquilo que aprende no curso Mão na
Massa para suas colegas, sua vizinha e nora “...Posso pular? Muita coisa, como se diz, como
posso falar, como posso falar para você? Aí eu ensino com ela, muita coisa, como se diz?
Assim como eu aprendi, aqui, eu passei para várias colegas também lá fora, entendeu?”
Percebemos o interesse pela culinária.
As contribuições
A quarta pergunta está relacionada ao que o curso pode contribuir, mediante análise
daquilo que eles consideram ou acreditam como sendo algo que traz importância e
significados para a vida no dia a dia. Na quarta pergunta: “A participação no curso traz que
contribuição para sua vida?” Eles citam o desejo de aprender como resposta à pergunta,
assumindo ela um carácter conotativo peculiar a cada participante. Nas proximidades entre as
respostas, vimos que a convergência entre os participantes paira no sentido da formação
educativa, ou seja, o desejo está em aprender a culinária como algo que eles poderão praticar
em casa e com seus próximos, além de poder se tornar uma fonte de renda. Vimos que essa
pergunta se torna bem abrangente e a sua transcrição é apenas um recorte dos sentimentos
particulares de cada participante.
A Camila faz uma abordagem trazendo à tona o seu passado. Ela relata que era uma
pessoa muito nervosa e antissocial, pois não gostava de se relacionar com as pessoas. Diz que
esse comportamento foi fruto de uma criação sofrida no passado, ela conseguia sentir o
carinho mais não conseguia demonstrar. Nos acompanhamentos com a psicóloga ela sempre
trazia à tona essa situação de sofrimento, até que chegou um ponto que ela percebeu que
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estava agindo igual com seus filhos então decidiu mudar. Foi buscar ajuda e começou a adotar
uma nova postura de vida.
Em um trecho da entrevista ela cita “Vamos fazer um bolo gostoso? Daí fazemos nós
três juntos, daí temos união, não é? Coisa que não fazia, queria fazer sozinha! Agora consigo
ter união com eles. E tento fazer isto com as pessoas do curso também”. Entre as palavras
percebemos que o desejo de mudança e de aprender foram necessidade de bem-estar pessoal e
familiar, o seu envolvimento com o curso acabou contribuindo com a união familiar e no
relacionamento com os demais grupos, já que ela se recusava a se relacionar.
Na família B, tivemos apenas a participação da Selma, enquanto Aílton ficava em
silêncio prestando atenção na troca de olhares. Ricardo neste momento estava ausente, pois
decidiu se divertir com as crianças que presenciavam o curso. A resposta foi bem objetiva
dando clareza que os aprendizados advindos com o curso poderão contribuir para ensinar
outras pessoas. Diz: “O que a gente acaba aprendendo procuramos ensinar outras
pessoas...”. Pelo fato dela ser merendeira escolar, aquilo que ela aprende com o curso ela
procura ensinar outras merendeiras, já citado na terceira pergunta da entrevista. Podemos
compreender que a contribuição do curso, neste caso, representa um desejo de aprender,
ensinar e se destacar no ambiente profissional.
Na família C, a resposta discursiva foi formada apenas pela participação do Márcio,
enquanto Maria prestava atenção com a troca de olhares e confirmava movimentado a cabeça
com um sinal para cima e para baixo. Neste silêncio, até mesmo pela sua expressão facial,
percebemos que ela estava conectada com o assunto e parecia querer expressar algo, mas não
falava. De vez em quando, ela direcionava o olhar para baixo em sentido a sua diagonal
direita. Não apenas para responder a essa pergunta, mas até como uma atitude
comportamental, quando estávamos tramitando o diálogo. Acreditamos que ela se sentia
envergonhada.
Márcio afirma que a colaboração do curso está direcionada a sua vivência familiar. Ele
considerou que as contribuições estão ligadas ao aprendizado da culinária, pois ele acabou
adquirindo gosto de cozinhar em casa para seus familiares e citou com um semblante de
felicidade uma atividade de produzir bolo em casa “Eu gosto mesmo de mexer, assim, com
cozinha, eu não era muito fã de fazer esses negócios assim de massa é que eu não sabia fazer,
a única coisa que faço de vez em quando é raramente um bolo, mas às vezes cresce, às vezes
não cresce, eu gosto mesmo, rapaz, é de cozinhar, falar pra você...”
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Além disso, Márcio relata outra situação engraçada, quando seu filho Murilo resolveu
ir até a cozinha fazer um pão para comer e até mesmo como um momento de lazer no
relacionamento com Maria. Segundo o pai, o pão ficou gostoso e o filho ficou com ciúmes,
pois a receita havia dado certo “Estes dias, o Murilo, meu filho, fez um pão lá em casa e ficou
até mais o menos. Ficou até com ciúme do pão dele e escondeu (risos)…, mas é legal, cara,
para aprender mesmo...”.
Compreendemos que as contribuições do curso com esta família estão envolvidas com
oportunidades de ter o contato com situações que fomentem o aprender. Além disso, o
aprender está ligado aos desejos e interesses pessoais permitindo desenvolver significações
particulares.
Na entrevista com a família D, tivemos a colaboração da Laís contribuindo com o
discurso de sua mãe. Ela relata que, quando chega o dia de visitar a mãe, vai até a cozinha e
prepara bolos e milk shake para seus familiares. A sua mãe menciona que é uma alegria
contagiante quando chega o dia da Laís ir visitá-la. Além disso, Ana cita que quando não é dia
de receber sua renda, ela vai até o supermercado e compra apenas as matérias primas
necessárias para ela e Laís cozinhar ou acabam cozinhando com aquilo que tem disponível.
Ana, no início da sua resposta, ficou um pouco pensativa e se esforçando para responder à
pergunta. Presumimos que ela não estava conseguindo se expressar, pois, acabou gerando um
conflito de pensamentos em meio aos seus sentimentos.
No seu discurso ela relata que a contribuição do curso na sua vida acaba sendo uma
oportunidade de aprender para ensinar seus filhos, parentes e amigos próximos. Segundo Ana
“É uma ajuda, a gente pode aprender, a gente pode explicar para maioria lá fora, pode
ensinar mais coisas lá fora, que a gente aprendeu e que, lá fora, eles podem ter outro futuro e
passar para outras pessoas também...”. A culinária tornou-se um atrativo de destaque
gerando oportunidades de realização pessoal, uma conquista de respeito que ela está
fomentando com atitudes benéficas para si própria. Neste caso abordaremos melhor essa
análise a partir do seu relato, na resposta à oitava pergunta.
Momentos agradáveis
Na quinta pergunta conferida aos participantes, tivemos unanimidade entre as respostas
dos familiares, tendo como palavras de destaque a hora de preparar e hora de comer como o
momento mais agradável do curso. A pergunta: “Qual o momento mais agradável do curso?
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O que você faz nesse momento?” Teve o intuito de analisar as situações que eles consideram
como atrativas e prazerosas que favorecem a relação de ensino aprendizagem e a revinculação
familiar. Algumas respostas foram mais particulares e demonstraram o prazer de estar com
seus filhos, à oportunidade de comunicar-se com outras pessoas, a alegria de poder ter um
professor, além de ser considerado por um dos familiares como um momento de liberdade e
autonomia.
Para Camila (família A) o momento mais agradável do curso está atrelado à hora da
atividade de preparar o alimento e a hora comer. Ela procura exemplificar sua resposta com
uma atividade de preparar bolachinhas, considerando uma atividade que cada um pode cortar
a massa do seu jeito e, quando faz formato de coração, os participantes brincam com ela
dizendo “Eu já quero fazer meu formato de coraçãozinho, aí todo mundo fica falando: Está
apaixonada! (risos)”. Outro momento de relevância que ela destaca é o fato dela e seus filhos
se sentirem à vontade sendo um momento que traz prazeres para a mãe na relação com seus
filhos. Na análise dessas situações agradáveis, podemos dizer que esses prazeres foram
trabalhados por ela no envolvimento com o curso, pois no início de 2013, como relatado por
ela, a participação no curso Mão na Massa era algo que ela recusava, uma vez que não queria
se relacionar com outras pessoas.
Com a família B, tivemos apenas a participação discursiva da Selma enquanto Aílton
manteve-se em silêncio, mas demonstrou expressivamente um sinal de sorriso com a resposta
de sua esposa. Selma aponta, comparando-se com outros colegas participantes, que o
momento mais agradável está na hora de comer, pois se torna um momento que todos os
participantes estão juntos e assim acabam trocando informações e comunicando-se com os
colegas. Diz ela “O legal é na hora de comer, não é? (risos), acho que todo mundo gosta
desta parte, aí todo mundo está junto e é um momento que a gente pode estar
conversando...”. Podemos perceber que o alimento ganha um viés de união entre as pessoas e
que desse momento de união decorrem diálogos e interação entre participantes.
Na família C, tivemos a participação apenas do Márcio enquanto a Maria, sua esposa,
ficou em silêncio, mas demonstrou um sinal de sorriso com a resposta do seu marido. Foi um
sorriso que demonstrou uma grande expressão de prazer, talvez pelo fato de poder comer
alimentos diferentes e estar aprendendo a produzi-los. No discurso de Márcio ele cita a hora
de fazer como algo encantador, pois ele acaba se empenhando em dar o seu melhor na
atividade e quando as situações relativas à produção vão dando certo, ele menciona que fica
contente. Diz ele: “A hora que você está fazendo, está dando seu melhor ali e você vê seu
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serviço ficando bonito, dai fico contente. É verdade. E comer também é bom”. Podemos
analisar que a atividade com alimento fomenta o interesse de participação, pois ela se torna
um grande atrativo proporcionando alegrias por estar com o outro e por fazer algo junto com
os outros.
Ana (família D) teve também a participação de sua filha Laís, que sorriu diversas vezes
confirmando a resposta conferida pela sua mãe. Ana relata que o momento agradável para ela
é a hora de executar o preparo do alimento juntamente com o fato de comê-lo, ao final da
aula. Outro detalhe que ela destacou foi o fato de poder participar de um curso tendo um
professor colaborando. Diz ela no seu discurso “Na hora da Mão na Massa que é mais
divertido, e na hora de comer também (risos). Sinto alegria de trabalhar ali, ficar ali
mexendo, fazendo de um jeito, você explicando, é assim!” Podemos perceber que além desses
momentos agradáveis citados, de preparo e a hora de comer, ela se sente útil e envolvida com
o curso, pois ali acaba se tornando um momento de relacionamento e aprendizado.
Imagem 3 - Curso Mão na Massa – Pão Sírio (Pita) e Beirute.
Fonte: Projeto Lar feliz (2015, p. 1).
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As dificuldades
Na sexta pergunta conferida aos participantes, procuramos identificar outro recorte do
curso, os aspectos negativos das circunstâncias com que nos deparamos, ou seja, poderia
haver o desprazer de estarem no curso aos sábados, as dificuldades envolvidas como
locomoção, o agendamento do curso, o trabalho, sentimentos ou questões de obrigatoriedade.
A pergunta: “Qual o momento mais difícil do curso? O que você faz nesse momento?” pôde
identificar que houve convergência entre os participantes, pois três famílias relataram a
despedida como um dos momentos mais difíceis. Ainda assim, trazemos à tona alguns dos
destaques que permitiram melhor ilustrar essa temática.
Camila (família A) procura demonstrar a tristeza do passado, pois seus filhos
atualmente foram desabrigados. Cita os momentos negativos marcantes que de certa forma
contribuíram para sua nova postura diante da vida, quando relata que não pretende voltar ao
passado “Eu não quero passar por essa dor nunca mais na minha vida.”
Não apenas com ela, mas com os outros entrevistados ao conferir a sexta pergunta,
acabou simbolizando um choque de emoção já que, na pergunta anterior, estavam alegres e
relembrando dos momentos felizes que foram tão prazerosos. Essa quebra de cenário de
momentos agradáveis para os momentos desagradáveis gerou consigo o desânimo, acabaram
relembrando de situações desprazerosas e se empenharam em trazer ao máximo a sua
realidade como se fosse um desabafo.
Camila relata que um dos momentos mais difíceis, quando seus filhos estavam
abrigados, era a hora da despedida, era um momento de grande tristeza “Momento de
felicidade, de cozinhar, de estar perto do seu filho, mas na hora de ir embora é triste”. O
semblante dela todo sorridente dá lugar para a tristeza e momentos de quietude quando
retomava o passado. Ela fez questão de continuar a entrevista e demonstrou algumas situações
que vivenciou. Camila relata que tinha muita preocupação por seu filho estar distante,
querendo ou não ele era seu descendente, ela pôde presenciar nas suas visitas situações com
que se deparou com seu filho doente e não poderia fazer mais nada por ele. Relata que a
tristeza aumentava ainda mais quando gerou dentro de si o medo de perdê-lo e nunca mais
poder vê-lo. Ela menciona sua insatisfação com alguns familiares que tem a oportunidade de
visitar seus filhos e acompanhar o curso Mão na Massa, mas não vão. No desfecho dessa
entrevista, Camila aborda que as pessoas deveriam ter cuidado para com seus filhos, que eles
não sejam acolhidos, pois se algum dia ficarem nessa situação de acolhimento, torna-se difícil
82
recuperá-los “É bom tomar cuidado para os filhos não caírem aqui, porque se cair é difícil
tirar viu...”. No encerramento dessa entrevista foi necessário darmos uma atenção solidária,
pois a Camila começou a chorar.
Conforme o depoimento de Camila, podemos perceber que as instituições de
acolhimento e ou os conselhos tutelares muitas vezes corroboram com o desrespeito às leis,
quando o tempo de permanência na instituição acaba se tornando prolongado. Crianças e
jovens ficam aguardando uma tomada de decisão perante suas vidas, se serão encaminhadas
para adoção, incorporadas em uma família substituta ou reintegradas à família de origem, esse
processo torna-se lento, apesar de considerarmos que estamos tratando de um assunto
delicado que envolve sentimentos, valores, representações simbólicas, tão quanto às vidas das
pessoas envolvidas, porém, a falta de uma atenção delicada, preconizando reestabelecer os
vínculos afetivos que acaba estendendo esse processo, tornando casos sem soluções, ou
possíveis filhos do esquecimento. Situações como estas acabam se tornando comuns e o
prejuízo afeta diretamente o seio familiar, além da formação do indivíduo, quando este se
percebe desassociado da sua família, da sua realidade, daquelas pessoas com quem mantinha
laços de amizade e afetividade, dos espaços e locais que faziam parte de sua convivência,
entre outros, prevalecendo à angústia da solidão e do seu próprio isolamento. Ratificando
assim a afirmativa de Cruz (2015):
Ocorre que a provisoriedade se transforma em “perenidade”, o tempo torna-se
passivo, e o silêncio sobre sua origem se estabelece. O que se vê entre esses sujeitos
é sua infância e juventude num processo de desvinculação com a família,
submetidos a uma política lenta, estagnada. Esses jovens, próximos de completar
seus dezoito anos, muitas vezes escondendo de si mesmos a situação de abandono;
fragilizados continuam dependendo do serviço para moradia e quase todas as suas
referências [...]. (CRUZ, 2015, p. 83).
Em análise podemos compreender que o momento desagradável não é formado por
uma situação apenas e sim na maneira de encarar a realidade e suas circunstâncias de vida.
Outro aspecto preponderante é que a experiência negativa pode contribuir diante de uma nova
postura de encarar a vida.
Selma e Aílton (família B) relatam sobre os momentos que trazem desagrado diante da
participação no curso. Selma e Aílton foram mais objetivos em suas respostas, concentrando-
as em situações momentâneas. Selma inicia o diálogo relatando que o que mais lhe desagrada
é ter que cuidar de um bebê durante os acontecimentos do curso, assim ela não consegue dar
83
atenção necessária ao aprendizado tendo que, muitas vezes, observar e não praticar
“Amamento ainda e ela toma mais o meu tempo, daí eu aprendo mais vendo do que fazendo.”
Para Aílton o fato que lhe desagrada é ter que acordar cedo aos sábados devido ao seu
trabalho desgastante de pedreiro “Para mim é acordar cedo para vir, porque trabalho por
conta, então eu que faço meus horários”. Ainda assim, ele procura aproveitar os sábados para
fazer outras atividades extras de modo que, nem sempre, consegue participar do curso.
Situações de trabalho e o fato de cuidar de um bebê ainda na fase de amamentação
acabam dificultando ou tomando tempo durante a atividade do curso, fazendo com que a
família B não tenha o mesmo desempenho dos demais participantes do curso. O que está por
detrás do relato do casal não é apenas a situação de desagrado em meio às dificuldades que
envolvem cuidar de uma criança ou o emprego, o fato é que essas circunstâncias acabam
batendo de frente com o desejo e o interesse deles com o curso.
Com a família C, tivemos a participação do casal Maria e Márcio no discurso. Devido
à qualidade da pergunta com eles também não foi diferente, se sentiram entristecidos, pois
neste caso não havia um passado e sim uma realidade já que seu filho estava em situação de
acolhimento. A mão coçou a cabeça e com um dos braços apoiou o queixo e volta e meia
dispersava o olhar olhando para os lados e em sentido para baixo. Márcio inicia o diálogo
relatando do momento que mais lhe desagrada, sendo a hora da despedida e também em casa
ao lembrar-se de seu filho. Ele nos conta que colocou uma foto do seu filho Leandro do lado
de fora da porta do guarda roupa e que sempre, quando passa por essa imagem, bate uma
saudade enorme e a vontade de vê-lo novamente. Quando chega o dia de visita a felicidade
toma conta, mas ao mesmo tempo a tristeza acaba fazendo parte do contexto, pois relembra
que essa felicidade é momentânea. “A hora que está ali, está mil maravilhas, é gostoso ver a
criança brincando, catando a massinha ali, aí na hora de ir embora é difícil...”. Na hora da
despedida o som do choro do filho o acompanha no retorno para casa, a cena nada agradável
acaba martirizando o seu dia a dia.
Maria em comum acordo com o marido movimentava a cabeça para cima e para baixo,
como um sinal de confirmação. Enquanto Márcio falava, ela passou maior parte do tempo
olhando para baixo cutucando sua própria mão inquieta e dispersando o olhar para os lados.
Ela não entra em detalhes, porém seu semblante triste já dizia tudo o que estava sentindo.
Apenas no final dessa, quando já estávamos quase indo para a sétima pergunta, ela emite em
84
tom de voz baixo que o momento mais desagradável e de grande tristeza é a hora da
despedida “Aí vamos embora e o Leandro (filho) chora!”
Podemos analisar que o momento de desagrado se refere à vivência deste casal de não
ter o filho presente. O envolvimento no curso traz grandes alegrias para o casal, pois é um
momento de encontro e de relação entre pais e filhos. Novamente essas situações
desagradáveis acabam sendo um reforço para que haja melhorias em sua maneira de agir e
viver a vida.
Na entrevista com Ana (família D), percebemos que de alguma forma a pergunta
acabou interferindo no seu ânimo, porém ela manteve uma postura discreta. Dessa vez não
demorou certo tempo para responder, já tinha as respostas de imediato. Abordou que o
momento mais desagradável é a hora da despedida, como ela cita: “Do portão para fora” é
outra realidade. “Na hora de ir embora, porque quando você está aqui dentro você se sente
feliz, sente alegre, mas quando sai do portão para fora é uma tristeza...”. Ela relata que perto
da filha ela se sente “mais”, com vontade de viver, com ânimo, porém sem a Laís a vida acaba
perdendo o sentido. Em análise podemos observar que os momentos desagradáveis apontados
por Ana se assemelham aos dos demais participantes, assim a vontade de recuperar a guarda
da filha é uma maneira de recuperar a si própria do alcoolismo conforme citada na oitava
questão mais a frente.
O relacionamento familiar
Na sétima pergunta com os participantes, a questão de análise estava atrelada em
identificar, a partir dos relatos dos entrevistados, as mudanças ocorridas na relação pais e
filhos advindos com a participação do curso. A análise das respostas dada à pergunta: “Com
sua participação no curso, você acha que houve alguma mudança na relação pais, filhos e
familiares? Qual?” Pode identificar que houve convergências entre as quatro famílias
participantes, afirmando que houve mudança da relação pai e filho, citando que atualmente
são mais unidos e procuram estar sempre próximos nas atividades e que há mais diálogo na
relação entre pais e filhos.
Na entrevista com a Camila, ela afirma que houve mudanças na maneira de se
relacionar com seus filhos, existindo maior união entre eles na hora da refeição, almoço e
jantar, principalmente, comem todos juntos. Outro dado importante é que seus filhos a
acompanham nas atividades de casa e sempre estão pedindo para ela ensinar algo e a postura
85
da Camila diante da situação: “...Oh, mãe me ensina qualquer coisa? ...Daí eu fico no sofá só
ensinando eles...”. A partir do relato, podemos dizer que as mudanças que ocorreram estão
atreladas na maneira de se relacionar com seus filhos, procurando desenvolver atividades
juntos. O que chama a atenção é a vontade de estar com seus filhos por perto e fazer o
possível para que esta união aconteça. Outro detalhe em questão é a postura dos seus filhos
pedindo para que sua mãe ensine algo. Esse sentido dado à palavra algo representa qualquer
coisa, não estão atribuindo juízo de valores, o que importa é o que realmente eles estão
querendo dizer por detrás dessa palavra. Denota que eles estão querendo ter o envolvimento
com sua mãe, aproveitar seus conhecimentos ou talvez os desafios que ela teve que superar
tenha feito com que os filhos tivessem admiração por ela, não sabemos ao certo, mas podemos
cogitar como hipótese. Na análise do curso ela é uma das participantes que mais obtém
resultados positivos na produção.
Na entrevista com Selma e Aílton (família B), tivemos a participação do casal como
depoente. Selma inicia o diálogo e demonstra-se sorridente com as mudanças ocorridas na
relação com Ricardo. Ela relata que Ricardo não gosta mais de ficar sozinho, está sempre por
perto e isso, segundo ela, facilita a amizade entre eles tornando possível uma atenção de
qualidade no que representa o papel de uma mãe para um filho. “Sim a gente dá mais atenção
quando está todo mundo junto, igual eu estava falando, meu filho não gosta de fazer nada
sozinho, se você der alguma coisa para ele fazer você tem que estar junto, ele gosta de estar
conversando, ele não gosta de fazer nada sozinho...”. Aílton comenta que facilitou a
comunicação entre os dois, conquistando o respeito e a consideração de Ricardo. Ele ainda é
uma criança, mas faz questão de agradá-los e Selma e Aílton fazem questão de retribuir esse
agrado “Com certeza, a amizade com ele antes era um pouquinho difícil...”.
Podemos perceber que houve melhorias na relação mãe, filho e padrasto. O que chama
a atenção é a importância que Ricardo dá aos momentos de união e suas atitudes de respeito e
aproximação que representam a aceitação da convivência com o padrasto.
Na entrevista com Maria e Márcio (família D), ambos relatam sobre a pergunta em
questão. Maria inicia o diálogo mais animada e convicta daquilo que estava falando. Diz que
o relacionamento em família melhorou muito, pois estão tendo mais oportunidades de
aceitação e contato com seus filhos. Ela relata que, quando vai desenvolver uma atividade em
casa, seus filhos estão sempre por perto “Melhorou bastante. Tanto os que estão lá com a
gente, às vezes, vamos fazer alguma coisa juntos, estão participando em casa, ajudam, ficam
interessados em prestar atenção.”
86
Márcio concorda com sua esposa ao relatar sobre as melhorias dos vínculos afetivos.
Ele comenta que aquilo que aprende no curso, na maneira como se relaciona com as pessoas e
como as pessoas se relacionam com ele, procura levar para dentro de sua casa. Menciona que
antes tinham uma vida conturbada e que atualmente existem mais diálogos e conversas entre
pais e filhos. Diz que aprendeu a ser mais humilde, tendo mais paciência e saber a hora certa
de conversar. “Porque antes das crianças virem para cá, a vida nossa era torcida, não é?
Conturbada, hoje já tem mais diálogo, mais conversa, onde a gente vê que talvez não tenha
conversa, a gente deixa um pouco para lá porque tem coisa que não tem como você resolver
ali na hora...”.
Em análise podemos observar, a partir dos relatos, que houve mudanças atitudinais na
maneira de encarar os problemas. Além do mais, ambos afirmam que estão mais unidos com
seus filhos nas atividades, porém vale ressaltar que essa união está se referindo a maneira
como agem com seus filhos que moram com eles em casa. No total eles têm seis filhos e dois
estão em situação de acolhimento, porém demonstra-se que mudanças de postura estão sendo
favorecidas e espera-se que, ao receber os dois filhos novamente, tais mudanças sejam
incorporadas nessa nova estrutura de comportamento familiar.
Ana, família D, comenta que a relação com sua filha melhorou muito, pois a união
entre as duas está mais consolidada. Ambas procuram ensinar umas as outras e o que elas
aprendem, no curso, procuram executar em casa novamente. Ana comenta “...Muita coisa que
não tinha agora estou tendo...”, no caso se refere ao respeito, ao carinho e união com sua
filha. Observamos que as mudanças que ocorreram na relação mãe e filha foram: aproveitar as
oportunidades de estarem juntas, ensinar algo de bom, tendo como incentivo a culinária,
colaborando assim com a união, carinho e respeito entre ambas.
A perda do filho
A oitava entrevista com os participantes representou uma conotação delicada bem
particular de cada família, pois estávamos entrando numa situação que poderia causar
desconforto ou a recusa em responder. A pergunta: “Por qual motivo você perdeu a guarda
do seu filho?” Buscava compreender a causa da perda da guarda do filho, conhecendo com
mais afinco a realidade de cada família. Identificar que o alcoolismo representou o motivo da
perda da guarda com três familiares participantes e apenas uma família por motivos de
agressão física realizada pelo pai da criança e sua parceira.
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Na família A, com Camila, ela afirma que foi por motivos do alcoolismo que perdeu a
guarda do seu filho. Ela sentiu necessidade de contar sua história e relatou fatos que a levaram
ao vício, além de um acidente terrível que ocorreu em sua residência tendo ela como a
principal culpada por essa fatalidade. O assunto se tornou delicado e, enquanto entrevistador,
senti necessidade de estabelecer uma postura de seriedade, olhando olhos nos olhos e ao
mesmo tempo procurando deixá-la à vontade. Afirmei novamente que ela poderia interromper
a entrevista a qualquer instante e que falasse apenas aquilo que ela sentisse vontade.
Camila começou a se abrir e comentou que aprendeu a beber por parte da sua mãe que
era alcoólatra. Imitando a sua mãe ela aprendeu com as bitucas de cigarro a fumar e, na
presença de bebidas em casa, despertou-se a curiosidade de beber “Eu bebia, mas nunca fui
uma mãe que judiava dos meus filhos...”. O relato do acidente se inicia e ela tenta ilustrar em
palavras o fato ocorrido. Ela morava na casa de uma de suas irmãs, juntamente com todos
seus filhos, no caso ela é separada do marido e cria sozinha todos eles. Um dia ela saiu de
casa para ir até a vizinha conversar e deixou as crianças dentro de casa. Sua irmã de 12 anos,
ainda pequena achou uma arma de fogo e começou a brincar de “roleta russa” (nome dado a
uma brincadeira infantil, porém no caso não se utiliza armas) com a arma juntamente com
uma de suas amigas também de 12 anos. A arma disparou e acertou a amiga da irmã que
acabou morrendo no local “...Minha irmã na época tinha doze anos e a menina que morreu
também tinha doze, só que ainda acharam que era eu quem tinha feito isso porque eu era
briguenta! Depois juntaram os fatos e descobriram que era ela...”. Todos ficaram
desesperados e ela relata que não sabia o que estava acontecendo, tinha ficado muito nervosa
com o desespero. Ela relata que a polícia chegou até o local e a acusou por ter sido cúmplice
do acidente. Segundo Camila, ela já tinha fama ruim no bairro, ninguém acreditou no seu
discurso que ela não tinha culpa do ocorrido ou muito menos que aquela arma não era dela. A
polícia ao ligar os fatos descobriu que a arma pertencia ao seu irmão que tinha escondido a
arma dentro de sua casa. Segundo Camila a polícia matou seu irmão ao descobrir que ele tinha
sido o culpado.
Por esses motivos que Camila passou, o Conselho Tutelar decidiu que seu filho fosse
encaminhado ao acolhimento. Ela relata que devido à gravidade do problema a chance dela
recuperar a guarda era muito pequena “...Por isso tudo que eu passei em casa era quase
impossível eu pegar meu filho de volta...”. Daí ela começou a ter uma nova postura diante da
vida e lutou para reconquistar a guarda de seus filhos. No final da história ela recuperou a
guarda do seu filho e tem a instituição que acolheu seu filho, no caso o Lar Feliz, como um
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local frequentado para obter seus aprendizados de culinária. São situações delicadas como
essa que acabam mudando a trajetória de vida de muitos familiares que tem seus filhos na
situação de acolhimento.
Na família B, tanto quanto a primeira e nas demais citadas, afirmamos que eles
poderiam interromper a entrevista a hora que quisessem e falar apenas aquilo que desejassem
expressar. Selma mãe de Ricardo inicia o discurso relatando o motivo pelo qual ela perdeu a
guarda do seu filho. No início da entrevista ela cita que este é um assunto chato de falar e
expressa sua vergonha ao falar os motivos reais que culminaram nesse fato de perda da
guarda. Ela comenta que se separou do seu primeiro marido o pai de Ricardo, ele não estava
pagando a pensão do seu filho, desmerecendo-a que o valor da pensão era algo muito caro e
ele a acusava que estivesse gastando o dinheiro da pensão com ela e não com o Ricardo. No
discurso ela relata que o pai começou a comprar o filho com presentes, com bicicleta, vídeo
game, celular e afins “...Começou a comprar o meu filho para poder fica com ele, deu
bicicleta que é muito cara e eu não tinha condição de dar um presente desse para ele, deu
vídeo game, deu celular, então ele comprou o filho dele.”
Com seu atual marido mudou-se para Bahia, o ex-marido ficou com Ricardo. O filho
mais velho sempre próximo a Selma, acreditava na mãe, já Ricardo optou por ficar com seu
pai. Daí situações de agressão contra o menino Ricardo começaram a acontecer. A mãe
comenta que o pai nunca aceitou seu filho ser fraco, dizia que isso era frescura. “...Não tinha
paciência, sei lá o que passou na cabeça dele, mas por várias vezes ele foi espancado pelo
pai que falava que problema dele era frescura e que o problema dele se resolvia na
porrada...”. Selma comenta que teve depressão no parto e Ricardo nasceu com resquício
desse momento de fragilidade, tornando-se uma criança deprimida que acabou demandando
uma atenção maior com apoio de psicólogos e psiquiatras.
O pai, segundo ela, começou a espancá-lo com socos na barriga, dizia que a solução
dele era “porrada” (agressão física) e diversas vezes Ricardo foi para a escola com sinais de
violência. A mãe relata que tanto seu ex-marido torturava o Ricardo com agressão física
quanto a sua parceira também. Ricardo um dia, após tanto sofrimento, denunciou seu pai na
escola e ao Conselho Tutelar. A mãe de Selma ficou com Ricardo, pois Selma ainda estava
morando na Bahia. Eles estavam sem condições financeiras na época de voltar. Ricardo foi
encaminhado ao acolhimento, pois sua avó acabou sendo negligente com os medicamentos
que ele usa e não o levava nas suas consultas médicas de rotina.
89
Em meio às cenas trágicas, Selma relata que Ricardo contou os momentos de tortura
que ele sofreu por ambas as partes, do pai com várias situações de agressão física e
humilhação e da parceira de seu pai que colaborava com a agressão física e o impedia de ficar
perto do seu próprio pai “...Passou por exame de corpo e delito, daí foram constatadas as
agressões...”. Ricardo permaneceu por alguns meses em acolhimento institucional sendo
desabrigado, em abril do ano de 2015. Em análise vemos que essa foi à única família que
citou a agressão física como um dos motivos para a perda da guarda do seu filho.
Com a família C, tivemos apenas a participação de Márcio como depoente da questão.
Ele demonstrou-se um pouco acanhado em responder a essa pergunta, parecia estar com
vergonha. Maria permaneceu em silêncio, mas concordava movimentando a cabeça com os
relatos do seu marido. Márcio afirma que foi o alcoolismo do casal que fez com que eles
perdessem a guarda dos seus filhos. Segundo ele, estavam bebendo descontroladamente,
afirmando que já estiveram internados e foi num momento de recaída que perderam a guarda.
Márcio faz questão de contar que estão participando das reuniões de Associação dos
Alcoólatras Anônimos (AAA) e que elas estão colaborando com eles, pois segundo ele, é um
momento de desabafo e ao mesmo tempo um momento de ouvir o outro “...É legal a gente
vai de quinze em quinze dias às terças-feiras, aí você vai lá, se quiser partilha ou se não
quiser não partilha... às vezes você ouve o problema do outro e acha o seu tão pequeno…”.
Um aspecto que Márcio sinaliza de grande importância é que nos encontros de
partilha que acontecem no AAA, às terças-feiras, a participação como depoente expondo seu
problema é facultativa, mas apenas de estar lá dentro faz bem, pois lá se torna um ambiente
onde todos são iguais. Segundo ele, ao olhar o problema do outro, passa a considerar seu
problema pequeno em relação ao do colega ao lado, acaba dando vontade de falar, de expor e
mesmo tempo ouvir “...No meio onde todos são iguais a você, você saber que eles estão te
entendendo porque todos passam os mesmos problemas e isso te anima...”. Em análise,
podemos observar a maneira de encarar o problema envolvendo atitudes positivas, a
importância de haver o diálogo, se sentir igual ou pertencente a um grupo e a partilha de
experiências.
Com Ana, família D, ela relata que o motivo que levou a perda da guarda da Laís foi o
alcoolismo. Comenta que outros dois haviam sido acolhidos também, porém já foram
desabrigados. Devido ao vício, segundo ela, parou de cuidar e dar atenção necessária a ela.
“...Mas eu perdi mais a guarda dela porque eu estava bebendo demais e não estava cuidando
dela, então foi uma missão para mim, de eu perder ela para poder parar com o que eu estava
90
fazendo...”. Ficou internada por um tempo e afirma estar recuperada, desejando obter a guarda
da Laís novamente e tirá-la da situação de acolhimento. Ela se diz empenhada para que seus
sonhos se realizem que é recuperar sua filha e manter-se curada “...Ah! Eu estou tentando,
não é? Como se diz, nada neste mundo é impossível. Olha, tudo que eles estão pedindo para
mim eu estou fazendo, tudo...”. Podemos dizer que o alcoolismo, que levou a perda da guarda
de sua filha Laís, dentre os outros já desabrigados, tornou-se uma motivação para que ela
tivesse uma nova postura diante da vida. A vontade de recuperar a guarda e ter sua filha de
volta a faz enfrentar com ânimo os desafios da vida.
Perspectivas para o futuro
A nona e última pergunta conferida aos participantes teve o intuito de analisar as
expectativas e perspectivas de futuro, quando os familiares recuperarem novamente a guarda
dos seus filhos. A pergunta: “Como você acha que será sua vida quando recuperar a guarda
de seu filho?”, além de propor algo que almejam no futuro, ela se torna também reflexo do
presente, quando buscam adotar novos hábitos que favoreçam essa reconquista de guarda.
Na entrevista com Camila (família A), ela demonstra estar muito feliz e sorridente,
pelo fato de que seus filhos já tinham sido desabrigados. Tê-los novamente já fazia parte do
presente e trazia uma grande motivação para sua vida. Ela relata que se tornou uma grande
mãe “...Maravilhoso, quando vou deitar vejo meu filho lá, aí eu olho e falo, agora me tornei
uma grande mãe...” considerando que aprendeu a cuidar melhor de seus filhos, dando uma
atenção especial a eles, estando sempre por perto, buscou o caminho que se diferenciava da
maneira que ela foi criada. Segundo Camila ela tornou-se evangélica e mantendo sua crença
em Deus, considerando-se uma pessoa vitoriosa na vida e feliz de ter seu filho de volta “...E
sou uma pessoa vitoriosa na vida e estou muito feliz com meus filhos...”. Podemos dizer que
Camila buscou reconfigurar sua maneira de ver a vida, tomando atitudes que foram contrárias
ao que havia vivenciado no passado. A perda de seu filho e as situações que ela vivenciou a
fizeram adotar novas posturas, dando um valor especial a si própria e aos seus descendentes.
Com a família B, Selma e Aílton demonstram um semblante de felicidade, Ricardo
estava todo sorridente e Aílton confere um abraço coçando sua cabeça com uma das mãos.
Selma foi breve e diz ter ficado feliz de ter reconquistado a guarda de seu filho Ricardo. Diz
que não quer ter seu filho distante, ainda mais em uma situação de acolhimento institucional
91
“...Estou mais feliz, não é? Porque a mãe não quer o filho distante ainda mais num abrigo!”
No caso ela deixa claro sua opinião de insatisfação pela situação de acolhimento institucional.
Na entrevista com a família C, tivemos a participação de Maria e Márcio como
depoentes, ambos encerram essa última questão com sentimentos de mudanças e positividade.
Márcio inicia o diálogo relatando que estão adotando novas posturas de vida, pedindo a Deus
que os abençoe no dia a dia e às crianças e que eles possam viver uma vida sem a dependência
do álcool, buscando sempre melhorar “...Deus abençoe que quando essas crianças estiverem
em casa, educar mesmo de verdade, mantendo sem álcool, rapaz, sempre dá para melhorar”.
Maria concorda com a cabeça com um semblante de felicidade e diz “...Continuar para
melhorar cada vez mais!” Podemos observar que eles estão adotando novas posturas de
encarar a vida, buscando livrar-se do alcoolismo, além disso, relatam que ao recuperar a
guarda desejam educá-los com afinco.
Ana, família D, demonstra-se animada, pois está fazendo o possível para recuperar a
guarda de sua filha Laís. Sua filha, ao final da entrevista, deixa uma mensagem que simboliza
a vivência de um relacionamento conturbado. Ana relata que não pretende voltar ao passado e
fazer aquilo que ela fazia, a partir de agora, quer projetar sua vida para o futuro. O fato de
recuperar sua filha ela considera como um momento de grande felicidade e tudo o que ela
mais quer no momento “...Eu acho que vai ser uma felicidade enorme e a coisa que eu mais
quero no mundo é tirar ela daqui e ter perto de mim de novo, não pretendo voltar ao passado,
a fazer o que eu fazia, quero dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa...” Além disso,
Ana encerra seu argumento propondo uma esperança oferecer um futuro melhor para sua
filha. Diz que o tratamento dado aos seus filhos é igual para todos e que ela está
reconquistando a confiança deles, pois quando ela bebia as situações eram bem diferentes “Se
eu posso dar para ela, eu dou para os outros, se eu não posso, eu não dou para nenhum.
Agora eles se dão bem, porque antigamente quando eu bebia não...” Laís interrompe a fala
de sua mãe e afirma com toda franqueza que antes quando a mãe bebia seus irmãos não
confiavam nela “Antes eles nem confiavam na mãe!” Podemos considerar que os sonhos
acabam sendo alimentados pelos desejos de uma felicidade, adotar novas atitudes permitirá
ver a vida de outra forma. A conquista de uma nova confiança se deu a partir do momento que
viram uma nova mãe.
A partir das falas dos participantes buscamos fazer uma síntese de suas considerações,
daquilo que foi mais convergente ao contexto da revinculação familiar e da educação. Assim,
podemos considerar a partir das respostas, que os pais realmente almejam reconquistar a
92
guarda de seus filhos. Para que haja a revinculação familiar os pais recebem acompanhamento
no decorrer do mês pelos assistentes sociais e, ao mesmo tempo, deverão visitar e participar
de atividades que a instituição oferece. Não é uma questão obrigatória participar do curso,
mas percebe-se que estar envolvido em alguma atividade favorece a aproximação e ao mesmo
tempo o trabalho desempenhado pela instituição, no que envolve o acompanhamento e
relacionamento.
Os familiares entrevistados manifestaram o desejo e interesse de participar do curso,
quando mencionam a questão da aprendizagem, numa ideia de aprender algo que agregue
valores em suas vidas, assim demostram vontade de aprender o domínio de técnicas culinárias
como uma fonte de renda futura. Denota-se o anseio pelo trabalho e enfretamento dos
desafios, não como seres passivos.
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos
tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma
aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a
lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que
não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. (FREIRE, 2002, p. 28).
Outro aprendizado em destaque é o aprender a relacionar-se com os outros e a
conviver. Os relacionamentos citados partiram de uma relação que se desenvolve com os
outros membros do curso, podemos citar a importância das relações de gênero e entre pessoas
que até então eram desconhecidas, o que pode repercutir num distanciamento ou até mesmo
fomentar uma curiosidade, lidar com situações onde o outro é uma peça fundamental para
execução do seu trabalho em se tratando de um trabalho em equipe, “eu dependo dele e ele
depende de mim”, entre tantas outras diferenças que por fim foram se tornando união e pontos
de convergências. Entre elas podemos citar que percebem que o outro está numa situação tão
delicada quanto a sua, que ser diferente gera assunto e as prosas boas da vida. Ser diferente
em alguns aspectos instigou a vontade de se conhecerem. Neste caso é relevante frisarmos que
estar num ambiente onde todos se sintam acolhidos, confortados, num bem-estar, alimenta o
desejo de manter-se no curso, pois agrega a questão do pertencimento.
Ora, essas trocas de olhares e gestos de afeição não estão longe de ser o repertório
dos momentos que garantem o surgimento de sentimentos de “eu” e de “nós”, o que
possibilita um relacionamento entre iguais, tão estável e profundo que possa ser, por
isso mesmo, a condição de um modo diferente de ensinar-e-aprender. (BRANDÃO,
1983, p. 8).
93
Além disso, com o relacionamento podemos identificar grandes contribuições que
favoreceram a aproximação entre os participantes e comumente com seus filhos. Uma questão
que foi sensibilizada por um desejo de aprender a ter paciência, favorecer o diálogo e a união,
o querer estar junto, uma questão que envolveu a oportunidade dos momentos, tão quanto à
aceitação dos seus filhos.
As contribuições para a vida tema de uma das perguntas, apesar de terem sido muito
próximas as repostas, devemos relembrar a importância do aprender, remetendo a uma
questão histórica, quando deixamos as marcas nas trajetórias pela qual passamos e
diretamente elas nos marcam. Construímos uma bagagem que vai sendo alimentada pelos
nossos desafios, hora e outra remetemos a ela para encontrarmos um pedaço do nosso eu que
ficou guardado, admirarmos as experiências boas ou ruins, não importa se foram ruins, mas
foram parte de nós e com ela aprendemos. Pois é, aprendemos a construir o nosso
discernimento e a tomarmos as decisões daquilo que consideramos sendo favorável. Ora
porque abordamos isso?
Pois bem, para explanar que a relevância e a pertinência de uma contribuição são feitas
de momentos bons e ruins, no prazer e no desprazer, na companhia e na solidão, ou seja, para
cada opinião sempre haverá uma opinião contrária. Suas concepções vão se fazendo no todo,
assim como podemos observar nas análises, adotar uma nova postura diante da vida, o desejo
de aprender e ensinar, cozinhar em casa para os filhos, enfim, observamos que as
contribuições segundo os participantes partiram do querer. Consideramos que já partimos de
um pressuposto positivo ao consideramos que o curso fomenta a revinculação na questão de
enfretamento dos desafios e da possibilidade de (re)significar a própria vida.
Este processo de (re)significar a própria vida é alimentado por uma perspectiva de
futuro, instigando repensar sobre a vivência no presente e lançando uma trajetória de um
mundo com novos desafios. Cada família expressou seu desejo de reconquistar a guarda de
seus filhos e para isso foram necessárias ações como o fazer diferente adotando uma nova
postura diante da vida, “tornar-se uma grande mãe, mudar suas maneiras de viver e enxergar a
vida, realizar transformações na estrutura familiar, quando citam o querer estar sempre
próximos e unidos aos seus filhos, aprender a interagir e se relacionar, manter o vínculo com a
culinária em suas casas, cozinhando em família as receitas do dia a dia, além daquelas que
tragam novas curiosidades e prazeres distintos; outro ponto marcante demostrado por uma
mãe foi que além de reconquistar a guarda haveria a necessidade de reconquistar primeiro a
94
confiança, ou ainda a necessidade de vincular-se a uma religião e/ou instituição que
fornecesse apoio para superar o vício.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Eu acho que vai ser uma felicidade enorme é a coisa que eu mais quero no
mundo tirar ela daqui e ter perto de mim de novo, só que não pretendo
voltar no passado a fazer o que eu fazia, pretendo sempre pegar agora no
futuro, dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa.” (Ana)
Este estudo permitiu ilustrar uma das atividades que são desenvolvidas dentro de uma
instituição de acolhimento na perspectiva de promover a revinculação familiar. Dedicamo-
nos ao desafio de tentar compreender como um curso de panificação, realizado num contexto
de abrigo, pode favorecer o processo de revinculação familiar. Assim procuramos levantar um
estudo significativo sobre a questão da educação, numa proposta de compreendê-la e torná-la
relevante para os desafios que abrangem uma proposta humanizadora, além de discutirmos
sobre a situação de acolhimento no país, um cenário que foi sendo moldado ao longo da
história e que atualmente podemos ver quantos desafios ainda restam pela frente, na tentativa
de oferecer uma garantia de direitos e de promover qualidade de tratamento oferecido pelas
instituições acolhedoras.
Outro aspecto preponderante desta pesquisa foi conhecer com mais afinco a realidade
dos familiares envolvidos a partir de outro horizonte, ou seja, da alteridade. Acreditamos que
ao tentarmos nos colocar no lugar dos outros enriquecemos nossa capacidade de interpretá-
los, ao invés de julgá-los. Por isso, optamos por realizar entrevistas a fim de conhecer a
história de vida dos participantes. É necessário ouvir o que os pais e estes jovens têm para
falar, conhecer os motivos que levaram essas famílias a perder a guarda de seus filhos e as
dificuldades que enfrentam para recuperá-la.
Uma das belezas advindas com nossos estudos foi perceber que os pais desejam ter
seus filhos de volta fazendo parte do contexto familiar, porém vale ressaltar que esse caminho
é percorrido por grandes desafios, no contexto do rearranjo familiar, por parte dos pais, na
busca por efetivarem mudanças atitudinais perante a vida, por parte dos seus filhos, que
muitas vezes pela imaturidade são os mais afetados emocionalmente e psicologicamente,
quando se trata de questões de acolhimento.
Outro destaque da investigação, decorrente do levantamento realizado sobre as
questões da situação de acolhimento, nos deparamos com iniciativas do terceiro setor na
tentativa de colaborar com o cunho social e prover parte dos serviços de acolhimento
96
institucional. Diante do nosso estudo, podemos observar que existe um contrassenso entre a
existência de ações sociais “suprindo” as carências do estado ou município ao oferecer
serviços que, em alguns casos, apresenta notável preparo qualitativo, mas por outro lado há
também instituições que se vinculam ao primeiro setor ou a empresas para a realização do que
eles julgam como filantropia. No entanto, podemos observar que existe uma linha tênue entre
ação social e ações capitalistas que visam nas entrelinhas da chamada filantropia, obtenção de
lucro.
Deparamo-nos com inúmeros obstáculos que precisam ser repensados sobre a cultura
da institucionalização, ainda enraizada e tão presente no nosso contexto, porém é possível
observar o surgimento de novas medidas que orientam os serviços de acolhimento
institucional além das obrigatoriedades dos serviços especializados como CRAS e CREAS,
propondo um atendimento especializado de assistência social, os projetos de leis que
tornaram-se leis como o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência Física, o
Estatuto da Juventude entre outros. Claro que a aplicação desses documentos legais exige
estudos e pesquisas futuras que suscitarão novos questionamentos, não tivemos intenção,
nesta pesquisa, de desvelar esses aspectos, mas ressaltamos a necessidade de um olhar mais
atencioso e prioritário aos desarranjos que foram sendo construídos junto com a “política do
esquecimento”.
“Desabrigar” não é deixar de “abrigar” no sentido de acolhida, mas, providenciar a
reinserção familiar e a reintegração comunitária. Significa empreender todos os
esforços para garantir à criança e ao adolescente abrigados, oportunidade de retornar
a vida familiar e comunitária, promovendo a convivência naquele grupo familiar
capaz de acolhê-lo e de se responsabilizar integralmente por seu processo de
desenvolvimento. (OLIVEIRA, 2010, p. 112).
Para isso se faz necessário criação de redes institucionais pautadas num olhar
humanizador para esses jovens e criança. Para consolidação de tais redes institucionais se faz
pertinente à credibilidade dos seus propósitos numa questão valorativa que rege a justificativa
dos seus significados. A organização administrativa circunscreve a maturação institucional e
toda a sua representação simbólica para a sociedade. Quão ela for capaz de sonhar,
transparecer a confiabilidade, aprender com seus erros e aproveitar melhor dos seus recursos
humanos, mais significativo e factível serão seus propósitos.
97
Ao longo desses três anos, podemos observar algumas situações contraditórias na
manutenção dos ideais institucionais e na efetividade de seus projetos. Percebemos a
dificuldade de se tornarem autossustentáveis, uma vez que, em quase toda sua totalidade, são
dependentes de seus órgãos mantenedores: municipais, ações voluntárias e de empresas que
realizam a filantropia empresarial. Outro aspecto preponderante envolve a gestão
administrativa de usufruir dos seus recursos, na questão de ter um melhor aproveitamento da
equipe de funcionários mais ativos e dedicados no comprometimento de suas atividades, que
envolve a organização dos horários, a postura e linguagem adotadas para dialogar com as
pessoas evitando amedrontá-las ou puni-las, acompanhá-las nas atividades e ou até mesmo
realizá-las juntas, fomentando assim a aproximação, o aconchego de uma afetividade mais
humana. Nesta questão levantamos a dificuldade da instituição de ter funcionários realmente
capacitados para os exercícios de suas profissões. Não basta ser um assistente social
diplomado ou que tenha feito cursos para atuar nestas questões sociais, mas sim pessoas que
realmente estejam engajadas com os significados do relacionamento humano.
Crianças e jovens no gozo do seu intenso desenvolvimento, tão característico e vital da
natureza humana, não ficariam segregados nos espaços, distantes do seu tempo. Estariam
ativos aproveitando cada minuto presente ou ausente de seus familiares. Os projetos
passariam a serem encarados como programas, fazendo parte da rotina da instituição em
atividades de leitura e debates, prática de esporte na conscientização crítica da qualidade de
vida e bem estar com propósitos realmente educativos e não tratados apenas como ocupação.
No contexto da instituição, onde foi desenvolvida a presente pesquisa, por estarmos num
ambiente camponês, poderiam fomentar novas atividades, como aprender a plantar aquilo que
comemos, produzir alimentos tradicionais de uma cultura brasileira, como doces de compota,
doces de corte, doces cristalizados, aproveitamento e reaproveitamento alimentar, conhecer os
animais e plantas ali presentes, aprender a cuidar e fazer seus subprodutos, numa questão de
subsistência e de valores simbólicos construídos na relação homem e natureza. Os dias
passariam a ser contemplados, e, ao chegar o anoitecer, haveria o desejo de que os momentos
vividos não acabassem; alimentando a vontade de um novo amanhecer.
A vida ativa construída de exemplos exprime a importância de produzir e reproduzir os
talentos de cada ser humano. Retomamos essa abordagem na tentativa de explanar que o
crédito ou descrédito do efetivo desenvolvimento no curso Mão na Massa é o reflexo da
importância dada pelos seus mantenedores e pelas pessoas que dele participam. Faz pertinente
que os participantes do curso mantenham a assiduidade, mas de nada adianta se não tiver um
98
acompanhamento qualitativo para fomentar os aprendizados voltados à revinculação familiar.
Dentre eles podemos citar o comprometimento de ir ao curso, manter a presença de assistentes
colaborando para a manutenção da boa conduta, evitando assim desequilíbrio no uso da voz,
competitividades desnecessárias, discussão entre pares, desinteresses e afins. As premissas
iniciais do curso, onde fundam seus reais objetivos, poderiam ser mais bem trabalhadas,
procurando estruturar-se de uma forma que vincule cada vez mais pais e filhos na atividade,
prezando sempre pelo melhor atendimento ofertado. Trabalhamos com alimentos que
despertam uma grande fonte de prazer e aceitação pelo público, mas o curso não pode perder
suas vertentes de relacionamento social e diálogo premissas de uma educação humanizadora.
O curso Mão na Massa pode ser compreendido como um espaço para reintegração
comunitária, na medida em que se tornou um ambiente de aprendizado e convivência para os
familiares e seus filhos. Os depoimentos dos participantes demonstram que no curso
vivenciaram aprendizados que permitiram fomentar e resgatar valores humanos, adotar uma
nova postura diante da vida e preocupar-se consigo mesmo, com novas perspectivas que
foram construídas junto aos relacionamentos com seus filhos, com o conhecimento e com
outras famílias, vivenciando alegrias que provocaram galgar novos sonhos futuros.
Reconquistar a guarda de uma criança ou jovem acolhido é digno de louvor perante a
tantas situações que dificultam esse processo de revinculação, já que muitos se tornam filhos
do esquecimento e ficam por longos períodos acolhidos sem terem uma solução ideal para
seus destinos. Nas falas de alguns familiares, percebemos que a experiência de perder a
guarda dos seus filhos, em vez de ser um fator que os imobiliza, acaba sendo um disparador
para que percebam a importância de seu papel na educação de seus filhos, favorecendo assim
uma aproximação entre eles e o estabelecimento de vínculos afetivos. Logo, procuram
aproveitar ao máximo todas as oportunidades que a instituição oferece para que haja a
aproximação entre pais e filhos.
Dos aprendizados no curso, podemos observar perante as respostas que além do desejo
de aprenderem a arte culinária, aprenderam a conviver em família e com os outros. Todas as
famílias entrevistadas expressaram interesse pela culinária, poderia ter sido qualquer outra
atividade que fomentasse as oportunidades para que houvesse a revinculação, mas não
podemos deixar de citar as belezas particulares do trabalho desenvolvido com o alimento. O
que torna a atividade alimentar diferente e tão particular é o prazer. Logo ir ao Mão na Massa
e se deliciar com os cheiros, sabores, texturas, formas, conhecimentos, novidades e
curiosidade se torna algo que já é gratificante.
99
Entre histórias e outras, podemos conhecer um pouco sobre a realidade do contexto de
acolhimento institucional, além de buscar compreender os encantos que os familiares
detectam em seus filhos. Um grande encanto ao trabalho foi a possibilidade de praticar uma
educação humanizadora que prioriza a confiança, a colaboração, a interdependência e a
responsabilidade, o trabalho supera, portanto, a trivial transmissão de conteúdo: trata-se de
uma nova formação de vida, o que implica a maneira de observar o mundo e de interagir com
ele.
Surge como uma esperança de ação humanística no meio comunitário, valorizando o
fazer humano, uma vez que fomenta a conscientização crítica do ser para a sua atuação
cidadã, tornando vital o relacionamento nas suas múltiplas formas de ver e agir no mundo.
Outrora é imprescindível que resgate-se o fazer humano numa questão de democracia, justiça
e dignidade, no intuito de amenizar ou abster-se da discriminação social, propondo harmonia
às futuras gerações. E que a revinculação familiar se efetive como uma vinculação mesmo,
dos filhos com seus familiares e da sua relação com o contexto social, ou melhor, com a vida.
Por fim, esperamos que este trabalho possibilite e enriqueça novos estudos e projetos
que retratem a importância das atividades culinárias nas diversas áreas do conhecimento,
especialmente, no tocante a promoção da revinculação familiar. Esperamos que as reflexões
oriundas desta pesquisa suscitem contribuições para construir novos caminhos em que
prevaleçam o diálogo e a dignidade humana, seja em contextos de abrigo ou em outros
espaços educativos, despertando o interesse de outros educadores e pesquisadores no sentido
de dar continuidade à prática de uma educação humanizadora.
100
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APÊNDICE A - Carta de apresentação da pesquisa
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APÊNDICE B - Transcrição das Entrevistas
Transcrições realizadas a partir de uma gravação de áudio, procurando relatar a maior
proximidade com o discurso dos entrevistados.
Entrevista – Família A
Nome: Camila (mãe)
1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?
Camila: O que me motiva é a aprendizagem, não é? Para fazer coisas para eu vender
futuramente, já estou aprendendo fazer salgados e bolos e eu gosto de participar e aprender
cada dia mais.
A senhora já cozinha em casa?
Cozinho em casa e tudo que faço aqui as crianças pedem para fazer e fora os vizinhos também
que pedem bolo de fubá com goiabada e petit gateau; tem que fazer! Faço direto! (Ela dá uma
tímida risada).
Quando era criança, adolescente gostava de cozinha?
Sempre gostei de cozinhar mais minha mãe nunca me ensinou, então, o que eu aprendi antes
daqui eu aprendi sozinha, mas eu sempre gostei de ver receitas na televisão, essas coisas.
Aqui e agora eu estou tendo a oportunidade de, não é? Ver e fazer com meus filhos que é mais
gostoso ainda (fala com prazer e um sorriso no rosto). Chego lá na minha cidade eu falo: Vou
fazer curso. (As pessoas perguntam). Mas e as crianças? Ah eu posso levar as crianças elas
participam também; aí fico mais tranquila ainda trazendo elas junto também para fazer, eu
quero aprender mesmo e ter orgulho, depois lá em casa já tenho dois diplomas, com esse aqui
já vai ser o terceiro, depois aparece negócio de emprego e pode levar o diploma e falar eu
tenho e sei fazer. E pode ser uma renda com certeza.
2) O que você aprendeu no curso?
106
Camila: É no primeiro ano eu passei meio nervoso eu não queria fica muito perto de ninguém,
assim eu tinha até um tipo de depressão eu não queria me relaciona, até reclamava para as
psicólogas que eu queria fica sozinha, isolada, queria fica sozinha, se vinha alguém perto da
minha mesa eu já me irritava. É verdade! Agora já não, eu chego feliz! Cumprimentando todo
mundo, não é? Já consigo dividi minha mesa e não vejo a hora de chegar o sábado para vir
aqui aprender, sabe ver vocês. Eu gosto muito! ... Eu escrevi até num relatório uma vez que eu
não queria dividir minha mesa com ninguém. Agora já dentro da van tenho amizade com todo
mundo não só das pessoas da Posse como de Jaguariúna também; o que eles não sabem eu já
gosto de ensinar, já tenho prática, gosto de fazer tudo isso!
3) O que a senhora ensinou no curso?
Camila: Os meus filhos e até aqui mesmo já cheguei a falar sobre higiene, não é? Que para
cozinha é fundamental higiene, até em casa eu não cozinhava de toca não cozinhava de
avental, agora todo dia que vou cozinhar eu uso a toca e o avental e lavo as mãos que nem
você falou: as mãos são do cotovelo para baixo, eu fico reparando se todo mundo tanto em
casa como aqui; reparando se eles lavam as mãos, eu cobro, como aqui eu falo para alguém
falar, não é? E ensino como amassar o pão certo, porque tem o modo certo, não é? Você
ensinou conforme se amassa de um jeito descansa mais, de outro jeito descansa menos, não é?
Isso daí!
4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?
Camila: Ah traz bastante... eu fico mais calma, eu era uma pessoa bastante nervosa mesmo, eu
ia fazer um bolo lá em casa não queria ninguém perto eu já brigava, se sujasse alguma coisa já
falava agora não! Agora eu chamo eles para fazerem juntos, se sujar depois eu limpo!
E porque era nervosa?
Ah não sei! Eu acho que nem a minha psicóloga falou, já vem do passado, família, eu sofri
bem, não é? E a minha família ter passado isso para mim eu estava passando para meus filhos,
não é? Eu não conseguia dar muito carinho, eu sentia carinho, mas não conseguia demonstrar,
então agora o que eu faço? Para passar carinho para eles, vamos fazer um negócio gostoso?
Vamos fazer um bolo gostoso? Daí fazemos nós três juntos, daí temos união, não é? Coisa
que não fazia, queria fazer sozinha! Agora consigo ter união com eles. E tento fazer isto com
107
as pessoas de lá também. Ah fiz tal coisa, quero que você faça, então eu faço, eu tinha
preguiça! Não queria fazer! Queria aprender, mas não exercitava. Eu via na televisão marcava
no papel, mas não exercitava, agora não, agora eu colocando a mão na massa aqui eu quero
passar para os outros e quero fazer também.
5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?
Camila: O momento de fazer de prepara as coisas (ela dá uma tímida risada), você ver cada
um preparando de um jeito, tipo a bolachinha cada um quer fazer seu formato de um jeito, eu
já quero fazer o meu de coraçãozinho, aí todo mundo fica falando: Ai, está apaixonada!
Não!!! É que eu quero caprichar, fazer bem bonito, não é? (Ela faz o comentário
descontraída). Meus filhos também ficam à vontade com as pessoas aqui com as psicólogas,
eu gosto muito! Esse é o horário que mais gosto e depois comer, não é? (Ela sorri).
6) Qual o momento mais desagradável?
Camila: Para mim como eu não tenho mais meus filhos aqui é ver as crianças, as mães se
despedindo dos filhos aqui, então como eu já passei por isso me dói o coração, o tanto de anos
que meu filho ficou aqui sofreu querendo eu e não tinha essa oportunidade do Mão na Massa
antes que nem tem agora, você pode vir e fazer as coisas com seu filho e estar junto. E tem
mães agora que tem essa oportunidade e nem vem, e as mães que vem tem o momento de
felicidade de cozinhar de estar perto do seu filho, mas na hora de ir embora é triste (ela fica
em silêncio por poucos segundos e demostra estar sentindo a dor do passado). E eu não quero
passar por essa dor nunca mais na minha vida, tinha medo de nunca mais poder ver o rosto do
meu filho (se emociona e em meio ao choro, respira fundo e prossegue), você estar na sua
casa e querer ser chamada de mãe e seu filho está aqui, talvez seu filho doente e você não
poder estar aqui para ver a febre dele para poder cuidar dele, e agora ele ficou doente
domingo, ele tem doze anos e eu cuidei dele igual um neném, coisa que eu não fiz aqui então
eu estou querendo recompensar tudo agora, porque não tinha este apoio antes como tem
agora. E nunca mais eu quero passar por esta dor que é muito ruim. É bom as mães tomarem
cuidado para os filhos não caírem aqui porque se cair é difícil tirar, viu? Muito difícil!
Quando as crianças são pequenas eles gostam que elas fiquem aqui! Tem como controlar,
quando fica maior eles vão atrás de você para devolver! Quando meu filho era pequeno eu
fazia de tudo, eles sempre achavam algum obstáculo para eu não pegar, sempre tinha algum
108
problema. Depois ele começou a dar trabalho aí parecia que eu não tinha mais problema
nenhum, daí resolveram me ajudar para tirar ele daqui. Só que hoje tem tudo, tem psicólogo,
antigamente não tinha nada para te ajudar. Não tinha volta!
7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação
mãe e filho?
Camila: Com certeza, nós somos mais unidos para tudo. Hoje a gente; até o almoço e jantar a
gente faz juntos, nós quatro, ninguém come se um não estiver, a gente não come separados. O
Vitor ele quer aprende! Ele fala assim para mim: Oh mãe me ensina qualquer coisa? Daí eu
fico no sofá só ensinando ele.
Qual seu trabalho? A senhora trabalha?
Camila: Eu sou costureira no momento, mas só que estou sem serviço, e eu falei que pretendo
fazer meus salgados. Eu faço alguns bolos de aniversário, bolo salgado, bolo de goiabada para
vende, festa da igreja, fez maior sucesso (em meio a uma risada ela demonstra a alegria com o
sucesso de suas produções). E a aproximação foi muito boa, eu fiquei muito mais calma pois
antigamente em meio a um barulho desse eu ficava de mal com a vida. (Era possível ouvir as
crianças brincando e a interação dos demais participantes do curso).
8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de sua filha? Foi só ela?
Camila: Assim, eu bebia, mas nunca fui uma mãe que judiava dos meus filhos. Minha mãe
bebia e nós morávamos tudo numa casa e minha irmã achou uma arma dentro de casa eu não
sabia que tinha essa arma, era do meu irmão. Eu sai e fui na vizinha lá na frente e nisso
estavam todas as criança lá, ela (a irmã) achou a arma e começou a brincar de roleta russa, ela
com a menina, ai nisso a arma disparou na cabeça da menina e matou a menina na hora, nisso
na hora que eu estava vindo a polícia já estava lá, minha irmã na época tinha doze anos e a
menina que morreu também tinha doze, só que ainda acharam que era eu que tinha feito isso,
porque eu era briguenta! Depois juntaram os fatos e descobriram que era ela, se fosse uma
pessoa estranha não ia matar e jogar a arma no mesmo lugar, depois disso descobriram que a
arma era do meu irmão dai mataram meu irmão também e por isso tudo que eu passei em casa
era quase impossível eu pegar meu filho de volta. Tive que alugar casa e morar sozinha para
pegar ele de volta.
109
9) Como é sua vida depois que você recuperou a guarda do seu filho?
Camila: Então é maravilhoso quando vou deitar vejo meu filho lá comigo, e tenho outra
menina que eu olho. Eu falo assim: Agora me tornei uma grande mãe mesmo porque eu tenho
capacidade de criar meus filhos e cuidar dos filhos dos outros ainda, e a melhor coisa é ser
chamada de mãe, e saber que você está cuidando bem e protegendo eles bem! Hoje eu virei
até crente, vou à igreja porque eu quero mostrar o caminho que não mostraram para mim eu
estou mostrando para meus filhos, diferente! Eu quero que eles sejam pessoas vitoriosas na
vida o que eu sou hoje! Uma pessoa vitoriosa na vida e estou muito feliz com meus filhos.
Entrevista – Família B
Nome: Selma (mãe) e Aílton (padrasto)
1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?
Selma: Eu gosto de vir porque tem bastante pessoas juntas eu sempre fico bastante em casa,
do trabalho para casa, então final de semana eu gosto porque tem pessoas para eu conversar e
eu estou aprendendo também, eu já sou cozinheira, não é? E para mim eu aprendendo cada
vez mais é melhor. Tem três anos que eu sou servidora pública e trabalho na área da merenda.
E ajuda a gente também, que nem meu filho acabou aprendendo fazer pizza e ele está
querendo vender para ganhar o dinheirinho dele, quer fazer minipizza para vender. La em
casa na realidade todo mundo gosta de cozinhar e ele também gosta bastante de cozinhar.
Aílton: Quando eu tenho que fazer em casa eu invento qualquer comida. Eu gosto de vir para
aprende, porque cozinho em casa.
Você é do Nordeste?
Sim sou.
E qual sua profissão?
Pedreiro.
E gosta de cozinhar?
Ah eu gosto! (As poucas palavras com baixo tom de voz deixavam transparecer sua timidez).
110
Selma: Em casa na realidade quem mais cozinha é ele, papéis invertidos (risos). Geralmente
comida de baiano é bem temperada, não é? Daí as vizinhas vão lá, para poder comer da
comida dele, o tempero deles é mais forte, não é?
2) O que vocês aprenderam no curso?
Selma: Ah! Aprendi a interagir mais com as pessoas, não é? Geralmente a gente dá mais
atenção para as pessoas, não ficamos só com a família da gente, você tem que ter outras
pessoas também. A gente acaba conhecendo mais a vida das pessoas também; e às vezes a
gente acha que o problema da gente é o maior, não! Da pessoa do lado é bem maior que o da
gente, então acaba aprendendo com as pessoas.
Aílton: Eu sempre fui afastado do mundo, sempre sozinho, aqui pelo menos estou me
envolvendo com o pessoal, tentando entrosar com o grupo, não é? Costumo geralmente ficar
sozinho, (fica pensativo por alguns segundos e recomeça) sempre fui sozinho, tudo que eu
faço é sozinho, nunca fui de fazer nada em grupo e o primeiro lugar é aqui que estou tentado
entrosar mais com o grupo.
3) O que vocês ensinaram no curso?
Selma: Geralmente eu comento com as colegas de serviço o que eu aprendi aqui, aí elas
acabam até fazendo as receitas que eu aprendi, participei poucas vezes mais o que eu aprendi
acabei levando para elas.
(O filho interrompe e diz com sorriso no rosto): Eu aprendi fazer pizza!
4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?
Selma: Que a gente acaba aprendendo mais e ensinando outras pessoas. Geralmente a gente
que gosta mais de culinária, não é?
5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?
111
Selma: O legal é na hora de comer, não é? (Solta uma risada descontraída), acho que todo
mundo gosto desta parte, não é? Ai todo mundo estar juntos é um momento que a gente pode
estar conversando e trocando informação.
Aílton: Ah eu gosto de fazer, quando o assunto é comida é comigo mesmo.
6) Qual o momento mais desagradável?
Selma: A minha dificuldade é por causa do meu neném, porque eu não posso quase pôr em
prática aqui, eu mais olho e aprendo com os olhos, porque ela toma um pouco da minha
atenção, fazer mesmo é a segunda vez que estou ajudando mesmo a fazer manualmente,
porque ela não deixa toma muita atenção, eu amamento ainda e ela toma mais o meu tempo,
daí eu aprendo mais vendo do que fazendo.
Aílton: Para mim é acordar cedo para vir eu penso duas vezes, porque trabalho por conta
então eu que faço meus horários.
7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação
pais e filhos?
Selma: Sim a gente da mais atenção quando está todo mundo junto, igual eu estava falando
para Débora (colega do curso), meu filho não gosta de fazer nada sozinho, se você der alguma
coisa para ele fazer você tem que estar junto, ele gosta de estar conversando, ele não gosta de
fazer nada sozinho, ele gosta muito de conversar, ele sempre foi mais falante que outro filho
meu mais velho, ele sempre foi de fazer amizade mais rápido e de conversar bastante. Assim
eu consigo estar conversando mais com ele dar mais atenção a ele quando estou aqui.
Aílton: Com certeza, a amizade com ele era um pouquinho difícil, e quando a gente fala que
vem para o Mão na Massa ele já começa a ficar muito mais próximo da gente, sabe? Mais
bonzinho tipo agrada e acaba agradando a gente, e ele já começa a ficar mais animado, e aí ele
começa a respeitar mais a gente.
Selma: Ele (o filho) sempre fica de olho no imã (imã de geladeira com os dias e receitas do
Mão na Massa, agenda de geladeira) lá na geladeira, aí a gente já vai se programando, daí
meu marido fala que vai adiantar o serviço para não trabalha no sábado.
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8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de seu filho?
Selma: Na realidade é assim, eu e o pai dele separamos é um assunto até meio chato de falar,
mas ele para não paga a pensão para os filhos que ele acha que o valor que ele me dava era
um valor muito alto, então ele falava que eu pegava o dinheiro e gastava comigo. Daí quando
a gente decidiu ir para Bahia, meu marido tinha um trabalho lá e ele tinha uma casa de
herança que a avó deixo, então tinha que ir arrumar os papéis da casa, não é? Quando a gente
decidiu ir para Bahia o meu ex-marido começou a comprar o meu filho para pode fica com
ele, deu bicicleta que é muito cara e eu não tinha condição de da um presente desse para ele,
deu vídeo game, deu celular, então ele comprou o filho dele, o outro filho meu já é mais assim
do meu lado, sempre ficou mais comigo do que com o pai mesmo, então ele decidiu ir com a
gente e o Ricardo ficou com pai. Ai nesse meio tempo o pai acabou espancando ele, por que
na realidade o Ricardo tem um problema desde que nasceu porque eu tive depressão na
gravidez dele e ele já nasceu uma criança deprimida, sempre foi uma criança que dava mais
trabalho para mim, ele sempre fez acompanhamento psicológico, com psiquiatra e o pai acho
que não sabia lida com ele ou não tinha paciência ou sei-lá o que passou na cabeça dele, mas
por varias vezes ele foi espancado pelo pai. (O padrasto interrompe e diz): Ele falava que o
remédio dele era porrada. (A mãe continua). É! Falava que problema dele era frescura e que o
problema dele se resolvia na porrada, que não era nada psicológico ou psiquiátrico, então
várias vezes ele foi marcado para escola, não é? Chamaram o conselho tutelar e nesse meio
tempo ele foi mora com minha mãe, que também não soube lidar com ele, não fazia o
acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Eles até pediram que era para eu voltar, mas na
época meu marido tinha sofrido acidente e lá na Bahia não se ganha tão bem como aqui em
São Paulo, então a realidade é mais negativa, recebia a quantia para gente sobreviver lá e na
época eu não estava com condições de voltar, na realidade um mês depois que ele veio para o
abrigo que eu consegui vir embora da Bahia para cá; deixei minha casa, deixei meu carro,
deixei tudo lá para poder vir. De lá mesmo já foram movimentando o processo meu para
poder estar pegando a guarda dele.
O pai além de espanca, a madrasta também espancava ele, (chorou) batia de soco, o Ricardo
uma vez contou que uma vez o pai deu cinco socos na barriga dele e daí ficou deitado no chão
e a madrasta tinha ciúme do pai dele e não deixava eles se aproximarem. Quando o pai saia
para trabalhar a madrasta batia nele de novo e o pai na realidade não acreditava que ele era
agredido pela madrasta. Quando chegava em casa o pai trancava ele no quarto e espancava ele
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de novo. Ele mesmo ia ao conselho tutelar e denunciava o pai e na escola quando ele ia
marcado passava por exame de corpo e delito, dai foi constatado as agressões.
Por quanto tempo seu filho ficou no abrigo?
Selma: Ele veio para cá no dia dezessete de dezembro de dois mil e quatorze, no dia quatorze
de abril de dois mil e quinze ele foi embora para casa, que foi a audiência dele e ele foi
embora.
9) Como é sua vida depois que você recuperou a guarda do seu filho?
Selma: Estou mais feliz, não é? Porque a mãe não quer o filho distante ainda mais num
abrigo!
Entrevista – Família C
Nome: Maria (mãe) e Márcio (pai)
1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?
Maria: Por causa dos meninos que estão aqui e a gente também aprende muita coisa, aprende
como está fazendo, não é? As receitas, às vezes fazemos, mas não sabemos ela bem, não é?
Certinho! Então aqui a gente aprende melhor.
Márcio: E o bom que a gente vai fazendo junto também, não é? Uma coisa que já engloba,
não é? A criança, a gente, tudo junto, fazendo numa situação só.
Gostar de cozinhar? Cozinha em casa?
Eu gosto de cozinhar, cozinho bastante, acho que em casa quem mais faz comida sou eu.
Qual seu trabalho? A senhora trabalha?
Maria: Sou cuidadora e também faço o serviço da casa da senhora.
Márcio: Trabalho com meio ambiente, não é? Plantar grama, tipo... como que eu posso falar
para você ... (fica em silêncio por um tempo) tem rodovia? Eu trabalho na beira de rodovia.
Então eu trabalho na beira de rodovia, na rodovia Dom Pedro ali onde tem o retorno.
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2) O que vocês aprenderam no curso?
Márcio: A gente aprende a fazer e já aprende o relacionamento e como falei todo mundo
participa então isso acho que também ajuda a gente. (A mãe em silêncio, concordava
movimentando a cabeça).
3) O que vocês ensinaram no curso?
Márcio: Lá em casa nós ensinamos o que você ensinou para nós aqui (a mãe solta uma risada
tímida no fundo), até esses dias o Murilo (filho) não tinha vindo ainda, aí estava ele e a
Marina (filha), não sei se a Marina não ensinou ele direito! Tentou fazer o biscoito (a mãe
repete – tentou fazer o biscoito, em meio a risadas), não ficou legal, mas mesmo assim tentou.
Daí ela falou que a massa ficou mole e eu falei (para Mariana), mas você não falou para ele
que a massa tinha que colocar na geladeira? Mas deitaram (morder) o dente, comeram tudo
(fala e ri ao mesmo tempo). Acho que até assim o que a gente vem aprendendo, acho que até a
educação, é verdade cara! O jeito de falar, porque é uma situação que envolve a família, então
a gente vai dar o melhor da gente naquele momento ali, então eu acho que é uma situação que
ajuda bastante. Até nós fomos aquele dia lá, você falou o nome do polvilho, mas eu nem
achei, aí fui lá e comprei um, mas tinha um que era bem fininho e outro que era grosso, eu não
lembro nem o nome dele, mas eu peguei e comprei, e nós fizemos o pão de queijo, não ficou
como o seu, mas... (o pai e a mãe dão risadas descontraídas).
4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?
Márcio: Eu acho que, uma por causa do aprendizado, eu gosto mesmo de mexer assim com
cozinha, eu não era muito fã de fazer esse negócio assim de massa, não que eu não era fã, é
que eu não sabia fazer, única coisa que faço de vez em quando, bem raramente é um bolo,
mas as vezes cresce as vezes não cresce (a mãe solta uma risadinha tímida). Eu gosto mesmo
rapaz de cozinhar! Vou falar para você, passar perto do fogão, já gosto! É legal para aprender
mesmo! Como pão, pão mesmo eu nunca fiz. Estes dias o Murilo meu filho fez um pão lá e
ficou até mais ou menos, ficou um pão grandão lá. Ficou até com ciúme do pão dele,
escondeu lá o pão e disse: Que esse aqui é para o café amanhã cedo (solta uma risada), mas é
legal cara! Para aprender mesmo, eu quero aprender mesmo!
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5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?
Márcio: A hora que você está fazendo, está dando seu melhor ali e você ver seu serviço
ficando bonito, não é cara? Daí você vê seu serviço ficar bonito você fica contente. É
verdade! E come também é bom (a mãe ao fundo solta uma tímida risada e concorda), mesma
coisa tem uma visita na sua casa e você vai fazer uma comida lá, começa a fazer a comida e
olha aquele monte de gente, aí você fala: Nossa! Vou ter que ralar, já pensou, você fazer um
arroz com papa lá, que você vai fala depois? (A mãe suspira e solta uma risada prazerosa).
(Neste momento somos interrompidos por um participante do curso que nos traz a informação
de que os pães da produção que estávamos fazendo já estavam dourados, quase no ponto!)
6) Qual o momento mais desagradável?
Maria: A hora de despedir... (a mãe fica em silêncio, pensativa e o pai começa a falar).
Márcio: Mas o difícil vou fala para você, o dia a dia já é difícil, não é cara? Tenho uma foto lá
que eu coloquei no guarda roupa, as vezes a gente dá uma passada perto assim vê a criança ali
não é cara, não vê a hora de vir, não é? Aí você vem; mas aí você chega pensando já que vai
retorna, não é? A hora que está aqui, está mil maravilhas é gostoso ver a criança brincando
catando a massinha ali, mas é difícil, aí na hora de ir embora é difícil. E o Leandro (filho) ele
gosta de ficar ali no portão, ele chora, daí a condução as vezes demora um pouquinho para
chega é ruim, não é?
Maria: Aí vamos embora e o Leandro (filho) chora! (Ela fala com tristeza e se emociona).
7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação
pai/ mãe e filho?
Maria: Melhorou bastante sim. Tanto os que estão lá com a gente às vezes vamos fazer
alguma coisa juntos, estar participando em casa, ajuda, ficam interessados e antes não
interessavam em prestar atenção, quando não é um é outro que está junto. Então eu achei que
melhorou nesta parte.
Márcio: A mesma coisa cara, que ela falou aí! Então melhora mesmo cara! (Fica em silêncio
por alguns segundos). Tem mais união, porque isto daqui a gente leva para dentro da casa da
gente. Desde quando nós começamos aqui, mudou bastante. Muda sim cara, muda porque
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antes das crianças virem para cá a vida nossa era torcida, não é? Conturbada, hoje já tem mais
diálogo, mais conversa, aonde a gente vê que talvez não tenha conversa a gente dá uma
esticadinha, deixa um pouco para lá porque tem coisa que não tem como você resolver ali na
hora. Então a gente aprende a ter mais paciência. Eu mesmo falo para você eu não era assim,
mas hoje eu estou aprendendo bastante, a ser mais humilde. Eu gostava que desse ouvido, não
é? Cara! E muitas vezes a pessoa não dava ouvido, aí a gente já falava alguma coisa, está
entendendo? Então hoje em dia eu prefiro fica mais quieto por que se você for querer falar
naquele momento que a panela está fervendo, não dá certo, então deixa para lá, recua, não é?
Porque a mente do ser humano é terrível, ela fica dando umas marteladas.
8) Por qual motivo vocês perderam a guarda de seus filhos?
Maria: Bebida, os dois.
Márcio: Nós estávamos bem descontrolados, não tem meio descontrolado, bebeu, está
descontrolado. Eu tinha saído de uma internação e eu tive uma recaída... tive uma recaída!
Voltei tomando mesmo e foi este o caso das crianças ter vindo para aqui.
Hoje você toma algum medicamento?
Márcio: A gente não toma medicamento nenhum, mas temos acompanhamento e nós vamos
numa reunião de partilha no (Associação dos Alcoólatras Anônimos) A.A.A. e força de
vontade... força de vontade (repete em baixo som), porque se não tive força de vontade... nós
vamos na reunião lá de simulado, você vai lá e assiste a reunião se quiser partilha você
partilha se não quiser não partilha. E você ouve também as partilhas das outras pessoas e as
vezes é parecida com a sua ou pior! E está funcionando para os caras e vai funcionar para
gente também. E legal a reunião de partilha, o dia a dia da gente é estressante, não é? A gente
passa por vários… E ali você passou por uma dificuldade ou está passando por uma
dificuldade e se vai conversar com uma pessoa assim normal que não tenha vício nenhum a
pessoa não vai entende então você no meio daquelas pessoas igual, você joga fora, você fala
para um monte de gente e você sabe que as pessoas que tão te ouvindo tão entendendo porque
elas têm o mesmo problema que você. (Ao fundo é possível ouvir a movimentação do curso,
as vozes, as crianças brincando, o barulho dos utensílios).
Essas reuniões colaboram muito, é legal a gente vai de quinze em quinze dias as terças feiras
aí você vai lá se quiser partilha você partilha ou se não quiser não partilha às vezes você ouve
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o problema do outro e acha o seu tão pequeno, é complicado. Quando você está no meio onde
todos são iguais a você, você saber que eles tão te entendendo porque todos passam os
mesmos problemas e isso te anima quando põe seu problema para fora e ter alguém para te
ouvir.
9) Como você acha que será sua vida quando você recuperar a guarda de seus
filhos?
Márcio: Olha rapaz no dia de hoje já estamos por onde fazer para da o melhor e a partir do
momento que Deus abençoa que essas crianças estiverem em casa educar mesmo de verdade
manter sem álcool rapaz, sempre dá para melhora.
Maria: continua para melhora cada vez mais.
Entrevista Família D
Nome: Ana (mãe)
1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?
Ana: Hum, uma porque gostei e outra mais para incentivar a Laís (filha) sempre dou meus
pulinhos não é? Sempre faço alguma coisinha diferente, mas agora no Mão na Massa estou
pegando mais coisa para fazer, fiz mais coisa quando comecei a entrar aqui, já fiz macarrão, já
tentei fazer lasanha, então com a ajuda daqui a gente vai pegando um pouquinho dali um
pouquinho daqui e vai aprendendo... eu gosto de cozinhar, sempre uma novidade boa, não é?
(Risos).
2) O que você aprendeu no curso?
Ana: Há muito coisa, por exemplo, a experiência de mexe no Mão na Massa, a experiência de
criança aqui dentro a experiência que vocês passam para gente, muita coisa... é uma
experiência boa de convivência.
3) O que a senhora ensinou no curso?
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Ana: Posso pular? ... Muita coisa, como se diz, como posso falar, como posso falar para você?
Aí eu ensino com ela, muita coisa, como se diz? Assim como eu aprendi aqui eu passei para
várias colegas também lá fora, entendeu? A minha vizinha que é dona da casa onde que eu
moro, então o que eu venho buscar aqui eu passo para colegas para minha nora mesmo...
vários.
Qual seu trabalho? A senhora trabalha?
Oh, eu trabalho assim por diária sabe, apanha laranja, apanha limão essas coisas, mexe com
flor. O meu serviço e esse daí. É que eu comecei a trabalhar muito nova, comecei eu estava
com nove anos eu arrancava colonião, o senhor conhece colonião? É negócio de pasto, é uma
praga que da no pasto, eu tinha que pega o enxadão para poder arrancar, é um negócio
grandão que dá no meio do pasto que o cavalo no come, então eu comecei desde os nove
aprendendo as coisas.
4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?
Ana: ... O que eu posso dizer ...; ah muita coisa, não é? Sei-lá o que eu posso responder. Ah!
Vamos supor é uma ajuda, a gente pode aprende, a gente pode explica para maioria lá fora,
pode ensina mais coisa lá fora que a gente aprendeu e que lá fora eles podem ter outro futuro e
passa para pessoas também e meus filhos, minha nora, os vizinhos pode se, que depois pode
ajuda eles. A Laís, por exemplo, (a filha interrompe a mãe do nada e começa a falar).
Laís: Quando eu vou para casa da minha mãe eu faço coisa boa, daí eu pego e faço bolo, pego
Toddy e faço milk-shake, não é mãe?
Ana: Quando tenho coisas assim ela vai mexendo, mas quando eu falo assim que hoje não é
dia de receber, então eu só vou compra o que é necessário para fazer aquele negócio, aí nós
duas põe a mão na massa, do mesmo jeito que a gente aprende aqui, lá é mesma coisa, só que
nós não temos os preparos que tem aqui, não é? Muita coisa, mas quando viemos aqui nós
vamos tentando fazer lá, aí de dentro de casa já sai para os vizinhos e já sai para os filhos, dos
filhos já sai para os amigos e vai passando.
5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?
Ana: Na hora da Mão na Massa, que é mais divertido e na hora de comer também (risos) sinto
alegria de trabalhar ali ficar ali mexendo, fazendo de um jeito você explicando, é assim!
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6) Qual o momento mais desagradável?
Ana: Na hora de sair, na hora de ir embora, porque quando você está aqui dentro você se sente
feliz, sente alegre, mas quando sai do portão para fora é uma tristeza, como se diz quando eu
estou perto dela me sinto mais sabe, mais a vontade, com animo, mas quando eu não estou
perto dela não tenho animo para nada, quando estou aqui estou feliz porque estou no meio das
criançadas e estou com ela, entendeu? E quando eu não estou é isso.
7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação
mãe e filha?
Ana: Melhorou, melhorou muito, porque eu aprendi muita coisa através dela e através de
vocês aqui, não é? Então o que aprendo aqui vou passando para ela e ela quando eu não estou
perto dela o que ela aprende aqui ela vai passando para mim em casa, porque ela sempre
chega em casa e fala: Mãe hoje eu aprendi isso, mãe vamos fazer? Se eu tenho os preparos a
gente pega e faz do mesmo jeito que fizeram aqui, então nunca fica de um lado para o outro...
muita coisa que não tinha agora estou tendo.
8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de sua filha? Foi só ela?
Ana: Não, foram abrigados três (filhos), Laís, Júnior e a Bianca, só que a Bianca não parava
aqui ela sempre fugia ai na minha audiência a Bianca foi desabrigada, mas eu perdi mais a
guarda dela porque eu estava bebendo demais e não estava cuidando dela, então foi uma
missão para mim, eu perder ela para poder parar com que eu estava fazendo que ai no caso eu
fui internada... e hoje eu recuperei e quero tentar pegar ela de volta para mim, faço tudo que
eu estou fazendo mesmo para pode tirar ela daqui.
Há quanto tempo sua filha está no abrigo?
Ana: Um ano e dois meses.
Está sendo difícil conseguir a guarda?
Ana: Ah! Eu estou tentando, não é? Como se diz nada neste mundo é impossível. Olha tudo
que eles estão pedindo para mim eu estou fazendo, tudo. Se falou um negócio da Laís é
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comigo mesmo, não perco uma, pode fala que a Laís precisa passa por psicólogo lá na China,
fala comigo eu estou indo, dela não perco uma, questão dela eu estou sempre na frente.
9) Como você acha que será sua vida quando você recuperar a guarda da sua filha?
Ana: Eu acho que vai ser uma felicidade enorme é a coisa que eu mais quero no mundo tirar
ela daqui e ter perto de mim de novo, só que não pretendo voltar no passado a fazer o que eu
fazia, pretendo sempre pegar agora no futuro, dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa.
E a relação da senhora como mãe com os outros filhos é a mesma coisa?
Ana: Mesma coisa, mesmo jeito, do jeito que eu trato ela eu trato os outros, se eu posso dar
para ela eu dou para os outros se eu não posso, eu não dou para nenhum. Agora eles se dão
bem, porque antigamente quando eu bebia não.
(A filha interrompe e diz): Antes eles nem confiavam na mãe!
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