ALÉM DA TRÍADE: HÁ COMO REDUZIR OS JUROS?1
Edmar L. Bacha2
20/10/2010
O balanço das questões tratadas indica uma herança de superindexação que parece incontornável, pois não se pode apagar a memória longa dos financiadores do Estado brasileiro. A recomendação que decorre do ceticismo e da necessidade de evitar artificialismos é não fazer nada de novo [mas isto] quer dizer persistir em reformar o Brasil com juros altos. O risco aqui é um eventual desgaste dessa alternativa aumentar a probabilidade de que algum governo tente mudanças drásticas.
Dionisio Dias Carneiro (2006, p. 213)
Sumário
Argui-se que a diferença entre os juros reais brasileiros e os praticados internacionalmente são persistentes, mesmo após a introdução da tríade da política macroeconômica, por causa das heranças de um passado hiperinflacionário e de superindexação. Propõem-se lidar com essas heranças através de um redutor de gastos do governo; a vinculação dos créditos direcionados à postura da política monetária; a dação de parcela das reservas internacionais em garantia da dívida pública; a definição de uma meta de inflação de longo prazo; a introdução de um novo regime de indexação dos preços administrados; e a liberalização das aplicações financeiras no exterior.
1Sem responsabilizá-los pelos resultados, agradeço as sugestões de Alkimar Moura, André Lara Resende, Aurelio Bicalho, Fernando Gonçalves, Francisco Lopes, Ilan Goldfajn e Pedro Malan. 2Diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças, Rio de Janeiro.
1
1. Introdução
Dezesseis anos após o lançamento do Plano Real, a estabilização
brasileira continua incompleta. A taxa real de juros não só é a maior do
planeta, mas situa-se acima de qualquer padrão internacional atual. Nos
quarenta e dois países considerados pelo The Economist, a média simples
das taxas de juros reais é -0,6%, com um desvio-padrão de 2,5%. A taxa
de juros real do Brasil é 5,5%, estando assim, com altíssima
probabilidade, fora da distribuição que gera as taxas reais de juros nos
demais países do mundo3.
As taxas reais de juros no Brasil já foram mais altas do que
atualmente. Desde 1999, a tríade da política macroeconômica – superávit
primário, câmbio flutuante e metas de inflação – tem permitido uma
redução dos juros reais. Mas esse movimento tem sido insuficiente para
colocá-los dentro dos padrões dos demais países, mesmo que se dê um
desconto pela peculiaridade da atual situação internacional. Pois as taxas
reais de juros mundo afora estão anormalmente baixas por causa da
anêmica retomada do crescimento econômico, especialmente nos países
industriais, após a mega-crise financeira de 2008-09.
Poderia ainda arguir-se que a dificuldade de reduzir os juros
brasileiros se deva à expansão descontrolada dos gastos do governo e do
crédito dos bancos públicos, que colocam a economia num ritmo de
crescimento insustentável, forçando o Banco Central a apertar a política
monetária mesmo a partir de juros tão elevados para os padrões
internacionais.
Tais fatores – a inércia do ajustamento e a situação conjuntural --
sem dúvida estão presentes. Não obstante, parece-nos que a dificuldade
de fazer os juros brasileiros convergirem para os padrões internacionais 3 Valores calculados a partir das taxas de juros de 3 meses e da inflação projetada para 2010 no The Economist de 16/10/2010.
2
tem raízes mais profundas, que se situam em nosso passado
hiperinflacionário.
Na próxima seção, argui-se, num exercício econométrico, que as
taxas de juros brasileiras tendem a se manter mais altas do que os padrões
internacionais, mesmo quando se levam em conta a inércia do
ajustamento e a atual situação relativa de demanda no Brasil e no Mundo.
Também se documenta a importância da dívida pública para a
manutenção dos juros altos no país.
Na terceira seção, sugere-se que o peso da dívida pública é
excessivo, dado nosso passado inflacionário, e discutem-se medidas que
permitam reduzir as taxas de juros, ao atacar os receios de calote e de
diluição inflacionária da dívida. Cinco medidas são sugeridas: um teto
para os gastos correntes do governo visando reduzir a dívida pública; o
uso de parte das reservas internacionais para garantir a dívida; a inclusão
do princípio da estabilidade de preços na Constituição; o estabelecimento
de uma meta de inflação de longo prazo; e a liberdade para a aplicação da
poupança doméstica no exterior.
A herança inflacionária também se manifesta na persistência de
instituições e mecanismos montados para conviver com a alta inflação,
que hoje reduzem a potência da política monetária. A quarta seção enfoca
dois desses mecanismos – os créditos direcionados e os preços
administrados. Propõe-se a superação desses problemas através da
sujeição dos créditos direcionados às decisões de política monetária do
Banco Central e da criação de um indexador unificado, consistente com a
meta de inflação de longo prazo, ao qual se vinculariam os reajustes dos
preços administrados.
As conclusões estão resumidas na quinta seção, que apresenta um
sequenciamento para a introdução das medidas sugeridas.
3
2. Equilíbrio com juros elevados
O Gráfico 1 mostra a evolução das taxas reais de juros no Brasil e no
Mundo, de 1995 a 2010. O Mundo aqui consiste de Área do Euro,
Canadá, China, EUA, Índia, Japão, México, Reino Unido e Rússia
(aproximadamente 71% do PIB mundial afora o Brasil em PPP). O
Gráfico 2 é derivado do anterior e mostra a diferença entre as taxas reais
de juros do Brasil e do Mundo.
Alguns temas são salientes: (i) os juros reais brasileiros são sempre
bem mais altos do que os mundiais; (ii) há uma quebra estrutural em
1999, refletindo a mudança de regime cambial – com câmbio fixo, a
diferença de taxas era bem mais alta do que após a introdução do câmbio
flutuante; (iii) entre 2000 e 2005 a diferença entre as taxas é
(surpreendentemente?) crescente, mas, a partir de 2005 e até 2009, há
uma tendência de convergência; (iv) a partir de meados de 2009
manifesta-se uma nova tendência de divergência, ainda que a diferença
entre as taxas se mantenha menor do que em qualquer outro período
exceto por 2000.
Tratamos de explicar as diferenças entre as taxas reais de juros do
Brasil e do Mundo num dado trimestre através de uma equação de
regressão com três variáveis4: a diferença dessas mesmas taxas no
trimestre anterior, a diferença entre os hiatos do produto no Brasil e no
Mundo (contemporânea ou defasada), e a dívida líquida do setor público
no Brasil no final do trimestre anterior; além de uma quebra estrutural
4 Agradeço a Aurelio Bicalho a discussão e elaboração dos exercícios econométricos.
4
Gráfico 1: Juros Reais Brasil vs. Mundo, 1995-2010
-10
0
10
20
30
40
50
95 96 97 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10
R_BZ R_W
Gráfico 2: Diferença entre Juros Reais, Brasil vs Mundo
.00
.05
.10
.15
.20
.25
.30
.35
95 96 97 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10
J
5
(mudança de regime cambial) em 19995. Pode pensar-se essa equação
como uma espécie de regra de Taylor, em que o Banco Central ajusta os
juros reais ao longo do tempo, tanto em função do aquecimento da
economia quanto do volume da dívida pública (no pressuposto de que,
quanto maior for essa dívida, maior precisará ser a taxa de juros para que
ela seja absorvida pelos investidores, sem a necessidade de mais
inflação).
Os resultados das regressões estão nos Quadros 1 e 2. No Quadro
1, as equações referem-se ao período do terceiro trimestre de 1995 até o
quarto trimestre de 2009. No Quadro 2, elas se referem ao período do
primeiro trimestre de 2000 até o quarto trimestre de 2009, ou seja,
exclusivamente ao período da flutuação cambial. A primeira equação dos
dois quadros não inclui a dívida; a segunda inclui a dívida e todos os
demais regressores; a terceira, inclui a dívida mas exclui a constante
(porque ela perde significância na presença da dívida). No Quadro 1, usa-
se a diferença defasada dos hiatos do produto; no Quadro 2, a diferença
contemporânea desses hiatos – uma escolha determinada exclusivamente
pela qualidade dos resultados estatísticos nos dois casos.
Nas equações (1) e (4), respectivamente nos Quadros 1 e 2, os
coeficientes de todas as variáveis independentes, cujos erros padrões se
indicam entre parênteses, são significativos: constante, diferença defasada
dos juros e diferença dos hiatos do produto. Os resultados perdem
significância quando se introduz o valor defasado da dívida líquida
5As variáveis estão em logs, exceto pela relação dívida/PIB que está em nível; veja-se o apêndice para as relevantes definições. Não se pôde construir uma série consistente da dívida bruta para todo o período, razão por que se utilizou a dívida líquida. Além dessas variáveis, foram também testados, sem resultados satisfatórios, um fator de tendência e uma medida de risco Brasil. Exceto pela dívida, os testes de Dickey-Fuller aumentado e de Phillips-Perron rejeitam a existência de raízes unitárias. Embora esses testes não rejeitem a hipótese de que a dívida tenha raiz unitária, o teste de Kwiatkowski-Phillips-Schmidt-Shin não rejeita que a dívida seja estacionária. Por isso, embora não se possa rejeitar a existência de raiz unitária para a dívida, essa existência não fica comprovada, razão pela qual, seguindo Bohn (2005), mantivemo-la na regressão.
6
QUADRO 1 REGRESSÕES PARA A DIFERENÇA DE JUROS BRASIL/MUNDO, 1995-2009
variáveis independentes regressões
(1) (2) (3) constante 0,064 0,010 (0.020)*** (0.038)
juros defasados 0,560 0,531 0,537 (0.147)*** (0.121)*** (0.107)***
dif. hiatos defasados 1,140 0,905 0,884 (0.501)** (0.566) (0.520)*
dívida pública defasada 0,189 0,214 (0.108)* (0.053)***
dummy pós-99 -0,031 -0,066 -0,070 (0.016)* (0.027)** (0.023)***
Estatísticas
R2-ajustado 0,582 0,602 0,608 DW 2,060 1,975 1,980
LM1 0.15[0.70] 0.00[0.96] 0.00[0.95] HET 7.98[0.00] 6.38[0.00] 6.22[0.00] JB 86.30[0.00] 67.09[0.00] 62.62[0.00] ( ) Desvio Padrão - White *significativo a 10% **significativo a 5% ***significativo a 1%
Amostra 1995-III a 2009-IV
LM: teste de autocorrelação serial Lagrange Multplier para uma defasagem [ ] p-valor
HET: teste de heterocedasticidade Breusch-Pagan-Godfrey [ ] p-valor JB: teste de normalidade dos resíduos Jarque-Bera [ ] p-valor
7
QUADRO 2 REGRESSÕES PARA DIFERENÇA DE JUROS BRASIL/MUNDO, 2000-2009
variáveis independentes regressões
(4) (5) (6) constante 0,020 0,001 (0.008)** (0.019)
juros defasados 0,740 0,687 0,687 (0.107)*** (0.117)*** (0.116)***
dif. hiatos 0,580 0,498 0,496 (0.228)** (0.240)** (0.228)**
dívida pública defasada 0,047 0,049 (0.044) (0.018)**
Estatísticas
R2-ajustado 0,558 0,560 0,572 DW 1,858 1,765 1,763
LM1 0.04[0.84] 0.35[0.56] 0.36[0.55] HET 1.69[0.20] 1.15[0.34] 1.15[0.34] JB 0.04[0.98] 0.30[0.86] 0.32[0.85] ( ) Desvio Padrão *significativo a 10% **significativo a 5% ***significativo a 1%
Amostra 2000-I a 2009-IV
LM: teste de autocorrelação serial Lagrange Multplier para uma defasagem [ ] p-valor
HET: teste de heterocedasticidade Breusch-Pagan-Godfrey [ ] p-valor JB: teste de normalidade dos resíduos Jarque-Bera [ ] p-valor
8
do setor público junto com a constante entre os regressores, como nas
equações (2) e (5). Entretanto, ao se suprimir a constante, como nas
equações (3) e (6), a significância dos coeficientes novamente se eleva.
A partir desses resultados, é possível calcular a diferença de
equilíbrio entre as taxas de juros do Brasil e do Mundo, definindo-se o
equilíbrio não somente pela igualdade dos juros correntes com os
respectivos juros defasados, mas também pela zeragem dos hiatos do
produto no Brasil e no Mundo. Restringindo-nos ao período de câmbio
flutuante, essa diferença é igual a 7,7%, segundo a equação (4). Quando
se introduz a dívida, e se fazem os cálculos a partir do atual valor dessa
variável, que é de 40% do PIB, conclui-se da equação (6) que a diferença
de juros de equilíbrio é igual a 6,3%6. Ou seja, nesse sentido de
equilíbrio, não se observa uma tendência para a aproximação das taxas de
juros brasileiras às taxas de juros internacionais7.
Os resultados confirmam a importância da pressão de demanda
sobre a capacidade para explicar a diferença das taxas de juros. Por
exemplo, segundo a equação (3), que se refere ao período como um todo,
no curto prazo, mantido o hiato do produto no Mundo constante, um
aumento de 1 ponto percentual na pressão da demanda sobre o PIB
potencial no Brasil implica um aumento de 0,9 ponto percentual na
diferença de juros. No caso da equação (6), que se refere exclusivamente
ao período pós-2000, o impacto é menor, igual a 0,5 ponto percentual. A
diferença dos impactos se mantém quando se considera o longo prazo -
respectivamente, 2,6 e 1,6 pontos percentuais -, e pode estar refletindo o
fato de a política monetária ter se tornado mais potente no período da
flutuação cambial. Desse modo, excessos de demanda requerem agora
6 Na equação (4), esse valor é igual a 0,02/(1-0,74); na equação (6), a 0,049x0,4/(1-0,687). 7 Um fator de tendência (1/tempo) também foi testado, isoladamente e em conjunto com as demais variáveis, sem resultados estatísticos significativos. Utilizando um modelo dinâmico, que permite que a taxa de juros equilíbrio varie ao longo do tempo, Tâmega-Fernandes et al. (2010) captam uma tendência de declínio desde 2005 nessa taxa, que atualmente estaria no intervalo de 5.4% a 6.8%.
9
menor variação dos juros para manter a inflação sob controle do que era o
caso durante o período de câmbio administrado.
Os coeficientes da dívida também apontam para a maior
efetividade da política monetária após a flutuação cambial. Assim,
segundo a equação (3), que é válida para todo o período, um aumento de
1 ponto percentual na relação dívida/PIB eleva a diferença de juros em
0,21 ponto percentual no curto prazo. Já na equação (6), que se refere ao
período da flutuação cambial, esse impacto é bem menor, de 0,05 ponto
percentual. Esta queda do impacto do aumento da dívida sobre os juros é
compatível com a percepção de que a implantação da tríade da política
macroeconômica levou a uma maior disposição dos investidores para
absorver a dívida e a uma maior potência da política monetária. Portanto,
para manter a inflação sob controle, aumentos da oferta de dívida
implicam agora de aumentos dos juros bem menores do que era o caso
durante o período de câmbio administrado.
Baldacci e Kumar (2010) reportam estudos para os EUA que
estimam impactos de 0,03 a 0,05 pontos percentuais de aumento de juros
por cada 1 ponto percentual de aumento da dívida pública americana
como proporção do PIB. Sua própria análise empírica encontra valores
similares a esse num painel de 31 países para o período de 1980-2008. Os
resultados obtidos para o Brasil para o período de flutuação cambial são,
portanto, compatíveis com a evidência internacional, mas também
revelam a importância da dívida para os juros, especialmente tendo em
conta o processo paulatino de ajustamento de juros nas nossas equações.
Assim, no período da tríade, retratados na equação (6), no longo prazo
um aumento de 1 ponto percentual na dívida resulta num aumento de 0,19
10
ponto percentual na diferença de juros8, um valor bem maior do que os
valores retratados no painel de Baldacci e Kumar.
Os resultados estatísticos confirmam a percepção de que os juros
reais elevados no Brasil são persistentes e têm a ver com prêmios de risco
relacionados a temores, que perduram, de diluição inflacionária e calote
da dívida pública. Por outro lado, também é arguível que mecanismos de
indexação e de segmentação de créditos, montados para proteção contra a
alta inflação, continuam a reduzir a potência da política monetária,
mesmo sob o regime da tríade macroeconômica. Discutimos na próxima
seção os riscos da dívida e na seguinte os mecanismos redutores da
potência da política monetária9.
3. Dívida Pública e Herança Inflacionária
É muito ruim a experiência monetária brasileira até o Plano Real. Rogoff
e Reinhart (2004a) mostram que o Brasil perde apenas do Congo entre os
países com as moedas que mais se desvalorizaram no mundo entre 1970 e
1991. Mesmo no período pós-Real, entre 1995 e 2009, a inflação dos
preços ao consumidor no Brasil foi de 7,5% ao ano; no resto do mundo10,
3,6%. Na última década, entre 2000 e 2009, a inflação anual no Brasil foi
6,6% e no resto do mundo, 2,8%. Ademais, o país se inclui entre os
“caloteiros em série” identificados em Rogoff e Reinhart (2004b). Não se
trata apenas de calotes da dívida externa, pois foram várias as supressões
da “correção monetária” da dívida interna em planos econômicos desde o
8 Isso resulta da divisão do coeficiente da dívida defasada por um menos o coeficiente da diferença defasada de juros na equação (6). 9 Partes dos temas das seções que se seguem foram antes considerados em Arida, Bacha e Resende (2005) e Bacha, Gonçalves e Hollanda (2009). 10 Resto do mundo: Reino Unido, EUA, China, México, Rússia, Índia, Área do Euro, Canadá e Japão (aproximadamente 71% do PIB mundial afora Brasil em PPP).
11
início da década de 1980, culminando com o congelamento dos depósitos
no Plano Collor de 1990.
Propostas mais ou menos explícitas de calote na dívida deixaram
de estar presentes nos programas do PT apenas desde a Carta aos
Brasileiros de meados de 2002, embora constassem da Declaração de
Olinda do final de 2001. No atual programa do partido, resta a demanda
por um ‘imposto sobre as grandes fortunas’. Talvez mais significativas
sejam as contínuas manifestações contra a política de juros do Banco
Central por parte de lideranças empresariais e políticas, tanto do governo
quanto da oposição – sem explicitação de uma alternativa que não
envolva calote ou mais inflação. Essas críticas deixam no ar a dúvida
sobre por quanto tempo mais a elite brasileira dará sustentação a uma
política de contenção da inflação que requer juros reais tão elevados. É
uma situação parecida com a que havia no país com respeito aos planos
de estabilização desde o Cruzado até o Plano Real. Na aparente falta de
alternativas, a cada governo que entrava, ou ministro da fazenda que era
substituído, imediatamente começavam os rumores sobre um próximo
congelamento de preços, o que contribuía para acelerar a inflação.
Atualmente, os temores latentes sobre a continuidade do tripé
macroeconômico contribuem para sustentar os juros elevados.
É muito alto o gasto do governo com o pagamento de juros sobre a
dívida pública: 5,4% do PIB em 2009. É isso que causa o incômodo
político. Esse valor resulta da multiplicação da taxa média de juros pela
razão entre a dívida e o PIB. Fosse essa razão menor, menor também
seria o ônus do serviço da dívida sobre o PIB. Superando 40% do PIB, a
dívida pública líquida é muito elevada em face de nosso triste histórico de
alta inflação e sucessivos calotes. Entre os nossos parceiros de risco
soberano na Standard&Poor’s (2010), somente a Índia tem dívida
pública mais elevada. Mas a Índia não tem um passado de altíssima
12
inflação e sucessivos calotes como o nosso – uma das razões por que a
poupança interna desse país é tão mais elevada do que a do Brasil e os
juros reais tão mais baixos.
A dívida líquida não é apenas elevada; entre os ativos do governo
central que reduzem seu valor destacam-se ativos locais de liquidez
duvidosa. Além disso, a dívida é de curto prazo e muito dependente da
taxa Selic. Nessas condições, aumentos dos juros pelo Banco Central
arriscam tornar o serviço da dívida politicamente insuportável, aguçando
a percepção de uma monetização futura e diminuindo o impacto da
política monetária sobre a inflação. Blanchard (2005) e Favero e Giavazzi
(2005) investigaram de forma independente qual seria o nível de dívida
em que a política monetária se tornaria perversa – o ponto a partir do qual
aumentos adicionais dos juros, por seu impacto sobre o risco de
monetização futura, aumentariam em vez de diminuir a inflação
prospectiva. Exercício similar foi feito por Carneiro e Wu (2005).
Embora os números divirjam, a conclusão desses autores foi que, embora
a dívida ainda não houvesse atingindo o nível que tornaria perversa a
política monetária, ele estava à vista, a persistirem as tendências que
então se observavam. Desde então, essa preocupação se tornou menos
urgente, pois a dívida caiu como proporção do PIB e a taxa real de juros
retrocedeu. Sem embargo, conforme sugerido pelos exercícios
econométricos da seção anterior, é demonstrável a importância do
tamanho da dívida na explicação das altas taxas reais de juros do país.
É razoável concluir que se torna necessário um movimento
convincente de diminuição do valor da dívida ao longo do tempo para
reduzir o prêmio de risco embutido nas taxas de juros. Há uma proposta
no Congresso para colocar um teto à expansão do gasto corrente do
governo federal, de modo a permitir um aumento do superávit primário
sem prejuízo do crescimento e assim obter uma queda da dívida pública
13
como proporção do PIB. De acordo com nossos resultados
econométricos – expressos na equação (6) do Quadro 2 – uma redução da
dívida líquida do setor público dos atuais 40% para 20% do PIB fariam a
diferença entre os juros reais brasileiros e a média dos juros mundiais cair
à metade, em equilíbrio (de 6,3% para 3,15%).
Esta proposta poderia complementar-se com um mecanismo
financeiro, através do qual parcela das reservas internacionais --
reconhecidamente excessivas do ponto de vista da provisão de um seguro
contra abalos externos, mas nem por isso menos custosas --, passassem a
oferecer garantia legal para a dívida interna11. Não se trata de resgatar a
dívida interna, pois isso requereria a conversão das reservas em reais,
valorizando ainda mais a moeda, mas de criar um lastro externo para a
dívida interna, que permita a redução de seu prêmio de risco. Impostos
diferenciados à parte, tal mecanismo permitiria que o Tesouro brasileiro
captasse recursos no mercado doméstico, com papéis assim lastreados,
pagando taxas de juros nominais em reais mais próximas às taxas em
dólares com que hoje capta recursos no exterior.
Tais medidas dariam credibilidade a um compromisso com uma
meta de inflação de longo prazo. A proposta é que o Conselho Monetário
Nacional defina uma meta de inflação, a ser alcançada até o final desta
década, para deixar claro que a estabilidade de preços não tem um
horizonte de apenas dois anos, como no atual regime de metas, mas é um
objetivo nacional permanente. Essa meta precisa ser suficiente baixa para
desestimular a indexação, mas suficientemente maior do que zero para
dar margem a ajustes de preços relativos sem que se corra o risco de uma
deflação. Uma meta de longo prazo de 3% parece cumprir com ambos os
11 Caso o Tesouro não saldasse a divida interna em reais, ela seria paga em dólares por agentes fiduciários do governo brasileiro no exterior.
14
requisitos, além de aproximar-se da taxa média de inflação na última
década no ‘resto do mundo’ definido na seção anterior.
Para fortalecer essa sinalização, sugere-se a aprovação de emenda
constitucional incluindo a busca da estabilidade de preços nos princípios
da ordem econômica e financeira do país (Constituição Federal, Art.
170). Os atuais objetivos vão da soberania nacional à proteção da
pequena empresa, passando pela busca do pleno emprego e a redução das
desigualdades, mas surpreendentemente não incluem a busca da
estabilidade de preços, talvez porque a Constituição tenha sido aprovada
num período de alta inflação, em que tal estabilidade parecia
inalcançável. Não se trata de mera declaração de intenções, mas inter
alia de caracterizar que o objetivo de manutenção do poder de compra de
salários e aposentadorias prescrito em outras partes da Constituição
(Artigos 7º, 37, 39, 40, 42 e 201) será perseguido preferencialmente pela
busca da estabilidade de preços e não por leis ordinárias ou decisões
judiciais que os indexem à inflação passada12.
O componente final das medidas propostas nesta seção seria a
liberalização das aplicações financeiras no exterior. Atualmente, a
modalidade de fundos de investimento no exterior (regulados pelos
Artigos 97 e 110-B da Instrução 409 da CVM) está restrita apenas a
clientes de grande porte e mesmo assim a liquidação financeira das
posições tem que ser feita em reais, dentro do país. O que se propõe é
uma liberalização dessas restrições, regulamentando-se a negociação no
varejo interno de fundos de investimento no exterior, com a possibilidade
de liquidação das operações em dólares no exterior.
12 Veja-se mais adiante uma proposta de indexação, referida à inflação à frente, a ser aplicada aos preços administrados, que também poderia aplicar-se às remunerações protegidas contra a inflação no texto constitucional.
15
Trata-se de deixar aberta a porta de saída, para reduzir a parcela do
prêmio de risco embutida na taxa de juros por causa das restrições hoje
existentes para as aplicações financeiras em moedas outras que não o real.
Quando o governo dificulta as aplicações em dólares, o resultado é que os
investidores locais demandam um aumento da taxa local de juros para
acomodar uma parcela maior de sua riqueza em reais. Concretamente,
entre os emergentes com um passado de alta inflação e sucessivos calotes
na dívida, o Brasil é o único país que desenvolveu um amplo mercado
financeiro doméstico baseado exclusivamente na moeda nacional. Todos
outros na mesma categoria (Argentina, Bolívia, Equador, Peru, Uruguai,
para citar apenas os exemplos próximos) tiveram que admitir o dólar
como uma moeda paralela. Esse feito brasileiro deve ser preservado, pois
a dolarização do sistema financeiro doméstico é sem dúvida danosa. O
problema são os custos. No passado inflacionário inventaram-se as contas
remuneradas para preservar a poupança na moeda nacional; atualmente,
os juros elevados cumprem o papel de manter os brasileiros atrelados ao
real13.
Acopladas à tríade da política macroeconômica, as medidas aqui
delineadas permitirão lidar com as causas dos juros elevados, mas os
investidores precisam estar convencidos de que isso é para valer – e uma
boa maneira de obter esse convencimento é facilitando as aplicações
financeiras no exterior. Desta forma, os brasileiros poderão livremente
aplicar suas poupanças onde quiserem mundo afora, deixando de haver a
justificativa do aprisionamento para que requeiram uma remuneração de
suas aplicações em reais maior do que as taxas de juros vigentes
internacionalmente. Trata-se de medida congruente com a progressiva
13 Mesmo enfrentando problemas de endogeneidade que vão contra a hipótese, a análise de painel em Bacha, Gonçalves e Holland (2009) mostra haver uma relação inversa entre dolarização financeira e a taxa de juros local.
16
introdução da conversibilidade plena do Real, que vem sendo perseguida
pelo Banco Central desde a criação da moeda em 1994.
4. Política Monetária e Herança da Superindexação
Ao longo do período inflacionário, diversos mecanismos de proteção
foram sendo montados, para preservar preços e créditos da corrosão
inflacionária. Hoje, esses mecanismos reduzem a potência da política
monetária e sua superação facilitaria a redução dos juros no país.
Consideramos aqui dois desses mecanismos que nos parecem
particularmente perversos.
Trata-se em primeiro lugar de ampliar o alcance da política
monetária sobre a oferta de crédito, de forma que ela passe a influenciar
não só o custo do crédito livre (via taxa Selic), mas também o volume do
crédito direcionado (desembolsos do BNDES e de outros bancos de
fomento, mais o crédito habitacional e o crédito agrícola). Os créditos
direcionados, que representam hoje cerca de 1/3 do total dos créditos do
sistema financeiro, são via de regra subsidiados e portanto racionados
através de mecanismos administrativos. Dessa forma, boa parte da
expansão do crédito independe das decisões do Banco Central. Isso
requer uma taxa Selic mais alta para conter a inflação do que seria o caso
se os créditos direcionados também se contraíssem quando o Banco
Central apertasse a política monetária14. A proposta, então, é que o
volume dos créditos direcionados passe a ser determinado periodicamente
pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), de forma compatível com a
postura da política monetária, conforme definida pelos movimentos da
14 Persio Arida tem proposto a substituição da TJLP pela NTN-B como referência para os créditos do BNDES; o Ministério da Fazenda já anunciou o propósito, mas depois dele desistiu, de ligar a remuneração da poupança à taxa Selic. Tais medidas permitiriam aumentar o alcance da taxa Selic sem a necessidade de controles quantitativos dos créditos direcionados. Enquanto não são adotadas, melhor instituir tais controles que, salvo melhor juízo, independem de medidas legislativas.
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taxa Selic. Quando, por exemplo, o Banco Central reduzisse a taxa Selic,
isso seria acompanhado por decisão do CMN aumentando a oferta do
crédito direcionado suprido majoritariamente pelo BNDES, a Caixa e o
Banco do Brasil.
O aumento da potência da política monetária seria também obtido
pela ampliação do conjunto de preços que variam em função da demanda
de bens e serviços, conforme afetada pela taxa Selic. Atualmente,
somente os chamados preços livres assim o fazem de forma plena, pois os
chamados preços administrados, sujeitos a regras contratuais, tendem a
ser reajustados de acordo com índices que medem a inflação passada,
independentemente das condições de demanda. A consequência é que
um aperto monetário tem que ser mais forte e mais duradouro do que
seria o caso se houvesse maior flexibilidade dos preços administrados,
que respondem por cerca de 30% da amostra de produtos que entra no
IPCA. Há boas razões, entretanto, para que determinados preços, que
envolvem contratos de longo prazo, como os aluguéis residenciais, por
exemplo, embutam regras pré-determinadas de reajuste.
Trata-se, então, de imaginar regras de reajuste dos preços
administrados que não reduzam o impacto da política monetária sobre a
inflação. Embora cada caso tenha suas especificidades, em termos gerais
pode-se pensar num mecanismo de estágios sucessivos para submeter tais
preços à influência da política monetária. Inicialmente, haveria uma
unificação dos regimes de indexação, de modo que, a partir do
vencimento dos atuais contratos, tais preços passassem a ser reajustados
exclusivamente pelo IPCA, o índice de referência do sistema de metas de
inflação. Em seguida, haveria uma mudança do mecanismo da indexação,
que progressivamente deixaria de ter como referência a inflação passada,
passando a ter como referência a meta de longo prazo (3% ao ano).
Assim, ao invés de ser feita integralmente pelo IPCA passado, a
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indexação dos preços administrados passaria a ser feita de acordo com
uma média ponderada entre o IPCA passado e a meta de longo prazo. O
peso da meta de longo prazo seria progressivamente aumentado, até
atingir a unidade. Ou seja, os reajustes dos preços administrados
continuariam predeterminados, mas o indexador desses reajustes seria
consistente com os objetivos de longo prazo da política monetária.
5. Conclusões
Os testes estatísticos aqui apresentados sugerem que a diferença entre os
juros reais brasileiros e aqueles praticados internacionalmente são
persistentes, mesmo após a introdução da tríade da política
macroeconômica em 1999. Os testes também permitem arguir que essa
persistência tem raízes em nosso passado hiperinflacionário, que reduzem
a tolerância a dívidas públicas elevadas e travam a potência da política
monetária.
Propôs-se, então, uma série de mudanças institucionais, desenhadas
para lidar com as heranças da hiperinflação e da superindexação,
permitindo assim fazer a taxa real de juros convergir para os padrões
internacionais. A prudência recomenda a implantação dessas medidas
em estágios, começando por aquelas que atacam os fundamentos da
“dominância fiscal” e do baixo alcance da política monetária sobre os
créditos bancários, seguida daquelas que lidam com os mecanismos de
indexação, para finalmente alcançar aquelas que arrefecem o
aprisionamento da poupança.
Tais estágios seriam os seguintes: (I) Aprovação do redutor de
gastos do governo e da vinculação dos créditos direcionados à postura da
política monetária; (II) Dação de parcela das reservas internacionais em
garantia da dívida pública; (III) Inclusão do princípio da busca da
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estabilidade de preços na Constituição e estabelecimento da meta de
inflação de longo prazo; (IV) Novo regime de indexação para os preços
administrados; e (V) Liberalização das aplicações financeiras no exterior.
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APÊNDICE: DESCRIÇÃO DAS VARIÁVEIS
Diferença de juros Brasil/Mundo: log((1+r_bz/100)/(1+r_w/100)))
r_bz: taxa de juro real ex-post - ((1+i/100)(1+IPCA12m/100))), onde i é a
última taxa selic decidida no trimestre
r_w: taxa de juro real ex-post construída a partir das taxas básicas de juros dos
países e da inflação ao consumidor acumulada em 12m; mesma fórmula anterior
Diferença dos hiatos: (h_bz - h_w)
h_bz = log(y_bz/y_bz_hp)
y_bz: índice do PIB real Brasil com ajuste sazonal
y_bz_hp: Filtro Hodrick-Prescott do índice do PIB real Brasil com
ajuste sazonal
h_w = log(y_w/y_w_hp)
y_w: índice do PIB real amostra mundo com ajuste sazonal
y_w_hp: Filtro Hodrick-Prescott do índice do PIB real amostra mundo
com ajuste sazonal
Dívida pública:
d: dívida total líquida do setor público em proporção do PIB no último mês do
trimestre
Dummy pós-99: 0 de 1995:1 a 1999:2 e 1 de 1999:3 a 2009:4
Amostra mundo: Reino Unido, EUA, China, México, Rússia, Índia, Área do Euro,
Canadá e Japão (aproximadamente 71% do PIB mundial afora Brasil).
A série do índice PIB amostra mundo começa em 1997:1. O período entre 1995:1 e
1996:4 foi estimado a partir de um modelo econométrico em função do PIB US e PIB
área do euro.
Os índices do PIB, as taxas de juros nominais e as taxas de inflação foram agregadas a
partir dos pesos em PPP de cada país.
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Referências
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