Download - Agroecologia em defesa da vida

Transcript
Page 1: Agroecologia em defesa da vida

NOVA ALTERNATIVA

Agroecologia em defesa da vida

Bastante prejudicada nas últimas décadas, justamente pelo modelo de política agrícola

que permitiu ao Brasil tornar-se uma potência mundial da produção de alimentos, a

agricultura familiar parece estar se erguendo do chão. Aliada a ela, está a agroecologia,

uma nova concepção de desenvolvimento, que vai muito além do não uso de

agrotóxicos: o cuidado com a preservação da natureza, com a vegetação nativa e a

necessidade do ser humano de se enxergar como parte da natureza e não como um ser

acima dela, que só explora e usufrui, também caracterizam este modelo de produção.

Para o engenheiro agrônomo Luiz Rogério Boemeke, as diferenças entre lavouras

orgânicas e tradicionais são sutis. “A planta, no entanto, é mais clara e o sabor é

diferente”, exemplifica. No Brasil, a produção de orgânicos representa menos de um por

cento da área agricultável. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a

agricultura ecológica aumenta de 15% a 20% por ano. Na visão dele, é um número

extremamente pequeno para um país como o Brasil. “Deveríamos já, ter mais da metade

da população brasileira sendo alimentada dessa forma, e pecamos por não ter alimento”,

argumenta.

“A produção ecológica vem sendo um dos principais focos de resistência da agricultura

familiar”, expõe Sighard Hermany, coordenador geral do Centro de Apoio ao Pequeno

Agricultor (Capa), com sede em Santa Cruz do Sul. Esta entidade, criada pela Igreja

Evangélica de Confissão Luterana no Brasil há 25 anos, possui hoje cinco núcleos de

atuação e presta assessoria a cerca de 4,5 mil famílias no Rio Grande do Sul, Santa

Catarina e Paraná. Mas a forma orgânica de cultivo enfrenta muita resistência. “Tenho a

impressão de que sem ureia, sem Roundup, as pessoas não conseguem viver”,

acrescenta.

São poucos que entendem a agroecologia como algo positivo em suas vidas na região

do Vale do Rio Pardo. É o caso de Silvio Wollmann, 67 anos, candelariense e plantador

Page 2: Agroecologia em defesa da vida

de fumo e arroz desde os 20. Para ele, o cultivo de alimentos orgânicos é algo inviável.

“Teria que investir muito mais em estrutura, além de que o retorno seria mínimo e

muito demorado”, explica. Segundo o agricultor, as redes de supermercados pagam

pouco por esse tipo de mercadoria e nem todos os estabelecimentos comercializam esses

produtos, por conta da baixa procura do consumidor.

O também candelariense Álvaro Luettjohann tem uma experiência distinta que seu

companheiro de profissão, Wollmann. Apesar de concordar que os varejistas ainda

pagam pouco pelo produto diferenciado que é o orgânico, Luettjohann, que planta sem

agrotóxicos desde 1999, ressalta que o custo de produção é, se não menor, equivalente.

“Gasto menos comprando composto orgânico para minha lavoura do que gastava

quando precisava de adubos químicos, ureia e outros insumos”, lembra. Mas quanto ao

valor pago, o agricultor tem uma reclamação: “nosso produto não é valorizado. Não há

diferenciação nos mercados e nós vendíamos como se fosse cultura convencional”.

E realmente, o consumo de orgânicos cresce a passos lentos. Para Hermany, isso tem

direta influência do valor comercializado. Ele coloca que, em no varejo, o valor é mais

alto, por conta da baixa disponibilidade de produto. “Mas nos espaços de venda direta,

nas cooperativas, ele está bem próximo que o preço do alimento convencional”, explica.

E ainda destaca: “Quem compra tem um benefício adicional, vai deixar de gastar com

remédios. Ou seja, parece ser mais caro, mas acaba não sendo. O consumidor vai ter

uma saúde melhor e deixar de gastar com médicos”.

Sem contar que o agricultor que produz na agroecologia, apresenta um benefício para a

sociedade. Ele ajuda a cuidar da preservação ambiental: da qualidade da água, da terra,

do ar. Para o agrônomo Boemeke, isso justificaria um valor um pouco mais elevado:

“Nada mais justo que ter uma remuneração distinta. Além disso, o fato de não existirem

políticas públicas que favoreçam essa área de maneira decisiva, faz com que os

consumidores talvez tenham pagar um pouco mais. Mas, para ele, essa imagem de que o

alimento orgânico é inacessível deve ser desmistificada: “Vale a pena pelo simples fato

de ser diferente e livre de químicos”.

Hermany também associa o uso de agrotóxicos à doença do século, a depressão. “Os

químicos agem em cima do sistema nervoso, que tem tudo a ver com depressão”, avalia.

Page 3: Agroecologia em defesa da vida

E só a partir das doenças que as pessoas procuram uma alimentação mais saudável,

constata Melissa Lenz Froehlich, nutricionista que trabalha com saúde alimentar e

prevenção de doenças. “Muitas pessoas vão atrás destes alimentos depois que adoecem,

quando o médico recomenda o consumo de produtos orgânicos e naturais”.

Foi o que aconteceu a Herculano Frantz, hoje produtor ecológico em Santa Cruz do Sul.

Ele chegou a passar vários dias na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) devido ao

envenenamento causado pelos agrotóxicos, o que acarretou depressão. Hoje, contudo, o

agricultor é um exemplo dos que conseguiram dar a volta por cima e salienta que a

forma convencional é mais produtiva e rápida, mas a agroecologia traz a felicidade.

“Com ela tu tem que ter mais carinho, mas vale a pena”, ressalta.

Antes, ele e sua esposa, Lori Frantz, tinham 60 hectares de arroz e eram considerados

médios produtores. “Em nossa vida isso não avançou nada”, lembram. Agora, cultivam

uma área menor, em torno de 20 hectares, mas totalmente livre de insumos químicos,

cuja safra é comercializada por uma cooperativa de agricultores ecológicos, a Ecovale,

promovida pelo Capa. Com o cultivo ecológico e o trabalho em conjunto conseguiram

aumentar sua renda, já que não dependem mais do financiamento bancário.

Além de plantar, também passaram a industrializar e fazer a venda do seu próprio

produto através da cooperativa, que atualmente conta com quatro famílias. E os

consumidores agradecem essa iniciativa. Iara Kunz, de 47 anos, já consome orgânicos

há uma década. Ela destaca que os alimentos podem, sim, ser mais caros, porém, não é

preciso gastar com remédios para corrigir aquilo que os agrotóxicos estragaram. “O

gosto também é melhor. Posso sentir o aroma das verduras, tudo recende à terra”,

destaca.

Agroecologia em Candelária

Há aproximadamente 450 metros de altitude fica o morro conhecido por Chapadão, no

município de Candelária. Saindo do centro da cidade, depois de cerca de 40

quilômetros de estrada de chão e quase uma hora de carro, chega-se à casa de um dos

moradores da localidade, Álvaro Armando Luettjohann. Ele, sua esposa Adriane e os

Page 4: Agroecologia em defesa da vida

filhos Morgana e Felipe conduzem, sozinhos, a propriedade de vinte e quatro hectares,

onde predomina a produção orgânica.

A Linha Chapadão, como também é chamada, abriga outros produtores orgânicos. No

total, são seis famílias que se dedicam à agroecologia e elas têm um sonho em comum:

transformar a lugar em referência na agricultura sem químicos para a região. O local é o

único com este tipo de produção no município e integra o núcleo de Santa Cruz do Sul

do Capa, o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, de quem recebe total apoio.

Luettjohann tem 59 anos, mas iniciou na agricultura muito jovem. Junto com seus pais,

ele plantava fumo, milho e feijão para comércio, de maneira convencional. “Nós fomos

enganados. Nos disseram que só era possível ir bem na agricultura se usássemos

venenos”, desabafa, ao lembrar da vida sem agrotóxicos que a família já chegou a levar.

O agricultor também nota como foi difícil voltar atrás: “Os vizinhos davam risada da

gente. Chegavam a dizer que íamos morrer de fome por não plantar fumo”.

Mas mesmo no meio orgânico, não é necessário largar esta forma de renda tão

tradicional na região. Três das seis famílias do morro continuam plantando fumo, só que

de maneira ecológica. Uma delas é a de Jair Costa. As empresas que recebem a planta

orgânica são as mesmas que recebem a cultura normal. Porém, neste caso, existe um

rendimento bem melhor para quem se dedica a este trabalho: “As fumageiras chegam a

pagar 60% a mais se não encontram nenhum vestígio de químicos”, explica a esposa de

Luettjohann, Adriane, que é irmã de Costa.

Hoje todas as famílias da região têm certificados de Conformidade Orgânica, garantidos

pela Lei 10. 831/03 e emitido pela Rede Ecovida de Agroecologia. Segundo

Luettjohann, que hoje planta milho e feijão para comercialização, além de frutas e

verduras para consumo próprio, obter certificação naquela área é mais fácil, pois lá,

agrotóxicos não são aplicados em nenhum terreno. “Nosso vizinhos são, ou mata nativa,

ou outros plantadores orgânicos, então, não tem como o veneno chegar”, esclarece.

Para ele, os benefícios da agricultura e do consumo de orgânicos são muitos. “Na nossa

terra já podemos ver a diferença”, conta, emocionado. Explica que hoje nem tudo é inço

que deve ser secado. Ele até brinca ao dizer que o inço foi criado pelo ser humano:

Page 5: Agroecologia em defesa da vida

“Naquele tempo, de químicos, tudo era inço. Em tudo tínhamos que passar veneno. Mas

foi o homem que disse que aquilo não servia. Hoje, quem disse que não serve?”

Orgânicos beneficiam principalmente o consumidor

Segundo a nutricionista Melissa Lenz Froehlich, o ato de se alimentar é um dos mais

primitivos e necessários para a manutenção da vida. “Podemos deixar de consumir

bebidas alcoólicas, de fumar, mas não podemos deixar de comer”, pondera. Mas, em

meio à correria da vida moderna, as pessoas acabam se nutrindo mal e o mundo jamais

teve tantos obesos. A onda do saudável vem ao lado da obesidade, da hipertensão, do

diabetes, das doenças cardiovasculares, do colesterol alto e dos triglicerídeos elevados.

“O alimento orgânico tem maior valor nutricional: mais vitamina C, mas cálcio, mais

ferro, mais zinco, mais potássio e mais fósforo”, destaca a nutricionista. Os dados são

resultado do estudo Qualidade Alimentar de Produtos Orgânicos e Biodinâmicos. Além

dos benefícios citados, apresentam menos mercúrio, que é uma substância tóxica,

presente na terra, e que existe em maior quantidade nos alimentos convencionais. Por

terem maior valor nutricional evitam várias doenças, entre elas a osteoporose. “Também

previne alguns tipos de câncer, por não ser contaminado”, acrescenta.

Em um país que ocupa a primeira posição no ranking mundial para o uso de

agrotóxicos, pensar em agroecologia pode parecer contraditório. “A correnteza vai para

baixo, mas nós queremos subir”, exemplifica Melissa. E ela também desafia: “a

agricultura orgânica poderia se desenvolver mais se o consumo fosse maior”. O

consumidor atual tem pressa, pois vai ao mercado, espera encontrar tudo o que precisa

lá e assim os orgânicos vão ficando para trás. Para ela, a falta de interesse é uma perda

e, apesar de a segurança alimentar ser muito discutida atualmente, o consumidor não

percebe como inserir isso em sua rotina. “É cuidar com a higiene do alimento e da

qualidade nutricional”, expõe.

Mas o prejuízo para quem mantém contato com agrotóxicos e adubos químicos é ainda

maior. Melissa explica que os agricultores são prejudicados duas vezes: se eles

manuseiam, são contaminados e, depois, ao ingerir o alimento, são contaminados outra

Page 6: Agroecologia em defesa da vida

vez. Ao não usar o equipamento de proteção, o agrotóxico é absorvido com mais

facilidade pelo corpo, causando uma contaminação aguda: “o agricultor vomita, tem

diarreia, boca seca, tonturas e visão turva”. Nos consumidores, o agrotóxico vai se

acumulando no corpo, até causar um problema renal, no fígado ou até câncer.

Box: Agricultura familiar discutida na Rio +20

Muito vem sendo feito pela divulgação da alimentação orgânica. A Conferência das

Nações Unidas (ONU) sobre desenvolvimento sustentável, a Rio +20, que aconteceu

ano passado, na cidade do Rio de Janeiro, trouxe a urgência que o mundo precisava.

Debates sobre fome, pobreza e desenvolvimento marcaram o encontro. O diretor-geral

da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), José

Graziano da Silva, ressaltou que o texto final, aprovado pelos chefes de estado,

reconhece o direito à alimentação e destaca para a importância da segurança alimentar e

o consumo mais sustentável.

Sighard Hermany, coordenador geral do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor

(Capa), coloca que a FAO elaborou uma recomendação, em que consta que a melhor

maneira para alimentar a população mundial seria através da agricultura familiar. A

conclusão deste documento é de que o modelo agroquímico só causou enormes estragos

e a solução é um encaminhamento via agroecologia. A respeito disso, a nutricionista do

Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), Melissa Lenz Froehlich, indica um

documentário chamado O veneno está na mesa: “Ele é um alerta sobre o uso

indiscriminado de agrotóxicos na agricultura brasileira, que atualmente é a recordista

mundial”.