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1DERC - Boletim do Departamento de Ergometria e Reabilitação Cardiovascular da SBC • Ano 8 • julho / agosto / setembro de 2002 • Nº 25

Nos últimos tempos, têm seobservado uma crescentepolêmica sobre qual seria o

termo mais correto para se referir àsreações metabólicas associadas ao usodo oxigênio - aeróbica ou aeróbia?Uma questão complexa entrefisiologistas e filologistas que sãoprovavelmente mais favoráveis,respectivamente, a aeróbico e aaeróbia, entendemos que existemoutros aspectos terminológicos maisrelevantes em relação ao tema, quemerecem uma atenção maior emfunção de sua aplicabilidade cotidiana.

O estudo do uso e do transportedo oxigênio pelo corpo humano teminteressado fisiologistas porséculos1,2. A relevância do consumomáximo de oxigênio, há muitovalorizada para o desempenho deatletas em eventos de longa duração3,tem sido objeto de literatura médicarecente4, na qual são corroboradosresultados epidemiológicosanteriores, destacando a suaimportância como fator deprognóstico favorável em indivíduossaudáveis ou cardiopatas. Nãoobstante esse amploreconhecimento, pode-se aindaobservar confusões terminológicas etécnicas em relação a essa importantevariável fisiológica e clínica. Osobjetivos desse texto são chamar aatenção para os problemas dasexpressões e unidades relacionadasao consumo de oxigênio eproporcionar subsídios teóricopráticos para o profissional da áreade exercício sobre o tema.

Aspectos ConceituaisBásicos e a SiglaO consumo de oxigêniorepresenta aquantidade de oxigênioutilizada pelo organismo em umdeterminado intervalo de tempo.

Terminologia Aeróbica ou AeróbiaHabitualmente, isso é medido a partirda quantidade de oxigênio utilizada ouseja, da diferença entre as quantidadesde oxigênio inspirado e expirado nointervalo de um minuto.Simplificadamente, depende assim, daventilação pulmonar e das fraçõesinspirada e expirada de oxigênio,deixando um pouco de lado questõescomo, os ajustes de temperatura, apressão barométrica e a exigência deum quociente de troca gasosa sempreigual a unidade 5,6. O consumo deoxigênio representa uma medida defluxo, isto é, um volume expresso porunidade de tempo. Sendo assim, os seusresultados deverão ser sempreexpressos em litros por minuto (L/min)ou mililitros por minuto (mL/min) (obs:considerando que em algumas fontes onúmero 1 e a letra minúscula l sãopraticamente idênticos, têm-serecomendado utilizar a letra maiúsculaL como sigla para litros)6. A sigla paraconsumo de oxigênio é VO2,destacando-se o ponto sobre o V paraindicar que é uma medida de fluxo enão de volume (lê-se VpontoO2 emtextos em português e VdotO2 eminglês, quando não é possível colocar oponto sobre o V). A medida do consumode oxigênio começou a ser feita noinício do século7, sendoconsideravelmente aprimorada com atécnica micrométrica de Scholander8.Vários autores nacionais têm discutidoa técnica nos últimos anos em artigos3,9-12, capítulos de livros13 e em livros14.

AspectosTerminológicosDiversos termos são disponíveis emrelação ao componente aeróbico dometabolismo energético gerando muitasvezes dificuldades para os novatos eproblemas de comunicação entre osmais experientes. Nesta etapa,procuraremos apresentar e esclarecer

sucintamente o significado de algunsdesses termos.

MáximoÉ o consumo máximo de oxigênioobtido durante o último minuto deum esforço primariamente aeróbicoque envolva grandes massasmusculares (ex. correr, pedalar, etc.),em geral por cerca de cinco a seisminutos, muito embora esse temposeja substancialmente mais curto emindivíduos jovens e em atletasaerobicamente treinados.

PicoÉ o maior consumo de oxigênioobtido nos instantes finais de umesforço máximo dentro de um períodode amostragem previamente definidae que é então extrapolado para umminuto. Os períodos de amostragempodem ser tão curtos quanto um ciclorespiratório e tão longos como umminuto, situação na qual esse termopassa a ser sinônimo de máximo.Sempre que essa medida for utilizadaé mandatório informar a duração dointervalo amostral. Deve-se observarque intervalos amostrais muitopequenos podem aumentar de modoartificial o valor obtido.Tende a sermenos reprodutível do que o máximo.

Máximo previstoÉ calculado a partir deinformações previamente obtidas. Háduas formas básicas para esse cálculo:a) equações considerando idade egênero (algumas incluem condiçãoclínica) e eventualmente dadosantropométricos3,14 e b) pelasrespostas a questionários deexercício físico realizável15,16.

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Idealmente devem ser específicaspara as populações sendo testadas,podendo variar de acordo com a formade exercício realizada. Podeapresentar um erro de até 50% (<20%para o cálculo com base emquestionários) em relação ao valor real.

EstimadoÉ determinado a partir deequações de desempenho, nas quaissão atribuídos equivalentes de gastometabólico para determinadas tarefas(ou cargas) completadas. Existemdiversas equações para distintosergômetros e atividades, a maioria delasespecíficas para população e gênero.Pode ser utilizado em intensidadessubmáximas ou em esforço máximo,situação na qual passa a serdenominado de máximo estimado.Enquanto valores médios de umaamostra não tendem a apresentar erros,a margem de erro individual ésubstancial situando-se em médiaentre 10 a 25%, sendo maior emindivíduos muito destreinados(doentes) ou muito treinados (atletas).

MedidoCorresponde ao consumo deoxigênio efetivamente medidoatravés da análise de gases expiradose da quantificação da ventilaçãopulmonar. É também conhecidocomo medida direta do consumo deoxigênio que é obtida durante oteste cardiopulmonar de exercício.Pode ser obtido em qualquer nível,do repouso ao exercício máximo,quando então pode serdenominado de máximo medidoou real. É protocolo e ergômetrodependente, sendo normalmentealgo mais alto em esteira do que emciclo, especialmente para aquelesacostumados a correr e queraramente pedalam. Suafidedignidade é extremamentealta com os equipamentosmodernos e apropriadamenteutilizados e calibrados.

AlcançadoCorresponde a um determinadoconsumo de oxigênio efetivamentemedido mas que não obrigatoriamenterepresenta o máximo daqueleindivíduo. Normalmente, esse termo éutilizado para esforços submáximos e,preferencialmente, deve serempregado quando há uma medidadireta do consumo de oxigênio. Algunsutilizam essa expressão quando não hácerteza de que o exercício foi deintensidade máxima ou quando o testeé interrompido precocemente porrazão clínica.

AbsolutoÉ a expressão utilizada quando oconsumo máximo de oxigênio éapresentado em litros por minutosem qualquer consideração àsdimensões corporais.

RelativoÉ o termo empregado paraapresentar o consumo de oxigêniorelacionado a alguma dimensãocorporal, normalmente, o pesocorporal. Permite uma melhorcomparação entre indivíduos dedimensões corporais distintas. Ostermos absoluto e relativo se aplicam epodem ser adicionados aos demaisapresentados anteriormente(estimado, previsto e medido).

Capacidade funcionalTermo comumente utilizado emlaudo de teste de exercício, ainda quedependente da condição aeróbica, nãorepresenta certamente um sinônimo.A capacidade funcional dependesubstancialmente da eficiênciamecânica e não deve ser utilizado comosubstituto de uma medida aeróbicaverdadeira. Idealmente a capacidadefuncional deve ser expressa em termosde trabalho realizado (ex. watts oudistância percorrida em um

determinado protocolo ou teste decampo). Em várias situações práticas,há grande dissociação entrecapacidade funcional e condiçãoaeróbica, como por exemplo, em umindivíduo paraplégico (condiçãoaeróbica provavelmente preservada ecapacidade funcional em andar oupedalar ausente) ou ainda, quando seestudam indivíduos em testes deexercício sucessivos17 ou a programasde treinamento18.

Capacidade aeróbicaProvavelmente a expressão maisutilizada pelos leigos e pelosprofissionais da área. Embora essetermo seja extremamente popular, oseu uso é tecnicamente incorreto. Istoocorre pois o conceito físico decapacidade está ligado a uma grandezavolumétrica, sendo, normalmentemedida em litros, tal como porexemplo, a capacidade vital (volumemáximo de ar que pode ser expiradoapós uma inspiração máxima) ou acapacidade de reservatório de umtanque de combustível de umautomóvel ou de uma caixa de água.Na prática, a capacidade aeróbica detodos os indivíduos é idêntica já queexiste ampla disponibilidade deoxigênio no ar ambiente.

Resistência aeróbicaFrequentemente comumenteutilizada no jargão do treinamentodesportivo, é também uma expressãoinadequada do ponto de vistacientífico, já que resistência é umagrandeza física (ex. resistência elétricamedida em ohms) que não representauma medida de fluxo, sendo pelocontrário, muitas vezes, a oposição a umfluxo. Seu uso deve ter se propagadomuito provavelmente a partir de umaadaptação da expressão de línguainglesa endurance, característica essacomumente associada a atletas deexcepcional desempenho em eventosde longa duração e de predomíniometabólico aeróbico.

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Potência aeróbicamáximaAinda que seja menos empregadoé o termo que melhor reflete autilização de energia derivada dometabolismo aeróbico por unidade detempo, sendo assim adequado paraindicar o fluxo de um gás, como é ocaso do consumo máximo de oxigênio.Seus valores apresentam uma faixa deaté 20 vezes a variabilidade entre osdiversos indivíduos. Pode-se adicionaras expressões estimada e previstaquando os valores tiverem sidorespectivamente, estimados e previstos.

AptidãocardiorrespiratóriaExpressão também bastante usadana área de Cardiologia, especialmente,para qualificar o desempenho em testede exercício. Reflete a prontidão parao desempenho de uma determinadatarefa ou carga de trabalho. Apresentatodavia dificuldades em seu uso einterpretação, pois para algunsrepresenta um valor absoluto enquantopara outros reflete uma condiçãorelativa a um percentual do máximoprevisto. Em adendo, assume umpressuposto respiratório,normalmente, não avaliado nosprocedimentos sem medida direta doconsumo de oxigênio e utiliza umaexpressão - aptidão - com significadoum tanto quanto impreciso.

Condição aeróbicaÉ um termo neutro, que nãopressupõe uma grandeza físicaconvencional, mas que permite umaclara compreensão, sendo assim,bastante apropriado para comunicaçãopopular e entre pares. É maisadequadamente utilizado emconjunção com adjetivos que tendem ajulgar o desempenho aeróbico (ex. boacondição aeróbica, melhora significativada condição aeróbica, etc.).

Unidade do Consumode Oxigênio RelativoA medida do fluxo de oxigênioexpressa por unidade de peso corporal deveser apresentada com a notação e asunidades apropriadas dentro do SistemaInternacional de Unidades. Três grandezasse fazem representar, a saber (respectivasunidades): volume consumido de oxigênio(mL), peso corporal (kg) e tempo (min). Aprimeira grandeza é dividida pelas duasoutras, desta forma, temos que aapresentação correta da unidade demedida do consumo de oxigênio relativoao peso corporal é: mL/(kg.min) oumL.(kg.min)-1 ou mL.kg-1.min-1O uso de outras formas deapresentação da unidade, ainda quemuito comuns (ex. ml/kg/min) sãocientificamente incorretas e deverão serevitadas, assim como, deve-se atentar parao fato de que a unidade correta dequilogramas é kg (minúsculo) e nãoíKgî. É freq¸ente na área de exercício autilização de uma outra unidade que é oMET (sempre escrito em maiúsculo poisse trata de uma sigla), que simplifica a

comunicação e a compreensão, aoapresentar o gasto metabólico emexercício ou atividade física comomúltiplos do valor de repouso. Sendoassim um consumo de oxigênio de 10METs (equivalente a uma corrida a 10km/h) corresponde a um nível 10 vezesmais intenso do que o de repouso.

ConclusãoEsperando ter contribuído parareduzir as dificuldades e dúvidas daárea aeróbica, desejamos que o máximomedido ou potência aeróbica máximase encontre sempre em um nívelbastante alto, correspondendo a umaexcelente condição aeróbica e a umacapacidade funcional provavelmentealta, excedendo 13 METs ou cerca de45 mL/kg.min, patamar associado comuma taxa de mortalidade por todas ascausas inferior a 1% em cinco anos emindivíduos de meia-idade.

Dr. Claudio Gil Soares de AraújoDiretor-Médico da Clínica de Medicina doExercício - CLINIMEX, Rio de Janeiro, RJ

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