I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015
Interculturalidade e cultura política de direitos pós-colonial
Adalberto Antonio Batista Arcelo1
Resumo Este trabalho parte da problematização de que não há, no Brasil, um Estado Democrático de Direito. Adotando-se como referencial teórico-metodológico a análise microfísica do poder empreendida por Foucault, evidenciarei a conexão entre tal pensamento e o paradigma decolonial que, com o conceito de interculturalidade, reforça a hipótese de que as instituições jurídico-judiciárias no Brasil contemporâneo têm realizado uma função normalizadora, ou seja, de arrefecimento de uma dinâmica social democrática, alimentando um quadro de totalitarismo social e de Estado de Exceção. Para este mister me beneficiarei das análises críticas de Jessé Souza, que reforça o diagnóstico de que o ponto de partida dessa planificação normalizadora é um processo histórico de imposição cultural que, para a manutenção do controle e da ordem social, reduz violentamente a complexidade da própria sociedade a partir de uma cisão entre homens de bem (sujeitos de direito) e inimigos da sociedade (subjugados pelo direito). Palavras-chave: Interculturalidade; Microfísica do poder; Pensamento decolonial; Sociedades de normalização; Subcidadania.
Introdução
Proponho uma abordagem crítica e interdisciplinar para enfrentar uma problematização a princípio
banal: o descompasso entre o discurso e a prática da cidadania no Brasil. Pretendo mostrar como o
discurso do Estado Democrático de Direito brasileiro tem reproduzido uma “sociedade de
normalização” (FOUCAULT, 1999), ou seja, um processo de objetivação das subjetividades
individuais e coletivas que consiste em uma violência colonizadora e neutralizadora da diversidade
e da complexidade das estruturas e processos sociais na sociedade brasileira.
Considerando minha inserção no âmbito da formação jurídica no Brasil, bem como o referencial
teórico-metodológico que parte de uma arqueologia do saber e de uma genealogia do poder
(FOUCAULT, 1999; 2003) para, na sequência, dialogar com uma importante contribuição da teoria
social crítica brasileira contemporânea (SOUZA, 2003; 2009) e com o pensamento decolonial
(WALSH, 2009), destaco a histórica função normalizadora – ou uma série de dispositivos de
normalização – por trás das instituições jurídico-judiciárias que, em tese, têm a função de regular a
dinâmica social pacificando conflitos por meio da distribuição da justiça.
Com a arqueologia e a genealogia constitutivas da analítica do poder (FOUCAULT, 1999; 2003),
vou reforçar a tendência da análise crítica de oposição e contra-hegemônica (SANTOS, 2002;
2006), considerando a construção social da subcidadania no Brasil por meio da invisibilização da
1 Doutor em Filosofia do Direito (UFMG). Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. [email protected]
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desigualdade social e da constituição de uma ralé estrutural como parcela expressiva da sociedade
brasileira contemporânea (SOUZA, 2003; 2009). Neste ponto, vou evidenciar a relação de
complementaridade entre as construções teórico-metodológicas citadas e o conceito de
interculturalidade, oriundo do pensamento decolonial.
Minha hipótese é a de que não vivemos, no Brasil contemporâneo, em um Estado Democrático de
Direito, apesar do texto constitucional com seus direitos e garantias fundamentais e de todo um
aparato burocrático-institucional monopolizado pelo Estado em prol da distribuição da justiça.
Pretendo indicar uma série de dispositivos de normalização que fazem as vezes de mecanismos de
colonização sob o discurso dos direitos humanos e fundamentais. Neste cenário marcado pelos
efeitos da globalização econômica, testemunhamos um processo de massificação social a partir da
imposição de padrões de normalidade que culminam em homogeneizações estruturantes. Da
cegueira egocêntrica que mantém o indivíduo consumidor blindado em restritos círculos de
consumo estabiliza-se um perfil autoritário, posto que tal padrão de subjetividade, apoiado
exclusivamente na face técnico-instrumental da razão, se aplica em atingir o mais exitosamente
possível seus objetivos pessoais, despendendo assim pouca ou nenhuma energia para o que se passa
além de seus projetos pessoais. Do autoritarismo discreto e insensível à dor e aos dramas alheios
para uma dinâmica social avessa às mais variadas expressões da diferença descortina-se um
processo, uma perversa microfísica do poder geradora de um totalitarismo social que “legitima” um
totalitarismo estatal. O direito, assim como uma série de outras instituições historicamente
identificadas com o poder estatal, desponta como um saber-poder que produz verdades e
subjetividades (FOUCAULT, 2002) compatíveis com um certo padrão de racionalidade: a razão de
um Estado tornado empresa capitalista (WEBER, 2009), e que por isso necessita de “recursos
humanos” aptos para a produção e circulação da riqueza e da economia do Estado.
Vou demonstrar que a possibilidade realizativa das instituições jurídico-judiciárias no Brasil atual é
claramente questionada pelos índices de desigualdade social no Brasil. Essas desigualdades
estruturais, que contrastam com o discurso constitucional do Estado Democrático de Direito, têm
sido “invisibilizadas” por uma dinâmica de colonização e de subalternização que se institucionaliza
por saberes pretensamente científicos, universais e verdadeiros (além de outras práticas coloniais).
A análise crítica do processo de construção social da subcidadania no Brasil realizada por Souza
(2003; 2009) e os estudos decoloniais, que neste trabalho encontram no conceito de
interculturalidade um eixo teórico-metodológico de convergência, serão referências relevantes para
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a confirmação de que há um “curto-circuito histórico” (SANTOS, 2007) entre os direitos e garantias
fundamentais formalmente (constitucionalmente e internacionalmente) vigentes e a política da vida
que reproduz e naturaliza a marginalização e a exclusão no Brasil.
A sociedade brasileira contemporânea, como quaisquer outras sociedades de normalização (ou de
massa), tem reproduzido uma dinâmica social marcada pela cisão entre iguais (inseridos) e
diferentes (excluídos). O direito (assim como a grande maioria das instituições) tem realizado a
função de manter os iguais, ou seja, aqueles que cabem na estrutura de racionalidade hegemônica,
incluídos como beneficiários de políticas sociais públicas, enquanto os diferentes – os ambivalentes,
as identidades de fronteira, destoantes e dissidentes – permanecem excluídos do alcance das
mesmas políticas sociais públicas que, como se percebe, não são tão públicas assim.
O pensamento crítico de oposição e contra-hegemônico, aqui adotado para superar a invisibilização
da desigualdade como estratégia colonial para a manutenção/restrição do capital econômico,
político, social e cultural, aponta para a promoção de uma cultura política decolonial adequada à
democratização do direito e da política no Brasil, ou seja, para a viabilização de uma cultura política
de direitos em que o processo de construção social da normatividade jurídica transborde os espaços
historicamente monopolizados pela unilateralidade da razão de Estado.
Acredito que todos esses elementos sintetizadores de uma cultura política de direitos pós-colonial,
enquanto aparato teórico-metodológico, podem contribuir para a viabilização de uma insurreição
dos saberes e poderes historicamente sujeitados por dispositivos de normalização (FOUCAULT,
1999). Neste contexto o conceito de interculturalidade emerge como ferramenta intelectual
compatível com a viabilização performática do Estado Democrático de Direito no Brasil.
2 Desenvolvimento
2.1 Foucault e a analítica do poder
Vou apresentar, em traços gerais, uma importante contribuição teórico-metodológica do
pensamento social crítico. Trata-se da analítica do poder, construto analítico edificado por Foucault
na década de 1970. Pretendo com isso trazer um eixo de orientação para realizar a articulação entre
a teoria social crítica de Jessé Souza (2003), pautada na análise da construção social da
subcidadania no Brasil, e o conceito de interculturalidade, emergente do paradigma decolonial,
buscando contribuir para o processo de insurreição dos saberes e poderes historicamente sujeitados,
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como é o caso da expressiva parcela de brasileiros que se percebem à margem do sistema jurídico-
judiciário, ou seja, do acesso à Justiça no Brasil.
A prática discursiva que sustenta que o poder tem a incumbência de defender a sociedade deve ser
analisada a partir de precauções metodológicas, cuidados tomados por Foucault em sua análise
ascendente e microfísica do poder, enquanto jogos de verdade e de subjetividade. Deve-se ou não
conceber as sociedades complexas, em sua estrutura política, como organizadas de maneira que
alguns possam se defender contra os outros, ou defender sua dominação contra a revolta dos outros,
ou simplesmente defender sua vitória e perenizá-la pela sujeição dos outros? Foucault busca um
princípio de inteligibilidade e de análise do poder político através da relação belicosa, do modelo da
guerra, do esquema das lutas. Ao estudar o “como do poder”, o pensador buscou apreender seus
mecanismos entre dois pontos de referência. De um lado, as regras de direito que delimitam
formalmente o poder, de outro, os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder conduz
e que reconduzem esse poder (FOUCAULT, 1999, p. 28). Estudar o “como do poder”, contudo,
envolve uma reflexão sobre o poder, o direito e a verdade. Percebe-se, assim, que Foucault indica
que a efetividade do poder só pode ser considerada a partir de uma análise transdisciplinar,
envolvendo diferentes ciências ou estruturas de saber, como a política, o direito e a filosofia.
A questão tradicional da filosofia política, segundo Foucault, remete à indagação de como o
discurso da verdade, ou seja, como a filosofia, pode fixar os limites do poder. Sob esta questão
tradicional, Foucault (1999, p. 28) indaga: “Quais são as regras de Direito de que lançam mão as
relações de poder para produzir discursos de verdade?”. O pensador indica que o que caracteriza as
sociedades são as relações de poder que constituem seu corpo social. O funcionamento do discurso
verdadeiro, neste sentido, pressupõe uma produção, uma acumulação, uma circulação do exercício
do poder, e este pressupõe uma economia dos discursos de verdade (FOUCAULT, 1999, p. 29).
Exercício do poder e produção da verdade, nesta perspectiva, se alimentam reciprocamente.
Para assinalar a intensidade e a constância da relação entre poder, direito e verdade, Foucault
constata que somos forçados a produzir a verdade pelo poder, que exige essa verdade e que
necessita dela para funcionar. O poder, neste sentido, institucionaliza a busca da verdade. Produz-se
a verdade como se produz riquezas, produz-se verdade para produzir riquezas (FOUCAULT, 1999,
p. 29). A percepção da verdade como norma que submete as pessoas desvela a função do discurso
verdadeiro: veicular efeitos de poder. Foucault conclui que somos julgados, condenados,
classificados, obrigados a tarefas, destinados a certa maneira de viver ou a certa maneira de morrer,
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em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. A relação
entre as regras de direito, os mecanismos de poder e os efeitos de verdade fica assim evidenciada.
As pesquisas anteriores de Foucault revelaram seu projeto geral, trazendo o discurso do direito por
inteiro. Assim o direito desponta como fenômeno múltiplo de produção de verdades e de
subjetividades – tecnologias e dispositivos de normalização – que veicula e aplica relações que não
são relações de soberania, mas múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da
sociedade: o sistema do direito e o campo judiciário emergem como veículos permanentes de
relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas (FOUCAULT, 1999, p. 32).
As precauções de método adotadas por Foucault, concernentes à “analítica do poder”, atenuam
drasticamente a relevância tradicionalmente dada ao edifício jurídico da soberania, ao aparelho
estatal e às ideologias que os acompanham (FOUCAULT, 1999, p. 40). Assumem, contudo, a
orientação da análise do poder como tecnologias de governo, na dúplice perspectiva de estratégias
de liberdade e de estratégias de dominação. Tematiza-se os operadores materiais, as formas de
sujeição e de resistência, as conexões e utilizações dos sistemas locais das sujeições e das
insurreições no âmbito dos dispositivos de saber. Partindo de tais vias, Foucault acredita poder
encontrar o que designa por fatos históricos maciços. A partir da arquitetônica da microfísica do
poder, localiza-se a complexidade do discurso dos direitos humanos e fundamentais em toda sua
ambivalência, no que concerne à sociedade brasileira atual.
Apesar da “instituição direitos humanos e fundamentais” indicar uma superestrutura dos sistemas de
pensamento ocidentais modernos ou, como freqüentemente tem sido designado pela ciência do
direito contemporânea, direitos fundamentais com o status de metanorma, positivados nos
ordenamentos jurídico-constitucionais, essa instituição discursiva, abstrata e genérica, tem se
“concretizado” socialmente por meio de práticas de normalização e de exclusão social.
Exemplifica-se: se no plano estritamente teórico-discursivo (arqueológico) os direitos civis se
consolidam a partir da sua complementação pelos direitos políticos, sociais e difusos,
institucionalizados pela Constituição Federal e por programas políticos de governo, na perspectiva
prático-discursiva (genealógica) de sua concretização percebe-se políticas governamentais
assistencialistas e estratégias de segurança pública altamente repressivas, preconceituosas e
estigmatizantes. No que concerne às relações capilares e transversais que caracterizam a
tematização da microfísica do poder, as relações sociais têm sido marcadas pela compreensão
atomizante dos direitos civis, atuando contra esses mesmos direitos. O individualismo característico
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das relações hodiernas representa o aspecto negativo da microfísica do poder que,
imperceptivelmente, faz do discurso dos direitos humanos e fundamentais uma estratégia de
assujeitamento ou de imposição de subjetividades dóceis, sem poder de organização e de pressão
política para que os direitos humanos e fundamentais sejam efetivamente garantidos pelo Estado.
Neste quadro, a superestrutura de poder político – o Estado, depois de institucionalizar seu
programa político-jurídico por meio de uma Carta Constitucional que prescreve a garantia dos
direitos civis fundamentais, exerce permanentes estados de dominação a partir de tecnologias de
governo que não vão além da abstração dos sujeitos e da retórica dos discursos carismáticos. A
tarefa de concretização de tais direitos, relegada à própria sociedade, cai num imenso vazio, posto
que a “sociedade civil”, agindo através de práticas atomizadas e egocêntricas de poder, atua na
contramão do projeto de sociedade institucionalizado pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Este fenômeno é bem conhecido da sociedade brasileira contemporânea quando esta
reproduz o discurso anônimo de que “direitos humanos existem para proteger bandidos”. A
veiculação desse tipo de discurso, considerando-se o giro performático da linguagem, funciona
como prática de segregação e de estigmatização social, que contribui para a construção do
estereótipo do normal e do anormal, sendo característico da sociedade brasileira que o contingente
de “anormais”, ou seja, de marginalizados, se torne cada vez mais expressivo: constrói-se uma
sociedade refém de suas práticas anônimas e capilares de poder, que são absorvidas e
potencializadas pelo filtro institucional do Estado no processo de pacificação de conflitos por meio
da distribuição da justiça.
A partir da analítica do poder, Foucault (1999, p. 285-286) aponta o fenômeno da assunção da vida
pelo poder, ou da tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma inclinação à estatização
do biológico. Foucault considera que a teoria clássica do contrato social traz uma discussão de
filosofia política que expõe a problematização da vida, uma vez que o contrato social representa
uma delegação de plenos poderes ao soberano, para que este proteja a vida da população. Nesta
perspectiva, o filósofo indica que é para poder viver que a população constitui um soberano. Pode-
se, a partir daí, indagar se o soberano pode efetivamente reclamar de seus súditos o direito de
exercer sobre eles o poder de vida e de morte, bem como se não deve a vida ficar de fora do
contrato, na medida em que ela foi o motivo deste (FOUCAULT, 1999, p. 287-288).
Há uma transformação, não ao nível da teoria política, mas ao nível dos mecanismos, das técnicas,
das tecnologias de poder. Isso porque as tecnologias de poder centradas no corpo individual, com
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seus procedimentos correlatos de distribuição espacial dos corpos individuais, ou seja, sua
ordenação e sua vigilância, bem como a organização de todo um campo de visibilidade em torno
desses corpos, dão lugar a uma tecnologia que não exclui a disciplinar, mas a integra e a utiliza.
Essa nova tecnologia não se dirige ao homem-corpo, mas ao homem vivo (FOUCAULT, 1999, p.
289). Foucault descreve esse trânsito, ou melhor, esse acúmulo de complexidade das tecnologias de
poder, argumentando que a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que
essa multiplicidade acarreta corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados e
eventualmente punidos. Em seguida, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos
homens, não na medida em que essa multiplicidade se resume aos corpos, mas na medida em que
ela forma uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, como o
nascimento, a morte, a produção, a doença.
Para Foucault a biopolítica lida com a população enquanto problema científico e político, como
problema biológico e como problema de poder. O filósofo destaca que a natureza dos fenômenos
levados em consideração pela biopolítica é coletiva, com efeitos econômicos e políticos que só se
tornam pertinentes no nível da massa: trata-se de fenômenos de série. A biopolítica, como
tecnologia de poder, implanta mecanismos que têm funções muito diferentes das funções dos
mecanismos disciplinares. O biopoder vai instalar mecanismos de previdência em torno da
população, otimizando um determinado estado de vida (FOUCAULT, 1999, p. 294). Trata-se de
levar em conta a vida, os processos biológicos do homem espécie, e de assegurar sobre eles não
uma disciplina, mas uma “regulamentação”, um poder contínuo, científico, um “poder de fazer
viver” (FOUCAULT, 1999, p. 294). Foucault considera que o poder, que tinha como modalidade e
esquema organizador a soberania, tornou-se inoperante para reger o corpo econômico e político de
uma sociedade em vias de explosão demográfica e de industrialização (1999, p. 297-298). Assim o
filósofo aponta que à mecânica do poder de soberania, ou seja, ao poder disciplinar e
individualizante, escapavam detalhes que a tematização do poder a partir de fenômenos globais e
populacionais sobre as massas humanas supriu.
Percebe-se que o paradoxo do exercício do poder nas sociedades de normalização não foi superado,
uma vez que o poder sobre a vida da população evidencia-se como poder de assegurar a vida de
uma determinada parcela da população, mas não de todas as pessoas, na universalidade de seus
direitos. As sociedades de normalização indicam o paradoxo das sociedades contemporâneas que,
apesar da reprodução do discurso do direito à vida, desprezam a pluralidade de formas de vida e
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impossibilitam a garantia e a efetividade do discurso dos direitos humanos e fundamentais. Não é
excessivo frisar que a perspectiva universal dos direitos humanos implica atentar para as diferenças,
características do pluralismo e da complexidade que estruturam as sociedades contemporâneas.
2.2 O pensamento decolonial e a desnaturalização da desigualdade no Brasil
Jessé Souza tem se destacado como um importante analista do processo social de naturalização da
desigualdade no Brasil. Tenho me ancorado no diagnóstico do autor para demonstrar que, sob o
discurso da vigência de um Estado Democrático de Direito, a dinâmica social e a própria dinâmica
jurídico-judiciária tem contribuído para a obstaculização do acesso à Justiça no Brasil.
Segundo Souza (2003, p. 17), a naturalização da desigualdade social de países periféricos como o
Brasil pode ser mais adequadamente percebida como consequência de um processo de
modernização seletiva, vinculada à eficácia de valores e instituições concernentes a um certo
contexto importado de modernidade. Percebe-se aí a conveniência em se articular a analítica do
poder com a análise de Souza, posto que ambas indicam um poder-saber hegemônico que coloniza e
subalterniza. Souza (2003, p. 169) tematiza as formas de reprodução da desigualdade e das
hierarquias sociais no Brasil a partir da ideologia do desempenho, que se baseia na estrutura de
racionalidade meritocrática, envolvendo a qualificação, a posição e o salário. Legitima-se, assim, o
acesso diferencial e permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos. A perversidade
desse histórico processo de subalternização leva a uma dinâmica social em que os agentes excluídos
das possibilidades de inserção na esfera da produção se sentem responsáveis por sua
marginalização. A reprodução da desigualdade vem à tona como resultante da trajetória pessoal, o
que neutraliza possíveis estratégias de afirmação identitária de subjetividades individuais e coletivas
minoritárias. Tem-se, assim, um processo de construção social da subcidadania que confirma a
hipótese de que as instituições jurídico-judiciárias no Brasil contemporâneo, considerando-se, por
exemplo, o aspecto da racialização no âmbito do sistema carcerário brasileiro, reproduzem uma
dinâmica normalizadora típica de um Estado de Exceção, colonizador e subalternizante: um sistema
de reprodução da desigualdade que se alimenta de valores que legitimam a condição de sujeitados
pelo direito, antes de sujeitos de direitos.
A estrutura colonizadora subjacente a toda essa dinâmica se materializa no ideário individualista-
egocêntrico emergente no centro da Europa a partir do século XVI e que no século XIX se
estabiliza como discurso hegemônico (COLAÇO; DAMÁSIO, 2012): uma estrutura ou sistema de
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pensamento que ganha contornos de absoluto. Exemplifico com o princípio da autonomia da
vontade que, apoiado na estrutura de racionalidade técnico-instrumental, levou o “sujeito moderno”
(leia-se o indivíduo burguês, branco, masculino, heterossexual, proprietário e consumidor, formado
nas tradicionais instituições de ensino do centro da Europa) à pretensão de sujeito universal,
considerando-se a crença de que aquela classe social teria alcançado o estágio de vida em sociedade
caracterizado pela evolução e pela plenitude.
Percebe-se, neste contexto, a ênfase nos valores da liberdade e da igualdade: o indivíduo racional,
credenciado pela própria racionalidade a viver livremente, ou seja, o indivíduo livre para construir
seu próprio projeto de vida boa, que contribui para uma sociedade melhor reproduzindo padrões
institucionalmente assimilados. A igualdade, neste cenário, desponta como referência de medida a
ser reproduzida, como estrutura de normalização que mundializa – pela imposição – um padrão de
subjetividade racional. Nesse processo sedimenta-se uma dinâmica jurídica formalista e utilitarista,
legitimada pela dogmática jurídica e recepcionada pelo judiciário.
A dinâmica jurídico-judiciária daquele contexto sócio-político-antropológico assimilou tais
princípios ao ponto de transformar o direito em uma fórmula matemática, como confirma a lição
ainda hegemônica de um método de interpretação e de aplicação do direito centrado no raciocínio
lógico-dedutivo. O judiciário, enquanto ambiente para a concretização do direito, passou a
reproduzir o modelo da fábrica que produz – sentenças – em série. Resta evidente que para tanto o
aparato jurídico-judiciário necessitou abstrair a singularidade das histórias de vida por trás dos
sujeitos que, não reproduzindo exatamente o perfil identitário do sujeito liberal-burguês, não
poderiam ter suas ações analisadas sob a perspectiva do princípio da autonomia da vontade, a não
ser assumindo-se um completo desprezo quanto à sua subjetividade. Assim a dinâmica jurídico-
judiciária, em sua autorreferencialidade pretensamente eficiente, emerge como uma tecnologia de
normalização objetivadora da subjetividade.
A história do presente tem mostrado uma sofisticação dessa estratégia de dominação colonizadora e
subalternizadora com a manipulação do discurso dos direitos humanos (SANTOS, 2006;
DOUZINAS, 2009). Tal discurso, alicerçado nos princípios da liberdade e da igualdade, tem
atualizado e globalizado os métodos para a neutralização das diferenças. Hoje a invisibilização da
desigualdade, muitas vezes alimentada pelos discursos de fundamentação e de aplicação do direito
(nacional e internacional), tem promovido uma mundialização da subcidadania. É neste cenário que
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o discurso dos direitos humanos e fundamentais deve ser ressignificado a partir da dialética da
igualdade e da diferença.
Reiterando o diagnóstico de que a não performatividade do discurso jurídico-constitucional e do
Direito Internacional dos Direitos Humanos, no contexto social do Brasil contemporâneo, decorre
de um complexo de tecnologias de normalização que reduz a complexidade social por um processo
de neutralização da diversidade que atinge diretamente as subjetividades individuais e coletivas
minoritárias – e que esse processo de neutralização decorre em significativa medida da dinâmica
jurídico-judiciária, quero mostrar agora que o pensamento decolonial – enquanto tendência política
e epistemológica decorrente da percepção da colonialidade do conhecimento tradicionalmente tido
como verdadeiro e da subalternização dos saberes não reconhecidos como racionais e verdadeiros –
e mais especificamente o conceito de interculturalidade, indicam a emergência de uma linha
analítica que pode contribuir para a superação da naturalização da desigualdade social no Brasil e,
simultaneamente, para a provocação de uma subversão da dinâmica jurídico-judiciária a partir da
percepção de que os tradicionais teorizar e aplicar jurídicos ainda atuam como dispositivos de
normalização.
Colaço e Damásio (2012, p. 118) indicam que os estudos decoloniais como perspectiva de crítica ao
colonialismo distinguem-se dos estudos pós-coloniais, posto que o decolonialismo tem como ponto
de referência específico a América Latina. A grande potencialidade dos estudos decoloniais está na
elaboração de ferramentas para a problematização de um lugar de enunciação privilegiado.
Considerando meu objeto de análise privilegiado, ou seja, a atuação da dinâmica jurídico-judiciária
no processo de reprodução de práticas coloniais e subalternizantes que avultam a cidadania – ou a
condição de sujeito de direitos, os estudos decolonias possibilitam compreender discursos jurídicos
pretensamente universais como construções que emergem e se estabilizam a partir de relações
coloniais – colonialidade do poder (COLAÇO; DAMÁSIO, 2012). A amarração entre a genealogia
do poder foucaultiana, o processo de construção social da subcidadania no Brasil e o pensamento
decolonial é clara.
Neste cenário emerge o conceito de interculturalidade como “um pensamento outro, construído do
particular lugar político da enunciação (...) de grupos subalternos” (WALSH, 2009, p. 151). A
interculturalidade emerge como um projeto que assume a decolonialidade como requisito e
obrigação, levando a um repensar e a um reconstruir instituições sociais e políticas da sociedade sob
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critérios que reconhecem e confrontam a colonialidade ainda presente, o racismo e a racialização, a
desigualdade e o caráter uninacional e monocultural do Estado (WALSH, 2009, p. 153).
No cerne do pensamento decolonial, como explicita o conceito/projeto de interculturalidade, está o
objetivo de desnudar as relações subalternizantes de poder. A relevância de uma orientação como
essa, que começa a atingir a ciência do direito a partir de referências como o pluralismo jurídico e o
estado plurinacional, para a superação do “curto-circuito histórico” (SANTOS, 2007) entre o
discurso dos direitos e a dinâmica concreta do direito brasileiro, é mesmo muito grande. Perfila-se
um projeto de desocultamento das diferenças, o que certamente vai contribuir para a exposição de
um Estado Democrático de Direito com perfil de Estado de Exceção.
3 Conclusão
Acredito que o mais proveitoso e realmente interessante em uma reflexão crítica e interdisciplinar
de orientação pós-colonial e contra-hegemônica esteja não no diagnóstico, mas na potencialidade de
viabilizar prognósticos emancipatórios. Foucault fazia menção à imensa variabilidade e
reversibilidade, características marcantes das relações de poder estruturantes dos processos sociais.
Tal reversibilidade indica que subjetividades historicamente sujeitadas podem se emancipar através
de insurreições de saberes e poderes sujeitados.
Para tanto é imprescindível o avanço de uma cultura política de direitos. Mas o que tenho
considerado é que uma cultura política de direitos só se viabiliza se as estratégias de liberdade
prevalecerem sobre as estratégias de dominação em uma dinâmica social específica (FOUCAULT,
2003). Localizei no pensamento decolonial um suporte para o empoderamento de subjetividades
individuais e coletivas, pretendendo com isso contribuir para a democratização dos processos
sociais e, especificamente, da dinâmica jurídica e da condição de sujeito de direitos no Brasil.
Foucault destaca que há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e
dependência; e estar conscientemente preso à sua própria identidade. Assim as lutas contra as
formas de sujeição, ou seja, contra as formas de submissão da subjetividade, têm se afirmado – em
sua relação com as lutas contra as formas de dominação étnica, social e religiosa, e com as lutas
contra as formas de exploração econômica – como lutas prementes e incontornáveis nas sociedades
complexas contemporâneas. Isso porque a sociedade de normalização, ou seja, o Estado como
forma de poder individualizante e totalizador, fez com que a filosofia contemporânea desse uma
guinada: “[...] seu objetivo não é mais o de descobrir o que somos, mas recusar o que somos”
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(FOUCAULT, 1995, p. 239). Quer dizer que é necessário “[...] imaginar e construir o que
poderíamos ser para nos livrarmos deste ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea
individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno” (FOUCAULT, 1995, p.
239).
Referências bibliográficas
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América Latina: o direito e o pensamento decolonial. – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012.
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. – São Leopoldo: Unisinos, 2009.
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FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). –
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