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“A retórica medieval no Setenario de Afonso X:

os saberes entre a antiguidade clássica e a cristandade”

LEONARDO AUGUSTO SILVA FONTES∗

Na Idade Média, a persuasão se dava pela retórica, pela prédica, visando à adequação

do discurso ao auditório. E como um rei-autor deve pensar em seu público enquanto súdito?

Quais seriam suas estratégias discursivas e os propósitos de sua escrita?

Maria do Amparo Maleval afirma que na confluência do legado clássico e do substrato

judaico-cristão “tem origem a arte da predicação (ars praedicandi), que, juntamente com a

gramática preceptiva ou retórica da versificação (ars poetriae) e com a arte epistolar (ars

dictaminis), compunha o estudo do discurso na Idade Média”. (MALEVAL, 2008: 7)

O reinado de Afonso X, conhecido como rei sábio, que governou Castela e Leão de

1252 a 1284, foi fortemente marcado pelo uso da retórica enquanto construtora de identidade

e instrumento de poder. Escrever é dominar. Escrever é monumentalizar.

El rey faze un libro non por quel él escriva con sus manos mas porque compone las razones d'él e las emienda et yegua e endereça e muestra la manera de cómo se deven fazer, e desí escrívelas qui él manda. Peró dezimos por esta razón que el rey faze el libro. (AFONSO X, General estoria I, 477 b).

Esse trecho pode ser tido como paradigmático acerca do lugar e da importância do

livro e da palavra na corte afonsina. E pode ser até mesmo entendido de modo metafórico, no

qual o rei é o próprio livro, portador da verdade. Assim, a retórica afonsina se revestia de

grande caráter político e se vinculava ao universo do saber e ao exercício do poder.

A centralidade política pretendida por Afonso X era permeada pela síntese legislativa,

poética e historiográfica, ou seja, sua escrita do poder. O período afonsino, se comparado a

outros, é pródigo em fontes. No que tange à sua atuação interna, sua corte produziu vasto

material textual, de cunho poético, normativo, histórico, científico, narrativo, filológico,

∗ Doutorando em História Medieval pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Scriptorium (Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos). Orientadora: Profa. Dra. Vânia Leite Fróes. Bolsista de Doutorado pelo CNPq. Técnico da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional.

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religioso e até místico. Sua dedicação à justiça, associada à sabedoria dos reis bíblicos

Salomão e Davi (como ocorre no alph), o levou a ficar conhecido pelo epíteto de rei sábio –

alcunha que o diferenciava de seus contemporâneos.

Dentre as diversas obras do rei sábio, optou-se nesse artigo pela análise de uma das

menos conhecidas e trabalhadas, mas fortemente marcada pela retórica e o uso de lugares-

comuns: o Setenario, iniciado ainda em 1252, no final do reinado de Fernando III e

continuada, mas nunca finalizada, por Afonso X.

Kenneth Vanderford, um de seus principais estudiosos, afirma que ela é – como seu

próprio texto medieval diz – uma continuação de Afonso X do esboço traçado por seu pai. O

interesse em unificar os códigos jurídicos dos reinos recém-reconquistados foi um legado de

Fernando, o Santo, para seu herdeiro.

Afonso X, ao assumir o trono, encontrou uma situação política relativamente mais

tranqüila do que a enfrentada por seu pai e conseguiu levar adiante a unificação legislativa por

ele almejada. As diferentes obras do rei sábio integram uma tradição e fizeram parte de um

mesmo projeto político-cultural, retórico e até mesmo pedagógico, através do qual ele

“pretendeu orientar os que freqüentaram sua corte e povoaram suas terras” (SODRÉ, 2009:

153). Os antepassados eram associados a bons tempos, aos quais Afonso X procura ao longo

de toda sua escrita se identificar, seja o Império Romano ou seus ancestrais hispânicos.

Os malfeitos, ou seja, as passagens negativas relativas a esse passado são

assumidamente ocultadas. Afonso X estabelece, assim, uma retórica auto-laudatória. O

sobrinho de Hércules, Espan, origina o nome da pátria, em que esta associação direta ressalta

o caráter heróico deste povo já na sua gênese. Ao citar a história de Roma, seu período

imperial é ressaltado.

Percebe-se a forte retórica política no Setenario, obra ainda alvo de diversas polêmicas

analíticas. Até à edição de Vanderford, somente oito escritores haviam trazido contribuições

ao entendimento desta obra. Apenas três manuscritos se conservam (de Toledo, do Escorial e

de Madri), sendo este último uma espécie de cópia do de Toledo; portanto, apenas dois podem

ser tidos como “originais”. A interpretação sobre o caráter e o significado da obra varia

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bastante, sendo que se destaca quase unanimamente a relação entre o Setenario e as Siete

Partidas (SP).

Afonso X buscou nela reafirmar a verdade do cristianismo diante do paganismo e a

superioridade de sua fé num momento de turbulência religiosa na península ibérica. Daí a

associação da fé não-cristã ao erro, recorrente em grande parte do texto.

Pode-se, enfim, concluir que esta obra é polissêmica, como muitos textos medievais,

possuindo distintos significados – de onde advém parte de seu fascínio. Através de

comparação de trechos, Vanderford comprova a relação entre o Setenario e as Siete Partidas.

Além de ser uma exposição e declaração da doutrina cristã, é também obra filosófica, mística,

enciclopédica e apologética a Fernando (o que ocupa somente cerca de 10 de suas 108 leis) e

tratado sobre as artes liberais – o trivium (gramática, retórica e lógica) e o quatrivium (música,

astronomia, física e metafísica). O Setenario é tudo isso e mais um pouco.

Esta obra indica igualmente um projeto de poder, baseado no(s) saber(es) dos antigos

de forma cristianizada. Esta obra pode ser vista como um indício, um esboço do que seria o

reinado de Afonso X, em que o saber estava também a serviço do poder e do controle social.

Destaca-se, igualmente, que Afonso X completou a obra de seu pai e aprofundou em

muito a idealização inicial de Fernando III, o que o levou a abandonar o Setenario em

detrimento das Siete Partidas, iniciadas apenas quatro anos depois (1256) da coroação de

Afonso.

No que tange à intervenção direta de Afonso X no Setenario, Vanderford diz que a

corte afonsina era bem preparada com assistentes conhecedores de distintos assuntos, mas que

nada sabemos sobre os que ajudaram nesta obra e que “el Setenario es sin duda la más

personal de todas las obras atribuídas a Alfonso el Sabio” (VANDERFORD, 1945: XL),

ainda que não existam provas conclusivas acerca do grau exato em que ele interveio.

Esta transição entre os reinados de Fernando e Afonso é claramente demarcada pelo

caráter cristão destes reis, pois ainda que diretamente envolvidos em questões temporais, os

reis medievais não podiam descuidar de que eram eles também vassalos de Deus.

Ainda que reconhecesse a mercê divina, Afonso X também se remetia ao direito de

linhagem como fator de legitimação de seu reinado. Afonso X utilizou em toda sua escrita de

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uma retórica a serviço de um projeto político-cultural e vinculado a uma tradição clássica

atualizada e cristianizada pela medievalidade. Mas quais as bases da retórica afonsina?

Para Aristóteles, o filósofo grego considerado “pai” da retórica, esta seria a faculdade de

“ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão (...) descobrir o

que é próprio para persuadir. Por isso (...) ela não aplica suas regras a um gênero próprio e

determinado”. (ARISTÓTELES, 2005: 33).

Como a retórica aparece no Setenario? Deve-se levar em conta a questão da sensibilização

e do convencimento, além da força da autorictas. Para a afirmação da retórica medieval, há a

questão da prova, em que se recorre principalmente aos pais da Igreja e à Bíblia, além dos

antigos.

Apesar de ter como referências a autorictas bíblica e a antiga, a Idade Média também foi

criadora de algo novo e próprio, pois os textos antigos serviam como parâmetros. Portanto,

não se pode tentar ler os textos medievais sem levar em conta suas especificidades: retórica e

estruturas próprias, influenciadas pelos greco-romanos, mas adaptadas à época. O medievo

herdou de Sêneca, por exemplo, o ócio como estruturante de virtudes, e de Cícero, a retórica

como mais que a arte de falar bem, mas também de ordenamento da lógica e criadora de

persuasão.

Na Idade Média o mundo era compreendido, em grande parte, por meio da retórica, suas

metáforas e analogias, que longe de serem meros recursos linguísticos, constituíam-se então

em produtoras de semelhança, de sentido e de presença. A escola conserva a retórica como

“legado de autoridade”.

Como na retórica antiga, sistematizada por Aristóteles, intentava-se a persuasão através da

prédica. Mas “a argumentação se apoiava no que o Filósofo chamara de prova apodítica – no

caso, isto é, na verdade tida por incontestável das Escrituras; e intentava-se atingir a todos os

homens, não apenas a um auditório limitado” (MALEVAL, 2008: 7). A persuasão também se

dava por meio de metáforas e analogias.

O pensamento analógico, oriundo da Antiguidade clássica, foi o instrumento intelectual

que dominou o Ocidente até o século XVII, quando o pensamento lógico passou a se destacar.

Hilário Franco Júnior lembra que as manifestações do racionalismo medieval foram muito

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limitadas no espaço, no tempo e nos segmentos sociais, não tendo desabrochado

completamente antes do século XII; e que mesmo depois, as conexões analógicas prevaleciam

sobre as lógicas (em grande parte da cristandade). A analogia medieval operava, portanto, por

meio de seus dispositivos retóricos de semelhança.

O desabrochar do racionalismo medieval foi concomitante com o aumento, nos

séculos XII e XIII, da produção e da circulação de documentos escritos e traduzidos (muitos

em língua vernácula), e a inserção dos laicos no desempenho de ofícios da escrita, como a

escrivania e a tradução. Houve igualmente um aumento na produção dos textos – inclusive os

autógrafos, como os de Afonso X, cuja autoria institucional é inconteste.

Além disso, a oralidade não estava totalmente perdida e nem havia saído de cena, pois

o caráter performático dos textos valia muito.

O que contava em grande parte era o grau de persuasão retórica – que se tornou arte

epistolar: “la palabra dictare adopte el sentido de ‘escribir, redactar’, y sobre todo el de

‘escribir obras poeticas’. […] Al lado del ars dictaminis, y por encima de el, se conserva en el

siglo XI el ideal antiguo, segun el cual la retorica debe ser parte integrante de toda cultura.”

(CURTIUS, 1955: 119)

Ernst Robert Curtius vai além e chega afirmar que “la adopcion de la antigua retorica

contribuyo a determinar, mucho mas alla de la Edad Media, la expresion artistica de

Occidente.” (CURTIUS, 1955: 121) A retórica é uma das sete artes liberais e faz parte do

Trivium, juntamente com a gramática e a lógica. Segundo Curtius, um dos maiores estudiosos

da retórica medieval, ela permite a penetração mais profunda no mundo cultural da Idade

Média e defende que na Antiguidade ela teria sido o eixo central da vida espiritual e cultural

desses povos:

Retorica quiere decir ‘ciencia del habla’; originalmente, pues, ensena a construir de manera artistica el discurso. De este germen brotara con el tiempo toda una ciencia, un arte, un ideal de vida, y hasta una columna de la cultura antigua. A lo largo de nueve siglos, la retorica configuro, de muy variadas maneras, la vida espiritual de griegos y romanos. (CURTIUS, 1955: 99)

A sensibilização dos ouvintes por meio da persuasão retórica se torna, então, um dos

objetivos da retórica medieval. Além disso, os autores antigos, mestres da oratória, se

tornaram referência de autoridade para a Idade Média, como Cícero e Quintiliano.

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Enquanto doutrina (ars) a retórica se compõe de cinco partes: inventio (descoberta),

dispositio (ordenação), elocutio (expressão), memoria, actio (declamação). A matéria da

retórica compreende três tipos de discurso: o deliberativo (que procura persuadir ou

dissuadir), o judiciário (que acusa ou defende) e o epidítico (que elogia ou censura).

O discurso panegírico ganha importância, com seu conteúdo laudatório a governantes

e teve grande influência na literatura medieval, inclusive em Afonso X, que escreve um longo

panegírico para seu pai Fernando no Setenario.

A retórica está ligada, como dito anteriormente, à sensibilização e ao convencimento.

Aristóteles acreditava claramente que a persuasão é mais do que apresentar um discurso

lógico; também envolve sensibilizar e invocar as emoções da audiência.

A retórica quando é muito usada dá origem a lugares-comuns (topoi), diferentemente

da metáfora. Segundo Curtius, esses topoi têm propósitos e lugares no texto bem definidos. A

falsa modéstia, inserida na introdução, busca ganhar a benevolência, a atenção e a docilidade

de seus ouvintes. O exórdio serve para expor os motivos que determinaram a criação de uma

obra, oferecer coisas nunca ditas. A dedicatória normalmente é a Deus. Além de se evitar a

ociosidade, também é comum o tópico de que aquele que possui conhecimento deve divulgá-

lo – levado bastante a contento por Afonso X. Por fim há o lugar-comum da conclusão, onde

normalmente não se conclui.

A retórica se utiliza de lugares-comuns para fixar determinadas ideias e persuadir o

leitor em determinada direção, muitas vezes política, como nas escritas régias. A escrita é um

ato oriundo de acúmulos sociais, dependente de um aprendizado cultural acumulado. Na

Idade Média, ela possui uma alta carga de oralidade, diretamente vinculada à retórica clássica

atualizada e cristianizada. Além disso, o texto medieval não era considerado como algo

imutável e definitivo, mas passível de interpretações, fabricos e reinvenções segundo tempo(s)

e época(s). A possibilidade de enriquecer, corrigir, alterar, mudar e comentar era vista como

uma condição de valorização, não uma deturpação da ideia original.

No caso de Afonso X, a escrita foi tratada como um patrimônio, inclusive material,

para a posteridade. O rei sábio não destinou suas obras à livre circulação e leitura, mas as

integrou em seu patrimônio régio, de caráter político, cuja expressão material são textos

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escritos com caráter oficial, compostos e custodiados como verdadeiros bens, inclusive

hereditários.

A retórica afonsina buscou, entre outras coisas, salvaguardar e recuperar o passado

hispânico, representado na figura de seu pai e antecessor Fernando, grande rei reconquistador,

ao mesmo tempo em que enxerga a realidade do seu tempo, incorporando os contributos da

antiguidade e de judeus e islâmicos.

Em sua retórica, Afonso ressalta o extenso agrupamento geopolítico sob seu reinado.

Além disso, faz questão de afirmar seu caráter místico, ao associar seu nome às letras gregas

de Alfa e Ômega (princípio e fim), que marcam o início e o final do nome Afonso.

A retórica de Afonso X busca argumentar as razões pelas quais um rei escreve e

porque ele continuou a obra do pai: “la vna, porque entendiemos que auya ende grant ssabor ;

la otra, porque nos lo mandó a ssu fíinamiento quando estaua de carrera para yr a paraíso, o

creemos que él fíué ssegunt las obras que él fíizo.” (AFONSO X, 1945: 9). Explicita-se aí a o

topos de se espalhar o conhecimento, principalmente o que emana da sabedoria régia.

Além disso, a recristianização de Espanna foi a marca do reinado de Fernando, que

recuperou a maior parte das terras junto aos mouros, inclusive no que se refere às práticas

religiosas. Nada mais justo que, por todos estes motivos, Fernando recebesse as sete mercês

divinas.

E ressaltava o atributo da justiça, pois as decisões régias, incluindo os castigos, tinham

que ser escritas (para dar perenidade e exemplo): “conueníe que este castigo que ffuese flecho

por escripto para ssienpre, non tan solamiente para los de agora, mas para los que auyan de

venir”. (AFONSO X, 1945: 23). E que fossem postas em livro para arraigar o bem e tolher o

mal, e para que todos se acostumassem com as leis – daí a necessidade da escrita e da

divulgação

Para combater e evitar esses males mandou dom Fernando escrever este livro, que

Afonso X denominou Setenario. Ao se ler a justificativa de elaboração dessa obra, pode-se

dizer que se trata de um espelho de príncipes: “sse viessen ssienpre commo en espeio para

ssaber emendar los ssus yerros e los de los otros e enderecar ssus ffechos e ssaberlos ffazer

bien e conplidamiente”. (AFONSO X, 1945: 25).

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Além disso, os reinos hispânicos teriam sido unidos por Deus para que fossem

herdados em paz. A retórica afonsina narrava e justificava a reconquista cristã, inclusive de

Sevilha, e a política de repovoamento. Afonso X se utiliza de sua retórica enciclopédica e do

que Clara Barros chama de tradução intralinguística:

uso repetido de formas explicitamente introdutórias de metalinguagem numa verdadeira «tradução» intralinguística. As formas de uso mais fréquente sao «tanto quer dizer como» ou «quer tanto dizer como» ou simplesmente «quer dizer» (BARROS, 1993: 405)

Nesse caso a expressão é “segunt dixieron”, o que também é uma forma de se

referenciar a auctoritas dos antigos: “Sabiduría, ssegunt dixieron los ssabios, ffazer venir a

omne a acabamiento de todas las cosas que há sabor de ffazer e de acabar. Et por ende

ordenaron los ssabios los siete saberes, a quen llaman artes” (AFONSO X, 1945: 29).

Faz-se, assim, um elogio às artes liberais. Deste modo, percebe-se que a corte afonsina

era consciente não apenas do poder da retórica, mas de todo seu processo de construção:

“rrectórica llaman a la terçera partida destas tres, que sse entiende que enssenna a ffablar

ffermoso e apuesto” (AFONSO X, 1945: 30). Retórica é a arte de falar com conteúdo e razão

de forma bonita, mas Afonso se utiliza dela para construir e dar autoridade a seu projeto

político-cultural, de modo que a palavra fosse dita para sensibilizar e persuadir o ouvinte-

leitor.

As artes liberais ligadas à palavra são tidas como uma só, sendo cristianizadas e

associadas à principal simbologia cristã: a Trindade. Os saberes antigos são, assim, adaptados

à cristandade medieval. A razão tem poder de iluminar as coisas obscuras, de dar

entendimento aos homens e mostrar os saberes das ciências, pois havia as vontades dos

homens “aguzándoles el entendimiento por que entienden e aprenden meior, mostrando qué

cosa es ssaber e en quál guisa deue sser entendido. […] muestra los ssaberes de las sçiençias,

cada vno quál es en ssí e qué obra deueffazer con ellos”. (AFONSO X, 1945: 46)

O Setenario aponta, assim, para as diversas mudanças culturais, políticas e jurídicas

em andamento na corte afonsina, tornando-se veículo para a afirmação do poder régio e da fé

cristã. Ao longo da obra, Afonso X busca ratificar os princípios do cristianismo e,

concomitantemente, cristianizar as tradições pagãs.

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Segundo o Setenario, o verdadeiro conhecimento, que leva à verdade, é aquele que se

afasta das mentiras das quais estes costumes antigos estariam imbuídos. A questão da

sabedoria tinha grande importância para Afonso X, pois através dela se chega ao

conhecimento verdadeiro, divino, abandonando os “erros pagãos”: “Ca sé ciertamente que sy

bien se arrepentieren, serán perdonados del yerro quel fezieron” (AFONSO X, 1945: 68-69).

Este trecho do Setenario é mais uma demonstração da retórica persuasiva do reinado

afonsino diante dos não-cristãos, pois ainda que não houvesse a coerção sugere-se que a lei e

a fé cristãs deveriam ser seguidas, por sua explícita superioridade diante dos outros “erros”. O

caráter abrangente e universal do cristianismo também é ressaltado pela possibilidade e

exortação à conversão de adeptos de outras religiões que se arrependessem de seu “erro”.

Por meio de sua retórica, Afonso X se mostra tributário à cultura dos antigos, mas a

atualizou, por meio da cristianização de símbolos pagãos e da filosofia clássica. Essa obra

demonstra algumas estratégias discursivas para explicar, definir, convencer e persuadir os

leitores-ouvintes. Afonso X utilizou diversos topoi nesse intento, visando também à

consolidação de seu projeto político-cultural.

Deve-se observar que há a necessidade de historiar os primórdios dos sacramentos, das

artes liberais e da política e de classificá-la. Por meio da retórica afonsina, o mundo se

descortinava à leitura e interpretação através das palavras. Estas serviram para dar base de

explicação e sustentação a Afonso X, o rei que se vinculou diretamente à retórica clássica e à

sabedoria bíblica e dos antigos, mas lhes deu cariz e línguas próprias.

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