UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DOUTORADO EM HISTRIA
Decadncia e Restaurao da Ordem Carmelita em Pernambuco (1759-1923)
MARIA DAS GRAAS SOUZA AIRES DE ARAUJO
Recife 2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DOUTORADO EM HISTRIA
Decadncia e Restaurao da Ordem Carmelita em Pernambuco (1759-1923)
MARIA DAS GRAAS SOUZA AIRES DE ARAUJO
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFPE pela aluna Maria das Graas Souza Aires de Arajo, para a obteno do ttulo de Doutora em Histria, tendo como orientador o Prof. Dr.Carlos Miranda
Recife 2007
Arajo, Maria das Graas Souza Aires Decadncia e restaurao da ordem Carmelita em Pernambuco (1759-1923). Recife: O Autor, 2007. 198 folhas Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Histria. Recife, 2007.
Inclui bibliografia
1. Histria de Pernambuco. 2. Governo Imperial 3. Ordem Carmelitas. 4. Poltica regalista. I. Ttulo.
981.34 981.34
CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)
UFPE BCFCH2007/09
Dedicatria
Ao meu fiel amigo e companheiro, Kleber Arajo, desculpa pela ausncia e obrigada pelo seu amor.
As minhas maravilhosas produes - Paloma e Lucas Aires
Agradecimentos
Ao longo do desenvolvimento desta tese, pude contar com a participao e a dedicao de muitos amigos e instituies que contriburam
sobremaneira com os objetivos acadmicos de nossa pesquisa. Deste modo,
gostaria de agradecer, nesse momento to especial, a todos que colaboraram com o
meu crescimento pessoal e intelectual, questionando pensamentos e atitudes.
Inicialmente, gostaria de agradecer o empenho, a disponibilidade e a
pacincia dispensados pelo Professor Doutor Carlos Miranda durante a construo
crtica do projeto de pesquisa e desta tese. Sua orientao me proporcionou o
interesse em buscar pistas documentais e bibliogrficas com a finalidade de
esclarecer questionamentos iniciais. Reconheo com gratido a acolhida to
carinhosa nos momentos em que precisei.
Agradeo o tempo e a ateno concedidos pelos irmos do Carmo do
Recife, os quais me proporcionaram o acesso documentao primria e secundria
existente no Arquivo da instituio. Sou grata pelo o apoio e a gentileza do Fr. Sales,
provincial da Baslica do Carmo do Recife, que sempre me auxiliou com respeito e
amizade.
Aos meus colegas do Departamento de Histria da UNIVERSO e, em
especial, s minhas amigas Jeannie Menezes, Marclia Gama e Inocncia Galvo,
pelos conselhos e gestos de carinho prestados nos momentos mais difceis na
elaborao deste trabalho. Danielle Guimares, pelo cuidado e ateno conferidos
na leitura e reviso gramatical da presente pesquisa.
coordenao do programa de ps-graduao em Histria da UFPE,
na pessoa do Professor Doutor Antnio Montenegro. Ao CNPq, pela ajuda financeira
no decorrer destes trs anos.
minha equipe de apoio familiar, sob a coordenao de minha me,
Aida de Sousa, e a vice-coordenao de minha irm, Maria Jos Aires, que
dispensaram ateno, carinho e pacincia aos meus filhos, Paloma e Lucas.
Tambm agradeo aos meus sobrinhos, Fernando e Patrcia Aires, pela pacincia e
eficincia na realizao dos servios de ajuda tecnolgica prestados na elaborao
deste estudo.
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de
decadncia da ordem Carmelita em Pernambuco, durante a poltica regalista do
governo imperial, e a sua posterior restaurao, a partir de 1894, com a vinda dos
carmelitas espanhis. Nessa perspectiva, procuramos estudar o contexto histrico do
Imprio no qual foram impostas medidas restritivas aos antigos institutos monsticos
dos beneditinos, franciscanos e carmelitas e, nesse meio, a conseqente situao
vivenciada pelos carmelitas diante do esvaziamento de seus templos religiosos.
Diante desta finalidade, a anlise documental referente decadncia do
Carmo pernambucano nos possibilitou um maior entendimento acerca da reduo da
influncia que os regulares exerciam na sociedade local e, ao mesmo tempo, serviu
como subsdio para que entendssemos como ocorreu a implementao do projeto
de restaurao da ordem no Brasil, a partir da proclamao da Repblica. Dessa
forma, percebemos que, para restabelecer o vigor da ordem, os frades
remanescentes do Recife solicitaram ajuda da Provncia do Doce Nome de Maria
que enviou alguns grupos de religiosos para empreender tal objetivo. Salientamos
que a chegada desses religiosos permitiu a reorganizao do carmelo
pernambucano, assim como contribuiu para consolidar a romanizao da Igreja
Catlica.
Sendo assim, na elaborao desta tese, foram utilizados
correspondncias, atas, ofcios, estatutos e os livros patrimoniais da ordem.
Palavras-chave: restaurao, ordem carmelita, regalista.
Abstract
The following thesis aims to analyze the decadence of the Carmelite
Order of Pernambuco facing the regalistic politics during the Imperial government and
its restoration after 1894, when Spanish Carmelites arrive. In this perspective, we
studied the historical context of the Imperial period when restrictive politics were
imposed to ancient monastic institutes of the Benedictines, the Fransciscanos and the
Carmelites, leading to empty temples.
Accessing documents about the Carmelite decadence of the Carmo of
Pernambuco provided us a better understanding about the reduction of the influence
of the regulars in the local society and at the same time about the implementation of
the restauration project of this religious order in Pernambuco during the Republic
proclamation. We realized that in attempt to recover the orders vigour the remainder
friars of Recife asked for help from the province Doce Nome de Maria that sent some
religious groups to support them. The arrival of these religious men permitted the
reorganization of the Carmelite Order of Pernambuco contributing to consolidate the
romanization of the Catholic Church.
During the elaboration of this thesis, mails, official letters, statutes and
patrimonial books from the Carmelites Order of Pernambuco were used.
Key-words: restoration, religious order, regalist
Sumrio Lista de Abreviaturas e Siglas ---------------------------------------- 10 Introduo ------------------------------------------------------------------- 11 Cap. 1. Fixao e Expanso Carmelita em Pernambuco --------------- 29
1.1. Fundao do carmo brasileiro --------------------------- --------- 30 1.2. O Carmo pernambucano -------------------------------------------- 37 1.2.1. Expanso carmelita no Recife ---------------------------- 41 1.2.2. Atuao carmelita em Goiana --------------------------- 46 1.3. Apogeu carmelitano -------------------------------------------------- 52 1.3.1. Carmelitas em Pernambuco no sculo XVIII ---------- 57 1.4. Enfraquecimento da cristandade ocidental --------------------- 63 1.4.1. Pombal e a expulso jesutica ----------------------------- 69 1.4.2. Crise do projeto colonial lusitano-------------------------- 77
Cap. 2. Esvaziamento da Ordem Carmelita em Pernambuco --------- 82 2.1. Atitudes regalistas do Imprio ------------------------------------- 83 2.2. Em busca da romanizao ----------------------------------------- 90 2.3. Supresso dos carmelitas na Europa ---------------------------- 98 2.4. Decadncia do carmo brasileiro ----------------------------------- 103 2.4.1. Crise do carmelo pernambucano ------------------------- 110
Cap.3 Restaurao do Carmo Pernambucano --------------------------- 132 3.1. Reorganizao catlica (1890-1921) ----------------------------- 133 3.2. Chegada dos restauradores espanhis ------------------------- 143 3.3. Fr.Andr Prat:implantao da Restaurao Carmelita ------ 156 3.3.1. Questo patrimonial da Ordem ---------------------------- 165 3.3.2. Consolidao da administrao de F.Andr Prat------ 171
Consideraes Finais ---------------------------------------------------- 186 Fontes ------------------------------------------------------------------------- 190
Bibliografia ------------------------------------------------------------------ 191
Lista de Abreviaturas e Siglas
APEJE - Arquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano LAPEH - Laboratrio de Pesquisa e Ensino de Histria da UFPE. ACR - Arquivo do Convento do Carmo do Recife AHU - Arquivo Histrico Ultramarino - Portugal AFJN - Arquivo da Fundao Joaquim Nabuco
10
Introduo
O objetivo desta tese consiste em analisar os fatores que geraram a
decadncia da ordem Carmelita em Pernambuco, durante a implementao da
poltica regalista do Estado Portugus, e a sua posterior restaurao, a partir de
1894, com a chegada dos reformadores espanhis. Dessa forma, foram levados em
considerao os acontecimentos polticos, econmicos e sociais que desencadearam
o processo de ruptura entre a Igreja e o Estado no Brasil e interferiram,
sobremaneira, no projeto de consolidao e expanso desta Instituio.
De incio, procuramos examinar o posicionamento dos carmelitas diante
das medidas restritivas tomadas pelo governo em relao s antigas ordens
religiosas (franciscanos, carmelitas, jesutas e beneditinos) desde a poca pombalina
at o perodo da Proclamao da Repblica em 1889. A partir da, partimos para
pesquisar as estratgias adotadas e implementadas pelos regulares com o intuito de
reconstruir a sua ordem religiosa em terras brasileiras. Diante das informaes
obtidas, verificamos que a reorganizao do instituto carmelitano fazia parte de um
projeto mais amplo desenvolvido pelo Carmo europeu que, nessa poca, tambm
estava restaurando sua estrutura monstica, fato que nos mostrou que a poltica de
perseguio aos regulares no foi exclusividade do Estado Portugus.
Nesse meio, a expanso das idias liberais propagadas pelo
movimento da Ilustrao1 questionou a viso da Igreja Crist como propagadora de
uma uniformidade ocidental que imps aos iluministas a tarefa de buscar outros
princpios fomentadores para esta unidade2. Na realidade, foi colocada em
1 Para entender a relao existente entre o Iluminismo e a decadncia das ordens monsticas no Brasil, utilizamos a definio que R.G.Collingwood expressou sobre o movimento. Por Iluminismo - Aufklrung - entende-se aquele esforo (to caracterstico dos princpios do sculo XVIII) de secularizar todos os setores da vida e do pensamento humanos. Foi uma revolta no s contra o poder da religio institucional como contra a religio em si mesma. In: COLLINGWOOD, R.G. A Idia de Histria. 6 ed. Lisboa, Editorial Presena. 1986. p.103 2 Concordamos com o telogo Hans Kng quando afirma que: Pela primeira vez na histria do cristianismo, os impulsos para um novo paradigma do mundo, da sociedade, da igreja e da teologia no vieram principalmente de dentro da teologia e da igreja, mas sim de fora. Agora, o ser humano
11
questionamento a necessidade de o mundo ocidental se confundir com o
cristianismo, bem como a de reivindicar a fundao de uma civilizao prpria3.
As revolues cientfica e filosfica tiveram efeitos de longo alcance na
sociedade europia, a qual, por vrios sculos, as autoridades eclesisticas
interferiram na construo do seu pensamento. Desse modo, tais transformaes
fizeram ensejar o Iluminismo e promoveram mudanas na poltica, no Estado e na
sociedade. Em razo disso, a teologia crist, principalmente a escolstica, no foi
poupada pelos pensadores iluministas.
Em toda a Europa do sculo XIX, da pennsula ibrica Frana, a
Alemanha, a Itlia e a ustria-Hungria difundiram uma idia comum: dar vida social
um tom laico, no-confessional, a fim de subtrair o domnio dos padres4. A difuso
deste pensamento reforou o interesse dos regimes polticos nacionais em subjugar
o poder religioso em seus respectivos territrios, confiscando os bens patrimoniais
dos eclesisticos e diminuindo a influncia das ordens monsticas. Nos pases
catlicos romanos, houve uma crescente tentativa dos governos ou de outras
agncias seculares de assumir funes at ento atribudas, em grande parte, aos
regulares, especialmente a educao e a beneficncia social5.
como individuo foi colocado no centro e, ao mesmo tempo, o horizonte humano ampliou-se e diferenciou-se quase infinitamente. In: KNG, Hans. Igreja Catlica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 188 3 Segundo Peter Berger, no nova, de forma alguma, a suspeita de que deve haver uma conexo entre o cristianismo e o carter do mundo ocidental moderno. Na realidade, pode-se interpretar o mundo moderno como a mais alta realizao do esprito cristo (como Hegel o interpretava), ou pode-se encarar o cristianismo como o principal fator patognico responsvel pelo suposto estado lastimvel do mundo moderno (como, por exemplo, em Schopenhauer e Nietzsche). In: BERGER, Peter L. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociolgica da religio. (Organizao Luiz Roberto Benedetti; traduo Jos Carlos Barcellos). So Paulo:Ed.Paulinas, 1985. p.123. 4 MARTINA, Giacomo. Histria da Igreja de Lutero a Nossos Dias. A Era do Liberalismo. Tomo III. Traduo de Orlando Soares Moreira. So Paulo: Edies Loyola, 1996. p. 290 5 HOBSBAWN, Eric J. A Era das revolues: Europa 1789-1848. Traduo de Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p.244
12
Desde o final do sculo XVIII at o ltimo quartel do sculo XIX, muitos
monastrios foram fechados e suas propriedades vendidas. No Brasil,
especificamente em Pernambuco, os carmelitas perderam alguns templos religiosos
devido poltica de esvaziamento de seus edifcios. Ao longo desse perodo, o
Estado decretou vrias leis restringindo o ingresso de novos regulares no interior da
instituio carmelitana. Dessa maneira, os clrigos no conseguiram renovar o seu
efetivo numrico, o que fez dificultar a implantao de seus mecanismos de controle
social6.
A tendncia geral desse perodo foi, portanto, de uma enftica
secularizao7. Nesse tocante, concebemos o conceito de secularizao adotando a
perspectiva de Peter Berger quando afirma que:
Por secularizao entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura so subtrados dominao das instituies e smbolos religiosos. Quando falamos sobre a histria ocidental moderna, a secularizao manifesta-se na retirada das Igrejas crists de reas que antes estavam sob o seu controle ou influncia: separao da Igreja e do Estado, expropriao das terras da Igreja, ou emancipao da educao do poder eclesistico, por exemplo. Quando falamos em cultura e smbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularizao mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideao e pode ser observada no declnio dos contedos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascenso da cincia, como uma perspectiva autnoma e inteiramente secular, do mundo8.
6 No decorrer de nosso trabalho, tomamos como referncia para esta denominao o posicionamento ideolgico do telogo Hans Kng quando analisa a viso de uma histria do estabelecimento da Igreja como instituio, como poder poltico, e no como uma histria da vida autntica dos cristos. In: KNG, Hans. Igreja Catlica. op.cit. p. 139 7 O termo secularizao ser bastante utilizado ao longo deste trabalho, assim como o seu derivado secularismo. 8 BERGER, Peter L. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociolgica da religio. Op.cit. p.119
13
A expanso do processo secularizador em nossa sociedade
desencadeou uma srie de transformaes nas diferentes formas de relaes
polticas, econmicas e sociais empreendidas entre a Ordem Carmo, a Igreja e o
Estado. Percebemos, atravs de nossa pesquisa, os constantes conflitos emergidos
entre os carmelitas e as elites dominantes pela posse dos bens patrimoniais dos
regulares e a interferncia do episcopado que tambm visava a adquirir algumas
possesses dos frades. Faz-se importante destacar que a anlise documental nos
permitiu verificar a mudana de comportamento das elites governamentais e urbanas
frente s intempries sofridas pelos carmelitas no sculo XIX. Como o catolicismo
era a religio oficial do Brasil desde o perodo colonial, as ordens monsticas
conseguiram organizar a sua estrutura institucional com relativa tranqilidade. Sendo
assim, a prpria sociedade contribuiu para fundar os templos sacros e, ao mesmo
tempo, garantir o sustento financeiro da ordem. Foi justamente nessa poca que os
carmelitas constituram um slido patrimnio econmico e social.
No entanto, com a implementao da poltica regalista, essa situao
sofreu uma significativa alterao. O estudo das atas e ofcios9 elaborados pelos
carmelitas, no transcorrer do sculo XIX, mostra que a prpria elite dominante, a qual
ajudou na fundao dos conventos da ordem, passou a questionar o desempenho e
a funo social dos regulares, desencadeando o esvaziamento dos seus edifcios e o
declnio da ordem no Brasil.
Com a separao entre o Estado e a Igreja aps a Proclamao da
Repblica, os carmelitas puderam reconstruir o seu processo de evangelizao e
formular o seu projeto de restaurao. Para alcanar tal intento, acreditamos que os
regulares tenham restabelecido uma relao de cumplicidade entre as elites urbanas
e o clero secular que apoiaram os religiosos com o objetivo de reforar a sua posio
hegemnica na sociedade. Nessa perspectiva, tomamos como hiptese, ao longo de
nosso trabalho, o fato de o Carmo privilegiar, como estratgia para sua restaurao e
9 ACR - Livro de atas, breves, captulos, congregaes intermedirias e correspondncia oficial da Provncia Carmelita/1818-1886.
14
posterior expanso, a vinda de lideranas intelectuais catlicas que pudessem atuar
no novo direcionamento que o catolicismo estava assumindo no Brasil.
O perodo entre os anos de 1889 e 1939 definiu uma reorganizao da
Igreja Catlica inspirada em um projeto de romanizao elaborado pela Santa S. A
fase republicana, com o decreto de separao entre o Estado e a Igreja e a abolio
do Padroado, marcou o predomnio do catolicismo renovado, de inspirao romana,
eclesial e sacramental. De acordo com Alpio Casali, durante o estabelecimento do
laicismo constitucional da Repblica,
(...) encontramos Igreja (setores dominantes) e Estado em posio final de inverso, sendo agora um Estado liberal diante de uma Igreja predominantemente ultramontana (romanizada) e, em muitos setores, monrquica. Definidos os campos da poltica laica e da atuao eclesistica, a Igreja hierrquica passou a atrair levas de missionrios europeus para o pas, para recatoliciz-lo no padro romano-papal10.
Para reforar a nova orientao da Igreja, o Brasil passou a receber um
significativo contingente de congregaes masculinas e femininas, vindas da Europa,
que se espalharam pelo pas principalmente na regio sul. Esses religiosos, cuja
grande maioria se estabeleceu, especialmente, nos centros urbanos, dedicaram-se
fundao e organizao de institutos educacionais. Nesse nterim, os clrigos que
possuam um grau de instruo mais elevado passaram a assumir a direo de
vrias parquias nos diversos Estados da Federao11.
Inseridos nessa conjuntura de reorganizao do catolicismo em terras
brasileiras, os carmelitas espanhis chegaram a Pernambuco, no ano de 1894, com
o fim de estabelecer novas estratgias de fixao e expanso social. Para alcanar
o seu objetivo, os regulares se voltaram especialmente para as elites urbanas
regionais que estavam preocupadas em construir uma nova identidade social. Nesse
contexto, os reformadores intelectuais perceberam que poderiam empreender a sua
10 CASALI, Alpio. Elite Intelectual e Restaurao da Igreja. Petrpolis, RJ:Vozes,1995. p.16-17 11 AZZI, Riolando. Elementos para a histria do catolicismo popular. In: REB, vol. 36, fascculo 141, Maro de 1976. p.121
15
restaurao caso apoiassem tanto o projeto de reorganizao da Igreja Catlica
quanto a consolidao do Estado republicano atravs do apoio s elites dominantes.
Dessa forma, a afinidade de nossa pesquisa com o universo conceitual
de Gramsci bastante eloqente, principalmente quando analisamos a definio que
o autor formulou sobre o papel do intelectual na construo da nova ordem social
poltica. A designao de intelectuais foi concedida queles que, nas primeiras
dcadas do sculo XX, refletiram, defenderam e instituram prticas alusivas ao
comportamento a ser adotado pelos fiis diante do novo modelo de catolicismo
romanizado transmitido pela Igreja Romana. A reflexo dessa problemtica deve ser
entendida em um contexto poltico e social mais amplo, no qual possamos perceber
a discusso na sociedade sobre a busca de uma identidade nacional12.
Em Intelectuais e a Organizao da Cultura13, Gramsci afirmou que os
intelectuais so um grupo social autnomo, com uma funo social de porta-vozes
dos grupos ligados ao mundo da produo. No mundo moderno, a categoria dos
intelectuais, assim entendida, ampliou-se de modo inaudito. Deste modo, percebe-se
a importncia das instituies privadas da sociedade civil como a igreja, escola,
12 Segundo Hugues Portelli: A anlise gramsciana do catolicismo a das funes sociais, ideolgicas e polticas que ele desempenhou desde o seu aparecimento. Esta histria divide-se em dois captulos essenciais: o primeiro, que se estende at as Reformas, durante o qual a Igreja estende seu domnio ideolgico at o monoplio e a rivalidade com o aparelho de Estado: a fase orgnica; neste perodo, a Igreja a casta intelectual da classe dirigente. O segundo captulo, que continua at hoje, o do declnio; aqui a Igreja, progressivamente despojada de suas diferentes funes, deve defender seus privilgios contra as novas camadas intelectuais: esta segunda fase a da Igreja que se torna casta de intelectuais tradicionais. In: PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questo religiosa. So Paulo: Ed.Paulinas,1984.p.45. Para analisar a importncia dos intelectuais carmelitas no processo de reorganizao da Igreja Catlica em Pernambuco, tomamos como referncia, para esta denominao, o conceito de Gramsci sobre o papel do intelectual na formao da sociedade. Este grupo, segundo Gramsci, atua como mediador entre a elite dominante e as camadas subordinadas. Nesse contexto, os intelectuais se tornaram "comissrios" das camadas dirigentes que deveriam contribuir para a consolidao da hegemonia social e do domnio poltico. In: GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organizao da Cultura. 3 ed. RJ: Civilizao Brasileira, 1981, p.11. 13 Segundo Gramsci: A mais tpica das categorias de intelectual a dos eclesisticos, que monopolizaram por muito tempo (numa inteira fase histrica que parcialmente caracterizada, alis, por esse monoplio) alguns servios importantes: a ideologia religiosa, isto , a filosofia e a cincia da poca, atravs da escola, da instruo, da assistncia, etc. [...] A categoria dos eclesisticos pode ser considerada como a categoria intelectual organicamente ligada aristocracia fundiria. In: GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organizao da Cultura. op.cit.p.5
16
sindicatos, jornais, famlia e outros, como entidades fomentadoras de uma nova
vontade e moral social.
Ao estudar as correspondncias enviadas entre os carmelitas
reformadores que vieram a Pernambuco, como Frei Andre Prat, e os regulares
espanhis, acreditamos ter encontrado indcios de que a aproximao entre a ordem
do Carmo, a Igreja Catlica e o Estado republicano foi bem mais intensa do que se
supunha. Essa idia contrasta com a concepo, muito difundida na historiografia
brasileira, de que a separao entre o Estado e a Igreja, em 1889, tenha originado
um total afastamento da hierarquia eclesistica do domnio pblico. Thomas
Bruneau, em seu livro Catolicismo em poca de Transio, analisou que:
Depois de 400 anos oficializada, a Igreja se viu de repente excluda do domnio pblico e sem o apoio do Estado para a sua influncia religiosa. [...] A Igreja e o Estado deveriam ter pouco ou quase nenhum contato, e entre eles no se pretendia nenhuma cooperao, competio ou mesmo conflito: legalmente tinham que se ignorar mutuamente14.
Atravs da pesquisa documental, percebemos que, mesmo tendo
ocorrido a separao oficial entre o domnio espiritual e o pblico, os carmelitas
conseguiram restabelecer a sua ordem, em Pernambuco, com o apoio tanto das
autoridades civis quanto das elites urbanas. Para entender o estabelecimento dessas
relaes sociais, utilizamos como aporte terico-metodolgico o pensamento de
Gramsci que afirma que a religio e, mais especificamente, a Igreja Catlica pregam
uma ideologia conservadora que busca atingir as camadas populares atravs de
diversos mecanismos15. Nessa perspectiva, a estrutura eclesistica, quando aliada
14 BRUNEAU, Thoms C. Catolicismo brasileiro em poca de transio. So Paulo: Edies Loyola, 1974. p. 65. 15 Na Amrica do Sul e na Amrica Central, a maior parte dos intelectuais de tipo rural e, j que domina o latifndio, com extensas propriedades eclesisticas , tais intelectuais so ligados ao clero e aos grandes proprietrios. Os intelectuais de tipo rural so, em sua maior parte, "tradicionais" isto , ligados massa social camponesa e pequeno-burguesa das cidades. GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organizao da Cultura. op.cit. p.13-21.
17
aos grupos dirigentes, possibilita o fortalecimento da influncia desses mesmos
setores sobre os grupos dirigidos16.
Gramsci estudou detalhadamente a aliana firmada entre a Igreja
Catlica e o Estado liberal na Itlia nas primeiras dcadas do sculo XX. Seu objetivo
era analisar as razes polticas, econmicas e ideolgicas que impulsionaram os
eclesisticos a firmar um acordo com as autoridades governamentais. Nesse tocante,
procuramos analisar a crtica gramsciana em relao Igreja Catlica frente ao
modelo de Estado liberal instaurado na Itlia, objetivando entender a sua poltica de
alinhamento progressivo com o governo. De acordo com a sua pesquisa, a crise
social e poltica de 1898 foi o ponto de partida para a unio entre o Estado e a Igreja
que levou concordata de 192917.
Tendo como referncia a anlise realizada por Gramsci, pudemos
compreender o processo de transformao vivenciado pela instituio catlica no
Brasil frente s mudanas geradas pela instaurao da Repblica. Nesse meio,
entendemos que a modificao da Igreja ocorreu devido a dois fatores: s
transformaes na sociedade e na poltica brasileira e s modificaes na Igreja
internacional. A Igreja, no Brasil, nesse perodo, voltava-se para Roma. Sabemos
que as condies objetivas entre Estado e Igreja, em nosso pas, eram distintas das
condies italianas. Contudo, a Igreja nacional, insistiu em tomar, durante algum
tempo, como referncia para sua relao com o Estado brasileiro, precisamente o
tipo de relao Vaticano-Estado italiano18.
A partir da, a Igreja estabeleceu como seu objetivo a conquista e
manuteno da hegemonia, na esfera da sociedade civil, no descartando alianas e
pactos, diretamente com o Estado, negociando a sua influncia sobre as massas em
troca de privilgios constitucionais. Dessa forma, procurando fixar o seu novo carter
institucional, o episcopado, em Pernambuco, buscou o apoio da ordem carmelita com
16 GRAMSCI, Antonio. Concepo Dialtica da Histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989. p.16 17 PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questo religiosa. op.cit. p.111 18 CASALI, Alpio. Elite Intelectual e Restaurao da Igreja. op.cit. p.13
18
a finalidade de conseguir ampliar a sua rede de influncias com o Estado e com as
elites dominantes. De acordo com Alpio Casali,
Com efeito, a Igreja no Brasil no descartou as oportunidades de tentar acordos ou alianas diretas com o Estado, por corredores palacianos, recurso teoricamente anacrnico para uma novel repblica19.
Torna-se importante enfatizar que, ao longo de nossa pesquisa,
procuramos trabalhar a Igreja enquanto Instituio20 que buscou restaurar seu perfil
e sua influncia frente construo da nova identidade nacional. A partir desse
entendimento, analisamos a participao que os intelectuais carmelitas tiveram na
reorganizao eclesistica. Acreditamos que seria difcil investigar tal problemtica
sem antes estudar o arcabouo poltico e social que estava se definindo, no Brasil,
nas primeiras dcadas do sculo XX. Nesse sentido, concordamos com o estudo de
Scott Mainwaring quando esclarece que, como qualquer outra instituio, a Igreja
influenciada pelas mudanas na sociedade em geral. Entretanto, segundo o autor,
[...] tambm importante levar em considerao as formas pelas quais a Igreja influi no processo poltico. A Igreja no somente um objeto de mudana. Como uma instituio importante, ela tambm exerce influncia sobre a transformao poltica. Ela afeta a formao
19 CASALI, Alpio. Elite Intelectual e Restaurao da Igreja. op.cit. p.12 20 Adotamos como referncia para esta denominao, o estudo de Scott Mainwaring o qual afirma que: Um postulado bsico bem estabelecido pela anlise institucional contempornea e pelos estudos sociolgicos clssicos diz que qualquer exame da Igreja e da poltica deve levar em considerao o carter institucional da primeira. A f um fenmeno supra-racional que se proclama pairar sobre todos os outros valores. A Igreja tem incio nessa f, mas, como toda a instituio, ao desenvolver interesses, ento tenta defend-los. O objetivo principal de qualquer Igreja propagar sua mensagem religiosa. Todavia, dependendo da percepo que tenha dessa mensagem, pode vir a se preocupar com a defesa de interesses tais como sua unidade, posio: em relao s outras religies, influncia na sociedade e no Estado, o nmero de seus adeptos e sua situao financeira. Quase toda instituio se preocupa com a prpria preservao; muitas tratam de se expandir. Essas preocupaes facilmente levam adoo de mtodos que so inconsistentes quanto aos objetivos iniciais. In: MAINWARING, Scott. Igreja Catlica e Poltica no Brasil - 1916 - 1985. SP:Brasiliense, 1989. p.15-16.
19
da conscincia das vrias classes sociais, mobiliza algumas foras polticas ou as critica21.
Percebe-se, portanto, que uma relao de proximidade com as elites
governamentais e urbanas fazia parte do modelo de Igreja da neocristandade. Para
implementar tal projeto, a instituio catlica no Brasil contou tambm com a
participao de religiosos estrangeiros. Nessa perspectiva, procuramos resgatar, no
decorrer de nossa pesquisa, os mecanismos utilizados pelos carmelitas espanhis
com o fito de restaurar a sua Ordem em Pernambuco e analisar a sua relao com o
projeto de romanizao implementado pela Igreja Catlica. Ao mesmo tempo,
verificamos que, para efetivar o seu plano de restaurao, os regulares direcionaram
os seus esforos para obter o apoio das elites que possibilitaram essa "recatolizao
religiosa" visando a atenuar os problemas sociais que surgiam no incio do sculo
XX.
O interesse em pesquisar sobre essa temtica surgiu no decorrer da
elaborao da dissertao de mestrado sobre a "Fixao e Expanso da Ordem
Carmelita em Pernambuco no Perodo Colonial" 22, na qual procuramos entender o
processo de adaptao e expanso dos carmelitas na sociedade colonial
pernambucana. A construo desse estudo suscitou o interesse pela questo da
decadncia da Ordem, em fins do sculo XVIII, e sua posterior restaurao, no final
do sculo XIX, pois, no perodo em que foram investigados os documentos alusivos
ao trabalho de mestrado, foi possvel vislumbrar um rico acervo documental referente
a estes sculos, despertando, assim, o interesse em dar continuidade Histria dos
Carmelitas.
Aps um levantamento inicial, percebemos a escassez de trabalhos
concernentes ao papel desempenhado pelos carmelitas, no perodo citado, na
construo da sociedade pernambucana. Praticamente os dois nicos estudiosos
que pesquisaram sobre a respectiva matria foram Andr Prat e Pereira da Costa.
21 Idem, p.25 22 ARAUJO, Maria das Graas Souza Aires de. Carmelitas em Pernambuco: Fixao e Expanso. Recife: Programa de Ps-graduao em Histria/ UFPE, 2000. Dissertao de Mestrado.
20
Riolando Azzi, em seu trabalho A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos
ressaltou a carncia de estudos referentes situao das ordens monsticas perante
as atitudes regalistas do Imprio, enfatizando que:
No tarefa fcil, pois a antiga historiografia produzida pelos carmelitas, franciscanos e beneditinos quase que completamente omissa a esse respeito, por ser considerada ento menos "exemplar" ou "edificante" para ser publicada23.
Frei Andr Prat foi um carmelita que chegou ao Recife, no incio do
sculo XX, com o propsito de restaurar o Carmelo pernambucano. Em sua obra,
Notas Histricas sobre as Misses Carmelitanas no Extremo Norte do Brasil,
pesquisou o processo de expanso e consolidao dos carmelitas no territrio
brasileiro sem, contudo, tecer maiores consideraes sobre o declnio da Ordem
durante o Imprio. Um dos poucos momentos que aborda o tema quando lamenta
que " ... a vida e existncia [da Ordem Carmelita] tenha-se tornado to triste ou
precria que pelos anos de 1890 o nmero de religiosos carmelitas existentes no
Brasil, era apenas 7"24.
Alm de Fr. Andr Prat, pode-se destacar o estudo de Pereira da Costa,
cujo livro, A Ordem Carmelita em Pernambuco, retratou as principais realizaes dos
carmelitas na sociedade pernambucana, ressaltando as etapas de crescimento da
ordem. No entanto, o autor no aprofundou as discusses sobre o processo de
esvaziamento dos conventos carmelitas e tambm no pesquisou sobre a
restaurao do grupo.
23 AZZI, Riolando (org.). A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos. So Paulo: Ed.Paulinas, 1983. p.15 24 PRAT, Fr. Andr. O.Carm. Notas Histricas sobre as Misses Carmelitanas no Extremo Norte do Brasil (Sculos XVII e XVIII). Tomo I. Recife. 1941.
21
Alm desses dois autores citados, no decorrer de nossa pesquisa,
tambm utilizamos, como bibliografia secundria, os trabalhos do Fr. Ismael
Carretero25 e do Fr. Joaqun Smet26 que nos permitiu um maior entendimento sobre
o processo de supresso e restaurao dos carmelitas na Europa, bem como o de
esvaziamento do Carmo em Pernambuco e sua posterior reorganizao. Apesar da
leitura dessas obras ser de fundamental importncia, por se tratar de uma pesquisa
elaborada pelos prprios regulares, tivemos o cuidado de interpretar suas
informaes, levando em considerao a autoria dos dados, os objetivos e condies
de sua produo.
Conforme j foi dito neste trabalho, a escassez de publicaes sobre a
ordem carmelita em Pernambuco dificulta a elaborao de uma discusso
historiogrfica mais aprofundada. Nessa perspectiva, procuramos analisar os
trabalhos publicados sobre a decadncia e restaurao das antigas ordens
monsticas (franciscanos e beneditinos) com a finalidade de investigar a metodologia
utilizada pelos seus autores e, a partir da, us-la como arcabouo terico-
metodolgico para a nossa pesquisa.
Desse modo, destacamos trs estudos que foram utilizados como
norteadores de nossa prtica metodolgica, na medida em que aprofundaram alguns
aspectos tpicos da reforma e da romanizao da Igreja a partir de meados do sculo
XIX. Ferdinand Azevedo, em seu trabalho Espiritualidade Ultramontanista no
Nordeste (1866-1874): Um Ensaio27, abordou a espiritualidade ultramontana que
caracterizou a ao dos jesutas italianos no Nordeste. J.Jongmans28, em sua
25 CARRETERO, Ismael Martinez. O.Carm. Exclaustracin y Restauracin del Carmen En Espaa (1771-1910). Roma: Edizioni Carmelitane. 1996. 26 SMET, Joaqun. Los Carmelitas. Historia de la Ordem del Carmen. Supresiones y Restauracin (1750-1959).Tomo 5. Traduccion y Preparacion de la edicion espaola por Antonio Ruiz Molina, O. Carm. Biblioteca de Autores Cristianos. 1995 27 AZEVEDO, Pe. Ferdinand. Espiritualidade Ultramontanista no Nordeste (1866-1874): Um Ensaio. In: AZZI, Riolando. A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos. So Paulo: Ed.Paulinas, 1983. 28 Para entender o contexto poltico, social e religioso vivenciado pela sociedade pernambucana, em fins do sculo XIX e incio do XX, tomamos como referncia o trabalho de J.Jungmans. Nele, o autor fez uma anlise sobre a restaurao dos beneditinos em Olinda, entre os anos de 1895-1899, enfatizando a chegada dos restauradores que, em 08 de dezembro de 1895, abriram o noviciado no Mosteiro de So Bento. O autor analisou a reforma beneditina como parte de um fenmeno mais amplo: o da romanizao da Igreja no Brasil. Dessa forma, chegou a concluso que: Quer atravs da
22
pesquisa concernente A Reforma da Ordem Beneditina no Brasil, mostrou a
complexidade da atuao restauradora dos beneditinos. Por fim, trabalhamos com a
obra de Hugo Fragoso, Uma contribuio para a Histria Vocacional da Provncia
Franciscana de Santo Antnio29, que analisou as solues utilizadas pelos religiosos
alemes que vieram restaurar a provncia franciscana de Santo Antnio. Alm
desses estudos, tambm utilizamos, como referencial temtico para a construo de
nossa pesquisa, a anlise elaborada por Oscar Beozzo, intitulada Decadncia e
Morte, Restaurao e Multiplicao das Ordens e Congregaes Religiosas no
Brasil30, que enfatiza a relao existente entre restaurao das ordens religiosas e a
sociedade burguesa vigente.
Nunciatura, quer atravs da Secretaria de Estado ou da Congregao dos Religiosos, a Santa S acompanhou passo a passo a restaurao das congregaes brasileiras. Atravs do respectivo trabalho, o autor pde constatar a falta de respeito, por parte dos monges reformadores, por tudo que existia no Brasil, j que os frades importaram tudo da Europa, impondo, exclusivamente, concepes estrangeiras. In: JONGMANS, J. A Reforma da Ordem Beneditina no Brasil. In: AZZI, Riolando (org.). A Vida Religiosa no Brasil: Enfoques Histricos. So Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p.150 29 Ao longo de seu estudo, Frei Hugo Fragoso analisou as caractersticas adotadas pelos restauradores alemes da Provncia da Saxnia para reestruturar a Ordem Franciscana no Brasil. No entanto, o enfoque principal utilizado neste trabalho foi o problema vocacional encarado como parte integrante da restaurao franciscana. Para tanto, os regulares contaram com o apoio do episcopado brasileiro que intercedeu junto Santa S. Uma reflexo importante do autor sobre o assunto, e que foi bastante utilizada no decorrer de nossa pesquisa, foi que [...] a congregao dos bispos e regulares, desde o fim do Imprio, determinara que os franciscanos, beneditinos, carmelitas e mercedrios fiquem inteiramente sujeitos aos bispos dos lugares. Essa uma mudana fundamental para entender o novo posicionamento da Igreja a partir da Proclamao da Repblica. A Igreja Catlica passou a atender orientao da Santa S e no mais do Estado brasileiro. Da mesma forma aconteceu com as antigas ordens monsticas que no usufruam mais da autonomia que possuam durante a colnia. In: FRAGOSO, Hugo. Uma contribuio para a Histria Vocacional da Provncia da Provncia Franciscana de Santo Antnio. In: AZZI, Riolando (org.). A Vida Religiosa no Brasil: Enfoques Histricos. So Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p.155 30 Em seu trabalho, Oscar Beozzo analisou que: A segunda metade do sculo XIX enlaa duas conjunturas distintas em relao vida religiosa. Atravs dessa afirmao, o autor refere-se ao fato de que se, por um lado, estava ocorrendo um esvaziamento das antigas ordens religiosas, por outro, novas congregaes comeavam a chegar ao Brasil imbudas por perspectivas e promessas. Foi o caso, por exemplo, dos Lazaristas (1820), capuchinhos italianos (1840-ltimas levas), dominicanos (1881) e salesianos (1883). Entretanto, Oscar Beozzo no pesquisou sobre as etapas de fixao de cada instituto, preferindo, em seu trabalho, fornecer referncias de ordem quantitativa que serviram de base para uma anlise comparativa da vida religiosa do perodo. In: BEOZZO, Jos Oscar. "Decadncia e Morte, Restaurao e Multiplicao das Ordens e Congregaes Religiosas no Brasil". In: AZZI, Riolando. A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos. So Paulo:Ed.Paulinas, 1983. p.85
23
O estudo desses trabalhos possibilitou um maior entendimento terico-
metodolgico sobre o processo de esfacelamento e posterior reorganizao das
ordens religiosas no Brasil. Os autores citados elaboraram uma anlise mais crtica,
substituindo a tradicional historiografia religiosa, geralmente de carter triunfalista ou
apologtico31.
Para a elaborao da presente pesquisa, utilizamos, principalmente,
uma documentao existente nos Arquivos do Carmo do Recife, da Bahia e de Belo
Horizonte. Quando iniciamos os nossos estudos, sentimos grande dificuldade em
acessar o acervo documental que necessitvamos pois a documentao pertence ao
arquivo particular da ordem do Carmo e, portanto, s pode ser consultado mediante
autorizao do provincial. Concomitantemente, os regulares no possuem um local
apropriado para o acondicionamento de suas fontes histricas, as quais esto
armazenadas em pastas catalogadas pelos prprios frades. Vrios documentos,
principalmente dos sculos XVIII e XIX, esto ilegveis devido presena de traas.
Ao consultar o acervo percebemos que, ao longo dos anos, os carmelitas, com o
objetivo de preservar os dados contidos em seus documentos, comearam a
transcrev-lo. Contudo, pela falta de verba e apoio institucional, os regulares ainda
no conseguiram organizar, de maneira adequada, o seu patrimnio cultural.
No Arquivo do Carmo do Recife, trabalhamos com o livro de atas,
breves, captulos e correspondncia oficial da provncia carmelitana entre os anos de
1818-1886. Nele, encontramos uma rica documentao referente ao esvaziamento
dos conventos carmelitas do Recife, de Goiana e da Paraba, assim como
verificamos as vrias tentativas implementadas pelos regulares com o fito de
reerguer a sua estrutura monstica. Paralelamente, tambm pesquisamos as
informaes contidas no Livro de Tombo da Ordem, datado dos sculos XVIII e incio
do XIX, no qual analisamos a evoluo da perda patrimonial dos religiosos.
No tocante documentao alusiva ao perodo da restaurao
carmelita, consultamos as correspondncias enviadas entre os reformadores
carmelitas do Recife e os frades da provncia espanhola. A maioria das cartas foi 31 AZZI, Riolando. A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos. So Paulo:Ed.Paulinas, 1983. p.7
24
escrita por Fr. Andr Prat, considerado um dos principais intelectuais da reforma do
Carmo, e nelas podemos analisar as principais estratgias adotadas pelos frades
para reorganizar o seu instituto monstico. Ao mesmo tempo, em sua
correspondncia, o dito clrigo relatou o cotidiano dos frades frente s dificuldades
geradas para o processo de adaptao dos reformadores.
Outra fonte documental importante para o entendimento do perodo de
restaurao foi o Livro de Tombo da ordem, datado do incio do sculo XX, no qual
encontramos referncias alusivas ao comportamento dos regulares diante das novas
relaes sociais surgidas com a Proclamao da Repblica. O acesso a essa
documentao reforou a nossa tese sobre o interesse e a participao das elites
urbanas e governamentais na restaurao do Carmo. Paralelamente, tambm
verificamos que o episcopado pernambucano serviu como mediador desse processo.
A nossa hiptese foi reforada quando estudamos as reportagens, divulgadas tanto
pelo Dirio de Pernambuco quanto pelo Jornal do Comrcio, que propagavam o
empenho da sociedade em decretar Nossa Senhora do Carmo como padroeira do
Recife.
Gostaramos de enfatizar que as fontes que deram suporte documental
a esta tese no foram consideradas como reproduo exata da realidade mas
representaes elaboradas por determinados setores da sociedade em um
determinado contexto histrico. interessante ressaltar que, ao analisar a citada
documentao, tivemos o cuidado de refletir sobre as informaes registradas,
levando em considerao os seguintes aspectos: a origem das fontes, os objetivos e
condies de sua produo, o que relatavam e os interesses envolvidos.
Acreditamos que esses documentos devam ser questionados de acordo com a sua
especificidade e avaliados como caracterstica informativa de um determinado
perodo. Nessa perspectiva, as informaes contidas nos registros carmelitas foram
interpretadas como pistas para o maior entendimento da historiografia religiosa.
25
Assim sendo, corroboramos com Carlo Ginzburg quando afirma que o conhecimento
histrico indireto, indicirio e conjetural32.
Esta tese se divide em trs captulos. No primeiro, estudamos a fase de
maior crescimento poltico, econmico e social usufruda pela ordem do Carmo
desde a sua chegada ao Brasil em 1580. O apogeu carmelitano ocorreu,
aproximadamente, em meados do sculo XVIII, perodo em que os regulares j
haviam constitudo um considervel patrimnio financeiro e participavam ativamente
das atividades religiosas e sociais desempenhadas pela Igreja Catlica em seu
processo de fixao e expanso em nosso pas. Entretanto, foi nesse mesmo tempo
que ocorreu a crise da cristandade ocidental. Em vrios pases europeus,
propagavam-se as idias liberais e laicizantes favorveis diminuio do poder
institucional da Igreja crist. Imbudo pelas concepes regalistas da poca, o
Marqus de Pombal deliberou a expulso dos jesutas das possesses lusitanas, fato
que proporcionou uma grande modificao na estrutura organizacional da ordem
carmelita. Os frades que vivenciavam um perodo de grande desenvolvimento social
passaram, a partir da atitude tomada pelo ministro de D.Jos, a serem perseguidos
pelo governo portugus.
O estudo da poltica regalista de esvaziamento das antigas ordens
monsticas permitiu que entendssemos melhor a conjuntura poltica e econmica
em que se estabeleceu a decadncia dos carmelitas em Pernambuco. Esse declnio
foi examinado no decorrer do segundo captulo, no qual pudemos discorrer acerca
das transformaes sofridas pelos regulares do Carmo pernambucano ao longo do
sculo XIX. Para compreender a crise do carmelo brasileiro, achamos necessrio
analisar a situao de supresso que a ordem tambm presenciou na Europa e, a
partir da, entender porque os regulares, em Pernambuco, no receberam ajuda
institucional.
No ltimo captulo desta tese, abordamos a relao existente entre a
restaurao do Carmo pernambucano, iniciada em 1894, e as camadas sociais
32 GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.156-157.
26
dominantes. A reforma carmelita foi entendida como elemento fundamental para a
implementao do projeto de romanizao da Igreja catlica no Brasil e da
consolidao do Estado republicano. Desse modo, procuramos analisar a
participao dos intelectuais carmelitas nesse processo de reordenao da
sociedade pernambucana nos primeiros anos da Repblica.
De acordo com a proposta analisada acima, consideramos ser de
extrema importncia para a construo de nosso estudo a abordagem do contexto
histrico vivenciado pelos carmelitas, em Pernambuco, desde o perodo de apogeu
da Ordem, em meados do sculo XVIII, at a sua posterior restaurao realizada no
final do sculo XIX, o que insere este trabalho no que alguns historiadores
denominam de longa durao, conceito elaborado por Fernand Braudel e analisado
em sua obra, O Mediterrneo e o mundo mediterrnico33, que afirma que os
fenmenos duram sculos e, por isso, os seus movimentos s so percebidos se o
campo cronolgico de observao for aumentado. Foi justamente nessa perspectiva
levantada por Braudel que optamos iniciar a nossa pesquisa sobre os carmelitas a
partir de meados do sculo XVIII. Acreditamos que, para compreender as
transformaes econmicas, polticas e sociais sofridas pelo carmelo pernambucano
no decorrer do sculo XIX e incio do sculo XX, seria necessrio abordar a
conjuntura poltica que proporcionou a decadncia dos religiosos. Diante desse
objetivo, tornou-se imprescindvel examinar os fatores que desencadearam esse
processo de declnio e, portanto, optamos por iniciar a nossa pesquisa a partir da
perseguio perpetrada pelo Marqus de Pombal s antigas ordens monsticas
fixadas nos domnios portugueses. A partir dessa percepo, pudemos nos dedicar,
de forma especial, ao perodo que vai desde o estabelecimento do Alvar de 1855
at o final do provincialato de Fr. Andr Prat, em Recife, no ano de 1923.
Enfim, gostaramos de enfatizar que acreditamos que qualquer anlise
ou explicao de um fato histrico, por mais abrangente e completo que pretenda
ser, no conseguir contemplar integralmente o objeto que se deseja explicitar. Com 33 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrneo e o mundo mediterrnico. Lisboa: Livraria Martins Fontes, v.1 e II, 1984. p.118
27
isso, buscamos esclarecer que a nossa inteno, ao trabalhar com a decadncia e
restaurao do Carmo em Pernambuco, foi a de trazer uma nova perspectiva
histrica em relao participao das antigas ordens religiosas na formao da
sociedade brasileira e, assim, fornecer novos elementos para a construo de uma
anlise mais aprofundada sobre a historiografia religiosa no Brasil.
28
CAPTULO 1: Fixao e Expanso Carmelita em
Pernambuco
29
1.1. Fundao do carmo brasileiro
A historiografia brasileira contempla vrios trabalhos concernentes a
instalao dos jesutas, beneditinos e franciscanos no Brasil. Contudo, percebemos
uma escassez bibliogrfica alusiva a participao dos carmelitas na construo
social de Pernambuco. Nessa perspectiva, para compreender a decadncia e
restaurao do Carmo em Pernambuco, acreditamos ser necessrio explicar como e
porque ocorreu a fixao e expanso dos carmelitas em nossa regio, e a partir da,
analisar os conflitos polticos e sociais que ocasionaram no declnio da ordem34.
Com a finalidade de reforar a expanso do catolicismo, o Estado
Portugus, juntamente com a Santa S, estimulou a vinda das antigas ordens
religiosas ao Brasil. A chegada dos jesutas, franciscanos, carmelitas e beneditinos,
no decorrer do sculo XVI, trouxe, para a Igreja, um maior grau de organizao,
independncia e disciplina. Esses religiosos estavam comprometidos com o
processo de evangelizao e doutrinao das prticas catlicas. Como se sabe, os
franciscanos foram os primeiros religiosos a desembarcarem em terras brasileiras,
porm a primeira ordem religiosa que veio ao Brasil com a inteno de catequizar e
estruturar instituies de ensino foi a Companhia de Jesus.
Na colnia portuguesa, a evangelizao e a catequese sistemticas se
iniciaram no ano de 1549, com a chegada dos primeiros padres jesutas liderados
por Manuel da Nbrega. Os jesutas influenciaram os assuntos ligados catequese
e educao e contriburam com a fundao de algumas cidades coloniais. Todo
esse empenho dos religiosos resultou na construo dos primeiros colgios
jesuticos do Brasil, no sculo XVI, situados na Bahia, Vitria, So Vicente, Olinda e
Rio de Janeiro.
34 Gostaramos de enfatizar que o objetivo de nossa pesquisa trabalhar a decadncia e restaurao do carmo, entre os anos de 1759 e 1923. Portanto, no vamos aprofundar o assunto sobre a chegada e expanso do Carmo, no Brasil. Esse tema foi trabalhado em nossa dissertao intitulada Carmelitas em Pernambuco: Fixao e Expanso. In: ARAUJO, Maria das Graas Souza Aires. op.cit.
30
Essas instituies de ensino representavam a principal modalidade
educacional do pas e se destinaram tanto preparao de candidatos ao ministrio
presbiteral como formao intelectual da elite. Ofereciam quatro estgios de
estudos sucessivos: o curso Elementar, o de Humanidades, o de Artes e o de
Teologia, este ltimo voltado para os clrigos. Geralmente, funcionavam de segunda
a sbado e seguiam o modelo das entidades educacionais jesuticas europias35.
Dando continuidade s suas atividades educacionais, na primeira
metade do sculo XVIII, os jesutas passaram a estabelecer seminrios
especificamente eclesisticos com o intuito de formar o seu clero. Essa atitude
estimulou tambm a fundao de seminrios diocesanos que aumentou o nmero de
seculares no Brasil e melhorou a sua formao36.
A dependncia dessas instituies de ensino em relao aos jesutas
era to decisiva que quase todos os seus seminrios foram fechados aps a
expulso desses religiosos do Brasil, em 1759, desencadeando um processo de
declnio na formao do clero. Nesse meio, o nico seminrio diocesano que restou
na colnia foi o do Rio de Janeiro37.
A ordem jesutica, ao contrrio das outras ordens religiosas, manteve
um contato direto com a Santa S. Essa relao permitiu aos regulares usufrurem
uma certa autonomia no Estado Portugus que, contudo, ao longo dos sculos XVII
e XVIII, passou a cercear a sua influncia nos agrupamentos indgenas. A
Companhia de Jesus alm de possuir privilgios nas esferas pedaggica e
missionria, conferidos pela Santa S e reconhecidos pelos reis portugueses,
tambm se tornou uma das instituies religiosas mais ricas da Amrica Portuguesa.
A ordem dos jesutas acumulou, at meados do sculo XVIII, um vasto patrimnio
adquirido atravs de doaes e privilgios, constitudo por sesmarias, propriedades
urbanas, fazendas de gado, engenhos e escravos africanos. Para se ter uma idia da
influncia dos inacianos na colnia, basta enfatizar que quase todas as suas
35 CASALI, Alpio. Op.cit. p. 45 36 Ibidem, p.45 37 Ibidem, p.47
31
instituies de ensino se sustentaram mediante a administrao de fazendas e
engenhos adquiridos atravs de dotaes.
At o ano de 1580, os jesutas tiveram exclusividade na prtica religiosa
do Brasil como missionrios "oficiais" do governo portugus. A partir dessa data,
ocorreu a unio entre a Coroa lusitana e espanhola (1580-1640), estimulando o
ingresso de novos institutos religiosos na colnia. Alm da forte ao missionria, no
decurso do sculo XVI, outras ordens religiosas, como a dos franciscanos, carmelitas
e beneditinos, atuaram na evangelizao colonial. Esses institutos religiosos tiveram
seus principais conventos situados nos grandes centros econmicos da colnia. Para
estimular a vinda desses clrigos, a Coroa lhes concedeu privilgios e doaes de
terras, principalmente nas provncias do Norte. A participao dos regulares nos
problemas educacionais e evangelizadores da colnia atenuou o trabalho dos
clrigos seculares e reforou o desenvolvimento da colonizao brasileira38.
O trabalho sistemtico da ordem franciscana s se iniciou a partir de
1585, quando Frei Melchior de Santa Catarina fundou, em Pernambuco, a primeira
Custdia no Brasil. Ainda no final do sculo XVI, foram institudos, na regio
nordeste, quatro conventos franciscanos em Salvador, em Igarassu, na Paraba e em
Vitria39.
Por volta de 1767, a ordem franciscana atingiu seu apogeu no Brasil
com cerca de mil religiosos. O convento franciscano de Olinda foi o centro de
formao filosfico-teolgico para os religiosos que no realizaram seus estudos em
Portugal. Os frades se destacaram no processo de povoamento e ocupao do litoral
nordestino, atravs das Bandeiras e de outras expedies da poca. Geralmente,
uniam-se aos senhores de engenho, rezando missas em suas fazendas ou
abenoando as moendas de acar40.
38AZZI, Riolando (org.). A Vida Religiosa no Brasil: enfoques histricos. So Paulo: Ed.Paulinas, 1983.Op.cit. p.12 39 LACOMBE, Amrico Jacobina. A Igreja no Brasil Colonial". (Livro segundo. Vida Espiritual. Cap.I). In: HOLANDA, Srgio Buarque de (dir.). Histria geral da civilizao brasileira. Tomo I/2vol.: A poca Colonial. Administrao, Economia e Sociedade. 7.ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1993. p.72 40 PRIORE, Mary Del. Religio e religiosidade no Brasil colonial. Histria em movimento. Coordenao da srie: Francisco M.P.Teixeira. So Paulo: Ed. tica, 1994. p.13
32
Outra importante ordem religiosa que se instalou em terras brasileiras
no final do sculo XVI foi a dos beneditinos. Mais dedicados vida contemplativa e
menos interessados na catequese, os frades desembarcaram em Salvador, no ano
de 1581, onde constituram o primeiro mosteiro da ordem na Amrica.
Posteriormente, esses religiosos iniciaram seu processo de expanso na colnia
fundando conventos em Pernambuco41, So Paulo, na Paraba e no Rio de Janeiro.
A invaso dos holandeses, em meados do sculo XVII, dificultou a ao religiosa dos
regulares em Pernambuco e na Bahia. S aps a expulso dos invasores, em 1654,
os frades conseguiram restabelecer o seu trabalho. Nessa poca, os beneditinos
principiaram os seus estudos de filosofia e de teologia na Bahia, organizando a
primeira casa de estudos superiores da provncia42.
A chegada dos carmelitas no territrio brasileiro remonta ao ano de 1580, quando o primeiro grupo de frades desembarcou na vila de Olinda. Eles vieram
ao Brasil a pedido do cardeal D.Henrique que solicitou, ao vigrio provincial dos
carmelitas em Portugal, Fr. Joo Caiado, o apoio dos religiosos para que estes
acompanhassem uma expedio comandada por Frutuoso Barbosa, fidalgo da Casa
Real, tendo em vista a povoao da Paraba. Havia uma grande preocupao do
governo portugus em povoar a sua nova colnia e, para tal empreendimento, era
necessrio o apoio da Igreja Catlica que deveria atuar na converso do gentio e na
propagao do cristianismo43.
Com esse intuito, Fr. Joo Caiado atendeu solicitao do cardeal
D.Henrique e enviou, para o Brasil, quatro religiosos carmelitas: Fr. Domingos Freire,
Fr. Alberto de Santa Maria, Fr. Bernardo Pimentel e Fr. Antnio Pinheiro. O principal
objetivo dos frades era fundar uma provncia carmelitana em terras americanas e
41 Idem. p.170. Os beneditinos vieram a Pernambuco, no ano de 1592, mediante solicitao do donatrio Jorge de Albuquerque Coelho, onde primeiramente residiram na igreja de S. Joo de Olinda e, depois, na igreja de Nossa senhora do Monte. 42 AZZI,Riolando. "A Instituio eclesistica durante a primeira poca colonial". (Cap.II: o Padroado Portugus). Op.cit.p.213 43 SMET, Joaqun. O.Carm.Los Carmelitas. Historia de la Ordem del Carmen. Las reformas. Personas, literatura, arte (1563-1750). Tomo III. Traduccion y Preparacion de la edicion espaola por Antonio Ruiz Molina, O. Carm. Biblioteca de Autores Cristianos. 1991. p.17
33
abrir um noviciado da ordem na povoao da Paraba. Entretanto, partindo de
Lisboa, em 31 de janeiro de 1580, a expedio de Frutuoso Barbosa foi um fracasso
devido a fortes tempestades que dispersaram as embarcaes. Com essas
intempries, os regulares foram obrigados a se estabelecerem em Pernambuco,
enquanto o capito retornou a Portugal44.
O donatrio da Capitania de Pernambuco, nesse perodo, era Jernimo
de Albuquerque que lhes fez doao de uma ermida dedicada a Santo Antnio e So
Gonalo. A inteno do administrador era incentivar a fixao dos religiosos em suas
terras, com o escopo de atuarem na colonizao e povoamento de Olinda. Para tal
empreendimento, era necessrio obter a autorizao do bispo do Brasil, D.Fr.
Antnio Barreiros. Este congratulou a chegada dos religiosos e apoiou a iniciativa do
Fr. Domingos Freire em encetar a expanso da ordem a partir da vila de Olinda. No
ano de 1588, os carmelitas iniciaram a construo de seu primeiro convento no
continente americano, financiado com recursos advindos do governador, da cmara
e do povo45.
Aps a fundao do convento de Olinda, os religiosos empreenderam novas construes em outras regies do Brasil. Seguiu-se, dessa forma, a edificao
dos templos de Salvador (1586), Santos (1589) e do Rio de Janeiro (1590)46. Em
1596, foram erigidos os conventos de So Paulo e da Paraba. Tambm, nesse
mesmo ano, abriu-se um curso de teologia, precedido do de humanidades, no
convento de Olinda. Nesta mesma instituio ocorreu a formao de novios e o
estudo da lngua indgena. Foi do convento olindense, casa central das misses, que
saram os primeiros missionrios carmelitanos para cristianizar os indgenas do
Maranho, Gro-Par e Amazonas47. A expanso carmelita foi to prspera que, no
44CARRETERO, Ismael Martnez, O.Carm. l Centenrio de La Restauracion Del Brasil (1894-1994). Atos Comemorativos. Ciclo de Conferncias. So Paulo e Recife, 1994. p. 164 45HOONAERT, Eduardo. A Evangelizao do Brasil Durante a Primeira poca Colonial. In: HOONAERT, Eduardo (coord.). Histria Geral da Igreja na Amrica Latina: Histria da Igreja no Brasil. Tomo II/1. 3 ed. Petrpolis: Vozes. So Paulo:Paulinas, 1983. p.56 46 CARRETERO, Ismael Martnez, O.Carm. Op.cit. p.164 47 PRAT, Fr. Andr, O.Carm. Notas Histricas sobre as Misses Carmelitanas no Extremo Norte do Brasil (Sculos XVII e XVIII). Tomo I. Recife. 1941. p.29
34
final do sculo XVI, foi criada uma vice-provncia carmelitana brasileira, dependente
da lusitana, composta pelos quatro conventos acima mencionados.
Dando continuidade ao processo expansionista, no decorrer do sculo
XVII, foram erguidos outros templos carmelitas, consolidando a efetiva participao
dos frades na formao social brasileira. Para poder vislumbrar esse crescimento,
interessante registrar o rpido aumento de religiosos no Brasil que, no ano de 1606,
j contabilizavam um total de 99, distribudos da seguinte forma: 30 em Olinda; 30 na
Bahia; 14 no Rio de Janeiro; 10 em Santos; 8 em So Paulo e 7 na Paraba48. Em
1635, existiam mais de 200 carmelitas em terras brasileiras49.
As principais atividades pastorais realizadas pelos regulares ao
chegarem ao Brasil foram a instruo, a assistncia espiritual e moral para a
populao e a propagao da devoo mariana. Ao mesmo tempo, os frades se
empenharam na evangelizao das comunidades indgenas fundando misses ao
longo do territrio brasileiro, principalmente no norte do pas50.
Com o final da Unio Ibrica, em 1640, os doze conventos instalados
na colnia brasileira se subdividiram em duas vice-provncias: a do Estado do Brasil,
com 9 conventos; e a do Estado do Maranho, j ento com 3 casas religiosas. A
partir desse perodo, os carmelitas comearam a solicitar que as vice-provncias
fossem elevadas categoria de provncias independentes de Portugal. Para tanto, os
frades alegaram que o carmelo brasileiro contava com nmero suficiente de
religiosos instrudos e experientes para garantir a sua administrao51. De acordo
48 AZZI, Riolando. A Instituio Eclesistica durante a primeira poca colonial. In: HOONAERT, Eduardo (coord.). Histria Geral da Igreja na Amrica Latina: Histria da Igreja no Brasil. op.cit. p.218 49 Idem, p. 164 50 Segundo Eduardo Hoonaert, aps a eliminao dos indgenas da faixa litornea, os carmelitas comearam a atuar no Maranho, onde foram considerados excelentes defensores das fronteiras do imprio portugus no interior do vale amaznico. No litoral, entretanto, perderam rapidamente o eln missionrio e ficaram dando "assistncia" aos moradores, aperfeioando seus conventos que so, ainda hoje, famosos. In: HOONAERT, Eduardo. A Evangelizao do Brasil Durante a Primeira poca Colonial. In: HOONAERT, Eduardo (coord.). Histria Geral da Igreja na Amrica Latina: Histria da Igreja no Brasil. Tomo II/1. 3 ed. Petrpolis: Vozes. So Paulo:Paulinas, 1983. p. 56 51WERMERS, Manuel Maria. Carmelita. A Ordem Carmelita e o Carmo em Portugal. Lisboa:Unio Grfica, 1963. p.227
35
com um levantamento feito em 1675, o nmero de religiosos na vice-provncia do
Brasil era de 186 e na vice-provncia do Maranho era de 60 frades.
Atravs desses dados estatsticos, percebe-se a rpida expanso
empreendida pelos religiosos na colnia brasileira. Tambm, observa-se a
preocupao dos regulares em se fixar nas principais regies econmicas do Brasil,
onde a populao mais abastada concedia esmolas e doaes para manuteno e
sustento dos frades. No decorrer do sculo XVII, a ordem foi constituindo um
volumoso patrimnio, composto por casas, templos religiosos, fazendas e engenhos,
por isso tornaram-se parcialmente independentes do governo lusitano.
A presena dos regulares foi marcante nos principais centros
econmicos da colnia, exceo feita ao territrio de Minas Gerais onde houve
restries por parte da Coroa. Geralmente, os regulares possuam uma formao
intelectual mais aprimorada que os seculares e, por isso, tornavam-se responsveis
pela divulgao da cultura entre a populao. Seus templos religiosos figuraram
como centros de saber e evangelizao e, em virtude disto, a sociedade exigiu do
governo portugus a vinda de novos regulares.
A fixao das ordens religiosas tambm incutiu adorao a diversos
santos com especial devoo. A ordem franciscana, por exemplo, inspirou culto a
S.Francisco de Assis, St.Clara, St.Antnio e S.Benedito. J os carmelitas
consagraram St.Elias e St.Teresa. Os beneditinos veneraram S.Bento, St.
Escolstica e S.Bernardo e a ordem jesutica reverenciou St.rsula. Alm de
contemplar os santos, os frades tambm incentivaram o culto da Virgem, que
assumiu diversos ttulos nos diferentes Institutos religiosos. Os mercedrios
dedicaram preito a N.S. das Mercs, os franciscanos a N.S.da Conceio e os
carmelitas a N.S.do Carmo52. Alm disso, a influncia das ordens sentida na
criao da Ordem Terceira do Escapulrio do Carmo, sob a inspirao dos
carmelitas, e da Ordem Terceira da Penitncia, sob a orientao franciscana.
52 Azzi, Riolando. Elementos para a histria do catolicismo popular. In: RTB, vol 36, fascculo 141, maro de 1976. p.111
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O crescimento do carmelo, em Pernambuco, tambm foi rpido e
prspero ao longo dos sculos XVI e XVII. Nessa poca, a ordem incentivou a
fundao de quatro templos religiosos situados nos principais locais de crescimento
econmico da regio. Depois de tecer algumas anlises sobre o desenvolvimento
dos carmelitas no Brasil, estudaremos como se efetivou o processo de fixao e
expanso da ordem em Pernambuco, procurando entender a relao existente entre
os frades e a sociedade colonial pernambucana. A percepo desse perodo
permitir uma maior compreenso de como ocorreu o movimento de decadncia dos
regulares em Pernambuco no final do sculo XVIII.
1.2. O Carmo Pernambucano
O Carmo de Olinda, bero da Ordem carmelitana no Brasil, teve sua construo iniciada no ano de 1588, na prpria localidade que servia de residncia
aos padres, junto capela de Santo Antnio e So Gonalo. A permisso para
construir um convento naquela regio fora obtida sob a condio de que as imagens
de Santo Antnio e So Gonalo ficassem situadas no altar-mor, ao lado da imagem
de Nossa Senhora do Carmo. Simultaneamente, ficou estabelecido que os carmelitas
deveriam celebrar, anualmente, uma missa cantada em homenagem a Santo
Antnio, considerado o orago do respectivo local. Por esse motivo, o templo passou
a ser denominado Convento de Santo Antnio e os seus respectivos doadores
conquistaram o direito de terem sepulturas na igreja do convento53.
De acordo com a documentao trabalhada nessa pesquisa, percebe-
se a riqueza decorativa das capelas no interior do convento. O templo do Carmo,
construdo com doaes e dinheiro dos prprios senhores de engenho da regio, era
considerado um dos monumentos mais ricos da poca. Um dos principais objetos de
decorao da Igreja era a famosa imagem de Nossa Senhora da Boa Morte,
encontrada submersa entre os arrecifes de Pernambuco. Em homenagem a santa, o 53 COSTA, F.A. Pereira da. A Ordem Carmelitana em Pernambuco. Prefcio de Mauro Mota. Recife:Arquivo Pblico Estadual, 1976. p.94
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capito Lus Pinho de Matos fundou a capela da Senhora da Boa Morte no interior
do templo54.
Gradativamente, o Carmo de Olinda teve sua estrutura arquitetnica
ampliada. A prpria sociedade cobrava e incentivava a vinda de eclesisticos e, por
isso, os carmelitas olindenses perceberam a sua influncia social e religiosa
aumentar. A vila de Olinda55, ao longo do sculo XVI, enobreceu-se com o
estabelecimento das principais ordens religiosas europias (franciscanos,
beneditinos, carmelitas e jesutas) que concorriam entre si disputando espao
territorial e temporal.
Do convento de Olinda, os frades partiram em busca de novos locais
para evangelizao. Alm da construo de igrejas e conventos, os carmelitas
fundaram vrios hospcios que serviram de hospedaria para os religiosos
trabalharem nas misses. Esses templos eram erguidos em locais estratgicos,
prximos aos aldeamentos carmelitas, e possuam uma grande importncia pois as
misses carmelitanas, ao contrrio das jesuticas, tinham um carter temporrio e,
por isso, era necessrio manter um ponto de apoio entre os aldeamentos e os seus
conventos56.
Contudo, mesmo com o crescimento obtido pelos regulares, no decorrer
do sculo XVI e incio do sculo XVII, o carmelo olindense sofreu uma grande perda
de poder poltico e econmico devido invaso dos holandeses em Pernambuco, no
ano de 1630. O Carmo de Olinda, dado o incndio ocorrido em 16 de fevereiro de
1631, foi reduzido a um tero de sua estrutura original. Faz-se importante mencionar
que a maioria dos templos catlicos olindenses foi transformada em estrebarias, pois
54 FREYRE, Gilberto. Olinda: 2 guia prtico, histrico e sentimental da cidade brasileira. 5 edio. Rio de janeiro: J. Olympio, 1980. p.71 55 De acordo com o cnego Jos do Carmo Baratta, Olinda, vila de mais de dois mil habitantes, com duas parquias, S. Salvador e S.Pedro, com setenta e duas ruas principais ocupando quase trs quartos de lguas, com um comrcio opulento, possua o colgio dos jesutas, onde os filhos dos habitantes recebiam a instruo primria e at secundria, os conventos de S.Francisco e de N.S. do Carmo, e o mosteiro de S.Bento, residindo, em todos eles, uns 130 religiosos, sacerdotes e leigos e um recolhimento de senhoras, o da Conceio, cuja casa primitiva fora cedida em 1585. In: BARATTA, Cnego Jos do Carmo. Op.cit. p.20 56 MELLO, Jos Aylton Coelho & SANTANA, Flvio Dionsio. Bero Carmelitano no Brasil. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. 1997.
38
os holandeses praticavam o protestantismo e, sendo assim, no veneravam os
templos e as imagens catlicos57.
Com a invaso, os religiosos do Carmo fugiram, abandonando o templo
carmelitano de Olinda, e foram se refugiar no convento da Bahia. Nessa sada, os
frades enterraram algumas imagens e levaram vrios objetos, j que tinham receio
de perder todo o seu patrimnio. Aqueles que permaneceram em Olinda ficaram
proibidos de celebrar missa ou quaisquer atos da cristandade. Foi apenas no ano de
1633, por solicitao de Matias de Albuquerque, que foi concluda uma conveno
com os comissrios holandeses estabelecendo algumas regras para a continuidade
da guerra. Entre os pontos firmados encontramos: no matar mais os prisioneiros,
no incendiar ou pilhar as igrejas ou imagens de santos e no maltratar os
eclesisticos como ocorria anteriormente.
Com a chegada do novo administrador, o conde Maurcio de Nassau,
em janeiro de 1637, os catlicos obtiveram uma certa liberdade religiosa. Os frades
puderam continuar suas atividades pastorais e, em virtude disto, muitos regulares
retornaram s suas casas em Olinda. Contudo, um ano depois de sua chegada, o
Conde foi pressionado pelos ministros protestantes a restringir as atividades dos
religiosos catlicos. Com isso, no ano de 1639, o governo holands proibiu a
realizao de procisses e determinou que as bnos dos engenhos fossem
realizadas pelos ministros luteranos. Tambm promoveu a interdio e qualquer
comunicao entre o clero catlico do Brasil holands e o da Bahia58. Alm disso,
Nassau ordenou que os regulares franciscanos, beneditinos, carmelitas e jesutas
fossem recolhidos durante o perodo de um ms, na ilha de Itamarac, pois foram
acusados de incitar a populao contra o governo holands.
Com a expulso dos holandeses em 1654, os clrigos puderam
reconstruir os seus templos religiosos e reiniciar seus trabalhos em Olinda, Recife e
nas parquias do interior. No entanto, a invaso holandesa trouxe algumas
modificaes para a Ordem Carmelita. O Carmo de Olinda, aps a sada dos
57 BARATTA, Cnego Jos do Carmo. Op.cit. p. 26 58 BARATTA, Cnego Jos do Carmo. Op.cit. p. 28.
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holandeses, no conseguiu mais adquirir o poder poltico e social que usufrua, pois,
gradualmente, estava perdendo territrio para os carmelitas da Bahia que, ao longo
do perodo holands, ficaram responsveis pela administrao geral do Carmo no
Brasil. Assim sendo, os recursos advindos da Bahia, para ajudar na sustentao dos
frades, diminuam cotidianamente e, dessa forma, os regulares necessitaram de mais
auxlio da prpria populao.
A influncia dos frades carmelitas na sociedade olindense era to forte
que as famlias mais abastadas doavam parte de seus bens aos irmos em troca da
celebrao de missas pelas suas almas e de seus familiares. Em certas ocasies, o
prprio doador escolhia o local de celebrao das missas, que poderia ser as
capelas de seus engenhos ou as igrejas dos prprios conventos. Alm disso, era
muito comum a prtica de doaes para a ornamentao de determinados locais
pios, haja vista a grande preocupao com a aparncia das capelas no interior dos
templos. Normalmente, cada capela possua um patrono responsvel pela sua
instituio e manuteno. A decorao e a suntuosidade estampadas nesses locais
simbolizavam o poder econmico e poltico de seu fundador. Havia, inclusive, uma
certa rivalidade entre os instituidores que objetivavam mostrar quem era detentor de
maior riqueza.
No obstante ao fato de que a populao apoiava a fixao dos
religiosos em Olinda e os ajudava financeiramente, os carmelitas enfrentavam um
problema no interior da Ordem: o aumento das obrigaes religiosas e a diminuio
do nmero de frades, em meados do sculo XVII, obrigaram os regulares a reduzir a
quantidade de encargos religiosos. Essa situao ocorreu porque, aps a expulso
dos holandeses, um grupo de carmelitas passou a organizar um movimento para a
construo de um templo carmelitano no Recife, cidade com uma situao
geogrfica mais privilegiada em meio ao porto e casa da Alfndega. Alm disso, na
poca da invaso holandesa, o Recife se transformou na sede do governo holands
e, por isso, teve um grande desenvolvimento poltico e econmico. Aps a sada dos
invasores, muitos religiosos e comerciantes preferiram Recife a Olinda para morar.
Essa situao ocasionou um forte desentendimento no carmelo pernambucano, pois
40
havia um grupo desejoso em continuar morando em Recife, ao contrrio dos
carmelitas olindenses que acharam precipitada a fundao de um outro templo em
Pernambuco.
1.2.1. Expanso carmelita no Recife
Com a sada dos holandeses de Pernambuco, em 1654, a Cmara do Senado de Olinda doou, para residncia dos carmelitas, uma casa - localizada na
freguesia de Santo Antnio do Recife - que funcionou como um ponto de apoio
denominado hospcio59. Aps alguns anos morando nesse edifcio, os frades
resolveram fundar um convento com o apoio da sociedade recifense, entretanto a
Cmara olindense se ops a este objetivo e enviou uma carta ao Estado Portugus
alegando que os frades do Carmo desejavam arruinar e despovoar o convento de
Olinda.
Nesse perodo, o templo se encontrava abandonado e parcialmente
destrudo, o que significava um grande prejuzo temporal e espiritual para a
sociedade. Alm disso, os regulares j possuam tarefas para desempenharem em
Olinda, como a celebrao de missas, festas religiosas e sufrgios e, por isso,
ficavam impossibilitados de assumir tantos trabalhos. Sendo assim, a Cmara de
Olinda declarou que seria uma grande perda para a localidade a sada dos frades
para o novo templo60. Em carta rgia de 19 de dezembro de 1672, el-Rei respondeu
que concordava com o Senado de Olinda e proibiu a fundao de um novo templo no
Recife61.
No ano de 1675, os frades, insatisfeitos com a resoluo do Conselho
Ultramarino, enviaram uma petio ao el-Rei. Nesse documento, os religiosos
59 Flvio Guerra relata que, em poca no precisada, porm que se determina como sendo antes de 1675, foi feita aos religiosos carmelitas a doao do antigo palcio de Nassau situado na Boa Vista. Segundo consta, o imvel estava em runas, mas serviria para o estabelecimento de um hospcio e uma capela na banda do Recife. In: GUERRA, Flvio. Velhas Igrejas e Subrbios Histricos. Recife:Edio da Fundao Guararapes. 1979. p. 133 60 LAPEH - AHU., Cx. 6,fl. 37 (28.11.1672). 61 LAPEH - AHU., Cdice 276, fl. 76v. (19.12.1672).
41
argumentaram que j residiam na Boa Vista h sete anos e, por isso, desejavam
ampliar o edifcio. Entretanto, mais uma vez o pedido foi negado e o Conselho
ordenou o retorno dos religiosos a Olinda62.
Inconformados com a negativa da Coroa Portuguesa, os frades
resolveram continuar na vila sob suas prprias expensas. E, nesse meio, mais uma
vez a cmara escreveu para el-Rei relatando:
"os frades se meteram na casa de um morador conhecido como
Miguel do Valle, a quem expulsaram fora dela, levantando altar e pondo sacra com muita incidncia, chegando o negcio ao termo, que para os obrigarem a largar a casa, fora necessrio pr nela cerco de infantaria"63.
Tomando conhecimento dessa atitude contestatria dos religiosos, os
oficiais da Cmara de Olinda convocaram o vigrio geral da capitania e, juntos, foram
at a povoao do Recife solicitar uma atitude do governador, Dom Francisco de
Almeida, contra a rebeldia dos regulares64. Assim sendo, as autoridades ordenaram
a imediata retirada dos religiosos da localidade e pediram a volta de todos ao
convento de Olinda.
Em carta rgia de 9 de novembro de 1676, el-Rei ordenou, ao
governador Andr Vidal de Negreiros, que impedisse os frades em sua tentativa de
erguer uma nova estrutura carmelitana. Tambm fora estabelecido, atravs de uma
Proviso rgia datada de 1677, que todos os regulares que tivessem um convento
em Olinda deveriam retornar a esta vila. Porm, caso s possussem templo na vila
do Recife, teriam permisso de continuar residindo nesse local. Se porventura, os
regulares no cumprissem essa norma, ficariam sem receber suas ordinrias65. O
Conselho Ultramarino queria, assim, o restabelecimento e reconstruo das
estruturas religiosas de Olinda incendiadas pelos holandeses.
62 LAPEH - AHU - Cdice 93 - Registro de Provises 1669-1687. 63 COSTA,F.A. Pereira da. Op.cit.p.119. 64 LAPEH - AHU, PE, Cx.6, n. 125 e 126 (09.12.1675). 65 LAPEH - AHU, PE, Cx.6, n. 125 e 126 (09.12.1675).
42
A 5 de maio de 1679, mesmo contrariando o posicionamento da
Cmara de Olinda, o governador Aires de Castro lavrou uma carta de sesmaria onde
doou, aos carmelitas, uma data de terras para a melhoria das condies de
habitao dos religiosos66 e o fortalecimento da religio catlica no Recife. Essas
terras67 se achavam livres e isentas de tributos, foro ou penso alguma e os padres
tinham a obrigao de deixar o Conselho examinar suas tarefas quando desejasse.
Dessa forma, surgiu o Carmo Velho e a capelinha anexa, sob a
invocao de N.S. do Desterro, tudo dentro de um vasto coqueiral ao lado de uma
senzala. Para conseguir fundar essa estrutura arquitetnica, os carmelitas
convidaram pessoas influentes da sociedade para se tornarem patronos de suas
capelas. Foi o caso, por exemplo, do capito Diogo Cavalcanti de Vasconcelos, rico
proprietrio em Goiana - casado com a irm de Andr Vidal de Negreiros e devoto de
N.S. do Carmo - que props, aos frades carmelitas, a construo de uma capela-mor
no convento. Com essa edificao, custeada com recursos prprios, Diogo
Cavalcanti solicitou que ele e sua esposa fossem sepultados aos ps do altar-mor.
Nessa poca, comumente, o patrono de uma capela e a sua famlia eram enterrados
no prprio templo68. Alm disso, o dito proprietrio ficou responsvel pela
66 Os carmelitas, atravs de uma petio elaborada pelo Fr. Cristvo de Cristo e mais religiosos do hospcio de N.S. do Carmo da povoao do Recife, solicitaram aos oficiais da Cmara mais terras, uma vez que viviam em desconforto, em meio mar, e precisavam fazer oficinas e quintais para seu sustento. 67Segundo Flvio Guerra: Esclarece-se, assim, que o convento dos carmelitas no Recife e respectiva Igreja, foram fundados inicialmente nas runas do antigo palcio da Boa Vista, construdo por Maurcio de Nassau, estendendo-se aps por mais uma "grande data de terras salgadas doadas aos religiosos"pelo governador Aires de Sousa e Castro. In: GUERRA, Flvio. Op.cit.p. 134 68 Em relao ao sepultamento nas igrejas, a legislao eclesistica proibia a venda de qualquer parte dos templos religiosos, mesmo que fosse destinada a obteno de jazigos. O espao das igrejas, capelas e cemitrios eram considerados sagrados e, por isso, os religiosos eram proibidos de cobrar algum dinheiro pela sepultura. Eles podiam aceitar ajuda financeira, em forma de esmola, que seria utilizada para a construo e manuteno do local. Normalmente, era o que ocorria quando os cristos obtinham licena para construir seu prprio jazigo. In: VIDE, Sebastio Monteiro da. Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustrssimo e Reverendssimo Senhor D. Sebastio Monteiro da Vide, 5 Arcebispo do Dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade: Propostas e aceitas em o snodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. So Paulo: Tipografia 2 de dezembro de Antnio Louzada Antunes, 1853.
43
organizao e conservao da capela, onde instalou alfaias de ouro e prata e
cadeiras de couro69.
Aps a fundao dessa ermida, Diogo Cavalcanti legou grande parte de
seus bens para a manuteno do templo, pois, somente em 1687, el-Rei D.Pedro II
concedeu uma licena para funcionamento do convento do Recife como asilo
prprio. At esse perodo, os regulares no receberam nem patrimnio e nem
cngruas para o seu sustento. As obras da reforma continuaram lentas at o ano de
1690, quando foram ativadas na administrao do padre Fr. Joo de So Jos,
tambm conhecido como comissrio da Reforma Turonense70 em Pernambuco71. O
religioso pretendia tomar posse do templo carmelitano do Recife, com o objetivo de
iniciar, nessa localidade, o movimento reformista institudo no Carmo de Goiana.
interessante observar a situao de dependncia financeira que os
frades do Recife ainda conservavam em relao ao governo lusitano, j que as
cngruas recebidas pelos carmelitas olindenses eram investidas na reconstruo do
convento de Olinda. Os prprios carmelitas residentes em Olinda no conseguiram
empreender grandes esforos em construir o Carmo do Recife, pois no contavam
com nmero suficiente de religiosos para trabalhar nos dois conventos. Por isso
desejavam o apoio do governo incitando a vinda de religiosos e o aumento de suas
ordinrias72.
Paulatinamente, o templo carmelitano do Recife foi construdo com o
apoio da populao e dos regulares. Os entraves ocorridos desde o incio de sua
fundao representaram uma tentativa da Cmara de Olinda em continuar
centralizando a administrao da Capitania de Pernambuco, uma vez que, cada ve
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