CIP-Brasil. Catalogao na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.
Camus, Albert, 1913-1960
A queda I Albert Camus: traduo de Valerie Rumjanek - RIO de Janeiro:
Best Bolso, 2007.
Traduo de: La chute
ISBN 978-85-7799-008-5
07-2917
CDD- 848
CDU - 821.l33.1-8
I. Literatura francesa. I. Rumjanek, Valerie. 11. Ttulo.
A queda, de autoria de Albert Camus.
Ttulo nmero 009 das Edies Best Bolso.
Ttulo original francs:
LA CHUTE
Copyright 1956 by ditions Gallimard. .
Copyright da traduo by Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A.
Direitos de reproduo da traduo cedidos para Edies Best Bolso, um selo da
Editora Best Seller Ltda. Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A. e
Editora Best Seller Ltda. so empresas do Grupo Editorial Record.
www.record.com-br
Ilustrao e design de capa: Pedro Meyer Barreto
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1
Meu senhor, posso oferecer-lhe meus prstimos, sem correr o risco de ser inoportuno? Receio
que no se consiga fazer entender pelo amvel gorila que preside os destinos deste
estabelecimento. Na verdade, ele s fala holands. A no ser que me autorize a defender sua
causa, ele no adivinhar que est pedindo genebra. Olhe, ouso acreditar que me tenha
compreendido: este aceno deve significar que ele se rende aos meus argumentos. De fato, l vai
ele, apressa-se com uma sbia lentido. O senhor est com sorte - ele nem resmungou. Quando
se recusa a servir algum, basta-lhe um grunhido: ningum insiste. Ser senhor do prprio estado
de esprito privilgio dos grandes animais, Mas eu me retiro, meu caro senhor, feliz por lhe ter
prestado um servio. Sou-lhe muito grato e aceitaria, com todo prazer, se estivesse certo de no
bancar o intrometido. muita bondade sua. Ento, vou colocar meu copo junto ao seu.
Tem toda razo, o mutismo dele ensurdecedor. o silncio das florestas primitivas, to
pesado que sufoca. s vezes, eu me surpreendo com o obstinado desdm que o nosso taciturno
amigo demonstra pelas lnguas civilizadas. Seu trabalho atender a marinheiros de todas as
nacionalidades neste bar de Amsterd, a que deu o nome, ningum sabe bem o motivo, de
Mexico-City. No acha, meu caro senhor, que esses deveres acabam levando sua ignorncia a se
tornar incmoda? Imagine o homem de Cro-Magnon hospedado na Torre de Babel! No mnimo,
sofreria uma sensao de desterro. Mas no, este no sente o exlio, segue seu caminho, nada o
atrapalha. Uma das raras frases que ouvi de sua boca proclamava que era "pegar ou largar". Pegar
ou largar o qu? Sem dvida, ele prprio, nosso amigo. Vou fazer-lhe uma confidncia: sinto-me
atrado por essas criaturas granticas. Quando pensamos muito sobre o homem, por trabalho ou
vocao, s vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes no tinham segundas intenes.
Nosso anfitrio, na realidade, tem algumas idias, embora as alimente de modo obscuro.
Por no compreender o que se diz em sua presena, assumiu um carter desconfiado. Da esse ar
de sombria gravidade, como se suspeitasse, no mnimo, que h algo de errado entre os homens.
Esse estado de esprito torna mais difceis as discusses que no dizem respeito a seu trabalho.
Veja, por exemplo, acima de sua cabea, na parede do fundo, aquele retngulo vazio que marca o
lugar de um quadro retirado. Com efeito, l havia um quadro particularmente interessante, uma
verdadeira obra-prima. Pois bem, eu estava presente quando o mestre-de-cerimnias o recebeu e
quando ele o cedeu. Nas duas ocasies, teve a mesma desconfiana, depois de passar algumas
semanas refletindo. Quanto a isso, preciso reconhecer - a sociedade arranhou-lhe um pouco a
franca simplicidade de temperamento.
Note bem que no o estou julgando. Acho que sua desconfiana tem fundamento e dela
compartilharia de bom grado se, como o senhor est vendo, meu temperamento comunicativo
no o impedisse. , mas pobre de mim, sou muito loquaz - e me relaciono com facilidade.
Embora eu saiba manter as distncias convenientes, todas as ocasies me so propcias. Quando
eu vivia na Frana, no podia encontrar um homem espirituoso sem que logo fizesse amizade.
Ah, vejo que implica com esse imperfeito do subjuntivo. Confesso minha fraqueza por esse
tempo verbal e pelo belo linguajar em geral. Mas pode acreditar - uma fraqueza pela qual me
recrimino. Bem sei que o gosto por finas roupas brancas no pressupe obrigatoriamente que se
tenham os ps sujos. Ainda assim. O estilo, como a popeline, dissimula muitas vezes o eczema.
Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal, aqueles que falam de maneira ininteligvel
tambm no so puros. Bem, mas voltemos nossa genebra.
Vai ficar muito tempo em Amsterd? Bela cidade, no? Fascinante, concorda? Eis um
adjetivo que no ouo h muito tempo. Exatamente desde que sa de Paris, j faz muitos anos.
Mas o corao tem memria e eu nada esqueci de nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris
uma verdadeira iluso de tica, um magnfico cenrio habitado por quatro milhes de silhuetas.
Ou quase cinco milhes, segundo o ltimo recenseamento? Bem, eles devem ter feito filhos. No
me surpreenderia. Sempre me pareceu que nossos concidados tinham duas paixes
desenfreadas: as idias e a fornicao. A torto e a direito, por assim dizer. Alis, tentemos no
conden-los: no so os nicos, isso ocorre em toda a Europa. s vezes, imagino o que diro de
ns os historiadores do futuro. Duas idias lhes bastaro para definir o homem moderno:
fornicava e lia jornais. Depois dessa forte definio, o assunto ficar, se assim posso me
expressar, esgotado.
Os holandeses - Oh, no, estes so muito menos modernos! Tm todo o tempo - olhe s
para eles. Que fazem? Pois bem, esses senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. Alis, tanto
os machos quanto as fmeas so criaturas extremamente burguesas, que aqui vm, como de
costume, por mitomania ou burrice. Em resumo: por excesso ou falta de imaginao. De vez em
quando, estes senhores brincam de faca ou de revlver, mas no acredite que se empenhem
muito. O papel o exige - nada mais e eles morrem de medo ao disparar os ltimos cartuchos.
Dito isto, acho que so mais morais do que os outros, os que matam em famlia, pelo desgaste.
Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidao?
Naturalmente, j deve ter ouvido falar dos minsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram
aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas
mordidas rpidas, deixando apenas um esqueleto imaculado. Pois bem, esta a organizao deles.
"Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo?" claro que a resposta sim. Como dizer no?
"Est bem. Pois vamos limp-lo. Pegue a um emprego, uma famlia, frias organizadas." E os
pequenos dentes cravam-se na carne at os ossos. Mas estou sendo injusto. No se deve dizer
que a organizao deles. Ela nossa. Afinal de contas, o caso de saber quem vai limpar o
outro.
Finalmente, trazem nossa genebra. sua prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me
chamar de doutor. Nesta terra, todo mundo doutor ou professor. Gostam de mostrar-se
respeitosos, por bondade e por modstia. Entre eles, pelo menos, a maldade no uma
instituio nacional. Alm disso, no sou mdico. Se quer mesmo saber, eu era advogado antes de
vir para c. Agora, sou juiz-penitente.
Mas permita que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. um prazer
conhec-lo. Sem dvida, deve ser um homem de negcios, no ? Mais ou menos? Excelente
resposta! E tambm judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas as coisas. Vejamos,
deixe-me bancar o detetive. Tem mais ou menos minha idade, o olhar esclarecido dos quarentes
que j fizeram de tudo um pouco. Est mais ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas
se trajam em nosso pas, e tem as mos finas. Portanto, mais ou menos um burgus! Mas um
burgus requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra
duplamente sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a seguir, eles o
irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte, pressupe no senhor uma certa
abertura de esprito. O senhor , portanto, mais ou menos ... Mas que importa? As profisses me
interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faa duas perguntas, e s me responda se
no as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? No.
, portanto, o que chamo um saduceu. Se no tem familiaridade com as Escrituras, reconheo
que no lhe adiantar muito. Adianta? Ento conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me
interessa.
Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo. Pela estatura, pelos ombros e por este rosto
que tantas vezes me disseram ser feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de rgbi que outra
coisa, no ? Mas, a julgar pela conversa, preciso conceder-me um pouco de refinamento. O
camelo que forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dvida, de sarna; em compensao,
tenho as unhas tratadas. Eu tambm sou esclarecido e, no entanto, estou me abrindo com o
senhor sem precaues, baseado unicamente em sua aparncia. Enfim, apesar de minhas boas
maneiras e de meu belo linguajar, sou um freqentador assduo dos bares de marinheiros do
Zeedijk. Mas chega, no procure mais. Meu trabalho duplo - eis tudo - como a criatura. J lhe
disse, sou juiz-penitente. A nica coisa simples no meu caso que nada tenho. Sim, fui rico; no,
nada reparti com os outros. O que prova isso? Que eu tambm era um saduceu ... Oh! Est
ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver neblina sobre o Zuyderzee.
J vai embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, no pagar nada. Est em minha
casa no Mexico-City e tive imenso prazer em receb-lo. Amanh, certamente estarei aqui, como
nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu convite. Seu caminho ... Bem ... Mas, se no v
nenhum inconveniente, seria mais simples acompanh-lo at o porto. De l, contornando o
bairro judeu, encontrar as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de
nmeros tonitruantes. Seu hotel certamente fica em uma dessas avenidas, no Damrak. Tenha a
bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim
chamado at o momento em que nossos irmos hitlerianos abriram espao. Que limpeza! Setenta
e cinco mil judeus deportados ou assassinados _ a limpeza pelo vcuo. Admiro esta aplicao,
esta pacincia metdica! Quando no se tem carter, preciso mesmo valer-se de um mtodo.
Nesse caso, ele fez milagres, sem dvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos
maiores crimes da histria. Talvez seja isso que me ajude a compreender o gorila e sua
desconfiana. Desse modo, posso lutar contra essa tendncia de temperamento que me inclina de
modo irresistvel simpatia. Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme.
"Devagar. Perigo!" Mesmo quando a simpatia intensa, tenho cautela.
Sabe que em minha pequena aldeia, em uma ao de represlia, um oficial alemo pediu
delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que
seria fuzilado? Escolher, j imaginou? Aquele? No, este aqui. E v-lo partir. No insistamos
nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas so possveis. Conheci um corao puro que
recusava a desconfiana. Era pacifista, libertrio e amava com um nico amor abrangente toda a
humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as
ltimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa:
"De onde quer que voc venha, entre e seja bem-vindo." Quem, segundo o senhor, respondeu a
este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam.
Oh, perdo, madame! Alis, ela nada compreendeu. Toda essa gente, hem, e apesar da
chuva que no pra h dias! Felizmente, existe a genebra, a nica claridade nestas trevas. O
senhor percebe a luz dourada, metlica, que ela instila? Gosto de caminhar pela cidade, noite, ao
calor da genebra. Caminho noites inteiras e sonho, ou falo sozinho interminavelmente. Como
nesta noite, sim, e receio atordo-la um pouco, obrigado, o senhor muito gentil. Mas um
transbordar: basta eu abrir a boca para as frases extravasarem. Alis, este pas me inspira. Amo
este povo que fervilha nas ruas, espremido num pequeno espao de casas e de guas, encurralado
pelas brumas, pelas terras frias e pelo mar fumegante como um caldeiro. Eu o amo, porque ele
duplo. Est aqui e em outro lugar qualquer.
Mas sim, pelo rudo de seus passos largos sobre a pavimentao gordurosa, vendo-os
passar pesadamente entre as suas lojas, cheias de arenques dourados e de jias da cor de folhas
mortas, acredita, sem dvida, que esto a nesta noite? O senhor como todo mundo, toma essa
boa gente por uma tribo de sndicos e de mercadores contando seus 12 florins ao mesmo tempo
em que contam suas possibilidades de vida eterna, cujo nico lirismo consiste em ter lies de
anatomia, s vezes cobertos de grandes chapus? O senhor se engana. bem verdade que
caminham junto de ns, no entanto, veja onde se encontram suas cabeas: nesta bruma de neon,
de genebra e de menta, que desce das tabuletas vermelhas e verdes. A Holanda um sonho, meu
caro senhor. De dia, um sonho de ouro e de fumaa, mais enfumaado de dia, mais dourado
noite, e dia e noite este sonho povoado de Lohengrins como este, deslizando sonhadores sobre
as suas negras bicicletas de guides altos, cisnes fnebres que giram sem parar em todo o pas, em
torno dos mares, ao longo dos canais. Eles sonham, com a cabea nas nuvens de cobre, andam
em crculos, rezam, sonmbulos, no incenso dourado da bruma, esto ausentes. Partiram para
milhares de quilmetros de distncia, rumo a Java, uma ilha longnqua. Rezam a esses deuses da
Indonsia, com ar de mscaras, com que guarneceram todas as suas vitrines e que vagueiam neste
momento, acima de ns, antes de se agarrarem como macacos suntuosos s tabuletas e aos
telhados em degraus, para relembrar a estes colonos nostlgicos que a Holanda no apenas a
Europa dos mercadores, mas tambm o mar, o mar que leva a Cipango e a essas ilhas onde os
homens morrem loucos e felizes.
Mas eu me deixo levar, como no foro! Desculpe. O hbito, meu caro senhor, a vocao, e
tambm o desejo que tenho de lhe fazer compreender bem esta cidade, o mago das coisas!
Porque ns estamos no mago das coisas. J reparou que os canais concntricos de Amsterd se
parecem com os crculos do inferno? O inferno burgus, naturalmente, povoado de maus
sonhos. Quando se chega do exterior, medida que se passa por estes crculos, a vida, e portanto
seus crimes, tornam-se mais espessos, mais obscuros. Aqui, estamos no ltimo crculo. O crculo
dos ... Ah! Sabe disso? Que diabo, o senhor se torna cada vez mais difcil de classificar. Ento
compreende por que posso dizer que o fundo das coisas est aqui, embora nos encontremos na
extremidade do continente? Um homem sensvel compreender essas esquisitices. Em todo caso,
os leitores dos jornais e os fornicadores no podem ir mais longe. Chegam de todos os cantos da
Europa e param volta do mar interior, sobre a margem arenosa e incolor. Escutam as sereias,
buscam em vo as silhuetas dos barcos na bruma, em seguida tornam a atravessar os canais e
vo-se embora sob
a chuva. Transidos, vm pedir genebra, em todas as lnguas, no Mexico-City. L, espero por eles.
At amanh ento, meu caro senhor e compatriota. No, agora encontrar facilmente o
caminho. Deixo-o perto desta ponte. noite, nunca passo numa ponte. Por causa de uma
promessa. Suponha, enfim, que algum se atire gua. Das duas, uma: ou o senhor o segue, para
retir-lo, e no tempo de frio arrisca-se ao pior, ou o abandona, e os mergulhos retidos deixam, s
vezes, estranhas cibras. Boa noite! Como? Estas mulheres, por de trs das vitrines? O sonho,
meu caro senhor, o sonho a baixo custo, a viagem s ndias! Estas pessoas perfumando-se com
especiarias. Entra-se, elas fecham as cortinas e a navegao comea. Os deuses descem sobre os
corpos nus e as ilhas ficam deriva, dementes, encimadas por uma cabeleira desgrenhada de
palmeiras ao vento. Experimente.
2
Que um juiz-penitente? Ah! Deixei-o intrigado com esta histria. No coloquei nisso malcia
alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certo modo, isso faz mesmo parte de
minhas funes. Mas, em primeiro lugar, necessrio expor-lhe um determinado nmero de
fatos que o ajudaro a compreender melhor minha narrativa.
H alguns anos, eu era advogado em Paris, e, juro, um advogado bastante conhecido.
claro, no lhe disse meu verdadeiro nome. Eu tinha uma especialidade: as causas nobres. A viva
e o rfo, como se diz, no sei a razo, j que, enfim, h vivas abusivas e rfos ferozes.
Bastava-me, no entanto, farejar num ru o mais leve cheiro de vtima para que minhas mangas
entrassem em ao. E que ao! Uma tempestade! Eu tinha o corao nas mangas. Podia-se
pensar que a justia dormia comigo todas as noites. Tenho certeza de que o senhor admiraria a
exatido de meu tom, a justeza de minha emoo, a persuaso e o calor, a indignao controlada
de minhas defesas. A natureza favoreceu-me quanto ao fsico, a atitude nobre me vem sem
esforo. Alm disso, eu era alimentado por dois sentimentos sinceros: a satisfao de me
encontrar do lado certo do tribunal e um desprezo instintivo pelos juzes em geral. Esse
desprezo, afinal, talvez no fosse to instintivo. Sei agora que ele tinha l suas razes. Mas, visto
de fora, parecia mais uma paixo. No se pode negar que, pelo menos por ora, os juzes sejam
necessrios, no acha? No entanto, eu no conseguia compreender por que um homem destinava
a si prprio para exercer essa surpreendente funo. Admitia-o, j que o via, mas um pouco como
eu admitia os gafanhotos. Com a diferena de que as invases desse ortpteros nunca me
renderam um centavo sequer, ao passo que eu ganhava a vida dialogando com pessoas que
desprezava. Mas, enfim, eu estava do lado certo, isso bastava para a paz de minha conscincia. O
sentimento do direito, a satisfao de ter razo, a alegria de nos estimarmos a ns prprios so,
meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de p ou nos fazer avanar. Pelo
contrrio, privar os homens desses impulsos implica transform-los em ces
raivosos. Quantos crimes cometidos simplesmente porque seu autor no podia suportar o fato de
estar errado! Conheci, em outros tempos, um industrial que tinha uma mulher perfeita, admirada
por todos e que, no entanto, ele traa. Esse homem ficava literalmente raivoso ao se descobrir
culpado, na impossibilidade de receber, ou de passar a si prprio, uma certido de virtude.
Quanto mais a mulher se mostrava perfeita, mais ele se enraivecia. Finalmente, seu erro se tornou
insuportvel. Que pensa que fez ento? Deixou de engan-la? No. Matou-a. Foi desse modo que
travei conhecimento com ele.
Minha situao era mais invejvel. No s no me arriscava a passar para o lado dos
criminosos (em meu caso, no havia nenhuma probabilidade de matar minha mulher, pois era
solteiro), como ainda assumia a defesa deles, com a nica condio de serem bons assassinos,
como outros so bons selvagens. A prpria maneira como eu conduzia essa defesa me
proporcionava grandes satisfaes. Era realmente irrepreensvel em minha vida profissional.
Nunca aceitei propinas, desnecessrio dizer, mas tambm nunca me rebaixei a nenhum
empenho. Coisa ainda mais rara, nunca concordei em bajular qualquer jornalista, a fim de torn-
lo favorvel a mim, nem funcionrio algum, cuja amizade me pudesse ser til. Tive mesmo a
sorte de me oferecerem por duas ou trs vezes a Legio de Honra, que eu pude recusar com uma
dignidade discreta, na qual encontrava minha verdadeira recompensa. Enfim, nunca cobrei dos
pobres nem alardeei isso aos quatro ventos. No pense, meu caro senhor, que eu esteja me
vangloriando disso tudo. Meu mrito era nenhum: a avidez, que em nossa sociedade substitui a
ambio, sempre me fez rir. Eu tinha um objetivo mais elevado; ver que a expresso exata, no
que me diz respeito.
Mas avalie j minha satisfao. Gozava minha prpria natureza e todos ns sabemos que
a que reside a felicidade, embora para nos tranqilizarmos mutuamente, demonstremos, por
vezes, condenar estes prazeres sob o nome de egosmo. Gozava, pelo menos, a parte de minha
natureza que reagia com tanta preciso viva e ao rfo, que, fora de se exercer, acabava
reinando sobre a minha vida toda. Adorava, por exemplo, ajudar os cegos a atravessarem as ruas.
Por mais longe que estivesse, ao avistar uma bengala que hesitava na esquina de uma calada, eu
me precipitava, adiantava-me um segundo, por vezes, mo caridosa que j se estendia, arrancava
o cego a qualquer outra solicitude que no a minha, e conduzia-o, com mo bondosa e firme,
pela faixa de pedestres, entre os obstculos do trnsito, at o porto seguro da calada, onde nos
separvamos com uma emoo mtua. Da mesma forma, sempre gostei de dar informaes s
pessoas que passavam por mim na rua, dar-lhes fogo, prestar alguma ajuda a carretas pesadas
demais, empurrar um automvel enguiado, comprar o jornal moa do Exrcito da Salvao ou
as flores velha florista, mesmo sabendo que ela as roubava no cemitrio de Montparnasse.
Gostava tambm, ah... Isso mais difcil de dizer ... gostava de dar esmolas. Um grande cristo
amigo meu reconhecia que o primeiro sentimento que experimentamos ao ver um mendigo se
aproximar de nossa casa de desagrado. Pois bem, comigo era pior: eu exultava. Mas passemos
adiante.
Falemos antes de minha cortesia. Ela era famosa e, no entanto, indiscutvel. A polidez
proporcionava-me, com efeito, grandes alegrias. Se tinha a oportunidade, certas manhs, de ceder
o lugar no nibus ou no metr a quem visivelmente o merecesse, de apanhar do cho algum
objeto que uma senhora de idade tivesse deixado cair e devolv-lo com um sorriso que eu
conhecia ou, simplesmente, de ceder meu txi a uma pessoa com mais pressa do que eu, tudo isso
enchia de luz meu dia. Chegava a deliciar-me, no posso deixar de diz-lo, com os dias em que,
devido greve dos transportes pblicos, eu tinha a oportunidade de embarcar em meu
automvel, nas paradas de nibus, alguns de meus infelizes concidados impossibilitados de
voltar para casa. Deixar, enfim, minha poltrona no teatro para permitir que um casal se reunisse
ou, em viagem, colocar as malas de uma moa no bagageiro instalado alto demais para ela eram
alguns feitos que eu realizava com mais freqncia do que os outros, porque estava mais atento s
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