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Resumo A PRODUÇÃO SOCIAL DA IDENTIDADE DO ANORMAL (José Geraldo Silveira Bueno)

Em todas as épocas, o meio social identificou, por algum critério, indivíduos que possuíam alguma(s) característica(s) que não fazia(m) parte daquelas que se encontravam entre a maior parte dos membros desse mesmo meio – não pela simples presença de uma diferença, mas pelas consequências que tais diferenças acarretavam às possibilidades de participação desse sujeito na construção coletiva de sobrevivência e reprodução de diferentes grupamentos sociais.

Parece no entanto ocorrer contradição entre a visão de anormalidade construída historicamente e a existência de indivíduos que possuem anormalidades evidentes, como surdez ou cegueira que acarretam dificuldades independente do meio social em que vivem.

Existindo indivíduos que possuem peculiaridades que interferem em seu processo de humanização, estaríamos diante de um quadro, não universal, patológico. Em diferentes épocas a doença foi vista como possessão, desequilíbrio da totalidade do homem, reação do organismo em busca da cura, ou mais modernamente como desvio quantitativo do funcionamento regular. Em todas as visões a procura de seu desvendamento implicou sempre em intervenção sobre ela.

A ciência moderna retirou da doença a explicação sobrenatural e possibilitou a intervenção controlada.

A concepção hegemônica moderna de anormalidade social tem utilizado como base o paradigma biológico, na medida em que essa ciência já teria chegado a alto nível de certeza na distinção entre o estado normal e o patológico, ao considerar a doença como um desvio do estado habitual (de saúde).

Com a apropriação feita por Comte do princípio nosológico de Broussais que o estado patológico deixou de ser relacionado com leis completamente diferentes das que regem o estado normal. Para ele o estado patológico só poderia constituir, um simples prolongamento mais ou menos extenso do limites de variações, quer inferiores ou superiores.

Para Canguilhem, reagir com uma doença pode ser interpretado do sentido de que a vida não é indiferente às condições em que ela é possível. Não dá para separar as manifestações orgânica das condições do meio, que vai definir uma resposta. E somente na relação que meio e sujeito se torna normal um para o outro. Um ser humano é normal para o meio na medida em que ele está adaptado a este meio. O normal é a forma nova, se superar as antigas.

O conceito de normal ultrapassa a mera designação de fenômeno frequente, pois uma norma foi insttuída como uma preferência e vontade de substituir em estado de coisas insatisfatória por outro satisfatório.

Noções que merecem serem colocados sobre crivo crítico, pois a anormalidades além de interferirem na capacidade de sobrevivência, geram consequências sobre a possibilidade de participação no meio social. O conceito de anormalidade vai se refinando e se modificando na medida em que vai sendo modificação a relação indivíduo-meio social.

Outros tipos de anormalidade, sem alteração orgânica são produzidas nas relações sociais, como a delinquência ou a doença mental. Mas todas ela respondem a determinações historicamente construídas. O cego só foi identificado, não por diferença orgânica, mas na

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relação que esses indivíduos mantinham com o meio, impossibilitando-os de se constituírem como seres normativos.

A deficiência mental como a conhecemos, foi construída a partir de uma exigência por determinadas formas de produtividade intelectual. Os deficientes mentais seriam aqueles que não conseguiam se constituir como normativos.

O termo norma remonta ao latim, o qual, por sua vez, é equivalente ao termo grego órtos, e se refere, fundamentalmente, à gramática, isto é, à regulamentação do uso da língua, o que demonstra a preocupação do homem na busca de regularidades em suas ações (CF. Canguilhem, 1982, p. 216).

Entretanto, o processo de normalização inerente às exigências da sociedade industrial constitui algo radicalmente novo por atingir as mais diferentes atividades humanas, tudo normatiza-se.

O termo norma remonta à Antiguidade, seu derivado normal surge, na Europa, apenas no século XVIII, mais precisamente na França, em 1759 onde foi incorporado à linguagem popular a partir de vocabulários específicos de duas instituições, a instituição escolar e a instituição sanitária, cujas reformas ocorrem em consequência da Revolução Francesa. Exprimem a exigência de racionalização que vão se manifestar na política e economia.

A escola normal se instituem os métodos pedagógicos, o hospital surge a possiblidade de recursos humanos e equipamentos que possibilitem a recuperação da normalidade do doente. A tentativa é de manter a normalidade trabalhar pra que ela se estabeleça.

Surge para os hospícios e as instituições para deficientes para aqueles que não podem ser curados. Os hospícios surgiram um século primeiro e usavam do isolamento para aqueles que poderiam interferir n nova ordem social. As primeiras instituições para crianças deficientes eram voltadas para crianças cegas e surdas, mas possuíam perspectiva de recuperação, ou de minimização do mal, procuravam desenvolver algumas habilidades prejudicadas pela deficiência (linguem de sinal para surdos, letras em relevo para cegos), havia a possiblidade de regime aberto para os usuários.

O objetivo destas instituições era de proporcionar acesso a cultura socialmente valorizada, desenvolvimentos de habilidades a uma vida relativamente útil, contribuição para segregação e separação do divergentes, que atrapalhavam a nova ordem social, a conformação de subjetividades sobre os sujeitos que se incorporarem as práticas institucionais.

Logo após a sua criação houve uma descaracterização do sua primeira função, se transformaram em asilos organizadores de mão de obra barata, que retirava os desocupados da rua e os encaminhava para o trabalho manual e tedioso e parcamente pago.

Como consequência pelos baixos resultados alcançados, tanto em níveis de compensação dos prejuízos gerados pela deficiência, como os níveis de escolaridade alcançados, disseminou-se no meio social a concepção de deficientes como indivíduos incapazes de responsabilizarem-se por sua vida. O internato e a dependência à instituição tornou-se um fato natural.

Louis Braille que estudou no Collège de France criou o sistema substitutivo da escrita para cegos, sendo ele mesmo dependente da instituição.

As relações sociais estabelecidas na sociedade industrial não podem ser vista somente como reflexo de macrodeterminações, mas como espaços de mediação onde ocorre o constrangimento na medida que privam da liberdade baseada na tomada de consciência.

As consequências da institucionalização na subjetividade e os estudos da mesma permitem avançar na visão que situa os aparelhos ideológicos de um poder soberano de coerção simbólica que inscreve a submissão.

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A institucionalização da educação especial foi produzindo uma concepção de deficiência como consequência de suas ações, a qual se incorporou como se fosse natural, e que não pode ser explicada a não ser na perspectiva histórica.

Pouco se da dos países europeus avançados e dos Estados Unidos, ocorrendo um atraso em relação à adoção de práticas inovadoras. Ela acompanha os três momento marcantes da educação no período pós-revolução industrial: criação de instituições, disseminação do atendimento e integração do deficiente na rede regular de ensino.

As primeiras instituições de educação especial surgem em meados do sec. XIX, e destina-se a deficientes auditivos e visuais. A necessidade de segregação dos anormais como forma necessária para sua educação foi muito mais contundente em nosso país. A primeira iniciativa não segregacionista ocorreu apenas em 1930 com classes especiais em escolas regulares.

O internato cria um identidade pautada em três dimensões: a primeira da necessidade de separação do meio social, evitar que a presença dos anormais interfira na racionalização dos espaços, e por outro lado proteger os sujeitos com incapacidade. A segunda refere-se a falta de ampliação de instituições de educação especial, ficando a internação como um privilégio a ser alcançado. A terceira refere-se ao baixo rendimento alcançado nesses institutos, por graves distúrbios de ordem moral, econômica e disciplinar, não conseguiam dar aos alunos formação suficiente para integração social do mesmo. O que contribuía para que se criasse um imagem de incapacidade e de inferioridade no e do deficiente.

O segundo momento da educação especial, entre início e metade do século XX, se caracteriza pela disseminação de instituições de educação especial e pela preocupação da escola regular em dectar alunos problema. Modelo que encobre a exclusão do diferente, em um ensino para poucos. O sistema não dava conta mesmo daqueles que ingressava no ensino egular e eram encaminhados, a primeira classe de débeis mentais surgiu apenas em 1933, quanto mais para os que tinham deficiência orgânicas ou mentais evidentes e que ainda não ingressavam na ensino fundamental.

O atendimento a deficientes evidentes se fez basicamente em instituições especiais, de caráter filantrópico, em número reduzido para a demanda, o que constitua o serviço como um privilégio.

Excluía-se o atendimento ao anormal da discussão sobre os direitos de cidadania, calcados numa concepção de irreversibilidade da anormalidade, assim o atendimento deveria ser pois assistencialista.

O terceiro momento se estende da metade do século passado aos nossos dias, caracterizado pela expansão da ação do poder público, com a criação e desenvolvimento dos serviços de educação especial no nível federal, e disseminação de uma rede privado-assistencial que atinge a todo o país.

Uma característica deste terceiro momento foi a inclusão de outras anormalidades no rol da excepcionalidade, por exemplo os de fundo neurológico, por outro lado foi incorporando população cada vez mais próximos da normalidade determinada pela abordagem científica que se pretende neutra e objetiva. Passou a englobar sujeitos cuja dificuldades são decorrentes de processos sociais e de escolarização inadequadas.

Nas chamadas classes especiais para deficientes mentais leves os alunos são constituídos por multi repetentes sem qualquer característica de déficit intelectual. Assim contribui para a concepção das dificuldades de aprendizagem como inerentes ao indivíduo, num sistema educacional de produção de massivo fracasso escolar.

Ampliação que não redundou em universalização, estima-se que no máximo 15 % do total da população deficiente em idade escolar tenham acesso a educação especial.

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Diferentemente do ensino regular nas regiões mais desenvolvidas. O que contribuiu para disseminação da concepção de irreversibilidade da anormalidade.

E mesmo quando existe atendimento este não é qualificado, o que se comprova pelo baixo índice de escolarização alcançado e dificuldades de integração no mundo do trabalho.

Algumas iniciativas tem sido implementadas e analisadas de forma superficial como a consideração de que classes especiais em escolas regulares possibilitam o contato social entre crianças deficientes e crianças normais e por isso é vantajosa, todavia há poucos estudos sobre a eficácia dessa ação.

Outro exemplo é a não seriação no ensino fundamental de classes, na medida em que a programação fixa retém o aluno numa série e impede a diversificação do trabalho pedagógico, o aluno tem de passar por todo o conjunto de conteúdo. Mas na realidade ocorre a impossibilidade do acompanhamento do nível de escolarização. Na medida que não tem informações sobre a eficácia dos processos de escolarização não é possível realizar estudos sistemáticos com vistas a sua melhor qualificação.

A não seriação e o baixo rendimento contribuem para a cristalização de uma concepção de irreversibilidade e de incapacidade para o aprendizado como decorrência da deficiência, e não como decorrência de má qualidade dos processos educacionais.