A POLÍTICA DE FRONTEIRAS DA UNIÃO EUROPEIA.
Do arranque adiado à centralidade progressiva
Nuno Piçarra*
Sumário: I. Introdução. II. Os antecedentes da política de fronteiras da União Europeia. III. Do Acto Único Europeu ao Tratado de Amesterdão: a política de fronteiras da União Europeia sob a égide da cooperação intergovernamental. IV. O Tratado de Amesterdão e a comunitarização da política de fronteiras da União Europeia: impacto e desenvolvimentos. V. As novas etapas.
I. Introdução
Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, em 1 de Maio de 1999, a União
Europeia (UE ou União) tornou-se um espaço de fronteiras internas abertas que, desde 30
de Março de 2008, abrange o território de vinte e dois Estados-Membros, prolongando-se
ainda pelo de quatro Estados não membros. Tal constitui uma concretização essencial do
objectivo, acrescentado por aquele tratado ao artigo 2.º, quarto travessão, do Tratado de
Maastricht (TUE), de “manutenção e desenvolvimento da União Europeia enquanto espaço
de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de
pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira
externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade”.
A supressão dos controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas da UE
implica, nada mais, nada menos, do que a “colocação em comum” dos territórios dos
Estados-Membros e, por conseguinte, da respectiva segurança interna – com todo o
impacto que isso produz nas suas identidades de Estados-Nações soberanos1 e, por reflexo,
na identidade da própria UE.
* Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 1 Tal como observou Max Weber, em termos que se tornaram clássicos, o Estado-Nação construiu-se para garantir a segurança de todos no interior do seu território, constituindo o controlo das fronteiras que erigiu simultaneamente uma barreira contra as ameaças e os perigos exteriores e um símbolo da soberania interna; cf. Emmanuelle Dardenne, “Immigration et asile: des nouvelles compétences pour la Communauté?” in Mario Telò e Paul Magnette, De Maastricht à Amsterdam. L’Europe et son nouveau traité, Bruxelas, 1998, p. 163.
O potencial integrador do objectivo de “manutenção e desenvolvimento” da UE
enquanto espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ) é tal – de mais a mais, sob a
égide do método comunitário2 desde 1 de Maio de 1999 – que explica não só que dois
Estados-Membros (o Reino Unido e a Irlanda) tenham negociado o direito de “ficar fora”,
mas também que a construção desse espaço tenha sido progressiva, à medida que cada um
dos restantes Estados-Membros demonstre ter tomado as “medidas adequadas” para nele se
integrar (faltando actualmente tal demonstração relativamente a Chipre, à Bulgária e à
Roménia). O potencial integrador do ELSJ explica ainda, embora de forma à primeira vista
paradoxal, que quatro Estados não membros da UE (a Islândia e a Noruega, por um lado, a
Suíça e o Liechtenstein, por outro) tenham sido atraídos para esse espaço, renunciando
parcialmente a um dos símbolos mais visíveis da sua soberania interna que é o jus
includendi et excludendi.
É o Acto Único Europeu (AUE) que marca formalmente o nascimento da política
de fronteiras da UE, ao acrescentar ao Tratado de Roma (TCE), em Fevereiro de 1986, o
artigo 8.º-A (ulteriormente artigo 14.º), onde se define o mercado interno como “um espaço
sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos
serviços e dos capitais é assegurada”.
Todavia, as fortes divergências de interpretação a que este preceito deu azo entre os
Estados-Membros fizeram com que a implementação dessa política ficasse em grande
medida adiada até à entrada em vigor, em 1 de Maio de 1999, do Tratado de Amesterdão.
Ao aditar, por um lado, ao TCE o artigo 62.º – que confere expressamente ao legislador
comunitário competência para adoptar as “medidas destinadas a assegurar, de acordo com
2 Tal como sintetiza o Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, a quem este estudo é dedicado, “o que há de profundamente original na Comunidade Europeia (e hoje, mais ainda, na realidade mais ampla que é a União Europeia) é o seu carácter híbrido, a presença simultânea de elementos atinentes à visão supranacional e à de cooperação intergovernamental. Estes elementos são oscilantes, porque o processo de integração é evolutivo e dinâmico”; cf. “Os impulsos federais na construção europeia”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLI, 2000, p. 11, ênfase do Autor. Para maiores desenvolvimentos sobre a caracterização do método comunitário e da sua combinação sui generis do modelo da integração supranacional com o modelo da cooperação intergovernamental – que se salda, a nível institucional e decisório, pela partilha de poder entre os Estados-Membros, através dos órgãos que os representam (deliberando por maioria qualificada num número crescente de matérias), e órgãos independentes e, a nível normativo, por um direito dotado de uma eficácia praticamente idêntica à do direito estadual, ver, entre os estudos monográficos mais recentes, J. Meyring, “Intergovernamentalism and Supranationality: Two Stereotypes for a Complex Reality”, European Law Review, n.º 22, 1997, pp. 221 ss.; Renaud Dehousse, “La méthode communautaire a-t-elle encore un avenir?”, Mélanges en Hommage à Jean-Victor Louis, Volume I, Bruxelas, 2003, pp. 95 e ss.; Philippe Manin, “La «méthode communautaire»: changement et permanence”, Mélanges en hommage à Guy Isaac. 50 ans de droit communautaire, tomo I, Toulouse, 2004, pp. 213 ss.; Paul Magnette, What is the European Union? Nature and Prospects, Nova Iorque, 2005, especialmente pp. 1-29.
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o artigo 14.º, a ausência de controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas” e as
“medidas relativas à passagem das fronteiras externas dos Estados-Membros” e ao integrar,
por outro lado, o acervo de Schengen no âmbito da UE, o Tratado de Amesterdão
contribuiu decisivamente para que a política de fronteiras se viesse a tornar uma política
central da UE na actualidade.
O presente artigo propõe-se analisar os antecedentes de tal política (II), bem como a
sua evolução – primeiro sob a égide da cooperação intergovernamental (III) e depois sob a
égide do “método comunitário” (IV) – e ainda as novas etapas dela (IV).
II. Os antecedentes da política de fronteiras da União Europeia
Pode dizer-se que são de dois tipos os antecedentes da política de fronteiras da UE.
De um lado, estão os antecedentes práticos, remotos e próximos, resultantes da
criação, através de métodos de cooperação estritamente intergovernamental, de espaços de
fronteiras internas abertas entre determinados Estados-Membros, que trouxeram à UE todo
um capital de experiência quando se tratou da conversão dela própria num espaço de
idênticas características. Neste contexto pontifica, como é sabido, o Espaço Schengen que
constitui o precursor mais directo e marcante do ELSJ. De outro lado, estão aqueles que
poderiam ser denominados os “antecedentes ideológicos” dessa política, visando, no
essencial, aproximar a UE dos cidadãos.
Começar-se-á pela análise destes últimos antecedentes, que remontam à década de
setenta do século XX.
1. A ideia de conferir aos cidadãos dos Estados-Membros determinados direitos
susceptíveis de criar progressivamente um vínculo directo entre eles e a então Comunidade
Económica Europeia remonta à cimeira de Chefes de Estado e de Governo realizada na
Haia em 1969. Todavia, só na sequência do Conselho Europeu de Paris, de finais de 1974,
foi criado um grupo de trabalho encarregado de estudar, por um lado, “as condições e os
prazos para se poder atribuir aos cidadãos dos Estados-Membros direitos especiais como
membros da Comunidade” e, por outro lado, “a possibilidade de estabelecer uma união de
passaportes e, por antecipação, a introdução de um passaporte uniforme”.
3
Em relatório apresentado ao Conselho em Julho de 1975, a Comissão Europeia
concluía que a união de passaportes constitui não só um prolongamento natural da livre
circulação de pessoas, mas também um embrião de cidadania europeia, ao criar nos
nacionais dos Estados-Membros o sentimento de pertença comum à Comunidade3.
Foi o Relatório sobre a União Europeia apresentado ao Conselho Europeu de
Roma, de Dezembro de 1975, por Leo Tindemanns o primeiro documento a preconizar
abertamente, em nome da “Europa dos cidadãos”, o aperfeiçoamento da liberdade de
circulação de pessoas mediante a supressão progressiva das medidas de controlo nas
fronteiras comuns dos Estados-Membros, como complemento de uma união de
passaportes4.
A ideia só viria a ser retomada na década seguinte, em vésperas da conferência
intergovernamental que culminou na assinatura do Acto Único Europeu. Em Junho de
1984, por ocasião do Conselho Europeu de Fontainebleau, foi criado um comité ad hoc
(“comité Adonnino”) encarregado de propor medidas destinadas a reforçar e a promover a
identidade da Comunidade perante os seus cidadãos e perante o resto do mundo, entre as
quais se incluía, mais uma vez, o aperfeiçoamento da liberdade circulação de pessoas no
seu interior através da supressão dos controlos fronteiriços5. Tal ideia ficaria depois
estreitamente ligada à criação de um mercado interno, vindo a ser plasmada no artigo 14.º
do TCE.
2. Quanto aos “antecedentes práticos” da actual política de fronteiras da UE, cujo
núcleo aglutinador é precisamente a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras
internas, há a enumerar três, por ordem cronológica: a União Nórdica de Passaportes
(UNP), a União Económica Benelux e o Espaço Schengen.
Precisamente no ano em que o Tratado de Roma foi assinado, a UNP integrou num
espaço de fronteiras internas abertas não só os três Estados escandinavos que vieram, bem
mais tarde, a tornar-se membros da UE (a Dinamarca em 1973 e a Finlândia e a Suécia em
1995) mas também os dois que não adquiriram tal estatuto. É, aliás, a UNP a explicar que a
Islândia e a Noruega integrem, ainda assim, o ELSJ. Seria, com efeito, politicamente
insustentável para os membros daquela União que, com a criação, primeiro do Espaço 3 Ver “Rumo à Europa dos Cidadãos”, Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 7/75, especialmente pp. 27-28. 4 Ver Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 1/76, especialmente pp. 27-29. 5 Para maiores desenvolvimentos, ver Nuno Piçarra, “Cidadania europeia, direito comunitário e direito nacional”, O Direito, ano 126.º, 1994, pp. 203-205.
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Schengen e, depois, do ELSJ, a UNP fosse fracturada por uma “fronteira externa”
separando os três Estados-Membros da UE dos dois Estados não membros6.
A União Económica Benelux, por seu lado, integra os três Estados (Bélgica,
Holanda e Luxemburgo) que, em 11 de Abril de 1960, já membros da Comunidade
Europeia, assinaram em Bruxelas uma Convenção sobre a transferência dos controlos de
entrada e de saída de pessoas para as fronteiras externas do território comum Benelux. Tal
permitiu-lhes constituir entre si um espaço de fronteiras internas abertas, cujo modelo tanta
influência haveria de exercer ulteriormente7.
Quase um quarto de século mais tarde, em 13 de Junho de 1984, a Alemanha e a
França assinaram o Acordo de Saarbrücken, tendente à supressão gradual dos controlos de
pessoas nas suas fronteiras comuns. Fizeram-no não só devido à ausência de uma
perspectiva credível de acordo rápido no âmbito da Comunidade Europeia quanto à
consagração do princípio da eliminação dos controlos nas fronteiras internas, mas também
na sequência da pressão exercida por um número muito significativo de condutores de
transportes rodoviários que, desde a anterior Primavera, bloqueavam insistentemente as
estradas numa série de postos de fronteiras comuns, como forma de protesto contra as
formalidades e as demoras na passagem das mesmas. Poucos dias antes (31 de Maio de
1984) a Alemanha e os Estados Benelux haviam chegado a um idêntico acordo. A fusão de
ambas as iniciativas levou à conclusão, pelos cinco Estados, do Acordo de Schengen e da
sua Convenção de Aplicação, respectivamente em 14 de Junho de 1985 e em 19 de Junho
de 1990.
3. Foi sob a égide destes dois últimos instrumentos que todos os Estados-Membros
da UE a quinze – com excepção do Reino Unido e da Irlanda –, a que se juntaram, como já
se disse, a Islândia e a Noruega, vieram a constituir progressivamente, a partir de 26 de
Março de 1995, o mais vasto espaço sem controlos de pessoas nas fronteiras internas desde
6 Para maiores desenvolvimentos sobre a União Nórdica de Passaportes, ver Kim U. Kjaer, “How Many Borders in the EU?” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud, In Search of Europe’s Borders (ed.) Haia, 2003, pp. 180 ss.; sobre os termos da integração da Islândia e da Noruega no ELSJ, ver o acordo celebrado entre a UE e aqueles dois Estados em 18 de Maio de 1999, em execução do artigo 6.º, primeiro parágrafo, do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da UE, publicado no Jornal Oficial da União Europeia (JO) L 176 de 10-7-1999, pp. 36 ss. 7 Sobre a União Económica Benelux, ver D. C. Turack, The Passport in International Law, Nova Iorque, 1972, capítulo 10, e Kees Groenendijk, “Reinstatement of Controls at the Internal Borders of Europe: Why and Against Whom?”, European Law Journal, vol. 10, 2004, pp. 151-152.
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que a Europa se estruturou politicamente em Estados-Nações soberanos, numa época afinal
não tão remota.
O Acordo e a Convenção de Schengen inspiraram-se no acordo celebrado pelos
Estados Benelux, em vigor desde Julho de 1960. A singularizá-los em relação a este último
e também à UNP, está o facto de o princípio segundo o qual “as fronteiras internas podem
ser transpostas em qualquer local sem que o controlo de pessoas seja efectuado”,
estabelecido pelo conhecido artigo 2.º, n.º 1, daquela convenção, ter sido acompanhado por
uma vasta e pormenorizada panóplia de medidas compensatórias, consideradas por muitos
como de cunho fortemente securitário e “orientado para o controlo”. Tal explicar-se-á pelo
facto de os Acordos de Schengen terem sido assinados numa época em que os países da
Europa Ocidental conheciam um nítido aumento do número de requerentes de asilo
provenientes de países terceiros8.
Independentemente disso, não restam dúvidas de que a eliminação dos controlos
nas fronteiras internas – cujo objectivo é aprofundar a liberdade de circulação de pessoas –
vai necessariamente permitir uma deslocação mais fácil dos agentes do crime organizado e
dos mais diversos tráficos ilícitos9. Daí a necessidade incontornável de tal eliminação ser
sempre complementada por medidas compensatórias ou de acompanhamento.
Entre as medidas desta natureza previstas pela Convenção de Schengen – e cuja
implementação constituiria, aliás, condição sine qua non para a própria supressão dos
controlos de pessoas nas fronteiras internas10 – contam-se como mais emblemáticas (1) o
reforço dos controlos nas fronteiras externas; (2) a harmonização de uma série de aspectos
do direito dos estrangeiros dos Estados signatários ou aderentes (“visto uniforme
Schengen”, regras sobre a estada de curta duração, regras sobre a determinação do Estado
responsável pela análise de um pedido de asilo, medidas de combate à imigração ilegal);
(3) formas avançadas de cooperação policial (perseguição e vigilância transfronteiriças) e
de cooperação judiciária em matéria penal (processos simplificados e mais expeditos de
extradição). A chave da abóbada destas medidas compensatórias é o Sistema de
8 Cf. Kees Groenendijk, op. cit. na nota anterior, p. 153; Kim U. Kjaer, “How Many Borders in the EU?”, cit., p. 186. 9 Assim Luís Pais Antunes, “A liberdade de circulação e a segurança interna” in Álvaro de Vasconcelos (coord.), Portugal no Centro da Europa. Proposta para uma Reforma Democrática do Tratado da União Europeia, Lisboa, 1995, p. 108. 10 Tal como explicita uma declaração comum adoptada no momento da assinatura da Convenção de Schengen, esta só seria posta em vigor e, portanto, suprimidos os controlos nas fronteiras internas quando estivessem preenchidas as condições prévias para o efeito e quando fossem “efectivos os controlos nas fronteiras externas”.
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Informação Schengen (SIS), cujo objectivo consiste em preservar devidamente a ordem e a
segurança pública das Partes Contratantes e gerir os fluxos migratórios no espaço comum,
através da troca de informações sobre pessoas e objectos possibilitada por este sistema11.
4. Entre as razões que levaram cinco Estados-Membros da UE a celebrar, à margem
desta, os Acordos de Schengen, conta-se a falta de consenso entre os então doze Estados-
Membros para fazer da própria UE um espaço de fronteiras internas abertas com base no
artigo 8.º-A introduzido no Tratado de Roma pelo AUE.
Quando, finalmente, o Tratado de Amesterdão introduziu no TCE o artigo 62.º –
ainda que ao preço do opt-out do Reino Unido e da Irlanda (e também da Dinamarca,
embora noutros termos) – cessava a principal razão para manter o Espaço Schengen,
parcialmente efectivo enquanto espaço de fronteiras internas abertas desde 26 de Março de
199512, à margem do quadro institucional e normativo da UE. Por isso mesmo, a sua
transferência para o âmbito desta veio a ser determinada pelo Protocolo que o Tratado de
Amesterdão anexou ao TCE e ao TUE para o efeito. Lê-se no preâmbulo deste protocolo
que o acervo de Schengen “se destina a reforçar a integração europeia e, em especial, a
possibilitar que a União Europeia se transforme mais rapidamente num espaço de
liberdade, de segurança e de justiça”13.
Por outro lado, tal como já se observara no ponto 26 do “Plano de Acção do
Conselho e da Comissão sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de
Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça14, “a
integração do acervo de Schengen no quadro da União Europeia implicará que, a partir da
11 Para maiores desenvolvimentos sobre o conteúdo do Acordo e da Convenção de Schengen, ver por último Thomas Wahl e Sarah Schultz, “The Enlargement of the Schengen Area”, Eucrim. The European Criminal Law Associations’ Forum, n.º 3-4, 2007, pp. 66 ss. 12 Diz-se parcialmente porque, como é sabido, em 26 de Março de 1995 a França recusou-se a suprimir os controlos de pessoas nas suas fronteiras com a Bélgica e o Luxemburgo, invocando abusivamente razões de ordem pública e de segurança nacional, contempladas pelo artigo 2.º, n.º 2, da Convenção apenas como fundamento para a reposição excepcional desses controlos, a pretexto de se tratar de dois países de trânsito de droga proveniente dos Países Baixos – cujo “laxismo” em matéria de política de combate à droga o governo francês de então censurava. À data da sua integração na UE, o Espaço Schengen abrangia os territórios dos três Estados Benelux, da Alemanha, da França, da Espanha, de Portugal, da Áustria e da Itália, encontrando-se o processo de supressão dos controlos nas fronteiras internas com a Grécia em fase avançada. 13 Para maiores desenvolvimentos, ver Steve Peers, EU Justice and Home Affairs, 2.ª edição, Oxford, 2006, pp. 44 ss.; Nuno Piçarra, “La mise en oeuvre du protocole intégrant l’acquis de Schengen dans le cadre de l’Union européenne: Règles et procédures” in Monica den Boer (edit.) Schengen’s Final Days? The Incorporation of Schengen into the New TEU, External Borders and Information Systems, Maastricht, 1998, pp. 25 ss., e “O modelo de integração do acervo de Schengen na União Europeia: Cooperação reforçada e «ordens de legislar» ao Conselho” Legislação, n.º 22, 1998, pp. 23 ss. 14 Aprovado pelo Conselho em 3 de Dezembro de 1998 e publicado no JO C 19/1 de 23-1-1999.
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data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, os objectivos da Comunidade tal
como definidos em todo o artigo 62.º do TCE (…) terão em grande parte sido realizados
em relação a 10 Estados-Membros e, em relação a 13 Estados-Membros, a partir da data da
decisão do Conselho constante do n.º 2 do artigo 2.º do Protocolo Schengen. Significa isto
que muito do trabalho substantivo terá sido efectuado com grande antecedência em relação
ao prazo limite de cinco anos estabelecido pelo artigo 62.º”.
II. A política de fronteiras da União Europeia sob a égide da cooperação
intergovernamental: do Acto Único Europeu ao Tratado de Amesterdão
O já citado artigo 8.º-A (e ulterior artigo 14.º) do TCE abole, pelo menos
retoricamente, as próprias fronteiras internas. Devido à aparente impossibilidade de o
aplicar a sério, por literalmente suprimir um elemento essencial dos próprios Estados-
Membros15, ele prestou-se a divergências de interpretação que o tornaram insusceptível de
servir de base para fazer da UE um espaço de fronteiras internas abertas, com tudo o que
isso implicava em termos de “medidas compensatórias”. Mas o próprio AUE não deixava
de conter elementos permitindo inferir que tais medidas deveriam ser adoptadas sob a
égide não do TCE e do método comunitário, mas da cooperação intergovernamental regida
pelo direito internacional público.
1. A maioria dos Estados-Membros, ainda que alguns, porventura, com “reserva
mental”, interpretava o artigo 14.º do TCE no sentido de que ele não só exigia a supressão
dos controlos de pessoas nas fronteiras internas, como conferia à UE competência para
estabelecer os controlos a efectuar nas fronteiras externas e, eventualmente, outras
“medidas compensatórias” tendo por destinatários exclusivos os nacionais de países
terceiros (estrangeiros), como as políticas de vistos, de asilo e de imigração.
Ao invés, para os então dois únicos Estados-Membros insulares, com o Reino
Unido à cabeça, a liberdade de circulação de pessoas contemplada pelo artigo 14.º apenas
pretendia beneficiar os nacionais dos Estados-Membros, com exclusão, portanto, dos
nacionais de países terceiros que já se encontrassem na UE. É bom de ver que uma tal 15 Como bem observa John Cowley, “Locating Europe” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., p. 38, “se o artigo 14.º do TCE fosse aplicado a sério, deixariam de existir fronteiras internas para serem atravessadas, tornando ocioso o artigo 62.º, ponto 1, do TCE”.
8
delimitação do âmbito subjectivo de aplicação do artigo 14.º inviabilizava na prática a
supressão dos controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas: qualquer distinção
a fazer, em tal ocasião, entre cidadãos da UE e cidadãos de países terceiros implicaria
inevitavelmente o controlo de todas as pessoas nessas fronteiras, em ordem a identificar
quais os nacionais dos Estados-Membros e quais os nacionais de países terceiros. Não
sendo possível na prática controlar só os cidadãos de Estados terceiros, a única alternativa
seria, pois, controlar todas as pessoas que pretendessem passar uma fronteira interna.
Foi, no essencial, esta divergência nunca ultrapassada entre os Estados-Membros a
impedir que a abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas se tornasse
realidade, no quadro da UE, com base no artigo 14.º do TCE, não obstante a proposta de
directiva nesse sentido, relutantemente apresentada pela Comissão Europeia em 1995.
Registe-se, no entanto, que a “interpretação maioritária” do artigo 14.º do TCE viria
a ser sufragada bem mais tarde pelo próprio TJ, embora num momento em que o artigo
62.º do TCE já se encontrava vigor, e a UE dispunha de competência expressa em matéria
de passagem das fronteiras externas, de vistos, de asilo e de imigração. Tal interpretação
foi expendida em resposta à questão prejudicial, colocada por um tribunal nacional, de
saber se o artigo 14.º seria susceptível de produzir efeito directo e, portanto, de ser
invocado contra os controlos de pessoas efectuados nas fronteiras internas da UE.
Segundo o TJ, a obrigação de supressão de tais controlos “pressupõe a
harmonização das legislações dos Estados-Membros em matéria de passagem das
fronteiras externas da Comunidade, de imigração, de concessão de vistos, de asilo e de
troca de informações sobre estas questões (…). Enquanto não forem adoptadas disposições
comunitárias relativas aos controlos nas fronteiras externas da Comunidade, o que implica
igualmente regras comuns ou harmonizadas designadamente em matéria de condições de
entrada, de vistos e de asilo, o exercício dos direitos previstos pelo artigo 14.º pressupõe
que a pessoa em causa possa provar que tem a nacionalidade de um Estado-Membro”16.
Para o TJ, o artigo 14.º constituía, portanto, uma base jurídica adequada para a UE
legislar sobre todas estas matérias, solução não isenta de controvérsia anteriormente à
entrada em vigor do Tratado de Amesterdão. Mas ficava pelo menos assente que a
integração negativa resultante da supressão dos controlos nas fronteiras internas dependeria
da adopção de um número considerável de medidas de integração jurídica positiva, 16 Ver o acórdão de 21 de Setembro de 1999, Wijsenbeek, processo C-378/97, n.ºs 40 e 42, ênfase acrescentada. Sobre este acórdão, ver Jean-Yves Carlier, La condition des personnes dans l’Union européenne, Bruxelas, 2007, pp. 32-33.
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enunciadas pelo próprio TJ – solução para que já apontava, de resto, o próprio AUE, como
se verá a seguir.
2. Anexada à Acta Final da Conferência Intergovernamental que culminou na
aprovação do AUE figurava uma declaração política dos governos dos Estados-Membros
relativa à livre circulação de pessoas, que sujeitava inequivocamente a uma lógica
intergovernamental – “sem prejuízo das competências da Comunidade” (cuja exacta
determinação permanecia, no entanto, em aberto) – a indispensável cooperação respeitante
não só à entrada, à circulação e à estada de cidadãos de países terceiros nos respectivos
territórios, mas também à luta contra o terrorismo, a criminalidade, a droga e o tráfico de
obras de arte e de antiguidades. E confirmando a opção basicamente intergovernamental
dos signatários do AUE nestes domínios, uma “declaração geral” relativa, entre outros, ao
artigo 8.º-A precisava que nada nesta disposição afectaria o direito de os Estados-Membros
tomarem unilateralmente as medidas que considerassem necessárias “em matéria de
controlo da imigração de países terceiros e de luta contra o terrorismo, a criminalidade, o
tráfico de drogas e o tráfico de obras de arte e de antiguidades”.
Ulteriormente, o Conselho Europeu reunido em Rodes em Dezembro de 1988
também veio deixar claro que “a realização dos objectivos da Comunidade, especialmente
o espaço sem fronteiras internas, está ligado ao progresso na cooperação
intergovernamental destinada a combater o terrorismo, a criminalidade internacional, o
tráfico de droga e o tráfico de todas as espécies”.
Ficavam assim reunidas as condições para tirar da letargia a cooperação
estritamente intergovernamental no domínio dos assuntos internos que, no final de 1975, o
Conselho Europeu de Roma tinha lançado, à margem da Comunidade Europeia, com a
criação do grupo TREVI. Este reunia os ministros da administração interna dos nove
Estados-Membros com vista a trocar informações sobre o “euroterrorismo” que então
assolava a maioria deles.
Com efeito, foi justamente o objectivo de criação de um “espaço sem fronteiras
internas”, inscrito no AUE, que veio a dar o verdadeiro impulso ao arranque da cooperação
intergovernamental entre os Estados-Membros, não só no domínio dos assuntos internos,
mas também no domínio da justiça. A testemunhá-lo está o facto de, na sequência da
entrada em vigor do AUE, o grupo TREVI – que nos dez anos subsequentes à sua criação
só reunira seis vezes – ter alargado o âmbito de competência à criminalidade internacional,
10
ao tráfico de droga e também ao controlo nas fronteiras externas, aos vistos, ao asilo e à
imigração clandestina17. Mas testemunha-o também a criação, em finais de 1986, do grupo
ad hoc Imigração, encarregado de estudar, na óptica da livre circulação de pessoas na UE,
as medidas compensatórias ligadas à passagem das fronteiras externas, à concessão de
vistos e ao asilo, cujos trabalhos se saldaram pela elaboração de uma convenção contendo
as regras sobre a determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de
asilo apresentado a mais do que um, assinada em Dublin em Junho de 1990.
Testemunha, por outro lado, o impulso que o objectivo de fazer da UE um espaço
de fronteiras internas abertas deu à cooperação intergovernamental nos domínios JAI a
criação, pelo Conselho Europeu de Rodes, do grupo de coordenadores da livre circulação
de pessoas, bem como a criação, em 1989, do comité europeu de luta antidroga (CELAD)
para coordenar as acções dos Estados-Membros em matéria de prevenção e de repressão do
tráfico de droga. E testemunha, finalmente, o mesmo impulso a criação de um grupo de
cooperação judiciária em matéria penal e a assinatura, no quadro da cooperação política
europeia institucionalizada pelo AUE, de cinco instrumentos consagrados a diferentes
aspectos daquela cooperação judiciária, com vista a torná-la mais simples, operacional e
adequada às necessidades da UE do que a desenvolvida no âmbito do Conselho da
Europa18.
A razão de ser da preferência pela cooperação intergovernamental foi, como é
óbvio, limitar decisivamente a possibilidade de interferência das “instituições
supranacionais” da UE (Comissão, Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça) em matérias
que os Estados-Membros consideravam como fazendo parte do núcleo duro da sua
soberania e portanto a subtrair ao método comunitário – que os obrigaria a repartir poderes
com tais instituições19.
No entanto, a proliferação de todos estes grupos inspirados por uma estrita lógica
de cooperação intergovernamental, o carácter descontínuo das suas reuniões, a
sobreposição das suas competências e a descoordenação dos respectivos trabalhos, não
permitiram uma visão global das questões abordadas, para além de não se terem traduzido
17 Cf. Emmanuelle Dardenne, “Immigration et asile: de nouvelles compétences pour la Communauté”, cit., pp. 163 e 165. 18 Cf., por último, Anabela Miranda Rodrigues, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra, 2008, pp. 40-41, onde pode encontrar-se a lista dos referidos instrumentos de direito internacional. 19 Neste sentido, Maria Luísa Duarte, A Liberdade de Circulação de Pessoas e a Ordem Pública no Direito Comunitário, Coimbra, 1992, pp. 346 ss., especialmente pp. 349-350; Steve Peers, op. cit., p. 8; Renaud Dehouse, op. cit., p. 100; Helen Staples, “Adjudicating the External Schengen Border” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., p. 249.
11
em resultados palpáveis – o que tornou evidente a considerável ineficácia do método em
causa. Assim, no relatório apresentado em 1989 ao Conselho Europeu de Madrid – mais
conhecido por Documento de Palma –, o grupo dos coordenadores da livre circulação dava
conta de que “as questões ligadas à livre circulação de pessoas colocam um problema a
respeito dos métodos a seguir, dada a multiplicidade de fóruns em que são discutidos –
Comunidade Europeia, Cooperação Política Europeia [instituída pelo Título III do AUE],
Ministros da Imigração, Grupo TREVI, Conselho da Europa – e que terão que ser
coordenados”. Mas o mesmo documento insistia em que “a criação de um espaço sem
fronteiras internas, de acordo com o TCE, exigirá o reforço dos controlos nas fronteiras
externas, o que envolverá uma cooperação intergovernamental aprofundada”.
3. Em 1992, o Tratado de Maastricht, mantendo-se na senda do AUE, optou por
colocar o conjunto das políticas globalmente entendidas como indispensáveis à
transformação da União num espaço de fronteiras internas abertas sob a égide do III Pilar,
regido pelo Título VI daquele tratado (“Disposições relativas à cooperação nos domínios
da justiça e dos assuntos internos”)20, e da sua lógica de cooperação intergovernamental, e
não por sujeitá-las ao método comunitário (com excepção de certos aspectos da política de
vistos, que passaram a reger-se pelo então artigo 100.º-C do TCE). E isto sem prejuízo de
continuar a não ser pacífica a interpretação do artigo 14.º do TCE quanto ao ponto de saber
se implicava, ou não, para os Estados-Membros, a obrigação de supressão dos controlos de
pessoas nas suas fronteiras comuns e se constituía, ou não, uma base jurídica adequada
para a adopção das medidas de integração jurídica positiva, ulteriormente enumeradas pelo
TJ no acórdão Wijsenbeek.
Fosse como fosse, o artigo K.1 do Título VI elencou expressamente tais medidas de
integração jurídica positiva como questões de interesse comum dos Estados-Membros
“para a realização dos objectivos da União, nomeadamente o da livre circulação de
pessoas, e sem prejuízo das atribuições e competências da Comunidade Europeia”. Entre
elas contavam-se, designadamente, “as regras aplicáveis à passagem de pessoas nas
20 Sobre a génese e o conteúdo originário do Título VI do TUE, ver por exemplo Constança Urbano de Sousa, “O «novo» Terceiro Pilar da União Europeia: a cooperação policial e judiciária em matéria penal”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume 1, Coimbra, 2001, pp. 867 ss., e Cristina Gortázar, “Abolishing Border Controls: Individual Rights and Common Control of EU External Borders” in Elspeth Guild e Carol Harlow (edit.) Implementing Amsterdam Immigration and Asylum Rights in EC Law, Oxford, 2002, pp. 128 ss.
12
fronteiras externas dos Estados-Membros e ao exercício do controlo dessa passagem”
(artigo K.1, n.º 2).
Apesar de não clarificar se o artigo 8.º-A do TCE, impunha, ou não, aos Estados-
Membros a obrigação de suprimirem os controlos de pessoas nas suas fronteiras internas e
de manter a adopção das indispensáveis medidas de integração jurídica positiva sob a égide
da cooperação intergovernamental, o Tratado de Maastricht representou uma considerável
evolução relativamente ao AUE. Com efeito, o seu Título VI veio introduzir a cooperação
intergovernamental coordenada a nível da UE, pondo fim à exclusão global da cooperação
JAI do âmbito União. Ao pôr assim o quadro institucional e jurídico desta ao serviço da
cooperação JAI, o Tratado de Maastricht veio permitir uma visão global e não segmentada
de tal cooperação, assim como a coerência das acções empreendidas em seu
desenvolvimento21.
A cooperação intergovernamental coordenada a nível da UE já implicava a
intervenção da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu (PE) e até do TJ nas “matérias
JAI”, se bem que com um estatuto muito diferente do que o TCE lhes atribui na qualidade
de “instituições supranacionais”. Na realidade, a Comissão não só não dispunha do
monopólio de iniciativa legislativa, como esta lhe era expressamente vedada em
determinadas matérias; para além disso não dispunha de quaisquer competências de
execução ou de fiscalização (artigo K.3, n.º 2). O PE, por seu lado, apenas seria informado
e consultado pela presidência do Conselho “sobre os principais aspectos das actividades
nos domínios a que se refere o presente Título”, podendo ainda dirigir perguntas ou
apresentar recomendações ao Conselho e exercer alguma influência sobre a agenda deste
através da arma do controlo orçamental (artigos K.6 e K.8). Quanto ao TJ, ele poderia
eventualmente vir a interpretar prejudicialmente determinados actos adoptados pelo
Conselho e resolver diferendos relativos à sua aplicação (artigo K.3, último parágrafo).
21 A expressão “cooperação coordenada entre os Estados-Membros a nível europeu” é utilizada por David O’Keeffe, “Can the Leopard Change its Spots? Visas, Immigration and Asylum – Following Amsterdam” in David O’Keeffe e Patrick Twomey (edit.), Legal Issues of the Amsterdam Treaty, Oxford, 1999, pp. 272-273, para caracterizar o Título VI do TUE, na sua versão originária. Para uma visão crítica, nesta perspectiva, do Título VI ver por exemplo D. M. Curtin e J. F. M. Pouw, “La coopération dans le domaine de la justice et des affaires intérieures au sein de l’Union européenne: une nostalgie d’avant Maastricht?”, Revue du Marché Unique Européen, 1995, pp. 13 ss. Na doutrina portuguesa, cf. Luís Pais Antunes, “A liberdade de circulação e a segurança interna”, cit., p. 119.
13
Podia, portanto, ver-se nas disposições citadas “ligeiras matizes comunitárias” ou mesmo
um “fermento de comunitarização”22.
Todavia, precisamente por não ter clarificado que a UE tinha por objectivo
transformar-se num espaço de fronteiras internas abertas, o Tratado de Maastricht acabou
por não dar o impulso que faltava para o desenvolvimento de uma política de fronteiras
própria da União. A análise do acervo constituído no âmbito desta até à data da entrada em
vigor do Tratado de Amesterdão comprova a modéstia dos resultados alcançados na
matéria23. E aquele que seria, sem dúvida, o mais importante dos elementos desse acervo –
a Convenção relativa à passagem das fronteiras externas da Comunidade – malogrou-se
definitivamente em Junho de 1991, devido ao contencioso hispano-britânico sobre
Gibraltar24.
4. Por todas estas razões, até à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão,
considerou-se, em geral, que a liberdade de circulação de pessoas reconhecida pelo TCE,
incluindo o direito de entrada e de permanência de qualquer nacional de um Estado-
Membro no território dos restantes, não exigia necessariamente a eliminação dos controlos
nas fronteiras comuns25. E isto não obstante a vigência, desde 1 de Julho de 1987, da
disposição que define o mercado interno da UE como “um espaço sem fronteiras internas
no qual é assegurada a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos
capitais”.
Tal como a jurisprudência proferida pelo TJ sob a vigência do AUE e do Tratado de
Maastricht veio confirmar, o direito de acesso dos nacionais de um Estado-Membro ao
território dos outros apenas implicava limitações à discricionariedade dos Estados-
Membros no exercício do jus includendi et excludendi, mas não a renúncia de princípio
àquela prerrogativa soberana nas fronteiras comuns. Mais concretamente, tal como o
22 Cf. por último Anne Weyembergh, “L’espace pénal européen” in Lucette Defalque (coord.) Actualités en droit européen et rappel de quelques principes, Bruxelas, 2006, p. 76. 23 Ver a lista dos actos adoptados em execução do artigo K.1, n.º 2, alguns dos quais de eficácia jurídica duvidosa, no documento elaborado pela Comissão Europeia, JAI-Acquis, Update October 2008, pp. 6-7. 24 Sobre as razões do malogro de tal convenção, ver por todos Cristina Izquierdo Sans, Gibraltar en la Unión Europea. Consequencias sobre el contencioso hispánico-británico y el proceso de construcción europea, Madrid, 1996, especialmente pp. 246 ss. O veto espanhol a tal convenção fundamentou-se designadamente no facto de ela converter o porto e o aeroporto de Gibraltar em fronteira externa da União sob controlo britânico. 25 No sentido de que a eliminação de tais controlos fronteiriços excederia mesmo a finalidade da Comunidade Económica Europeia, cf. Philippe Schmitter, “A Comunidade Europeia: uma forma de dominação política”, Análise Social, n.º 118-119, 1992, p. 746.
14
declarou, entre outros, o acórdão do TJ de 27 de Abril de 198926, interpretando as
directivas relativas à supressão das restrições à liberdade de circulação de pessoas então
em vigor, a única condição prévia a que os Estados-Membros podiam sujeitar o direito de
entrada no território das pessoas abrangidas por aquelas directivas era a apresentação de
bilhete de identidade ou de passaporte válidos, desde logo nas suas fronteiras. Assim
sendo, os controlos aqui levados a cabo relativamente aos nacionais dos outros Estados-
Membros não poderiam traduzir-se na colocação de questões relativamente ao objectivo e
à duração da estada no correspondente território27.
IV. – O Tratado de Amesterdão e a comunitarização da política de fronteiras da
União Europeia: impacto e desenvolvimentos
Como se referiu no início, foi o Tratado de Amesterdão que consignou o objectivo
de a UE se tornar um espaço de fronteiras internas abertas. Por conseguinte, todos os
Estados-Membros, com excepção de dois, ficaram obrigados pelo direito da UE a suprimir
os controlos de pessoas nessas fronteiras, uma vez adoptadas as medidas compensatórias
ou de acompanhamento necessárias para o efeito. Foi também o Tratado de Amesterdão
que colocou sob a égide do método comunitário a política de fronteiras da UE. Isso
permitiu que, finalmente, tal política pudesse arrancar em força – ajudada pela integração
do acervo de Schengen no âmbito da UE, nos termos atrás assinalados – e viesse a adquirir
uma centralidade progressiva entre as políticas europeias, certamente destinada a perdurar
no futuro, antes de mais nada devido à pressão imigratória sem precedentes a que a União
no seu conjunto se encontra sujeita.
São as implicações e os desenvolvimentos dessa política que importa agora
analisar.
1. Deve começar-se por registar que a redacção dada pelo Tratado de Amesterdão
ao artigo 62.º, ponto 1, do TCE – que confere competência ao Conselho para adoptar as
26 Proferido no processo Comissão contra Bélgica, 321/87, n.º 11. 27 Ver o acórdão de 31 de Maio de 1991, Comissão contra Holanda, C-68/89, n.º 13. Esta jurisprudência parece de continuar a aplicar-se, quer aos controlos fronteiriços permitidos pelo Protocolo relativo à aplicação de certos aspectos do artigo 26.º do Tratado de Roma ao Reino Unido e à Irlanda, que incidam sobre cidadãos de outros Estados-Membros e seus familiares, quer aos controlos nas fronteiras internas dos restantes Estados-Membros excepcionalmente repostos ao abrigo da actual legislação da UE.
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“medidas destinadas a assegurar, de acordo com o artigo 14.º, a ausência de controlos de
pessoas, quer se trate de cidadãos da União, quer de nacionais de países terceiros, na
passagem das fronteiras internas” – soa prima facie algo estranha. Com efeito, na prática,
só haverá ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas se, no momento da
passagem, não se distinguir entre nacionais dos Estados-Membros e nacionais de países
terceiros. Qualquer tentativa de distinguir entre ambas as categorias em tal ocasião
redunda, inevitavelmente, na realização de controlos em ordem a determinar a que
categoria pertence cada uma das pessoas que pretende atravessar a fronteira, deixando, por
conseguinte, de poder falar-se em ausência de controlos.
A precisão feita no artigo 62.º, ponto 1, pretendeu resolver em determinado sentido
a longa e bloqueadora polémica que se instalou entre os Estados-Membros a propósito da
interpretação do artigo 14.º, n.º 2, do TCE (para que aquela disposição, aliás, remete),
viabilizando assim a efectiva abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas da
UE, embora ao preço do opt-out dos dois Estados-Membros que o interpretavam em
sentido contrário.
Quanto à disposição constante do ponto 2, alínea a), do artigo 62.º – que confere ao
Conselho competência para adoptar “as normas e processos a seguir pelos Estados-
Membros para a realização dos controlos de pessoas nas fronteiras externas” – é sobretudo
de salientar que, como adiante se verá em pormenor, ela tem sido interpretada e aplicada
no sentido de que tais “normas e processos” compreendem uma forte componente de
cooperação operacional entre as autoridades nacionais competentes, colocadas em rede
para o efeito. Dificilmente poderia ser de outra maneira, tendo em conta a “colocação em
comum” das fronteiras externas, reflexamente operada pela decisão de abertura das
fronteiras internas.
A supressão dos controlos de pessoas nas fronteiras internas correspondentes a cada
Estado-Membro depende de uma decisão do Conselho tomada por unanimidade, nos
termos do artigo 2.º, n.º 2, do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da
UE, após uma avaliação individual, de onde resulte comprovada a capacidade para aplicar
na íntegra o acervo em vigor, incluindo a participação no SIS28. Quanto a este último
28 Sobre o tema ver Nuno Piçarra, “As garantias de cumprimento das obrigações dos Estados-Membros no espaço de liberdade, segurança e justiça”, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, 2007, pp. 707 ss.
16
aspecto, é antes de mais à própria UE que cabe a responsabilidade pela adaptação do SIS
às necessidades decorrentes da integração de novos Estados-Membros29.
2. É bom de ver que o artigo 62.º do TCE têm as mais fundas implicações para a
caracterização quer da UE, quer dos seus Estados-Membros e, por conseguinte, para o
próprio projecto de integração europeia no seu estádio actual.
Com efeito, o Estado enquanto organização formalmente centralizada e
diferenciada da sociedade possui, entre outras características, a de reivindicar a
competência exclusiva para controlar a circulação de pessoas e bens através das suas
fronteiras. Ora, ao renunciarem a essa reivindicação nas fronteiras internas e ao colocarem-
na em comum relativamente às fronteiras externas, os Estados-Membros provocaram uma
considerável mutação nas suas identidades tradicionais de Estados-Nações.
Por sua vez, ao atribuir à UE competência para uniformizar os controlos
fronteiriços deslocados para as fronteiras externas, o TCE aproximou-a de um federação,
dotando-a de uma fronteira externa colectiva, a defender e eventualmente a fortalecer30. A
própria UE vê-se, por conseguinte, directamente envolvida nas questões de identidade,
controlo e segurança imbricadas no conceito de fronteira31.
O que fica dito não deve, no entanto, fazer perder de vista que a distinção entre a
UE e um Estado federal continua a ser muito clara, mesmo sob a perspectiva em análise.
Isto fundamentalmente por três ordens de razões.
Em primeiro lugar, na UE, contrariamente ao que se verifica na generalidade dos
Estados federais, os controlos fronteiriços não são levados a cabo por uma autoridade
própria que se tivesse substituído às autoridades dos Estados-Membros, mas sim pelas
29 Sobre a mais recente aplicação do artigo 2.º, n.º 2, do Protocolo Schengen (Decisão 2007/801/CE do Conselho, de 6 de Dezembro, JO L 323, de 8-12-2007), que resultou na abolição dos controlos nas fronteiras internas com a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Eslovénia e Malta, ver Nuno Piçarra, “O Tratado de Roma e as fronteiras dos Estados-Membros” in Marta Tavares de Almeida e Nuno Piçarra (coord.), 50 Anos do Tratado de Roma, Lisboa, 2008, pp. 230-232. A anterior aplicação daquele preceito data de 1 de Dezembro de 2000 (Decisão 2000/777/CE do Conselho, JO L 309/24, de 9-12-2000) e saldou-se pela abolição dos controlos de pessoas nas fronteiras internas com a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia, mas também com a Islândia e a Noruega, pelas razões já indicadas. 30 Como observa Philippe Schmitter, “A Comunidade Europeia: uma forma nova de dominação política”, cit., pp. 744-745, numa federatio procede-se à harmonização ou mesmo à estandardização dos controlos fronteiriços, contrariamente à confederatio, em que o controlo sobre a deslocação física de pessoas é subunitário, ou seja, nacional, continuando, por conseguinte, a ser levado a cabo nas fronteiras comuns entre os membros. 31 Para maiores desenvolvimentos, ver Malcolm Anderson e Didier Bigo, “What are EU Frontiers for and what do they mean?” in Kees Groenendijk, Elspeth Guild e Paul Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 7 ss.
17
próprias autoridades policiais destes, embora fiscalizadas e coordenadas, nos termos
adiante analisados, por instâncias centrais.
Por outro lado, acentuando o contraste, dois Estados-Membros – o Reino Unido e a
Irlanda – obtiveram, com já se disse, a dispensa da obrigação de suprimirem os controlos
de pessoas nas suas fronteiras internas, consignada em Protocolo anexado ao TCE pelo
Tratado de Amesterdão, assim como estão dispensados de proceder aos controlos nas suas
fronteiras externas em conformidade com a legislação da União aplicável. Com efeito, nos
termos do artigo 1.º, alínea a), conjugado com o artigo 2.º daquele Protocolo – relativo à
aplicação de certos aspectos do artigo 14.º do TCE ao Reino Unido e à Irlanda –, estes dois
Estados-Membros estão habilitados a exercer, nas suas fronteiras com os restantes, os
controlos de pessoas que considerem necessários para verificar o direito de entrada
decorrente daquele tratado. A Irlanda só está, porém, habilitada a proceder a tais controlos
fronteiriços enquanto se mantiverem em vigor os convénios celebrados com o Reino Unido
em matéria de circulação de pessoas entre os respectivos territórios. Por sua vez, nos
termos do artigo 3.º, os demais Estados-Membros ficam habilitados, em virtude do
princípio da reciprocidade, a exercer, nas respectivas fronteiras, controlos para fins
idênticos sobre as pessoas provenientes do Reino Unido e da Irlanda.
Na conferência intergovernamental que culminou no Tratado de Amesterdão, estas
dispensas constituíram, aliás, a “moeda de troca” em relação ao assentimento que ambos os
Estados-Membros deram à introdução no TCE, não só do artigo 62.º, mas também das
restantes disposições do Título IV da Parte III em matéria de vistos, asilo, imigração e
outras políticas relativas à livre circulação de pessoas32.
Finalmente, sendo certo que “as fronteiras internas podem ser transpostas em
qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua
nacionalidade”33, certo é também que, “em caso de ameaça grave para a ordem pública ou
32 Em Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda face ao Título IV da Parte III do TCE, ambos os Estados-Membros negociaram o direito de não se vincularem ao disposto neste título (opt-out) e, ao mesmo tempo, o direito de aderir selectivamente (opt-in), segundo os interesses de cada um, aos instrumentos jurídicos paulatinamente adoptados em execução do título do TCE em causa. 33 Segundo Malcolm Anderson e Didier Bigo, op. cit., p. 18, “a análise da prática demonstra que os controlos foram meramente transferidos e modernizados. Em vez de um controlo sistemático na fronteira interna, foi estabelecida uma zona de controlo proactivo de vinte quilómetros, permitindo controlos frequentes (…). A fronteira interna está simbolicamente livre de controlo, mas os controlos de pessoas mantêm-se”. No mesmo sentido, Kees Groenendijk, “New Borders Behind Old Ones: Post-Schengen Controls Behind the Internal Borders and Inside the Netherlands and Germany” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 131 ss., passim.; por último, Anaïs Faure Atger, “The Abolition of Internal Border Checks in an Enlarged Schengen Area: Freedom of movement or scattered web of security
18
a segurança interna, um Estado-Membro pode excepcionalmente reintroduzir o controlo
nas suas fronteiras internas durante um período limitado”. Também a este respeito, a
diferença entre a UE e um Estado federal é inequívoca.
3. Ao transferir para o âmbito do TCE (Título IV da Parte III) as políticas de
fronteiras, de asilo e de imigração (até então abrangidas pelo Título VI do TUE), o Tratado
de Amesterdão constituiu um marco fundamental no processo de rendição progressiva dos
Estados-Membros ao método comunitário em domínios profundamente ligados à sua
soberania. Mesmo assim, atestando a “dialéctica” resistência/rendição a tal método no
domínio daquelas políticas, a começar pela política de fronteiras, foram previstas, num
primeiro momento, algumas derrogações de monta.
Cumpre destacar, a este respeito, a quebra do monopólio de iniciativa legislativa da
Comissão (artigo 67.º, n.º 1, do TCE), a qual partilhou o correspondente poder com os
Estados-Membros durante um período transitório de cinco anos, expirado em 1 de Maio de
2004. A partir desta data, a Comissão recuperou plenamente, em relação às matérias
abrangidas pelo Título em causa, o monopólio de iniciativa legislativa – o que constitui,
como é sabido, um dos elementos estruturantes do método comunitário.
Por outro lado, para evitar que, com a transformação em direito comunitário do
acervo de Schengen relativo às fronteiras, a Comissão e o TJ pudessem intervir na
resolução de litígios do tipo do que a opunha à Bélgica e ao Luxemburgo, a França fez
depender o seu assentimento à comunitarização desse acervo da consagração de mais uma
derrogação ao método comunitário. Ela encontra-se no artigo 68.º, n.º 2, do TCE, nos
termos do qual o TJ “não tem competência, em caso algum, para se pronunciar sobre
medidas ou decisões tomadas em aplicação do ponto 1 do artigo 62.º relativas à
manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna”.
Isto significa que, durante a vigência deste preceito, o TJ não poderia, nem por
iniciativa de um tribunal nacional no quadro de um reenvio prejudicial34, nem por
iniciativa da Comissão ou de um Estado-Membro, no quadro de uma acção por
incumprimento, apreciar a legalidade da aplicação, por qualquer Estado-Membro, da
checks?”, CEPS, Bruxelas, 2008, http://www.ceps.eu, p. 18, que fala neste contexto de uma multiplicação de fronteiras funcionais alternativas. 34 Recorde-se que, nos termos do artigo 68.º do TCE, apenas os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno podiam submeter ao TJ questões prejudiciais de interpretação das disposições constantes do Título IV da Parte III e de interpretação ou de validade do direito comunitário nele baseado – o que constituía outra derrogação ao método comunitário.
19
cláusula que lhe permite excepcionalmente repor os controlos de pessoas nas suas
fronteiras internas35.
Para além disso, há a registar a resistência, a título individual, ao método
comunitário também por parte da Dinamarca, o que conduziu a uma bizarra solução
constante do protocolo aprovado conjuntamente com o Tratado de Amesterdão, relativo à
posição deste Estado-Membro face ao Título IV da Parte III do TCE. Tal protocolo
permite-lhe, no essencial, encarar os instrumentos jurídicos aprovados (sempre sem a sua
participação) em execução deste título que se revelem essenciais para a manutenção e o
desenvolvimento da UE enquanto espaço de fronteiras internas abertas, como se eles
continuassem a ter origem no quadro de mera cooperação intergovernamental instituída
pelos acordos de Schengen e constituíssem, por conseguinte, simples instrumentos de
direito internacional público.
Nos termos do artigo 5.º do protocolo em causa, a Dinamarca dispõe de seis meses
para decidir “se procederá à transposição [de cada um desses instrumentos] para o seu
direito interno. Se decidir fazê-lo, [cada um deles] criará uma obrigação de direito
internacional entre a Dinamarca e os restantes Estados-Membros” integrados naquele
espaço. Se, ao invés, a Dinamarca “decidir não aplicar” qualquer daqueles instrumentos
jurídicos – a começar precisamente por aqueles que se reportam às fronteiras –, os
restantes Estados-Membros “analisarão as medidas adequadas a tomar”, o que poderá
incluir a reposição dos controlos de pessoas nas suas fronteiras com a Dinamarca36.
4. Não é só o aditamento ao TCE do artigo 62.º que está na origem do
desenvolvimento em força da política de fronteiras da UE ao longo da primeira década do
35 Em sentido contrário, ver a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social, ao Comité das Regiões e ao Tribunal de Justiça, sobre a adaptação das disposições do Título IV da Parte III do TCE relativas às competências daquele tribunal, com vista a garantir uma protecção jurisdicional mais efectiva, de 28 de Junho de 2006, COM(2006) 346 final, pp. 7-8 e nota 13. Para a Comissão, o n.º 2 do artigo 68.º só exclui da fiscalização do TJ as “medidas comunitárias adoptadas pelo legislador com base no artigo 62.º, ponto 1, do TCE desde que versem sobre a manutenção da ordem pública e a garantia da segurança interna”, incluindo as regras sobre a reintrodução, a título excepcional, dos controlos fronteiriços. O artigo 68.º, n.º 2, não excluiria, portanto, da fiscalização do TJ as “medidas nacionais relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna” (ênfase no original). A Comissão acaba, porém, por cair em contradição, ao considerar “incoerente em relação ao resto do Tratado” a exclusão da competência do TJ relativamente às medidas nacionais tomadas para manter a ordem pública e a segurança interna. Isto porque, desde as origens, aquele tribunal tem tido por missão pronunciar-se sobre a conformidade com o direito comunitário de tais medidas. Ora, de onde resulta a exclusão de tal competência do TJ, que a Comissão afinal reconhece, senão do artigo 68.º, n.º 2 do Tratado de Roma? 36 Sobre a posição da Dinamarca no ELSJ ver, por exemplo, Kim U. Kjaer, “How many borders in the EU?” cit., pp. 176-180.
20
século XXI. Tal desenvolvimento tem sido também determinantemente impulsionado pelo
Conselho Europeu, antes de mais através dos chamados Programas de Tampere e da Haia,
aprovados respectivamente em 16 de Outubro de 1999 e 5 de Novembro de 2004.
No primeiro, o Conselho Europeu exortou “a um estreitamento das relações de
cooperação e assistência técnica mútua entre os serviços de controlo das fronteiras dos
Estados-Membros – em que se incluem, por exemplo, programas de intercâmbio e de
transferência de tecnologia, em especial nas fronteiras marítimas –”, salientando “a
importância de que o controlo das futuras fronteiras externas da União seja efectuado por
profissionais devidamente habilitados”37.
Por seu lado, no Programa da Haia, o Conselho Europeu convidou expressamente o
Conselho “a criar equipas de peritos nacionais, que poderão prestar assistência técnica e
operacional reforçada aos Estados-Membros que o solicitem (…), com base numa proposta
que a Comissão deverá apresentar em 2005 sobre as competências e o financiamento das
referidas equipas”. Convidou ainda o Conselho e a Comissão “a criarem um fundo
comunitário de gestão das fronteiras o mais tardar até ao final de 2006”38.
Importa agora analisar o modo como o legislador da União, baseando-se no artigo
62.º do TCE, deu cumprimento a tais impulsos e directrizes39.
5. O primeiro acto legislativo a referir neste contexto é o Regulamento (CE) n.º
562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março40, que estabelece o
código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das
Fronteiras Schengen), em vigor desde 13 de Outubro de 2006. No seu artigo 1.º, n.º 1, este
diploma (a seguir designado por CF) reafirma o princípio da ausência de controlos de
pessoas na passagem das fronteiras internas (terrestres, marítimas e aéreas) dos Estados-
Membros, no sentido de que elas “podem ser transpostas em qualquer local sem que se
proceda a controlos” (artigo 20.º) e sem “obstáculos que impeçam a fluidez do tráfego nos
pontos de passagem rodoviários de fronteiras internas” (artigo 22.º).
O princípio fundamental assim enunciado não prejudica, nem a realização de
controlos no interior do território, ou seja, o “exercício das competências de polícia pelas
37 Ver, em especial, os n.ºs 24 e 25 do Programa de Tampere. 38, Cf. o n.º 1.7.1. do “Programa da Haia: reforço da liberdade, da segurança e da justiça na União Europeia” (2005/C 53/01), JO C 53, de 3-3-2005, p. 6. 39 Segue-se aqui de perto, embora com alguns desenvolvimentos suplementares, o que se escreveu em “O Tratado de Roma e as fronteiras dos Estados-Membros”, cit., pp. 201-210. 40 JO L 105, de 13-4-2006, pp. 1 ss.
21
autoridades competentes dos Estados-Membros, ao abrigo do direito nacional, na medida
em que o exercício dessas competências não tenha efeito equivalente a um controlo de
fronteira, o mesmo se aplicando nas zonas fronteiriças” (artigo 21.º), nem a reposição, a
título excepcional, por qualquer Estado-Membro, dos controlos nas respectivas fronteiras
internas “em caso de ameaça grave para a ordem pública ou a segurança interna”, “durante
um período limitado não superior a 30 dias, ou pelo período de duração previsível da
ameaça grave, se a duração desta exceder o período de 30 dias” (artigo 23.º).
O CF estabelece, por outro lado, em termos completos e uniformes, as regras
aplicáveis ao controlo de pessoas na passagem das fronteiras externas dos Estados-
Membros (artigo 1.º, n.º 2), versando especificamente sobre as condições de entrada, a
recusa de entrada, os recursos humanos e os meios destinados ao controlo fronteiriço,
assim como sobre a cooperação entre os Estados-Membros nestes domínios. Tal como
enfatiza o sexto considerando do Regulamento n.º 562/2006, “o controlo fronteiriço não é
efectuado exclusivamente no interesse do Estado-Membro em cujas fronteiras externas se
exerce, mas no interesse de todos os Estados-Membros que suprimiram o controlo nas suas
fronteiras internas [e] deverá contribuir para a luta contra a imigração clandestina e o
tráfico de seres humanos”41.
Tratando-se de nacionais de países terceiros, as condições de entrada para uma
estada que não exceda três meses durante um período de seis meses vêm previstas no
artigo 5.º, n.º 1. Nos termos desta disposição, os seus destinatários devem (1) estar na
posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da
fronteira externa; (2) estar na posse de um visto válido se forem nacionais de um país
terceiro constante da lista estabelecida pelo Regulamento (CE) n.º 539/2001 do Conselho,
de 15 de Março42, a menos que sejam detentores de um título de residência válido; (3)
justificar o objectivo e as condições de estada prevista e dispor de meios de subsistência
suficientes, tanto para a duração da estada como para o regresso ao país de origem ou para
o trânsito para um país terceiro em que a sua admissão esteja garantida, ou então estar em
condições de obter licitamente esses meios. Para além disso, os nacionais de países
terceiros não devem estar indicados no SIS para efeitos de não admissão, nem ser
considerados susceptíveis de perturbar a ordem pública, a segurança interna, a saúde 41 A este respeito, o CF complementa-se com o “Guia Prático para os Guardas de Fronteira (Manual Schengen) para ser usado pelas competentes autoridades ao efectuar os controlos fronteiriços de pessoas”, constante da Recomendação da Comissão Europeia de 6 de Novembro de 2006, C(2006) 5186 final. 42 Alterado por último pelo Regulamento (CE) n.º 1244/2009 do Conselho, de 30 de Novembro de 2009, JO L 336, de 18-12-2009, pp. 1 ss.
22
pública ou as relações internacionais de qualquer Estado-Membro e, em especial, não estar
indicados para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de dados dos
Estados-Membros.
Por força do artigo 6.º, no desempenho das suas funções, os guardas de fronteira
devem respeitam plenamente a dignidade humana e não discriminar as pessoas em razão
do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação
sexual43.
6. A título de excepção às regras gerais relativas ao controlo das pessoas que
pretendam atravessar as fronteiras externas da UE, constantes do CF, o Parlamento
Europeu e o Conselho aprovaram em 20 de Dezembro de 2006, o Regulamento (CE) n.º
1931/2006, que estabelece o regime aplicável ao pequeno tráfego fronteiriço em tais
fronteiras44.
O princípio fundamental é o de que os nacionais de países terceiros legalmente
residentes na zona fronteiriça de um país vizinho de um Estado-Membro por um período
mínimo de um ano – os “residentes fronteiriços” – podem atravessar, de forma
simplificada, a fronteira externa terrestre do Estado-Membro vizinho, desde que (1) sejam
titulares da necessária autorização; (2) não estejam indicados no SIS para efeitos de não
admissão; (3) não sejam considerados uma ameaça para a ordem pública, a segurança
interna, a saúde pública ou as relações internacionais de qualquer Estado-Membro e (4)
não estejam indicados para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de
dados nacionais dos Estados-Membros (artigo 4.º).
A simplificação, a estipular mediante acordos bilaterais entre Estados-Membros e
países terceiros vizinhos, poderá consistir (1) no estabelecimento de pontos especiais de
passagem das fronteiras externas reservados aos residentes fronteiriços; (2) na reserva de
corredores especiais para tais residentes nos pontos normais de passagem das fronteiras;
(3) na autorização de passagem das fronteiras terrestres externas em pontos definidos,
distintos dos pontos de passagem autorizados e das horas de abertura previstas, “tendo em
43 Considerando que o artigo 6.º do CF não pode ser entendido no sentido de que, ao efectuar os controlos de fronteira, os Estados-Membros estão simplesmente obrigados a garantir a dignidade humana ou a evitar violações graves de direitos fundamentais, ver Ruth Weinzierl, “The Demands of Human and EU Fundamental Rights for the Protection of the European Union’s External Borders” in Ruth Weinzierl e Ula Lisson, Border Management and Human Rights. A study of EU Law and the Law of the Sea, Berlim, 2007, p. 50. Segundo a autora, em consequência da sua vinculação aos direitos fundamentais no âmbito de aplicação do direito da UE, os Estados-Membros devem respeitá-los integralmente ao aplicarem o CF. 44 JO L 405, de 30-12-2006, pp. 1 ss.
23
conta circunstâncias locais e quando excepcionalmente existirem exigências de natureza
especial”. Em tais circunstâncias, os residentes fronteiriços apenas serão, regra geral,
submetidos a controlos aleatórios, sem prejuízo de “controlos rigorosos esporádicos, sem
aviso e a intervalos regulares” (artigo 15.º).
Este regime excepcional de passagem das fronteiras externas aplicável ao pequeno
tráfego fronteiriço decorre da percepção, pelo legislador da União, de que, se se tornasse
tal tráfego muito mais difícil, acabar-se-ia inevitavelmente por fomentar a imigração
permanente para a UE. Tal regime traduz simultaneamente o entendimento prevalecente
entre os Estados-Membros mais recentes no sentido de que “fechar a porta” aos vizinhos
mais pobres da Europa de Leste constituiria um risco ainda maior para a segurança da
própria UE, uma vez que ameaçaria a estabilidade destes e portanto da própria região45.
7. A boa aplicação do CF e das restantes normas comuns acabadas de analisar,
imposta pelo objectivo de garantir “um nível elevado e uniforme de controlo e vigilância
nas fronteiras externas, corolário indispensável da livre circulação de pessoas na União
Europeia e elemento fundamental do espaço de liberdade, segurança e justiça”, depende de
uma efectiva coordenação da cooperação operacional entre as competentes autoridades
dos Estados-Membros. Para esse efeito, o Conselho, pelo Regulamento (CE) n.º
2007/2004, de 26 de Outubro, criou a Agência Europeia de Gestão da Cooperação
Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros, mais conhecida por Frontex,
estabelecendo-lhe a sede em Varsóvia46.
Tal agência, que iniciou o seu funcionamento em Outubro de 2005 e está em vias
de constituir uma reserva estratégica que pode ir até 500 guardas de fronteira, constitui um
instrumento fundamental ao serviço da gestão integrada das fronteiras externas da UE.
Entre as suas funções destacam-se (1) a coordenação da cooperação operacional e da
assistência entre os Estados-Membros no âmbito da gestão de tais fronteiras; (2) o apoio na
formação dos guardas de fronteiras nacionais e na definição de normas de formação 45 Para maiores desenvolvimentos, ver Virginie Guiraudon, “Before the EU Border: Remote Control of the «Huddled Masses»” in K. Groenendijk, E. Guild e P. Minderhoud (ed.), In Search of Europe’s Borders, cit., pp. 209-211. Aí se refere que cerca de 30% a 40% das pequenas e médias empresas polacas vivem do comércio com a Ucrânia e que o comércio fronteiriço muito vivo deu à Polónia um saldo líquido de 1, 5 biliões de euros. Por isso, um governante deste Estado-Membro declarou que o acervo de Schengen será por ele aplicado “com uma nota de rodapé: a fronteira externa oriental da UE não deve constituir um muro mas uma ponte”. 46 JO L 349, de 25-11-2004, pp. 1 ss. e L 114, de 4-5-2005, p. 13; ver também a Comunicação da Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, “Rumo a uma gestão integrada das fronteiras externas dos Estados-Membros da União Europeia”, de 7 de Maio de 2002, COM(2002) 233 final, especialmente pp. 6 ss.
24
comuns; (3) a realização de análises de risco; (4) o acompanhamento da evolução da
pesquisa em matéria de controlo e vigilância das fronteiras externas; (5) o apoio aos
Estados-Membros confrontados com circunstâncias que exijam uma assistência
operacional e técnica reforçada nas fronteiras externas (artigo 2.º).
No desempenho destas funções, a Frontex pode, por sua própria iniciativa e de
comum acordo com o ou os Estados-Membros interessados, lançar operações conjuntas e
projectos-piloto em cooperação com eles, bem como colocar os seus equipamentos
técnicos à disposição daqueles que participem em tais operações e projectos (artigo 3.º).
Por seu lado, os Estados-Membros confrontados com circunstâncias que exijam uma
assistência técnica e operacional reforçada no cumprimento das suas obrigações em
matéria de controlo e de vigilância das respectivas fronteiras externas, dispõem da
faculdade de solicitar a intervenção da Frontex, a qual pode organizar essa assistência em
favor do ou dos requerentes (artigo 8.º).
A pedido do Conselho formulado em Outubro de 2006, a Frontex criou um
inventário central do equipamento técnico disponível (CRATE), previsto no artigo 7.º. E a
pedido do Conselho Europeu de Dezembro de 2006 foi criada sob a égide da Frontex a
Rede Europeia de Patrulhas (REP) que entrou em funcionamento em Maio de 2007 tendo
como Estados-Membros participantes Portugal, Espanha, França, Itália, Eslovénia, Malta,
Grécia e Chipre.
8. O Regulamento (CE) n.º 863/2007, aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo
Conselho em 11 de Julho de 2007 em complemento do Regulamento (CE) n.º 2007/2004, e
também destinado a “apoiar a correcta aplicação do Regulamento (CE) n.º 562/2006”, veio
estabelecer um mecanismo específico de prestação de assistência operacional pela Frontex,
com a participação de outros Estados-Membros, por um período de tempo limitado, sob a
forma de equipas de intervenção rápida nas fronteiras47, ao Estado-Membro que a
requeira “por se ver confrontado com uma situação de pressão urgente e excepcional,
especialmente devido à chegada de um grande número de nacionais de países terceiros a
pontos das fronteiras externas, no intuito de entrarem ilegalmente no território desse
Estado-Membro” (artigo 1.º).
47 De acordo com a sua epígrafe, este regulamento, publicado in JO L 199, de 31-7-2007, pp. 30 ss., “estabelece um mecanismo para a criação de equipas de intervenção rápida nas fronteiras, altera o Regulamento (CE) n.º 2007/2004 do Conselho no que se refere a este mecanismo e regulamenta as competências e tarefas dos agentes convidados”.
25
É ao conselho de administração da Frontex que cabe decidir, por maioria de três
quartos, sob proposta do director executivo, sobre os perfis e o número total dos guardas de
fronteira a disponibilizar para as equipas de intervenção, com vista à formação de um
Contingente de Intervenção Rápida. Os Estados-Membros contribuem para este
contingente através de uma grupo nacional que devem criar para o efeito, “constituído com
base nos diferentes perfis definidos, designando guardas de fronteira que correspondam aos
perfis exigidos” (artigo 4.º, n.º 2).
A decisão sobre o pedido do Estado-Membro que requer a intervenção deve ser
tomada pelo director executivo até cinco dias úteis a contar da data de recepção desse
pedido. Se necessário, o director executivo pode enviar um perito para avaliar a situação
nas fronteiras externas do Estado-Membro requerente. Em alternativa à criação de uma
equipa de intervenção rápida, poderá ser enviado pessoal especializado da própria Frontex
para apoiar o Estado-Membro em causa, prestando-lhe aconselhamento.
Em caso de deferimento do pedido, a equipa de intervenção rápida solicitada é
constituída com os guardas de fronteira que os outros Estados-Membros devem
disponibilizar para o destacamento determinado pela Frontex, a não ser que eles próprios
se vejam confrontados com “uma situação excepcional que afecte substancialmente o
cumprimento das missões nacionais”. São incluídos na equipa um ou mais peritos da
Frontex, na qualidade de agentes de coordenação, a fim de a representar e agir como
interface entre ela e o Estado-Membro de acolhimento, por um lado, e entre ela e os
membros das equipas, por outro, prestando assistência em todas as questões relativas às
condições do destacamento destes últimos nas equipas. No cumprimento das suas funções,
o agente de coordenação apenas aceita instruções da Frontex (artigo 8.º-G do Regulamento
n.º 2007/2004, na sua nova redacção).
Os membros das equipas de intervenção rápida – definidos pelo artigo 3.º, n.º 2,
como os guardas de fronteira dos Estados-Membros, com excepção do Estado-Membro de
acolhimento, que integram tais equipas – só podem desempenhar tarefas e exercer
competências sob as ordens e, de um modo geral, na presença dos guardas de fronteira do
Estado-Membro de acolhimento. Só são autorizados a recorrer à força, incluindo a armas
de serviço, munições e equipamento, com o consentimento do Estado-Membro de origem e
do Estado-Membro de acolhimento, nos termos da lei nacional deste último. Os membros
das equipas podem ser autorizados pelo Estado-Membro de acolhimento a consultar as
suas bases de dados nacionais e europeias necessárias para proceder aos controlos e à
26
vigilância das fronteiras (artigo 6.º). As decisões de recusa de entrada de nacionais de
países terceiros, nos termos do artigo 13.º do CF, só podem ser tomadas pelos guardas de
fronteira do Estado-Membro de acolhimento.
As equipas de intervenção rápida são particularmente ilustrativas da noção de
espaço aqui subjacente: elas constituem uma derrogação ao clássico princípio estadual da
territorialidade, ao permitir às autoridades de fronteiras de um Estado-Membro a
intervenção no território de outro, embora em conjugação e com o acordo das autoridades
deste último. Através do novo mecanismo, as acções dos Estados-Membros entrelaçam-se
ainda mais a nível horizontal48.
9. A Decisão n.º 574/2007/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de
Maio de 2007, por seu lado, criou o Fundo para as Fronteiras Externas para o período de
2007 a 2013, no âmbito do programa geral “Solidariedade e gestão dos fluxos
migratórios”49.
Recordando, no seu preâmbulo, que alguns Estados-Membros vêem-se perante
maiores dificuldades do que os outros ao contribuírem para assegurar, a um nível elevado e
uniforme, o controlo das pessoas e a vigilância das fronteiras externas da UE, em
conformidade com o CF, e que a partilha das responsabilidades entre os Estados-Membros
e a UE no que se refere à gestão de tais fronteiras é uma das cinco componentes da política
comum na matéria (proposta pela Comissão em 7 de Maio de 2002 e aprovada pelo
Conselho em 14 de Junho seguinte), a decisão em análise inscreve o Fundo para as
Fronteiras Externas no “quadro coerente” que engloba o Fundo Europeu para os
Refugiados, o Fundo Europeu de Regresso e o Fundo Europeu para a Integração dos
Nacionais de Países Terceiros, afectando-o ao reforço do ELSJ e à aplicação do princípio
da solidariedade entre os Estados-Membros (artigo 1.º).
O Fundo tem como objectivos gerais, designadamente, a aplicação uniforme do CF
e a melhoria da gestão das actividades organizadas pelos serviços consulares e outros
serviços dos Estados-Membros nos países terceiros, bem como a cooperação entre eles no
que se refere aos fluxos de nacionais destes países para a UE (artigo 3.º). Entre os
objectivos específicos do Fundo pontificam os de melhorar não só a capacidade e as
48 Neste sentido, Ruth Weinzierl, op. cit., p. 54; ver também Anne Weyembergh, “L’espace pénal européen”, cit., p. 86, referindo-se especificamente às equipas comuns de investigação, homólogas das equipas de intervenção rápida no domínio de outra componente do ELSJ que é a cooperação judiciária em matéria penal. 49 JO L 144 de 6-6-2007, pp. 22 ss.
27
qualificações dos guardas de fronteira para executarem as suas missões de vigilância, de
aconselhamento e de controlo, mas também o intercâmbio de informações a nível nacional
entre as autoridades responsáveis pela gestão das fronteiras externas e entre estas e outras
autoridades responsáveis nos domínios da migração, asilo e outras questões conexas (artigo
4.º).
O enquadramento financeiro do Fundo para o período compreendido entre 1 de
Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2013 é de 1 820 000 000 euros, anualmente
repartidos pelas acções elegíveis nos Estados-Membros (artigos 13.º e 14.º). Cabe à
Comissão executar a Decisão n.º 574/2007/CE, mediante a aprovação de todas as
disposições necessárias para o efeito (artigo 25.º).
V. – As novas etapas
Já em 2008, a Comissão Europeia avançou com um conjunto de propostas e
recomendações em matéria de política de fronteiras, pretendendo marcar com elas uma
nova etapa na evolução de tal política. Por outro lado, a entrada em vigor do Tratado de
Lisboa é outra importantíssima etapa na evolução global do ELSJ, de que tal política
constitui, como se viu, um elemento nuclear.
A concluir este estudo, importa pois analisar as novas etapas em presença.
Começar-se-á pelas propostas da Comissão, procurando surpreender-lhes o seu sentido
global e a cobertura que eventualmente lhes dá o Tratado de Lisboa.
1. As propostas e recomendações da Comissão constam de três comunicações
dirigidas ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité
das Regiões, todas datadas de 13 de Fevereiro de 2008. A primeira contém o Relatório
sobre a avaliação e o desenvolvimento futuro da Agência Frontex; a segunda analisa a
criação de um Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR); a terceira tem
por epígrafe “Preparar as próximas etapas da gestão das fronteiras na União Europeia”50.
50 Os números das comunicações são respectivamente: COM(2008) 67 final, COM(2008) 68 final e COM(2008) 69 final. Todas elas vêm acompanhadas de documentos de trabalho dos serviços da Comissão. Para uma primeira apreciação crítica ver E. Guild, S. Carrera e F. Geyer, “The Commission’s New Border Package: Does it take us one step closer to ‘cyber-fortress Europe’?”, CEPS Policy Brief No 154, CEPS, Bruxelas, 2000, http://www.ceps.eu.
28
Começando por esta última comunicação, que é a de carácter mais geral, aí se
recorda que a gestão integrada das fronteiras não se esgota na tomada de medidas nas
próprias fronteiras, englobando também medidas tomadas no interior da UE, medidas
tomadas no exterior dela pelos consulados dos Estados-Membros e medidas tomadas em
cooperação com países vizinhos.
No tocante à primeira espécie de medidas, a Comissão preconiza como nova etapa a
facilitação da passagem das fronteiras externas “de viajantes de baixo risco de países
terceiros” aos quais será de conceder o estatuto de “viajante registado” devido a “um
historial fiável das viagens anteriores”. Tal implicará a criação de sistemas de controlos
automáticos naquelas fronteiras, assim como pontos de passagens específicos para o efeito.
Para além disso, preconiza-se a passagem automatizada das fronteiras externas dos
cidadãos da União portadores de passaportes biométricos através das mesmas vias
utilizadas por nacionais de países terceiros com o estatuto de viajantes registados.
Tratando-se, por outro lado, de medidas a tomar no interior dos territórios dos
Estados-Membros, a Comissão preconiza a criação de um mecanismo de alerta acessível às
autoridades nacionais sempre que o período autorizado de estada de um estrangeiro chegue
ao fim e não haja registo da saída do mesmo. Tal mecanismo pressupõe a prévia criação de
um sistema de registo automático das entradas e saídas de nacionais de países terceiros51.
Como é sabido, a maior parte dos estrangeiros que se encontram ilegalmente na UE (e cujo
número se elevava a oito milhões em 2006) começaram por entrar nela legalmente52.
Finalmente, como principal medida de gestão integrada das fronteiras da UE
aplicável no exterior, a comunicação em análise preconiza a instauração de um sistema
electrónico de autorização de viagem destinado a nacionais de países terceiros não sujeitos
à obrigação de visto. Estes ficariam obrigados a fornecer por via electrónica dados
susceptíveis de permitir às autoridades competentes determinar previamente se reúnem, ou
não, as condições de entrada na UE.
No que toca, mais especificamente, ao EUROSUR, a nova comunicação pretende-
se um desenvolvimento da já citada comunicação da Comissão de 30 de Novembro de
51 Afirma-se no documento de trabalho dos serviços da Comissão que acompanha a comunicação em análise, SEC(2008) 154, p. 7, que só será necessária uma nova base de dados centralizada para o sistema de entrada/saída e o programa de viajantes registados. No sentido de que projectos caros e de resultados incertos como os que estão em causa, envolvendo a recolha e a retenção massiva de dados, só devem ser contemplados se houver provas claras de que são centrais para a execução do direito da UE, ver E. Guild, S. Carrera e F. Geyer, “The Commission’s New Border Package: Does it take us one step closer to’cyber-fortress Europe’?”, cit., p. 2. 52 Cf. John Cowley, “Locating Europe”, cit., p. 34.
29
2006, onde pela primeira vez se propôs a criação de um tal sistema. A nova comunicação
vem apontar para o desenvolvimento dele através da instituição, não só nos Estados-
Membros que formam as fronteiras marítimas meridionais da UE, mas também nos que
formam as suas fronteiras terrestres orientais e as fronteiras marítimas do Mar Negro, de
centros de coordenação nacionais únicos que constituirão a peça central dos sistemas
nacionais únicos de vigilância das fronteiras, entre os quais deverá estabelecer-se uma rede
de comunicações, incluindo também a Agência Frontex.
Através do contributo para que os Estados-Membros tenham uma ideia clara da
situação nas suas fronteiras externas, o EUROSUR deverá possibilitar uma resposta mais
coerente e eficaz por parte deles a desafios como a imigração ilegal, incluindo a perda de
vidas de imigrantes clandestinos no mar, o terrorismo e a criminalidade organizada
transfronteiras. Tal sistema poderá constituir “um precursor de um enquadramento comum
de partilha de informações relativo a toda a zona marítima da UE que abranja todos os
aspectos de segurança e protecção marítima”53.
Tratando-se finalmente da própria Agência Frontex, a Comissão preconiza a
maximização do seu contributo para a gestão das fronteiras marítimas meridionais da
União, que são as mais sujeitas à pressão imigratória. Tal deverá converter aquela agência
no “centro de um sistema aperfeiçoado de troca de informações operacionais em tempo
real entre os Estados-Membros” (n.º 35). E a longo prazo, segundo a Comissão, deverá ser
considerada a substituição das funções de coordenação dos recursos dos Estados-Membros
que a Frontex actualmente desempenha “pela nomeação de guardas de fronteira e a
atribuição de equipamento de modo permanente” (n.º 39).
A este respeito, a Comissão reitera a proposta constante da já citada comunicação
de 7 de Maio de 2002, no sentido da criação de um Corpo Europeu de Guarda de
Fronteiras “a médio prazo e provavelmente após alteração dos Tratados” e uma vez
superadas as dificuldades constitucionais dos Estados-Membros, ligadas à concessão de
prerrogativas de autoridade a agentes que não possuam a respectiva nacionalidade. Tal
corpo europeu de polícia deverá pois resultar da metamorfose da Agência Frontex.
Isto confirma que o objectivo de “manutenção e desenvolvimento” da UE enquanto
espaço de fronteiras internas abertas faz surgir exigências de restrições maiores e mais
coordenadas da entrada a partir do exterior, com vista a protegê-la, no seu conjunto, de
53 Cf. o documento de trabalho da Comissão que acompanha a Comunicação sobre a criação de um Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR), SEC(2008) 152, n.º 6.
30
“indivíduos e produtos indesejáveis: criminosos, terroristas, imigrantes ilegais, droga,
etc.”. Assim como confirma que “este novo imperativo territorial” é susceptível de
conduzir a prazo – antes de mais, “devido a deficiências das capacidades nacionais” – à
criação de uma polícia de fronteiras da própria UE, irredutível à mera “combinação das
partes nacionais”54.
2. O Tratado de Lisboa não faz, contudo, qualquer referência à criação de uma
polícia de fronteiras da UE. Numa linha de uma maior “prudência semântica”, limita-se a
pôr explicitamente a cargo desta o desenvolvimento de uma política que visa “introduzir
gradualmente um sistema integrado de gestão das fronteiras externas”, acrescentando para
o efeito ao artigo 77.º do Tratado de Roma um novo n.º 1, alínea c). Mas este conceito
cobre seguramente uma evolução no sentido apontado pela Comissão, tanto mais que o n.º
2 do mesmo artigo 77.º atribui expressamente à UE competência legislativa para adoptar
“qualquer medida necessária à introdução gradual de um sistema integrado de gestão das
fronteiras externas” (ênfase acrescentada).
Não é, pois, a este respeito que o Tratado de Lisboa inaugura uma nova etapa, mas
sim ao colocar sob a alçada do método comunitário os elementos do ELSJ que ainda se
encontram sujeitos à cooperação intergovernamental – a cooperação policial, a cooperação
judiciária em matéria penal e a aproximação das legislações penais e processuais-penais
dos Estados-Membros – e que, pelo menos no quadro de Schengen, podiam ser vistos
como “medidas compensatórias” ou “de acompanhamento” da supressão dos controlos de
pessoas nas fronteiras internas da UE55.
Na sua nova redacção, o Título V da Parte III do Tratado de Roma passou a ter por
epígrafe “O Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça”, articulando-se em cinco capítulos.
O primeiro é dedicado às disposições gerais, o segundo, às políticas relativas aos controlos
nas fronteiras, ao asilo e à imigração, o terceiro, à cooperação judiciária em matéria civil, o
quarto, à cooperação judiciária em matéria penal e o quinto, à cooperação policial.
54 Como já premonitoriamente antecipava Philippe Schmitter em 1991, em “A Comunidade Europeia: uma forma nova de dominação política”, cit., p. 766. 55 A este propósito, ver Anabela Miranda Rodrigues, O Direito Penal Europeu Emergente, cit., p. 52. Concedendo que foi um passo importante encarar a cooperação policial e judiciária penal como medidas compensatórias dos potenciais efeitos perversos da supressão dos controlos das fronteiras internas – “já que era o reconhecimento de que acabar com as fronteiras internas para os operadores económicos e os cidadãos e mantê-las para as autoridades policiais e judiciárias era um risco para a construção europeia” – a Autora entende, porém, que esta perspectiva é demasiado redutora por se centrar na cooperação contra a criminalidade e não no apoio do cidadão.
31
É certo que a generalização do método comunitário a todo o ELSJ teve mais uma
vez um preço: por um lado, o direito de “ficar fora” exigido, por motivos diferentes, mas
relacionados com a “resistência” a tal método, pela Dinamarca, pela Irlanda e pelo Reino
Unido56; por outro lado, algumas modulações ao próprio método comunitário, justificadas
pela natureza das matérias em causa. Entre essas modulações, conta-se, por um lado, a
partilha de iniciativa legislativa entre a Comissão Europeia e um quarto dos Estados-
Membros (artigo 76.º do Tratado de Roma) e, por outro lado, a partilha de competências
fiscalizadoras entre a Comissão Europeia e uma comissão de avaliação mútua composta
por representantes dos próprios Estados-Membros, inspirada por uma lógica
intergovernamental (artigo 70.º).
Por tudo isso, pode dizer-se que o Tratado de Lisboa marca mais uma importante
etapa no processo dialéctico de progressiva, mas não linear, “rendição” da construção
europeia ao “método comunitário” – o qual, em ligação com esse processo, também se tem
revelado uma realidade evolutiva. E cumpre sobretudo destacar neste contexto que o
mesmo tratado confirma plenamente a lúcida observação do Professor Paulo de Pitta e
Cunha, segundo a qual a atribuição à UE de competência em matérias de algum modo
ligadas à livre circulação de pessoas, ainda que para as submeter, à partida, “a uma
regulação com dominante intergovernamental”, “torna-as, por assim dizer, disponíveis
para eventuais mutações no sentido supranacional”57.
56 Ver, na redacção que lhes foi dada pelo Tratado de Lisboa, o Protocolo relativo à posição da Dinamarca, o Protocolo relativo à aplicação do artigo 26.º (anterior artigo 14.º) do Tratado de Roma ao Reino Unido e à Irlanda, o Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao espaço de liberdade, segurança e justiça e o Protocolo relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (especialmente os artigos 4.º e 5.º). 57 Cf. “Os impulsos federais na construção europeia” cit., p. 13, ênfase do Autor.
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