Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ramos, Marise Nogueira A pedagogia das competncias: autonomia ou adaptao? / Marise Nogueira Ramos.. - So Paulo : Cortez, 2001 Bibliografia. ISBN 85-249-0816-5 1. Educao baseada na competncia 2. Educao profissional Brasil 3. Educao tcnica - Brasil I. Ttulo. 01-4927 CDD-370.11 ndices para catlogo sistemtico: 1. Competncia : Educao : Finalidades e objetivos 370.11 2. Educao baseada na competncia 370.11
Marise Nogueira Ramos
A PEDAGOGIA DAS COMPETNCIAS: autonomia ou adaptao? CORTCZ 6DITORQ
A PEDAGOGIA DAS COMPETNCIAS autonomia ou adaptao? Capa: DAC Preparao dos originais: Silvana C. Leite Reviso: Maria de Lourdes de Almeida Composio: Dany Editora Ltda.
Coordenao editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser duplicada ou reproduzida sem expressa autorizao da autora e do editor. by Autora Direitos para esta edio CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 217 Perdizes 05009-000 So Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mai!: [email protected] vtww.cortezeditora.com.br Impre^.o no Brasil outubro de 2001
I
t , Aos meus pais, Luiz Gonzaga e Maria da Glria, que me ensinaram os mais slidos valores humanos; com
quem aprendi a lutar pelo direito de construir dignamente os sonhos por meio do trabalho. Aos meus sobrinhos, Flvio, Eduardo, Las e Gabriel, crianas brasileiras, desejando que tambm
conquistem o direito de sonhar. Aos trabalhadores, sujeitos histricos dos sonhos coletivos que ainda podem se realizar. ,
SUMRIO Siglas................................................................................. 11 Prefcio.............................................................................. 13 Introduo......................................................................... 19 I. EDUCAO PROFISSIONAL E QUALIFICAO:
CATEGORIAS HISTRICO-SOCIAIS DA
FORMAO HUMANA................................................ 25 1. A Formao do Trabalhador sob o Capitalismo: Educao Bsica e Educao
Profissional.................... 26
2. O Conceito de Qualificao e a Noo de Competncia: Convergncias e
Divergncias.............. 37
2.1. A Qualificao como Relao Social..................... 41
2.2. A Noo de Competncia frente s Dimenses
da Qualificao....................................................... 60
2.2.1. O Deslocamento Divergente: Enfraquecimento das Dimenses Conceituai e Social da
Qualificao........... 61
2.2.2. O Deslocamento Convergente: Fortalecimento da Dimenso Experimental
da Qualificao............................................ 66
II. A INSTITUCIONALIZAO DE SISTEMAS DE COMPETNCIA: MATERIALIDADE
DO DESLOCAMENTO CONCEITUAL............................. 71
1. Bases Econmico-Polticas dos Sistemas de
Competncia................................................................. 73 ***
..........mpu, II
2. Bases Terico-Metodolgicas dos Sistemas de
Competncia................................................................. 80
2.1. Os Subsistemas de Competncia Profissional: Normalizao, Formao, Avaliao e
Certificao
de Competncias.................................................... 81
2.2. As Matrizes de Investigao dos Processos de
Trabalho................................................................. 89
2.2.1. As Tendncias Hegemnicas: Condutivismo
e Funcionalismo.......................................... 89
2.2.2. O Construvismo FTancs.......................... 94
2.2.3. Entre o Funcionalismo e o Construtivismo:
O Caso Australiano...................................... 99
3. Um Recorte Internacional dos Sistemas de
Competncia................................................................. 101
3.1. Sistemas com Institucionalidade Impulsionada pelos Governos: Reino Unido,
Austrlia, Mxico
e Espanha................................................................ 103
3.2. Sistema com Institucionalidade Impulsionada
pelo Mercado: Estados Unidos.............................. 107
3.3. Sistemas com Institucionalidade Impulsionada pelos Sujeitos Sociais: Alemanha,
Frana e Canad................................................................... 108
4. A Institucionalizao dos Sistemas de Competncia
na Amrica Latina......................................................... 112
III. A NOO DE COMPETNCIA NA REFORMA DO ENSINO MDIO E DA
EDUCAO PROFISSIONAL DE NVEL TCNICO NO BRASIL..............................
125
1. A Noo de Competncia na Reforma da Educao Brasileira: a Identidade do Ensino
Mdio.................... 126
2. A Noo de Competncia na Reforma da Educao Brasileira: a Identidade da
Educao Profissional.
de Nvel Tcnico........................................................... 144
2.1. A Determinao Psicolgico-Subjetiva da Noo de Competncia na Reforma
Educacional Brasileira................................................................ 160
IV A NOO DE COMPETNCIA COMO ORDENA
HORA DAS RELAES DE TRAHALHO.................. 171
1 A Competncia como Pressuposto e Resultado da
Organizao Quaiificante: Do Trabalho Al ^I ia do ao Trabalho
Comprometido?............................................ 177
1.1. Outras Abordagens da Noo de Competncia Apropriadas Gesto Quaiificante do
Trabalho.... 186
1.2. A Tenso entre a Competncia e a Qualificao
na Gesto do Trabalho........................................... 191
2. Do Trabalho Comprometido ao Comportamento Adaptado: a Pertinncia Gestionria da Noo
de Competncia Dentro e Fora da Empresa...................... 197
2.1. A Empregabilidade: Autonomia Dirigida e
Adaptao Regulada............................................... 205
V. A NOO DE COMPETNCIA COMO
ORDENADORA DAS RELAES EDUCATIVAS..... 221
1. A Pedagogia das Competncias em sua Dimenso
Psicolgica.................................................................... 223
2. A Pedagogia das Competncias em sua Dimenso
Scio-Econmica.......................................................... 236
2.1. A (Re]Construo Social das Identidades
Profissionais e os Processos Educativos............... 239
3. As Implicaes Curriculares suscitadas pela Pedagogia das
Competncias........................................ 257
3.1. A Pedagogia das Competncias: Construtivismo
e Apreenses Subjetivas da Realidade.................. 274
CONCLUSES.................................................................. 281
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................... 305
I LISTA DE SIGLAS ABENDE Associao Brasileira de Ensaios No-Destrutivos ABRAMAN Associao Brasileira de Manuteno A CAP Accord du Conduite et Activit Professionnel AMOD A Model ANPEd Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao BID Banco Interamercano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional de Reconstruo para o Desenvolvimento CBET Competence Based Education and Training CEB Cmara de Educao Bsica CEFET Centro Federal de Educao Tecnolgica CEQUAL Centro de Qualificao CEREQ Centre du Recherch et tudes sur les Qualifications CINTERFOR Centro Interamericano de Investigao e Documentao sobre Formao Profissional CNE Conselho Nacional de Educao CNI Confederao Nacional das Indstrias CONET Congresso de Educao Tecnolgica CONOCER Conselho Nacional de Educao Profissional (Mxico) CSN Conselhos Setoriais Nacionais (Canad) DACUM Developing the Curriculum ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio ETF Escola Tcnica Federal FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador FBTS Fundao Brasileira de Soldagem FIESP Federao das Indstrias do Estado de So Paulo FIRJAN Federao das Indstrias do Estado do Rio de Janeiro Fundo Monetrio Internacional
ty.
FUNDEF Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio INEM Instituto Nacional de Emprego (Espanha) INET Instituto Nacional de Educao Tecnolgica (Argentina) LDBEN e LDB Lei de Diretrizes e Bases da tiducao Nacional LOGSE Lei Orgnica de Ordenao Geral do Sistema Educacional (Espanha) MEC Ministrio da Educao MEN Ministrio da Educao Nacional (Frana) MCT Ministrio de Cincia e Tecnologia MERCOSUL Mercado Comum do Sul MTb Ministrio do Trabalho MTE Ministrio do Trabalho e Emprego NAFTA North American Free Trade Agreement NCVQ National Vocational Qualification Council (Reino Unido) NVQ National Vocational Qualification (Reino Unido) OCDE Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico PCN Parmetros Curriculares Nacionais PBQP Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade PCI Programa de Competitividade Industrial PIB Produto Interno Bruto PL Projeto de Lei PLANFOR Programa de Formao Profissional PNQC Programa Nacional de Qualificao e Certificao PPO Pedagogia por Objetivos PROEP Programa de Expanso da Educao Profissional PROFAE Programa de Profissiona^zao de Auxiliares de Enfermagem RCN Referenciais Curriculares Nacionais SAC Subsistema de Avaliao de Competncias SCID Systematic Curriculum Instructional Developing SCANS Secretarys Commission on Achieving Necessary Skills SCC Sistema de Certificao de Competncias SEFOR Secretaria de Formao e Desenvolvimento Profissional SEMTEC Secretaria de Educao Mdia e Tecnolgica SENAI Servio Nacional de Aprendizagem Industrial SENA Servio Nacional de Aprendizagem (Colmbia) SES Section de ducation Spcialis UNESCO Oficina para Educao e Cultura das Organizaes Unidas
m PREFCIO Em todos os momentos histricos que se experimentam mudanas profundas na
materialidade das relaes sociais nos mbitos econmico, cultural e poltico entram em
efervescncia os embates tericos e ideolgicos e reformam-se os processos de formao
humana e concepes educativas. Estas mudanas podem ter um sentido de avano em
termos de ganhos para a humanidade ou de retrocesso.
O tempo histrico que vivemos neste final do sculo XX e incio do sculo XXI traz,
inequivocamente, a marca do retrocesso da ideologia neoliberal, do processo de
mundializao do capital e a exponencial concentrao da riqueza, apropriao privada
da cincia e tecnologia subordinada lgica do mercado e conseqente ampliao dos
processos de ciso do gnero humano e aumento da desigualdade social. Um tempo de
vingana do capital contra as barreiras ao livre mercado e s conquistas histricas da
classe trabalhadora. O capital, na avaliao do filsofo Iztvan Mzros, esgotou sua
capacidade civilizatria e agora para prosseguir tem que destruir os direitos dos
trabalhadores.
No plano ideolgico o iderio que se afirma de todas as formas, mormente mediante as
poderosas redes de informao, o de que estamos iniciando um novo tempo o tempo da globalizao, da modernidade competitiva, de reestruturao produtiva e de
reengenharia e do qual estamos defasados e devemos irreversivelmente nos ajustar. Este ajustamento pressupe conter e restringir a esfera pblica e efeti-
var-se de acordo com as leis da competitividade do mercado mundial. A queda do muro de Berlim
em 1989 e, nos anos seguintes, o colapso do socialismo real, serviram de sofisma de composio
para afirmar o credo neoliberal. A tese mais emblemtica e cnica do pensamento nouumservador
foi afirmada por Fukuyama como sendo o "fim da histrica". Vale dizer, o fim de qualquer
perspectiva alternativa ao capitalismo.
Trata-se, como assinalam Bourdieu e Wacquant (2000, pp. 5-6)\ da produo de uma nova
vulgata no mbito planetrio:
"Como todas as mitologias da idade da cincia, a nova vulgata planetria apia-se numa srie de
oposies e eqivalncias, que se sustentam e contrapem para descrever as transformaes
contemporneas das sociedades avanadas: desengaja-mento econmico do Estado e nfase em
seus componentes policiais e penais, desregulamentao dos fluxos financeiros e desorganizao
do mercado de trabalho, reduo das protees sociais e celebrao modernizadora da
'responsabilidade individual'".
Como conseqncia e, ao mesmo tempo, reforo, afirma-se com uma fora extraordinria a tica
individualista. No campo pedaggico esta tica manifesta-se sob as noes de competncia,
competitividade, habilidade, qualidade total, empregabilidade, mas que'no mbito social mais
amplo se define por noes constitutivas de um suposto novo paradigma ps-industrial, ps-classista, ps-moderno, etc. Trata-se, como nos mostram os autores acima, de um jargo
ideolgico dentro do invlucro de uma novlange:
em todos os pases avanados, patres, altos funcionrios internacionais, intelectuais de projeo
na mdia e jornalistas de primeiro escalo se puseram em acordo em falar uma estranha novlange
cujo vocabulrio, aparentemente sem origem, est em todas as bocas: "globalizao",
"flexibilidade", 1. BOURDIEU, P. & WACQUANT, L. A nova bblia do Tio Sam. Jornal le Monde Diplomatique, edio brasileira,
ano 1, n. 4, agosto de 2000.
"governabilidade", " so: nova economia e "tolerncia comum > usino", "mulliciiltnralismo" e seus primos ps-mudenios, "etniudade", "jdv- tidade", "fragmentao" etc.
(id., ibid., p. 1).
O contexto acima vem se concretizando de foi m.t iliver-vi em diferentes formaes sociais A
sociedade brasileira, paradoxalmente, experimentou na dcada de 80 uni rico processo de
luti pela redemocratizao, aps um longo perodo de ditadura civil-militai, cuja direo
confrontava o iderio neoliberal. A organizao de parte da sociedade civil novo sindicalismo, movimentos sociais, emergncia de um partido popular de massa comprometida com as lutas histricas pela superao de relaes sociais que vm
mantendo o Brasil como uma das sociedades mais injustas e desiguais do mundo, logrou
ganhos significativos na afirmao de direitos econmicos, sociais e subjetivos no texto
da constituio de 1988. neste contexto que se afirma a perspectiva da ampliao do
espao pblico e da escola pblica, gratuita, laica, unitria e universal. Ganhou por outro
lado, amplo espao o debate da formao humana omnilateral, tecnolgica ou politcnica.
A dcada de 90, todavia, reiterou uma espcie de castigo de Ssifo que nos assola
historicamente. Com o governo Collor de Mello ensaia-se um projeto hegemnico para
integrar de forma subordinada e aviltante o Brasil nova (des)ordem mundial dentro do
iderio da globalizao. O impeachement de Collor foi a expresso de sua incapacidade
poltica de afirmar este projeto. O grupo poltico que o sucedeu, tendo Fernando H.
Cardoso como Presidente, que teve a competncia para o denominado ajuste sob a
frrea doutrina dos organismos internacionais. Como nos analisava Florestan Fernandes
(1991, p. 36), trata-se de uma poltica que decreta a continuidade de um Brasil "gigante de
ps de barro. Nao com histria, mas determinada l fora. Com antigos escravos e seus
descendentes prosseguiremos presos a uma liberdade ilusria que , por si s, uma
terrvel escravido".
As conquistas da dcada de 80 foram uma a uma anuladas em nome do ajuste da
economia, mediante os mecanismos da desregulamentao, descentralizao,
flexibilizao e
privatizao. Os debates dos educadores durante uma dc; e suas formulaes e propostas
para a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao e, posteriormente, para o Plano
Nacional de Educao, no eram compatveis com ideologia e polticas do ajuste e, por
isso, foram duramente combatidas e rejeitadas. Instaura-se uma reforma educativa
autoritria e em consonncia com o ajuste neoliberal tanto no plano institucional quanto
no plano da concepo educativa.
No plano institucional a educao de direito social e subjetivo de todos passa a ser cada
vez mais encarada como um servio a ser prestado e adquirido no mercado ou filantropia.
As campanhas de adote uma escola, amigo da escola e, agora, do voluntariado, explicitam
a substituio de polticas efetivas por campanhas filantrpicas.
O parmetro do mercado para a qualidade do ensino evidencia de forma mais profunda e,
por isso, radical, a dominncia do pensamento privatista como diretriz educacional. A
implementao da Reforma do Ensino, mediante os parmetros curriculares e os
mecanismos de avaliao (ENEM, SAEB e Provo) ao eleger como perspectiva a
pedagogia das competncias para a empregabilidade, assume o iderio particularista,
individualista e imediatista do mercado e dos empresrios como perspectiva geral do
Estado.
Esta perspectiva pedaggica individualista, como assinalamos acima, coerente com o
iderio da desregulamen-tao, flexibilizao e privatizao e com o desmonte dos
direitos sociais ordenados por uma perspectiva de compromisso social coletivo. Cada
indivduo ter de agora em diante, ento, de adquirir um banco ou pacote de competncias
desejadas pelos homens de negcio no mercado empresarial, permanentemente
renovveis, cuja certificao lhe promete empregabilidade. Da certificao por
competncias transita-se para o contrato por competncias, reduzindo o contrato de
trabalho a um contrato civil como qualquer outro.
dentro deste amplo debate das mudanas sociais e educacionais das ltimas dcadas
que se situa o livro de Marise Nogueira Ramos, A Pedagogia das Competncias:
Autonomia ou Adaptao?, que tenho a alegria e honra de prefaciar. Trata-se certamente
da anlise crtica mais ampla e
profunda feita no Brasil e na Amrica Latir sobre a nor. de competncia e sua relao
com o campo mhicativo o ou-tro* desdobramentos no mbito do mundo do trabalho,
campo "sindica! e dos homens de negcio. Mais especificamente, analisa a materialidade
das condies societrias, i o mbito econmico, poltico, cultural e ideolgico, onde se
gesta e se de -envolve o que denomina de deslocamento conceituai da qualificao *
formao humana para o modelo das competncias.
A pertinncia da anlise que empreende de forma clara e densa se origina de uma dupla
insero da utora nos embates do campo educacional nas ltimas dcadas: no plano da
disputa das concepes educativas e seus fundamentos tericos e tico-polticos e no
mbito da definio da poltica, mormente da Educao Tcnica e Profissional. O livro
estrutura-se em cinco apitulos articulados. Um captulo inicial, no qual a autora expe e
discute as categorias centrais constitutivas do deslocamento conceituai: a concepo de
qualificao como relao social e a noo de competncia O segundo e terceiro captulos
expem o eixo scio-emprico, evidenciando como este deslocamento se configura no
mbito internacional e nacional. No quarto e quinto captulos a autora analisa o eixo
terico-filosfico dentro do qual a noo de competncia vem ordenando as relaes de
trabalho e as relaes educativas. Finalmente, no captulo conclusivo, com base em sua
perspectiva dialtica de anlise, resgata a dimenso utpica, evidanciando o carter
limitado desta noo e a necessidade de se ter como noo fundamental a de qualificao
como relao social e, mais amplamente, de formao humana articulada a um projeto
alternativo de sociedade. Trata-se de resgatar como centro dos processos educativos o ser
humano como parmetro e no o mercado. Isto nos conduz a perceber que permanece
atual a concepo e luta pela escola unitria, tecnolgica e politcnica.
Trata-se, pois, de um livro que servir de base para uma profunda anlise crtica ao
iderio pedaggico das reformas educativas dominantes no Brasil e na Amrica Latina
que permeiam os diferentes nveis de ensino e, especialmente, o mbito da educao
tcnico-profissional. Uma obra obrigat-
ria como referncia para professores do ensino fundamental, mdio e superior, para
sindicatos e grupos que atuam com processos educativos e de formao junto aos
trabalhadores e que resistem s concepes educativas impostas pelo iderio neoliberal.
Mais do que isso, o leitor encontrar, tambm, os elementos bsicos que fundamentam
propostas educativas alternativas para uma sociedade efetivamenle democrtica e
solidria. Gaudncio Frigotto
INTRODUO A cultura do simulacro entrou em circulao em uma sociedade em que o valor de troca se generalizou a tal
ponto que mesmo a lembrana do valor de uso se apagou. Jameson, 1996, p. 45.
Este livro apresenta um estudo sobre a noo de competncia. No encerrada em si
mesma, mas como noo que surge com o objetivo de responder a necessidades tericas e
empricas postas pela realidade. Por isto, analisamos a noo de competncia no sentido
em que ela reafirma e nega o conceito de qualificao, com o qual disputa espao no
ordenamento terico-emprico das relaes que a tm como referncia e, por isto, o
desloca. Ao mesmo tempo, colocamos tambm a noo de empregabilidade em foco, com
o objetivo de demonstrar que, em conjunto, essas noes contribuem para uma
elaborao ideolgica que explica a questo social do ponto de vista do sujeito individual.
Nesse sentido, nosso objeto de estudo se amplia para alm da competncia, passando a ser
o deslocamento conceituai da qualificao competncia.
Mas esse deslocamento no ocorre unicamente no plano terico, nem se limita s
polticas educacionais ou de trabalho. Ainda que nelas o deslocamento adquira
materialidade, essas polticas compem uma rede complexa '-e relaes, em que as leis da
economia e da sociedade, as
filosofias e as cincias, resultam da ao o da interao humanas e podem ser
transformadas pelos indivduos. Essas transformaes so resultados de disputas entre
diferentes concepes de mundo que pretendem ter a hegemonia.
Assim, procuramos apreender a essncia do deslocamento conceituai, seus motivos e seus
significados, tomando-o, primeiro, como um fenmeno histrico; segundo, como
mediao de uma totalidade; terceiro, como processo contraditrio e que, por isto, no
est definitivamente determinado em favor da classe dominante. Pode, sim, ser
reapropriado pela classe trabalhadora a partir de seus motivos e conferindo-lhe seus
significados. Para isto, porm, necessrio enxergar esse fenmeno no movimento do
real e encar-lo como questo poltica.
Historicidade, totalidade e contradio, foram nossas categorias gerais, compreendidas
como pressupostos da anlise concreta do real. A historicidade indica que tudo o que
existe est em contnua transformao, de modo que nenhum fato ou situao imutvel.
Tal como o conceito de qualificao tem sido continuamente redefinido, a noo de
competncia pode ser tambm ressignificada resgatando, simultaneamente, a importncia
de se compreender a qualificao como relao social.
A categoria totalidade, como nos explica Lowy (1985, p. 16), "significa a percepo da
realidade social como um todo orgnico, estruturado, no qual no se pode entender um
elemento, um aspecto, uma dimenso, sem perder a sua relao com o conjunto". Por isto
insistimos em analisar a noo da competncia no mbito do deslocamento conceituai e
este em face das mudanas que se processam na produo e na cultura.
O desenvolvimento histrico da sociedade, entendendo-a como um todo articulado e
interdeterminado um bloco histrico se d num movimento contraditrio entre foras e relaes de produo que leva contradio entre as classes sociais. Portanto, a
formao social implica a luta entre ideologias, sendo que essa luta determinada,
principalmente, pelas relaes e interesses econmicos. Por isto, identificamos o
deslocamento conceituai como questo poltica a ser disputada tambm pela classe
trabalhadora.
i ,0111o categorias especficas tomamos os ilos de ualificao como relao social e de educao n.-.sional, dtt; < ,do-os como mediaes no processo de re * < ,io histrica da existncia humana. A construo l .>; que faz Schwartz (1995). sobre a
dimenses conceitua), social e experimental da qualificaro foi a que nos possibilifou
organizar a relao nntre o significarlo da qualificao e da competncia, bem corno suas
convergncias e divergncias. Sabemos que essa opo no seria a nica nem
necessariamente, a melhor. Entretanto, aps perseguir um referencial adequado, a partir
deste conseguimos formular as interrogaes que faramos noo de competncia nas
suas diversas apropriaes.
A educao profissional foi tomada efetivamente como categoria de anlise e no como
poltica econmico-social. Em outras palavras, a educao profissional, medida que
explicita a funo econmica da educao, permitiu-nos situar o deslocamento conceituai
em relao s categorias gerais, ou seja, na sua historicidade, totalidade e contradio.
Em nossa exposio, o primeiro captulo contemplar a discusso de nosso referencial
terico-analtico mediante a anlise dessas categorias. A partir disto, estruturamos este
livro em trs eixos fundamentais: scio-emprico, terico-filo-sfico e utpico.
Em torno do eixo scio-emprico organizaram-se o segundo e o terceiro captulos. No
segundo captulo apreendemos o deslocamento da qualificao competncia em nvel
internacional, analisando as polticas de educao profissional em alguns pases da
Europa, Amrica do Norte e Amrica Latina. No terceiro captulo esforamo-nos para
identificar como o deslocamento conceituai se efetua no Brasil, a partir da apropriao da
noo de competncia pela reforma do ensino mdio e do nvel tcnico da educao
profissional. Indicamos algumas mediaes e contradies presentes nessa apropriao.
O segundo eixo chamamos de terico-filosfico, que organizou o quarto e o quinto
captulos, por meio do qual veri-icamos como a noo de competncia tem ordenado as
rela-oes de trabalho e as relaes educativas, considerando-se os ontextos econmico-poltico e sociocultural contempor- ei - ",-t-is". ...-'' *3
neos. Inicialmente, no quarto captulo, dedicamos nossa ateno ao ordenamento das
relaes de trabalho pela noo de competncia, quando essa noo foi vista
principalmente sob
a tica da gesto da produo. Tambm elucidamos a relao entre competncia e
empregabilidade mediante o que se define como empresa qualificante e empresa
aprendiz.
No quinto captulo, dedicamo-nos anlise das relaes educativas sob o ordenamento da
noo de competncia. Nosso foco, nesse momento, voltou-se para a relao entre as
dimenses psico-pedaggicas e scio-econmicas da competncia, quando resgatamos a
construo das identidades profissionais e definimos o que chamamos de cdigo
tico-poltico da profisso ou profissionalidade de tipo liberal. Procuramos levantar as
implicaes curriculares suscitadas pela noo de competncia e apresentar indicaes
sobre a funo que assume a educao sob essa nova lgica.
Toda a discusso aqui exposta atravessada pelas seguintes perguntas: a) a noo de
competncia compe o conjunto de novos signos e significados talhados pela
ps-moder-nidade? b) a apropriao econmica de uma noo originria da psicologia
conferiria educao o papel de adequar psicologicamente os trabalhadores aos novos
padres de produo? c) o novo senso comum teria um carter neoconservador e
neoliberal, considerando-se que as relaes de trabalho atuais e os mecanismos de
inchiso social pautam-se pela competncia individual?
As concluses responderam positivamente a essas perguntas, posto ter-se identificado
que os significados conferidos noo de competncia, independentemente da forma
como adquirem materialidade, fundamentam-se em uma concepo natural-funcionalista
de homem e subjetivo-relativista de conhecimento, que refora o irracionalismo
ps-moderno nas suas principais caractersticas. A anlise de sistemas de competncia
profissional permitiu tambm concluir que, metodologicamente, sua institucionalizao
ancora-se na Teoria Funcionalista, atualizada pela Teoria Geral dos Sistemas.
Constatamos, ainda, a existncia de um movimento simultneo de reafirmao e negao
do conceito de qualificao pela noo de competncia, que se processa como um
deslocamento !
coi
itual dinmico e contraditrio da qualificao n competia relao trabalho-educao. ssas
concluses foram ordenadas em torno do eixo de } > denominado utpico. Demonstramos s !imites da
dUro de competncia sob a perspectiva da formao
huma-indicandc a necessidade de ressignific-la coerentemente n ' uina concepo de
mmido que tenha a transformao da
ealidadu da classe trabalhadora como projeto. Mesmo ressignificada, recomendamos
tomar essa noo de forma subordinada ao conceito de qualificao como relao social.
Este por situar a relao trabalho-educao no plano das contradies engendradas pelas
relaes sociais de produo, possibilita melhor compreender as condies
scio-econmi-cas da classe trabalhadora, o que essencial para se construir um projeto
de formao humana segundo a concepo hist-rico-social de homem. Reafirmamos,
por fim, que o horizonte educativo a ser perseguido deve ter a formao omnilateral dos
indivduos como propsito tico-poltico e deve construir-se como realidade na forma da
Escola Unitria.
O amplo escopo deste trabalho demonstrou-nos uma diversidade de enfoques sob os
quais a noo de competncia deve, ainda, ser analisada. Privilegiando-se as relaes de
trabalho, assinalamos anteriormente um dos desafios: proceder a uma anlise sociolgica
comparada dos sistemas de competncia de diferentes pases, captando-se as mediaes
histricas, polticas, econmicas e culturais que conferem a esses sistemas caractersticas
especficas. Outro desafio seria analisar a apropriao dessa noo no interior das
empresas, identificando-se conseqncias objetivas nas relaes trabalhistas e na
conformao da subjetividade dos trabalhadores. Esse tipo de anlise poderia ser feita,
ainda, sob a tica de diferentes sujeitos sociais, tais como sindicatos, empresas, governos,
organismos multilaterais, dentre outros.
Privilegiando-se, por outro lado, as relaes educativas, o campo do currculo seria
prprio para situar uma anlise sobre a noo de competncia, do ponto de vista
psicolgico, sociolgico ou epistemolgico. No primeiro caso, a noo de competncia
deveria ser analisada no mbito das teorias da
prenoizagem, elucidando-se os limites das pedagogias psi-
colgicas com as quais a noo de competncia guarda co rncia. A sociologia do
currculo, por sua vez, coniugada com um enfoque epistemolgico, poderia explicitar o
confronto entre competncias e disciplinas e, tambm, verificar como a pedagogia das
competncias adquire eonr.reticidade no interior das escolas e das instituies de
formao.
De nossa parte, tentamos produzir um trabalho que. no se detendo sobre nenhum desses
recortes especficos, procurou dar visibilidade aos determinantes mais gerais e
significativos do deslocamento conceituai da qualificao competncia. Por isso
mesmo, caminhamos pela frtil interface lavrada pela relao trabalho-educao, na qual
a noo de competncia situa-se como uma nova mediao ou como uma mediao
renovada pela acumulao flexvel do capital. Procuramos entender a noo de
competncia no como idia cujo sentido poderia ser debatido ou mesmo revisto tambm no campo das idias mas como fenmeno. Portanto, como algo concreto que manifesta e esconde uma essncia produzida pelas relaes sociais de produo.
EDUCAO PROFISSIONAL E QUALIFICAO: categorias histrico-sociais da formao humana "Mas a essncia humana no uma abstrao inerente ao indivduo singular. Em sua realidade, o conjunto
das relaes sociais". Marx, 1991, p. 13.
Neste captulo pretendemos, inicialmente, reafirmar a~) concepo de homem como um
ser histrico-social, com- V preendendo a formao humana como um processo histrico
[ e contraditrio por meio do qual os indivduos tomam cons-J cincia de si e das relaes
sociais das quais so sujeitos. A partir desse posicionamento, recuperaremos a discusso
sobre o surgimento da educao moderna, situando-a no plano de disputa entre os
projetos econmico-polticos da classe trabalhadora e da classe burguesa e, ainda, no
interior dos prprios projetos desta ltima classe. Recuperaremos, tambm, o debate
relativo ao conceito de qualificao, ordenando-o de modo a elucidar os determinantes
que fazem da qualificao um conceito cujo significado constri-se historicamente e, por
isto, mantm-se inacabado.
Veremos que, no confronto com a noo de competncia algumas das dimenses do
conceito de qualificao so enlraquecidas, ao mesmo tempo em que se reforam os as-
pectos associados subjetividade do trabalhador aos quais a noo de competncia daria
maior expressividade. A reflexo realizada neste captulo fundar nosso referencial
terico-ana-ltico a partir do qual se dar a construo dos captulos posteriores.
1. A Formao do Trabalhador sob o CopMbmo: EdwaoBo MMn* Educao
Profissional
A questo sobre a formao do homem em sua totalidade, perante o modo de produo
capitalista, central para a compreenso das relaes sociais e sua possvel
transformao. medida que o trabalho industrial foi-se tornando mais complexo, esse
tema passou a atravessar os debates sobre educao e o conceito de qualificao adquiriu
importncia sociolgica.
O homem produz sua existncia por meio do trabalho e, por meio deste, entra em contato
com a natureza e com outros homens, desenvolvendo relaes econmicas e sociais.
Assim sendo, analisar formas, processos e perspectivas que a formao humana adquire
na sociedade capitalista implica investigar as mltiplas formas que toma o trabalho
coletivo e o modo como o homem age e se modifica ao se constituir em parte desse
trabalho. , preciso, inicialmente, dizer que compreendemos por formao humana o processo de
conhecimento e de realizao individual, que se expressa socialmente e que ultrapassa a
dimenso do agir unicamente determinado pela necessidade de subsistncia. Marx, nos Manuscritos Econmico-Filos-ficos, afirma:
"o indivduo um ser social. A exteriorizao da sua vida ainda que no aparea na forma imediata de uma exteriorizao de vida coletiva, cumprida em unio e ao mesmo tempo com
outros , pois, uma exteriorizao e confirmao da vida social. A vida individual e a vida genrica do homem no so distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existncia da
vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genrica, ou quanto mais a
seja uma vida individual mais partcula: ou ". (id., 1978, p. 10).
O proc esso de formao humana pressupe o d>snvol-imento do indivduo como
particularidade e como g^.uali-H - oi seja, como ser social individual, que rene
Sendo assim, os processos sociais de formao humana sob o modo de produo
capitalista so a relao dialtica de subsuno do homem ao capital e a luta contra essa
mesma subsuno. Essa dialtica expresso dn ohietivao da essncia humana, que se
realiza pelo trabalho na sua diraenso concreta e abstrata, quando o homem tanto se
reconhece como sujeito, quanto pode se perder no seu prprio obieto.
"O homem s no se perde em seu objeto quando este se configurar como objeto humano
ou homem objetivado. E isso somente ser possvel quando se lhe configurar como objeto
social e quando ele mesmo se configurar como ser social, assim como a sociedade se
configurar nesse objeto como ser para ele. Assim, enquanto, de um lado, para o homem
em sociedade a efetividade objetiva se configura em geral como efetividade das foras
essenciais humanas, como efetividade humana e por isso como efetividade de suas
prprias foras essenciais, todos os objetos se lhe apresentaro como objetivao de si
prprio, como objetos que confirmam e efetivam sua individualidade, como seus objetos,
isto , o objeto vem a ser ele mesmo" (ibid., p. 12).
Isso quer dizer que nos processos de produo esto em jogo tanto as foras subjetivas do
indivduo, potencialmente capazes de produzir sua prpria existncia, desde que liberado
do jugo capitalista, quanto as foras objetivas estranhas a ele, foras essas determinadas
pelo movimento constante de valorizao do capital, que promove a separao entre esse
mesmo indivduo e o produto de seu trabalho. De forma simples, o fundamento dessa
dialtica o sentido que toma a relao sujeito-objeto: o homem se objetiva para ele ou
para o capital. Enquanto se objetiva para o capital, sua subjetividade e pelo capital
apropriada e o homem no se reconhece como sujeito.
A formao humana expressa, portanto, pelas formas histricas que adquire essa luta,
na qual atua um conjunto de sujeitos coletivos, representantes das classes fundamentais
burguesia e trabalhadores , cada qual com o objetivo de configur-la, respectivamente, sob a tica do capital ou sob a tica do trabalho. Essa luta orientada
segundo as categorias bsicas das relaes sociais de produo a diviso social e
o ni\
r.omplexificao do trabalho e orientam aes ao plano tanto da sociedade civil quanto
da soci-
' . iirtncia da relao trabalho-educao se justifica ) orque justamente a partir dela a
formao humana configu- / e vomo processo contraditrio e marcado pelos valores i
Capitalistas Esse processo, medida que se institucionaliza, Y iis apropriadas para
defini-lo socialmente, como, i
rateeor pp p por exemplo: educao bsica, formao profissional, educa- J o profissional, qualificao
profissional. J
\ educao bsica consolidou-se como categoria do pensamento liberal, pelo menos
enquanto direito formal dos povos, ainda que no tenha sido historicamente
universalizada e assegurada a todos os indivduos. Concebida a educao como forma de
socializar os indivduos de acordo com valores e padres culturais e tico-morais de uma
determinada sociedade e meio de socializar de forma sistemtica os conhecimentos
cientficos construdos pela humanidade, o direito a ela consta como condio necessria
para o exerccio da cidadania, de acordo com os princpios liberais.
Adquirindo uma caracterstica social, o ensino, que durante a aristocracia se realizava
particularmente no seio das prprias famlias, passa a contar com espaos coletivos: as
escolas. A gnese histrica da escola, como espao institucional de realizao dos fins
acima mencionados, d-se, portanto, ao longo do sculo XVIII e coincide com o advento
da Cincia Moderna e do Estado Moderno. Nesse perodo, a sociedade est se produzindo
por meio da cooperao e da manufatura, necessitando de um novo saber e de uma nova
educao. A educao das populaes condio necessria para laicizar o saber, a moral
e a poltica, separando nitidamente f e razo, natureza e religio, poltica e igreja.
Pautando-se pela igualdade natural entre os homens, o discurso pedaggico burgus de
uma educao de base para todos, formadora do cidado. A pedagogia moderna se origina
da totalidade de questes polticas centrais no Iluminismo, que giram em torno da origem
do poder, de sua legitimidade, as ormas de governo, da soberania do Estado e do povo, da
participao e da cidadania.
30 A PEDJWJUO i
A educao moderna vai-se configurando nos novos confrontos sociais e polticos, ora
como um dos instrumentos de conquista da liberdade, da participao e da cidadania, ora
como um dos mecanismos para controlai e dosar os graus de liberdade, de civilizao, de
racionalidade e de submisso suportveis pelas novas formas de produo industrial e
pelas novas relaes sociais entre os homens. Em outras palavras, desde o sculo XVIII,
ela se insere no plano de luta hegemnica, devido sua dimenso socializadora e de
formao de conscincias que prevalece inicialmente, j que a consolidao da cidadania
o seu mote principal. Porm, no projeto da classe burguesa ascendente, essa cidadania
muito mais de carter formal e delimitada ao direito de propriedade privada e liberdade.
Aos no-proprietrios cabia uma cidadania restrita: como cidados passivos, teriam
direito proteo de sua pessoa, de sua liberdade e de sua crena, mas no eram
qualificados como membros ativos do Estado.
Filosoficamente, a caracterizao do papel social da educao ao final do sculo XVIII e
no sculo XIX percorrer, de um lado, o humanismo e o racionalismo ilustrado o que reforar a crena na educao como precondio para a participao poltica do homem
comum e, de outro, o pensamento da economia poltica, que defender a educao da gente comum, dos trabalhadores, como mecanismo de libertao dos obstculos que se
poderiam opor marcha inexorvel do progresso econmico.
O pensamento iluminista entendia as diferenas sociais como diferenas de capacidades,
resultando da que a tarefa central seria libertar o homem de si mesmo, tarefa
eminentemente pedaggica. O racionalismo ilustrado, por sua vez, reforava a
centralidade da educao e da racionalidade como condio do homem histrico e
poltico. Por outro lado, se a classe burguesa no se apoiava na concepo poltica que
mantivesse a ilustrao dos homens, enquanto instrumento de transformao de uma
conscincia que poderia modificar o mundo ou construir uma nova ordem, ela tambm
no poderia ignorar a conexo entre os planos social, poltico e econmico para
equacion-los devidamente a seu favor e construir a ordem capitalista.
SO
ojeto burgus passa pela transformaro da proprie-libertao das foras produtivas e pelo
estubeleci-
ft 'orraas de organizao social e poltica capazes de 111
-Qualquer entrave no progresso
econmico. As teorias da bani"" q ,-.. reflei*ram a interpretao da nova realida-
d refle p
A e estiveram mais prximas do projeto burgus do que o ionalismL. ilustrado, tanto que
Adam Smith, em a Riqueza Trf s Naes, expe seu pensamento sobre educao, ao tratar
dos astos do Estado. Justifica a necessidade de educao em funo da diviso parcelar
do trabalho: seria conveniente que o Estado facilitasse, encorajasse e at mesmo
impusesse a quase toda a populao a necessidade de aprender os pontos mais essenciais
da educao: ler, escrever, contar e rudimen-tos de geometria e mecnica. Assim, a
educao dos trabalhadores pobres teria por funo disciplin-los para a produo,
proporcionando maioria da populao somente o mnimo necessrio para fazer do
trabalhador um cidado passivo que, apesar de tudo, tivesse alguns poucos direitos.
Observamos, ento, que o projeto burgus de educao, desde o final do sculo XVIII, j
fortemente marcado pela concepo de educao para as massas como fator de
racionalizao da vida econmica, da produo, do tempo e do ritmo do corpo. Em outras
palavras, a educao do trabalhador, no projeto burgus, subsumida necessidade do
capital de reproduzir a fora de trabalho como mercadoria. A dimenso relativa
constituio da classe trabalhadora como sujeito de direitos sociais e polticos fica
demarcada nos limites da ordem burguesa. A educao de carter geral, clssico e
cientfico, destina-se formao das elites dirigentes. preciso ressaltar, porm, que essa
dualidade no atravessa a histria de forma linear e sem contradies. Ao contrrio, a
educao pensada em relao cidadania, participao e liberdade no momento em que
as massas tinham de ser constitudas como trabalhadores disponveis, livres para o
mercado, e os sditos tinham de ser feitos cidados livres para a participao na cidade,
no novo convvio social. A construo da ^locernautopia social e poltica passou a ser
impensvel sem
cespf3-'
meSm
que esta
tivesse
de
re
ceber as determina-XX LOnomicas
que passam a predominar
a partir do sculo
Que processos educativos formais se destinam, ento, aos trabalhadores? Se analisarmos
do ponto de vista da base tcnica do trabalho que passa a comandar o processo produtivo
na grande indstria e que levou o trabalho sua mxima parcializao e simplificao, a
educao escolar no seria imediatamente necessria, j que as tarefas podiam ser
rapidamente aprendidas no prprio posto de trabalho. Ao trabalhador que efetivamente
operava as mquinas, adicionavam-se ajudantes, na sua maioria, crianas1. a
perspectiva de estas ltimas virem a ser os futuros trabalhadores adultos que incita a
instalao de escolas destinadas menos ao ensinamento das tcnicas de trabalho do que a
adaptar essas crianas rotina e ao ritmo de trabalho com disciplina e docilidade. So as
workhouses, que se convertem em Schools of Industry ou Colleges of Labour, surgidas
primordialmente na Inglaterra, no sculo XVIII, que introduzem na cultura ocidental a
prtica da formao para o trabalho. Como explica Enguita (1989), os projetos de lei que
pretendiam assegurar um mnimo de instruo literria s crianas das classes populares
foram sistematicamente rejeitados, durante parte do sculo XIX, no s na Inglaterra, que
j dispunha de um certo arsenal industrial, como tambm na Frana, bero da ilustrao.
O avano das relaes capitalistas de produo, no entanto, obrigou a relativizar-se esse
cerceamento, j que a proliferao da indstria iria exigir um novo tipo de trabalhador. J
no bastaria que fosse piedoso e resignado (qualidades desenvolvidas pela religio),
embora isto continuasse sendo necessrio. Era preciso tambm aceitar trabalhar para
outro e faz-lo nas condies que este outro lhe impusesse. Enguita explica que a
educao, desde a infncia, oferecia a vantagem de poder modelar as crianas (os adultos
das geraes seguintes) desde cedo, de acordo com as necessidades da nova ordem
capitalista e industrial, as novas relaes de produo e os novos processos de trabalho. i. Nogueira (1990), nos. cinco primeiros captulos de seu livro, analisa a * ' plorao o a regulao do trabalho infantil na sociedade industrial emergentt
NTo obstante, a preparao para o trabulho, ao longo do esgota no simples binmio
disciplina/doutrina. iys mercados e a formao dos Estados Nario- A eN
fzram emergir levas He imigrantes a alguns pases Ai em jalS
a . xtensa miqrao ,
i:npo/cid.H]e e outros tantos fato-criavam massas de indivduos que precisavam vender
sua f* de traballi' no mercado que, aos poucos, j apresentava aleuma retrao. A
sociedade burguesa passou a investir na criao do exrcito industrial de reserva.
Ao mesmo tempo, a tendncia de universalizao de um onjunto de tcnicas bsicas entre indstrias de ramos diferentes foi gerando na populao a necessidade de dominar
uma certa quantidade de conhecimentos e destrezas para desenvolver-se em qualquer
trabalho ou fora dele, em uma sociedade que se industrializava e se urbanizava. A
aprendizagem, portanto, j no podia ocorrer diretamente ou, exclusivamente, no prprio
local de trabalho, voltando-se s escolas que, aos poucos, passaram a assumir o papel no
s de socializao, mas tambm de transmisso do saber tcnico.
As tcnicas que compem um processo produtivo, medida que se aprimoraram,
condensaram-se em alguns ofcios parciais desse mesmo processo e passaram a se
constituir como bsicas mesmo em indstrias de ramos diferentes. Um novo tipo de saber,
menos especializado do ponto de vista do produto acabado como no caso do artesanato ou mesmo da manufatura mas suficiente para garantir ao trabalhador alguma mobilidade entre as diferentes indstrias e mesmo no interior delas, vai-se constituindo e
adquire, aos poucos, carter profissional, relacionado ao domnio de um oficio. Isso, alm
de tudo, permite aos empregadores estabelecer parmetros mnimos para a definio do
perfil do trabalhador necessrio na produo. Assim sendo, o ensino levado a cabo pelas
escolas destinadas a formar trabalhadores j no ^tlT.611
*6
ato de
dis
ciplinar, mas conferir
ao trabalhador de um ofcio. A formao para o trabalho passa a 'armao profissional. A
emergncia das profisses fabril P S Se
,c,onstitui
' en
to, em conseqncia da diviso classe
Isoc- trabalh> hierarquizadas de acordo com as iais a que se destinam operrios fabris ou tcni-
I
cos, engenheiros, cientistas, e assim por diante. E; .; o pice da diviso entre trabalho
manual e intelectual2 que se verifica tanto na sociedade quanto no interior da fbrica. Do
ponto de vista da formao, as profisses passam a ser classificadas de acordo com o seu
nvel de complexidade que, por sua vez, se relaciona com o nvel de escolaridade
necessrio para o desenvolvimento de cada uma delas.
A classificao dos processos de preparao da fora de trabalho caracterstica do
modelo taylorista-fordista de organizao da produo no que se refere ao modo de
organizar o ensino, seja por via formal e escolar (pela qual se deu, principalmente, a
formao do tcnico), seja por aes diretas das empresas, realizadas normalmente por
seus centros de formao (onde se deu a formao dos operrios qualificados). Tendo em
vista o modo de organizao do ensino, em face do modo de organizao do trabalho, a
categoria qualificao parece ter tomado vrios sentidos.
O uso mais corrente do termo qualificao se relacionou aos mtodos de anlise
ocupacional, que visavam identificar as caractersticas do posto de trabalho e delas inferir
o perfil ocupacional do trabalhador apto a ocup-lo. Em outras palavras, procurava-se
identificar que tipo de qualificao deveria ter o trabalhador para ser admitido num
determinado emprego. Dessa forma, o termo qualificao esteve associado tanto ao
processo quanto ao produto da formao profissional, quando visto pela tica da
preparao da fora de trabalho. Nesse sentido, um trabalhador desqualificado poderia vir
a ser qualificado para desempenhar determinadas funes requeridas pelo posto de
trabalho por meio de cursos de formao profissional. Por outro lado, visto pela tica do
posto de trabalho, o termo qualificao se relacionou ao nvel de saber acumulado
expresso pelo conjunto de 2. A diviso entre trabalho intelectual e trabalho manual sempre relativa, uma vez que o trabalho manual, por mais
repetitivo que seja, no prescinde absolutamente de algum nvel de intelectualidade e, muitas vezes, ao trabalho
intelectual tambm est associado algum nvel de trabalho manual. A questo, portanto, deve ser analisada mais em
termos da quantidade e da qualidade de conhecimentos que so postos em jogo na Tealizao do trabalho, o que, por
sua \ez, interfere na classificao profissional e social.
(arefas a serem executadas quando o trabalhador viosst a ocupar aquele posto. Essa
abordagem contribuiu para a tor-rov1ao
(l
s cdigos das profisses e para sua
classificao no plano da hierarquia social.
A associao d termo qualificao aos processo--, de trabalho e ao desenvolvimento do
saber profissional e social do ibalhador sob o modo de produo capitalista,
considerando a relao pedaggica que se estabelece pelo uso dos meios de produo e
pelo contato com outros trabalhadores na objetivao do trabalho abstrato, ocorreu
medida que se buscou verificar a tendncia a ser tomada pelo trabalho no s quanto
complexidade/simplicidade, como tambm aos efeitos sobre o trabalhador na sua
totalidade (ser humano, classe social e fora de trabalho). Sob essa perspectiva,
qualificao do trabalho se associava o potencial das relaes tcnicas e sociais de elevar
o conhecimento do trabalhador, tanto de ordem explcita quanto tcita. Dessas anlises
emergiram as teses da qualificao e desqualificao do trabalho e a da polarizao das
qualificaes. Esta ltima foi uma variante consagrada, durante um longo perodo de
tempo, do debate aberto por Braverman3, no incio dos anos setenta, em torno da
desqualificao inelutvel, gradual, progressiva, como conseqncia do aprofundamento
da diviso do trabalho no capitalismo. Segundo a tese da. polarizao das qualificaes,
a modernizao tecnolgica estaria criando, de um lado, uma massa de trabalhadores
qualificados e, de outro, uma massa de trabalhadores desqualificados (Hirata, 1994).
Hirata explica que a qualificao se consolidou como um conceito-chave da sociologia do
trabalho, cuja multidi-mensionalidade ressaltada por autores como D. Kergoat e M.
Freyssenet4 Do ponto de vista do capital, entretanto, h a tentativa constante de mant-lo
circunscrito s normas insti- 1976. 3. BRAVERMAN, H. Travail et Capitalisme Monopoliste. Paris: Maspro, 4. KERGOAT, D. Les Ouvrires. Paris: Sycomore, 1982 e Qualification et Division sexuelle du Travail. Revue CFDT
Cadres, n. 313, 1984 e FREYSSENET, M. La Division Capitaliste du Travail. Paris: Savelli, 1977. Obras citadas
tambm por Sroobants (1993) e Tanguy (199-).
tudas de produo de valor e acumulao do capital. Mas, ao mesmo tempo, a dimenso
relacionai da qualificao potencializa o acirramento da correlao de foras entre capital
e trabalho, ampliando o significado de&se mesmo conceito. Portanto, ao se falar de
qualificao profissional h que se considerar sua multidimensionalidade e as tendncias
do trabalho frente nova materialidade produtiva.
Sobre esse ltimo aspecto, verifica-se que, vinte anos depois dos primeiros estudos sobre
as conseqncias da introduo das novas tecnologias na diviso do trabalho e na
qualificao, autores como M. Freyssenet, B. Coriat, H. Kern e M. Schumann e Piore e
Sabei5, constatam um certo nvel de requalificao dos operadores. Essa requalificao
estaria relacionada adoo dos novos modelos de organizao industrial que levariam as
empresas a adotarem organizaes do trabalho qualificantes. Os novos paradigmas da
produo exigiriam uma massa de conhecimentos e atitudes bastante diferentes das
qualificaes formais requeridas pelas organizaes de trabalho de tipo
taylorista-fordista.
Simultaneamente, observa-se que a alterao na natureza qualitativa do trabalho
impulsiona uma maior qualificao mas gera, tambm, um certo grau de desqualificao
dos trabalhadores. O primeiro movimento resulta da reduo da dimenso varivel do
capital, em decorrncia do crescimento da sua dimenso constante. Em,outras palavras, a
substituio do trabalho vivo pelo trabalho morto, oferece a possibilidade de o
trabalhador aproximar-se do que Marx chamou de "supervisor e regulador do processo de
produo" (Antunes, 1995, p. 47).
Em contraposio, Antunes demonstra que a desqualificao de inmeros setores
operrios resulta, de um lado, da desespecializao do operrio industrial oriundo do
fordismo 5. FREYSSENET, M (op. cit.); CORIAT, B. Pensar ai Revs (Trabajo y Organizacin en Ia Empresa Japonesa).
Mxico/Espanha: Siglo XXI. 1992; KERN, H. et SCHUMANN, M. La Fin de Ia Division du Travail? La
Rationalisation dans Ia Producton Industrielle. Paris: d. De Ia Maison des Sciences de VHotnme, 1989; PIORE, M.
et SABEL, C. Les Chemins de Ia Prosprit. De Ia Producton de Masse Ia Spcialisaton Souple. Paris: Hachette,
1989. Obras citadas por Antunes (1995), Hirata (1994) e Stroobants (1993).
e, de outro, do fenmeno do trabalho temporrio (o trabalhadores no tm nenhuma
garantia de emprego), parcial (os trabalhadores so integrados precariamente s
empresas) e da -ubconiratao. Esses so os trabalhadores da economia informal que envolve cerca de 50% da populao trabalhadora dos pases avanados.
A desespecializao dos operrios profissionais, em decorrncia da criao dos
trabalhadores multifuncionais, tambm significou um ataque ao saber profissional dos
operrios qualificados, a fim de diminuir seu poder sobre a produo e aumentar a
intensidade do trabalho. Esse processo mostra que, enquanto se visualiza uma tendncia
para a qualificao do trabalho, se desenvolve tambm intensamente um ntido processo
de desqualificao dos trabalhadores, que acaba configurando um processo contraditrio
'que superqualifica em vrios ramos produtivos e desqualifica em outros" (Freyssenet,
apud Antunes, ibid, p. 54).
Nesse contexto, a hegemonia das classes empresariais tem motivado a emergncia de
novas categorias, pretensa-mente mais adequadas para expressar as demandas requeridas
pelos sistemas produtivos sob o modo de produo capitalista. Demonstrao inequvoca
desse movimento a relevncia que adquire a noo de competncia frente ao conceito de
qualificao. Essa relevncia, como veremos adiante, enfraquece algumas das dimenses
da qualificao, provocando a crise do valor dos diplomas e das trajetrias lineares e
rgidas de profissionalizao e de classificao profissional. No entanto, como essncia
no imediatamente visvel do fenmeno, o efeito principal de tal relevncia pode vir a ser
o esmaecer dos debates e da luta no sentido de valorizar a formao humana. 2.0 Conceito de Qualificao e a Noo de Competncia: Convergncias e Divergncias
As mudanas tecnolgicas e de organizao do trabalho Por que passam os pases de
capitalismo avanado a partir dos meados da dcada de 80 configuram o mundo
produtivo com algumas caractersticas tendenciais: flexibilizacjio_da
produo e reestruturao das ocupaes; integrao de setores da produo;
multifuncionalidade e polivalrmia dos trabalhadores; valorizao dos saberes dos
trabalhadores no ligados ao trabalho prescrito ou ao conhecimento forniahzado-
No campo acadmico, esse quadro incitou o debate sobre a validade das teses da
desqualiticao tendencial do trabalho nas organizaes capitalistas, emergindo como
variantes as teses da polarizao das qualificaes e da requalificao. Outros estudos
apresentaram a tendncia simultnea de desespecializao e de precarizao do trabalho,
a primeira, relativa a seu contedo, uma vez que os saberes dos trabalhadores tendem a
ser incorporados pelos sistemas de computadores; a segunda, devido
desregulamentao e flexibilizao das regras de acesso e permanncia no mercado de
trabalho6.
No campo scio-emprico, apresentou-se o questionamento sobre a adequao e a
suficincia do conceito de qualificao como estruturante das relaes de produo e dos
cdigos de acesso e permanncia no mercado de trabalho. Isto pelo fato de esse conceito
apresentar uma dimenso societria determinada pela cultura do trabalho construda em cada sociedade e, tambm, por expressar mais a capacidade potencial do trabalhador do que sua capacidade real. Ao mesmo tempo, questionam-se a validade das
trajetrias formais e lineares da formao profissional e, at mesmo, a validade ou
suficincia dos diplomas.
No campo terico-filosfico, tem-se preocupado com a subjetividade dos trabalhadores,
pelo fato de esses se virem motivados a resgatar sua autonomia e envolver-se
subjetivamente com os saberes que organizam as atividades de trabalho, supostamente
mais integradas e flexveis.
Esse debate permanece atravessado por indefinies. Pergunta-se at que ponto essas
transformaes, na verdade, no aprisionam a subjetividade do trabalhador s
necessidades de reproduo do capital, diante de relaes de trabalho 6. As anlises de Antunes (1995), Harvey (1996), Rifkin (1994) e Gorz (1998) sugerem, em alguma medida a
convivncia da precarizao com a requalificao de trabalho.
40
mobilizao de competncias7 Segundo eles, esse imperativo da mobilizao o que faria
da competncia um conceito que, aprimorando o modelo da qualificao tornaria mais
fcil adaptar o sistema sociotcnico aos requerimentos econmicos do sculo XXI.
Ferretti (1997, p. 258) considera que a noo de compe-tncia^represeirta-a-ertnailzao
do conceito de qualificao, s^undrraVperspectivas do capital, tendo em vista adequ-lo
s novas frmas pelas quais este se organiza para obter maior e mais rpida valorizao".
Frigotto (1995), por sua vez, ao / qualificar as bases histrico-sociais em que se
Fundamentam as novas exigncias educativas com as quais, afirmamos, a noo de
competncia guarda coerncia, conclui c^ue elas se configuram como um
rejuvenescimento da teoriajio capital humano. Nesses termos, a relevncia da noo de
competncia poderia ser a expresso de uma metamorfose do conceito de qualificao na
sua conotao produtivista. ~ -- Ns, entretanto, defenderemos aqui a existncia de um deslocamento conceituai.
Sabemos que o termo deslocamento pode ser utilizado tanto no sentido psicanaltico,
como um mecanismo simblico de transferncia de significados de um signo para outro;
quanto no sentido espacial, em que a transferncia um processo materialmente objetivo,
ainda que possa resultar ou ser resultante de aes subjetivas. Neste estudo, entretanto,
utilizaremos'o termo com um sentido distinto dos anteriores.
O ponto de partida para se compreender o fundamento do que denominamos como
deslocamento conceituai tomar a qualificao como um conceito central na relao
trabalho-educao. Mesmo podendo-se caracteriz-lo como um conceito polissmico,
cujos significados encontram-se historicamente em disputa, o conceito de qualificao,
no que apre- 7.0 conceito de sobredeterminao tem origem no pensamento de Althusser, como a dimenso simblica de uma
determinada materialidade. Nesta referncia, o conceito parece indicar a dimenso simblica do determinismo
tecnolgico que tem marcado os significados da noo de competncia. No plano subjetivo, portanto, muito alm de
desenvolver competncias demandadas pelo avano tecnolgico, o trabalhador deve reconfigur-las e mobiliz-las
permanentemente. Ixente aos diversos contextos produtivos.
senta de mais objetivo, ordenou historicamente as relaes sociais de trabalho e
educativas, frente materialidade do mundo produtivo. Essa centralidade tende a ser
ocupada, oriteinporaneamente. no mais pelo conceito concreto. No obstante, a noo de competncia no substitui ou supera o conceito de
qualificao. Antes, ela o nega e o afirma simultaneamente, por negar algumas de suas
dimenses e afirmar outras.
Esta tambm a razo de no concordarmos com a proposta de que a noo de
competncia atualizaria o conceito de qualificao porque, se assim ocorresse, no se
justificaria a emergncia de um novo signo. E, ainda, porque o prprio significado do
conceito de qualificao vem sendo historicamente atualizado, como resultado de
disputas terico-filos-ficas e scio-empricas, medida que os processos de produo se
modificam. Por essa tica, o conceito de qualificao como relao social seria
absolutamente atual, expressando contradies das relaes sociais de produo.
Tambm no consideramos que o fenmeno se manifeste como uma metamorfose
porque, se assim o fosse, teramos a competncia como um novo signo mas no com outro
significado, pelo menos na essncia. Mas a noo de competncia no somente se
apresenta como um novo signo, como tambm possui significados diferentes ao do
conceito de qualificao.
Portanto, tanto na perspectiva terico-filosfica quanto scio-emprica, a forma como
explicitamos o fenmeno, ajudados pelas palavras, definindo-o como um deslocajnejito
conceituai dajualifcao competncITA^TTTexes posteriores, esperamos, sero
elucidativas a esse respeito. 2.1. A Qualificao como Relao Social
O conceito de qualificao remonta ao surgimento do Estado de Bem-Estar Social
retomando, no processo de consolidao da sociedade industrial, o papel regulador
jogado outrora pelas corporaes.
As corporaes codificaram as relaes Ao trabalho (regras de contratao, salrio e
formao) entre mestres, companheiros e aprendizes, de maneira a permitir a competio
mas tambm a controlar seus efeitos. A liberalizao das relaes de trabalho ocorridas a
partir du seuulo XVIL que ajudou a impulsionar o processo de industrializao, vem
acompanhada do desaparecimento de dois princpios fundamentais de regulao social, a
saber: a) as regras coletivas regis-trantes das ligaes entre os empregados e
empregadores, que deram lugar ao contrato particular; b) a aprendizagem profissional,
que tornou o aprendiz um jovem operrio submetido, sem proteo, a tarefas pouco
formadoras.
O conceito de qualificao uma resposta a essa ausncia
d^TgToTsociais^rTSrrscido no ps-guerra, ele formaliza, de certo modo, as
aquisies dos movimentos sociais precedentes. Aplicadas ao mundo do trabalho, as
regulaes sociais visam reconhecer o trabalhador como membro de um coletivo dotado
de uni estatuto social alm da dimenso puramente individual do contrato de trabalho
(Castel, 1998). A qualificao do trabalho ir constituir-se comTeterncia dessas
regulaes. ~~ A qualificao estar apoiada sobre dois sistemas: a) as convenes coletivas, que
classificam e hierarquizam os postos de trabalho; b) o ensino profissional, que classifica e
organiza os saberes em torno dos diplomas. Nota-se, portanto, que o conceito de
qualificao nasce de forma correlata e consolida-se com o modelo taylorista-fordista de
produo, em torno do qual se inscrevem tanto os padres de formao quanto os de
emprego, carreira e remunerao.
O debate em torno do significado histrico-social da qualificao, entretanto, toma
conotaes bastante instigan-tes ao longo do tempo. Forte8 [apud Roche, 1999b), por
exemplo, admite trs fases deste debate: o determinismo tecnolgico, o determinismo
societal e o princpio da eficincia produtiva. 8. FORTE, M. La Qualification dans une conomie de Cration Permanente: une Catgorie Fondatrice. Dans:
JACOT, J. H; TROUSSIER, J. F. Travcdl, Comptitivit, Performance Paris: Econmica, 1992.
Essa abordagem pode ser interessantemente complementada pelo esquema de Schwartz
(1995), pelo qual ele atribui qualificao trs dimenses: conceituai, social e
experimentai. A primeira define a qualificao como funo do registro de conceitos
tericos formalizados e, ento, dos processos de formao, associai)do-a ao valor dos
diplomas A segunda dimenso coloca a quaiificao no mbito das reiaes sociais que se
estabelecem entre os contedos das atividades e o reconhecimento social dessas
atividades, remetendo-a s gr des de classificao coletivas. Por fim, a terceira dimenso
est relacionada ao contedo real do trabalho em que se inscrevem no somente os
registros conceituais, mas o conjunto de saberes (incluindo os saberes tcitos] que so
postos em jogo quando da realizao do trabalho. Esta ltima dimenso estaria sendo
perseguida como condio de eficincia produtiva.
A sistematizao feita por Schwartz, vista pela tica do processo de trabalho, leva-nos
explicitao que Burawoy9
(apud Castro, 1994) fez sobre seus dois sentidos: um prtico,
entendido como o conjunto de atividades que transformam matrias-primas em
produtos10
; e um relacionai, que valoriza analiticamente as relaes sociais tecidas no
interior da produo entre os trabalhadores e entre estes e a gerncia. Esta preciso
permite desenvolver o conceito de relaes de produo que destaca o primeiro sentido e de relaes na produo, que destaca o segundo sentido, ampliando a noo do processo de trabalho para alm da sua dimenso econmica (produo e maximizao
de valor). Incluem-se, assim, as dimenses poltica (produo, reproduo e
transformao de relaes sociais) e ideolgica (produo de experincias).
Uma das vertentes do debate sobre a qualificao visa explorar e compreender os efeitos
do progresso tcnico sobre o trabalho. O debate entre Georges Friedmann e Pierre 9. BURAWOY, M Manufacturng Consent. Chicago: University of Chicago Press, 1979. 10. Pela tica contempornea, o processo de trabalho deve ser compreendido aqui tanto como meio de produo de
mercadorias como tambm de servios.
Navleu {apud Stroobants, 1993) trava-se em torno do que seria realmente qualificvel: o
trabalho ou o trabalhador. Friedmann possui uma concepo substancialista ou
essencialistavz
, a medida que identifica a qualificao como uma propriedade dos postos
de trabalho. Essa posio parece advir da dificuldade em se encontrar parmetros que
possibilitassem classificar a qualificao dos trabalhadores. Apesar de, em 1956,
Friedmann13
ter concordado com Naville sobre o fato de que os tempos de formao
poderiam se constituir em bom critrio de apreciao da qualidade do trabalho, dois anos
mais tarde ele recua desta posio14
Igualmente, junto com Naville, tambm considera
que o salrio no seria um bom critrio de qualificao, por no ser sistemtica sua
relao com as grades de classificao. Assim, na ausncia de um parmetro comum que
permitisse classificar os trabalhadores, Friedmann props apreender a qualificao a
partir do trabalho ele mesmo: "a qualificao no pertence mais ao homem, ela pertence
ao posto [...] e deve-se falar no de uma classificao dos operrios, mas de uma
classificao dos postos" (Friedmann e Reynaud15
, apud Stroobants, 1993, p. 78).
Friedmann discorda da tese de Naville por considerar que os tempos de formao no so
nem uma quantidade homognea nem uma varivel sempre determinante. Entretanto,
para este ltyno autor, a heterogeneidade dos tempos de formao representa uma
vantagem de anlise, e no um 11. FRIEDMANN, G. et NAVILLE, P. (d.). Trait de Sociologie du Tmvail, tomes I & II, Paris, Armand Colin, 1962. 12. Stroobants (ibici.) explica que a tradio que domina a sociologia do trabalho contempornea, ao menos na Frana,
inscreve-se na perspectiva substancialista assumida por Friedmann. Raros seriam os autores como Rolle, Tripier ou
Alaluf, que prolongaram e reativaram os argumentos de Naville para quem, apreender globalmente a qualificao
implica no somente sair da oficina, mas tambm da empresa. Essa fronteira marca a clivagem que aprofundada
posteriormente, entre uma sociologia do trabalho e uma sociologia do emprego. 13. FRIET)MANN, G. Le Travai] en Miettes. Paris: Gallimard, 1956. 14. A nova posio desse autor exposta na obra: FRIEDMANN, G et REYNAUD, J-D. Sociologie des Techniques de
Production et du Travail, in GURVITCH, G. (d.). Trait de Sociologie, t 1, Paris, PUF, 1958, p. 441-458. 15. bid.
incoveniente. O fato de esses tempos variarem segundo diversas condies provaria ser
este um elemento geral de valorizao social.
Naville16
, por sua vez, partidrio de uma concepo relativista, que outros denominam
de historicista17
, centra a anlise da qualificao no homem, porm no como fenmeno
tcnico individualizado, mas como valor social e diferencial dos trabalhadores ou. em
outras palavras, como relao social complexa entre as operaes tcnicas e a estimativa
de seu valor social. Por esta tica, o processo de qualificao incorporaria um julgamento
de valor exercido globalmente e que classifica os trabalhadores uns em relao aos
outros. Por isso, a qualificao no seria simplesmente funo das capacidades
individuais, uma vez que essas seriam formadas ao longo do tempo, quando concorrem
diversos elementos tais como a durao dos perodos de aprendizagem, a experincia,
dentre outros.
O autor recusa-se a definir a qualificao a partir do contedo das tarefas, devido
associao entre tcnica e estruturas sociais. Analisando a automao da produo,
conclui sobre a separao tendencial entre o assalariado e seu trabalho, pelo fato de a
polivalncia tornar-se uma caracterstica do trabalho automatizado. A polivalncia no
teria um valor necessariamente positivo, mas dependeria do valor a ela atribudo, bem
como do tipo de mobilidade assim gerada. Essa tendncia, sob a base social capitalista,
poderia se conflitar com a estrutura hierrquica da empresa.
Friedmann considerou a polivalncia como uma forma de revalorizao do trabalho, mas
identificou uma dialtica interna ao progresso tcnico: de um lado, a degradao da
habilidade profissional; de outro, o surgimento de novos ofcios qualificados devido
sofisticao dos equipamentos. Percebe-se, assim, que a polarizao das qualificaes
havia sido prevista por Friedmann. 16. O autor apresenta sua posio sobre esse tema na obra: NAVILLE, P. Bssai surla Qualification du Travail. Paris:
Mareei Rivire, 1956. 17- A designao relativista dada por Stroobants [ibid] enquanto a historicista usada por Tanguy (1999).
Touraine18
[apud Stroobants, 1993) aprimora a tese de Navle ao definir a qualificao
como um status reconhecido no sistema social de produo, associado a um potencial de
participao na vida tcnk.;.t da produo. Ele aponta trs fases desse sistema. Na fase A,
em que predomina o sistema artesanal, o trabalhador detinha larga autonomia para
proceder fabricao. Sua qualificao no dependia das mquinas, pouco
especializadas, aem da empresa, mas de sua habilidade. Na fase B, transio ao sistema
taylorista, predomina uma forma mista de organizao do trabalho e da padronizao de
procedimentos. A qualificao dos trabalhadores seria determinada pelo nvel de
conhecimento especializado e por seu rendimento. Na fase C, a fase da automao,
predomina o sistema tcnico, quando a fabricao assegurada pelas instalaes,
independentemente dos trabalhadores que supervisionam seu funcionamento. A
qualificao dependeria menos de um saber-fazer tcnico do que da atitude, da
comunicao e de traos da personalidade do trabalhador. No raciocnio desses trs
autores esteve presente, durante um decnio, a idia de que a automao conduziria a uma
elevao das qualificaes.
Em sentido contrrio, entretanto, surgiu a tese da desqualificao inelutvel, cujos
expoentes so, nos EUA, Braverman e, na Frana, Freyssenet19
. Eles anunciam a restrio
progressiva da autonomia dos trabalhadores talvez, luz da anlise de Touraine, em favor da autonomia dos processos automatizados e a polarizao das qualificaes como processo contnuo e intermedirio desqualificao absoluta. referida fase B,
indicada por Tourraine, poderamos, ento, associar a tese da desqualificao, j que a
fase caracterstica do taylorismo-fordismo. Essa mesma tese seria associada tambm
fase C se no fosse a idia de que, mesmo havendo a reduo do saber-fazer e da
autonomia do trabalhador, toda manifestao diferencial de saber ou de poder 18. TOURRAINE, A. Uvolution du Travail Ouvwr nus Usines Renault. Paris, CNRS, 1955. 19. A literatura associa Freyssenet tambm a defesa da tese da polarizao das qualificaes. Ver, por exemplo, Hirata
(1994) e Tanguy (1993).
deveria assinalar uma requalifican fase C, de Tourraine portanto, associa-se a
emergncia das novas tecnologias e a tese da requalificao. Para corroborar essa tese, a
idia da valorizao do saber tcito dos trabalhadores proposta por
jones e Wood, associado ao trabalho real, ajuda a enfraquecer a hiptese de uma desqualificao tendencial, progresiva, massiva e inelutvel, na realizao do trabalho.
Deixaria de ser importante somente a tarefa visvel, para se destacar tambm a atitude que
ela subentende e os conhecimentos que ela pressupe (as capacidades imperceptveis). Os
saberes tcitos resistiriam automatizao e, ao mesmo tempo, seriam indispensveis
para supervisionar os autmatos. O uso desses saberes frente aos novos desafios do
trabalho incluiria o processo de requalificao. O princpio da eficincia produtiva
aporta-se nessas transformaes e ser enriquecido pelas teses da especializao flexvel
dos economistas Piore e Sabei, nos EUA e dos novos conceitos de produo, de Kern e
Shumann, na Alemanha.
Nesse debate est ancorada uma das importantes dimenses da qualificao propostas por
Schwartz (op. c/f.): a dimenso conceituai, configurando a qualificao do trabalhador
em funo do registro de conceitos e processos formais de escolarizao e
profissionalizao.
A dimenso conceituai da qualificao o que se refere, justamente, formao e ao
diploma, portanto, ao nvel de domnio dos conceitos e do conhecimento. Qualquer que
seja seu modo de aquisio, esse domnio reverte em um importante capital em todo uso
profissional da noo de qualificao. O diploma , ento, freqentemente, perseguido
como interface entre a formao e o emprego. Ele garantiria uma qualificao, um status,
uma remunerao. Garantiria a competncia? Recentemente questionada essa ltima
dimenso da qualificao, o diploma deixa de ser o nico ou principal pressuposto para o
emprego e passa a concorrer com as formaes ditas qualificantes que visam a adaptao
ao emprego. 20. JONES, B. et WOOD, S. Qualifications Tacites, Division du Travail et Nouvelles Technologies. Sociologie du
Travail, 1984, 4: 407-421. Obra citada por Stroobants [ibid.], dentre outros autores.
Os debates sobre a qualificado travam-se tambm em torno das relaes sociais e da luta
pelas condies de trabalho, de emprego, de carreira e de remunerao. Esses debates
relacionam-se aos anteriores, visto que, no seio das anlises sobre as tendncias de
desqualiicao ou de requali-ficao do trabalho, esto as relaes sociais entre contedo
da atividade e reconhecimento dessa atividade, que levanta questes sobre a avaliao e o
reconhecimento da qualificao. Ressaltam-se, novamente, as duas vertentes da
qualificao: dos postos de trabalho e do trabalhador, como inferncias relativas da
qualidade e da complexidade do trabalho prescrito.
Tratando-se da qualificao do trabalho, buscou-se dispor de elementos explcitos que
permitissem controlar o modo de fixao das remuneraes. Nessa perspectiva, surgiram
os grandes sistemas ou grades de classificao de empregos e salrios como, por
exemplo, o Job Evaluation21
ou sistema Hay elaborado nos EUA em 1927 e aplicado
largamente na Frana nos anos 50 e as Classificaes Parodi-Croizart, que serve de base
para as negociaes entre o patronato e os sindicatos franceses desde 1954. No Brasil o
que temos at ento so a Classificao Brasileira de Ocupaes (CBO) e as legislaes
do exerccio profissional regulamentadas e controladas pelos Conselhos Profissionais.
A qualificao do trabalhador, por outro lado, remete demonstrao feita pelo candidato
ao emprego, de que suas qualidades esto de acordo com as exigncias do posto de
trabalho. Uma associao lgica se estabelece entre a qualificao, considerada como um
processo e como um resultado, e a codificao da qualificao que conduz ao salrio e
hierarquizao social. No debate sobre a qualificao e na sis-tematizao de sua
codificao social, a organizao das classificaes acabou por se impor anlise do
processo de qualificao, visto que, qualquer que seja o mtodo de classificao, "a
remunerao mantm-se ligada ao emprego e no ao 21. Mtodo americano de avaliao de bases mais racionais da remunerao do trabalho. O conceito freqentemente
traduzido em francs pela expresso "qualificao dos empregos".
valor individual do assalariado" (Bollon e Dubius", aputi Roche, op. cit, p. 42). Essi;
debate consolida outra dimenso da qualificao, qual seja, a dimenso social de
Schwartz, caracterizando a relao existente entre contedos das atividades o
reconhecimento social dessas atividades.
Litter23
[apuaCastro, 1994) tambm apresenta uma abordagem que destaca a
caracterstica multifacetada do conceito de qualificao, destacando trs das diferentes
concepes que ele reconhece existir. A primeira delas entende a qualificao como um
conjunto de caractersticas objetivas das rotinas de trabalho, definindo-se, ento, em
termos do tempo de aprendizagem no trabalho ou do tipo de conhecimento que est na
base de uma dada ocupao. Este enfoque, ancorado no posto de trabalho, aproxima-se da
viso essencialista de Friedmann. Porm, medida que admite uma relao com o tempo
de aprendizagem, exige que se remeta simultaneamente ao trabalhador. Com isto, este
enfoque se aproximaria tambm do relativismo de Naville o homem que se qualifica em funo dos tempos de formao ressaltando-se, pelo esquema de Schwartz, a dimenso conceituai da qualificao.
A segunda abordagem apontada por Litter conceitua qualificao a partir da sua relao
com a possibilidade de autonomia no trabalho, dependendo, ento, das margens de
controle exercido pelo trabalhador sobre o processo de trabalho como um conjunto. Uma
vez que esse potencial de controle funo do saber especializado que permite ao
trabalhador dominar plenamente suas atividades de trabalho, esta abordagem estrutura-se
pelo mesmo vis anterior, acrescen-tando-se, talvez, uma virtualidade poltica, j que o
nvel de autonomia conquistado pelo trabalhador em funo de sua especialidade
configura-se num importante trunfo nas negociaes de classificao, carreira e salrio. 22. BOLLON, Tet DUBOIS, M. Qualificationet Cognition. Dans: EL RHAZI, A. et JEANTER, A. fdir. publ.j.
Techinique, Qualification et Emergence de Nouveaus Modeles Socioproductifs. Toulouse, Ers, 1996. 23. LITTER, C. Introduction: Basis Issues of Labour Process Debate. In: The Developement of the Labour Process in
Britain, Japan and USA. Londres, Heinemann, 1982.
O fato, entretanto, de essas abordagens sustentarem-se sobre uma base aparentemente
objetiva do processo de trabalho fazem-na limitadas quanto ao seu potencial analtico.
Castro explica que isto conduziu formulao de. uma terceira concepo de
qualificao, que a v como socialmente construda atravs de processos artificiais de
delimitao e de classificao de campos, que a tornam equivalente a um status social.
Por essa abordagem, os trabalhadores so considerados qualificados ou desqualificados
em funo da existncia ou no de regras deliberadas de restrio ocupao,
coletivamente produzidas, partilhadas e barganhadas e no necessariamente em decorrncia da natureza da ocupao desempenhada.
Nesse sentido, a qualificao dependeria, na verdade, de fatores tais como o costume e a
tradio socialmente , construdos, por um lado, e a organizao coletiva, por outro; esta
ltima sustenta a definio de regras restritivas ao mesmo tempo defensivas e ofensivas que protegem as corporaes ou os coletivos auto-identificados por direitos e trajetrias profissionais. No limite, essa vertente poderia levar afirmao de ser
possvel intitular como qualificada uma atividade profissional independentemente at do
seu contedo tcnico. Entretanto, uma verso menos radical postularia que algum
contedo objetivo pode ser identificado, apesar de a condio de qualificada ser
outorgada s tarefas ao mesmo tempo estratgicas no processo produtivo e sustentadas
por coletivos organizados para defender suas posies. Assim, presevar-se-ia alguma
relao entre habilitao tcnica do trabalhador e sua condio de qualificado.
Parece-nos que essas duas ltimas abordagens inserem-se no mbito do determinismo
societal, tal como Forte definiu e, consequentemente, privilegia a dimenso tambm
social da qualificao, segundo Schwartz, ainda que recorra marginalmente dimenso
conceituai, por admitir a relao entre habilitao tcnica do trabalhador e sua condio
de qualificado.
Procede insistir na idia de que, por mais que quaisquer dessas abordagens visem colocar
o foco sobre uma ou outra dimenso da qualificao, as relaes sociais de trabalho so
codificadas sob a sntese das suas dii soes conceituai sv ciai, at ento bem definida por
'lumaine, ao entender a qualificao come um status reconhecido no sistema social
produtivo, associado a um potencial de participao na vida tcnica nesse sistema. Sob o
mo o de produo capitalista, a categoria profisso parece-nos expressar bem esta
sntese, pelo fato de formalizar o que o conceito de qualificao possui de concreto em
termos de sociabilidade codificada e regulada, resumido em termos dos saberes
estruturantes e do reconhecimento social da atividade, como implicaes sobre os
parmetros de classificao e de remunerao.
O trao importante que distingue as profisses em sua dimenso corporativa seria a
capacidade de auto-regulao coletiva e uma certa capacidade de regular o mercado de
prestao de servios profissionais, sobretudo pelo lado da oferta, oferecendo algum tipo
de proteo a seus membros, Por outro lado, nem todas as ocupaes que
sociologicamente so hoje profisses tinham tal estatuto no passado. O que os socilogos
chamam de profissionalizao consiste precisamente no processo pelo qual ocupaes
adquirem o status de profisso, devendo-se esclarecer o carter historicamente
contingente desse processo e suas formas e variaes em diferentes sociedades.
A organizao das profisses regulamentadas descansa em trs pilares, cada qual com
funo diversa: as organizaes para a fiscalizao do exerccio profissional; o sindicato,
para encaminhar reivindicaes de natureza trabalhista; e a associao, para atender aos
aspectos mais tipicamente normativos e associativos. Um dos mecanismos explcitos de
delimitao do acesso ao mercado de prestao de servios profissionais o
credenciamento educacional, isto , a posse do certificado ou diploma.
No obstante, Castro chama a ateno para a existncia de tensas relaes intra-classe,
implicadas na idia de que as barreiras de acesso que definem coletivos como qualificados e com as quais esses mesmos coletivos defendem as suas posies relativas
so, ao mesmo tempo, barreiras de excluso social tecidas entre trabalhadores. Em outras palavras, alm das lutas e conflitos entre classes, assumidas normal-
mente pelos sindicatos, em que esto em jogo os interesses do capital e do trabalho, de
empregados e patres, haveria um campo de luta de carter no classista de competitividade entre os prprios trabalhadores Essas lutas seriam fundadas na defesa de
interesses profissionais, voltadas para a produo e reproduo dessas barreiras. Nos
campos de luta tomam fora as legislaes do exerccio profissional, assumindo um
importante papel, os rgos de fiscalizao. Ocorrem, tambm, as disputas no interior dos
prprios grupo
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