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A Menina que não Tinha Medo do Escuro

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São Paulo 2012

Wilson Mello

A Menina que não Tinha Medo do Escuro

2ª Edição

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Copyright © 2012 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa Aline Benitez

Diagramação Monica Santos

RevisãoTarsila Lorrof

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

_______________________________________________________________M482m2.ed. Mello, Wilson A menina que não tinha medo do escuro / Wilson Mello. - 2.ed. - São Paulo: Baraúna, 2011. ISBN 978-85-7923-336-4 1. Ficção brasileira. I. Título.

11-4870. CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

03.08.11 08.08.11 028547

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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Tel.: 11 3167.4261

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Dedico este livro para Tarsila, uma garota fantásti-ca, que muito tem me ajudado. Sei que é pouco pelo que tem feito por mim; entretanto, é uma forma de dizer muuuito obrigado.

Leiam o blog dela. Ela é a Princesa do blog.www.desaliene.blogspot.com

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CAPÍTULO 1

Tinha 52 anos e, ultimamente, aparentava bem mais pelo ar de cansaço e desgosto. Ele digitava em seu note-book, entretanto, cada palavra que aparecia no monitor não lhe satisfazia. Deletava e recomeçava.

O trabalho de um escritor era como o de um ouri-ves: trabalhar um material bruto — a ideia — e lapidá-lo, até ser tornar uma joia. Estava acostumado a reescrever seus textos para chegarem ao ponto em que os conside-rava perfeitos, o que poderia significar 20 ou mais vezes.

Escrever era-lhe 85% transpiração, ato de, literal-mente, suar a camisa, ficando horas e horas diante de um computador; 5, inspiração; 10, técnica. Ele vanglo-riava-se por pensar que havia desenvolvido uma fórmula. Fosse como fosse, era seu trabalho como redator em um jornal que lhe dava o sustento, o que não o deixava nem um pouco realizado, já que seu sonho era tornar-se um best-seller, como John Grisham ou Stephen King. Sonho de muitos, privilégio de poucos abençoados.

Gostava do trabalho e não se importava de ficar por 10 horas escrevendo. Com meia dúzia de livros publi-cados, esperava que o novo rendesse louros maiores. A vantagem de não ser tão jovem era ponto positivo para um escritor. Vivera o bastante.

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Depois de ler o que havia escrito, digitou:“— Há algo que eu possa fazer por você?— Sim, você pode...” O som das teclas soava-lhe como música, gostava de

ouvi-lo. Se não fosse escritor e não apreciasse tanto o que fazia, queria ter sido pianista. Às vezes, escrevia como se tocasse ao piano.

Tarefa árdua a de produzir um livro, além de ser alvo de críticas de toda a espécie. Escrever era se expor e ser julgado a todo o momento. Haveria, com certeza, quem o elogiasse e quem o recriminasse. Profissão, mui-tas vezes, ingrata e cruel. Não adiantava; seu finado avô, o único que lhe incentivara e aventurara-se nas letras, dizia que estava no sangue. Era quase uma maldição: ou você escrevia e sofria, ou não escrevia e sofria.

Habituado ao trabalho por anos a fio e acostumado ao fracasso, não tinha grandes esperanças de ser lem-brado na Forbes como autor bem-sucedido. Escrever era viver embora se sentisse mais morto que vivo, um escritor-zumbi.

A ex-mulher acreditava que ele perdera a fé em Deus por achá-Lo injusto e sem critério. Não que fosse crédulo, contudo, talvez fosse a dose a mais de uísque que o fizera crer que era amaldiçoado. Não o incentiva-va, porque achava o marido um sonhador. Ele colocava a culpa na falta de cultura da mulher. Tinha certeza de que não possuía cultura suficiente para ler as entreli-nhas. Deveria ter se casado com uma amante dos livros, não com alguém que acreditava em almas penadas pe-rambulando por aí.

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O barulho de uma bola, vindo de sua porta, sendo rebatida ininterruptamente, surpreendeu-o. Fechou os olhos, respirou fundo e recomeçou o trabalho:

“— Sim, posso...?— Você pode, por exemplo...”Detestava ser interrompido. Sabia que, quando per-

dia a concentração, levaria alguns minutos para consegui--la novamente. Alguns pesquisadores dizem que se leva até 25 minutos para recuperá-la por completo. Ele não sabia ao certo quanto tempo, entretanto, muitas vezes, nem conseguia continuar o que fazia.

Escrever era uma arte para poucos e, mais do que conhecimento, a concentração era fundamental. Por gostar muito de música e ter bom ouvido, qualquer barulho perturbava-o.

Houve vez que, tarde da noite, quando silêncio che-gava a ser aterrador — a mulher na casa da mãe, graças a Deus! —, ele ouviu cupins devorando madeira como se fossem europeus medievais depois de uma longa Cruza-da à Terra Santa, fartando-se de seu banquete macabro. O barulho parecia estar ao lado da porta. A bola batia no chão em espaços quase cronometrados: um, dois; um, dois; um, dois...

Parou de escrever ao ouvir os repiques. Cada ba-tida era quase um soco em sua cabeça. Mantinha a expressão de raiva e contrariedade. Não havia algo pior que interromper um escritor quando escrevia! Era-lhe o pior dos pesadelos.

Subitamente, o barulho cessou. Suspirou aliviado. E, mesmo desalentado, digitou:

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“— Você pode fazer aquilo que devia ter feito há...”Para seu descontentamento, de novo o barulho da

bola tirou-lhe a atenção. Irritado, afastou sua cadeira e foi à porta, abrindo-a bruscamente. Deparou-se com uma menina de sete anos brincando com a bola.

A cena parecia-lhe surreal: tarde da noite, uma me-nina, sozinha, brincava com uma bola de basquete! Ele fitou-a com cara de zangado, não falando sequer uma palavra. Ela continuou rebatendo e, por um instante, não conseguiu dominar a bola, que caiu aos pés dele.

— Moço, jogue pra mim, por favor — ela pediu, sorrindo.

Ele olhou a bola, depois, voltou os olhos para ela, ainda sem proferir uma palavra. Novamente a fitou e, de novo, a bola. Decidiu dar-lhe um forte chute, fazendo com que a bola passasse pela garota a uma velocidade que não pudesse deter. Ele não compreendera sua própria atitude, não era de seu feitio agir assim.

A menina mirou-o em silêncio. Antes de entrar em seu apartamento, ele olhou-a outra vez, demonstrando irritação. Com seu olhar, queria demarcar território: “NÃO INCOMODE!”

Talvez fosse mais prático se tivesse colocado uma plaquinha na maçaneta; ou, quem sabe, mudado para uma casa em que o risco de ter vizinhos, parede a parede, fosse inexistente. De volta ao computador, respirou fun-do e recomeçou o texto:

“— Ter feito o quê?”Estava certo de que a qualidade do trabalho não seria

das melhores; não conseguia pensar direito sempre que se

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irritava, fosse com que fosse. Parou de digitar, levou as mãos aos cabelos; não estava satisfeito com o desfecho do novo livro. Soltou um suspiro. Leu em voz alta a última frase, escrita pouco antes de ser interrompido:

“— Ter feito o quê?” — Pequeno silêncio. “— Ter feito o quê?” — leu de novo.

Certo de que o texto não prosperaria naquele mo-mento, abandonou o notebook e foi à cozinha. Abriu a geladeira. Ao lado da garrafa de água gelada, havia um litro de uísque já mexido. Fitou a bebida e, então, pegou a garrafa de água e serviu-se de um bom copo. Bebeu. Guardou-a e fechou a geladeira, dando uma ótima olha-dela no litro de uísque, servindo-se de uma dose. Olhou a bebida por algum tempo. Em seguida, tomou o copo na mão e despejou o uísque na pia.

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CAPÍTULO 2

Na manhã seguinte, depois de um bom e demorado banho, de um café quente com pão fresco, estava certo de que o dia seria produtivo. Sentia-se inspirado. Achava-se capaz de tudo, ou seja, de criar os melhores e impecáveis diálogos para seus personagens. Acreditava inteiramen-te no novo trabalho, era sua esperança de se tornar um autor conhecido do grande público e deixar de ser um escritor de meia dúzia de leitores. Livrar-se da ideia de ser um medíocre homem das letras.

Estava diante da tela em branco há alguns minutos. O silêncio era praticamente total, não fosse o barulho de alguns carros que passavam. Como morava no terceiro andar, não chegava a se aborrecer tanto. Sentia que o dia render-lhe-ia boas ideias.

Fez um pequeno aquecimento com os dedos, como os pianistas antes de tocarem. Acomodou-se confortavel-mente na cadeira giratória e começou a digitar:

“— Não deveria ter se precipitado, acho que foi muito prematuro seu convite para morarmos juntos.”

Parou e leu o texto. Ficou satisfeito.

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“— Acha mesmo?” — digitou.“— Nos conhecemos há pouco mais de três meses.

Pouco tempo para dividir a escova de dente.”Esboçou um sorriso de satisfação. Ficou olhando cada

palavra. Decidiu deletar o último trecho e recomeçou: “— Pouco tempo para um compromisso tão sério.” Leu em voz alta: “— Pouco tempo para um compromisso tão sé-

rio!” — Coçou a cabeça, parecia indeciso. “— Pouco tempo para dividir a...”

Mal terminou de pronunciar a frase, ouviu nova-mente a bola sendo rebatida próximo à porta, como na véspera. Tornou a falar em voz alta:

“— Pouco tempo para dividir a escova de...” — DROGA!!O barulho da bola sendo arremessada no chão,

como uma picareta quebrando pedra, torturava-o. Res-pirou fundo. Levou novamente as mãos ao teclado. E se decidiu pela frase:

“— Pouco tempo para dividirmos a escova de dente.”

Continuou: “— Três meses não são tão...”A cada rebate, seus nervos ficavam à flor da pele, e

o barulho da bola jogada no azulejo parecia mais alto. Levantou-se de um pulo. Correu até a porta, a expressão era de mais zangado que no dia anterior.

Chegou a pensar como uma criança tão pequena era capaz de tirar um adulto do sério, homem de mais de 50 anos, tão facilmente. Não tinha explicação. Estava decidi-

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do a brigar com a menina. Afinal, era um escritor e preci-sava de todo o silêncio possível para se concentrar e tentar produzir o melhor. Abriu a porta, avistou-a rebatendo a bola. Ela parou e olhou para ele. Seus olhares cruzaram--se. Ela mantinha a bola na mão; ele, com uma das mãos cofiando a barba por fazer. Foram segundos de completo silêncio. Nada disseram um ao outro, apenas se olharam. Então, ele fechou a porta e voltou para seu livro.

“— Não são o quê?” — ele continuou digitando, dando prosseguimento ao texto. “— Tempo suficiente para...” Sentiu-se aliviado, porque a menina pareceu compreender que o incomodava. Três minutos, nada de barulho. “Afinal, não é uma menina tão má assim!”, pen-sou. Sorriu ao sentir que se apegava à história de novo. Contudo, para seu desalento, frustrou-se ao constatar que se equivocara ao julgar a menina.

As batidas da bola sendo arremessadas recomeçaram, desta vez com mais intensidade. Eram como marteladas em sua cabeça. Uma vez, duas, três... Levantou-se num supetão e, mais rápido que antes, abriu a porta brusca-mente, disposto a tudo para que a menina parasse com aquele barulho infernal. Surpreendeu-se ao não mais a ver por ali. Olhou para um lado e outro. Nada.

Retornou ao livro. Ficou por minutos apenas olhan-do o texto escrito. Não leu, nem digitou mais; apenas olhou. Insatisfeito e desapontado, deletou tudo.