A MEMÓRIA COMO CONSTRUÇÃO A POSTERIORI NO CINEMA –ROMANCE HIROSHIMA, MON AMOUR DE MARGUERITE DURAS – ASSIS, Paulo.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 167-181
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A MEMÓRIA COMO CONSTRUÇÃO A POSTERIORI NO CINEMA –
ROMANCE HIROSHIMA, MON AMOUR DE MARGUERITE DURAS
ASSIS, Paulo
Mestrando em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
RESUMO
O presente artigo objetiva investigar, delimitar e analisar como a narrativa pós-estruturalista da
escritora francesa Marguerite Duras (1914 -1996), especificamente o cinema-romance Hiroshima, mon
amour (1960), a partir do processo de reescritura como estabelecido por Andrea Paraíso (2002),
engendrada sob o conceito de rizoma proposto por Deleuze e Guattari (2002), e memória retroativa
identificado por Freud (1920), possibilita observar a elaboração da memória como construção a
posteriori como apontada por Ricouer (2007). Atribuindo, assim, à memória uma função de busca
pelo eu biespectral moderno na reescritura durassiana.
Palavras-chave: Pós-estruturalismo. Memória retroativa. Reescritura.
ABSTRACT
The presente article aims to investigate, define and analyse how the pos-structuralist narrative of the
French writer Marguerite Duras (1914 – 1996), specifically the cine roman “Hiroshima mon amour”
(1960, from the rewriting process established by Andrea Paradise (2002), engendered under the
concept of rhizome proposed by Deleuze and Guattari (2002) and retroactive memory indentified by
Freud (1920) makes it possible to identify the elaboration of memory as a posteriori construction as
indicated by Ricouer (2007).Thus ascribing the memory a seach function for the modern bispectral “I”
in the Durassian rewriting.
Keywords: Post-structuralism. Retroactive memory. Rewriting.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho integra uma pesquisa maior que objetiva investigar, delimitar e
analisar como a narrativa pós-estruturalista da escritora francesa Marguerite Duras (1914 -
1996), especificamente aquela que emerge em diálogo com a proposta estética desenvolvida
pelo Nouveau roman (fase iniciada com Moderato Cantabile: suivi de Moderato cantábile et
La Presse française de 1958),1 a partir do processo de reescritura (PARAÍSO, 2002),
engendrada sob o conceito de memória retroativa (FREUD, 1920), possibilita identificar a
1 Paraíso (2001) aponta que “a partir de Moderato cantábile, de 1958, a escrita de Marguerite Duras
começa a modificar-se. O cenário passa a ser representado apenas por raras descrições, e o enredo torna-
se mais conciso” (PARAÍSO, 2001, p. 19). Todavia, indica, também, que Leyla Perrone-Moisés (1996)
identifica, já em Le square de 1955, influências do Novo Romance, mas prefere fixar as fases da narrativa
durrassiana a partir de Maria Cecília de Moraes Pinto (1996): fase realista, até 1958; a fase do novo
romance, que se estenderia até 1980; e a fase pós-moderna.
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construção da memória como contrução a posteriori assim como estabelecida por Ricoeur
(2007). Atribuindo, assim, à memória uma função de busca pelo eu biespectral moderno na
reescritura durassiana.
Perrone-Moisés (2007), ao observar a obra Duras, assim como Paraíso (2002),
identifica a conformação de um efeito autobiográfico no qual, por meio do processo de
reescritura, o narrador não apenas retoma os textos anteriores, como modifica a maneira de
enxergá-los, reescreve-os (PARAÍSO, 2002, p. 107). O sujeito durrassiano inserido nessa
dinâmica discursiva é múltiplo, narrador e personagem no mesmo instante:
em que são transposições das experiências existenciais da autora. De uma
existência que, narrada de maneira objetiva (se tal coisa é possível), seria
predominantemente triste, e por vezes trágica, a escritora conseguiu extrair
um esplendor artístico que se refletiu em sua própria pessoa, transformada,
no fim da vida, em personagem enigmática, quase ficção (PERRONE-
MOISÉS, 2007, p. 103).
Linguagens distintas, nessa perspectiva, confluem na formação dos textos
durrassianos: o teatro é subvertido pela linguagem cinematográfica e a prosa assume um fluxo
poético proporcionando o apagamento de fronteiras. O atravessamento por todas as
linguagens artísticas torna as obras de Marguerite Duras inclassificáveis, transitando em
territórios híbridos delimitados por diálogos constantes entre o cinema, a literatura, as artes
plásticas e a música. Sendo que o
cine-roman (filme-romance) é um pouco [mais] impreciso, pois ele pode
equivocadamente sugerir (1) o romanceamento de um filme ou (2) um
romance ilustrado, quando, na verdade, o termo se refere a uma espécie de
criação artística paralela, que assume duas formas simultâneas: prosa
ficcional e filme. O texto é escrito para a tela – e, neste sentido, ele parece
um roteiro de cinema – mas ele também possui uma existência literária
autônoma. Para os teóricos do cine-roman, a relação filme-literatura não
pressupõe nem mesmo a suspeita de subordinação ou hierarquia entre as
duas artes (STAM, 2008, p. 338).
Na configuração do cine-roman como gênero literário, nesse quadro, prescinde
compreendê-lo como autônomo em relação ao roteiro, reconhecendo sua existência literária
independente pois “no caso do cine-roman, portanto, é errôneo até mesmo falar em
adaptação, que Resnais muitas vezes comparou a requentar uma comida” (STAM, 2008, p.
338).
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Brum (2003) relata que o primeiro cinema-romance de Marguerite Duras Hiroshima,
mon amour (HMA) é de 1960 e foi publicado pela editora Gallimard, mas foi levado para as
telas de cinema por Alain Resnais no ano 1958 e excluído da seleção oficial do Festival de
Cannes de 1959 por seu tema sensível. O horror atômico no imediato pós-guerra e no prelúdio
da Guerra Fria assumiu na obra de Renais aquilo que Jean-Luc Godard chamou de a primeira
película sem referências cinematográficas da história. O presente artigo dialoga com o
cinema-romance de Duras e não, com o filme de Resnais.
A obra durrassiana foi diretamente atravessada por dois movimentos estéticos da
metade do século XX: o Nouveau Roman e a Nouvelle Vague. O primeiro teve como
expoentes Michel Butor (1926-), Claude Simon (1913-2005), Alain Robbe-Grillet (1922-
2008), Nathalie Sarraute (1900-1999) e a própria Duras (1914-1996). Simon foi o Prêmio
Nobel do movimento em 1985. Os novo-romancistas questionavam a estrutura clássica do
romance consolidada no século XIX, a narrativa incorpora o caos, a fragmentação se
afastando da configuração de figura humana central ou como aponta Roobbe-Grillet (1986) ao
propor que:
se em muitas páginas emprego conscientemente o termo Novo Romance,
não o faço com o intuito de designar uma escola, nem mesmo um grupo
definido e constituído por escritores que trabalhariam num mesmo sentido;
trata-se apenas de um rótulo cômodo que engloba todos aqueles que
procuram novas formas de romance, capazes de exprimir (ou de criar) novas
relações entre o homem e o mundo, todos aqueles que se decidiram a
inventar o romance, isto é, a inventar o homem (ROBBE-GRILLET, 1986,
p. 8).
Robbe-Grillet (1968) ao estabelecer “uma crítica de uma ordem estabelecida e uma
proposição para uma ordem nova” (ROBBE-GRILLET, 1986, p. 11) abole a figura clássica
de herói, liberando a narrativa de toda carga humanista e antropocêntrica, e a conduzindo para
um nível autorreflexivo, narcisista,
portanto, atribuamos à noção de compromisso o único sentido que ela pode
ter para nós. Em lugar de ser natureza política, o compromisso é, para o
escritor, a plena consciência dos problemas atuais de sua própria linguagem,
a convicção da extrema importância desses problemas, a vontade de resolvê-
los a partir do lado interno. Reside aí, para ele, a única possibilidade de
continuar a ser um artista e também, sem dúvida, por uma conseqüência
obscura e distante, a de talvez servir um dia a alguma coisa — talvez mesmo
à revolução (ROBBE-GRILLET, 1986, p. 23).
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A narrativa durrassiana, em consonância com essa proposta, emerge repleta de
“destruição, vazio, ambiguidade” (PINTO, 1996, p. 156), com um trabalho permanente de
reescritura e predominância da duração psicológica em detrimento de presença de
acontecimentos. Pela reescritura,
a mesma história é recriada com outras linguagens, reescrita. Aliás,
reescritura é uma das palavras-chave da obra de Marguerite Duras.
Personagens, épocas, histórias passeiam de um livro a outro, passam do livro
à peça teatral e ao filme. Motivos são repetidos, episódios e personagens são
recriados (PARAÍSO, 2002, p. 23).
A Nouvelle Vague se caracterizou como vanguarda estética ao incorporar a narrativa
fílmica o anticinema, diminuindo valores funcionais e técnicos, e abordando um estilo
intimista no qual a recriação de meios sociais e perspectivas éticas são demasiadamente
valoradas (BRUM, 2003). Os expoentes da Nova Onda, grupo composto por Jean-Luc
Godard (1930-), Claude Chabrol (1930-2010), Eric Rohmer (1920-2010), Agnès Varda
(1928-) e Alain Resnais (1922-2014), imprimiram o que foi rotulado de “cinema de autor”
influenciando, inclusive, no Brasil, o Cinema Novo. Cardoso (2007) aponta que:
a Nouvelle Vague herdava facetas de Renoir, Vigo, Becker, Bresson, do
Neo-Realismo italiano (Rossellini, De Sica, Visconti) e do cinéma-verité
(Jean Rouch): filmagens no exterior, luz natural, improvisação, planos-
sequência, fidelidade ao real, atores não profissionais, recusa do star-system
(CARDOSO, 2007, n.p).
O cinema-romance Hiroshima, mon amour reúne o atravessamento dessas duas
propostas estéticas: diálogos visuais, subversão da estrutura romanesca em que, embora
engendrado sob o formato clássico do roteiro, possui uma narrativa essencialmente literária. O
cinema-romance é dividido em: a) sinopse (synopsis), b) proposta inicial (avant-propos), c)
Parte I, d) Parte II, e) Parte III, f) Parte IV, g) Parte V, h) notes sur nevers, i) nevers (Pour
mémoire), j) Portrait du japonais, l) Portrait de la française. Os diálogos, por serem ricos em
imagens, recriam, a partir das falas das personagens, cenários, atmosferas, sensações
psíquicas e, abaixo de muitas falas diretas, há descrições de emoções, sentimentos e reações
das personagens. O cinema-romance possui uma tradução para o Português no Brasil feita por
Henfil em 1966 e não reeditada. Integra, também, o cinema-romance: “As evidências noturnas
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– notas sobre Nevers”em que Marguerite Duras pormenoriza os acontecimentos vividos pela
personagem feminina na cidade de Nevers, então sob ocupação nazista.
A MEMÓRIA COMO BUSCA NA REESCRITURA DURASSIANA
A partir de Fuks (2001), sentimos que Freud, inventando o conceito de trauma, o
estabeleceu como ligado, também, ao sentimento angustiante já comum ao seu conceito
anterior sobre as neuroses de angústia: experiências vivenciadas pelo aparelho psíquico criado
por ele que, por demandarem uma conformação estrutural acima daquelas dispostas no
momento da experiência, fugiram da representação, não são conscientes, estão recalcadas2.
Sebald (2011), analisando a literatura que emergiu nos momentos imediatos ao fim da
Segunda Grande Guerra, percebeu, também, inibição e sufocamento:
De todas as obras literárias surgidas no fim dos anos 1940, apenas de
Heinrich Boll O anjo silencioso oferece de fato uma idéia aproximada da
dimensão do horror que ameaçava tomar conta de qualquer um que
realmente olhasse para as ruínas ao seu redor (SEBALD, 2011, p. 19).
Os caminhos desse intraduzível também inquietaram Ricoeur (2007) ao pensar, a
partir Freud, a memória como construção retroativa, a posteriori, como ficção elaborada pela
razão e encobridora de um possível trauma. Segundo a leitura de Farias (2012) sobre esse
fenômeno psíquico, existiria uma dissimetria entre elaboração da memória, sempre ficcional,
e o trauma geracional. O recalcado não se manifestaria racionalmente pela fala, sempre
suspeita, sempre mentira, pois não é percebido pelo ego3. Um de seus campos de evasão seria
a repetição em que o paciente não reproduz o trauma “em forma de lembrança, mas em
forma de ação: ele o repete sem, obviamente, saber que o repete” (FREUD, 1914, p. 161).
Esse movimento-memória demanda uma legenda, por si somente, não expressa um
conhecimento objetivo do não conhecido, demanda contextualização, associação,
2 Endo (2012) observa com estranheza a ausência de escritos de Freud sobre a neurose traumática até 1920:
[...] Diferentemente da neurose histérica, da neurose obsessiva e da neurose de angústia, a neurose
traumática não foi matéria do pensamento de Freud até 1920 (ENDO, 2012, p. 171). 3 Para Freud (1924), em uma neurose, o ego, sempre dependente da realidade, suprime grande parte do id
(instintos subterrâneos, pulsão sexual, medo da morte). Na psicose, esse mesmo ego, sob comando do id, se
afasta da realidade. Desta forma, para uma neurose, o fator decisivo seria a predominância da realidade,
enquanto na psicose, o id predominaria. Na psicose, haveria um desligamento da realidade. Já na neurose,
essa perda não ocorre.
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interpretação, leitura e escrita. Tal movimento foi nomeado por Paraíso (2001) ao sentir a
obra de Marguerite Duras como reescritura em que:
[...] tal relação, na obra de Duras, identifica-se com o processo de
reescritura, pelo qual episódios são reinterpretados e recriados em novos
textos que remetem aos anteriores, integrando com eles uma trajetória de
busca (PARAÍSO, 2001, p. 106).
Duras, em seu cinema-romance Hiroshima, mon amour, empreende essa busca pela
cidade devastada pelo absurdo atômico imposto pela Força Aérea dos Estados Unidos,
comandada por Harry Truman, no dia 6 de agosto de 1945. Sebald (2011) percebe essa
impotência na tentativa de assimilação das bombas-trauma4:
Em vez disso, o outro fenômeno da natureza despertou novamente com uma
velocidade surpreendente: a vida social. A capacidade do ser humano de
esquecer o que não quer saber, de não fazer caso daquilo que está diante de
seus olhos (SEBALD, 2011, p. 43).
Assim, na tentativa de encontrar o recalcado, a reescritura na narrativa durassiana se
aproxima do conceito de citação em Walter Benjamim (2011) em que esta estabelece um elo
entre o presente e o passado, evidenciando como a autora se posiciona em relação a esse
passado, o inventando a partir do seu eu-presente. Nesse aspecto, a citação benjaminiana se
aproxima da memória retroativa em Freud na qual a lembrança é ficção atravessada pela razão
no atual, invenção no qual:
tornou-se necessário para Freud pensar a guerra como fenômeno psíquico e
sociopolítico, movendo a psicanálise, de modo mais ou menos inseguro, a
uma seara que ele não tencionava visitar. Freud foi provocado pela guerra,
não foi em busca dela. Freud foi atropelado pela maquinaria bélica que
avançou sobre toda a Europa, cujas consequências alcançaram-no [...]
(ENDO, 2012, p. 173).
4 Endo (2002) observa, dentro da evolução do pensamento de Freud, uma hesitação em compreender a
violência como objeto da clínica psicanalítica. Segundo o autor, ainda, Freud passa a se preocupar de forma
abrangente sobre a questão em sua obra Mais além do princípio do prazer de 1920: [...] Portanto, a neurose
traumática ingressou no pensamento de Freud pela força e contundência dos efeitos dos fenômenos das
guerras, o que o obrigou a plantar modificações fundamentais na teoria e na clínica psicanalíticas,
evidenciando a psicanálise como uma teoria potente, única capaz de analisar fenômenos da sociedade e da
cultura a partir das dinâmicas inconscientes que os determinam [...] (ENDO, 2012, p. 172).
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Embora, ao analisar Baudelaire, Benjamin (1989) identifique no choque as condições
para a experiência poética, se opondo, assim, a Freud5 em que o choque traumático causa
imobilização e ânsia na busca de um estado anterior ao trauma, podemos propor um momento
de aproximação entre os dois autores no qual, em O Narrador (1936), a experiência da guerra
também provoca silêncio, interdição, pois:
no final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do
campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros
sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de
boca em boca. Não havia nada de anormal nisso [...] (BENJAMIM, 2011,
p. 1998).
Sebald (2011), ao retornar suas observações acerca das possíveis razões do
sufocamento que teria atingido a literatura no imediato pós-guerra, inclusive no seu fazer
como escritor, relata que, mesmo diante do não dito, é possível se extrair dos frágeis relatos
que emergem desse real opaco, elementos de uma memória coletiva que, mesmo na sua forma
imperfeita, elas abrem certas perspectivas para a maneira como a memória individual,
coletiva e cultural lidam com experiências que extrapolam o limite do suportável (SEBALD,
2011, p. 73).
O conceito de história em Benjamim (2001), nessa perspectiva, também desiste de
recuperar os fatos históricos como eles realmente ocorreram, pois o historiador materialista
sabe que não pode negar sua influência sobre a interpretação. Ainda segundo o autor, seria
necessário um trabalho de esquecimento em relação à memória voluntária que possui
limitações para reconstruir o passado, sendo o presente o único capaz de encontrar o
significado de um passado adormecido (PENIDO, 1989, p. 66). O conceito de alegoria, nesse
momento, surge na teoria benjaminiana sobre a história como sendo o meio pelo qual o
passado, enquanto significação alegórica, desenvolve-se de formas sempre novas. Pela
alegoria, seria possível alcançar a eternidade ao se descontextualizar criando novos sentidos,
pois:
tal como o alegorista trabalha, o historiador deve proceder com os
documentos. O alegorista descontextualiza os objetos de seus significados
5 Ainda Endo (2012): [...] a experiência poética possibilitada pelo choque é o oposto da nulidade ou da
impossibilidade da constituição da memória e da experiência como efeito do choque traumático pensado
por Freud no texto de 1920 (ENDO, 2012, p. 183).
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originais dando-lhes um novo sentido. O historiador deve fazer o mesmo
com os fragmentos da história [...] Ao utilizar os cacos da história como
citação, o historiador os descontextualiza de sua intenção original dando-lhe
um novo sentido (PENIDO, 1989, p. 67).
Ao se compreender a memória como busca na reescritura de Duras, identificamos a
existência de um narrador biespectral moderno. Seligmann-Silva (2012), a partir das críticas
de Walter Benjamin à modernidade, identifica a coexistência de forças motrizes díspares na
conformação do espírito moderno, um eu dentro do eu consciente, incluso e em disputa no
gerenciamento da escritura em que:
ele deixa de ser um “indivíduo” e se revela agora, a partir da modernidade,
como um “divíduo”. O outro dentro dele é, na verdade, plural, são seus
outros, seus fantasmas, seu inconsciente e seus traumas [...] (SELIGMANN-
SILVA, 2012, p. 269).
Iniciando a narrativa, o narrador durrassiano, em sua busca pela revelação do eu
biespectral moderno no cinema-romance, diz “Nós estamos em Agosto de 1957 em Hiroshima”
(DURAS, 1960, p. 9, tradução nossa) para, em seguida, introduzir a personagem feminina, uma
mulher francesa que está na cidade para realizar um filme sobre a paz, sobre a Hiroshima após
as bombas-trauma. Sobre uma cidade e seus habitantes mergulhados na memória retroativa
construída sobre o terror-trauma provocado pela bomba atômica enviada pelos EUA.
Compreendendo o conceito de aparelho psíquico de Freud (1924)6, em um sentido lato,
podemos adesivá-lo a toda malha urbana da Hiroshima do cinema-romance, incluindo nele
seus habitantes como um corpo psíquico uno e seus equipamentos urbanos (museus, escolas,
hospitais, praças) já que:
a transposição de categorias patólogicas para o plano histórico justificar-se-
ia mais completamente caso se conseguisse mostrar que ela não se aplica
apenas às situações excepcionais evocadas acima, mas que elas se devem a
uma estrutura fundamental da história com a violência (RICOEUR, 2012, p.
92).
6 Freud (1924), em sua terceira hipótese acerca do aparelho psíquico humano, nomeada de estrutural, propôs
a formulação dos conceitos de id, ego e superego. Primeiro, se refere às pulsões e aos instintos
inconscientes (medo da morte, pulsão sexual). O segundo é o princípio da realidade e introduz a razão,
harmomizando os desejos do Id e o real. O superego seria os valores morais da sociedade e forçaria o ego a
se comportar adequadamente.
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O trauma, nesse sentido, não se reduzindo à representação, não sendo consciente, é
encoberto por uma memória ficcional, elaborada pela razão. A mulher francesa, sendo umas
das feições da reescritura durassiana, não viu a Hiroshima anterior à bomba, logo, conhece
somente a cidade construída pela memória ficcional e retroativa. A mulher pode ser
compreendida como uma construção egoica (FREUD, 1923), uma vez que sua consciência
dialoga, inicialmente, com a Hiroshima elaborada a posteriori, a cidade racionalizada. A
personagem masculina é japonesa e não possui nome, assim como a mulher. Doravante,
iremos nos referir a eles como Lui e Elle. No início da primeira parte, Lui diz a Elle: você não
conhece nada de Hiroshima. Nada (DURAS, 1960, p. 22). Lui é japonês e conheceu a
Hiroshima de antes da bomba-trauma, logo, Lui sugere a Elle que a cidade que ela vê não é a
Hiroshima real e, sim, a cidade construída pela razão sobre o trauma. “Há um Hospital, eu o
vi”, diz Elle a Lui que responde “Você não viu um hospital em Hiroshima, você não viu
Hiroshima” (DURAS, 1960, p. 23, tradução nossa) em que:
pode-se dar mais um passo e sugerir que é no plano da memória coletiva,
talvez mais ainda do que no da memória individual, que a coincidência entre
trabalho de luto e trabalho de lembrança adquire seu sentindo pleno. O fato
de se tratar de feridas do amor próprio nacional que se fale em objeto de
amor perdido. É sempre com perdas que a memória ferida é obrigada a se
confrontar (RICOEUR, 2012, p. 93).
A dissimetria entre o fato geracional e a memória retroativa construída sobre ele,
segundo Freud (1920), pode ser percebida pela repetição, não por palavras, mas por ações
reiteradas. A ação de negar várias vezes um fato denota, em Lui, um sufocamento. A
associação de palavras na conformação da frase encobre um sentimento que está recalcado e é
reelaborado pela razão. Lui nega, mas sua negativa remete a algo negado inconscientemente,
ele não se refere ao museu e à escola e, sim, a uma Hiroshima apagada, contida. O narrador
durrassiano se manifestando por Lui repete, repete sem, obviamente, saber que o repete
(FREUD, 1914, p. 161). Alcançar o fato geracional recalcado na reescritura de Duras
demanda investigação, associação e contextualização. Aproximando-se, assim, do método
associativo proposto por Freud7 em que, estabelecida a polis psicanalítica, o analista
7 Andersson (2000) aponta que no método terapêutico proposto por Freud a lembrança do trauma pode ser
revelado através de processos associativos com outras lembranças e sofrer correções por parte de outras
representações. Ainda, aponta que uma pessoa sã, dissiparia seus afetos ligados a eventos traumáticos por
esse meio.
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identificará, na fala do paciente, a dinâmica de associações entre ideias, sentimentos e
percepções. Alcançando, nas fraturas dessas elaborações egoicas, o recalcado. Nesse sentido,
a memória na narrativa do cinema-romance assume uma função de busca pelo sufocado e
escondido. A busca pelo oculto eu biespectral moderno. Assim, nessa perspectiva, atravessar,
na memória ficcional reelaborada sobre a bomba-trauma, as estratégias egoicas de defesa
possibilita um reencontro com o eu biespectral moderno em Duras. O real na modernidade se
torna, segundo Deleuze e Guattari (2002), rizomático. Tornando-se acêntrico, passa a ter eu’s
descentrados. As entradas são múltiplas. A Hiroshima reconstruída pela reescritura durassiana
é um rizoma com inúmeras possibilidades de penetração. A cidade discursivisada sobre o
horror da bomba é uma Hiroshima estabelecida na superfície e inconsciente de suas camadas
subterrâneas. Sebald (2002) ao identificar inibição nos escritos literários que emergiram no
imediato pós-guerra sugeria, possivelmente, que a literatura como real se manifestava com
impedimentos. Nesse sentido, a Hiroshima do cinema-romance é uma Hiroshima também
elaborada, o que se aproxima do processo elaborado pela citação como estabelecida por
Walter Benjamin (2012), segundo o qual o passado é inventado pelo eu-presente a partir de
uma relação dialética entre o que se passou e o que se vive: “a reconstituição é feita o mais
seriamente possível, os filmes são feitos o mais seriamente possível. A ilusão é bem simples,
ela é feita para os turistas chorarem” (DURAS, 1960, p. 25, tradução nossa). Embora imersa
nos efeitos da bomba, a cidade parece ter a necessidade de se lembrar, necessidade de se
lembrar o que, talvez, consiga sentir, mas não identificar. Ela sabe da existência de algo
subterrâneo. O recalcado, em Freud, gera angústia, um desejo de retornar ao estado anterior.
Na reescritura durassiana,“o duplo faz parte de uma desconstrução da ideia de Eu como um
ser consciente de si e dono de suas ações” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 269). No eu
biespectral moderno em Duras, o trauma parece se mexer, provocando tanto a elaboração de
uma memória retroativa como aquela inventada por Freud (1920) quanto propiciando a
experiência poética, assim como na proposta de Walter Benjamin (1989). Em ambos os casos,
a memória é criativa. Mas, ainda em Benjamin, a experiência traumática da guerra também
pode causar sufocamento na figura do narrador, não sendo, nesse caso, criativa, pois “no final
da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e
sim mais pobres em experiência comunicável” (BENJAMIN, 2011, p. 198).
Em HMA, podemos identificar essas duas facetas benjaminianas. No primeiro caso, na
Hiroshima inventada, refeita em museus e monumentos públicos. Uma cidade experienciada
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no terror-bomba poetizado. Elle está na cidade para realização de um filme sobre a paz, não
para a realização de um filme sobre qualquer faceta de Hiroshima e, sim, sobre a cidade
elaborada a posteriori para se experienciar a paz, para percebê-la. Uma elaboração, uma
ressignificação do evento traumático. Há uma cidade sob a Hiroshima-paz:
Lui: Para você é fácil reencontrar Hiroshima. É um filme francês? Elle: Não,
internacional. Sobre a paz. Lui: É o fim. Elle: para mim, sim, acabou. vamos
transformar as cenas de multidão, pois nela aparece um monte de comerciais
sobre o sabão. Então ... força ... talvez. Ele está muito confiante sobre seus
projetos. Lui: sim, pela vontade. Filmes aqui em Hiroshima, não se pode
deixar intimidar pela paz. (DURAS, 1960, p. 66, tradução nossa).
A outra, no oculto, naquilo que se manifesta na repetição (Freud) e na citação
(Benjamin). Mas, em ambos os casos, a memória é busca. Tanto a busca pela invenção de
uma Hiroshima poética sobre o horror quanto pela busca de uma Hiroshima soterrada,
sufocada. O trauma, em alguns momentos da reescritura durassiana, escapa das estratégias
egoicas de defesa e consegue emergir. O evento traumático na proposta Freud (1893) pode ser
liberado por meio da ab-reação que, dentro do método psicanalítico, é a liberação de um
sentimento, uma descarga das emoções ligadas ao trauma. Pode ser provocada pelo
psicanalista pelo método associativo ou pode ser espontânea, por empatia. Em HMA, “a título
de exemplo, os cabelos caídos das mulheres “anônimas” de Hiroshima refletem os cabelos
tosquiados da protagonista em Nevers, cidade na qual [Elle] morava na adolescência”
(FERREIRA, 2011, p. 94). As estratégias egoicas de defesa de Elle são desfeitas pela empatia
sentida pela personagem em relação às mulheres calvas. O evento traumático, até então
oculto, sem representação, emerge, sendo liberado o
tesouro das lembranças. Com essa bela expressão, Freud refere-se várias
vezes ao reduto de nossas memórias, aquelas lembranças que, muitas vezes
sem sabermos delas, subitamente afloram ao nosso pensamento com todo
seu vigor. Nem sempre agradáveis, mas cuidadosamente retidas como restos
de experiências e vivências, podem indicar desde vagas sensações
incompreendidas até pontos de intenso prazer que darão origem a fantasias e
desejos inconscientes (PORTUGAL, 2012, p. 1991).
Com ele, sob a experiência pessoal de Elle, emerge a França de Vichy. Elle se
apaixonou por um oficial alemão na, então, França sob comando nazista. Um amor proibido e
que foi censurado com o corte de seus cabelos. Um trauma subterrâneo na reescritura
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durrassiana que emerge reconfigurando a narrativa, tencionando o eu biespectral em Duras a
se realinhar. Os efeitos desse realinhamento dentro do efeito autobiográfico da reescrita de
Duras podem ser aproximados do conceito de alegoria em que:
Benjamin viu a alegoria como a revelação de uma verdade oculta. Uma
alegoria não representa as coisas tal como elas são, mas pretende antes dar-
nos uma versão de como foram ou podem ser, por isso Benjamin se distancia
da retórica clássica e assegura que a alegoria se encontra "entre as idéias
como as ruínas estão entre as coisas (CEIA, 1998, p. 23).
O oculto em HMA como ruína, ao vir à tona como aquilo que escapa da superfície das
coisas, revela o que não é consciente ao narrador biespectral moderno durrassiano e pode ser
colocado “ao serviço da representação da degenerescência e da alienação humanas” (CEIA,
1998, p. 23) ao mostrar uma verdade sob uma fantasiosa mentira. O trauma durante parte da
narrativa guiou a reescritura e, ao ser revelado pela ab-reação, produzirá o realinhamento da
memória retroativa, a deslocando para novas construções de sentidos. Essa reelaboração do
passado pode ser aproximada do conceito de história em Walter Benjamin (2012) em que o
passado deve passar por “um penoso decifrar de momento em momento na tentativa de
restaurar uma continuidade em instantes aparentemente heterogêneos e desconexos”
(TROMBETTA, 2011, p. 392). Assim, é possível libertar a Hiroshima do cinema-romance de
um continnum que a reprime, extraindo dela o recalcado em que
o papel do historiador autêntico, a quem Benjamin denomina de “historiador
materialista”, é buscar no passado os germes de uma nova história, uma
história que leve em consideração os sofrimentos acumulados (os
“documentos de barbárie”), dê um novo impulso às esperanças solapadas e
inaugure outro conceito de tempo, um “tempo dos agoras” (TROMBETTA,
2011, p. 391).
O eu biespectral moderno oculto na reescritura durrassiana traz em si um desconforto
em que“o fracionamento do sujeito desconcerta, perturba e faz refletir sobre a narrativa e
suas muitas instâncias” (PARAÍSO, 2002, p. 108), mas também revela toda a complexidade
do cinema-romance Hiroshima, mon amour (1960). Notadamente, seu compromisso com a
modernidade, com as teorias modernas, com seu tempo. Observá-lo, por meio da crítica de
Walter Benjamin, a modernidade reafirma esses compromissos, assim como revê-lo a partir
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de Freud. Portanto, direciona-se o narrador durrassiano para o protagonismo como revelador
de um tempo, de uma história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fase da obra de Marguerite Duras que emerge em diálogo com o Nouveau Roman e
a Novelle Vague traz junto de si o signo do novo. Inclassificáveis, os textos durrassianos
dialogam com rupturas, descontinuidades e negações presentes em ambos os movimentos.
Rompe com a tradição literária, emergindo com uma poética ímpar. A reescritura durassiana,
além de imprimir um efeito autobiográfico, que, ao mesmo tempo, remete às experiências
vividas pela autora, também possibilita o encontro com as propostas modernas.
O eu biespectral moderno imerso nos textos durrassianos revela um constante diálogo
com a psicanálise freudiana e com as críticas elaboradas por Walter Benjamin ao moderno,
subvertendo-as, deslocando a obra de Duras para alta modernidade poética e tencionando
concepções de tempo, espaço, história e memória. As imagens que surgem das fraturas do
texto relinham a narrativa evoluindo para novos sentidos; revelando, assim, camadas
subterrâneas repletas de lirismo.
O uso da memória como busca, tanto pelo oculto quanto pelo construído no a
posteriori, demarca imprecisões intencionais da reescritura, sempre aberta, sempre
modificável. A memória no cinema-romance percorre a reescritura, a modificando, remetendo
o narrador durrassiano a ambiguidades e tencionando o texto para incursões pelo inconsciente
moderno; revelando, assim, o fragmentado, o dúbio e as contradições da modernidade.
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