VASQUES,JulianaLima;LUCAS,MônicaIsabel(2017).AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland.PerMusi.Ed.porFaustoBorémetal.BeloHorizonte:UFMG.p.1-15:e201709.Articlecode:PerMusi2017-09.DOI:10.1590/permusi2017-09.
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DOI:10.1590/permusi2017-09Articlecode:PerMusi2017-09
SCIENTIFICARTICLE
AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland
MelancholyinLachrimaeCoactaebyJohnDowland
JulianaLimaVasquesUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,[email protected]ônicaIsabelLucasUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,[email protected]:OtemperamentomelancólicofoimuitodifundidonaInglaterraapartirdoséculoXVI,destemodo,agrandemaioriadaspeçasmusicaisinglesascontinhafigurasmelancólicas.JohnDowlandéumdosprincipais representantesdamelancolia elisabetana, tendoutilizadodiversos artifícios retóricospara retratá-la em suas obras. Dentre suas peças, algumas das mais representativas destetemperamento são asSevenTearsouLachrimae. O objetivo deste artigo é abordar a quinta pavana,Lachriame Coactae, visando compreender amelancolia elisabetana através de uma análise retórica.Coactae é o ponto culminante do sofrimento da alma, a apostasia. Para esta representação, foramutilizadasalgumasexorbitâncias,comoousomassivodecromatismoedefictae.Alémdisso,nelaestásintetizadocadaumdosafetospropostospelaspavanasanteriores.Palavras-chave:SevenTearsdeJohnDowland;melancolianaEraElisabetana;LachrimaeCoactae;neoplatonismoemelancolia.Abstract: The melancholic mood was widespread in England since the 16th Century. Thus, themajority of Englishmusical pieces containedmelancholic figures. John Dowland is one of themainleaders on the Elizabethan melancholy and he used several rhetoric artifices to represent it in hisworks.OneofhismostrepresentativemelancholicworksinthisrespectisSevenTearsorLachrimae.This article approaches the fifth pavane, Lachrimae Coactae, through rhetoric analysis from theperspectiveoftheElizabethanmelancholyinmusic.Coactaeistheapexpointofsoul’ssuffering,thatis,apostasy. For this representation,we found someexorbitance, like themassiveuseof chromaticismandfictae.Additionally,itsynthesizedeachoneoftheaffectionsproposedbythepreviouspavanes.
Dataderecebimento:05/02/2016Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016
VASQUES,JulianaLima;LUCAS,MônicaIsabel(2017).AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland.PerMusi.Ed.porFaustoBorémetal.BeloHorizonte:UFMG.p.1-15:e201709.Articlecode:PerMusi2017-09.DOI:10.1590/permusi2017-09.
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1–JohnDowlandeamelancolia
Aquestão damelancolia serviu de assunto para filósofos desde aGrécia antiga até
meadosdoséc.XVIII.Aoretrataro séc.XVIe iníciodoséc.XVII, encontramosduas
vertentessobreoassunto:umafisiológicaeoutrafilosófica1.Aprimeiraébaseadano
corpushippocraticum,teoriaqueabordaasaúdefísicaementaldoshomens.Nela,a
melancolia évista comoum temperamento causadopeloexcessodebilenegra,um
dos quatro fluidos do corpo humano. Já a segunda vertente engloba a filosofia
neoplatônica. Nesta, a melancolia é vista como um estado de alma, que, ao se
encontraraprisionadanocorpohumanoemfunçãodosprazeresmundanos,desejase
libertarevoltarasuaorigem,oUno.
Estas duas vertentes filosóficas são conhecidas na Inglaterra quinhentista, onde
MarsílioFicino,umdosgrandesfilósofosneoplatônicos,émuitodifundido.Segundo
VOSS(2002,p.231-232),amúsicaparaaqueleautorseriaomaiorpodercurativode
toda essa melancolia. Nesse contexto, o compositor que mais se destaca é John
Dowland.
Segundo Pinto, citado por HOLMAN (1999, p.49), ao estudar a obra completa
denominada Lachrimae ou Seven Tears (escrita para cinco violas e um alaúde), é
possível perceber que Dowland retrata o assunto da melancolia, representando o
ciclodequedaeascensãodaalma:aalmaemestadoimaculado,desejandoascoisas
mundanas (Antiquae); a queda da alma aomundomaterial (AntiquaeNovae); seus
desgostos(Gementes);dores(Tristes);eapostasia(Coactae);reconhecimentodesua
origem(Amantis);porúltimo,suaredençãodivina(Verae).
Aslágrimasdecadaumadessaspavanaspodemsimbolizartantoumsoluço,tristeza
oualegria,quantoumestadodealma.Elassãorepresentadasporummotivoformado
1 Esta introdução é baseada em ‘Amelancolia na era elisabetana’ do artigo ‘AsSeven Tears de JohnDowland:LachrimaeAntiquae’deVASQUES(2014,p.225).
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porquatronotasdescendentesemmodofrígio,otetracordefrígio,queestápresente
emcadaumadaspavanas2.
Esteartigoabordaespecificamenteaquintapavana,LachrimaeCoactae,queremete,
dentro do ciclo neoplatônico, à apostasia da alma devido aos seus sofrimentos no
mundo material. Este processo é mostrado através de recursos musicais retóricos
(figuras), muitos dos quais advindos da quarta pavana, Lachrimae Tristes3. Os
materiaisdeTristessofremalgumasmodificaçõesparaespecificaremnovosafetosa
seremdemonstradosemCoactae.
A visão retórica, que se adota nesta análise, é útil por condizer com a época do
humanismo, em que a retórica era um lugar comum presente em todas as artes,
nomeando os recursos para a representação de afetos. Este artigo tomará como
referência a definição de afeto apresentada por Burmeister (1606), citado por
AMBIEL(2010,p.6):
(...)éumperíodoemumamelodiaoupeçaharmônica,finalizadoporuma cadência, que comove e incita os corações dos homens. É ummovimento ou algo que traz alegria ou tristeza para o velho Adão(como Basilius Faber coloca), sendo tanto encantador, agradável ebem-vindo,ouinoportunoedesagradávelaosouvidoseaocoração.
Arespeitodestadefinição,AMBIEL(2010,p.8)comenta:
Cabemencionarqueapalavraaffectiofoitraduzidaparaoportuguêscomo afeto devido ao uso corrente. Entretanto, não seria a melhortradução. A palavra latinaaffectĭōpode ser traduzida por “1. efeito,impressão,influência;2.estado,maneiradeser,disposição(moraloufísica) 3. sentimento, paixão, inclinação, gosto, afeição, ternura...”FazendoumparalelocomaprópriadefiniçãodeBurmeister,dentreas palavras apresentadas, as que mais se aproximam do conceitoobservado são: estado, disposição ou sentimento. Na própria
2OtetracordefrígioéomaterialgeradordasSevenTears.Estetetracordedescendenteéformadodetom-tom-semitom(Lá, Sol, Fá,Mi), tambémconhecidocomo tetracordediatônico, e está inseridonononomodo (oumodo eóleo). Esta figura foi largamente utilizada nesses séculos (XV e XVI) para arepresentaçãodolamentoporoutroscompositores,comoLucaMarenzio,OrlandodiLassuseGiovanniGabrieli.Estetetracordeéumemblema,umlugar-comumdadore,nestecaso,representaaslágrimascaindo(HOLMAN,1999,p.40).3Tristeséaquartapavanaerepresentaumadasdoresdaalmanomundomaterial.Nelasurgemnovoselementos,comoacadenciaemSinasegundaseção,causandoumtrânsitomodalnãoesperado,usoexcessivodedissonâncias, suspensõese cruzamentodevozes,bemcomouma texturamais fechada.Algumasnovasfigurastambémaparecemaqui:MutatioTonieCirculatioquecausamasensaçãodeumdesnorteamentoqueserãotambémtrabalhadasemCoactae.
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definição de Burmeister está implícito um movimento d’alma. Apartir do estudo e compreensão das próprias figuras do teórico,entende-se afeto de uma maneira mais ampla, podendo dirigir-setanto a um sentimento, como a uma qualidade pura, ou mesmo, àrepresentaçãodeumaimagem.
Portanto, o termo afeto será entendido neste texto como uma concepção ampla,
ligadaàalmaesuasafecções.Esteconceitotambémnortearáoencaminhamentoea
construção dessa pavana que tem, pelo seu título, assim como as outras, um afeto
representativoúnico.Valelembrarqueostítulosdaspavanasseencontramemlatim,
que é a línguamater do catolicismo e tambéma língua dos acadêmicos e filósofos.
EstaescolhaparaostítulospodeserdevidoaofatodeDowlandtersidocatólico(ao
menos oficialmente) e dedicado esta peça a uma rainha supostamente católica (a
RainhaAnna,esposadoReiJamesI),fazendoreferênciaaestareligião.
2-LachrimaeCoactae
Tomando por base a visão neoplatônica do ciclo de queda e ascensão da alma, a
quintapavanapode ser entendida comodivisora entre as anteriores e aspróximas
duas últimas. Coactae, em latim, vem do verbo Coago, tendo diversos significados,
entreeles:impor,reunir,misturar,provar.
Segundo HOLMAN (1999, p.57), essa pavana se refere ao descontentamento de
Dowlandemrelaçãoàsua terranatalpornão ter lhedadodevidoreconhecimento.
Sendoassim,Coactaeestarialigadaàvingança:
Otítulo(…)sugereumaconexãocomumadasmaissurpreendentesmelancolias: a vingança ou o descontentamento. (...) Ele [Dowland]repetitivamente reclamava que seu talento não era reconhecido naInglaterra, passou muito tempo de sua carreira no estrangeiro eviajouàItália,e,emcertomomento,foisuspeitopelasautoridadesdesedição(HOLMAN,1999,p.56-57).
Na visão de Pinto, citado por HOLMAN (1999, p.49), Coactae é uma apostasia
relacionada a um estado de arrependimento e penitência que leva o homem a um
mergulhoespiritual,tendoumconflitointernoentreodesejodaalmadeselibertare
osprazeresmundanos.
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No entanto, sob uma perspectiva diversa, esta palavra pode se referir à união de
elementos opostos, segundo HAUGE (2001, p.34). Levando em consideração essas
informações,apresenteanálisefaráumauniãodessesconceitosparaainterpretação
deCoactae.
Logonoinício,percebe-seotetracordefrígioemevidêncianoCantus(emTristes,ele
tinha sido obscurecido), sendo repetido uma oitava abaixo pelo Quintus para
enfatizá-lo, através da figuraAnaphora4 e domotivo das ‘lágrimas renovadas’ feito
peloTenordestavez5.Alémdisso,éaprimeiravezqueoBassusexecutaumalinha
melódica ascendente (isto será mais trabalhado em Amantis, a sexta pavana). Na
Figura1,podemosobservarnoiníciodapeçaascaracterísticasdescritas.
Figura1:IníciodapeçaemqueépossívelobservarotetracordefrígioemevidêncianoCantus.
4 Kircher (1650), citado por BARTEL (1997, p.188) explica que a Anaphora ocorre quando umapassageméfrequentementerepetidaparaumaênfase.5Estafiguradas ‘lágrimasrenovadas’,Dó-Si-Dó-Ré-Mi,éapresentadanaprimeirapavana,LachrimaeAntique, pelo Cantus e desenvolvida amplamente na segunda, Lachrimae Antiquae Novae. Elarepresentaaantítesequeaalmapassaentrepermaneceremseuestadoimaculadoedesejarascoisasmundanas,alémdesimbolizararenovaçãodaalmaquandoestasofreaquedaaomundomaterial.
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No entanto, o segundo tetracorde (Dó-Si-Lá-Sol#) está omisso neste início,
aparecendonãocomorespostadofrígio,masapenasnacadênciadofinaldaprimeira
seção(comoSimodificadoatravésdeumbemol,fazendoumaalusãoaoscompassos
10e11deTristes),comoépossívelevidenciarnaFigura26.
Figura2:SegundotetracordemodificadonoiníciodoCantusePathopeiacaracterísticadosfinaisdeseções.
Após a apresentação do tetracorde frígio no Cantus e no Quintus, observa-se uma
Exclamatioatravésdeumsaltodeoitavaesextamenorrespectivamente7.Essesdois
saltos reaparecememoutrospontosevidentesdestaprimeiraseçãonoBassus (Lá-
Lá) do c.2, no Quintus (Mi-Dó) do c.3 e no Cantus (Ré-Ré) novamente no c.5. Esta
figura é frequentemente utilizada em todas as pavanas e normalmente destaca os
tetracordesdescendentesimbuídosdecromatismoqueseseguemapósestafigura.
Enquanto isso,oAltus iniciaasbordadurasquesãorepetidaspeloCantuseBassus,
dessa maneira, a cadência é estendida até o c.3 como em Tristes, simbolizando as
lágrimascaindo, comopodemosobservarnaFigura3.OTenor,no c.2, temopapel
6Osegundotetracordetambémnãoéigualaoprimeiro,maspotencializaopoderafetivodesteporsuamaiorocorrênciadesemitonsepelointervalodetrítono.Alémdisso,élargamenteutilizadoemtodasaspavanas.7SegundoWalther(1732),citadoporBARTEL(1997,p.268),significaumaexclamaçãoagitadaepodeserrealizadanamúsicaatravésdeumsaltodesextamenor.
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importantede ressaltar essas bordaduras com semínimaspontuadasdescendentes,
remetendo ao suspiro deGementes, a terceira pavana (esse ritmo é reforçado pelo
Quintusnosc.3-4).
Na figura3, tambémpodemosperceberumdiálogoentreoCantus (c.3-4)eBassus
(c.4)comtetracordesdescendentes.OprimeiroDó-Si-Lá-Sol,tendoumsemitomeo
segundo potencializando o anterior com dois semitons Fá-Mi-Ré-Dó#, cadenciando
emRénoc.5.
Figura3:Diálogosdaprimeiraseçãoecadênciaestendidaatravésdasrepetiçõesdebordaduras.
Em suma, encontramos nesta primeira seção a Pathopeia8 do tetracorde frígio
potencializada pelas bordaduras e seus semitons (ver Figura 2), a Exclamatio por
causadossaltosdescritos,aCatabasis9atravésdasfigurasmelódicasdescendentes,a
Parrhesia10devidoàsdissonâncias,aAnaphoradevidoàsimitaçõeseaSuspiratio11.
8EmrelaçãoàPathopeia, segundoBARTEL (1997,p.359), ela éumapassagemmusicalqueprocuradespertar um afeto apaixonado através de cromatismos, também, é uma representação viva de umafeto intenso ou veemente, tal como angústia, melancolia e tristeza. Burmeister (1606), citado porBARTEL(1997,p.361)explicaqueaPathopeiaocorrequandosemitonssãoadicionadosaomodusdeumacomposiçãodeumamaneiraextraordinária.9ACatabasisdeKircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.215)serveparaexpressaraintençãodeumafetoatravésdepassagensmelódicasdescendentes.10SegundoBurmeister(1606),citadoporBARTEL(1997,p.355),aParrhesiaocorrequandointervalosdissonantes são misturados em uma textura consonantes, tal como uma quinta. Entretanto, é umadissonânciabrevequeocorrenotempofracodeumavoz.
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O início da segunda seção, ilustrado na Figura 4, émarcado pelo aparecimento da
cadênciainesperadaemSienãoemDó(comoacontecenastrêsprimeiraspavanas)e
pelodesnorteamento12.Alémdisso,umanovafictaéutilizada:oLásustenidonolugar
doSibemoldeTristes.
Figura4:Iníciodasegundaseção,marcadopelacadênciainesperadaemSi.
Um lugar-comum de Tristes nesta seção é o uso da figura Circulatio13 que agora
aparece invertida nos c.11-12 no Cantus, no Tenor e no Bassus, nos c.12-13 no
Quintus e nos c.13-14 no Bassus, como se percebe na Figura 5. Repara-se que a
Circulatio no Bassus do c.12 é marcada pela presença da Pathopeia dada pelo
cromatismo Lá, Sib, Si, Dó. Esse cromatismo é importante, pois reforça o caráter
lânguidojádoiníciodasegundaseçãoquefazusoconstantedesemitonsentreoRé#
eMi,oLá#eSieoSol#eLá(verFigura4).
11BARTEL(1997,p.392)explicaqueaSuspiratioexpressaumsuspiroatravésdeumapausa.Walther(1732),citadoporBARTEL(1997,p.394)esclarecequeesta figura temumameiapausanaduração,seguidadeumanotadeigualduraçãoaoutrasduasnotas.12 As sete Lachrimae se encontram no nonomodo ou nomodo eóleo. Com isso, é esperado que asseçõesseencontrassemprimeiroemLá,depoisemDóeporúltimoemMi.13Kircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.217)explica:éumapassagemmusicalemqueasvozesparecemmoveremcírculoseserveparaexpressarpalavrascomummovimentocircular.
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Somandoaisso,amelodiadoCantusdescendeapartirdoc.12atéoc.13(Catabasis)e
a Exclamatio dada pelo salto ascendente de 4J no Altus (c.12), proporciona um
cruzamentodevoz(Metabasis)entreCantuseAltusatéoc.13.Percebe-sequeaquia
cadência em Dó foi evitada em todos osmomentos, foram utilizados cromatismos,
melodiasdescendentes,sincopasedissonâncias.
Figura5:Circulatiodasegundaseção.
A terceira seção inicia com o retorno do segundo tetracorde no Quintus e com o
mesmo caráter lânguidoda seção anterior, comopodemos observar na Figura 6.O
afetodo lamentoseencontrapresenteatravésdas figurasdePathopeiaeCatabasis,
resultantes da imitação entre o Tenor e o Cantus, que têm as linhas melódicas
descendentes,formadasporintervalosdissonantesefinalizadasporbordaduras.
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Figura6:Imitaçãodaterceiraseção,tendoimplicadooafetodolamento.
Já a partir do c.19, a Circulatio está implicada novamente no Tenor (c.19-21) e a
melodia é impelida para cima pelo Altus com o ritmo pontuado, formando uma
Hyperbole no c.2214. Existem, também, outros pontos importantes de Exclamatio
impelindoamelodiaparacima,comonoc.19noBassus,noc.21noCantus,noc.22
noAltuseBassusenoc.23noBassus.
Essas Exclamatio preparam para o final da peça, ilustrada na Figura 7, em que
aparecem linhas melódicas ascendentes nos dois últimos compassos, sendo
executadosnoCantus,TenoreQuintus.Diferentementedasoutraspavanasquetêm
como característica a melodia descendente na terceira parte para a finalização da
peça,aquiamaioriadasvozesascendeparaacadência, tendo,apenas,oCantuseo
Bassuscommelodiasdescendentesnoúltimocompasso.Poressemotivo,o finalde
Coactae prepara para atmosfera de Amantis, a próxima pavana, que terá como
principal característica as linhas melódicas ascendentes, tornando o afeto em
exaltação.
14 AHyperbole ocorre quando amelodia excede seu limite (Burmeister (1606), citado por BARTEL,1997,p.307).
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Figura7:FinaldaterceiraseçãoemquetemoslinhasascendentespreparandoparaAmantis.
Portanto, no trecho acima descrito encontra-se aAnaphora dada pelas imitações, a
Syncopatio15dasmelodiaseaAnabasisnosdoisúltimoscompassos16.
3 -ConsideraçõesFinais
PodemosperceberemCoactaequerecursosmusicaiseafetivosutilizadosemTristes
foram ligeiramente modificados para enfatizar e exagerar o afeto proposto. Além
disso,estaéapavanaemqueDowlandutilizaomaiornúmerode fictas(Sol#,Fá#,
Dó#,Ré#,SibeLá#).
Aprimeira seçãoémarcadapelo retornodo tetracorde frígio eda figuraAnthitesis
(lágrimas renovadas)17. Com isso, os afetos aqui propostos são o do lamento e do
suspiro.OsrecursosutilizadosparaissosãoquaseosmesmosdeTristes:Pathopeia,15SegundoBurmeister(1606),citadoporBARTEL(1997,p.400),aSyncopacausaumadissonâncianocomeço do tactus minoris ou majoris. Essa dissonância é relativa, visto que ela é ligada a umaconsonânciapuraatravésdasyncopa.16AAnabasis(Kircher(1650),citadoporBARTEL,1997,p.180)éumapassagemmusicalascendentequeexpressaexaltação,elevaçãoepensamentoseminentes.17Kircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.199)mencionadaseguintemaneiraafiguraAntithesis:“éumapassagemmusicalnaqualnósexpressamosafetoscontrários”.
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Parrhesia eCatabasis.Mesmoassim,a figuraExclamatio sobressainomeiode linha
melódicasdescendentesesaltamaosouvidos.Dowland,assim,fazumopostoentreas
figuraseosafetos.
AsegundaseçãotemamesmasensaçãodeincertezadeTristes,pelodesnorteamento
epelafiguraCirculatio.Somadoaissotemaideiadoconflitofeitopelasdissonâncias,
suspensões e pela melodia descendente grave do Cantus. Também, não há o
aparecimentodoterceirograudononomodo(Dó)quetrazaoouvinteumsommais
luminoso.
Aterceiraseçãonãoapresentaotommaisharmonioso,comodecostumenasoutras
pavanas, mas inicia com o mesmo caráter lânguido dado pelas dissonâncias, pela
voltadotetracordefrígionoBassusepelosmotivosemritmopontuado.Mas,aofinal,
aocontráriodasoutraspavanas,apresentaamelodiaascendendoparaafinalização
dapeça.
As características descritas acima condizem com a ideia de ‘descontentamento’ ou
‘raiva’propostaporHolman.Também,sãocompatíveiscomaapostasiadePintopelo
fato de ser a pavana em que mais fictas são utilizadas, por ter a partitura mais
complexa de todas e por sintetizar um pouco de cada um dos afetos e recursos
musicais propostos pelas outras pavanas. Além disso, temos elementos materiais
opostos sendo utilizados, como o tetracorde frígio versus a figura das lágrimas
renovadas,easmelodiasdescendentesdoiníciodaterceiraseçãoopostasàAnabasis
eàExclamatiodofinaldapeça,oquecondizemcomaideiadeHauge.
SeguindoalinhadeinterpretaçãodasseteLachrimaepropostanesteartigo,Coactaeé
opontoculminantedosofrimentodaalma,aapostasiaeoiníciodeseuprocessode
redenção. É interessante notar que isto é desempenhado justo na quinta pavana, e
queonúmerocincorepresenta,segundoCIRLOT(2001,p.233),aomesmotempo,a
queda e a regeneração do homem, ou seja, é o momento em que este consegue
dominarsuapróprianatureza.
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Estaapostasiaédemonstradaatravésdealgunsexageroscomo,porexemplo,ouso
deseisfictae(éapavanaquetemmaisfictae),aHyperboledoCantus,oscromatismos
ecruzamentodevozesdasegundaseção.Elatambémérepresentadapelauniãode
elementos citados. Além disso, em Coactae, Dowland criou uma atmosfera mais
conflituosa por causa daMutatioToni deTristes e seu desnorteamento somados à
figuraCirculatio.
ValenotarqueaúltimaseçãodeCoactaeretomaoafetolânguidodastrêsprimeiras
pavanas, mas já prepara para o afeto de exaltação de Amantis (próxima pavana)
através da linha ascendente dos dois últimos compassos, dando por finalizada a
apostasiaecomeçandoaredenção.
Referências1.AMBIEL,Áurea.(2010)“LamentationesJeremiaeProphetae”deorlandodilasso:aaplicaçãodaquintacategoriaanalíticadeJoachimBurmeister.UNICAMP/FAPESP(TesedeDoutorado).
2.ARISTÓTELES.(1998)ProblemaXXX,1.SãoPaulo:Lacerda.
3.BARTEL,Dietrich.(1997)MusicaPoetica.Nebraska:UniversityofNebraskaPress.
4.BURMEISTER, J. (1993)MusicalPoetics [Musicapoetica.Rostock,1606].London:YaleUniversityPress(tradução,introduçãoenotasdeBenitoV.Rivera;versãobilíngue).
5.BURTON,Robert.(1998)AnathomyofMelancholy[1605].London:OxfordUniverstyPress.
6.CIRLOT,JuanEduardo.(2001)ADictionaryofSymbols.NovaYork:DoverPublications.
7.FICINO,Marcilio.(1482)TheologiaPlatonica.Florença:porAntoniumMiscominum.
8.HAUGE,Peter.(2001)Dowland’sSevenTears,ortheArtofConcealingtheArt.DanishYearbookofMusicology.Langelandsgade:AarhusUniversityPress.v.29,p.9-36.
9.HOLMAN,Peter.(1999)Lachrimae(1604).London:CambridgeUniversityPress.
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11.VOSS,Angela. (2002)OrpheusRedivivus: themusicalmagicofmarsilio ficino. In:Marsilio ficino:histheology,hisphilosophy,hislegacy.Boston:Brill.
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ReferênciasdePartituras
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Leiturarecomendada1.ALCADE,AntonioCorona.(2010)Tearsof JoyorTearsofWoe?ElEmblemade laLachrimaeenlaobra de John Dowland: Un ensayo de interpretación. Revista del Instituto de InvestigaciónMusicológica“CarlosVeja”.BuenosAires:PontificiaUniversidadCatólicaArgentina.n.24,v.24,p.203-253.
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Notasobreasautoras
Juliana Lima Vasques é Bacharel em Música com habilitação em instrumento(violão) em 2015 pela Universidade de São Paulo. Mestranda emmusicologia pelaEscola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Suapesquisa é voltada para o estudo da melancolia nos séc. XVI e XVII nas obras docompositor John Dowland, através de uma abordagem retórica-musical. Comoviolonista, vinculado aUniversidade, em2011/2013, participoudo3º e 4º FestivalLeoBrouwercomointegrantedoensembledeviolão.
Mônica Isabel Lucas graduou-se em música na Universidade de São Paulo eespecializou-se na interpretação da música antiga no Real Conservatório de Haia(Holanda), obtendo diplomas em flauta-doce e em clarinetes históricos. Coordenadesde 2001 o Conjunto de MúsicaAntigana ECA-USP. Seu trabalho comopesquisadora, financiado desde 2002 pela FAPESP (doutorado, pós-doutorado eauxílio à pesquisa), envolve o estudo da instituição daMusica Poetica. É autora de"HumoreAgudezaemHaydn:osQuartetosdeCordasop.33"(AnnaBlume/FAPESP,2008).Desde2013,éChefedoDepartamentodeMúsicadaECA-USP,ondetambématua como docente, sendo responsável pelas disciplinas “História da Música”,"HistóriadaÓpera"e“IntroduçãoàRetóricadaMúsicaSetecentista”.
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