Quinta-feira, 18 de março: uma manifestação estranha e
comovente toma conta do Centro Histórico de Salvador.
Quase mil pessoas, com bandeiras e faixas, apitos e carta-
zes, caminham juntas, sob olhares curiosos dos turistas.
Um mês antes, no dia 22 de fevereiro, domingo de Carna-
val, uma cena semelhante: centenas de crianças, velhos, jo-
vens e adultos percorrem uma das principais avenidas da
cidade. Eles carregam em sacolas ou sacos de lixo tudo o
que possuem. Dos prédios e das ruas recebem gestos de
apoio e solidariedade. Depois de 2 quilômetros de estrada
chegam à sede de um tradicional clube da elite baiana. “É
aqui!”, grita Idelmário de Jesus. E a marcha pára.
Mas quem são? O que
pretendem? Para onde
vão? Eles são a conse-
qüência, terrível e previsí-
vel, de cinco séculos de in-
justiça e resignação, de
histórias queimadas e mal
contadas. Eles são os inte-
grantes do Movimento
dos Sem Teto de Salvador,
o MSTS. Os invisíveis.
A marcha do domingo
de Carnaval ocupou a sede do Clube Português. Não houve
problemas para entrar. Os dois vigilantes, surpresos, apenas
observaram a destruição de um cadeado velho, na porta
principal. Todos entraram lentos, mas decididos. E ali mes-
mo, ainda com seus objetos pessoais nas mãos, foram forma-
das equipes para cuidar da segurança, alimentação e limpe-
za. O clube, localizado na orla, tem aproximadamente 2.000
metros quadrados, está abandonado há anos e acumula uma
dívida junto à prefeitura de 6 milhões de reais. Desde aquele
dia, 405 pessoas, entre elas 81 crianças, vivem naquele lugar.
A caminhada de 18 de março não terminou em nenhum
clube, terreno ou edifício abandonado. O objetivo era ou-
tro. Era apenas uma “passeata pedagógica”. Os sem-teto,
guiados por dois professores universitários, passaram por
centenas de estátuas e monumentos históricos da capital.
E, durante cinco horas, debateram sobre a vida (a oficial e
a silenciada) de cada um daqueles personagens. Para João
Dantas, 48 anos, um dos coordenadores do MSTS, “o gran-
de mérito do Movimento Sem Terra foi transformar as pes-
soas mais marginalizadas em sujeitos políticos, e isso
aconteceu porque lá há uma constante reflexão sobre nos-
sos personagens históricos e de que lado cada um estava.
Queremos fazer isso também aqui, no MSTS”, revela.
Entre uma estátua e outra, os sem-teto mandaram, com
os gritos de ordem, recados ao prefeito, ao governador e ao
presidente da República: “Imbassahy, Paulo Souto e Lula
Lá, nós queremos teto pra morar”. “É ou não é piada de sa-
lão? Tem dinheiro pra banqueiro, mas não tem pra habita-
ção.” E mais: “Nossa luta é pra valer, queremos teto pra vi-
ver”. A marcha terminou na praça Castro Alves, com dis-
cursos e um recital de poesia. Segundo estudos da Câmara
Brasileira da Construção, existem no Brasil 20,2 milhões de
sem-teto. Só na capital baiana, o déficit habitacional é de
150.000 casas e um terço dos domicílios está em favelas ou
loteamentos irregulares.
A saída para essa situação, dizem os integrantes do
MSTS, é lutar por uma reforma urbana. Para eles, as mar-
chas e ocupações são formas legítimas de pressão política
e um meio de sensibilizar o governo e a sociedade. Além
disso, explica Pedro Cardoso, 40 anos, outro dos coordena-
dores do Movimento, “a luta pela moradia é apenas um
mecanismo na busca pela justiça, liberdade e igualdade.
Não queremos apenas um teto para morar, queremos de-
senvolver valores de solidariedade e cooperação. Queremos
levantar discussões sobre nossas raízes e nossa realidade,
para que a gente possa entender o porquê de nossa situa-
ção e o caminho para superá-la”.
O tom do desafio pode parecer quixotesco, mas poucos
duvidam de sua importância e urgência. Quanto maior é a
exclusão social, mais assustadores são os números sobre a
violência urbana. Para ter idéia, só nos dois primeiros me-
ses deste ano, 159 pessoas foram assassinadas na Bahia.
AS CRIANÇASO Movimento dos Sem-Teto de Salvador foi criado em 20
de julho do ano passado. Não surgiu de forma organizada
nem planejada. “Depois de muitos despejos e muitas porra-
das da polícia, a gente viu a necessidade de fortalecer a
luta”, explica Pedro Cardoso. Na época, eram 720 integran-
tes. Hoje, apenas oito meses depois, já são mais de 15.000
pessoas cadastradas. E o movimento não pára de crescer.
“Nossa organização surge porque cansamos de acreditar
em promessas. Nós não queremos um Estado paternalista,
queremos um Estado justo, onde cada um faça a sua parte”,
argumenta Idelmário Proença de Jesus, de 39 anos. É por
isso que, numa área já cedida pela prefeitura, os sem-teto
a marcha dosFernando Evangelista
PELAS RUAS DE SALVADOR CAMINHAM CENTENAS DE PESSOAS TENDO NA MÃO SACOS DE LIXO COM TUDO O QUE POSSUEM. NÃO TÊM ONDE MORAR, NEM MESMO NA AREIA. SÃO O RESULTADO DE QUINHENTOS ANOS DE EXPLORAÇÃO E DE EXCLUSÃO
Pedro Cardoso
O acampamento dos sem-teto na capital baiana: longe do folclore carnavalesco
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invisíveis
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trabalham em mutirão para construir as casas. “O Estado
faz a sua parte, nós fazemos a nossa”, completa Idelmário.
O MSTS é formado por empregadas domésticas, traba-
lhadores da construção civil, catadores de lixo e desempre-
gados. A maioria são mulheres, 70 por cento, aproximada-
mente. Embora as lideranças sejam ligadas à religião cató-
lica, boa parte dos integrantes freqüenta igrejas evangéli-
cas. Muitas dessas pessoas moravam de aluguel, mas fo-
ram despejadas por não terem pago a locação. Outras mo-
ravam em albergues ou em uma casa com várias famílias.
Algumas viviam em lugares em risco de desabamento, ou-
tras viviam nas ruas.
Já são mais de dezesseis áreas, entre prédios e terrenos,
ocupadas pelo Movimento na capital baiana. O primeiro e
maior desses acampamentos fica próximo ao Aeroporto
Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães. Ali, 648
famílias estão à espera de uma casa. O acampamento, que
parece uma grande favela, foi construído na encosta de
um morro. O calor, as ruelas íngremes e os barracos gruda-
dos uns nos outros ampliam a sensação de aperto e des-
conforto. São centenas de “casas” de lona preta e madeira.
Algumas são feitas apenas de papelão, nenhuma delas tem
mais de 2 metros quadrados.
Ao chegar lá, peço para falar com o coordenador do
acampamento. “Não, meu amigo”, responde um senhor,
sentado na entrada, “aqui quem manda é uma mulher. A
coordenadora é a Graça.” Com o meu bloco de notas nas
mãos e a máquina fotográfica pendurada no pescoço, vou
atrás dela. Antes de encontrar a coordenadora sou aborda-
do por uma menina.
– Você é gringo? – ela pergunta.
– Não – respondo.
– Mas parece, pela cara e pelas fotos, são os gringos que
batem foto.
Eu dou uma risada, mas ela permanece séria.
– Qual é o teu nome?
– Me chamo Lavinha dos Santos Menezes.
E me mostra seis dedos miúdos marcados de poeira.
– Essa é a minha idade – ela diz.
– Seis anos! – digo, surpreso. – Você mora aqui?
– Moro, mas não é pra sempre, não.
De repente, do nada, começam a aparecer crianças de
todos os cantos: da esquerda, da direita... um mundaréu
delas, quase todas negras. E perguntam de onde sou, quem
sou, pedem foto, “uma foto com o meu irmão”, “faz uma
foto da minha boneca?”, “uma foto da bola de futebol?”,
“uma foto do cachorro?” “faz uma foto da minha casa?”
Vou caminhando. No chão, misturam-se lama e lixo. Ao
avistar a coordenadora,
me sinto aliviado, a salvo.
As crianças vão se disper-
sando, em busca de algu-
ma coisa mais divertida
para fazer.
– Seja bem-vindo –
cumprimenta Maria das
Graças Dias, a Graça. – Foi
aqui que tudo começou.
A coordenadora con-
ta, com olhos vivos e voz
decidida, a história da-
quele acampamento e daquelas pessoas. Mostra o seu
barraco, onde está escrito, acima da porta: “Deus é fiel”.
Conta que no primeiro dia deste ano um incêndio destruiu,
em poucos minutos, 32 barracos. Conta do sonho de
montar uma cooperativa dos acampados, conta das reu-
niões, brigas e acordos com os órgãos públicos, fala sobre
as misérias e as belezas do Brasil:
– O que falta para o país dar certo não é competência,
o que falta é honestidade na política, falta caráter aos ho-
mens públicos.
Perto de nós está Vivaldo José dos Santos, de 81 anos.
– Olha, no meu tempo, eram os homens que manda-
vam e as mulheres obedeciam, agora é o contrário – diz,
rindo, com uma voz rouca e sonora.
Vivaldo é um dos mais ativos participantes do Movi-
mento. Entre seus feitos, que ele mesmo narra, sem cansa-
ço e sem modéstia, está a marcha de 21 de agosto do ano
passado. Em comemoração ao Dia Nacional de Luta pela
Moradia, os sem-teto percorreram 32 quilômetros.
– Eu estava lá – conta, com entusiasmo.
Dona Clementina Maria de Jesus, sua amiga, é outra
presença constante nas manifestações. Ela tem 82 anos.
– Meu maior sonho é ter o que nunca tive, uma casinha.
Dona Clementina começou a trabalhar, nas fazendas da
Bahia, com 5 anos de idade. Hoje é aposentada, recebe 240
reais mensais.
Observo, andando entre os barracos, que não existem
banheiros no acampamento. Os sem-teto fazem suas ne-
cessidades em sacolas e jogam nas únicas duas latas de
lixo oferecidas pela prefeitura. Aliás, essas latas são a úni-
ca presença do poder público naquela área. Ao contrário
dos acampamentos do
Movimento Sem Terra,
aqui não há escolas nem
depósitos onde se guar-
dam alimentos e remé-
dios. A última atividade
para crianças foi um co-
ral de Natal, organizado
por algumas mulheres
acampadas.
Pergunto a Graça qual
é o maior problema que
eles enfrentam.
– É a falta de alimento. Muita gente passa fome aqui.
Mas, em seguida, como se não suportasse o discurso da
autopiedade, ela diz que sobre uma área cedida pela pre-
feitura aos sem-teto estão sendo construídas 350 casas.
– Isso é o resultado das nossas lutas – comemora.
OS ARTISTASÉ estranho. Em meio à miséria extrema, onde tudo fal-
ta, as pessoas parecem manter a cabeça erguida.
– Ter entrado nesse Movimento foi a melhor coisa que
me aconteceu, tenho crescido e aprendido muito aqui –
diz a acampada Luciana Moura Gonçalves, de 29 anos. –
Agora, eu tenho a esperança concreta de ter uma casa.
Ela revela que, quando não está nas reuniões ou em
passeatas, usa o tempo livre para escrever letras de músi-
ca. Peço que cante alguma coisa. Luciana vai até o barraco
e traz uma das suas composições, inspirada no samba
clássico de Luís Antônio e J. Júnior. Ela conta e canta:
– Lá vem Maria,/ lata d’água na cabeça,/ água barrenta
da fonte do seu José,/ pois não há água no sertão tempo de
seca,/ então Maria pega água onde tiver.
Luciana canta com ritmo e poesia, tem uma voz doce e
bonita. A música tem quatro estrofes e termina assim:
– Lá vem Maria, que alegria,/ há uma certeza nos olhos
CAROS AMIGOSA B R I L2 0 0 4 19
O Clube Português, ocupado por 405 pessoas, das quais 81 são crianças
Maria das Graças Dias
Dona Clementina Maria de Jesus
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dessa mulher/ que terá chuva na terra seca/ para Maria
plantar tudo o que puder.
Luciana não é única artista naquele acampamento
dos sem-teto. Tem o Raimundo Nonato, que, com palha
de dendê, faz cadeiras, mesas, sofás, armários; tem a Sô-
nia dos Reis, que faz bonecas de pano e lã; tem uma ou-
tra senhora que faz todo tipo de roupa com material re-
ciclado; tem os meninos que fazem, com latas velhas,
uma orquestra de percussão. E tem o alagoano José de
Andrade, de 27 anos, artista plástico. Ele me mostra fo-
tos de uma maquete de navio e uma representação da
Última Ceia, de 2 metros de largura, esculpida em madei-
ra de jacarandá.
– Todas as duas obras foram vendidas – diz o autor,
orgulhoso.
Pergunto a José
como ele foi parar no
MSTS. Quem responde
é Edna Santiago, de 25
anos, sua mulher, mãe
de cinco filhos e grávida
de oito meses. Ela conta
que a família morava
numa área pública, no
centro de Salvador, já
havia alguns anos.
– Até que chegaram
alguns funcionários da prefeitura e destruíram nossa
casa – relembra.
Depois de vender a geladeira, a televisão e o fogão, eles
foram viver na praia. Ficaram lá dez dias, até serem ex-
pulsos, uma vez mais. O dinheiro da venda dos eletrodo-
mésticos, que somava pouco mais de 60 reais, já tinha
terminado. Foi aí que ingressaram no Movimento.
– Tivemos sorte – diz Edna.
Faz uma pausa e completa:
– Agora, nossa dor dói menos.
O ESTADODesde o final do ano passado, o Ministério das Cida-
des elabora um plano de desenvolvimento urbano para
todas as regiões metropolitanas do país, com enfoque
em onze grandes cidades. São elas: Curitiba, Porto Ale-
gre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, For-
taleza, Belém, Manaus, os arredores do Distrito Federal e
Salvador. Ao todo, estão previstos investimentos de 12,1
bilhões de reais. As ações serão centradas em saneamen-
to, transporte e habitação. O governo estima que as no-
vas moradias, provenientes desse plano, beneficiem
710.000 famílias em todo o Brasil.
Além disso, muitos municípios já são contemplados
com recursos do Programa de Subsídio Habitacional (PSH).
Esse programa deveria viabilizar a construção de milhares
de casas (de dois quartos e sala), estimadas, cada uma, em
9.000 reais. Funciona assim: o governo federal contribui
com dois terços do valor para a construção da casa (6.000
reais). Os governos municipais e estaduais fornecem o res-
tante, em forma de terreno e infra-estrutura (3.000 reais).
O problema, diz Pedro Cardoso, “é que só o material para
construção da casa vale 9.000 reais. E não tem nenhuma
construtora que queira entrar nesse negócio”.
Para o secretário de Habitação de Salvador, Fernando
Medrado, “6.000 reais não resolvem o problema”. Segun-
do ele, desde 1986, quando foi extinto o Banco Nacional
de Habitação (BNH), o Brasil está carente de uma políti-
ca séria e eficaz nessa área. “A luta do MSTS é legítima e
importante porque pressiona o governo a criar soluções
permanentes e não paliativas. Além disso, eles sabem
dialogar e agem com responsabilidade”, reconhece.
Durante vários dias visitei prédios e terrenos ocupa-
dos pelos sem-teto. Exceto os coordenadores, nenhum
dos integrantes ouviu falar dos programas de moradia
do governo.
O COTIDIANOFinal de tarde. À beira-mar, em volta de uma das qua-
tro piscinas cheias de água podre, vermes e mosquitos do
Clube Português, conversei com a sem-teto Didirlane
Santos Cardoso, de 6 anos. A mesma idade de Lavinha,
do acampamento do aeroporto. Depois de alguns minu-
tos, num diálogo difícil e monossilábico, Didirlane se pôs
a falar e não parou mais: “Eu morava na casa da minha
avó Maria, depois morei na casa do seu Juca, depois na
casa do seu Pinho, agora moro aqui. Aqui é bom quando
eu brinco, porque quase sempre eu tenho que lavar os
pratos, arrumar a casa,
sou eu que varro a casa,
sabe? Uma menina rou-
bou uma bolsinha que
eu tinha com todo o di-
nheiro, era dinheiro de
mentira, mas era meu,
né? A gente tinha televi-
são mas queimou, mi-
nha mãe tinha telefone
mas vendeu. Meu maior
sonho? É ter roupa.
Roupa e brinquedo”.
Enquanto as mulheres lavam roupa, no tanque impro-
visado, os homens jogam futebol num campo, ainda bem
conservado, do lado oposto. As roupas ficam estendidas
numa cerca, em volta da quadra de basquete. Cada espa-
ço, dos dois andares do clube, agora é um quarto. Cada pe-
daço de pano, uma parede. E cada presente, uma bênção.
A coordenadora Lúcia Gonçalves dos Santos, 40 anos,
acampada junto com outras 153 famílias numa antiga fá-
brica de tecidos, mostra-me uma carta, em forma de diá-
rio, de uma sem-teto de 17 anos. Está escrito: “Ganhei
um cochão no movimento dia 03-03-2004 adorei apesar
que é usado mais prá quem não tinha nenhum um usa-
do tá ótimo. Dá pra eu e o amor meu nos deitarmos. De-
pois nós compramos um melhor. Ganhei também da
coordenadora um pacote de fraldas e uma mamadeira.
Fiquei muito feliz, ganhei algo novo”.
Além de enfrentar todas essas ausências e carências,
os sem-teto têm de lidar, ainda, com suas próprias con-
tradições. No acampamento do aeroporto, por exemplo,
a comissão encarregada de fazer a segurança era ligada
ao tráfico de drogas. Eram comuns brigas, ameaças de
morte, chantagens. Um homem quase morreu espanca-
do depois de um desentendimento com os traficantes.
São pequenas leis que proíbem o uso de drogas, armas
e bebidas nos acampamentos. Além do contrato de con-
vivência, os sem-teto decidiram que todos os que estão e
quiserem ingressar no MSTS devem apresentar um docu-
mento com os antecedentes criminais, conhecido entre
eles como o “nada-consta”. Segundo os acampados, por
causa dessas ações, boa parte dos problemas se resolveu.
Outro exemplo, dos desafios cotidianos, foi o que
aconteceu no dia 28 de fevereiro, no acampamento do
Clube Português. Às 13 horas, Tânia Maria dos Santos
Silva, de 47 anos, começou a sentir fortes dores e falta de
ar. Ela tinha problemas no rim, fazia hemodiálise e toma-
va remédios todos os dias. Os acampados, inclusive a
única filha, grávida de sete meses, saíram com ela no
colo, pedindo ajuda às pessoas que passavam em frente
ao clube. Ninguém ajudou. Um grupo de sem-teto foi em
direção à Pizza Hut, a poucos metros do acampamento.
Foi uma correria geral. Os clientes, brancos e bem vesti-
dos, fugiram assustados, pensando que era assalto.
Ao contrário da marcha de Carnaval, em que as pes-
soas demonstravam simpatia e solidariedade, dessa vez
ninguém teve coragem de se aproximar. Depois de vários
minutos, sem saber o que fazer, os sem-teto bloquearam
com pneus, mesas velhas e todos os outros objetos que
encontraram pelo caminho a avenida em frente ao clube.
Foi só assim que uma senhora ofereceu apoio. Nesse mes-
mo instante, por causa da confusão, chegou uma viatura
da Polícia Militar. Depois de uma tensa explicação, os po-
liciais levaram Tânia para o hospital. Mas já era tarde. Ela
morreu poucos minutos depois.
Tânia Maria Santos Silva era mãe solteira. Perdeu os
pais com 13 anos. Aos 23, os únicos dois primos que ti-
nha morreram. Ela morava, até ingressar no Movimento,
numa zona miserável de Salvador. Recebia, como empre-
gada doméstica, 210 reais mensais. Destes, 100 reais
eram para pagar o aluguel do barraco. O resto, 110 reais,
era para sobreviver: pagar a luz e a água, comprar a comi-
da e os remédios. Naquela semana, os remédios de Tânia
tinham acabado.
No dia seguinte à morte de Tânia, outro problema.
Como pagar o caixão de 250 reais? E o dinheiro com car-
tório, remoção do corpo e coroa de flores? Eram mais 90
reais. Ninguém tinha aquele dinheiro. A coordenação do
MSTS, depois de muitas dúvidas e discussões, contatou
um vereador que negociou a dívida com a funerária. Por
decisão unânime, em assembléia, os sem-teto mudaram
o nome do Clube Português. Agora, aquele local se cha-
ma Tânia Maria Santos Silva.
As manchetes dos principais jornais do país, no dia em
que Tânia morreu, revelavam que o PIB brasileiro, em
2003, foi o pior dos últimos dez anos. A economia enco-
lheu, o desemprego, a miséria, a fome e a violência aumen-
taram. Com isso, aumentaram os contingentes dos sem-
teto, dos sem-terra, dos sem nada. A esses números, os ho-
mens do governo federal, eleitos com o compromisso his-
tórico de transformar a política econômica, responderam,
seguros e sorridentes: “Não vamos mudar os rumos. Esta-
mos no caminho certo”.
Fernando Evangelista é jornalista. Dirigiu o documen-
tário Reações em Marcha, sobre o Movimento Sem Terra.
José de Andrade
Didirlane Santos Cardoso
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