11A Música Popular Brasileira desde o AI-5 até o fim da Ditadura Militar - Período de 1968-1985
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Após a instituição do AI-5, a Canção de Protesto brasileirasofreu uma grande transformação com relação aos caminhos
estéticos que a caracterizam no período anterior – e quecontinuaram a caracterizá-la, posteriormente, em outros países,como o Chile de Victor Jarra e os Estados Unidos de Joan Baez
e Bob Dylan. A utilização da matriz folclórica, com a únicaexceção do samba, foi de maneira geral, abandonada.
(Ricardo Monteiro)
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A Canção de Protesto
Após a instituição do AI-5, a Canção de Protesto brasileirasofreu uma grande transformação com relação aoscaminhos estéticos que a caracterizam no período anterior– e que continuaram a caracterizá-la, posteriormente, emoutros países, como o Chile de Victor Jarra e os EstadosUnidos de Joan Baez e Bob Dylan. A utilização da matrizfolclórica, com a única exceção do samba, foi de maneirageral, abandonada. Entre as muitas explicações para talfenômeno, destacam-se a necessidade de se escapar àvigilância da censura, fugindo-se de uma forma que seriafacilmente reconhecível pela repressão, e o impactomodernizante decorrente da reforma estética proposta pelaTropicália.
Outro elemento de diferenciação da Canção de Protesto,nessa sua segunda fase, é o abandono da fórmula dasimplicidade, tanto no que concerne à estrutura poéticaquanto musical do gênero. O caso da letra tem explicaçãoóbvia. Para escapar da vigilância da censura, aengenhosidade e o talento de nossos compositores forampostos à prova, buscando-se uma maneira metafórica dese tratar das questões politicamente delicadas queescapassem à vigilância e, sobretudo, à sagacidade doscensores. No que tange à música, houve uma retomadada complexificação harmônica trazida pela Bossa-Nova,abandonada, grosso modo, na fase anterior da Canção deProtesto e deixada de lado pela Tropicália. Tal benfazejofenômeno pode ser pensado tanto como a assimilaçãoalgo tardia dos avanços de um movimento pelas correntesque o sucederam como pelo impulso intuitivo de se invocar novamente a memória da idadedo ouro de um Brasil democrático e progressista, na tentativa de se vislumbrar uma saídapara o opressivo caminho que o país lamentavelmente seguira.
Vale incluir, nessas correntes modernizadoras da canção socialmente engajada – por razõesestéticas, mais que ideológicas, – o chamado grupo “dos Mineiros”, ou “Clube da Esquina”,incluindo nomes como Márcio e Lô Borges, Wagner Tiso, Milton Nascimento, Beto Guedes,e mesmo Toninho Horta, que não compõe músicas de temática política. A justificativa paratal é a grande afinidade musical entre eles e o fato de terem em comum o procedimento demesclar elementos da riqueza harmônica da Bossa-Nova com elementos do popinternacional – e, eventualmente, até com alguns temas de caráter nativista. Uma diferençamusical importante de ser frisada com relação à Bossa é o predomínio, na música dosmineiros, de procedimentos harmônicos próprios a um pensamento modal, em contrastecom o relativo cromatismo da Bossa-Nova. Tal observação visa salientar que o períodoentre 1968 e 1985, ainda que carente daquela inventividade que gerou na fase anteriorquatro novos movimentos para a música popular brasileira, não representou, por outrolado, um retrocesso formal, dando-se plena continuidade e atingindo-se significativosavanços com relação às estruturas estéticas propostas na década de 1960.
mais repertório
O grande cantor ecompositor MiltonNascimento (1942-),uma das mais belasvozes da história damúsica brasileira, teveuma notável atuação nasdécadas de 1970 e 1980quer como cantor, quercomo compositor eletrista, constituindofigura-chave do Clube daEsquina, a chamadavertente mineira da MPB.
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É importante notar que nem sempre as Canções de Protesto foram concebidas – ouassumidas – como tal por seus compositores. Em alguns casos, canções despretensiosase de caráter subjetivo ressignificaram-se dentro do contexto da época, passando a adquiriruma conotação política. Em outros, a índole pessoal ou estética do artista levava-o aconsiderar como acidental, ou mesmo a desautorizar, a leitura política de uma dada cançãosua, ou para evitar indisposições com as autoridades, ou para refutar um rótulo consideradocomo reducionista, ou para não se criar uma expectativa de continuidade nessa linha,dentro de uma obra já consolidada dentro de outros gêneros.
Um marco inicial dessa nova Canção de Protesto pode ser tomado na canção Sinal Fechado(1969), do sambista Paulinho da Viola. Sem qualquer compromisso com o gênero, Paulinhocompôs uma canção que descrevia o clima angustiante de um breve encontro entre duaspessoas que, oprimidas pela falta de tempo – ou pela adversidade daqueles tempos – nãopodiam se dar à liberdade de trazer à tona, nem para si mesmos, o que realmente gostariamde dizer um para o outro:
- Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
- eu também tenho algo a dizer,
mas me foge à lembrança
- por favor, telefone, eu preciso beber
alguma coisa rapidamente
- Pra semana...
- O sinal...
- Eu espero você...
- Vai abrir...
- Por favor, não esqueça...
- Adeus...
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mais repertório
João Bosco (1946-) eChico Buarque (1944-),dois dos maisimportantescompositores queconseguiram produzir,nas décadas de 1970 e1980, uma músicaaltamente engajada e deinquestionável qualidadeestética.
Se a incursão de Paulinho da Viola no terreno da Cançãode Protesto pode parecer por demais casual, certamentenão o é no caso de Chico Buarque de Holanda, que, em1970, estabelece um marco, em sua fase pós-AI-5, dessegênero, com o clássico Apesar de Você:
Hoje, você é quem manda
Falou, ta falado,
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar da clareza da alusão à situação política do país eao evidente duplo-sentido da frase “você que inventou esseestado/Estado”, a música escapou inicialmente à censura,que só foi se dar conta de sua incompetência quando acanção já se tornara um grande sucesso. Recolhendo odisco, proibindo sua execução nas rádios e punindo o censor que aprovara a canção, acensura passou a adotar uma linha-dura para com Chico Buarque, que, em uma certaépoca, teve de adotar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, já que toda e qualquer cançãoque levasse seu nome naquela fase seria automaticamente proibida.
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mais repertório
Enquanto Chico mantinha um gosto particular pelo samba para suas críticas aoestablishment, alguns outros compositores, entre os quais se destaca o chamado Grupodos Mineiros ou Clube da Esquina, adotaram uma linguagem musical inovadora,incorporando algumas conquistas harmônicas da Bossa-Nova combinadas de maneirabastante instigante com um idioma mais próximo do pop. Tal é o caso de Nada Será comoAntes (1972), de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que, dentro desse estilo inovador,indaga metonimicamente sobre o destino dos exilados políticos, como o era o próprioirmão de Ronaldo:
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes amanhã
Que notícias me dão dos amigos,
Que notícias me dão de você?
Nessa mesma linha de sofisticação musical e poética, surge em 1976, na voz da cantoraSimone, a belíssima Jura Secreta, de Sueli Costa e Abel Silva, que por detrás de uma belabalada romântica esconde uma canção angustiada com a impotência do indivíduo diantede uma realidade opressiva cuja transformação está além de suas forças:
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
...
só uma palavra me devora
aquela que meu coração não diz
só o que me cega, o que me faz infeliz
é o brilho do olhar que não sofri
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A desilusão com o triste desfecho dos sonhos e do idealismo dos anos 1960 tem sua maisperfeita síntese não em um lamento, mas em uma severa crítica (e auto-crítica) com relaçãoao idealismo do passado, que surge na obra-prima Como Nossos Pais (1976), de Belchior:
Hoje eu sei que quem me deu a idéia
De uma nova consciência e juventude
Está em casa, guardado por Deus,
Contando vil metal
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Como nossos pais
Por fim, a aproximação da abertura política que se delineia a partir de 1979 com o governode João Baptista Figueiredo, último militar a ocupar a presidência da República no período,inspira uma última fase da Canção de Protesto marcada pela esperança – por vezes, aclara expectativa – da chegada de dias melhores e da entrada em uma nova fase.
Uma das primeiras canções que seguem essa linha é O Bêbado e a Equilibrista (1979), dadupla Aldir Blanc e João Bosco, que produziria diversos clássicos do gênero:
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil [alusão ao sociólogo Betinho, exilado político]
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias
e Clarices [alusão à esposa do jornalista Wladimir Herzog, morto pela ditadura]
No solo do Brasil
Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
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Quem também se destaca nesse gênero e nessa fase é a dupla formada pelo compositorIvan Lins e pelo letrista Vitor Martins, com a belíssima Começar de Novo (1989):
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido
Ter me rebelado
Ter me debatido
Ter me machucado
Ter sobrevivido
mais repertório
O compositor Ivan Lins(1945-) e a cantoraSimone (1949-), autor eintérprete de algumasdas mais belas cançõesdas décadas de 1970 e1980.
Enfim, com a aproximação mais nítida da via de redemocratização, surgem algumas dasmais belas canções dessa última fase. Entre elas, destacaremos duas.
Em 1983, Milton Nascimento e Wagner Tiso compõem para o filme Jango (sobre o últimopresidente antes do golpe de 1964), de Sílvio Tendler, a linda balada Coração de Estudante,in memoriam do estudante Edson Luís em 1968, morto por um policial quando participavade um grupo que planejava uma passeata de protesto. Tal canção viria a se tornar o hino dacampanha pelas Diretas Já, em 1984, e, no ano seguinte, seria a música executada nofuneral de Tancredo Neves, primeiro civil eleito para comandar o país após o fim do regimemilitar.
Por fim, há que se terminar essa seção com o triunfal samba-enredo Vai Passar (1984), deFrancis Hime e de um vitorioso Chico Buarque:
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em temerosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
...
meu Deus, vem olhar
vem ver de perto
uma cidade a cantar
a evolução da liberdade
até o dia clarear
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A Canção de Protesto desempenhou um importante papel durante a ditadura, dando voz aoclamor popular pela volta à normalidade democrática. Mas essa não é a única função daCanção de Protesto. A crítica às injustiças sociais, à hipocrisia, à sordidez do jogo do poderpolítico e/ou econômico, tudo isso faz parte do escopo da Canção de Protesto. No entanto,a partir de 1984, o exercício de um olhar crítico sobre a realidade brasileira rareariatremendamente na canção popular, deixando uma lacuna profunda na vida cultural do paíse um amplo espaço para a ampliação de uma postura alienada, comprometidaexclusivamente com o lucro comercial. Esse empobrecimento qualitativo desesperadorgerou, principalmente a partir da década de 1990, um certo ressentimento da elite intelectuale artística brasileira para com a música comercial, e a sensação de que estaria sufocandoas formas de expressão mais esteticamente elaboradas e socialmente engajadas damúsica nacional.
Da Jovem Guarda ao BRock
O rock nacional da Jovem Guarda iniciou sua caminhada nesse período sombrio da históriado país com a sintomaticamente melancólica Sentado à Beira do Caminho (1969), deRoberto e Erasmo Carlos. Com uma letra de inspiração existencialista, em que o cantorcobra inutilmente de si mesmo uma reação que o afaste da abissal sensação de vazio e detristeza que o assola:
Vem a chuva e molha o meu rosto,
Então eu choro tanto
Minhas lágrimas e os pingos dessa chuva
Se confundem com meu pranto
Olho pra mim mesmo e procuro
E não encontro nada
Só um pobre resto de esperança
À beira de uma estrada
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Essa canção marca uma série de composições da dupla Roberto e Erasmo que, por sob aaparência de baladas sentimentais, guardam a possibilidade de uma leitura política queaponta para seus autores como artistas com uma profunda sensibilidade para com omomento histórico em que estavam inseridos. Dentro desse repertório, vale destacar abela Debaixo dos Caracóis dos Teus Cabelos, que Roberto dedicou a Caetano, na épocaexilado em Londres.
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Além desses exemplos que apontam para umamadurecimento da consciência política dos mestres daJovem Guarda, cabe destacar o amadurecimento estéticoque a obra desses compositores também apresentou.Exemplo indispensável para ilustrar tal evolução é Detalhes(1971)
Detalhes tão pequenos de nós dois
São coisas muito grandes pra esquecer
E a toda hora vão estar presentes
Você vai ver
...
Eu sei que esses detalhes vão sumir
Na longa estrada
No tempo que transforma todo amor
Em quase nada
Mas “quase” também é mais um detalhe
Um grande amor não vai morrer assim
Por isso, de vez em quando, você vai
Lembrar de mim
No entanto, a estrada aberta pelos pioneiros da Jovem Guarda era larga demais para serocupada apenas por Roberto e Erasmo. Dela começava a surgir, cada vez mais plural emultifacetado, um autêntico rock nacional. Assim, muito distante do romantismo dos reis doiê-iê-iê, cedo emergiu um dos maiores expoentes do rock brasileiro de todos os tempos: ogenial Raul Seixas. Herdeiro discreto da veia histriônica que há séculos irriga a músicabrasileira com um olhar consciente, mas bem humorado, sobre as contradições de seutempo, Raul, além disso, soube em várias ocasiões temperar a linguagem musical doRock com ingredientes nordestinos, gerando, assim, um produto híbrido de grande riquezaestética e avassalador apelo comercial. É precisamente dessa combinação que nasceMosca na Sopa (1973), em que a mosca parece uma metáfora do conflito de consciência daburguesia brasileira que prosperava durante a ditadura, pagando, contudo, com sua liberdadepolítica e com uma incômoda conivência para com os desmandos do regime militar:
mais repertório
Raul Seixas (1945-1989)na capa de seu disco“Krig-ha, Bandolo”,considerado por muitoscríticos como o maisimportante de suacarreira.
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Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar
E não adianta vir me dedetizar
Pois nem o DDT pode assim me exterminar
Porque você mata uma e vem outra em meu lugar
Todavia, se o referido drama de consciência gerou uma obra-prima no repertório de Raul,trata-se da canção Ouro de Tolo. Se a introdução no rock do toque capoeirístico de SãoBento Pequeno de Angola já emprestava originalidade musical à Mosca, Raul se superouao utilizar recursos próximos ao sprechgesang (literalmente “canto falado”, utilizado pelavanguarda expressionista da música erudita) em uma virulenta crítica ao sonho do chamadoMilagre Brasileiro:
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73
...
eu devia estar sorrindo e orgulhoso
por ter finalmente vencido na vida
mas eu acho isso uma grande piada
e um tanto quanto perigosa
...
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mais repertório
O poeta Antônio Cícero(1945-) e sua irmã, acantora e compositoraMarina Lima (1955-),constituíram uma dasmais importantesparcerias do popnacional da década de1980.
e você ainda acredita que é um doutor
padre ou policial
que está contribuindo com sua parte
para o belo quadro social
eu que não me sento
no trono de um apartamento
com a boca escancarada cheia de dentes
esperando a morte chegar
porque longe das cercas embandeiradas que separamquintais
no cume calmo do meu olho que vê
assenta a sombra sonora de um disco voador
Raul ainda produziria muitos clássicos, entre os quais sedestacam Gita (1971), em parceria com Paulo Coelho, eMaluco Beleza (1977), em parceria com Cláudio Roberto.Vale observar que, por detrás da “maluquez” e doesoterismo estampado nas letras de Raul, esconde-seuma aguda consciência da realidade sócio-histórica, queparece recorrer àqueles disfarces para expor suas idéiascom maior liberdade e ao mesmo tempo se proteger dafrustração de se ver de mãos atadas para lutar contra umasituação adversa, cuja solução exigiria forças com que aclasse artística, na época, não poderia contar – forçassociais tão remotas e fugidias como um disco voador, e cuja mera tentativa de mobilização,tão clara em suas músicas, já era uma fenomenal “maluquez”.
Mas Raul não ficaria isolado em sua posição de novo grande artista do rock nacional. Alémdo cometa Secos e Molhados, irmão de Raul na irreverência que revelou o cantor NeyMatogrosso e uma série de lindas composições em uma estrondosa mas brevíssimacarreira, vale chamar a atenção para a expansão e consolidação do pop no Brasil. Após afértil aventura tropicalista, a música de Rita Lee, sobrevivendo ao fim dos Mutantes, voltariamultiplicada por sua produtiva parceria com Roberto de Carvalho. Com o sucesso Mania deVocê (1980), Rita cava o leito de um pop nacional de primeira qualidade em que ela contarácom a companhia de outros grandes artistas, como Lulu Santos - que alcançaria seuprimeiro grande sucesso em Como uma Onda (1983), em parceria com Nelson Mota -,Lobão – que atingiria a consagração com Me Chama (1984), mais tarde regravada por JoãoGilberto – e Marina Lima – excelente compositora e intérprete que se evidencia, inicialmente,em parceria com seu irmão, o filósofo e poeta Antônio Cícero, com quem compõe Fullgás,de 1984.
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mais repertório
O cantor e compositorRenato Russo (1960-1996), autor de uma obraque se distingue, porseu engajamento eespírito crítico, domainstream do rocknacional.
Por fim, o chamado Brock foi uma vertente da grande famíliado rock nacional que marcou os anos 1980 pela explosãode uma série de bandas que pipocaram nos maisdiferentes pontos do país. Era um movimento de jovens,como o fora a Jovem Guarda. Paula Toller (1962) tinhaapenas 21 anos quando Pintura Íntima (1983), parceriasua com Leoni, alçou o Kid Abelha e seus AbóborasSelvagens à vanguarda histórica do movimento. Cazuza(1958-1990) – um dos poucos de sua geração a, maistarde, apresentar em sua obra um olhar crítico sobre arealidade nacional - tinha 25 anos quando sua parceriacom Roberto Frejat em Pro Dia Nascer Feliz (1983) trarianotoriedade ao Barão Vermelho. Herbert Viana (1961-)tinha 23 anos quando a singela e bem-humorada Óculos(1984) – bem distante da sofisticação que o compositorapresentaria em fase mais madura – apresentou ao paíso rock de Brasília com os Paralamas do Sucesso. Estavamtambém na faixa dos vinte anos os paulistas da bandaTitãs do Iê-iê-iê – sabiamente rebatizada simplesmentede Titãs – quando emplacaram sua bizarra Sonífera Ilha(1984) em danceterias paulistanas da época, como oRádio-Táxi e o Radar-Tantan. Por fim, destoandocompletamente do deboche descompromissado damaioria de seus colegas, o saudoso Renato Russo (1960-1996) tinha 25 anos quando emplacou, ao lado da banda brasiliense Legião Urbana, asurpreendentemente crítica Geração Coca-Cola (1985):
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo
Em cima de vocês
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
...
vamos fazer nosso dever de casa
e aí então, vocês vão ver
suas crianças derrubando reis
fazer comédia no cinema
com as suas leis
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Tal postura crítica marcaria toda a existência do Legião Urbana, possivelmente a banda desua geração que conseguiu suscitar a veneração mais profunda de seu sempre crescentenúmero de admiradores. Aliás, casos como o do Legião tornam verdadeiramente espantosaa rejeição por parte das grandes gravadoras de trabalhos artísticos que assumam umponto de vista de maior reflexão com relação à realidade social e política do país, já que foitambém o “veneno de bilheteria” da música de protesto que elevou Vandré ao topo dasparadas de sucesso dos anos 1960 – e não suas relativamente bem-sucedidas tentativasde adesão à Bossa-Nova -, assim como o RAP e os MC`s dos anos 1990 atingiriam vendasespetaculares pautando-se por uma visão agressiva da vida nas periferias das grandescidades.
Cabe finalizar essa seção sobre o rock com uma breve reflexão.
O BRock foi, como movimento, a grande trilha sonora que, salvaguardadas algumas Cançõesde Protesto já citadas, embalou a vida musical de uma geração durante a transição doBrasil da ditadura militar para a tão esperada redemocratização. Marcou, ainda, a chegadade uma nova geração, a qual não parece trazer, em sua bagagem, nem a sofisticação ebom humor dos jovens da Bossa-Nova, nem o engajamento e espírito crítico de seuscoetâneos da Canção de Protesto, nem o experimentalismo e o espírito crítico da Tropicália.
Será mesmo?
A Vanguarda Paulista
Assim como a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, fundada por Koellreutter,em 1954 tornou-se um foco cultural importante tanto para a música erudita quanto para apopular ao transmitir a seus alunos os cânones das técnicas de composição desenvolvidasna música erudita a partir das propostas de Arnold Schoenberg (1874-1951), o Departamentode Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fundado em1970, pelo Maestro Olivier Toni, também deixou suas marcas em uma geração de músicos.A inquietude e ácida crítica social de Willy Correia de Oliveira (1938), a disciplina e rigor deMário Ficarelli (1937-), o olhar sagaz e provocador do Maestro Olivier Toni (1926-), aversatilidade estilística e engajamento cultural do mestre da “Música Nova” Gilberto Mendes(1922-), todos esses ingredientes estiveram presentes na formação de uma geração demúsicos que contava com nomes como Arrigo Barnabé (que freqüentou a ECA por poucomais de um ano), o trio Marcelo Gilberti, Mário Manga e Claus Petersen – núcleo do grupoPremeditando o Breque, mais tarde conhecido apenas como “Premê” -, e um outro trioformado por Luiz Tatit (que, assim como Arrigo, não concluiu o curso), Hélio Ziskind eCecília Tuccori, que fundaria o Grupo Rumo. Esses artistas, ao lado do genial ItamarAssumpção (1949-2003) e sua Banda Isca de Polícia, dos universitários da Casper Líbero,que fundariam o hilariante Língua de Trapo, do ex-aluno de Letras da USP Arnaldo Antunese do Professor de Literatura da FFLCH-USP José Miguel Wisnik são a linha de frente dachamada Vanguarda Paulista.
Vendo seu trabalho vir à tona a partir do início da década de 1980, a Vanguarda Paulistaantecedeu, em poucos anos, como movimento, o BRock. Assim como o rock dos anos1980, trata-se de um movimento de jovens, e que traz a marca de um sentido de organizaçãogregário, em que as bandas tendem a ter mais destaque que os trabalhos individuais. Noentanto, a partir daí, as diferenças serão bem mais significativas que as semelhanças.
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O Grupo Rumoconstruiu um dos maisrepresentativostrabalhos autorais einterpretativos daVanguarda Paulista,constituindo uma obramarcada pelapesquisa, tantoestética quantohistórica, e pelaconsistência.
A primeira e mais evidente discrepância diz respeito aosucesso comercial e a repercussão na mídia das duascorrentes. Ao passo que o BRock constituiu um projetototalmente encampado pelas grandes gravadoras e rádiosFM de todo país, a Vanguarda Paulista ficou, de certa forma,restrita ao chamado circuito independente. Gravando eproduzindo seus LPs com seus próprios – e limitados –recursos, ignorados pelas rádios comerciais, a VanguardaPaulista foi um movimento que se fez com apresentaçõesao vivo, divulgadas sobretudo pelo boca-a-boca, gravitandoem torno de algumas poucas casas de espetáculo, como aFUNARTE da Alameda Nothmann, o SESC Pompéia e,principalmente, o Teatro Lira Paulistana. Fundado em 1979,o Lira reuniu à sua volta as mais ricas e genuínas expressõesculturais advindas do meio universitário paulistano de suaépoca, em um pequeno porão adaptado como sala deespetáculo de cerca de 200 lugares, que denunciava, desdeaí, o caráter alternativo da produção por ele promovida.
A segunda grande diferença com relação ao BRock dá-se noquesito estético. Ao contrário do idioma do rock nacional,harmônica, rítmica e poeticamente conservador, a VanguardaPaulista apresentava uma língua multifacetada marcada, demaneira geral, por uma espantosa riqueza e inventividade.Às cadências previsíveis da maioria das bandas de rock,contrapunha-se a harmonia de inspiração dodecafônica daobra de Arrigo Barnabé. À freqüente banalidade das letras doBRock, opunha-se a inventividade e a maestria de Luiz Tatit, o hilariante escracho do Línguade Trapo ou o humor elegante e mais sutil do Premê, ou ainda a concisão e beleza poéticade Arnaldo Antunes. Quanto ao aspecto rítmico, é abissal a diferença entre a singelezarítmica do rock nacional e as vertiginosas alternâncias de fórmulas de compasso da músicade Arrigo, ou as fusões com o reggae e o funk que Itamar efetuava mais de dez anos antesde tal procedimento se tornar praxe no pop nacional, ou ainda a desnorteadora inventividadedo sprechgesang , que caracteriza a estética cancional do Rumo. Perturbador observar,aliás, que o canto falado, que é marca registrada do Rumo já desde antes de seu primeirodisco em 1981, iria ironicamente reaparecer justamente em um dos trabalhos que viriam aalavancar a história do rock nacional, o hit Você Não Soube me Amar (1982), da bandacarioca Blitz – montado por integrantes do também experimental grupo de teatro cariocaAsdrúbal trouxe o trombone, liderado por Hamilton Vaz Pereira.
Evidencia-se, pois, um interessante paralelo histórico e estético, em que se pode proporque o experimentalismo da Tropicália estava para o relativo conservadorismo da JovemGuarda assim como a Vanguarda Paulista estava para o BRock – apenas com uma inversãona cronologia, já que a Jovem Guarda antecedeu a Tropicália, mas o BRock foi posterior àVanguarda Paulista.
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No que tange à diferença de impacto comercial, uma análise a frio da questão mostra queseu desfecho era bastante previsível. Afinal, em se tratando de um grupo de universitáriosque tinha seu trabalho informado pelas referências do universo acadêmico, a VanguardaPaulista adotou uma linguagem e um universo simbólico pouco familiar ao público brasileiro.Em um país em que garantir a conclusão do ensino médio à totalidade da população éainda uma ambiciosa meta a ser cumprida, permear o discurso de referências própriasaos que tiveram acesso ao meio universitário implica apostar na produção para um públicoa princípio minoritário e elitizado – o que, comercialmente, não interessava à grande mídiada década de 1980.
Assim como o BRock, a Vanguarda Paulista foi também a expressão de uma geraçãojovem que estava chegando à vida adulta ao mesmo tempo em que a ditadura militar caíade podre para dar lugar a um processo de redemocratização. Em que se pesem os processosque particularizam o processo histórico brasileiro, há que se levar em conta a falênciaestrutural do modelo ditatorial ante a conjuntura macroeconômica após o choque do petróleo,com o conseqüente endividamento que levou ao colapso o modelo estatizante dedesenvolvimento econômico em que se insistia até então. Assim, entre 1979 e 1985, nãosó o Brasil retornou à democracia, mas também o Equador, o Peru, El Salvador, Honduras,Bolívia, Argentina, Guatemala e Uruguai – e, até 1990, juntar-se-iam à lista Paraguai, Chile,Panamá e Nicarágua.
A Vanguarda Paulista assistia a essa transição com um olhar pautado pela crítica social ecultural bem-humorada da tradição de um Braguinha, pelo experimentalismo ecosmopolitismo herdados da Tropicália e pela independência com relação às imposiçõesmercadológicas dignos de filhos da contracultura. Eram intelectual e artisticamente maispreparados que a média de seus colegas do BRock. Já esse último, em contrapartida,tendeu a uma temática mais individual e mesmo romântica, centrada nos problemas darelação amorosa – com as já mencionadas exceções das obras do Legião e de certascanções que mais tarde emprestariam uma visão mais amadurecida e engajada às obrasde Herbert Viana e Cazuza. A grande referência estilística foi não a Tropicália, mas a JovemGuarda, sendo mesmo comuns as regravações de antigos sucessos de Roberto e Erasmo.Com relação à postura ante as pressões das grandes gravadoras, apenas Lobão viria a sediferenciar do adesismo generalizado às diretrizes sugeridas – ou às vezes impostas –pela máquina da indústria cultural.
Sem ter conquistado, até os primeiros anos da década de 2000, a projeção nacional a quefaria jus – com a exceção de alguns trabalhos menos audaciosos de Arnaldo Antunes eArrigo Barnabé -, a Vanguarda Paulista segue, todavia, sua trajetória, conquistando cadavez mais em termos de prestígio o que não pôde aferir em termos de público.
Enquanto esse movimento se pautou pelo experimentalismo e pela informação a partir dealgumas referências da alta cultura, uma outra corrente da música popular brasileira cresciajustamente na contra-mão dessas tendências, vindo mais tarde a se tornar, em certosperíodos, francamente majoritária na produção da indústria cultural: o Brega.
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Odair José (1948-), ocantor da pílula, oterror dasempregadas, o BobDylan da Central doBrasil – muitos foramos slogans quetentaram definir esteque foi um dosmaiores mestres dahistória do gêneroBrega.
O Brega
“Brega” é um rótulo que se popularizou a partir de 1984,quando Eduardo Dusek lançou seu divertido Brega-Chique.No entanto, a percepção da presença de tal tipo de músicaantecede em muito à década de 1980, surgindo, sobretudo,a partir da década de 1950. Contudo, certas canções deCatulo da Paixão Cearense, como o clássico Talento eFormosura, de 1905, em parceria com Edmundo OtávioFerreira, podem, tranqüilamente, ser incluídas em talcategoria (ou ao menos como suas honrosas precursoras).A canção narra as furiosas imprecações de um artistarejeitado em seu amor por uma bela jovem. Inconformado,ele pragueja que, enquanto sua poesia viverá para sempre,a beleza da moça se perderá drasticamente com os anos:
Mas quando a pá já te cavar na sepultura
O teu orgulho em podridão reduzirá
Irão os vermes devorar-te a formosura
E aqui na terra mais ninguém te lembrará
Mas quando Deus fechar meus olhos sonhadores
Serei lembrado pelos bardos trovadores
Que os versos meus hão de na lira em magos tons gemer
E eu, morto embora, nas canções hei de viver
Em 1953, um irreconhecível Wilson Batista (grande sambista que se envolveu em umacélebre disputa com Noel Rosa), em parceria com Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr,produz a rumba-rock Sistema Nervoso:
Deu uma hora
Deu duas horas
O silencio em meu quarto
É pavoroso
Na escuridão
Eu escuto seus passos
No meu delírio
Ela volta a meus braços
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Ela abalou-ô-ô-ô
Meu sistema nervoso!
Ela, toda noite aparece
Me beija e foge
Através da vidraça
No meu delírio
Me levanto
E abro a janela
E só o vento
O vento frio
É quem me abraça!
Na década de 1960, várias composições da Jovem Guarda tendem a ser hoje classificáveiscomo Bregas. No entanto, seria, sobretudo, a partir da década de 1970 que o movimentoganharia força, ocupando a lacuna deixada pela elite amordaçada da música popularbrasileira.
Mas, afinal, o que definiria o Brega?
Um dos traços que definem o brega é o chamado kitsch. Kitsch, em filosofia e teoria da arte,designa um objeto que imita alguns parâmetros da obra de arte sem, no entanto, atingir aoriginalidade que a caracteriza. Para o filósofo Alemão Theodor Adorno, o kitsch é o opostoda vanguarda. Assim, de certa forma, o Brega, tão parodiado pela Tropicália e pela VanguardaPaulista, de fato seria a antítese desses dois movimentos. Para poder ser confundido coma “verdadeira arte” , o kitsch apela para estereótipos do que é considerado belo e estético.Assim, o kitsch - e também o Brega – tem como traço distintivo importante o conservadorismoformal.
Historicamente, o kitsch é um conceito que se desenvolve junto com uma crítica aos excessosromânticos e melodramáticos de um certo tipo de produção cultural comum no final doséculo XIX. Esse traço excessivo na exposição dos sentimentos se combina no Brega, comfreqüência, a uma superexposição da intimidade, como deixa bastante claro o clássico deOdair José Uma Vida Só (1973), mais conhecido como Pare de Tomar a Pílula:
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Todo dia a gente ama
Mas você não quer deixar nascer
O fruto desse amor
...
você diz que me adora
que tudo nessa vida sou eu
então eu quero ver você
esperando um filho meu
pare de tomar a pílula
porque ela não deixa
nosso filho nascer
Outro exemplo dessa superexposição da intimidade é otambém clássico Moça (1975), de Wando:
Moça, sei que já não és pura
Teu passado é tão forte,
Pode até machucar
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O cantor Wando, outrogrande expoente damúsica Brega,construiu, desde adécada de 1970, umasólida carreira dentrodesse gênero. Na fotoacima, ele apresenta ohit “Nossa Senhora dasFêmeas” (2001), emque o cantor éacompanhado por duasbailarinas que iniciam acanção vestidas comofreiras, e vão-sedespindo até ficaremapenas de sutiã ecalcinha.
1919A Música Popular Brasileira desde o AI-5 até o fim da Ditadura Militar - Período de 1968-1985
Outro traço importante do kitsch que está presente no Brega é uma certa inadequação entreforma e conteúdo, gerando-se certas inconsistências estéticas decorrentes da sobreposiçãode estereótipos pouco compatíveis entre si. Esse efeito de inadequação tão caro à estéticado kitsch, combinando-se anarquicamente o moderno e o arcaico sem qualquer preocupaçãomaior em compatibiliza-los, gera um certo efeito de “desvio de função”, de outplacementdos elementos empregados. Obra exemplar nesse sentido é Fuscão Preto (1982), de AlmirRogério:
Daí a pouco eu mesmo vi o fuscão
E os dois juntos se desmanchando em amor
Fuscão preto, você é feito de aço
Fez o meu peito em pedaços
Também aprender a matar
Fuscão preto, com o seu ronco maldito
Meu castelo tão bonito
Você fez desmoronar
Tomemos a última estrofe. Nela, encontram-se construções arcaizantes, como a inversãoda ordem sujeito-verbo-objeto para objeto-verbo-sujeito, ou seja: ao invés de você fezdesmoronar meu castelo tão bonito; temos meu castelo tão bonito você fez desmoronar. Aomesmo tempo, o efeito arcaizante da imagem do “castelo”, acentuado pela construçãogramatical própria de uma norma culta desatualizada, entra em choque com a modernidadedo “fuscão” “feito de aço”, em uma clara adequação entre duas estratégias estereotipadasde construção do discurso poético. Além do mais, o termo “ronco” remete a uma corporalidadecom um certo pendor para o grotesco, e sua aplicação “poética” para aludir ao ruído de umamáquina de metal trai uma outra inadequação, gerando-se um efeito genérico que o sensocomum costuma qualificar simplesmente como “mau gosto”.
Para Adorno, o kitsch é uma qualidade essencial aos produtos da indústria cultural, porquesua estereotipagem permitiria uma identificação e comunicação imediata com o público,sua superficialidade garantiria sua rápida assimilação e também a sua incapacidade depreencher o vazio existencial que motivou sua compra. Tais elementos o caracterizariamcomo essencialmente descartável, e suas insuficiências induziriam o consumidor a comprarnovamente, realimentando o ciclo industrial. A inconsistência da obra e sua superficialidadetambém promoveriam um estado de alienação propício e conveniente tanto ao florescimentoda indústria de massa quanto à manutenção da ordem social e econômica vigente,incentivando a passividade das massas e as tornando mais manipuláveis. Note-se que oculto às personalidades, com a superexposição da intimidade e ausência de qualquerreflexão crítica, é uma manifestação cultural do kitsch, o que está em plena concordânciacom a percepção dos setores intelectualizados da sociedade com relação às revistas eprogramas dedicados à exposição da vida íntima das celebridades.
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Com a gradual fragmentação dos vínculos sociais tradicionais – família e emprego –apartir da década de 1970, é natural que se gere uma demanda pelo sentido de intimidadeque visa suprir o sentimento de solidão daí decorrente – solidão essa alimentada não sópelas vicissitudes sócio-econômicas, mas também pela desmobilização política dosgrupos sociais, desmantelados de forma a reduzir à esfera do indivíduo a possibilidadede reação às adversidades do sistema.
Assim, uma síntese das características acima assinaladas pode ser encontrada em umaobra representativa do Brega que, ao mesmo tempo que aflora já próxima ao final da fasehistórica ora em estudo, aponta para a vertiginosa ascensão desse gênero no períodoseguinte da história da música popular brasileira: a composição Fio de Cabelo (1983), deDarci Rossi e Marciano, interpretada pela então ascendente dupla sertaneja Chitãozinhoe Xororó:
E hoje o que encontrei
Me deixou mais triste
Um pedacinho dela
Que existe
Um fio de cabelo
No meu paletó
Lembrei de tudo
Entre nosso amor vivido
Aquele fio
de cabelo comprido
já esteve grudado
em nosso suor
...
apagam-se as luzes
ao chegar a hora
de ir para cama
a gente começa
a esperar por quem ama
na impressão de que ela
venha se deitar
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A dupla Chitãozinho(1954-) e Xororó(1957-), intérpretes dosucesso “Fio deCabelo”, de 1983, foiuma das principaispromotoras docasamento entre oBrega e a músicacaipira que resultariano nascimento dogênero Sertanejo - oqual, a partir dogoverno Collor,dominaria uma boaparte da produção daindústria de discos noBrasil.
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A corporalidade nas imagens poéticas é novamente recorrente: o “fio de cabelo” que “jáesteve grudado em nosso suor” compõe uma imagem levemente grotesca, à medida quenossa cultura condena, de maneira genérica, a exposição de quaisquer fluidos corporais,com uma maior tolerância apenas para o caso das lágrimas. O uso do termo “existe” paraassinalar a presença do fio de cabelo, construções como “entre nosso amor vivido” einversões como “apagam-se as luzes” (verbo-sujeito, ao invés de sujeito-verbo) apontampara arcaísmos que remetem a um universo em que a exposição da intimidade presentenessa canção seria impensável, gerando, assim, o efeito de inadequação que está naessência do kitsch e do Brega.
Nas décadas seguintes, a ascensão da estética do Brega acompanharia, assim, adescaracterização do samba pelo Pagode, da música caipira pelo Sertanejo e de algunssegmentos da música afro-brasileira pelo Axé. No entanto, ver esses três estilos apenascomo uma corruptela de seus antecessores é uma postura por demais reducionista, queabre mão de uma reflexão mais aprofundada a respeito do complexo processo dediversificação e transformação da música brasileira que se acelera a partir do início dadécada de 1990. A incorporação do reggae à música baiana e a complexificação dapercussão no Axé a partir do advento do Olodum, por exemplo, representam uma evoluçãosignificativa da linguagem da música popular brasileira que não pode nem deve serdesprezada.
Apêndice – o Mainstream, ou a chamada MPB
Foi sobretudo, no período entre 1968 e 1985 que se desenvolveu um grande mainstreamda música popular brasileira, ao qual o senso comum convencionou chamar de MPB. Orepertório que compõe um tal mainstream, extremamente diversificado, carrega, porém, otraço comum da alta qualidade poética e musical que caracterizou o período. Vale destacar,no período, a atuação de uma corrente regionalista nordestina, em que atuaram AlceuValença, Belchior, Fagner, Ednardo, Moraes Moreira, Elba Ramalho e os tropicalistas, entretantos outros. Além da já citada corrente mineira, vale assinalar a atuação de letristasprimorosos como Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc e o surgimento de alguns compositorese intérpretes que, apesar de sua obra, esteticamente, merecer figurar no panteon da músicabrasileira, inexplicavelmente não tiveram sua genialidade e originalidade devidamenteressaltadas pela mídia e pela crítica. Tal é o caso do compositor e intérprete João Bosco, docompositor Djavan e da cantora Alcione, apenas para ficar em três exemplos. Merecem, naépoca, destaque, também, as obras de grande originalidade de Gonzaguinha, Sá eGuarabira, o soul de Tim Maia – gênero que ressurgiria renovado no final da década de1990 - e o relevante papel de Moraes Moreira no movimento de ressurgimento da músicacarnavalesca baiana, o qual foi fundamental para a posterior ascensão do Axé Music.
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O período de 1968 a 1985 assistiu, também, a uma importante retomada do samba, querna obra da nova geração, tão bem representada por Paulinho da Viola em Foi um rio quepassou em minha vida (1970), quanto no desabrochar de velhos mestres que estavamimperdoavelmente esquecidos na década anterior, tais como o Nelson Cavaquinho deFolhas Secas (1973), o Candeia de O Mar Serenou (1975), interpretado pela insuperávelClara Nunes, e o Cartola da obra-prima As Rosas não Falam (1976), seguramente uma dasmais belas canções da história da música brasileira. Ao mesmo tempo, uma vertente maisromântica do samba, como aquela em que se insere Retalhos de Cetim (1973), de Benitode Paula, abriria, pouco a pouco, espaço para a ascensão do Pagode na década de 1990.Nesse período, merecem destaque as atuações da cantora Beth Carvalho, que migrara debaladas como Andança para o universo do samba, da já mencionada Clara Nunes, docompositor e crítico Sérgio Cabral, da intérprete e compositora Dona Ivone Lara – autora deobras-primas como o partido-alto Sonho Meu (1979), dela e de Délcio Carvalho, gravadolindamente por Betânia - e do compositor Jorge Aragão, que depois de belos sambas comoVou Festejar (1979), imortalizado na interpretação de Beth Carvalho, iria também incursionarna linha de frente dos compositores de Pagode nas décadas seguintes.
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Anotações:
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