A inclusão que ensinaMatheus Santana da Silva, 14 anos, autista, estuda numa turma
regular de escola pública em São Paulo desde a 1ª série. A história
dele é a prova de que, apesar das dificuldades, incluir crianças com
necessidades especiais beneficia a todos
Daniela Talamoni Verotti e Jeanne Callegari ([email protected])
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"Matheus chegou para mim na 1ª série. Eu tinha 42 alunos, e ele já estava com 7 anos
completos e só falava o próprio nome. Era agressivo, agitado e não queria ficar na sala. Eu
não fazia ideia do que era autismo. Então, no primeiro dia de aula, foi uma surpresa."
O relato é da professora Hellen Beatriz Figueiredo, da rede pública municipal de São
Paulo, mas poderia ser de um educador de qualquer sala de aula do Brasil. Desde 2008, a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva determina
que todos os alunos com necessidades educacionais especiais sejam matriculados em
turmas regulares. A Educação Especial passou a ser oferecida apenas como um
complemento no contraturno. Na prática, isso significou a matrícula só no ano passado de
375.775 alunos com deficiência em salas regulares, regidas por educadores que, muitas
vezes, não se sentem preparados para lidar com a situação. Exatamente como aconteceu
com Hellen em 2003, quando acolheu Matheus Santana da Silva.
Naquele tempo, apesar de a lei determinar a inclusão, imperava uma visão integracionista.
Uma criança com deficiência só permanecia numa sala regular se acompanhasse o ritmo
da turma. Hellen poderia ter alegado que Matheus não aprendia como os demais. Seria
mais fácil desistir do aluno autista que fugia da sala a toda hora, mas ela escolheu o
caminho mais difícil, o de incluí-lo. Ambos saíram ganhando.
Hoje, aos 14 anos, Matheus cursa a 7ª série na EMEF Coronel Hélio Franco Chaves, na
capital paulista. Adora ler, resolve expressões matemáticas com letras e números e
navega na internet. Tem muitos amigos e aprendeu o significado de emoções como
orgulho e felicidade - uma vitória para um autista. Hellen, por seu lado, fez vários cursos
sobre autismo, escreveu sua monografia da graduação em Pedagogia sobre inclusão e
hoje integra a Diretoria de Educação de um dos Centros de Formação e Acompanhamento
à Inclusão (Cefai) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. A história dos dois
simboliza a mudança de mentalidade já em curso em muitas escolas públicas e
particulares espalhadas pelo país.
Romper com as velhas ideias
SETE ANOS DE AVANÇOS No início, Matheus só sabia dizer o próprio nome e hoje participa de
diversas atividades da 7ª série. Foto Marcelo Min
Durante séculos, o mundo tratou as crianças com deficiência como doentes que
precisavam de atendimento médico, não de Educação. Essa perspectiva começou a
mudar na década de 1950 (veja a linha do tempo nas próximas páginas). Mas foi só nos
anos 1990 que as velhas ideias assistenciais foram suplantadas pela tese da inclusão.
Procurava-se garantir o acesso de todos à Educação. Documentos como a Declaração
Mundial de Educação para Todos, de 1990, e a Declaração de Salamanca, de 1994, são
marcos desse movimento.
O rompimento com práticas e conceitos antigos marcou também o início do trabalho de
Hellen. Ela sabia que precisaria inovar se quisesse que Matheus aprendesse. E o primeiro
desafio era mantê-lo em sala. "Passei a iniciar as aulas do lado de fora. Todos os dias eu
cantava, lia histórias ou sugeria alguma atividade que estimulasse a alfabetização ou outro
aprendizado", lembra. "Era uma forma de ensinar o conteúdo, promover a integração entre
as crianças e atrair o Matheus para a classe."
Para lidar com as fugas repentinas para o bebedouro - onde Matheus se acalmava
mexendo na água -, a professora ensinou-o a pedir para sair. Mostrava, a cada fuga, que
ele podia bater com a caneca na carteira quando quisesse beber água. "Um dia, ele bateu
a caneca e permaneceu sentado, esperando a minha reação," conta a professora Hellen.
"Percebi que ele tinha aprendido." Para a psicopedagoga Daniela Alonso, consultora na
área de inclusão e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10, Hellen
acertou em cheio: "Pensar nas diferenças implica oferecer variadas intervenções. Os
caminhos da inclusão para atender à diversidade costumam sempre beneficiar todos e
melhorar a qualidade do ensino."
Antes de entrar na escola em que está até hoje, Matheus rodou por três outras sem se
encontrar. Na primeira, particular, a direção não soube lidar com ele. A mãe, Lindinalva
Santana, tentou uma escola especial, mas em pouco tempo concluiu que o filho não
estava aprendendo. Partiu para a matrícula numa EMEI indicada pela fonoaudióloga que
atende Matheus desde pequeno. Diante do histórico apresentado quando Matheus chegou
à escola de Ensino Fundamental, Hellen imaginou que ele poderia ter aprendido alguma
coisa. "Eu o observava durante as aulas de leitura e o jeito como ele manuseava o livro,
mexia a boca e colocava os dedos sobre as palavras e frases me fez perceber que ele
sabia ler."
Como o garoto não falava, Hellen encontrou um meio de testá-lo. "Escrevi com letra
bastão em tiras de papel o nome de dez objetos. Misturei todas e pedi que ele pegasse só
a que correspondia ao objeto que eu citava." Na primeira tentativa, Matheus não prestou
atenção e pegou qualquer palavra. Hellen insistiu e ele acertou. "Achei que pudesse ser
coincidência e continuei, inclusive com frases inteiras, e ele acertou tudo. Depois disso,
não dei mais sossego para o Matheus", lembra a professora. Daniela Alonso diz que
descobrir as competências dos estudantes é o caminho. "Antes, focávamos as
dificuldades. O professor queria checar o que eles não sabiam, valorizando as diferenças
pelas 'falhas'. Hoje, devemos sondar o que cada um conhece para determinar como pode
contribuir com o coletivo", explica.
Matheus deixou para trás a trajetória errante na Educação Especial, seguindo o mesmo
caminho das políticas públicas brasileiras. O país apostou, em 2001, na inclusão. Nesse
ano, começou a ser divulgada a lei aprovada em 1989 e regulamentada em 1999 que
obrigava as escolas a aceitar as matrículas de crianças com necessidades especiais e
transformava em crime a recusa a esse direito. Desde então, começou a aumentar o
número de estudantes com deficiência nas salas regulares. De 81.344 naquele ano, ele
saltou para 110.704 em 2002 e nunca mais parou de crescer. O Brasil, porém, estava
ainda longe de assumir a inclusão como um fato consumado. As salas especiais eram
muito mais numerosas, com 323.399 matrículas em 2001 e 337.897 em 2002.
O novo papel da Educação Especial
A nova política nacional para a Educação Especial é taxativa: todas as crianças e jovens
com necessidades especiais devem estudar na escola regular. Desaparecem, portanto, as
escolas e classes segregadas. O atendimento especializado continua existindo apenas no
turno oposto. É o que define o Decreto 6.571, de setembro de 2008. O prazo para que
todos os municípios se ajustem às novas regras vai até o fim de 2010.
O texto não acaba com as instituições especializadas no ensino dos que têm deficiência.
Em lugar de substituir, elas passam a auxiliar a escola regular, firmando parcerias para
oferecer atendimento especializado no contraturno.
Na prática, muda radicalmente a função do docente dessa área. Antes especialista em
uma deficiência, ele agora precisa ter uma formação mais ampla. "Ele deve elaborar um
plano educacional especializado para cada estudante, com o objetivo de diminuir as
barreiras específicas de todos eles", diz Maria Teresa Eglér Mantoan, professora da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das
pioneiras nos estudos sobre inclusão no Brasil.
Ensinar os conteúdos das disciplinas passa a ser tarefa do ensino regular, e o profissional
da Educação Especial fica na sala de recursos para dar apoio com estratégias e recursos
que facilitem a aprendizagem. É ele quem se certifica, ainda, de que os recursos que
preparou estão sendo usados corretamente. "Ele informa a escola sobre os materiais a
serem adquiridos e busca parcerias externas para concretizar seu trabalho", afirma Maria
Teresa.
A princípio, esse educador não precisa saber tudo sobre todas as deficiências. Vai se
atualizar e aprender conforme o caso. Ele pode atuar na sala comum de longe,
observando se o material está sendo corretamente usado, ou estender os recursos para
toda a turma, ensinando a língua brasileira de sinais (Libras), por exemplo. Quem souber
se adaptar não correrá o risco de perder espaço. "O profissional maleável é bem-vindo",
garante Maria Teresa.
O momento atual é de construção. De fato, a inclusão na sala de aula está sendo
aprendida no dia a dia, com a experiência de cada professor. "Mas não existe formação
dissociada da prática. Estamos aprendendo ao fazer", avalia Cláudia Pereira Dutra,
secretária de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC).
As salas especiais se mantiveram porque os professores não se achavam preparados, as
escolas não tinham a estrutura necessária e os grupos de defesa dos direitos das pessoas
com deficiência duvidavam da inclusão. Até que, em 2008, após anos de debates, a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva acabou
com a escolha entre ensino regular e especial (leia o quadro acima).
A nova política começou a mudar os padrões ao definir com clareza como deve ser
oferecida a Educação para todos os que têm deficiência. Não por acaso, nesse mesmo
ano, pela primeira vez, o número de alunos com necessidades especiais no ensino regular
superou o de matriculados em salas especiais (veja o gráfico).
Na sala da professora Hellen, o desafio no primeiro ano de Matheus era outro: mudar o
padrão de comportamento do aluno autista que insistia em não se comunicar com
ninguém. Ele sabia ler e precisava falar, se expressar. Assim como fazia com toda a
turma, Hellen o incentivava a ler as histórias e conversar sobre elas. No início, o garoto
apenas repetia respostas e isso já era uma vitória. Mas ela queria que Matheus se
comunicasse espontaneamente. Durante a chamada, a professora Hellen sempre fazia
uma pausa após o nome dele, na esperança de ouvir a resposta. Nada acontecia. Até que
um dia, para a surpresa de todos, ele disse "presente". "A turma inteira bateu palmas. A
partir desse momento, ele começou a se comunicar, a dizer o que queria."
Graças à conquista da comunicação, Hellen passou a contar cada vez mais com a
participação de Matheus. Assim, descobriu outras possibilidades, estudou, trocou
experiências com colegas, observou e avaliou a interação do menino com as propostas
que fazia e, assim, organizou diferentes atividades para que ele pudesse aprender ainda
mais. No fim da 1ª série, Matheus já escrevia, ainda que tivesse dificuldade para controlar
o tamanho da letra.
No ano seguinte, porém, vários colegas com quem Matheus estudava saíram da sala. A
nova professora também não se sentia segura para incluir o aluno. Matheus se sentiu
perdido e regrediu. Parou de ler e de escrever, voltou a ser agressivo e a abandonar a sala
de aula. Em lugar de ir para o bebedouro, porém, ele se refugiava na turma de Hellen.
Aquela professora da 2ª série sofria com as mesmas dúvidas que até hoje desanimam
muitos colegas (conheça, no quadro abaixo, programas de formação na área).
Por que incluir? Será que as crianças com deficiência não aprendem mais em classes
separadas, com professores especializados e dedicados apenas às necessidades delas?
Quem responde é Maria Teresa Eglér Mantoan, docente da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das pioneiras no estudo da inclusão
no Brasil: "A escola regular é mais desafiadora e um ambiente desafiador é mais propício
ao aprendizado".
Não apenas as crianças com deficiência são mais desafiadas. Os outros alunos também
ganham muito com a inclusão. A flexibilização de recursos pode ajudar todos a aprender
mais. Se o educador utiliza um modelo em 3D para ensinar o Sistema Solar, por exemplo,
não só os que têm deficiência auditiva avançam mais mas também toda a classe tem
acesso a um recurso que facilita a compreensão do conteúdo. "O professor que está
preparado para a inclusão está preparado para atender todas as crianças", diz Cláudia
Pereira Dutra, secretária de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC). "A
inclusão obriga o sistema educacional a se repensar, a descobrir novas formas de
ensinar", completa Maria Teresa. "Muda o entendimento do que é aprendizagem."
Para aprender a incluir
Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade
O que é Formação de professores para disseminar a Educação Inclusiva. Profissionais
dos chamados municípios-polo são treinados e atuam como multiplicadores em sua
cidade.
O que já fez Cursos em 162 municípios-polo, com a formação, em 2008, de 12.708
professores.
Programa de Formação Continuada de Professores na Educação Especial O que é Especialização, extensão ou aperfeiçoamento para educadores da rede pública.
O que já fez Cursos para 8,5 mil professores, em 2008, ministrados em 18 instituições
públicas de ensino superior.
Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais
O que é Distribuição de materiais pedagógicos e equipamentos para atendimento
especializado.
O que já fez Criou, entre 2005 e 2008, 5.551 salas de recursos.
Programa Escola Acessível O que é Distribuição de recursos para a adequação de escolas.
O que já fez Investiu 30,8 milhões de reais em 2007 e 2008 para a adaptação de
edifícios.
Continue lendo a reportagem
O histórico da inclusão de Matheus obrigou a EMEF Coronel Hélio Franco Chaves a se repensar. Depois dos avanços na 1ª série e dos retrocessos na 2ª, a direção da escola tomou uma decisão: a partir daquele ano, a turma de Matheus o acompanharia até o fim do Ensino Fundamental. A então professora da 3ª série, Márcia Maria Batista Martinelli, por sua vez, assumiu a responsabilidade por recuperar os avanços que Matheus já havia conquistado.
Ela e Hellen conversavam diariamente sobre possíveis flexibilizações. Como Hellen ocupava a mesma sala em período diferente, Márcia às vezes deixava recados no quadro para a colega. Certo dia, ela flagrou Matheus lendo um desses bilhetes e descobriu como incentivá-lo a escrever novamente: mandar cartas para a antiga professora. Na primeira, Matheus escreveu: "Oi, estou na 3ª série com a professora Márcia". No dia seguinte, ele encontrou a resposta de Hellen, que estrategicamente questionava o que ele estava aprendendo. A troca de mensagens se intensificou e Matheus nunca mais deixou de escrever.
Márcia também aproveitou a grande capacidade de memorização - ele sabe as letras e os números da placa do carro de todos os professores - para ensinar operações matemáticas. Na aula de Geografia, certa vez, usou uma viagem que o garoto faria com os pais para Pernambuco para ensiná-lo a utilizar o mapa. Assim, aproveitando o potencial dele a cada descoberta, Márcia foi a segunda professora a fazer diferença na vida do jovem. Hoje na 7ª série, o menino autista não se incomoda com o vaivém de professores.
Dentro de suas capacidades, participa de tudo, mesmo que o conteúdo nem sempre seja o mesmo abordado com o restante da turma. "Para o aluno com necessidades educacionais especiais, não há necessariamente aprendizagem em série. Ele pode estar integrado com o grupo em alguns aspectos do desenvolvimento e necessitar de outras estratégias", explica Daniela Alonso.
A mãe de Matheus, que todos os professores não se cansam de elogiar pela sólida aliança com a escola, sempre soube que o filho se sairia bem. Uma das maiores emoções da vida dela foi sentida durante uma festa de Dia das Mães, quando ele recitou uma poesia na frente de todos os convidados na escola. "Por causa das dificuldades que tem na fala, eu não consegui entender muita coisa, mas ver meu filho ali, lendo aquele texto em voz alta ao microfone, foi meu melhor presente", afirma Lindinalva.
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