TATIANA TAKATUZI
A IGREJA E OS KAINGANGS: EUROPEIZAÇÃO OU
PERMANÊNCIA?
CURITIBA
2000
ÍNDICE
1 Introdução................................................................................................................. 1
2 Definição dos objetivos............................................................................................. 5
2.1 Os livros de batismo.................................................................................... 6
2.2 As listas nominativas................................................................................... 8
3 A Igreja e o sistema de inclusão subordinada....................................................... 10
4 Relações entre índios e brancos: o pós-contato..................................................... 21
4.1 Fronteira entre sertão e aldeamento........................................................ 21
4.2 Fronteira entre aldeamento e povoado.................................................... 32
5 Conclusão................................................................................................................. 45
6 Referências Bibliográficas...................................................................................... 50
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1: Número de índios adultos mencionados em listas da população de Guarapuava (1821-1840)............................................................................................31 Tabela 2: Número de uniões entre "portugueses" e índias mencionadas em listas da população de Guarapuava (1821-1840)...............................................................34 Tabela 3: Média anual de batismos indígenas entre 1824 a 1841...........................39 Tabela 4: Número de índios adultos mencionados na Lista Nominativa de 1840...............................................................................................................................41
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1 INTRODUÇÃO
O século XIX foi marcado principalmente pela heterogeneidade de um período
iniciado na colônia e finalizado na República Velha; assinalado pelo tráfico negreiro e
pelas imigrações livre. Um período cheio de tensões entre oligarquias locais e surtos
de centralização de poder. Manuela CARNEIRO DA CUNHA demonstra que também
era estreito o local em que se discutia e decidia a política indigenista. Nos três séculos
esta oscilou em função de 3 interesses básicos: o dos moradores, o da Coroa e o dos
jesuítas. “Com a vinda da corte, a distância ideológica entre o poder central e o local
encurta-se na proporção da distância física.”1 Durante três séculos de colônia, a guerra
aos índios fora sempre oficialmente dada como defensiva, onde sua sujeição tinha um
significado benéfico e as leis se configuravam no seu bem-estar. Com a vinda de d.
João VI, ocorreu uma exceção passageira. Para fins práticos e administrativos, os
índios foram classificados em categorias no séc. XIX, de bravos, domésticos ou
mansos (estes últimos sedentários em aldeamentos). Os bravos por sua vez, se
classificavam nos grupos encontrados e guerreados nas fronteiras do Império. Outra
classificação dada foram os tupi ou guarani (dóceis), e os botocudos (selvagens). D.
João VI, recém chegado ao Brasil desencadeou guerra contra os botocudos “para
liberar para a colonização o vale do Rio Doce (ES) e os Campos de Guarapuava (PR).
Em carta régia de 2/12/1808, declarou que as terras conquistadas em “guerra justa”
(abolida pelo diretório Pombalino meio século antes) pela coroa eram consideradas
como devolutas. A novidade é que introduzia o título sobre as terras, ou seja, buscava
tomar posse dos aldeamentos.
Em meio a essas disparidades a questão indígena deixou de ser uma questão de
mão-de-obra para tornar-se uma questão de terras. Deste modo, no século XIX a
questão indígena vai ser pensada sobretudo em favor do aldeamento, da civilização do
índios e na sujeição ao jugo da lei e do trabalho. Esta política de concentração segundo
1 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Política Indigenista no século XIX” IN: História dos Índios no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 133.
5
Carneiro da Cunha, visava a catequização, o abastecimento de mão-de-obra (em locais
de regiões de frente pastoris ou agrícolas, rotas fluviais, rotas de tropeiros, instalações
militares) onde serviam de infra-estrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão-
de-obra. O aldeamento proporcionaria ainda a sujeição dos índios ao trabalho, a
diminuição de seus territórios, e o confinamento para que não fizessem mais suas
atividades tradicionais.
A montagem dos aldeamentos por sua vez, apoiou-se nas instituições militares,
a fim de facilitar a comunicação do Império com o interior das províncias. A
exploração dos Campos de Guarapuava se caracterizou sobretudo pela preocupação
em constituir esse espaço em um território economicamente explorado, ligando São
Paulo à região do Prata, garantindo principalmente as regiões de fronteira agrária.
O marco sobre as primeiras explorações dos sertões do Tibagi e dos Campos de
Guarapuava, datam do início do século XVIII, feita por expedições de cunho militar.
Em relato sobre Memória sobre o descobrimento e Colonia de Guarapuava, o padre
Francisco das Chagas Lima coloca a ocupação dos Campos de Guarapuava, de acordo
com o interesse e instruções do Marquez de Pombal a fim de ocupar as regiões ainda
inexploradas e facilitar a comunicação com o Paraguai para assim vigiar suas
fronteiras contra os espanhóis. Segundo ainda Zeloí Martins dos SANTOS, estas
expedições militares tinham o objetivo de defender as fronteiras do sul, ou seja,
defender o território destinado a Portugal e “aumentar a expansão econômica da
colônia para promover o fortalecimento do poder real”.2
Ao todo foram enviadas onze expedições do governo provincial, em prol da
conquista dos campos de Guarapuava, mais especificamente os sertões do Tibagi
(entre os rios Tibagi e Ivaí). Todas, no entanto, foram marcadas por forte resistência
indígena na forma de constantes batalhas e emboscadas provocadas pelos índios da
região, impossibilitando sua ocupação e a colonização. A terceira expedição,
comandada pelo tenente General Candido Xavier de Almeida e Souza obteve êxito e
descobriu os campos de Guarapuava em 8 de Setembro de 1770. Em seguida o coronel
2 SANTOS, Zeloí Martins. Os “Campos de Guarapuava” na Política indígena do Estado provincial do
Paraná. (1854/1889). Guarapuava – PR, 1999, p. 46.
6
Affonso Botelho retornou a esses campos a fim de colonizar a região, no entanto este
foi atacado pelos índios e possuindo parcos recursos, retirou-se da empreitada. A
chegada de D. João VI ao Brasil proporcionou uma nova expedição com a mesma
fundamentação do Márquez de Pombal, onde pode ser observada na Carta Régia do 1º
de Abril de 1809:
...o aproveitamento das riquezas naturaes da região, a cathequese dos índios, o estabelecimento de comunicação com o sul, por onde sahissem os muares que alli se criavam em grande escala e o povoamento das fronteiras com o Paraguay, antevendo talvez a realização dos projectos esboçados por Dona Carlota Joaquina, de fundar um império nas colônias espanholas do Prata.3
Segundo ainda a Carta Régia, tal expedição, fortemente armada e com ordem
expressa de conquistar a região, objetivou tanto a organização e ocupação do território,
como também o combate, a catequese e a pacificação dos índios. A junta Real teve o
comando do Tenente Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, era formada de 200
homens armados e munidos para sua disposição, assim como povoadores voluntários
de Curitiba (cerca de cem). Entre estes ainda, havia empregados e dois missionários:
Rev. Francisco das Chagas Lima, e Fr. Pedro Nolasco da Sacra Família (religioso
beneditino que se recolheu num mosteiro no decorrer da viagem). A expedição partiu
no dia 1 de agosto de 1809, até chegar nos Campos de Guarapuava em 17 de junho de
1810. No dia 2 de julho, Diogo Pinto e sua tropa conseguiu avançar até os
acampamentos formados pelas empreitadas anteriores, no denominado forte Atalaia
(último ponto alcançado pela expedição de 1774, com localização central nos campos
de Guarapuava). Segundo o padre Francisco das Chagas Lima, sem oposição do
gentio, fez-se oito dias de reconhecimento do local até 10 léguas de distância e “não se
tendo encontrado habitante, passou-se a fundar, da parte d’alêm do rio Coutinho, a
povoação da Atalaia”4.
Após levantado alojamento, o narrador relata o advento de uma corporação de
3 RIBEIRO, Eurico Branco. Esboço da história de Guarapuava. Almanack dos Municípios. Curitiba,
1992. Ed. Especial, p. 148 apud ABREU, Alcioly T.G. A posse e o uso da terra: modernização agropecuária de Guarapuava. Curitiba: Paraná Memória Momento, 1986, pp. 29-30.
4 LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977, p. 15.
7
30 a 40 índios que se apresentaram ao posto da expedição e logo depuseram suas
armas, incitando com que a tropa fizesse o mesmo; e por meio de acenos e falas
ininteligíveis, entenderam a tropa que os índios desejavam chegar pacificamente ao
acampamento. Estes foram presenteados com panos de algodão, algumas ferramentas e
quinquilharias, porém Francisco das Chagas Lima relata a dificuldade no tratamento
para com os índios:
...nos dois primeiros anos e meio, que vinham e iam da aldêa, apezar de alguns conflitos, e um principalmente em que durante seis horas puzeram em cerco a Atalaia, se aproveitaram de alguma maneira os esforços que se fizeram para os domiciliar e civilisar, isto é, até o anno de 1812.5
O pároco coloca ainda que depois da guerra de descoberta dos Campos de
Guarapuava em 29 de agosto de 1810, os portugueses “venceram” e os índios se
recolheram para o interior dos sertões, não voltando por um ano e meio para o
abarracamento do Atalaia. Depois deste tempo, o tenente coronel Diogo Pinto de
Azevedo Portugal enviou uma escolta e capturou um índio de nome Pahy. Este
recebeu assistência de cinco meses, foi bem tratado e depois de lhe explicarem as
intenções favoráveis a respeito dos nacionais do país, o índio acabou por induzir os
seus que se encontravam nos sertões a se entregarem aos luso-nacionais. A sete de
agosto de 1812, trezentas e doze pessoas, entre Camés e Votorões “se renderam
voluntariamente” no aldeamento Atalaia.
5 Ibid., p. 15
8
2 DEFINIÇÃO DOS OBJETIVOS
Este trabalho utiliza como fontes os assentos de batismos de índios realizados
entre os anos de 1824 a 1840, as listas nominativas de Guarapuava de 1821, 1831 e
1840 e os relatos do Padre Francisco das Chagas Lima.
É preciso enfatizar inicialmente que tais fontes são provenientes de órgãos
oficiais e principalmente realizadas por setores institucionais, ou seja, não índios. Os
assentos de batismo refletem os preceitos de uma ideologia cristã, já as listas
nominativas utilizadas no século XIX tiveram utilização para fins militares e fiscais.
Além disso, os dados coletados informam sobre uma situação específica que se deu na
relação entre luso-nacionais e índios na região de Guarapuava. Tanto os assentos de
batismo quanto as listas nominativas auxiliam uma análise exclusiva de índios que se
encontravam no aldeamento e por isso, esta análise da classificação das fontes, só pode
ser entendida no âmbito da inserção do índio em situação de aldeado. Não se pretende
portanto neste trabalho aludir às relações mais abrangentes que se deram entre colonos
e população local com os kaingangs de Guarapuava. O objetivo primordial desta
análise de fontes busca entender a multiplicidade e a especificidade de
relacionamentos existentes dentro do primeiro aldeamento dos Campos de
Guarapuava, denominado Atalaia.
A ênfase dada ao aldeamento se estabelece na lógica de que o aspecto do
agrupamento fez com que os índios se inserissem num novo tipo de organização do
espaço comunitário. Essa reestruturação do espaço significou uma forma de adaptação
aos seus costumes tradicionais. Também o sistema cristão e português influenciou as
estruturas autóctones dos índios, submetendo-os às práticas cristãs e ao
acondicionamento nos aldeamentos. No entanto não se pode inferir que dentro do
contexto das pressões da inclusão do modo de vida europeu, os índios tenham aceitado
passivamente esta imposição, ou simplesmente que tenham se aculturado devido à
realização dos batismos e casamentos cristãos. Além disso o projeto cristão não se
colocou tão facilmente frente aos índios. Na verdade, a resistência indígena não é
9
explicitada unicamente pelo fator da guerra, mas sim através dos seus deslocamentos e
da criação e adaptação de formas de convívio. As reações indígenas freqüentemente
relatadas contra o processo de colonização, detém-se em conflitos, ataques e guerras
entre brancos e índios. No entanto as respostas do contato não reduziram-se em
rebeliões e guerrilhas, como mostra as alianças luso-nacionais com indígenas (a fim de
obter privilégios), mas em relações e reações complexas e diferenciadas dos kaingangs
frente ao aldeamento cristão de Atalaia.
Faz-se necessário destacar portanto a dificuldade em se desvincular as
abordagens marcadamente cristã dos documentos estudados em questão. Torna-se
complexo traçar uma linha de demarcação entre a verdade e a distorção das descrições
dos documentos, onde as intenções moralizadoras e a censura estão evidentes.
Entretanto, o objetivo proposto se insere na própria lógica de pensamento cristão que
determinou o relacionamento com os índios. Através do estudo das classificações que
se colocaram principalmente nos assentos de batismo, este trabalho visa compreender
sob que formas de organização familiar os aldeados apareciam diante do padre para
batizar seus filhos, ou então para eles mesmos serem batizados.
2.1 OS LIVROS DE BATISMO
Os assentos de batismo, existentes na Paróquia de Nossa Senhora de Belém de
Guarapuava, foram encontrados e analisados a partir da pesquisa dos Livros de
Batismo nº1 e nº2. Do livro nº 1 constam batizados feitos de março de 1810 a 4 de
setembro de 1867. O livro nº 2 consta batizados de 23 de janeiro de 1820 a 10 de julho
de 1851. A princípio, uma maior diferenciação entre os dois livros seria do primeiro
constar assentos indígenas e do livro 2 de assentos de luso-nacionais . Tal metodologia
foi utilizada pelo Padre Francisco das Chagas Lima, pároco que participou diretamente
da Expedição de conquista dos Campos de Guarapuava e que assinou o termo de
abertura dos livros em questão.
10
As fontes estudadas partiram principalmente do livro nº 1. Os batismos
analisados para este trabalho se restringiram do ano de 1824 a 1841, totalizando 141
assentos realizados. Os batizados de 1810 até 1828, foram realizados pelo Padre
Francisco das Chagas Lima, que após esta data se retira de Guarapuava. Em 1829 não
há registro de batismos e somente em 1830 o Padre Francisco de Paula Prestes reinicia
os assentos. Entretanto a partir de 1831, a metodologia utilizada pelo Padre Chagas
Lima não é mais utilizada, ou seja, o novo pároco realiza batizados luso-nacionais
juntamente com índios.
No livro 2, foram analisados assentos de 1831 a 1840, totalizando 102 batismos
realizados e entre estes constando luso-nacionais , índios (totalizando 13 assentos em
anos diversos) e escravos. O livro é iniciado com o batizado de apenas luso-nacionais
até 1828 e após esta data há assentos de indígenas e escravos.
Os assentos de indígenas continham várias informações além dos dados
efetivos: nome da criança ou adulto a ser batizado; nome, estado civil e naturalidade
dos pais e nome dos padrinhos. A sistematização utilizada pelo padre ofereceu dados
como o nome do índio antes de ser batizado (colocado ao lado do assento), assim
como os nomes indígenas dos pais, o tempo de duração dos índios dentro do
aldeamento, a incidência de subgrupos dentro do aldeamento, as uniões com luso-
nacionais e a existência de pais polígamos. Percebe-se que a partir da saída do Pe.
Chagas Lima não ocorre uma diferenciação mais sistematizada dos assentos
realizados. Após 1828, verifica-se pouca existência de assentos de índios, ocorrendo
ainda em intervalos longos. Também a partir desta data, torna-se difícil diferenciar os
batizados de índios, uma vez que não havia o cuidado em se colocar o nome indígena
da criança e dos pais. No livro 2, o Pe. Manoel Caberos de Castro (realizou assentos de
1838 a 1840), preocupou-se no entanto em atribuir ao lado dos assentos a classificação
de batizandos brancos, índios, pardos e escravos.
11
2.2 AS LISTAS NOMINATIVAS
Este trabalho ainda utiliza como fontes, as listas nominativas dos moradores da
Freguesia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava dos anos de 1821, 1828, 1831 e
1840.
Na lista dos ano de 18216, feita pelo pároco Francisco das Chagas Lima
constam apenas a população indígena, inseridos em 21 fogos contabilizados. A
distribuição desses fogos está organizada conforme padrão familiar cristão, onde
constam: o cabeça de domicílio (homem ou mulher), cônjuge (só mulheres), filhos e
agregados (mães do chefe de domicílio e irmãos). Encontra-se ainda nesta lista 3 fogos
evidenciando apenas índios ditos órfãos, sendo formado por crianças e adultos
(mulheres viúvas e solteiras). Em fogos não enumerados, há a referência de índios
batizados existentes nos Campos Gerais e vila de Curitiba a título de educação, e
índios catecúmenos.
A Lista de 18287 apresenta a população moradora da Freguesia de Nossa
Senhora de Belém de Guarapuava e alguns índios casados com luso-nacionais. A do
ano de 18318 demonstra a população aldeada, constando somente a população indígena
e ainda informações sobre o sacramento do batismo (tanto de proprietários, cônjuge,
filhos e agregados). Já a Lista de 18409 apresenta uma especificidade. Nela estão
inseridos os luso-nacionais , o aldeamento e ainda índios vivendo como agregados de
domicílios luso-nacionais. Constata-se 7 índios homens e 7 índias mulheres morando
junto com os brancos. No aldeamento o número de mulheres é bem maior que o de
homens: são 7 homens e 19 mulheres. Do total de 40 índios existentes na lista
nominativa de 1840, 26 constam como residentes no aldeamento.
6 Relação dos Índios de Guarapuava baptizados e existentes na Aldeã da Atalaya, 1821. In: FRANCO,
Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Edição do Museu Paranaense, 1943, pp. 249-257.
7 Arquivo Público do Estado de São Paulo, Lista Nominativa dos habitantes de Guarapuava, 1828. 8 Arquivo Público do Estado de São Paulo, Lista Nominativa dos habitantes de Guarapuava, 1831. 9 Lista geral dos habitantes da freguesia de Nossa Senhora de Belém, em Guarapuava, no ano de 1840.
In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977.
12
Estas listas fornecem neste trabalho um exame centrado na incidência de índios
inseridos na Freguesia, seja provenientes de casamentos entre luso-nacionais e índios,
seja enquanto cabeça de domicílio ou vivendo como agregados. A análise dessa
inclusão de índios em períodos alternados, objetiva localizar o processo de contato
entre a população indígena e a população local, na tentativa de demonstrar o resultado
de formas diferenciadas de convívio e de relações.
13
3 A IGREJA E O SISTEMA DE INCLUSÃO SUBORDINADA
Sem fé, nem lei e nem rei” tornou-se a expressão corrente, não apenas ressaltando a ausência das letras f, l e r na língua da terra, como também denunciando a dificuldade em identificar instituições que fossem comparáveis à da sociedade européia.10
A frase: “Sem fé, nem lei e nem rei faz subentender que o indígena não tinha fé,
porque não compartilhava da religião cristã européia; o europeu por sua vez não
aceitava outra religião que não fosse a de Cristo, considerando, portanto, o índio ateu.
Faz subentender também que o indígena não tinha lei e nem rei. Não tinha lei não
porque não as tivesse de fato, de fato as tinha, mas as suas próprias que não eram
reconhecidas pelos europeus. E sem rei porque, o índio não precisava de rei, as tribos
tinham cada qual a sua liderança, a qual era o suficiente. Deste modo, como poderia
um povo viver sem religião, sem lei e sem rei? Sem os sustentáculos da “civilização”?
Assim, em estado de completa selvageria? Assim de modo tão primitivo e bárbaro?
Por esses motivos e outros, resolveu-se então civilizar o índio.
Este capítulo busca evidenciar a maneira que a Igreja instaurou-se frente ao
contato com os índios no aldeamento de Atalaia, levando em consideração que esta
instituição também criou estratégias e respostas específicas em relação com à
sociedade indígena. Várias características encontradas nos assentos de batismo
indicam uma classificação dada pela Igreja, feita através de um sistema hierárquico,
onde o índio não-batizado era inserido num patamar mais baixo de uma classe
subordinada.
A instrução dos índios tendo por base a conversão ao cristianismo, se inicia em
1812 e segundo o Padre Francisco das Chagas Lima, vai perdurar até 182611. Nos
assentos de batismo, nota-se uma preocupação do padre em se distinguir os batizados
de índios e brancos, como pode ser observado na diferenciação dos livros de batismo 1
10 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 121. 11 LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. In: Boletim
do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977.
14
e 2. Tal questão pode ser ainda evidenciada pela existência de um terceiro livro
constando de batizados somente de escravos no período de 22 de abril de 1810 a 04 de
março de1884.
Percebe-se ainda nos batizados uma preocupação em se diferenciar os índios
conforme uma etnia. Em “Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava”,
Chagas Lima levantou a existência de diferentes “hordas” de gentio nos sertões de
Guarapuava. Utilizou as denominações Camés, Votorões, Cayeres e Dorins para
diferenciar os índios existentes nos Campos de Guarapuava.
As diferentes hordas de gentios existentes pelos sertões de Guarapuava são: a dos Cames, Votorões, Dorins e Xocrens. A dos Cames e Votoroes são as que se encontraram nas visinhanças dos campos, quando se formou a aldeã. A primeira avaliou-se ser de 152 individuos, a Segunda de 120, mais ou menos, actualmente existentes; Os Dorins, que tem seu aldeamento á margem do rio Dorim, para cujos lados fica o Campo das Laranjeiras, de bastante extensão, deve constar, pelo motivo acima dito de 400 individuos. A dos Xocrens, entre os rios Iguassú e Uruguay, há pouco descoberta, julga-se não chegar a 60 indivíduos. Sommando, portanto, 972 habitantes. (LIMA, 1977, p.19)12
Segundo Chagas Lima, Camés no idioma da terra tinha o significado de
“tímidos” ou “medrosos”; Votorões, era habitante do morro Vuturuna; e Cayeres eram
“macacos”13. Os Camés e Votorões foram os primeiros aldeados (cerca de 270 no
total). Iniciou seu trabalho de catequização, procurando “desterrar todos os erros da
sua crença”. Entretanto relata a dificuldade para a conversão dos índios:
...distrahidos em acções de guerra e calamidades que d’ahi resultam; preocupados com a indulgência dos antigos vícios de sua barbaridade, correspondiam mui pouco aos trabalhos e diligencia do seu director espiritual, e commummente a fé era n’elles muito enferma...14
O relato evidencia que apesar da dificuldade, havia correspondência dos índios
com relação à cristianização. Isso demonstra a maneira que a Igreja buscava, mesmo
12 Apud SANTOS, Zeloí Martins. Op. cit., p. 67. 13 Apud ABREU, Alcioly T.G. A posse e o uso da terra: modernização agropecuária de Guarapuava.
Curitiba: Paraná Memória Momento, 1986, p. 31. 14 LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. In: Boletim
do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977, p. 22.
15
que numa parcela reduzida, inserir os índios dentro de um sistema cristão. Mesmo que
a fé dos índios era muito “enferma”, o que o padre não os excluía da pretensão
católica.
Os Dorins, aldeados perto do Campo das Laranjeiras chegavam a 400
indivíduos (em 1826) e os Xocrens, localizados entre os rios Iguaçu e Uruguai
chegavam a 60 pessoas. Através dos assentos de batismos pode ser encontrada a
existência de índios Dorins dentro do aldeamento. Em dois assentos observados, o
padre relata uma possível naturalidade dos índios, ou conforme suas palavras:
“oriundos do Rio Dorim, e portanto índios denominados Dorins.”15 Segundo Chagas
Lima, “os referidos índios vieram espontaneamente com outros mais em número de 21
fazer uma visita a esta povoação e depois se retiraram”.16
Não se tem explícito uma diferenciação maior de grupos indígenas nos batismos
realizados pelo padre, mas sua afirmação da existência de um grupo Dorin, coloca um
questionamento. Por que motivo ele faz referência somente a este grupo em
específico? Assim, a importância dada pelo padre, implica em dois apontamento. A
primeira indica a possibilidade de um primeiro contato do grupo denominado Dorin
dentro do aldeamento. A segunda aponta para uma perspectiva voltada à existência de
índios não Dorins dentro do aldeamento, podendo estes serem Camés ou ainda
Votorões.
Também há o relato de índios Guarani entre os Kaingangs, onde o pároco
observa uma grande redução de homens adultos, chegando a ¼ da população. A
existência de índios guarani e a diminuição de elementos masculinos indígenas pode
ser observada de vários âmbitos. A conquista do território guarani pelos colonos, seja
através do escambo, da participação comum em atividades guerreiras e também o
casamento entre índios e brancos; proporcionou uma crise territorial e cultural, que os
expulsou de seu lugar de origem. A fuga das epidemias, da escravização e a busca pela
“terra sem males” ainda podem ser apontados pela intensa migração do povo guarani.
A busca da mão de obra por sua vez, face à docilidade do guarani, é um indicativo da
15 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867. 16 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867.
16
redução de elementos masculinos. Entretanto a análise de John MONTEIRO observa
que a diminuição da população indígena em uma determinada região não envolvia
apenas a mortalidade, mas sim as migrações indígenas voluntárias ou forçadas que
tanto marcaram a história dos Guarani17.
O padre não aprofunda a existência de índios guarani dentro do aldeamento,
mas pode-se observar que ele distingue os Kaingangs dos Guarani e mesmo os
subgrupos internos.18 Tal característica assinala para que essa distinção de etnias e de
grupos internos apareça de modo visível mesmo para o padre. Deste modo, os índios
encontravam-se mesmo dentro do aldeamento divididos em grupos inimigos ou não.
Em seu relato, Chagas Lima observava que estas tribos possuíam várias
dissensões e não cessavam de guerrear entre si. Ocupavam-se da caça, da pesca e
dança e tinham dificuldade em desarraigar de seus vícios antigos e do sentimento de
vingança. Para ele, eram cruéis, não tinham chefe, religião e nem compaixão. Este
caráter de tratamento dado ao índio enquanto “tabula rasa”, retrata novamente a
pretensão da Igreja e se incluir, e não excluir o índio no processo de cristianização.
Com a existência de várias grupos kaingangs no Atalaia e suas dissensões entre
si, pode-se questionar até que ponto estes grupos viviam de forma harmoniosa dentro
do aldeamento. Como nem todas os subgrupos são afirmados nos assentos de batismo
(exceto o grupo Dorin que aparentemente parece haver travado um primeiro contato),
leva-se a crer numa classificação e tratamento dos índios mais ou menos homogênea
por parte do padre. Esta afirmação conduz a outro ponto essencial, onde a situação de
aldeamento fez com que os índios criassem formas de convivência dentro de um
contexto de pluralidade intergrupal. Deste modo, os índios aldeados se encontravam
numa situação à parte dos índios não-aldeados, configurando um modelo próprio para
17 Sobre história dos índios Guarani ver MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Brasiliense, 1997. FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá. Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico” IN: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
18 O padre Chagas Lima utilizava o termo nações para diferenciar os subgrupos Kaingangs. Marta Amoroso (1998), utiliza o termo facções. Segundo a antropologia atual no entanto, o povo Kaingang se organiza nas metade Kamé e Kainru. Cada metade por sua vez, comporta duas seções: Kamé comporta Kamé e Wonhétky, e Kainru comporta Kainru e Votor (MOTA, TOMMASINO & NOELI [2000]).
17
a sobrevivência. Reagrupados coletivamente, os índios tiveram que se inserir num
novo tipo de organização do espaço comunitário. Essa reestruturação do espaço por
sua vez, significou a formulação de novos relacionamentos e readaptação dos seus
costumes tradicionais.
A metodologia utilizada pelo Pe. Chagas Lima, ainda levanta muitas questões.
Este faz um trabalho minuncioso e curioso ao retratar os índios existente no
aldeamento do Atalaia. Na maioria dos assentos de índios adultos, preocupou-se em
colocar o nome cristão e o nome indígena do batizando, ou conforme suas palavras,
“como era chamado no gentilismo”, “antes denominado”19. Também essa preocupação
estendeu-se sobre o nome dos pais. Ao que parece, se eram batizados, colocava o
nome cristão e o nome indígena e se não eram batizados colocava somente a
denominação indígena. Esta diferenciação constantemente enfatizada pelo padre como
“antes denominado”, evidencia um modo de classificação de índios batizados e não-
batizados. A realização do batismo portanto, denota um sentido de passagem para o
mundo cristão, ou seja, passagem para um mundo onde a selvageria, o paganismo e a
poligamia não estariam mais inseridos. Tal informação leva a crer que a partir do
momento do batismo, o índio estivesse mais perto do processo de civilização.
Chagas Lima ainda propõe que alguns índios aceitavam mais passivamente a
doutrina cristã. Chegou a qualificar alguns subgrupos kaingangs como mais “dóceis e
civilizados”. Segundo relato, os Cayeres, contrário dos Votorões foram mais fáceis de
instruir: “até agora não tem dado algum indício de perversão; nem foram incrédulos,
como depois se mostrarão os Vorotons...”20
A Lista dos Índios de Guarapuava de 1821, demonstra ainda uma divisão feita
em índios batizados, semi-bárbaros e bárbaros:
Rezumo da conta adiante, pela qual se mostra existirem a 31 de Dezembro de 1821
Índios de Guarapuava
19 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867. 20 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo (Documento) In: FRANCO, Op. cit., p. 247.
18
Batizados................................148
Catechumenos.........................14
Semi-barbaros.........................76
Bárbaros.................................190
Soma total quatro centos, e vinte e oito 428.21
Nos assentos de batismo pode-se observar ainda colocações a respeito dos pais.
Se não eram batizados, observava: “provenientes do gentilismo”, “oriundos do gentio
de Guarapuava”, “selvagens e pagãos”, “oriundos do paganismo” e ainda “dos sertões
de Guarapuava”. Alguns assentos onde os pais eram índios bárbaros e pagãos o
batismo foi realizado precedendo o consenso dos pais. Através desta informação
obtida por Chagas Lima, percebe-se uma rejeição dos pais na concretização do
batismo, o que leva a crer na improbabilidade dos pais buscarem o Atalaia a fim de
serem batizados ou batizarem seus filhos. No aldeamento de São Pedro de Alcântara, o
Frei Thimotheo Castelnovo, colocava que os índios se convertiam ao batismo em prol
de interesses dos bens: “Se trazem seus filhos ao batismo, ele (o missionário) bem o
sabe – é para obterem dos padrinhos roupa, e presentes.”22
Outros assentos de batismo por sua vez, demonstraram a caracterização de pais
neófitos e catecúmenos, informando que tais índios já haviam sido batizados e
participavam diretamente da doutrina cristã. Em alguns assentos, o padre faz menção
ao tempo de catecumenado, dando indícios até mesmo do tempo freqüência de índios
dentro do aldeamento. No entanto seu procedimento a respeito das observações sobre
“pai neófito” e “pai catecúmeno” levanta maiores questões. Qual razão para se
classificar índios neófitos e catecúmenos e índios selvagens, pagãos e itinerantes? Tal
21 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo (Documento) In: FRANCO, Op. cit., p. 248.
22 Frei Timotheo de Castelnovo ao Presidente da Província do Paraná, 10/01/1889 [DEAPP vol. 016, ap. 844, p. 17-21] apud AMOROSO, Marta. Catequese e Evasão. Etnografia do Aldeamento Indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutorado. USP, 1998, p. 260.
19
diferenciação estaria por sua vez enquadrando os índios num modelo de classificação
entre índios catequizados e não-catequizados? Suas observações deste modo,
evidenciam o emprego de uma estratificação existente dentro do aldeamento,
conforme a integração dos índios ao cristianismo. Pode-se até mesmo colocar essa
estratificação como indicativo maior para uma hierarquização entre índios cristãos e
índios pagãos.
A tendência a enquadrar os índios num modelo cristão, ainda era evidenciada
nas informações sobre as mães de índios que estavam sendo batizados. A seu respeito
foram encontrados nos batismos, a caracterização do estado civil; que quando citado,
normalmente era viúva ou solteira. Na maioria dos casos de batizados de adultos,
houveram ocorrências de mulheres índias ditas casadas e viúvas, contendo inclusive o
nome do cônjuge, como por exemplo “...Escolástica, antes denominada Gapranc, índia
adulta de trinta e tantos anos; filha de Guengrê, e de Iacang, viúva que ficou por
falecimento de Iohê”23. A observação nominal apenas indígena, evidencia que tais
índios não foram batizados, sendo improvável portanto, terem legitimado o casamento.
Percebe-se com a informação do assento de batismo, uma alocação dos valores
cristãos na formação dos relacionamentos indígenas. É curioso observar que o pároco
caracteriza a formação familiar indígena, conforme seu pensamento e doutrina cristã.
A conotação de mãe viúva resulta numa adequação e inserção do índio nos padrões
familiares e organizativos propostos pelo padre Chagas Lima.
Do mesmo modo, o pároco procurou adequar as relações polígamas no
aldeamento conforme os cânones católicos. Marta Amoroso, observou no aldeamento
de São Pedro de Alcântara, que Frei Timotheo Castelnovo colocava a poligamia como
um elemento que impedia a realização de casamentos entre os índios. Entretanto no
Atalaia, Chagas Lima parece camuflar as relações indígenas, e de outro modo, impor
os hábitos cristãos. Se a poliginia e o índio não-batizado impediam a realização de
uniões oficiais, como poderia o pároco realizar batizados de índios selvagens e
polígamos? E deste modo, como poderia aceitar os pais polígamos? Estes
questionamentos demonstram apenas que na tentativa de sobrepor os hábitos
20
poligâmicos e alocar os valores cristãos, o padre inseriu nos assentos de batismo,
possibilidades ainda maiores para que este hábito estivesse se propagando mesmo no
aldeamento.
Esta questão levanta outra característica interessante nas fontes de batismo,
onde ocorre um reconhecimento de comportamentos polígamos dos índios pelo Padre.
Foram encontrados cinco batizandos com três diferentes mães e um mesmo pai.
Cândida Nherepranc era filha de Vaipatifom e de Maexú, sua primeira mulher
(conforme próprias observações do pároco); Ana Uemom e Domitilla Yapranc, eram
filhas de Vaipatifom e de Mangeó, sua segunda mulher; Bento Cokê e Maria eram
filhos de Vaipatifom e de Herecá, sua terceira mulher. Esta aceitação explícita sobre os
hábito poligâmicos evidencia a forma como a Igreja pretendeu abarcar de forma
totalitária a cultura e o comportamento dos índios. De outro modo, o “consentimento”
sobre a poligamia demonstra o caráter de universalidade adotado pela Igreja, a fim de
envolver os índios “que possuíam vícios escurecidos a respeito de Deus”, ou seja, que
não possuíam religião.
Assim, a Igreja não excluiu os relacionamentos “ilegais”, mas sim subordinou-
os a uma cadeia hierarquizada, incluindo os Kaingangs dentro de um sistema
estratificado de subordinação. O padre chegou a classificar os índios polígamos
enquanto os mais selvagens e pagãos. Do contrário pode-se verificar que os índios que
não praticavam a poliginia estariam enquadrados enquanto “mais civilizados”. Em seu
relato, coloca que os índios monogâmicos (que possuíam somente uma mulher),
estariam mais “habilitados” à catequese que os índios que possuíam várias mulheres:
...Fandungrá, Careim, Hereicá, e Yecain, que tinhão duas mulheres, fallescendo hua, ficarão unicamente com a outra: Fingri, Araicó, Miencú, e Degnã, que tinhão cada hum três mulheres, morrendo-lhes duas, ficarão unicamente com hua: á Nhecaxó, que tinha duas, ambas morrerão. Este 9 Indios ficarão certamente habilitados para entrarem em numero de Catechumenos; porem não alcansarão a mesma sorte, Iongong, Varaipim, Yopó, Farú, Dó, Fangrein, Covocafem, Caicrê, Fagné, Xihó, Capa, e Necafim, q- tendo o primeiro destes 12, quatro mulheres, o segundo três, etodos os mais duas, nenhua destas falleceo na occasião da peste.24
23 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867. 24 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo (Documento) In:
21
Esta classificação demonstra uma inversão dos valores indígenas. De outro
modo, as relações de poder dentro do aldeamento estariam ocorrendo de maneira
oposta às relações ditas tradicionais.
Marta Amoroso, revela através da etnografia, uma forte hierarquia interna entre
os kaingangs: “A organização dos Kaingangs é marcada pela presença de seções e
metades hierarquizadas. A sociedade Kaingang caracteriza-se pela divisão em metades
exógamas patrilineares, que são passadas de pai para filho”25 (H. Baldus 1952, M.
Cecília V. Helm 1977). Para a autora, o comportamento polígamo dos índios
kaingangs devia-se ao aspecto da liderança no interior da tribo. Ou seja, a posição de
líder conferia o comportamento polígamo. O cacique kaingang Manoel Arepquembe,
encontrado no aldeamento de São Pedro de Alcântara, reagiu às pregações do frei
Thimótheo Castelnovo “dizendo que era polígamo porque um líder de sua estatura, um
Tremani, tinha muitas mulheres; que não pretendia abandonar sua posição de
liderança, muito menos suas mulheres.”26 Dentro desta perspectiva, a recusa do
privilégio social e econômico da poligamia e a submissão ao regime monogâmico,
rebaixava os chefes indígenas ao “nível dos plebeus”.
Os kaingangs ainda buscavam o aldeamento a fim desposar outras mulheres,
além das que já trazia consigo. Com exceção do reconhecimento de um único caso de
pai polígamo, os assentos de batismo não evidenciam de maneira explícita a poligamia
dentro do aldeamento. Batismos no entanto evidenciando duplas uniões, como a
referência de que o pai era casado com diferente mulher e não a mãe do índio que
estava sendo batizado, levam a crer que a Igreja procurava mascarar estes
relacionamentos. Resta saber portanto, qual critério utilizado pelo padre ao se colocar
uma união legítima entre os kaingangs. Seu relato demonstra que o índio Votorão
Fuoc-xó, instruído na doutrina cristã, já batizado com o nome de Vitorino e casado
com a viúva de Pahy, foi seduzido por outros Votorões que vieram ao Atalaia. Levou
consigo sua mulher legítima, mas ainda se associou com outra mulher pagã (Iagninvé).
FRANCO, Arthur Martins. Op. cit., pp. 238-239.
25 Apud AMOROSO, Op. Cit., p. 122.
22
A poligamia neste caso, aparece de maneira explícita e demonstra uma situação de
contradição frente aos valores cristãos. Como seria possível verificar-se entre os índios
ditos polígamos qual a primeira esposa, ou esposa legítima?
É importante observar ainda que o Pe. Chagas Lima não utilizou a questão da
legitimidade nos assentos de índios, contrariamente ao que fez nos assentos de luso-
nacionais , como pode ser observado no livro 2. O batizando não era apontado como
“filho legítimo de”, menção utilizada apenas para pais luso-nacionais . Em alguns
casos, verificou-se até mesmo o questionamento a respeito do pai do batizando. Tanto
em batizados de crianças quanto de adultos houveram casos em que o padre colocava o
pai do batizando como “pai que dizem ser”. Manoel Concrom por exemplo era filho de
Curem, pai que dizem ser, e de Fang-nhefeiê27. Estudos como o de Ana Maria Lugão
Rios sugerem que a presença da indicação pela mãe do nome do pai era indício forte
de união consensual. 28 Uma vez que o reconhecimento pela mãe indicava a afirmação
de laços consensuais, a observação sobre “pai que dizem ser” aponta a possibilidade de
uma união não legitimada pela Igreja.
O casamento no século XIX, segundo Maria Beatriz Nizza da SILVA, tinha o
significado de um contrato no qual obedecia três tipos de leis: as da Natureza, as do
Estado e as da Igreja. A Igreja porém, combatia a existência de casamentos segundo
“as leis da Natureza”, com a finalidade de punir o concubinato, ou seja, os delitos da
carne29. Segundo ainda as Leis Eclesiásticas do século XIX, as relações de concubinato
impediam a legitimação de uniões oficiais, uma vez que o intercurso sexual sem
casamento, aos olhos da Igreja, criavam laços de parentesco. De outra maneira, as
“brechas” da legislação sobre casamento, permitiam, ou mesmo obrigavam a
reconhecer laços não legitimados pela Igreja.
Deste modo, segundo John Manuel MONTEIRO, desde o princípio da
colonização européia do Brasil, a diversidade cultural e lingüística das populações
indígenas foi um grande desafio ao modo de ver dos ocidentais, que, com dificuldade
26 AMOROSO, Op. Cit., p. 226. 27 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867. 28 RIOS, Ana Maria Lugão. Famílias negras no pós-abolição (Paraíba do Sul, 1889-1920). In: Anais do
VII encontro nacional de estudos de população. Caxambu : ABEP, 1990.
23
em entender as sociedades indígenas como completamente diferente da sua, buscava
simplificar o quadro a um padrão minimamente compreensível, tendo como base os
pilares e leis da sua própria sociedade. 30
29 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura no Brasil Colônia. Petrópolis : Vozes, 1981. 30 MONTEIRO, John Manuel. “Os Guarani e a História do Brasil Meridional” IN: CARNEIRO DA
CUNHA, Manuela (org). A História dos Índios no Brasil.
24
4 RELAÇÕES ENTRE ÍNDIOS E BRANCOS: O PÓS-CONTATO
Os índios no entanto, frente à classificação dada pelo padre inserindo-os num
sistema hierárquico, criaram estratégias próprias de convivência. A população
indígena soube adaptar os rigores da norma cristã às necessidades pessoais e às
tradições autóctones. Como resposta à essa diferenciação, os Kaingangs encontraram
formas diversas de representação com relação à subordinação. Enquanto alguns
aprenderam a explorar a sociedade civilizada, outros índios fizeram das normas cristãs,
estratégias no seio das novas relações de força. Tal reação sugere que a assimilação de
novos comportamentos e recursos dependia freqüentemente do efeito prático e
imediato que os índios previam assim obter. Conforme Marta Amoroso, os índios
aldeados podem ter visualizado a construção de uma nova relação de poder, onde as
lideranças passam a adotar o batismo, a monogamia, a busca por equipamentos e os
casamentos com luso-nacionais, como uma forma de ampliar sua força no interior de
seus grupos.
4.1 FRONTEIRA ENTRE SERTÃO E ALDEAMENTO
Tanto o relato de Chagas Lima quanto os registros de batismo, indicam a
existência de freqüentes deslocamentos de índios no aldeamento. Em alguns assentos
analisados, há observações de Kaingangs que se ausentaram durante quatro anos do
aldeamento e depois retornaram dos sertões; ou que se encontravam dispersos e se
recolheram ao Atalaia, indicando um movimento de entrada, saída e retorno dos
índios. No caso dos Dorins, ocorreu um primeiro contato com o aldeamento, como
pode ser observado nos batismos: “índios pagãos e há pouco existente na Atalaia”,
“índios bárbaros e pagãos que vieram procurar comunicação com a aldeia”, “índios
que se retiraram e voltaram à aldeia”. Encontra-se ainda nos assentos de batismo,
25
informações sobre os pais dos índios que estavam sendo batizados, como: “índios
pagãos e há pouco existente na Atalaia”, “índios bárbaros e pagãos que vieram
procurar comunicação com a aldeia”, “índios que se retiraram e voltaram à aldeia”...31
Ainda na lista nominativa de índios feita em 1821, o padre Chagas Lima faz uma lista
referente a índios já batizados e que retornaram ao sertão ou seja, “Indios baptizados
que se achão entre os Infiéis, dispersos pelos Certoens”32.
É importante ressaltar que os assentos de batismo, informam de maneira
explícita os deslocamentos ocorridos no Atalaia. Nota-se que ocorre uma comunicação
estabelecida entre índios aldeados e não-aldeados. Isto levanta a hipótese de que esses
movimentos fossem parte constitutiva do aldeamento. Numa perspectiva maior, a
entrada e saída de índios aponta por sua vez para a manutenção de relações familiares
dentro e fora do aldeamento, como uma espécie de esquemas intercambiantes entre
famílias.
Em relato ao governo da província de São Paulo, Chagas Lima observa a
incidência de novos índios chegaram no Atalaia, contando 36 índios pagãos e semi-
bárbaros Votorões. No entanto, antes de significar uma “rendição”, a entrada de índios
no aldeamento pareceria duvidosa até mesmo pelo padre: “Não sei ainda que
deliberação trazem porem o temor, que aqui pode haver hé, q- seduzão outra ves
alguns Indios baptizados, e os Levem para os Certoens como da outra vez fizerão”33. O
medo inspirado pelo padre, faz com que se evidencie a real existência de um
intercâmbio entre índios aldeados e não-aldeados, assim como também a verificação
de índios batizados abandonando o Atalaia.
Levantando questões a respeito dos deslocamentos indígenas, pode-se colocar
que as epidemias se constituíram num elemento que provocou deserções nos
aldeamentos. Os historiadores revelam que a maior causa da mortandade dos índios
devem-se sobretudo às epidemias de doenças trazidas pelos europeus e africanos. A
31 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867. 32 LIMA, Francisco das Chagas. “Estado Actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e Exmº governo provisório desta província de S. Paulo” In: FRANCO, Op. cit., p. 256.
33 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821. Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo In: FRANCO, Op. cit., p.
26
varíola, o sarampo, a catapora, tuberculose, febre amarela e as gripes arrasaram aldeias
inteiras. Muitos povos ainda sem contato com as fontes irradiadoras, recebiam a
doença por transmissão de outros índios, sobretudo através de guerras entre si. O
impacto da colonização européia sobre as populações aborígenes e ao próprio
ambiente e natureza da América, introduziu patógenos de doenças desconhecidas
possuindo seu próprio corpo, plantas e animais como agente transmissor de doenças.
Conectando ainda o fator biológico com o social, as epidemias se deram num contexto
histórico desfavorável à população nativa. A escravização da mão-de-obra indígena e
as guerras de conquista territorial promovidos pelos europeus intensificaram a
fragilidade e conseqüente extermínio das sociedades indígenas. Segundo Mércio
Pereira Gomes, as epidemias eram mais destrutivas quando ocorriam associadas a
guerras de extermínio ou de escravização. A escassez de alimentos, a exaustão e o
desgaste de cativos indígenas facilitavam a baixa no sistema imunológico e a
contaminação propícia. A exacerbação da guerra indígena provocado pela sede de
escravos, as guerras de conquista e de apresamento em que os índios de aldeia eram
alistados contra os índios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente
acompanhavam as guerras, a desestruturação social, a fuga para novas regiões das
quais se desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes, a exploração
do trabalho indígena, pesaram decisivamente na dizimação dos índios. 34
Em 1813, uma epidemia no Atalaia fez com que os índios se retirassem para os
sertões: os Camés foram para as margens do Rio Dorim e os Votorões para além das
margens do Rio Iguaçu. Deste modo, em 24 de maio de 1813, 229 índios fugiram após
terem permanecido por 10 meses no aldeamento. Dos 131 batizados que
permaneceram, o padre Chagas Lima contou 52 adultos dos quais logo faleceram 39,
79 crianças dos quais vieram a falecer 9. A solução encontrada pelo pároco após a
moderação das doenças, a fim de estimular os índios na sua doutrinação foi sob a
forma de trocas:
235.
34 GOMES, Mércio P. Os Índios e o Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1988.
27
...passei a convidal-os, exhortando-os com palavras, tendo preparado premios para cada um dos que viessem á doutrina, taes como rosários, verônicas, estampas de santos, missangas, fitas, espelhos e outras quinquilharias, e, na falta d’isto, assucar e rapaduras e assim diariamente convocados para a igreja ao toque do sino, grandes e pequenos de ambos os sexos;...35
Os Kaingangs só retornaram ao aldeamento depois de quatro meses em que se
verificou a epidemia, entre estes Chagas Lima revela sobretudo o grupo dos Camés.
Em janeiro de 1814 uma porção maior deles também chega ao aldeamento, dizendo
serem os restantes da Nação Camé que haviam sido assaltados pela nação comandada
por Candoi. Temendo um novo ataque deste, os Camés se açoitaram entre os luso-
nacionais a fim de buscar refúgio. Em 1817, há o aparecimento de 52 índios Votorões,
em sua maioria mulheres e crianças, dizendo-se o restante de uma nação congregada
com Candói da parte além do Rio Iguaçu que haviam sido atacados por Cayeres. Tais
índios foram recebidos e incorporados no Atalaia junto com os Camés. A entrada de
índios votorões congregados por Candói por sua vez, onde havia o convívio de grupos
antes inimigos entre si, acaba evidenciando o aldeamento como um local neutro, com
possibilidade para acordos de aliança e paz e até mesmo como um local provisório de
refúgio.
Esta questão pode ser melhor explicitada quando a expedição de Guarapuava
começou a declinar, decorrente da Ordem Régia que recolheu os soldados milicianos.
Sob ordens do governo de São Paulo, em 9 de dezembro de 1817, os empregados da
Expedição, com todo o Trem Real deveriam seguir para Linhares (antigo
abarracamento situado entre os Campos Gerais de Curitiba e Sertão de mato, que se
continua até Guarapuava). Ainda segundo orientações provinciais, os índios
voluntariamente poderiam acompanhar a Expedição para Linhares, do contrário
poderiam voltar para seus “antigos lares”. Deste modo, Chagas Lima coloca que sem
abastecimento, auxílio temporal da Expedição (provisões) e auxílio militar, os índios
ficaram desprotegidos e vulneráveis frente aos seu inimigos e se dispersaram: os
Votorões foram para ocidente e acabaram encontrando os Cayeres que haviam
35 LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. In: Boletim
do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977, p. 24.
28
combatido no Rio Iguaçu. No conflito do encontro, os Votorões tomaram uma mulher
moça, uma menina de oito anos e cinco rapazes de quatro até onze anos, todos Cayeres
para negociarem e venderem aos luso-nacionais. O índio Pahy, nomeado capitão dos
índios, já batizado e casado sacramentalmente, tomou tal fato como exemplo e levou
os Camés para o oriente em busca da caça de índios bárbaros e a venda dos menores.
Entretanto chegando a um alojamento de índios Tac-taias (localizado nas margens do
rio Ytatu), foram atacados e o capitão Pahy acabou falecendo. Chagas Lima sentiu
grande perda uma vez que afirmava a grande contribuição do índio para o avanço da
cristianização: “Deste modo aos 8 de maio de 1818 tinha avançado o numero dos
Indios de Guarapuava baptizados a 221; e de cazamentos sacramentais a 12.”36 Através
deste relato pode-se levantar a hipótese dos índios procurarem os aldeamentos no
sentido de um abastecimento material ou na busca de alianças de casamento ou de paz.
Marta AMOROSO observa nos relatos de Telêmaco Borba (1908), F. Keller
(1866) e T. Bigg-Wither (1974) que os índios viam os aldeamentos enquanto locais
seguros para a proteção contra os inimigos e fonte garantida para sua subsistência.
Conforme Keller, “as forças centrípetas dos aldeamentos seriam, assim, de duas
naturezas: ancoravam-se na capacidade provedora do estabelecimento, na fartura de
suas plantações, no fornecimento de mercadorias (ferro, sal, mercúrio doce, tecidos,
armas brancas e de fogo, munição) e asseguravam à população indígena um espaço de
neutralidade, mantido livre dos conflitos entre etnias ou facções inimigas” (F. Keller
1865).37 No entanto a idéia do aldeamento enquanto um local de trocas e
abastecimento é refutada por Amoroso. Ao observar a dinâmica entre os kaingangs na
busca destes mantimentos, a autora coloca as rivalidades inter-tribais como elemento
superior na disputa pelos equipamentos, armas, tecnologias e quinquilharias. “A
rivalidade entre os caciques constitui fator preponderante da mobilidade dos grupos no
sistema de aldeamentos, motivando evasões e re-alocações de grupos inteiros. As
rivalidades estavam por trás da busca do controle dos aldeamentos e da definição da
36 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo (Documento) In: FRANCO, Arthur Martins. Op. cit., p. 240.
37 AMOROSO, Op. Cit., p. 51.
29
forma de ocupação do equipamento.”38 Para Amoroso, os combates entre grupos não
tinham como finalidade a obtenção de vantagens materiais decorrentes da proximidade
de uma aldeamento e da aliança com os civilizados. O controle dos equipamentos
desta forma, influenciou para que se apreendesse a significação de maior status dentro
do aldeamento. “O controle dos equipamentos dos aldeados inseria-se no contexto de
disputa entre os grupos, no interior das quais os bens dos civilizados podia significar
status e poder. A busca de uma posição privilegiada no interior do sistema de
aldeamentos reproduzia e ampliava a hierarquia entre as chefias que lideravam as
facções.”39 Nesse sentido, não é possível simplificar que o aspecto do agrupamento de
índios inimigos, tenha significado a simples aceitação e passividade indígena. O
conceito de “aculturação” a partir da utilização e busca de equipamentos civilizados
por parte dos índios não encontra fundamento a partir desta análise. Ocorre pelo
contrário, a reafirmação dos valores tradicionais dos kaingangs, uma vez que as
lideranças buscavam ampliar sua força no interior do grupo através da disputa de
cargos dentro do aldeamento.
Ainda a respeito das rivalidades intertribais, Alcioly Terezinha Gruber de
ABREU coloca que estas permaneceram mesmo após o contato com os luso-nacionais
e a inserção dos índios nos aldeamentos.40 Sua análise aponta para o ataque dos índios
ao aldeamento, enquanto um conflito intertribal, ou seja, não atribui os ataques
diretamente aos colonizadores, e sim aos índios que se encontravam no Atalaia. No
ataque ao forte Atalaia de Cayeres e Camés, “cinco casas dos luso-nacionais e a capela
foram respeitadas pelos índios, não demonstrando animosidade contra os brancos”41.
Além disso, Abreu também aponta que mesmo depois da catequização, os índios
continuavam a combater entre si, a pilhar os moradores das fazendas e atacar viajantes.
Lúcio Tadeu MOTA por sua vez, atribui os ataques ou táticas de guerra como
uma forma de resistência dos índios kaingangs à ocupação das terras e o
38 AMOROSO, Op. Cit., p. 87. 39 AMOROSO, Op. Cit., p. 88. 40 ABREU, Op. cit. 41 ABREU, Op. cit., p. 31-23.
30
aprisionamento indígena.42 Para ele, os conflitos entre luso-nacionais e índios
aparecem enquanto “ações possíveis para a defesa do território e da liberdade
kaingang”43. O historiador realça no entanto uma divisão entre índios
colaboracionistas, delatores (ou seja, o índio aldeado) e índios não-aldeados:
Graças aos índios convertidos, os brancos tomavam conhecimento dos territórios ocupados pelos kaingangs resistentes. Pouco a pouco seus refúgios, seus campos de caça e de coleta de pinhões foram sendo revelados e ocupados. Progressivamente seus espaços diminuíam assim como suas possibilidades de viver. Daí sua reação violenta, principalmente contra os índios delatores.44
Os ataques aos aldeamentos segundo Lúcio Tadeu MOTA, tinham dois
propósitos: o primeiro de exterminar o domínio dos colonos sobre a posse de terras e o
segundo de exterminar os índios que ali se encontravam e que eram aliados aos
brancos. Esta visão demonstra uma animosidade principalmente pelos colonos e aos
índios que tornaram-se seus aliados.
As duas abordagens embora controversas, demonstram que as guerras
intertribais não cessariam devido a inserção do índio no aldeamento. Percebe-se no
entanto uma conjunção do ataque de índios selvagens aos índios aldeados. Ruy
Wachowicz, também em estudo sobre a resistência indígena no Paraná observa que os
índios neófitos colocados no aldeamento do Atalaia, passaram a ser protegidos pelos
soldados da Real Expedição. Entretanto, “a divisão dos índios em colaboracionistas e
refratários, levou-os à guerra fratricida”45. Deste modo, os índios aldeados aparecem
enquanto delatores e traidores pelos não aldeados, inserindo uma relação que se
estende em índios dos sertões, bárbaros e pagãos e índios batizados, cristãos e
aldeados.
A observação sobre os assentos de batismo no entanto, evidenciando o
movimento tanto de índios pagãos como batizados dentro do aldeamento, levanta a
perspectiva de que os deslocamentos não indicavam uma resistência indígena, como
42 MOTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos Índios Kaingangs. Maringá: EDUEM, 1998. 43 MOTA, Op. Cit., p. 93. 44 MOTA, Op. Cit., p. 142. 45 MOTA, Op. Cit., p. 10.
31
quer a historiografia. Pode-se averiguar que a entrada e saída do Atalaia acabaram por
transformar a própria dinâmica no interior das sociedades autóctones. É decisivo
analisar que os movimentos indígenas tenham sido antes um processo de intercâmbio
entre famílias ou entre aldeados e não aldeados, do que em função de uma derrota
militar indígena. Sem derrota militar, não há como dizer que a sociedade imperial
transformou os índios em vazios culturais. Do mesmo modo, os comportamentos no
interior do aldeamento não podem ser entendidos como se estivessem sido moldados
inteiramente pelos europeus.
Segundo ainda análise antropológica, a mobilidade dos índios devia-se ao
desenvolvimento de suas atividades de subsistência material e reprodução social. Para
Kimye TOMMASINO, o tempo de duração dos deslocamentos variava conforme as
atividades, conforme explicita Becker, em estudo sobre os Kaingangs do Rio Grande
do Sul:
Ainda que uma grande parte da atividade se realize na proximidade do alojamento central (ou aldeia mais permanente), várias das atividades estacionais exigem deslocamentos mais ou menos grandes, que os distanciam do acampamento por períodos curtos ou, às vezes, por muitos meses, ficando na aldeia provavelmente só algumas famílias. É principalmente a pesca ao longo dos arroios e rios no verão e a colheita de pinhões no outono que os distanciam do alojamento permanente durante longos períodos. Em épocas recentes, também os afastavam expedições destinadas a roubar o produto da agricultura em chácaras da população nacional. A prática da caça, com rodízio de área, possivelmente também os leve a rápidas migrações. (Becker, 1975:53)46
A mobilidade e ausência do aldeamento, face ás excursões de caça, pesca e
coleta pelos kaingangs, ainda são encontradas na análise de Amoroso, como demonstra
o relato de Frei Thimotheo Castelnovo ao presidente da província:
V. E. me pede com urgência em ofício de 30 de dezembro o número dos índios. Como este ano não houve maior mudança; e de repente ser impossível tal numeração, tanto mais na quadra, que os índios se internam no sertão atraídos pelo mel, e pela caça. Além do que vivem espalhados numa superfície de seis léguas.47
46 Apud, TOMMASINO, Kimiye. Território e territorialidade Kaingang. Resistência cultural e
historicidade de um grupo Jê In: MOTA, NOELI e TOMMASINO (2000: 207). 47 Frei Timotheo Castelnovo ao Presidente da Província do Paraná, 15/01/1886 [DEAPP, vol.: 005, ap.
no.: 797, pág.: 196] apud AMOROSO (1998: 94-95).
32
A autora divide três categorias sociais que se estabeleceram pós-aldeamento: os
aldeados (que tinham maior participação nos rituais católicos, eram contabilizados
pelo censo e beneficiários dos bens e serviços oferecidos pelo governo), os agregados
(grupos que orbitavam ao redor dos aldeamentos e que participavam da rede de trocas
de mercadorias) e índios do sertão (que freqüentavam o aldeamento esporadicamente
por ocasião de festas, visitas de parentes e para se abastecerem). Amoroso coloca tais
visitas por ocasião dos rituais funerários que se davam anualmente, na época das
colheitas.
Tanto a análise de Amoroso e Tommasino refletem sobre uma vinculação com
o aldeamento a partir de elementos interiores à sociedade indígena. Estas reflexões
sugerem que mesmo aldeados e “participantes” da doutrina cristã, os índios
permaneciam com seus laços tradicionais e estavam conectados com o “mundo
exterior”. A análise sobre os deslocamentos, evidenciou que os índios mantinham um
contato com o aldeamento, no entanto não sob a forma de uma “aceitação”, “rendição”
ou mesmo que estivessem se “europeizando”.
Esta questão ainda pode ser evidenciada nos assentos de batismo onde o pai é
pagão e a mãe é cristã, já batizada, e vice-versa. No primeiro caso, o padre faz menção
sobre o paganismo do pai e não faz comentário sobre a mãe. Beatriz Fangrá por
exemplo, era filha de Congueim, relatado como índio pagão, e de Francisca
Lucequisfará. O elemento que se fez supor a respeito da cristianização da mãe, está
caracterizado justamente pelo nome cristão. Esse tipo de batismo por sua vez, antes de
significar uma integração diferenciada por parte dos pais frente ao batismo, pode ter
sido o resultado de uma relação familiar que se achava na fronteira entre dentro e fora
do aldeamento. O pai pagão estaria fora do Atalaia e a mãe inserida. Deste modo, é
possível atribuir que o aldeamento colocou-se como uma instituição de fronteira entre
estes dois “mundos”.
É curioso notar por outro lado assentos onde o pai era cristão e a mãe era pagã.
O caso de Caetano Cuxuprenc, filho de Agostinho Iahain e Iangbron não é colocado da
mesma forma que os assentos de pai pagão e mãe cristã. Apesar da especificidade do
33
pai ser cristão (atribuído devido à nominação cristã) o padre observa tanto pai quanto
mãe enquanto índios itinerantes. Levando em consideração a classificação dada pelo
padre de índios pagãos, selvagens e itinerantes numa relação inferior aos índios
batizados, evidencia-se com este assento de batismo uma contradição. Uma vez
constando como batizado, Agostinho Iahain ainda é colocado como índio itinerante. É
possível induzir com isso, a existência de uma mobilidade masculina maior do que
feminina do aldeamento. Esses dados apontam ainda para uma ligação com os
indígenas que estavam ainda no sertão. Evidenciando o caráter poligâmico, conclui-se
que os índios homens retornassem ao sertão em busca de outras mulheres: “...elles não
guardavão Limites a respeito do numero de mulheres, que tomavão simultaneamente
por espozas; pois se bem vinhão nesta corporação 7 homens cazados com hua só
mulher, vinhão 21 cazados com duas, tres e quatro...”48 O pároco tratava os costumes
poligâmicos como abuso, conforme demonstram dois casos de índios que chegaram ao
aldeamento do Atalaia com suas mulheres, mas mesmo assim intentaram tomar outras.
Sendo uma dessas esposas pretendidas uma menina de idade de onze anos, o Padre
conseguiu recolhê-la a uma “Casa Honesta dos Empregados”49. Para ele, os índios
reconheciam que a poligamia era reprovada pelos luso-nacionais, deste modo
advertiam se retirar do aldeamento caso não pudessem viver com suas mulheres.
Segundo relato de Chagas Lima, nesta situação de impasse e contradição para
salvar a doutrina da Igreja e manter os índios no aldeamento, o Padre encontrou numa
peste que se verificou no Atalaia como uma Providencia Divina e a solução de seus
problemas. O grande índice de mortandade em meio à peste, propiciou que muitos
índios recebessem o batismo no leito de morte e deixassem os hábitos poligâmicos.
E por este modo Fandungrá, Careim, Hereicá, e Yecain, que tinhão duas mulheres, fallescendo hua, ficarão unicamente com a outra: Fingri, Araicó, Miencú, e Deguá, que tinhão cada hum tres mulheres, morrendo lhes duas, ficarão unicamente com hua: á Nhecaxó, que tinha duas, ambas morrerão...50
48 p. 237. 49 p. 238. 50 LIMA, Francisco das Chagas. Estado actual da conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e exmº Governo Provisorio desta Provincia de S. Paulo (Documento) In: FRANCO, Arthur Martins. Op. cit., p. 238.
34
Pode-se ainda supor que a proibição da poligamia e a restrição do leque das
possíveis alianças tenham concorrido para restringir as dimensões do grupo doméstico.
A lista Nominativa de 1821 demonstra uma parte destinada a crianças órfãs e nos
assentos de batismo, 1 criança e 4 adultos demonstram pais (pai e mãe) incógnitos.
Deste modo, filhos de uniões polígamas estariam afastados do pai graças ao zelo dos
religiosos. Também encontrou-se nos registros de batismo, 16 casos de mães viúvas
onde 11 deles o pai era incógnito.
Este questionamento por sua vez é decorrente de um elemento que caracterizou-
se pelo número reduzido de homens no aldeamento, conforme demonstra tabela
abaixo:
Tabela 1: Número de índios adultos mencionados em listas da população de Guarapuava (1821-1840) HOMENS MULHERES
1821 11 31
1831 11 24
1840 7 19
Lista dos Índios de Guarapuava existentes na Aldeia da Atalaya, 1821. In: FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Edição do Museu Paranaense, 1943, p. 249-257. Arquivo Público do Estado de são Paulo. Lista de habitantes da freguesia de Guarapuava, 1831. Lista geral dos habitantes da freguesia de Nossa Senhora de Belém, em Guarapuava, no ano de 1840. In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977
Estes números evidenciando a preponderância feminina e a redução de homens
no aldeamento podem ser analisados em prol da dificuldade indígena em habituar-se
frente aos preceitos cristãos impostos, ou seja, uma não adaptabilidade frente às
restrições catequéticas sobre seus comportamentos poligâmicos. Conforme relato de
Chagas Lima, as relações poligâmicas eram recriminadas e conseqüentemente a reação
indígena se resumia em deserções. Esta deserção de homens refletiria por sua vez, no
“abandono” de mulheres dentro do aldeamento, evidenciando casos onde o pai da
criança batizada era incógnito e a mãe neófita, como foi o caso de dois índios Camés:
35
“...vieram occultamente a Atalaya alguns Índios Votorons, somente a seduzir, e acompanhar para os Certoens a Vitorino Fuocxó: este miserável cedeo a seducção, Levando com sigo não somente sua mulher Legitima, como dous Índios Camés, já baptizados, e cazadoz, hum de nome Nicoláo Herimbanc, e outro de nome Miguel Endará, que ambos deixarão suas mulheres Legitimas na Atalaya.”51
A noção de ausência também pode ser decorrente de fatores como as guerras
intertribais, tratado no capítulo posterior. Interessa por outro lado se colocar, que os
índios, na sua maioria homens, tenderam a uma dispersão maior dentro do aldeamento.
E, ao deixaram suas mulheres no Atalaia, seja decorrente de investidas guerreiras, da
busca de novas mulheres, por ocasião de colheitas ou reduzidos enquanto mão-de-
obra, os índios travaram uma relação mesmo que sob a ótica subordinada da Igreja, de
se estabelecerem no aldeamento.
Numa perspectiva própria, os Kaingangs adotaram formas de convívio, de
relações familiares e sociais que tenderam a se colocar na fronteira entre o aldeamento
e o sertão, constituindo um aspecto híbrido entre o “ser aldeado” e “não-aldeado”. E
deste modo, o aldeamento pode ser abordado como um local de estreitas relações entre
índios cristãos e pagãos, como uma espécie de instituição de fronteira entre dois
mundos.
4.2 FRONTEIRA ENTRE ALDEAMENTO E POVOADO
Se por um lado encontrou-se nos registros de batismo, referências a elementos
que demonstravam o paganismo indígena, como a caracterização de “pai pagão,
selvagem”, “pai polígamo”; por outro, pode-se localizar referências de índios
enquadrando-os como “domesticados”, como por exemplo a nominação cristã, a
caracterização como catecúmeno, neófito e as uniões de indígenas com luso-nacionais.
51 LIMA, Francisco das Chagas. “Estado Actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e Exmº governo provisório desta província de S. Paulo”. In: FRANCO, Op. cit., p. 248.
36
Ainda com relação às estratégias criadas frente ao sistema de subordinação
criado pela Igreja no Atalaia, os índios tenderam a se colocar na fronteira entre o
aldeamento e a Freguesia, como uma forma de “adaptação” à sociedade colonial.
A Expedição em 1809 à disposição de Diogo Pinto de Azevedo Portugal foi
formada segundo Chagas Lima, de 300 pessoas, sendo 200 formados por homens
milicianos. A superioridade masculina evidente, se deflagrou com o comportamento
exótico e o universo poligâmico dos índios. Entretanto em relato ao presidente de
província, o pároco observa que de 1810 a 1815 não era possível o convívio entre luso-
nacionais e índios: “os Indios já mais poderião ter socego, vivendo misturadamente no
mesmo lugar com soldadoz, por causa da incontinencia destes; e com os Portuguesez,
que se não accomodarião jamais com a rudeza daquelles Indios”52.
Apesar do relato de Chagas Lima no entanto, das relações entre brancos e índios
em Guarapuava, resultaram uniões “mistas” e a formação de elementos mestiços.53 Em
alguns assentos de batismo foram encontrados filhos onde o pai era luso-brasileiro e
mãe era índia. Tal verificação foi possível através da nominação, onde constava-se:
nome e sobrenome português e a referência a respeito da naturalidade do pai. Quanto à
mãe fazia-se o relato “índia dos sertões de Guarapuava”; como por exemplo: Josefa
era filha de Jose Gomes, natural da Freguesia de Itanhahé e de Barbara Gaten, natural
do sertão de Guarapuava, ou ainda, Manuela era filha de Atanásio Lopes e de
Clemência Maria Aranheran, índia da Atalaia54.
O relato feito em 1821, evidencia no entanto uma contradição frente aos
assentos de batismo. Se no início do processo de cristianização o padre era contrário à
convivência entre brancos e índios, o assento de batismo de Josefa em 1825 (filha de
pai português e mãe índia) demonstra uma flexibilização do padre em relação a essas
uniões. As uniões entre luso-nacionais também foram evidenciadas nas listas
nominativas, conforme tabela abaixo:
52 LIMA, Francisco das Chagas. “Estado Actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e Exmº governo provisório desta província de S. Paulo”. In: FRANCO, Op. cit., p. 261.
53 Torna-se difícil no entanto aprofundar até que ponto os relacionamentos entre brancos e índios resumiram-se em uniões oficiais. Ou de outro modo, traçar um panorama a respeito de um possível convívio e relacionamento entre luso-nacionais e índios, de maneira poligâmica ou não.
37
Tabela 2: Número de uniões entre "portugueses" e índias mencionadas em listas da população de Guarapuava (1821-1840)
ANO PORTUGUESES CASADOS COM ÍNDIA
1821 3
1828 5
1831 8
1840 3
Fontes: Relação dos Índios de Guarapuava baptizados e existentes na Aldeã da Atalaya, 1821. In: FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Edição do Museu Paranaense, 1943, p. 249-257. Arquivo Público do Estado de são Paulo. Lista de habitantes da freguesia de Guarapuava. 1828 e 1831 Lista geral dos habitantes da freguesia de Nossa Senhora de Belém, em Guarapuava, no ano de 1840. In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977
Através das listas nominativas dos anos de 1821, 1828, 1831 e 1840, pode-se
perceber o número de uniões entre “portugueses” e índios. Conforme foi explicitado
neste trabalho, os anos de 1828 e 1840 referem-se aos números populacionais existente
na Freguesia, onde os casais estão misturados ao resto da população, ou seja, fora do
aldeamento. Em 1821 os casais “mistos” ainda se encontram no interior do
aldeamento, junto com os índios. No ano de 1828 estas uniões já encontravam-se
juntamente com a população colonial/imperial e aí se estabeleceram. Três casais de
luso-nacionais e índias, podem ser encontrados nas listas de 1821, 1828 e 1831,
demonstrando a trajetória que estes casais tiveram desde o aldeamento até a freguesia.
Os cinco casos existentes em 1828, são encontrados também na lista de 1831,
evidenciando o caráter fluido da fronteira entre aldeamento e povoado. A tabela ainda
demonstra uma redução dos casamentos após 1831, o que pode ter sido favorecido
pela igual redução do número de batismos no aldeamento, tratado depois com mais
ênfase. Não se pode negar entretanto, que o casamento cristão se inseriu como um
meio eficaz e pragmático em obter a cristianização indígena.
Desde Pombal, o sentido de “civilizar”, era submeter os índios às leis e ao
trabalho, sobretudo através da cristianização. “Os índios, como vários outros
54 Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867.
38
segmentos da população, eram recalcitrantes ao trabalho. Dizia-se que fugiam com
facilidade das aldeias para escapar-lhes, e que se refugiavam nas matas. Intrusar-lhes
as terras seria então uma maneira de cortar-lhes a retirada.”55 Com isso Carneiro da
Cunha releva que a política oficial estava em assimilar física e socialmente os índios
ao resto da população:
“Queria-se quebrar com isso o isolamento em que os jesuítas mantinham suas missões: o português substitui na Amazônia a língua geral, as aldeias são elevadas a vila e lugares com nomes portugueses, os casamentos mistos são favorecidos e o estabelecimento de moradores entre os índios, encorajado.”56
Através da conquista dos corpos, a Igreja deslocou transformações importantes
dentro da sociedade indígena. Não se pode negligenciar o rompimento brusco dos
laços comunitários indígenas, e nem o impacto imediato do processo de mestiçagem.
A introdução da ética cristã do casamento e da vida conjugal, eram ao mesmo tempo
estranhos e subversivos aos povos indígenas. O sentido de organização familiar
baseado num modelo nuclear também deve ser enfatizado como um elemento avesso à
formação familiar indígena. Além do controle dos corpos e da organização familiar, o
casamento de “portugueses” e índios significou acima de tudo um controle sobre os
relacionamentos envolvendo a poligamia.
A análise de AMOROSO evidencia que a presença dos civilizados correspondia
a um dos elementos do processo civilizatório: “O convívio com o trabalhador cristão
era considerado elemento central da catequese e civilização: quer por meio dos
casamentos inter-étnicos, quer por meio das alianças na produção da subsistência, o
projeto de povoamento e colonização investia na dissolução física e identitária dos
índios no meio civilizado.”57 A autora considera no entanto que a proximidade dos
brancos não representou grandes mudanças nos hábitos dos kaingangs, uma vez que o
número de casamentos inter-étnicos era insignificante. O maior efeito do contato, deu-
se sobretudo pelo contágio de epidemias.
55 CARNEIRO DA CUNHA, Op. cit., p.142. 56 Idem, p.143. 57 AMOROSO, Op. Cit., p. 61.
39
Zeloí Martins dos SANTOS nota que em 1819 a população branca transferiu-se
para a Freguesia de Nossa Senhora de Belém e os índios permaneceram no Atalaia. No
entanto em 1855 pode-se perceber índios já inseridos na sociedade guarapuavana:
Segundo Francisco da Rocha Loures os índios da vila estavam; ‘esparramados entre a nossa população, sendo a maior parte mestiços, o numero de cento e cincoenta e sete pessoas. Esta gente, posto que vivão entre nós pacificamente, todavia achão em uma triste condição que pouco ou nada adianta a dos selvagens, pois que ella está representando a ultima classe da sociedade (Loures, 1855)58
Decerto esses casais se inseriram com a população colonial/imperial, no entanto
segundo Francisco da Rocha Loures, estavam caracterizados como a “última classe da
sociedade”. Deste modo a classificação hierarquizada e subordinada da Igreja, atingiu
índios que viviam nas fronteiras do sertão com o aldeamento e mesmo dos índios que
se colocaram nos limites com a freguesia. Esta colocação se torna mais evidente
através da observação sob a figura e posição social dos luso-nacionais que contraíram
uniões com índias. Na Lista nominativa de 1828, três dos cinco casos de uniões mistas
caracterizaram os “portugueses” como degredados. A recriminação social frente à
esses degredados aliado ainda à hierarquização subordinada imposta aos índios, denota
que estes tipos de uniões só poderiam ser rebaixados à “última classe”.
Mesmo que inseridos num baixo degrau hierárquico, as uniões luso-brasileiras e
indígenas provocaram o deslocamento de comportamentos e valores para a
cristianização e para a sociedade branca. É necessário observar no entanto, que o
aspecto da mestiçagem contribuiu para a inserção do indígena no mundo dito
civilizado, garantindo uma maior caracterização dentro do aldeamento. É impossível
deixar de lado o mecanismo de ascensão social decorrente das uniões entre brancos e
índios. Isto pode ainda ser evidenciado através do estudo das Listas Nominativas de
Guarapuava dos anos de 1831 e 1840, onde a índia Bárbara Gaten, é identificada como
proprietária de domicílio e demonstra a introdução da família indígena juntamente
com os luso-nacionais. Esta proximidade e inclusão revela a incidência e a aceitação
de moradias indígenas dentro da Freguesia de Guarapuava. Pode-se observar a
58 Apud SANTOS, Zeloí Martins. Op. cit., p. 113.
40
trajetória de Bárbara Gaten desde 1821 até 1840. A lista nominativa do ano de 1821,
demonstra que a índia era irmã menor do prestigioso falecido capitão dos índios José
Pahy, assim como viúva do luso-brasileiro Felisberto Ferreira Campelo, observado na
Lista Nominativa de 1831. Na de 1840 Bárbara Gaten, embora viúva, encontra-se
como cabeça de domicílio. O emprego de índios enquanto “chefes de residência”
podem ter evidenciado por sua vez, a ocupação de maior prestígio dentro da sociedade
nacional (em relação ao aldeamento). Não esquecendo a análise de Amoroso, Bárbara
Gaten, sendo irmã do falecido capitão dos índios José Pahy, poderia ser o reflexo da
busca pelo aumento de posição social dentro do grupo indígena. A integração nesta
circunstância não deve ser restringida ao simples processo de europeização sofrido
pelos índios, mas sim uma forma de fortalecimento de alianças políticas, econômicas e
sociais, promoção social, ou até mesmo de sobrevivência.
Segundo Ruy Wachowicz59, os índios neófitos colocados no aldeamento do
Atalaia tinham proteção dos soldados da Real Expedição contra ataques de seus
inimigos. Pode-se averiguar com isso que os índios se utilizaram da posição
privilegiada de neófito (através do batismo) dentro do aldeamento a fim de receberem
proteção ou aliança com os milicianos. John MONTEIRO vai observar que as alianças
feitas entre os europeus e índios (muitas vezes sob a forma de casamento entre
conquistadores e filhas de chefes), eram de interesse de ambas as partes. Para os
espanhóis havia a busca de aliados frente à conquista de índios resistentes, a
apropriação de excedentes agrícolas para o sustento da população colonial, o
estabelecimento de núcleos de povoamento e formação de uma sociedade mestiça e
finalmente a exploração da mão-de-obra. Quanto aos índios, havia o interesse de fazer
dos espanhóis aliados no combate a inimigos tradicionais e o escambo. O exemplo do
colaboracionismo é enfatizado sob duas questões ambíguas: se para alguns chefes
indígenas a melhor maneira de preservar sua autonomia política e cultura era a
mobilidade e a resistência ao contato, para outros era dentro da própria situação
colonial que se buscava esse espaço, ainda que parcial e vigiada.
59 WACHOWICZ, Ruy Christovam. Paraná, sudoeste: ocupação e colonização. Curitiba: Litero-
Técnica, 1985.
41
Através desta análise, o batismo não poderia estar inserido com a mesma
conotação pretendida pela Igreja, mas sim como um interesse específico por parte dos
índios, seja para garantir a proteção militar, formar alianças com os brancos ou mesmo
ascender socialmente dentro do aldeamento, dentro do grupo e em relação à outras
tribos.
Levantando possibilidades sobre essas questões, observou-se ainda nos
batismos e nas listas nominativas índios caracterizados com nome apenas cristão. Em
alguns assentos realizados no livro de batismo 2, foram encontrados nome e
sobrenome português, tornando difícil analisar os dados com uma informação apenas
nominal. Um cruzamento de fontes por sua vez evidenciou a correspondência de
indígenas através desta nominação. Alguns nomes portugueses de pais constando nos
assentos de batismo, puderam ser encontrados na lista nominativa de Guarapuava do
ano de 1840, como é o caso dos pais de Felisbino: Claro José Cavalheiro, índio casado
com Ubaldina Maria do Espírito Santo, também índia. Este cruzamento de fontes
possibilitou verificar uma série de questões. É possível através das fontes, perceber a
permanência no aldeamento num determinado período, demonstrando um maior ou
menor grau de interação e convívio entre os luso-nacionais .
Por outro lado, pode-se questionar a respeito da nominação exclusivamente
portuguesa dos pais, característica que denota um aspecto de socialização (integração)
e culmina numa distinção de posição social do resto do aldeamento. Não esquecendo
que a introdução de índios na comunidade branca pode ainda ser resultado de uniões
mestiças, a nominação portuguesa contribui para uma compreensão de que tais índios
já se encontravam num grau de inserção maior que o resto dos índios do aldeamento,
ocupando desta forma, posições socialmente mais prestigiadas.
Essas questões assinalam por sua vez, as formas de representação dos índios
frente ao contato com os conceitos do cristianismo, frente à imposição do padre e ao
próprio aldeamento. Formula-se que o anseio de privilégios sociais dentro do
aldeamento tenha sido fruto de um processo distinto da assimilação. E deste modo, as
representações indígenas podem ser assinaladas como respostas e estratégias
específicas criadas frente ao contato.
42
No livro de batismo 1, também foram encontrados nome e sobrenome de pais
de batizandos, apenas português. Estes assentos levantaram questionamentos a respeito
da naturalidade dos índios batizados e dos pais destes. Após a saída do Padre Chagas
Lima, percebe-se que seus sucessores não utilizam o Livro de batismo 1 para realizar
somente assentos de índios, ocorrendo nesse caso uma mescla de batizados indígenas e
luso-nacionais. O período de fontes abordado demonstra que em 1831, tem-se uma
maior ocorrência de pessoas batizadas com nominação apenas portuguesa e menor de
índios: 8 índios, e 9 com nome cristão. Em 1832 ocorrem apenas três assentos de
batismo, todos de índios. Nos anos de 1833 a 1837 não há assentos realizados e
somente em 1838 há 3 registros de batismo, também de índios. Esta diminuição de
batismos de índios pode ser evidenciada ainda através da média de batismos colocado
na tabela a seguir:
Tabela 3: Média anual de batismos indígenas entre 1824 a 1841
ANOS BATISMOS MÉDIA POR ANO
1824-1828 26,2 1829-1841 1,9
Fonte: Paróquia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. Livro de Assentos de Batismo 1, 1910-1867.
A diminuição de batizados de índios aponta por sua vez tanto para uma
diminuição de elementos indígenas dentro do aldeamento, como também para um
possível desleixo de novos párocos no sentido da catequização dos índios. Por outro
lado, o emprego de batizandos luso-nacionais juntamente com índios abre
possibilidades para um convívio mútuo entre “portugueses” e índios no aldeamento ou
na freguesia. Deste modo, ambos estariam sendo batizados no mesmo livro, pelo
mesmo pároco e no mesmo lugar.
Segundo Zeloí Martins dos SANTOS, a freguesia de Nossa Senhora do Belém
de Guarapuava, foi fundada em 1819:
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1819, aos 9 do mês de Dezembro, nesta conquista de Guarapuava, sendo convidados o tenente comandante interino da Expedição Antonio da Rocha Loures, o reverendo vigário colado Francisco das Chagas Lima, e mais povo, que se achavam neste Presídio de Atalaia, para um
43
lugar de campo aprazível, situado para a parte do sul da mesma Atalaia (...) aí se fizeram as demarcações da povoação, freguesia e Igreja Matriz de N. S. de Belém, para cuja tinha o mesmo reverendo vigário obtido alvará de S. Majestade (LIMA, 1918)60
Com a transferência da sede da povoação para o local definitivo, os índios
ficaram desprotegidos e expostos ao assalto de seus inimigos. É possível determinar
com isso que os índios neófitos, os casados com luso-nacionais e os mais
“assimilados” também se transferissem para a freguesia. Por outro lado, os índios ditos
“selvagens” terem retornado aos sertões.
Segundo Lúcio Tadeu MOTA, após a mudança do povoado o aldeamento
Atalaia ficou sob a direção do cacique Luís Tigre Gacom, aliado dos brancos. Índios
contrários a Gacom por sua vez, atacaram e destruíram o aldeamento em 1825. Ruy
Wachowicz por sua vez, coloca que após o massacre de 1825, alguns chefes indígenas
começaram a deixar o aldeamento, até que em 1828 todos o abandonaram, ficando em
Guarapuava apenas algumas famílias isoladas. “A maior parte dos índios aldeados
passaram para os campos de Palmas e/ou para a província do rio Grande do Sul, onde
uniram-se aos índios comandados por Nonohay.”61
A tabela dos assentos de batismo no entanto, demonstra que nos anos
posteriores a 1825, havia índios sendo catequizados e batizados, assim como após
1828, mesmo que num número inferior. Percebe-se que mesmo com a guerra de 1825
e a evasão de 1828 uma incidência de índios no Atalaia e não o seu fim. Também a
lista nominativa de 1840 evidencia a existência de 26 índios no aldeamento, sem
calcular os que se encontravam nos domicílios constando como co-residentes.
60 Apud SANTOS, Op. cit., pp. 67-68. 61 WACHOWICZ, Op. cit., p. 12.
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Tabela 4: Número de índios adultos mencionados na Lista Nominativa de 1840 HOMENS MULHERES TOTAL
ALDEAMENTO 7 19 26
CO-RESIDENTES 7 7 14
TOTAL 14 26 40
Lista geral dos habitantes da freguesia de Nossa Senhora de Belém, em Guarapuava, no ano de 1840. In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXII, ano 1977
Nota-se novamente em 1840 a diminuição de homens no aldeamento.
Levantando-se questões a esse respeito, pode-se que os conflitos intertribais ou com
fazendeiros, posseiros e a própria população local, ocorridos nos Campos de
Guarapuava, que enquadrariam o índio numa situação de inferioridade demográfica.
Lúcio Tadeu Mota demonstra que os conflitos indígenas envolvendo a defesa
territorial, se prolongaram durante os séculos XVIII, XIX e início do século XX:
...a conquista dos territórios kaingangs foi feita em meio à reação permanente dos índios às vilas que brotavam em suas terras, às fazendas implantadas em seus campos, aos viajantes, tropeiros, comerciantes e aventureiros que cruzavam suas matas e Campinas, às patrulhas da guarda nacional e provincial que percorriam suas terras e às tribos colaboracionistas que insistiam em indicar suas posições e persegui-los.62
Em conseqüência dos embates com a sociedade colonial/imperial, deve ser
ressaltado o elemento de aprisionamento indígena como mão-de-obra ou sua utilização
como força miliciana. O recolhimento da Expedição para Linhares significou a
requisição de uma nova força miliciana para explorar os novos campos. Segundo
Chagas Lima, os índios “voluntariamente” poderiam acompanhar a Expedição para
Linhares, do contrário poderiam voltar para seus “antigos lares”. Chagas Lima não se
mostrou favorável ao aprisionamento indígena, para ele tais índios não eram obrigados
a servir tal cativeiro, uma vez que “a Junta de Expedição e Conquista de Guarapuava,
tinha declarado em 1812, ou 13, que os Portuguezes podião negocear com os Indios de
62 MOTA, Op. cit., p. 05.
45
Guarapuava em todas as mais couzaz comerciaveis, menos em compras de outros
índios.”63
Chagas Lima ainda relata que um conflito envolvendo Votorões e Cayeres, fez
com que os primeiros tomassem como prisioneiros 1 mulher moça, 1 menina de 8 anos
e 5 rapazes de 4 até 11 anos, todos Cayeres, para negociarem e venderem esses sete
índios aos luso-nacionais. Entretanto o pároco foi em favor dos Cayeres, recolhendo-
os ao Atalaia. Um índio porém, ficou em Curitiba, em poder do tenente Antonio Jozé
Pereira Branco, sob a afirmativa de “a título de educação”.64
John MONTEIRO65, em estudo sobre os guarani do litoral, demonstra que no
período posterior à colonização tais índios passaram de aliados a cativos. Os próprios
padrões de apresamento sofreram alterações: se antes o cativeiro era formado
sobretudo por guerreiros tomados em guerras justas, os portugueses passaram a buscar
mão-de-obra aldeada (onde os índios já possuíam de certa forma uma resistência maior
às doenças, encontravam-se mais aculturados devido o convívio com o mundo branco
e encontravam-se em maior número).
Não se tem explícito a informação sobre a utilização de mão de obra índia nas
fazendas dos Campos de Guarapuava e nem na Freguesia. A Lista Nominativa de 1840
demonstra no entanto, crianças de 8 a 12 anos, vivendo como co-residentes ou
agregados nos domicílios luso-nacionais sem a presença dos pais. De 14 índios
constando como co-residentes, como demonstra a tabela abaixo, 12 possuem idade
inferior a 12 anos. Na maior parte dos domicílios onde as crianças indígenas estavam
presentes, se encontravam sozinhos.
Alcioly Terezinha Gruber de ABREU, coloca que o rol de agregados da
sociedade guarapuavana no século XIX era formada por familiares, afilhados,
expostos, criados e encostados, além dos rendeiros da terra ou os que dela se
utilizavam gratuitamente. “Os seus familiares, embora chamados de agregados, porque
63 LIMA, Francisco das Chagas. “Estado Actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821.
Descripto por ordem do Illmº e Exmº governo provisório desta província de S. Paulo”. In: FRANCO, Op. cit., p. 247.
64 LIMA, Op. cit., p. 247. 65 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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dele dependiam economicamente, pertenciam ao mesmo nível social do fazendeiro; os
demais agregados – também dependentes economicamente do fazendeiro – ocupavam
uma posição social inferior”66. Os agregados ainda recebiam vestuário, alimento e teto
em troca de trabalho pelo aluguel da terra. Levantando a existência das crianças índias
constando como agregadas, pode-se colocá-las na categoria de afilhados, conforme
descrição de Gruber. Os assentos de batismo no período abordado, constam ainda da
informação sobre os padrinhos dos índios batizados (nome, sobrenome, estado civil,
naturalidade e às vezes função/cargo).
As relações de apadrinhamento não serão enfocadas neste trabalho, merecendo
estudos posteriores. No entanto, uma rápida análise no trabalho de John Monteiro dá
indicativas para a existência de uma possível escravidão indígena nos domicílios luso-
nacionais guarapuavanos. Monteiro ressalta as relações de apadrinhamento como
componente fundamental para explicar a influência de uma sociedade de compadrio
frente à subordinação escrava. Nela está rebuscada uma hierarquização social, cultural
e econômica, apoiados numa relação paternalista, onde o papel de padrinho tinha mais
a conotação de protetor do que de compadre (evitavam laços de igualdade e
solidariedade). A introdução ao mundo católico, pode ser entendido tanto como um
processo de socialização e inserção do índio ao mundo dito civilizado; como um meio
de legitimação da escravidão. E nesse sentido, os senhores buscaram legitimar tal
processo através da administração particular e do papel paternalista de tutores dos
índios. “Assumindo o papel de administradores particulares dos índios...os colonos
produziram um artifício no qual se apropriavam do direito de exercer pleno controle
sobre a pessoa e propriedade dos mesmos...”67.
Devido à ilegalidade da escravidão indígena, os colonos procuravam utilizar
termos para a denominação do índio escravo, refletindo uma estratégia que se colocou
no período colonial na tentativa de padronizar as diferentes etnias e grupos. Do mesmo
modo, a inserção do índio em povoados tem a mesma conotação: a organização
66 ABREU, Op. cit., p. 111. 67 MONTEIRO, Op. cit., p.137.
47
espacial das vilas e mesmo das fazendas ilustram a tentativa de enquadrar o cativo
dentro de um sistema controlável e de subordinação.
48
5 CONCLUSÃO
“Durante quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres efêmeros, em transição: transição para a cristandade,
a civilização, a assimilação, o desaparecimento”68
Tal frase de Manuela Carneiro da Cunha demonstra como é encarado muitas
tendências a respeito do tema sobre a relação dos índios e a sociedade branca. Esta
representação de choque cultural por sua vez é representado por alguns estudiosos
através de teorias fatalistas69 que resultam na descaracterização progressiva e a
subordinação das sociedades indígenas. A utilização de determinados hábitos culturais,
a apropriação de determinados símbolos e signos da sociedade branca pelos índios
(como utilização de roupas, instrumentos, religião...) conferiu à sociedade
colonizadora como “vencedora” sobre os costumes da sociedade “primitiva”. Desta
forma, tem-se a idéia de que o contato provocou uma progressiva perda da identidade
e da cultura tradicional do índios.
Segundo Marta Amoroso, a antropologia da década de 1970 (Darcy Ribeiro -
1970 e Carlos Moreira Neto - 1971), tratou os aldeamentos indígenas do Império como
instituições falidas, sem impacto sobre a população indígena das quais os índios se
mantiveram afastados. Mesmo o historiador Lúcio Tadeu Mota em análise sobre a
política indigenista e o funcionamento dos aldeamentos no norte do Paraná no século
passado, evitou tratar as relações indígenas das populações aldeadas. Amoroso,
observa com esse ponto de vista, a dificuldade de incorporar o evento e a história no
estudo das sociedades indígenas:
Nessas análises, a resistência indígena parece estar ancorada na rejeição do evento e do processo histórico: no primeiro caso, os índios negavam a existência dos aldeamentos, no segundo, freqüentavam os aldeamentos esporadicamente, para o
68 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Introdução a uma História Indígena” IN: História dos Índios
no Brasil”. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 22. 69 Algumas teorias fatalistas (Darcy Ribeiro) viam as sociedades indígenas como que confinadas à
tragédia de se misturarem à população regional, perdendo suas características culturais distintivas como a língua, os ritos, os artefatos, etc.; até tornarem-se totalmente indiferenciadas.
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suprimento de mantimentos e mercadorias dos civilizados, mas negavam-se a participar do sistema produtivo e comercial ali instalado.70
Através desta análise o processo de europeização e as teorias fatalistas que
promovem o declínio cultural das sociedades indígenas pode-se descartado. Conceitos
como o de “etnicidade”, auxiliam a entender que “a cultura original de um grupo
étnico [...] não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função...”71.
O conceito de cultura desse modo é observado como um elemento não estático, não
dilapidável, que é impossível de ser substituída ou perdida por outra; é observado
como coisa que pode ser recomposta e investida de novos significados. Pode-se pensar
em cultura portanto como algo em permanente construção e que se altera de acordo
com as disposições internas, o interesse e a interpretação das sociedades indígenas.
Sendo assim, os índios tornam-se sujeitos de seu próprio destino e de sua história.
Ao estudar o impacto da colonização européia sobre os índios do Brasil, John
MONTEIRO analisa esse processo de modo a perceber uma trajetória histórica
específica da sociedade indígena. Não atribui as transformações que se procederam
com o contato de forma unilateral: “Se é verdade que o impacto do contato sobre as
populações nativas foi negativo em todos os quadrantes das Américas, o problema
central não deve limitar-se à dizimação. Mais importante, deve-se considerar o papel e
o significado das mudanças demográficas para o conhecimento tanto da história nativa
quanto da história colonial”72. Reconhece deste modo, que o processo de colonização
tenha atingido demográfica, espacial e a politicamente a organização do índios, mas as
práticas e políticas impostas também afetaram particularmente as sociedades nativas.
Demonstra que longe de serem vítimas passivas, os índios desenvolveram com o
contato, “estratégias próprias que visavam não apenas a mera sobrevivência, mas
também a permanente recriação de sua identidade e de seu “modo de ser”, frente a
70 AMOROSO, Op. cit., p. 18. 71 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Etnicidade: da cultura residual mas irredutível” IN:
Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense: Editora da USP, 1986, p. 99. 72 MONTEIRO, John Manuel. “Os Guarani e a História do Brasil Meridional” IN: CARNEIRO DA
CUNHA, Manuela (org). A História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 479.
50
condições progressivamente adversas”73. Para ele, o impacto não deve reduzir-se à
dizimação dos índios (fator epidemiológico74, recuo estratégico de populações para
área de difícil acesso).
Em sua obra Negros da Terra75, ao estudar o contato entre índios e europeus
observou alianças políticas sistematizadas no esquema de trocas. Os europeus cediam
bugigangas aos índios, enquanto os índios procuravam apoio bélico para suas
incursões em aldeias inimigas. O engajamento dos colonos nas relações conflituosas
entre aldeias, buscava uma tentativa de organização de uma mão-de-obra indígena,
como relata MONTEIRO:
...as perspectivas de conquista, dominação e exploração da população nativa dependiam necessariamente do envolvimento dos portugueses nas guerras intestinas, através de alianças esporádicas. Ademais, pelo menos aos olhos dos invasores, a presença de um número considerável de prisioneiros de guerra prometia um possível mecanismo de suprimento de mão-de-obra cativa para os eventuais empreendimentos coloniais.76
A exemplo da conquista colonial do império incaico, as relações entre luso-
nacionais e kaingangs demonstraram que o conceito de aculturação é restrito para
explicar a complexidade de relações que se produziram com o contato. Isso leva a
considerar que o pós-contato não seguiu um processo unidirecional, no qual a cultura
dos grupos subordinados é reimplanada e substituída pela do grupo dominante. Pode-
se inferir que o contato proporcionou uma mudança estimulada pela cultura
dominante, no entanto seguiu uma direção própria.
Serge GRUZINSKI77 em estudo sobre as sociedade ameríndias, coloca que a
conquista não produziu automaticamente sociedades coloniais, e sim fractárias (com
aspectos caóticos de instabilidade, mutações e heterogeneidade provenientes da
73 Idem., p. 475. 74 Monteiro alega que a queda da população indígena numa determinada região não significava apenas a
intensificação da mortalidade, pois também se devia, muitas vezes, às migrações voluntárias e forçadas. 75 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994 76MONTEIRO, Op. cit., p. 29. 77 GRUZINSKI, Serge. “Las Repercusiones de La Conquista. La Experiência Novohispana”. IN:
BERNARD, Carmem (org) Descubrimiento, conquista y colonización de América a quinientos anõs. México: FCE, 11ª edição, 1994. p. 148.
51
situação de choque). Ou seja, uma sociedade híbrida (combinação de elementos
hispânicos e indígenas), onde ocorre uma justaposição de elementos europeus com os
índios. Para sobreviver, ambos tiveram que elaborar novas formas de comportamento e
convivência que resultaram numa combinação de, adição e justaposição (como uma
resposta adaptativa) de dois universos em contato, provocando uma heterogeneidade
tanto social quanto cultural.
O pós-contato, portanto, não proporcionou uma extinção do padrões e valores
culturais das sociedades indígenas, mas um rearranjo e uma remodelação diante de
novas experiências. Essa dinâmica é proveniente da apropriação de símbolos e signos
que promovem significações novas e não-oficiais e que se inserem num sistema
estruturado de significantes. Em outras palavras, a cultura torna-se um híbrido, uma
junção que resultou na apropriação de elementos pertencentes no “todo”. Deste modo,
a experiência do pós-contato no aldeamento pôde ser observada sob duas óticas:
a) do lado cristão: Os luso-nacionais, fora de seu meio de origem são obrigados
a adaptar-se pela aquisição de referenciais indígenas, criando classificações
hierárquicas - não excludentes e binárias – que levaram a um esquema de
‘inclusão subordinada’ – e não de exclusão.
b) do lado indígena: Os índios, desmantelados por guerras de conquista,
também sofreram a invasão de elementos e conceitos - cristianização - e
tiveram que buscar novos referenciais. A “aceitação” e “rendição” indígena
frente às normas cristãs, podem ser vistas como um fato que deixou raízes
da dinâmica das próprias sociedades indígenas. Por um lado observa-se a
estreita relação de índios com o aldeamento a fim de ascender socialmente
no interior do grupo. Por outro os índios buscaram ascensão social através
de relações “mistas”, ultrapassando assim as fronteiras do aldeamento.
Do mesmo modo, Tommasino ainda reflete que sob a aparência de uma
“integração” e uma “assimilação”, podem estar escondidos representações e símbolos
que revelam que o universo Kaingang continuou sendo reproduzido ao longo do
52
tempo, se modificando pelo contato, mas sem perder sua especificidade78. E deste
modo os Kaingangs continuaram e continuam a ser Kaingangs.
78 TOMMASINO, Op. cit., p. 216.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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