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DANIEL SANTANNA LIMA
A FRONTEIRA ÉTNICA ENTRE HELENOS E PERSAS NO SÉCULO IV A.C: UMA LEITURA DA ANÁBASE DE XENOFONTE
RIO DE JANEIRO
2012
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA
ANTIGA E MEDIEVAL LATO SENSU
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DANIEL SANTANNA LIMA
A FRONTEIRA ÉTNICA ENTRE HELENOS E PERSAS NO SÉCULO IV A.C: UMA LEITURA DA ANÁBASE DE XENOFONTE
Monografia apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do Certificado de Especialização em História Antiga e Medieval - Lato Sensu.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Regina Cândido Co-orientador: Prof. Ms. Alair Figueiredo Duarte
RIO DE JANEIRO 2012
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FICHA CATALOGRÁFICA
LIMA, Daniel Santanna. A fronteira étnica entre helenos e persas no século IV a.c: uma leitura da Anábase de Xenofonte. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. 74 f.: Monografia do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval Lato Sensu apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Regina Cândido Co-orientador: Prof. Ms. Alair Figueiredo Duarte. Palavras-chave: Etnicidade. Fronteira Étnica, Grécia Clássica, Ésquilo, Xenofonte, Anábase.
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Dedico este trabalho à minha mãe Eliane, que sempre me incentivou e me apoiou em todos os obstáculos e compartilhou da minha felicidade em todas as vitórias.
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AGRADECIMENTOS
Não vejo forma mais justa de iniciar agradecendo àqueles que se
empenharam durante o ano inteiro para que pudéssemos concluir nossos projetos,
alcançando resultados satisfatórios: a equipe e o corpo docente do Núcleo de
Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(NEA/UERJ).
Vale registrar aqui um agradecimento especial à minha orientadora, Profª
Drª. Maria Regina Cândido pela dedicação, e acima de tudo pela paciência
durante o processo de elaboração e produção deste trabalho, e ao meu co-
orientador, Prof. Ms. Alair Figueiredo Duarte, pelos valiosos ensinamentos tanto
no tocante ao Mundo Helênico, quanto no que tange à prática da pesquisa.
Gostaria também de registrar minha profunda gratidão ao Prof. Ms.
(atualmente doutorando) Alexandre de Paiva Rio Camargo - meu Grande Mentor -
pelos valiosos ensinamentos históricos e filosóficos sobre o Antigo Mundo
Helênico, além do fornecimento de material especializado e atualizado.
À Profª Drª Rita Codá, que além de me proporcionar o contato muito maior
com a cultura grega, me fez compreender a real importância do seu legado e
valorizá-la ainda mais.
Ao meu primeiro Mestre em História Antiga e orientador durante a
graduação, Prof. Dr. José Francisco de Moura, por ter me proporcionado o
primeiro contato com a Grécia Antiga e me possibilitado o encantamento por esta
cultura, justamente por lecionar de forma tão envolvente. Mestre Moura, muito
obrigado!
À minha mãe Eliane e ao seu esposo Eugenio, pelo apoio e pelo carinho
que tanto me motivaram ao longo deste percurso.
Ao meu pai, Olavo e à sua esposa Silvia, pela presença e incentivo
constantes, além do apoio logístico tão importante e necessário para a conclusão
deste projeto.
À minha noiva Liliany, pelo amor, pelo carinho, pela paciência, pelo apoio e,
sobretudo, pela compreensão durante o período de produção desta pesquisa.
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Aos grandes mestres e amigos Prof. Ricardo José Gravino e Prof. Oscar
Saar Varejão, por todo o incentivo e conhecimento que compartilharam comigo e
que me possibilitou chegar até esta etapa, na longa caminhada do aprendizado.
Aos grandes amigos Profª. Ms. Ângela Vieira Maia e Prof. Dr. João Gilberto
Carvalho por todo o apoio, carinho e incentivo desde a graduação até o presente
momento.
Aos amigos do Grupo de Estudos em História Militar, do Centro de Estudos
Interdisciplinares da Antiguidade da Universidade Federal Fluminense
(GEHM/CEIA/UFF), coordenado pelo Professor Ms. (no momento doutorando)
Manuel Rolph Cabeceiras, minha gratidão “eterna como Roma”. Mestre Rolph,
Sandro, José Luiz, Hiram, à vocês meu muito obrigado pelo incentivo e por todo o
conhecimento que vocês compartilharam comigo.
Ao Laboratório de História Antiga do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHIA/IFCS/UFRJ) por promover
eventos que foram extremamente importantes para o desenvolvimento deste
trabalho, através da atualização e conseqüente refinamento das minhas reflexões.
Gostaria de registrar um agradecimento especial aos Professores Doutores. Fábio
de Souza Lessa e Regina Bustamante, e ao pesquisador Diego Rosas pelo
incansável trabalho de pesquisa e divulgação de trabalhos de qualidade em
História Antiga. Aproveito para agradecer também ao Prof. Ms. Alexandre Santos
de Moraes (atualmente cursando o doutorado na Universidade Federal
Fluminense), pela indicação de textos que foram de grande valia para esta
pesquisa.
Gostaria também de agradecer ao Prof. Ms. Guilherme Gomes Moerbeck,
cuja pesquisa contribuiu sobremaneira para este trabalho.
E finalmente, lembro aqui dos amigos de longa data, que direta ou
indiretamente contribuíram para a conclusão desta etapa: Meu primo Leonardo de
Freitas Gomes, Alessandro Laureano Leite, Leonardo Áreas da Silva, Matheus
Almeida Pereira, Matheus Santos... A lista é extensa e peço perdão áqueles que
não foram citados por uma triste falha da minha memória.
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“Mas para tudo há remédio e temos que nos safar do atoleiro, como gente de brio que somos. Em vez de nos deixarmos desmoralizar, tentemos com ânimo denodado a fortuna das armas. Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro”. (XENOFONTE, Anábase: III, 2, 11 – 16)
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RESUMO O presente trabalho tem como proposta verificar como se davam as relações de etnicidade entre helenos e persas no século IV a.C à luz do pressuposto teórico de fronteira étnica proposto pelo antropólogo norueguês Fredrik Barth. Para tal analisaremos a Anábase ou “A Retirada dos Dez Mil” de Xenofonte de Atenas e a compararemos com a tragédia Os Persas de Ésquilo, visando uma melhor percepção da influência dos diferentes contextos no Período Clássico helênico (séculos V e IV a.C.) no estabelecimento da fronteira étnica entre helenos e persas. Palavras – chave: Etnicidade. Fronteira Étnica, Grécia Clássica, Ésquilo, Xenofonte, Anábase.
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... . 9 CAPÍTULO I A HÉLADE DO PERÍODO CLÁSSICO E A IMPORTÂNCIA DA GUERRA .............................................................................................................. 13
I.1. A Hélade Clássica: um breve panorama ........................................................ 13
I.2. O Pan – Helenismo ............................................................................. 19 I.3. Os Helenos e a Guerra ............................................................ 22
CAPÍTULO II GUERRA E ETNICIDADE: UMA LEITURA DA TRAGÉDIA HELÊNICA ........... 28 II.1. Guerra e Etnicidade ...................................................................................... 28 II.2. Tragédia e Etnicidade ....................................................................... 33 II.3. A Etnicidade em Os Persas de Ésquilo ................................. 36 CAPÍTULO III XENOFONTE: A FRONTEIRA ÉTNICA ENTRE HELENOS E PERSAS NO SÉCULO IV a.C. ................................................................................................... 44 III.1. Xenofonte e o contexto do século IV a.C...................................................... 44 III.2. A Etnicidade em Xenofonte e a desqualificação da democracia ....... 47 III.3. A eusebeia como diferencial étnico em Xenofonte ................ 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 57
DOCUMENTAÇÃO .............................................................................................. 59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 59
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INTRODUÇÃO
A Hélade do período clássico (séculos V e IV a.C) viveu um momento
ímpar de sua História por diversos fatores, como a consolidação da democracia
em Atenas, e o surgimento da filosofia socrática. Contudo, é importante voltarmos
nossa atenção para os grandes conflitos que se deram neste período: o épico
confronto com o Império Persa, que contribuiu sobremaneira para a definição do
destino daquilo que hoje chamamos de Ocidente e a Guerra do Peloponeso, que
ao cabo de 27 anos pôs fim à hegemonia ateniense na Hélade, pois temos um
interessante foco de análise que é justamente o contato cultural entre estas
diferentes sociedades.
A relação entre helenos e persas denota uma dinâmica de construção do
Outro através de um constante “ressaltar discursivo” das diferenças culturais entre
Helenos e “bárbaros”. De acordo com François Hartog em sua obra intitulada “O
Espelho de Heródoto”, os autores helenos lançaram mão de mecanismos
discursivos de “inversão” dos seus próprios valores para construir a imagem do
Outro, estabelecendo uma diferença extrema do ideal helênico de conduta e
pensamento, isto é, uma alteridade radical, criando na realidade uma
“representação helênica às avessas”.
Nesse sentido, Ciro Flamarion Cardoso aponta não apenas para a
alteridade presente nos relatos gregos acerca do Outro, mas também para o
estabelecimento de uma fronteira étnica entre estes dois pólos, conceito proposto
por Fredrik Barth e que consiste na seleção de determinados elementos para
diferenciar quem constrói o discurso, daquele que é apontado como “o Outro”.
Contudo, ainda de acordo com Cardoso, a seleção de tais elementos está
intimamente ligada ao contexto histórico no qual se dá o contato entre as
comunidades ou grupos em questão. A partir destas leituras, surgiram diversas
interrogações acerca dos registros que retratam o contato entre helenos e persas,
posto que é notória a disforização destes últimos, em relatos produzidos durante o
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período das Guerras Médicas ou referentes ao próprio conflito, (como a tragédia
Os Persas de Ésquilo e as Histórias de Heródoto) onde são ressaltadas
principalmente a opulência e o descomedimento dos persas - sua natural
inclinação para a hýbris - , sua impiedade para com os deuses imortais, enquanto
que notamos uma linguagem muito mais “branda”, em termos de qualificações
acerca destes “bárbaros”, nos documentos produzidos posteriormente. Estariam
os respectivos contextos históricos diretamente ligados às mudanças na
representação acerca dos persas nos textos helênicos? Há como apontar essa
relação?
Vemos uma dinâmica diferente no que se refere ao discurso de
construção do “Outro” nas tragédias de Eurípides e nos textos de Xenofonte, por
exemplo, nos quais pode se observar, inclusive a “barbarização” de personagens
helênicas, que agem de modo ímpio, desonesto ou desonrado. Guilherme
Moerbeck, em sua dissertação de mestrado, aponta que as mudanças no contexto
histórico estão refletidas nas diferenças encontradas entre as obras dos três
grandes tragediógrafos, estabelecendo o que ele chama de “gerações da tragédia”.
É possível perceber uma nítida transição na obra de Eurípides, onde o
bárbaro, o estrangeiro e a mulher têm papel de destaque e não há uma inversão
direta como há em Ésquilo.
Sendo assim, optamos por analisar o período correspondente à primeira
metade do séc. IV a.C, imediatamente posterior á Guerra do Peloponeso,
caracterizado justamente pelo colapso do Império Ateniense frente à coligação de
póleis rivais lideradas por Esparta. Para tanto, utilizaremos a Anábase (ou “A
Retirada dos Dez Mil”) produzida na primeira metade do século IV a.C, cuja
autoria é atribuída à Xenofonte de Atenas.
Trata-se de um “relato de campanha” descrevendo a expedição de um
exército de mercenários helenos na Ásia, inicialmente recrutados a serviço de um
sátrapa persa (Ciro, o Jovem) que desejava destronar seu irmão Artaxerxes, então
soberano do Império Persa e posteriormente (após a morte de Ciro em combate) o
retorno destes homens à sua pátria, ou seja, à Hélade. Escolhemos este
documento justamente pela riqueza de informações que nos traz a respeito deste
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contato entre helenos e persas, além, é claro, de enquadrar-se cronologicamente
no período proposto para a pesquisa. Faz-se importante ressaltar também que
este exército de mercenários era composto por helenos de diversas póleis, o que
torna o relato um verdadeiro laboratório de etnicidade registrado, posto que
podemos observar com clareza a aplicação prática do conceito de etnicidade
embutida .
Partimos da proposta teórica do Antropólogo Fredrik Barth, desenvolvida
em sua tese de doutoramento, cujo primeiro capítulo consta na obra O guru, o
iniciador e outras variações antropológicas e segundo a qual as fronteiras étnicas
podem variar de acordo com as circunstâncias nas quais se dá o contato entre
duas comunidades, ou seja, de acordo com a conjuntura, o que Ciro Flamarion
Cardoso, citando o próprio Barth, denominou contexto relacional (CARDOSO: 2005.
pp. 182 -183), que estará refletido nos discursos acerca deste contato. Cardoso
aponta ainda um conceito de vital importância ligado à questão das fronteiras
étnicas proposto por Jonathan Hall, denominado nested ethnicity, (na tradução
feita por Cardoso: “etnicidade embutida”), que nos permite visualizar diferentes
níveis de etnicidade presentes em um mesmo grupo ou comunidade e que se
manifestam de acordo com as circunstâncias nas quais se dá o contato com outro
grupo étnico (CARDOSO, 2002: passim).
Operacionalizaremos a grade metodológica de análise do conteúdo de A.
J. Greimas, a qual nos permitirá identificar elementos que denotem a construção
de uma fronteira étnica e de uma “etnicidade pan-helênica”. Os trechos analisados
apresentam preceitos religiosos respeitados e praticados por helenos de diversas
póleis da Hélade (em especial os sacrifícios antes das batalhas, grandes
deliberações ou verificação de auspícios) que compunham o exército mercenário
que protagoniza o relato. Selecionamos também trechos que apontam práticas
esportivas e formação de assembléias com exercício do voto antes de qualquer
decisão, características associadas ao pan – helenismo. Aplicaremos a mesma
metodologia em um trecho da tragédia Os Persas de Ésquilo, que relata o sonho
da mãe de Xerxes, a rainha Atossa, apresentando a construção de uma imagem
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literalmente inversa ao arquétipo de virtude helênico, isto é, de opulência,
desmedida e tolerância á escravidão.
Temos como objetivos nesta pesquisa:
Verificar a diferença entre os discursos helênicos acerca dos persas
através de uma análise da Anábase de Xenofonte de Atenas.
Analisar o contexto político ateniense do século IV a.C., relacionando-o
com o autor da obra.
Apontar as manifestações dos diferentes níveis de fronteira étnica
presentes no texto de Xenofonte.
Estabelecer uma comparação das impressões coletadas no relato de
Xenofonte acerca dos persas com as impressões encontradas na tragédia
Os Persas de Ésquilo.
Observando que num primeiro momento (Guerras Médicas) temos uma
pólis democrática em ascensão, enquanto que imediatamente após a Guerra do
Peloponeso vemos uma democracia em colapso, propomos a hipótese de que
estes contextos interferiram diretamente nas construções textuais acerca dos
bárbaros, sobretudo dos persas, quando foram produzidas.
Propomos também que o contato entre os soldados-cidadãos da Ática e
os soldados mercenários estrangeiros, influenciou sobremaneira no
estabelecimento da fronteira étnica, de forma que a identidade helênica se
mantém através da manutenção de alguns elementos essenciais para a
diferenciação dos grupos étnicos em questão (no nosso caso, helenos e persas).
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CAPÍTULO I
A HÉLADE DO PERÍODO CLÁSSICO E A IMPORTÂNCIA DA GUERRA
I.1) A Hélade Clássica: um breve panorama.
Diversas vezes ouvimos falar em cultura clássica, legado clássico, literatura
clássica, e inevitavelmente, em Grécia Clássica. Aprendemos sobre a beleza das
artes plásticas (leia-se esculturas e construções) produzidas em Atenas durante o
governo de Péricles, sobre a democracia ateniense, e de forma um tanto
superficial sobre os textos da filosofia socrática, principalmente os produzidos por
Platão e Aristóteles. Mas afinal, será que temos uma idéia bem definida do que
era a Grécia Clássica? O nome “Grécia” atualmente nos remete á idéia de um país
de língua unificada, mesma moeda, mesma cultura e um governo centralizado, à
semelhança dos diversos Estados Nacionais que estudamos nos livros didáticos
durante o Ensino Básico. Contudo, se observarmos atentamente os textos
produzidos na Atenas Clássica, notaremos que a nossa concepção
contemporânea de Estado dificulta uma percepção mais clara do que era o mundo
grego durante o período Clássico (séculos V e IV a.C). Para início de conversa: Os
gregos nunca se autodenominaram dessa forma, e para eles, até hoje, sua terra
não se chama Grécia. Somos herdeiros de uma tradição latina, que nomeou povos
e territórios de acordo com a necessidade e/ou conveniência. O que conhecemos
hoje como “Grécia” era (aliás, até hoje é) chamado pelos seus habitantes de
Hélade (daí o título propositalmente provocante deste capítulo) e incluía também
algumas cidades e ilhas do litoral da Ásia Menor (costa da atual Turquia), sendo,
portanto, seus habitantes conhecidos como helenos. Apesar de parecer mera
convenção, devemos atentar para este detalhe se quisermos tentar compreender
um pouco mais o funcionamento desta sociedade tão distinta e temporalmente tão
distante da nossa:
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Os Gregos, no seu próprio idioma, nunca se apelidaram “gregos” [o termo deriva do nome que os romanos lhes davam: Graeci]. Nos tempos micênicos, parece que eram conhecidos como Aqueus [segundo registros de seus contemporâneos Hititas], um dos vários nomes que ainda conservam nos poemas homéricos, a mais antiga literatura grega. No decurso da Idade das Trevas, ou talvez no seu final, o termo „helenos‟ substituiu todos os outros e “Hélade” passou a ser o nome coletivo para designar o conjunto dos gregos. Atualmente, Hélade é o nome dum país, tal como frança ou Itália. Na antiguidade, contudo, nada existia de comparável a que os helenos pudessem chamar “o nosso país”. Para eles, a Hélade era essencialmente uma abstração, tal como a cristandade na Idade Média, ou o “mundo árabe” atualmente, porque os gregos antigos nunca tiveram unidade política ou territorial. (FINLEY, 1988: 14 – 15)
É de suma importância quebrarmos de imediato a idéia de unidade que
temos quando pensamos em Estado Grego. O Mundo Helênico do período
clássico não era de forma alguma “centralizado” em termos de poder político, pois,
havia na Hélade diversas Cidades-Estados, denominadas pólis (plural = póleis)
que se autogovernavam, independentemente umas das outras. Também é
indispensável lembrar que ao falarmos sobre Hélade Clássica (agora já sabemos
que esse termo é mais apropriado), estaremos na realidade falando, quase
sempre, em Atenas Clássica (não é mera coincidência que os dois documentos
que utilizaremos neste trabalho sejam de origem ateniense!), isto porque em
termos de documentação textual, a produção ateniense é incomparável no mundo
helênico. Atenas nos legou textos das mais diversas naturezas: filosofia, registros
de discursos e práticas jurídicas (embora o campo do Direito tenha um destaque
maior na cultura romana), economia, poesia – sendo inclusive o berço da
dramaturgia (leia-se Teatro, cuja expressão máxima foi a tragédia, assunto muito
caro à nossa pesquisa e do qual trataremos no capítulo seguinte). A historiadora
Lisa Kallet aponta que este predomínio, também se deve ao imperialismo 1
ateniense durante o século V a.C:
1 Imperialismo: expansão violenta por parte dos Estados, ou de sistemas políticos análogos, da
área territorial da sua influência ou poder direto e formas de exploração econômica em prejuízo dos Estados ou povos subjugados, geralmente conexas. Embora este fenômeno se ache manifestado sob formas e modalidades diversas em todas as épocas da história, esta expressão é relativamente recente. Ela se impôs pela primeira vez na década de 1870, na Inglaterra vitoriana,
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Atenas domina las narraciones políticas y militares del siglo V en un grado muy superior al de los períodos anteriores y posteriores de la historia griega. Ello no se debe tan solo a la concentración de fuentes e información con origen o destino en la capital ática, sino también a que los atenienses crearon el primer império de Occidente, lo cual fue afectando progresivamente a las otras póleis del mundo griego (de forma más o menos indirecta) y terminó por conducir a la guerra del Peloponeso. (KALLET, 2000: 191)2.
Graças às obras produzidas em Atenas temos informações detalhadas a
respeito do processo de transformação da Hélade Arcaica, dominada pelas
aristocracias guerreiras, no mundo políade do qual trataremos nesta pesquisa.
Este processo pode ser observado quando analisamos a trajetória da pólis
ateniense, que até o século VI a.C sofria com a questão da má distribuição de
terras e recursos, e, portanto, da concentração de riqueza e poder na mão de
grupos familiares que se legitimaram através da vinculação à figuras da tradição
mítica, para atestar uma suposta origem divina. Inicialmente legisladores tentaram
dar conta da questão, com reformas significativas como as de Drácon, que proibiu
a vingança por crimes de sangue – recurso largamente utilizado pela aristocracia
dominante – e posteriormente, as reformas feitas por Sólon, que proibiu a
escravidão por dívidas – antiga mazela que submetia ainda mais os camponeses
às famílias aristocráticas – e dividiu a população em “classes censitárias”, dando
acesso a uma parte maior da população às chamadas magistraturas, não ás mais
altas evidentemente, mas, de qualquer forma promovendo acesso á outras
camadas até então alijadas do processo político. Solón semeava assim o gérmen
da tão importante e decisiva democracia, que seria consolidada por Clístenes
sendo usada para designar a política de Disraeli, que objetivava robustecer a unidade dos Estados autônomos do império, ou seja, criar a imperial federation. Mas é só pelos fins do século XIX que se inicia o estudo sistemático dessa série de fenômenos, isto é, só então surgem as primeiras teorias sobre o Imperialismo, dando origem a uma seqüência de análises que nunca deixaram de se desenvolver, em quantidade e qualidade, até hoje. (BOBBIO, apud DUARTE, 2011: 67). 2 “Atenas domina as narrações políticas e militares do século V em um grau muito superior ao dos
períodos anteriores e posteriores da história grega. Isso não se deve tão somente à concentração de fontes e informação com origem ou destino na capital ática, como também ao fato de que os atenienses criaram o primeiro império do Ocidente,o qual foi afetando progressivamente as outras póleis do mundo grego (de forma mais ou menos indireta) e terminou por conduzir à guerra do Peloponeso.” (tradução livre – grifos do autor).
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posteriormente, com a ampliação radical da participação popular na política. Vale
abrir aqui um breve parêntese para lembrar que este processo se fez acompanhar
de crescentes divisões no seio da própria elite aristocrática, que degeneravam em
conflitos armados graças à ação de indivíduos que ambicionavam tomar o poder e
concentrá-lo em suas mãos. Esses fatores conjugados permitiram o aparecimento
de uma figura muito importante no processo de estabelecimento da polis: o tirano.
Moses Finley fez algumas colocações interessantes a esse respeito:
[...] originariamente, „tirano‟ significava o fato de um homem se apoderar do poder sem ter autoridade constitucional legítima (diferente de um rei); [o termo] não continha juízo de valor sobre suas qualidades pessoais ou de governante. [...] Contudo, o poder militar sem controle era um mal inerente; se não na primeira geração, então na segunda ou na terceira, os tiranos tornavam-se habitualmente naquilo que a palavra agora exprime3. (FINLEY, Op. Cit: 36).
Posteriormente houve constantes lutas para retirar o poder concentrado nas
mãos dessa aristocracia e distribuí-lo entre todos os cidadãos através do acesso
às magistraturas e outros cargos políticos. O historiador francês Jean Pierre
Vernant propõe que a partir de então teremos a imposição da lei como elemento
estabilizador e ordenador, a qual todos os cidadãos estariam submetidos e seriam
considerados iguais, dado que “o poder dos indivíduos deve inclinar-se diante da
lei do grupo.” (VERNANT, 1977: 68). Isto é bastante nítido no comportamento dos
hoplitas4, classe de guerreiros que compunha a infantaria pesada e que defendia
as póleis helênicas em campo de batalha. A falange hoplítica seria a síntese de
como funciona o igualitarismo helênico no período clássico, pois cada soldado tem
exatamente a mesma importância dentro do corpo do exército e se algum deles
abandonar o seu posto dentro da formação, todo o conjunto estará comprometido:
3 Entretanto, houve tiranos que foram louvados pela boa forma de governar, como foi o caso, por
exemplo, de Pisístrato em Atenas. Convém também ressaltar que a tirania era uma instituição efêmera, pois era comum o uso da força e do despotismo por parte do governante, para se manter no poder, o que ocasionava a sua deposição. 4 O termo hoplita é derivado de hóplon, nome dado ao grande escudo arredondado que os
guerreiros helenos utilizavam em combate.
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[...] o hoplita já não conhece o combate singular; deve recusar, se se lhe oferece, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira [...] é feita de sophrosyne: um domínio completo de si, um controle para submeter-se a uma disciplina comum, o sangue frio necessário para refrear os impulsos instintivos que correriam o risco de perturbar a formação. (VERNANT, 1977: 67)
Ainda de acordo com Vernant, utilizando uma abordagem voltada às
estruturas mentais, na linha da Antropologia Histórica, havia um “anseio” de
igualdade na população de Atenas que vai se materializando gradativamente em
um processo que se inicia no século VIII e atinge seu zênite no século V a.C.
(considerado início do período Clássico). Na perspectiva adotada por Vernant, o
processo de democratização na Atenas clássica seria o produto de uma gradual
mudança no quadro mental da sociedade ateniense, sendo as reformas de
Clístenes, nesse sentido, os grandes elementos que consolidarão essa mudança
através de uma organização homogeneizante do espaço cívico. Vernant ressalta
que há uma ruptura com o antigo modelo de relações sociais baseado nas
tradições ancestrais gentílicas5 de cunho fortemente religioso, onde há uma nítida
hierarquização que restringe o comando da comunidade a um pequeno grupo de
homens “bem nascidos”. Um dos elementos que atestariam essa mudança seria a
nova organização espacial, cujo principio é territorial (e não mais gentílico). Além
disso, temos a instituição do calendário pritânico (cívico) homogêneo, baseado na
divisão das tribos e que passaria a ocupar o lugar do antigo calendário religioso, e
finalmente a adoção de um sistema de numeração decimal (acrofônico), por já ser
de conhecimento público, diferente do tradicionalmente usado que era duodecimal,
que muito provavelmente era mais conhecido pela elite (VERNANT, 1990: 286) 6.
5 Baseadas no genos, ou seja, família aristocrática, que se julgava descender de um herói ou de
um deus. Família estendida, patriarcal, em que vários casais/núcleos conviviam sob a autoridade de um único chefe. 6 É evidente que esse processo não se deu de maneira uniforme em todas as póleis (já dissemos
que o caso ateniense é o mais abordado pela historiografia), pois Esparta ainda mantinha elementos monárquicos. (dupla realeza) e oligárquicos (gerousia) Porém, vale ressaltar que esses elementos já não representam o mesmo poder que antes representavam no período homérico,
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Analisando a questão por outro viés, Luciano Canfora aponta que o
acesso á cidadania, ou seja, o alargamento da participação política estava
diretamente ligado à capacidade de armar-se para exercer o poder, ou seja,
cidadão era aquele que podia ser soldado. Contudo é necessário lembrar que era
extremamente dispendioso possuir os equipamentos necessários à indumentária
do guerreiro, ou seja, o combatente era sempre um “possidente”, pois, podia
armar-se às próprias custas. Temos então, que a cidadania era uma “condição”
acessível apenas aos ricos que combatiam na frente de batalha e que, portanto,
há dois fatores importantes: o bélico e, conseqüentemente, o econômico. Ainda
segundo Cânfora, essa situação começará a mudar radicalmente em Atenas com
a expansão da marinha (ligada principalmente ao aspecto bélico), quando a
“classe” (se é que podemos chamar assim sem cometermos anacronismo) dos
marinheiros, por sua importante contribuição para a defesa da pólis teve o acesso
á cidadania, mesmo, não sendo uma classe de “possidentes” (CANFORA, 1994:
112). A esse respeito, temos um interessante comentário feito por Nicole Loraux
(baseado em um trecho das Helênicas de Xenofonte), no qual faz alusão a um
certo Teramenes, membro do grupo dos Trinta Tiranos 7 , que defendia uma
posição “moderada” no tocante ao funcionamento da democracia e cujo
pensamento parece encaixar-se perfeitamente no raciocínio defendido por
Canfora. Loraux aponta ainda, na mesma nota de rodapé, que “tratar-se-ia, então,
de afastar da cidadania a última classe censitária, a dos tetas, que têm apenas a
sua força de trabalho como riqueza. Com isso, livrar-se-ia da fração mais
democrática do demos.”. Temos então que esta era uma visão defendida por um
grupo e não um consenso. Vejamos o trecho para uma melhor compreensão da
questão:
pois existe um equilíbrio social, onde uma instituição contrabalança o poder da outra. Os reis espartanos não possuíam plenos poderes, pois eram submetidos á vigilância dos éforos e punidos, se fosse o caso, como qualquer cidadão comum: “[Em Esparta] A ordem social já não aparece então sob a dependência do soberano: já não está ligada ao poder criador de um personagem excepcional, à sua atividade de ordenador. É a ordem, ao contrário, que regula o poder de todos os indivíduos, que impõe um limite à sua vontade de expansão. A ordem é primeira em relação ao poder.” (VERNANT, 1990: 71 - 72). 7 Movimento oligárquico que instaurou uma tirania em Atenas após a Guerra do Peloponeso.
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[...] Teramenes, muito louvado pelos “moderados” tais como Arquinos, porque, embora pertencente aos Trinta, soubera se opor á Crítias, partidário da linha rígida – face aos oligarcas duros, que distribuíam entre si os bens dos metecos assassinados e preconizavam uma redução drástica do corpo cívico, Teramenes pregava uma redução mais discreta, que reservaria a cidadania “àqueles que estão em condições de defender a cidade com seu cavalo ou seu escudo”.(LORAUX, 1993: 18)8
I.2) O Pan – Helenismo.
Devemos atentar ainda para o fato de que havia na Hélade uma cultura
comum. Embora se vissem como comunidades independentes, as póleis da
Hélade possuíam, além da língua, costumes semelhantes, especialmente no
tocante à religião. Havia um panteão comum, sustentado por uma mitologia aceita
por toda a Hélade como referência religiosa e “territorial”, dado que diversos locais
receberam o nome de personagens míticos, sobretudo heróis, presentes em
narrativas transmitidas oralmente através de gerações 9 . Isso é o que a
historiografia chama de Pan – Helenismo. Interessante verificarmos o que Claude
Mossé nos diz a respeito:
Fala-se, amiúde, de civilização, de história da Grécia. Na verdade os gregos possuíam o sentimento de pertencer à mesma comunidade, e esse sentimento devia se firmar, de modo especial, durante as lutas em que se opuseram aos
8 Vale lembrar que quando pensamos no mundo helênico, não podemos olvidar que
política e religião cívica estão intimamente ligadas. Sendo assim, outra forma de verificar o impacto deste processo de alargamento da cidadania e conseqüentemente a redução das prerrogativas aristocráticas é observar o reflexo das mudanças no campo religioso. O helenista André Bonnard traz uma idéia interessante de como isso se deu, com a gradativa “humanização” da religião helênica: “Na verdade, a religião ao humanizar-se, laiciza-se. O Estado e os deuses formam, a partir de então, uma unidade indissolúvel. Os templos erguidos em Atenas por Pisístrato, mais tarde por Péricles, celebram não menos que a glória dos deuses, a glória da comunidade que os construiu e, no segundo caso a glória da metrópole do Império. O sentimento religioso cede aqui o lugar ao patriotismo e ao orgulho dos cidadãos por oferecerem à divindade monumentos tão esplêndidos, pretexto de festas deslumbrantes e objeto de admiração do mundo Mas, ao identificar-se com o orgulho cívico, a religião dos deuses humanizados de novo se afasta do coração do homem, e engrandece-o menos do que ele pensa.” (BONNARD, 1980: 150 – 151 – grifo do autor).
9 Um exemplo simples e ilustrativo é o atual Estreito de Gibraltar que recebia o nome de “Colunas
de Heracles”.
20
bárbaros. Falavam a mesma língua, adoravam os mesmos deuses, compraziam-se com os mesmos exercícios físicos e espirituais. Todavia, cada cidade constituía um Estado autônomo, e havia grandes diferenças entre elas. (MOSSÉ, 1997: 05.)
Esta “noção de pertencimento” à uma comunidade helênica, para além do
nível políade mais circunscrito e particularizado pode ser observada em diversas
práticas sociais. Dentre estas práticas, merecem especial atenção aquelas que
tangem à questão dos ritos religiosos, das grandes festas e dos cultos de mistério
que atraíam pessoas de diversas regiões da Hélade á Ática, e da construção de
grandes santuários freqüentados por cidadãos de diversas póleis, sem falar da
prática oracular no Santuário de Delfos, caro á todos os helenos. Jean Pierre
Vernant nos traz algumas considerações interessantes:
De fato toda cidade tem sua ou suas divindades políades cuja função é cimentar o corpo dos cidadãos para fazer dele uma comunidade autêntica, unir num todo único o conjunto do espaço cívico, com seu centro urbano e sua chôra, sua
zona rural, velar, enfim, pela integridade do Estado – homens e território – diante das outras cidades. Mas, em segundo lugar, trata-se também, pelo desenvolvimento de uma literatura épica desligada de qualquer raiz local, pela edificação de grandes santuários comuns, pela instituição dos Jogos e das panegírias pan-helênicas, de instaurar ou de fortalecer no plano religioso tradições lendárias, ciclos de festas e um panteão igualmente reconhecidos por toda a Hélade (VERNANT, 2006: 41 – 42).
Além das celebrações religiosas, temos ainda as práticas esportivas como
uma profunda manifestação do sentimento pan-helênico - não devemos esquecer
que no caso dos helenos o esporte está completamente associado à religião –
cujo maior símbolo são os Jogos Olímpicos10. O historiador e professor Fábio
Lessa atenta para a importância das práticas esportivas enquanto elemento
promotor da civilidade e da solidariedade entre os cidadãos, além de servir à
10
Importante lembrar também dos Jogos Ístmicos em honra á Poseidon, que tinham lugar em Corinto e eram celebrados no início da primavera (abril/maio), no segundo e quarto ano posteriores às Olimpíadas.
21
construção e consolidação de uma identidade helênica em contraposição ao Outro,
isto é, ao bárbaro ou estrangeiro:
Na pólis, a prática esportiva é elemento de civilização, por isso, os não - gregos estão afastados dos jogos [...]. Elemento de civilização, de coesão social, de disciplina e de solidariedade, o esporte também é memória e festa [...]. Os atos rituais na pólis eram essencialmente públicos e realizados através de festas religiosas, permitindo o estabelecimento de uma solidariedade comum [...]. É uma recorrência constante na historiografia contemporânea a afirmação de que todo ato na pólis é um ato religioso. As práticas esportivas confirmam tal afirmação, pois elas se constituíam em um ritual religioso e aconteciam em um santuário. [...] podemos enfatizar que os jogos esportivos produziam a identificação social, marcando-se bem o eu e o outro; [...] materializavam a identidade sociocultural helênica; promoviam a situação de comunidade, de unidade (LESSA, 2005: 329; 333 – grifo nosso)
Por fim temos a guerra – e vale frisar que isto nos interessa bastante –
como um “fenômeno” pan-helênico por excelência, com uma série de “regras”
reconhecidas por todas as póleis da Hélade, inclusive tréguas que respeitam a
ocorrência dos Jogos pan-helênicos. De acordo com Jean-Pierre Vernant, as
póleis helênicas compartilhavam, além da língua, o mesmo sistema de valores,
sendo, portanto, rivais e não havendo uma “aniquilação do ser social e religioso do
inimigo”, posto que compartilham os mesmos preceitos religiosos, freqüentam os
mesmos santuários e acreditam nas mesmas divindades. Trata-se de uma
concepção agonística11 do mundo, segundo a qual tudo na natureza está em
constante conflito/disputa, que é partilhada pelos helenos em geral:
As cidades em guerra são „rivais‟: não há rivalidade senão entre semelhantes, reconhecendo os mesmo valores, se valendo dos mesmos critérios, aceitando entrar no mesmo jogo [...] os gregos não podem, como os hebreus, querer destruir os deuses do adversário, nem como os hititas ou romanos, atraí-los com trânsfugas para o seu lado, a fim de incorporar as forças religiosas do inimigo. Sendo os deuses comuns aos dois campos, são invocados como árbitros garantindo as regras que ambos os partidos devem
11
Do termo grego agôn, que podemos traduzir como conflito ou disputa.
22
igualmente respeitar [...]. Sob a forma de competição organizada, excluindo tanto a luta mortal para aniquilar o ser social e religioso do inimigo quanto a conquista para integrá-lo inteiramente a si, a guerra clássica é um agôn. Aparenta-se aos Grandes Jogos pan-helênicos onde a rivalidade se exerce segundo um roteiro análogo em muitos aspectos[...]. Toda operação militar deve ser suspensa enquanto durar a celebração dos Jogos (VERNANT, 1999: 37).
I.3) Os Helenos e a Guerra
Contudo, apesar do que acabamos de considerar, as póleis helênicas
freqüentemente entravam em conflito. Embora pareça paradoxal, eis aí uma
característica fundamental desse mundo que pretendemos conhecer: a guerra é
um fenômeno endêmico, ou seja, natural e constante, Para se ter uma idéia,
segundo Yvon Garlan, “a pólis dos atenienses de 490 a 338 a.C. guerreou dois, de
cada três anos” (GARLAN, 1991: 12). Podemos nos atrever a dizer sem receio que
o agôn era um dos elementos centrais na vida dos homens que constituíam essa
sociedade. Tamanha era a importância que os helenos atribuíam ao fenômeno da
guerra, que o classificaram em dois tipos, dando-lhes termos distintos: o conflito
interno – na própria pólis – ao qual chamaram de stasis, considerada o tipo mais
nocivo de conflito, dada a sua natureza fratricida (para nós hoje seria o mesmo
que “guerra civil”), e o conflito externo – contra outra pólis ou outras sociedades
não helênicas – denominado pólemos:
Em alguns casos, a guerra era criticada pelos antigos, mas esta crítica devia-se, sobretudo à forma, à conduta e ao momento mais oportuno de fazê-la [...] Logo, não se trata de julgar a guerra como boa ou ruim, isto seria uma simplificação do problema, mas, ao contrário, compreendê-la como um instrumento que está intrinsecamente ligado aos problemas políticos e tensões inerentes às póleis. A guerra direcionada contra outra cidade ou um povo bárbaro era denominada na Grécia Clássica, pólemos. Já a guerra civil, ou mesmo uma dissensão política, era chamada de stásis. Esta diferenciação é importante, pois, do ponto de vista político, a guerra contra o heleno de outra cidade, ou mesmo
23
contra o bárbaro, é regulada por uma comunidade. (MOERBECK, 2007: 106)
Dois episódios caracterizados como pólemos abalaram o mundo helênico
no período clássico. O primeiro destes confrontos se deu contra uma ameaça
externa de força incalculável, conhecida como Império Persa e passou á História
como o nome de Guerras Médicas, ou Guerras Greco-Pérsicas, através do
trabalho de fôlego empreendido pelo cronista Heródoto, “grego natural do que é
hoje o resort turco de Bodrum, então conhecido como Halicarnasso” (HOLLAND,
2008: 15), considerado por muitos como o “Pai da Historia”, por ter sido o primeiro
a estabelecer um método investigativo para construir suas narrativas ao invés de
recorrer à autoridade mítica das musas, como os antigos poetas-adivinhos
conhecidos como aedos ou, melhor dizendo, por ser o primeiro que se propôs:
[...] a rastrear as origens de um conflito sem o localizar nem num passado tão remoto, que se tornava algo fantasioso, nem o explicando pelos caprichos e desejos de algum deus, tampouco atribuindo a um povo que o reivindicasse como a manifestação de um destino a ser cumprido, mas, a partir de explicações que seria capaz de verificar pessoalmente (HOLLAND, 2008: 16)
O segundo confronto ocorreu entre as póleis de Atenas e Esparta e suas
respectivas aliadas, e ficou conhecido como “Guerra do Peloponeso”, tendo sido
registrada pelo historiador ateniense Tucídides.
Segundo Heródoto, o apoio marítimo ateniense às póleis da Jônia (mais
precisamente Mileto e suas aliadas) situadas no litoral da Ásia Menor que se
rebelaram contra o domínio persa teria sido o estopim que acionou a engrenagem
do grande confronto que opôs Helenos e Bárbaros no século V a.C. Deixemos que
o próprio Heródoto nos dê mais detalhes sobre como isso ocorreu:
“Enquanto deliberavam [os Atenienses] sobre a melhor resolução a tomar e eram caluniados entre os Persas, chegava à Atenas, a mais poderosa cidade então existente na Grécia, Aristágoras de Mileto, expulso de Esparta por Cleômenes, rei da Lacedemônia 12 . Apresentando-se à
12
Termo bastante utilizado pelos atenienses que designa a região onde se localiza a pólis de Esparta, ou seja, era usado como um sinônimo para Esparta. Logo, lacedemônio = espartano.
24
assembléia do povo, Aristágoras ali falou, como havia feito em Esparta, das riquezas da Ásia e da facilidade com que se poderia vencer os Persas, que não se serviam nem de escudos nem de lanças. A essas razões, acrescentou serem os Milésios uma colônia de Atenienses, sendo natural que os dali, dispondo de grandes recursos, tomassem a iniciativa de libertá-los. E, como tinha necessidade premente do auxílio dos Atenienses, não houve promessa que não lhes fizesse, conseguindo finalmente, persuadi-los da empresa [...] O povo de Atenas, aceitando as razões de Aristágoras, resolveu enviar vinte navios em socorro dos Iônios, tendo sido escolhido para comandá-los Melântio, muito estimado por todos os seus concidadãos. Essa frota acarretou uma série de males, tanto para os Gregos como para os bárbaros.” (HERÓDOTO: V, 97) .
Liderados numa primeira investida pelo Grande Rei13 Dario I em 490 a.C,
os persas surpreendentemente foram derrotados pelos helenos, em número muito
reduzido em relação aos primeiros, na batalha de Maratona (VI, 102 – 117). Dez
anos depois o filho e sucessor de Dario I, Xerxes, comandando um enorme
contingente, tentaria conquistar a parte continental da Hélade. Após um dramático
episódio ocorrido no desfiladeiro das Termópilas – localidade situada no caminho
para Atenas – no qual uma falange comandada pelo rei espartano Leônidas e
trezentos hoplitas, membros da sua guarda pessoal, ofereceu resistência ao
exército persa, mas devido á uma traição, os helenos foram cercados e
exterminados (VII, 202 – 234) – Xerxes, que destruiu diversas póleis a caminho da
Ática (VIII, 32), assim que chegou a Atenas, sitiou a cidadela e ordenou que o
templo fosse completamente incendiado (VIII, 53). Contudo, apesar do agravo e
do pânico, utilizando-se de astúcia os atenienses, sob o comando de Temístocles,
enviaram ao acampamento persa um suposto desertor que lhes forneceu uma
informação propositalmente falsa de que os helenos estavam se preparando para
a retirada com suas trirremes estacionadas nos estreitos da ilha de Salamina (VIII,
75). Os persas teriam ingenuamente “mordido a isca” e ido ao encontro das naus
helênicas que supostamente estariam em fuga, sendo maliciosamente
encurralados nos estreitos e tendo suas embarcações postas a pique pela
Vale notar que para se referirem ao dialeto falado pelos espartanos, os atenienses utilizavam o termo lacônio. 13
Título atribuído aos soberanos do Império Persa.
25
experiente marinha ateniense (VIII, 78 – 97). Derrotado na batalha naval de
Salamina, e posteriormente, tendo seus exércitos definitivamente aniquilados em
Platéia, Xerxes foi desmoralizado e retirou-se definitivamente (VIII – 107). Embora
possa parecer exagerada, a idéia de que este conflito ajudou a definir o que seria
o atual Ocidente é bastante plausível. Tom Holland apresenta algumas colocações
interessantes:
Como súditos de um rei estrangeiro, os atenienses jamais teriam a oportunidade de desenvolver sua cultura democrática única na história. Muito do que distinguiu a civilização grega teria sido abortado. O legado herdado por Roma e transmitido moderna Europa teria sido imensuravelmente empobrecido. (HOLLAND: 2008, p. 17)
Após o término do conflito com os persas, Atenas consolidou-se como pólis
hegemônica no Mar Egeu, e conseqüentemente na Hélade, com a criação de uma
“aliança defensiva” contra uma nova invasão persa (que nunca ocorreu), sob sua
liderança. Na condição de pólis mais bem estruturada em termos de poder naval,
a ela cabia administrar o tesouro comum da liga, a princípio depositado na ilha de
Delos – daí o nome “Liga de Delos”14 – e depois transferido em 454 a.C para o
território ateniense, onde poderia ser “aplicado” da maneira mais conveniente sem
empecilhos. A partir de então, os atenienses passaram a lançar mão de práticas
imperialistas, como o estabelecimento de clerúquias15 em póleis que tendiam à
sublevação, por exemplo. Atenas explorava os seus aliados, impondo-lhes
determinações que acabaram, na realidade, transformando-os de aliados em
súditos. Claude Mossé nos fornece detalhes interessantes sobre a ação
imperialista ateniense no Egeu:
14
Confederação de póleis sob a liderança de Atenas com a finalidade de garantir a segurança da Hélade contra as invasões dos persas. Os membros desta coalizão de póleis pagavam tributos a Atenas em navios ou em dinheiro. (DUARTE, 2011: 144) 15
Porções de terras confiscadas (kléros) em territórios aliados revoltosos após repressão. Essas terras eram distribuídas a cidadãos atenienses da última classe censitária (thetes) por sorteio, para que estes, outrora despossuídos, possam agora engrossar as fileiras de hoplitas, na condição de clerucos. Embora estivessem fora da Ática, os clerucos mantinham a condição de cidadãos atenienses, com todos os seus direitos assegurados, inclusive o sufrágio.
26
Essa sujeição manifestava-se não apenas pela presença de tropas atenienses, mas também de inspetores, episcopoi –
encarregados de resolver os litígios nascidos da aplicação dos tratados – e até de um arconte, verdadeiro governador ateniense imposto à cidade aliada. A dependência exprimia-se também pela obrigatoriedade [...] de submeter todas as pendências aos tribunais atenienses. Contudo, a marca mais ostensiva dessa subordinação, sem dúvida, era a obrigação de adotar os pesos, as medidas e a moeda atenienses. (MOSSÉ: op. cit, p.41)
A partir de então, uma série de ressentimentos contra os atenienses
tomou conta da Hélade, aumentando a animosidade e gerando uma torrente de
tensão que desembocou na formação de dois blocos antagônicos: a já
mencionada Liga de Delos, encabeçada por Atenas e a Liga do Peloponeso,
liderada por Esparta. Essas coalizões protagonizaram a Guerra do Peloponeso,
(narrada por Tucídides) que aniquilou a região da Ática durante toda a segunda
metade do século V a.C, destruindo a hegemonia de Atenas no Mar Egeu com sua
derrota na batalha naval de Egospótamos em 405 a.C, e a conseqüente ascensão
de Esparta como potência hegemônica na Hélade. Temos assim, um breve
panorama do que foi o século V a.C no tocante aos enfrentamentos militares,
partindo dos principais relatos acerca das duas grandes pólemos que ocorreram
durante esse período.
Como pudemos perceber, há um lugar de destaque para os textos que
tratam das questões militares, mais precisamente os textos relativos aos principais
conflitos ocorridos na Hélade Clássica, cujos autores são considerados até hoje
dois grandes expoentes da historiografia: As Histórias, de autoria atribuída à
Heródoto de Halicarnasso, e a História da Guerra do Peloponeso, escrita por
Tucídides de Atenas. Em sua obra Guerra e economia na Grécia Antiga, Yvon Garlan
faz algumas considerações importantes a esse respeito:
Com a época clássica (século V-IV) aumenta sensivelmente e se diversifica a documentação escrita e a não-escrita – mesmo se esclarece satisfatoriamente apenas a cidade de Atenas, assim como a de Esparta (em menor medida e de modo indireto). Doravante, a importância da guerra deixa-se, pois, apreciar com mais exatidão. Ainda mais que é a de maior destaque para os historiadores (como Heródoto, Tucídides, Xenofonte) que, um pouco á maneira de Homero,
27
não concebem outro assunto digno de memória e somente retêm da atualidade o desenrolar das operações militares (especialmente as grandes batalhas) e a política externa das cidades. (GARLAN:1991, p.12)
Justamente por essa presença tão forte do aspecto bélico na sociedade
helênica do período clássico, uma das formas mais interessantes de termos
contato com esse universo é observar as impressões destes homens a respeito
das guerras que travaram. Podemos dizer que através do confronto essa
sociedade definia a si mesma e construía a imagem do Outro, o bárbaro16, o
estrangeiro, aquele que não compartilhava dos mesmos elementos que
caracterizavam o pertencimento à pólis, ou, no caso de uma ameaça externa, à
própria Hélade.
16
Entendemos por bárbaro, um termo pejorativo para designar “indivíduos de fala engrolada, um balbuciado” (HOLLAND: 2008, p. 122)
28
CAPÍTULO II
GUERRA E ETNICIDADE: UMA LEITURA DA TRAGÉDIA HELÊNICA
II.1) Guerra e Etnicidade.
O campo de batalha pode ser visto como um laboratório étnico – cultural
por excelência, no qual temos a Guerra como um lócus privilegiado de análise,
cuja documentação nos fornece dados que permitem verificar como essas
comunidades se autodefiniam e quais elementos caracterizavam os indivíduos
como membros de determinada pólis ou da Hélade. A riqueza de dados acerca do
contato entre os helenos, sobretudo, atenienses, com homens de outras pólis,
etnias e/ou culturas muito diferentes, nos permite ter uma visão mais clara acerca
de como os helenos viam a si próprios e aos Outros:
Em situações de conflito, ocorre necessariamente algum tipo de choque das representações identitárias e classificatórias. Diz Pierre Bourdieu: “[...] os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a idéia que fazem de si mesmos, todo o impensado pelo qual se constituem como „nós‟ por oposição a „eles‟, aos „outros‟, a que se ligam mediante uma adesão quase corporal. Isto explica a força mobilizadora excepcional de tudo aquilo que tem a ver com a identidade.” (CARDOSO, 2005: 183)
Nas últimas décadas, a historiografia propôs-se a estudar esta questão
pela via da alteridade, observando os mecanismos discursivos utilizados pelos
autores helenos para construir a imagem do Outro. O principal expoente neste
campo é o helenista francês François Hartog, cuja principal obra chama-se “O
Espelho de Heródoto”. Segundo Hartog, há nos textos clássicos helênicos o que
se poderia chamar de uma “retórica da alteridade”, ou seja, o uso de mecanismos
discursivos que delineiam a imagem do Outro a partir de uma inversão da sua
própria identidade, estabelecendo uma diferença extrema do ideal helênico de
29
conduta e pensamento, isto é, uma alteridade radical, criando na realidade uma
“representação helênica às avessas”:
Trata-se de descobrir uma retórica da alteridade em ação no texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar alguns de seus procedimentos – em resumo, de reunir as regras através das quais se opera a fabricação do outro (HARTOG, 1999: 228).
A idéia de Hartog nos auxilia a compreender a “mecânica textual”, os
procedimentos discursivos dos helenos na construção dos Outros. Interessante
citarmos também a análise proposta por Catherine Peschanski, (partindo também
dos mesmos pressupostos sugeridos por Hartog), que aponta a questão do tempo
nas narrativas de Heródoto e Tucídides. Para a historiadora francesa, o tempo
“dos bárbaros” não é o mesmo estabelecido para os helenos:
Trata-se de mostrar, em suma, que tanto em Heródoto quanto em Tucídides, o tempo dos povos não gregos não é nem homogêneo ao dos gregos, nem intrinsecamente homogêneo, e que na organização desses desequilíbrios, suas duas obras encontram um de seus mais fortes parentescos, bem como a lógica comum de seus discursos – aparentemente inconciliáveis – sobre os Outros: a apreciação etnográfica e a esquematização que transformam os não-gregos, tornados os bárbaros ou o bárbaro, em puro instrumento crítico em um discurso dos gregos sobre os gregos. Uma esquematização que abre caminho para todos os jogos de deslizamento, de identificação, de inversão e de oposição nos quais os termos gregos e bárbaros são apenas uma maneira de pôr face a face os gregos tais como desejamos ou lastimamos que sejam e os gregos que
censuramos ou acusamos.(PESCHANSKI, 1993: 58)
Contudo, se analisarmos bem, veremos que não se trata apenas de uma
construção “estática”, de um simples processo de “inversão” discursiva do “Eu”. A
questão é muito mais dinâmica, e trata-se na realidade da construção de uma
identidade helênica baseada na seleção de uma série de elementos culturais que
diferenciavam esta sociedade de outros grupos e segundo os momentos sociais
em que estes elementos são acionados ou realçados. Neste sentido, muito mais
interessante para pensarmos a questão é a proposta teórica do Antropólogo
30
Fredrik Barth, segundo a qual há o estabelecimento de uma fronteira étnica, que
consiste na seleção de determinados elementos para diferenciar quem constrói o
discurso, daquele que é apontado como “o Outro”. No nosso caso, isso significa
dizer que para além da questão da alteridade, existe uma autopercepção étnica.
Poderíamos agora questionar acerca da viabilidade desta abordagem de cunho
antropológico em nossa pesquisa. A pergunta não seria de modo algum descabida,
(ao contrario, é de suma importância!) e na própria obra de Barth (“O Guru, o
iniciador e outras variações antropológicas”) temos uma ótima sugestão de como
isso é possível e produtivo:
O princípio da construção e da manutenção de uma identidade nacional não deveria ser diferente do funcionamento das fronteiras étnicas entre grupos pequenos [...]. Todos dispõem dos mesmos instrumentos para distinguirem-se. Afinal, construir uma identidade coletiva socialmente reconhecida é um processo que passa pelas mesmas etapas tanto em uma sociedade tribal quanto em um Estado Nação (BARTH, 2000: 20).
O aspecto mais importante e que contribui sobremaneira para nosso
trabalho é a ênfase que Barth dá á questão da mobilidade da fronteira étnica. De
acordo com o antropólogo norueguês, as fronteiras étnicas não são/estão de
forma alguma circunscritas a um território, mas são “móveis”. São diferenças
sociais estabelecidas pelo grupo, que circulam através dos contatos interculturais.
Notaremos isso claramente quando analisarmos a documentação nos capítulos
seguintes (em especial a Anábase de Xenofonte). Usando um termo da própria
obra de Barth, as fronteiras étnicas seriam algo “portátil”:
A necessidade da interação com o outro para reafirmar ou mesmo descobrir a própria identidade faz parte do exercício diário da Antropologia. Isso significa que a fronteira étnica em sua acepção mais extensa na verdade é livre dos constrangimentos territoriais, é algo „portátil‟ [...] As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa atenção são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter contrapartida territorial (IBID: 21; 34)
.
Percebendo de forma perspicaz a viabilidade de tal proposta no estudo da
Hélade Clássica, o professor Ciro Flamarion Cardoso publicou um artigo no qual
31
fez um “exercício” analisando a Anábase de Xenofonte (mesma documentação
que escolhemos para este trabalho) justamente por ser um relato de campanha no
qual a interação étnica entre os helenos e outros povos denominados como
bárbaros está presente constantemente.
A autopercepção étnica, a existência de um etnônimo comum e a percepção de “outros” como membros de uma ou mais comunidades étnicas diferentes são, acredito, elementos importantíssimos do próprio conceito antropológico e histórico de etnia [...] este próprio fato de acharem [os helenos] que integravam uma mesma comunidade constituía núcleo de peso na construção da etnia grega antiga, paralelamente à percepção da alteridade dos não-helenos, ou bárbaros. (CARDOSO: 2002, pp. 78 – 79).
Ainda de acordo com Cardoso, a seleção de tais elementos, e a
conseqüente autopercepção étnica está intimamente ligada ao contexto histórico
no qual se dá o contato entre as comunidades ou grupos em questão. No caso da
Hélade Clássica, o autor aponta que há um tipo de etnicidade específico, no qual
um mesmo grupo (no caso – os helenos) pode apresentar mais de uma identidade
étnica simultaneamente, de acordo com a ocasião. A este tipo de manifestação da
etnicidade, Cardoso, apropriando-se da proposta de Jonathan Hall, chama de
etnicidade embutida (nested ethnicity), propondo que esta se dá no mundo
helênico em três níveis distintos:
“[...] o menor de cada pólis, o intermediário das divisões dialetais associadas a diferentes mitos de origem (dórios, jônios, eólios, arcado-chipriotas) e o mais amplo [...], o conjunto dos helenos em oposição aos bárbaros. (Ibid., p.79)
Seguindo este raciocínio, perceberemos que as comunidades da Hélade
podiam variar de comportamento de acordo com as circunstâncias nas quais
ocorriam os conflitos, ou seja, a postura era diferente se a ameaça fosse externa
(um inimigo não – helênico). Por tratar-se de um combate a uma ameaça externa
(que não compartilha dos elementos culturais da Hélade), notaremos uma
alteridade radical no tocante ao contato entre helenos e persas, dado que a
32
diferença em relação aos bárbaros é muito maior se comparada a divergências
regionais ou singularidades políades. Dito de outro modo, as fronteiras étnicas
podem variar de acordo com as circunstâncias nas quais se dá o contato entre
duas comunidades, ou seja, de acordo com a conjuntura, o que o próprio Cardoso
denominou contexto relacional que estará refletido nos discursos acerca deste
contato:
A identidade social é da ordem da construção, mesmo quando baseada em dados objetivos; não é, no entanto, ilusória, não é algum fantasma dependente da pura subjetividade dos agentes e de suas escolhas. Ela produz efeitos sociais reais: é eficaz. Não há, porém, identidade social ou étnico - cultural em si, nem unicamente para si. A identidade envolve sempre uma relação com os outros: identidade e alteridade estão em relação dialética indissolúvel e necessária, pois a identidade depende de uma diferenciação tanto quanto de uma identificação. O processo construtor da identidade e dá sempre num contexto relacional [...] posto que, ao mudar a situação relacional, as formas de identificar os seus e diferenciar-se dos “outros” têm também de mudar, o que sugere circunstâncias e realidades em fluxo. (CARDOSO: 2005. pp. 182 -183)
Nossa proposta consiste, portanto, numa tentativa de apontar como se dá
essa seleção de elementos que diferenciam os helenos dos persas em dois
documentos que tratam de conflitos entre estas sociedades durante o período
clássico: A tragédia Os Persas, de Ésquilo e a Anábase (ou “A Retirada dos Dez
Mil”) de Xenofonte. Contudo é importante ressaltar a importância do papel de
Atenas na produção e veiculação de textos referentes ao processo de
transformação do mundo helênico, o que aponta desde já, que nossa análise
partirá, inevitavelmente, de um ponto de vista ateniense acerca dos persas. Vale
lembrar ainda, que mesmo entre os textos atenienses, o lugar de fala dos autores
é diferenciado, dado que um documento é um texto dramático produzido no século
V que trata das Guerras Médicas e o outro é um relato de campanha que data do
século IV, logo após o término da Guerra do Peloponeso. Além disso, sua
circulação/recepção se deu de forma diferente, posto que um é encenado para
toda a pólis e possui uma finalidade moral e pedagógica e o outro foi produzido,
33
muito provavelmente, para circular entre a aristocracia. Isto sem dúvida torna a
questão mais instigante, se atentarmos para o fato de que será possível observar
a relação entre o contexto de produção e a construção textual do outro nos textos
helênicos clássicos.
II.2) Tragédia e Etnicidade.
Dada a necessidade da comparação entre os textos (Os Persas e Anábase)
cabe aqui esclarecer rapidamente a especificidade do texto trágico e sua
importância para nossa análise. Para tal, recorreremos a uma breve citação do
historiador Julián Gallego, bastante elucidativa a este respeito:
A tragédia não é um texto, mas uma prática; é, pois, um discurso que estabelece relações discursivas com meios institucionais não discursivos. O olhar para a tragédia conduz à reflexão sobre a condição da cidade, sem ser, no entanto, uma alusão direta. [...] As tensões estabelecidas no texto, características dos discursos trágicos, estavam intimamente ligadas à maneira pelas quais [sic.] a cidade democrática construía sua identidade (GALLEGO, apud MOERBECK,
2007: 169)
Além da diferença funcional destes documentos, há uma diferença
temporal, o que significa que os contextos relacionais (vide capítulo anterior) são
diferentes e mudam completamente a imagem e a própria noção de fronteira
étnica apresentada nestes documentos. Este é um detalhe central para uma boa
compreensão de nossa proposta e não podemos jamais perder isto de vista ou
comprometeremos a análise.
Ainda no tocante ao texto trágico sabemos através de trabalhos como o da
historiadora francesa Jacqueline de Romilly e o de Guilherme Moerbeck, que há
diferenças entre o que ambos chamam de “gerações da tragédia”. Essas
diferenças existem principalmente porque há grandes mudanças nos contextos
nos quais esses tragediógrafos produziram seus trabalhos, e porque as idéias em
circulação diferiam muito de um momento para o outro. Em suma, porque os
contextos relacionais nos quais viveram e produziram eram diferentes. Romilly
relaciona as mudanças que ocorrem em Atenas durante o intervalo entre as
34
Guerras médicas e a Guerra do Peloponeso às mudanças na estrutura da
tragédia, destacando que a importância da atuação do coro, que era
imprescindível nas encenações das peças de Ésquilo foi diminuindo até que com
Eurípides praticamente desapareceu. A autora explica que isso aponta para uma
valorização maior da ação dramática em detrimento do elemento lírico, ainda
muito ligado á religião cívica tradicional.
[...] a tragédia grega, essa não deixou de inovar, de inventar; e só o seu impulso interior esclarece o sentido de uma estrutura à primeira vista desconcertante. Além do mais, isto é natural: o próprio gênero era uma invenção recente, que não dispunha de nenhum precedente nem de nenhum modelo. Por isso foi preciso soltá-lo, libertá-lo, aperfeiçoá-lo. Foi preciso adaptá-lo a interesses que se modificavam, a novas curiosidades que nasciam. De 472 a 405, sofreu o efeito de múltiplos impulsos, que se combinaram numa evolução quase contínua. Em particular, a importância relativa dos dois elementos constitutivos da tragédia – ação dramática e coros líricos – foi se modificando pouco a pouco, a ponto de se encontrar invertida. E esta modificação, produzindo conseqüências diversas acabou por se traduzir numa completa renovação [...] (ROMILLY, 1997: 27 – 28).
De acordo com Guilherme Moerbeck, há dois fenômenos ocorridos ao
longo do V século a.C que caracterizam claramente a mudança no quadro social e
mental em Atenas: “a consolidação das instituições da democracia ateniense e o
deslocamento dos pólos do mundo da filosofia, que se situavam na Magna Grécia
e na Ásia Menor, para a região da Ática” (MOERBECK, 2007: 177). Moerbeck
sugere ainda que há, além de uma “mudança geográfica”, uma “mudança no
conteúdo das reflexões”, isto é, ao invés de pensar a respeito da cosmologia e da
natureza, os filósofos da ática tinham como objeto de reflexão o homem e a pólis
(Ibid, Ibidem). É interessante apontar aqui uma comparação entre Eurípedes e as
gerações anteriores de tragediógrafos, estabelecida por Romilly, e citada por
Moerbeck em sua dissertação:
“Eurípides [...] pertence a uma outra época intelectual [...]. Aberto a todas as influências, ele que tinha a idade dos primeiros sofistas, reflete em seu teatro muito das novas idéias, dos novos problemas. Não conheceu a era gloriosa
35
das Guerras Médicas. A experiência que o marcou é, antes, a da Guerra do Peloponeso – uma guerra entre gregos que se deveria mostrar longa e ruinosa, antes de consagrar, depois de vinte e sete anos de lutas estéreis, a ruína do Império Ateniense. E a desordem em que se debatem as suas personagens provavelmente deve muito a esta atmosfera de desencanto” (ROMILLY, apud MOERBECK, 2007: 203).
Embora não tenhamos a pretensão de utilizar a obra de Eurípides em nossa
análise, esta colocação nos serve para ilustrar a diferença entre o momento no
qual Ésquilo escreveu, em seguida às Guerras Médicas17 - período caracterizado
pela consolidação da democracia e por um fortalecimento do pan-helenismo, em
virtude da necessidade dos helenos de marcar bem a diferença que os separava
dos Outros, [no nosso caso, leia-se: persas] – (MOERBECK, 2007: 114), e o
momento no qual Eurípides escreve - precisamente no auge da Guerra do
Peloponeso – que apresenta uma conjuntura helênica quase que diametralmente
oposta ao que havia na época das Guerras Médicas, posto que ao invés de
lutarem unidas contra um inimigo comum que era, diga-se, o “inverso” do cidadão
políade, as póleis digladiavam-se entre si, e Atenas, ao invés de resplandecer
como em Maratona e Salamina, via seu Império naufragar diante de seus olhos.
Aqui vemos expressa nitidamente a diferença entre dois contextos relacionais,
situações temporais distintas, que influenciam sobremaneira na construção da
fronteira étnica entre helenos persas, tratando-se portanto de uma questão de
etnicidade na qual a teoria de Barth se aplica. As informações fornecidas por
Moerbeck à respeito da obra de Eurípides nos ajudam muito a compreender esta
diferença contextual sem que precisemos ler suas tragédias ou as produzidas
pelas gerações anteriores à ele, isto porque o historiador nos traz uma
comparação assaz interessante entre o pan-helenismo ressaltado nas tragédias
de Ésquilo e uma outra visão da alteridade entre helenos e bárbaros apresentada
na obra de Eurípides, que tende a “barbarizar” os próprios helenos e “helenizar” os
bárbaros ao invés da tradicional “inversão” da imagem helênica, apontada por
Hartog e muito utilizada em Heródoto e Ésquilo:
17
Lembrando: Trata-se dos confrontos travados contra os persas, que eram chamados medos pelos helenos, daí o nome “Guerras Médicas”.
36
A Guerra do Peloponeso fez emergir uma nova geração de políticos, refletir uma geração de escritores e marcou uma geração de cidadãos. Em contraste com o pan-helenismo baseado em elementos selecionados, existente no tempo de Ésquilo, quando o inimigo falava a língua bárbara, vemos agora uma visão menos positiva dos próprios helenos. Nos últimos tempos da Liga de Delos já não havia pan-helenismo, mas tão somente os aliados sob tutela e pressão ateniense. A guerra era tão suscetível às contingências e casuísticas quanto a frágil noção de pan-helenismo, idealizada mediante a utilização de signos culturais e sustentada por bases demasiadamente débeis (MOERBECK, 2007: 120).
Esta digressão a respeito da obra de Eurípides e a comparação com a
produção de Ésquilo, tragediógrafo que selecionamos, se faz necessária a nosso
ver, para que possamos perceber com mais clareza como se dá a dinâmica no
processo de construção da fronteira étnica ente helenos e persas e sua relação
intrínseca com o contexto no qual os textos foram produzidos. A idéia aqui é
termos uma “prévia” do que encontraremos quando analisarmos a Anábase de
Xenofonte, documento produzido logo após o período no qual Eurípides escreveu
suas tragédias, isto é, no “pós- Guerra do Peloponeso” e a compararmos com o
texto esquiliano. Em Xenofonte veremos que também há uma estratégia de
identificação semelhante á encontrada nos textos de Eurípides, ou seja, de tornar
o bárbaro (no caso, “o persa”) “virtuoso” moralmente falando, “helenizando”
textualmente o Outro, ou então “desqualificando” as personagens helênicas em
alguns momentos da narrativa. Passemos à análise propriamente dita da tragédia
de Ésquilo que selecionamos.
II.3) A etnicidade em Os Persas de Ésquilo.
A tragédia Os Persas é um texto dramático, escrito logo após as Guerras
Médicas por um dos combatentes que estava presente no conflito, cujo tema é a
derrota sofrida pelas forças persas na batalha de Salamina (cerca de 480 a.C.) e a
recepção desta trágica notícia pela nobreza persa, que aguardava ansiosa em
Susa, uma das capitais do império. Nossa escolha, longe de ser gratuita, deve-se
37
a três razões particularmente interessantes, e que do ponto de vista histórico a
tornam singular:
1) De acordo com Mário da Gama Kury (cada uma das obras traduzidas
possui uma introdução escrita por Kury) 18 , Ésquilo participou dos
combates em Maratona (cerca de 490 a.C) e Salamina. Isso confere á
sua obra não apenas um caráter artístico, mas também documental
baseado (ainda que implicitamente) no testemunho ocular;
2) Ainda segundo Kury, se comparada às outras tragédias que chegaram
completas aos nossos dias, Os persas pode ser considerada a única
baseada em um acontecimento histórico, haja vista que as demais, em
geral possuem um mito como pano de fundo;
3) Embora seja possível encontrar referências da relação entre helenos e
bárbaros em diversos textos do período clássico (Heródoto, Tucídides,
Xenofonte, Eurípides, etc.), esta obra de Ésquilo trata exclusivamente do
caso persa, foco de nossa análise.
Sendo assim, analisaremos aqui alguns trechos desta obra que apontem de
forma bastante nítida alguns conceitos/valores presentes na construção textual
(retórica) dos helenos acerca de seus inimigos persas. A primeira coisa que
devemos ter em mente é que essa “construção” se dá através de um processo no
qual os helenos projetam na figura “do Outro” (no caso, os persas) o inverso dos
princípios que lhes são próprios (sua identidade). Na maior parte da tragédia,
veremos representada nas personagens persas a inversão do princípio
(poderíamos nos atrever a dizer) mais caro aos gregos que é o ideal da “justa
medida”, da sophrosyne, inversão essa chamada de hybris e caracterizada pela
arrogância, pelo descomedimento, pela perda do senso de equilíbrio, pelo excesso
em todas as suas formas.
18
Vale destacar que o documento que utilizamos está inserido em uma coletânea de tragédias traduzidas por Kury, que produziu para cada uma delas prefácios explicativos com um breve panorama histórico do período no qual foram produzidas e alguns comentários elucidativos sobre os tragediógrafos que as escreveram.
38
Por tratar-se de uma tragédia ainda um pouco “limitada” (se comparada às
obras de tragediógrafos posteriores como Sófocles e Eurípides), notaremos que a
maior parte da peça concentra-se em intervenções do coro (teor lírico), e
conseqüentemente, os trechos que contém as inversões podem ser encontrados
em várias dessas passagens. Logo no início, temos uma referência clara á
opulência e à suntuosidade (que será reforçada posteriormente em outros versos)
das construções e do próprio cotidiano dos persas, que para os helenos seria uma
das manifestações da hybris, do excesso:
[...] vigias da opulência de um palácio onde há imensa quantidade de ouro [...]
(ÉSQUILO, versos 4 e 5)
Acabo de sair do meu palácio ornado de ouro, abandonado a alcova onde dormi durante muito tempo com o rei Dario [...] Receio que nossa riqueza, hoje tão grande, desapareça e se transforme toda em pó [...]
(Ibid. versos 174 -176; 181-182)
Essa mesma opulência tende a ser reforçada nas falas da personagem
Atossa, esposa do falecido rei Dario e mãe do Grande Rei Xerxes (cujas decisões
insensatas - guiadas pela hybris - levaram o exército e o império persa à ruína).
Em diversos trechos, Atossa lamenta a impetuosidade do filho, sobretudo no
diálogo com o fantasma de Dario, que também culpará a insensatez do filho,
apontando-a como a causa do terrível incidente que aniquilou as forças persas:
Fantasma de Dario: Qual de meus filhos decidiu-se pela guerra?
Atossa: O impetuoso Xerxes, que deixou sem homens todas as regiões de nosso continente Fantasma de Dario: Foi por terra ou por mar que Xerxes se atreveu a cometer essa loucura inominável? [...] [...] sendo mortal, ele pensou em sua insânia que poderia enfrentar todos os deuses - até Poseidon! Quem poderá negar que uma doença muito grave dominou a mente de meu filho? [...]
39
[...] Xerxes crê em esperanças vãs deixando em território hostil tropas de elite. [...] lá os esperam os piores sofrimentos, prêmio de seu orgulho e de sua arrogância insultuosos às divinas potestades.
[...] que nenhum dos mortais deve ter pensamentos superiores à fragilidade humana. Ao amadurecer, a audácia sem limites produz apenas as espigas do pecado19, cuja colheita é um manancial de lágrimas. [...] Xerxes carece totalmente de bom senso; desejo que vossas benditas advertências lhe sirvam de lição e nunca, nunca mais ele resolva repetir suas ofensas às divindades, atrevendo-se a insultá-las! (Ibid, versos 922-924; 983-986; 1072-1113; grifo nosso.)
Interessante notar também, as diversas passagens que imputam à imagem
dos persas um caráter despótico, através do uso recorrente dos termos jugo e
grilhões, (geralmente acompanhados de adjetivos de conotação negativa como
odioso, penoso, impiedoso etc) e de alusões á práticas que remetem à
escravização com brutalidade, como o fato de Xerxes, numa atitude
completamente arrogante para os helenos, estender sob o Helesponto uma ponte
de barcos, que no imaginário grego é associada a idéia de “impor um jugo sobre o
mar” (nas Histórias de Heródoto, Xerxes – no auge de sua insanidade - teria
inclusive mandado açoitar as águas com chicote, para punir o mar por recusar-se
a manter a estabilidade que o Grande Rei desejava) . A idéia – chave é projetar
“nos persas” a oposição a outro ideal caríssimo aos helenos, que é o da
autodeterminação, da independência, da liberdade. Esta ideologia encontra-se
brilhantemente sintetizada na emblemática fala do mensageiro (quando este
responde a alguma indagações de Atossa acerca dos atenienses): “Eles não são
escravos de ninguém, nem súditos” (Ibid, verso 304). Há também um trecho 19
Sem intenção de questionar o excelente trabalho do tradutor, mas, fazendo uma pequena sugestão, talvez fosse mais acertado e/ou interessante traduzir o termo como “impiedade” ou “transgressão” ao invés de “pecado”, pois este último causa certa sensação de anacronismo se inserido no contexto da Grécia clássica.
40
bastante interessante, no qual Atossa relata o seu sonho aos conselheiros persas,
que parece perfeito para uma melhor ilustração deste “procedimento retórico”
utilizado por Ésquilo:
Eram irmãs do mesmo sangue mas moravam em pátrias afastadas, uma lá na Grécia, que lhe coube por sorte, e a outra em terra bárbara. A mim me pareceu que as duas discutiam; meu filho, percebendo o fato, quis contê-las, tentando pôr arreios no pescoço delas. Uma envaidecia-se desses petrechos e oferecia a boca docilmente ao freio, enquanto a outra debatia-se e afinal despedaçava com ambas as mãos o arreio com que Xerxes queria atrelá-la ao carro tirando-o de si com toda a sua força; pouco tempo depois ela rompeu a brida, partindo finalmente o jugo em dois pedaços.
(Ibid, versos 218 - 232)
Elementos como “açoite” e “jugo” são freqüentes nos textos helênicos que
se referem aos persas para qualificá-los como “escravos”. Esta associação
discursiva do “persa” com a escravidão é apontada e bem discutida pelo
historiador Peter Hunt, cuja análise foca principalmente a obra de Xenofonte, à
qual nos remeteremos mais adiante. Hunt mostra que Xenofonte corroborava o
discurso presente na obra de Heródoto (e de Ésquilo também) acerca dos persas,
que os apresenta como um povo “naturalmente” 20 inclinado a ser bárbaro. O
próprio fato de os persas serem governados por um senhor é suficiente para que
sejam qualificados como bárbaros, pois ter um soberano para um heleno é
sinônimo de “escravidão”, além de denotar covardia. Havia, de acordo com Hunt,
um “estereótipo do escravo” na Hélade clássica, cujos atributos eram a covardia, a
efeminação e a fragilidade. Vale lembrar que Xenofonte escreveu no século IV
a.C, e que ainda estamos tratando de Ésquilo, que produziu seus textos um século
antes. Entretanto, cremos que seja válido, já aqui, atentarmos para esta
“associação” do barbarismo com a escravidão:
20
Interessante verificar também A Política de Aristóteles, obra na qual o filósofo também discute esta questão. (ARISTÓTELES, Política: 1271b I –II.)
41
[…] slaves are anti-warriors: they are soft, feminine, non-Greek, and cowardly. […] Since Xenophon wrote in a variety of genres, he also provides our best evidence for the Greek stereotype of slaves as cowards in ancient Greece. […] Xenophon also corroborates our conclusions from Herodotus about the slavishness of the Persians. The Persians seemed natural slaves due to military inefficiency. In the Anabasis not only Xenophon, but Cyrus the Younger himself insists on the superiority of the Greek troops 21 . […] The Persians were already metaphorically slaves of their king. They also were inferior to the Greeks in terms of physical toughness. 22 (HUNT, 1998: 5, 158, 159)23.
Seria igualmente interessante citar aqui um comentário feito por Moerbeck
acerca deste mesmo trecho da tragédia – o sonho de Atossa - no qual destaca
elementos importantes e caros à nossa leitura do processo de construção da
fronteira étnica entre helenos e persas:
A primeira referência distingue as atitudes contrastantes de gregos e persas diante de um ato tendente a estabelecer a submissão; na segunda, além de uma provável referência indireta ao tamanho dos exércitos grego e persa, fica claro que, no nível simbólico, já estão marcadas as fronteiras étnicas (MOERBECK, 2007: 134)
Temos ainda um detalhe importante, que numa leitura mais “informal”,
poderia facilmente “passar despercebido”, mas que possui vital importância nessa
dinâmica da construção da figura dos persas feita pelos helenos que é a questão
dos costumes e ritos. No caso da tragédia que escolhemos, poderemos reparar
com relativa facilidade a recorrência do ato de rasgar as vestes em sinal de luto
21
Analisaremos esta passagem da Anábase mais adiante. 22 “Pela compleição dos nossos corpos, estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio, ao calor
e aos trabalhos. As nossas almas são também de têmpera mais rija; e com a ajuda dos Deuses, sob o nosso braço, os homens deles hão de cair como tordos, mais débeis e menos resistentes em tudo do que nós” (Anábase: III, 1, 139 – 145). 23
“[...] escravos são anti-guerreiros: eles são moles [frágeis], femininos, não-gregos, e covardes. Dado que Xenofonte escreveu em uma variedade de gêneros, ele também fornece nossa melhor evidência do estereótipo grego de escravos como covardes na Grécia Antiga. [...] Xenofonte também corrobora nossas conclusões [a partir] de Heródoto acerca da escravidão dos Persas. Os Persas pareciam escravos naturais por conta dá ineficiência militar. Na Anábase não apenas Xenofonte, mas o próprio Ciro o Jovem insiste na superioridade das tropas Gregas. [...] Os Persas já eram metaforicamente escravos do seu rei. Eles também eram inferiores aos gregos in termos de dureza [resistência] física.” (tradução livre).
42
e/ou desespero, além da intensidade assustadora das lamentações dos nobres
persas, realçada pelos gestos sugeridos para a encenação (bater com as mãos no
peito, gritar, etc.). Também temos estas referências em trechos do final da peça,
nos quais Xerxes incita os persas a rasparem a cabeça/arrancarem a barba (uma
forma de “mutilação”) e a lamentarem ainda mais intensamente (para agradá-lo!).
De acordo com François Hartog, Heródoto também menciona estas práticas
persas em sua obra, utilizando a expressão grega oimogê, (que seria algo
entendido como “gemidos infinitos”):
“Oimogê é sobretudo uma palavra do registro trágico mas,
cada vez que Heródoto a emprega, aplica-a aos persas. Os persas lançam gemidos infinitos quando Cambises se encontra doente. Quando em Susa, tomam conhecimento da derrota de Salamina, lançam “gemidos infinitos”; enfim, por
ocasião da morte de Masístio, cortam os cabelos e barbas, raspam a crina de seus cavalos e lançam “gemidos infinitos”
(HARTOG, 1999: 178 – grifo nosso).
Apesar de parecer óbvio o teor dramático destas lamentações (justamente
por tratar-se de um texto trágico), ele ganha um sentido muito mais profundo se
soubermos previamente que na Atenas clássica havia leis estabelecidas desde o
tempo de Sólon, que vedavam às mulheres a prática de tais lamentações
(incluindo as “mutilações” também comuns em funerais, como machucar a pele
golpeando-se), por considerá-las “práticas rudes e bárbaras” (Ibid, p.169). Daí o
hábito, citado por Kury em suas notas explicativas24, de contratar “carpideiras” de
outra região (neste caso os mísios) para lamentar nos funerais. Portanto, podemos
inferir (com certa dose de audácia) que o ouvinte heleno que assistia á essas
encenações associava imediatamente à representação das lamentações uma
“carga barbarizante”, que no seu universo semântico, se assim podemos dizer,
diferencia o grego do não-grego, logo, o persa/bárbaro.
Pensando em termos de etnicidade, entendemos que elementos como a
temperança, o comedimento e, não esquecendo que tudo isso tem uma forte
conotação religiosa, o respeito às divindades e às tradições cívicas - valores
24
Em sua nota de número 42 (referente à palavra Mísio), Kury aponta que: “Os habitantes da Mísia, na Ásia Menor, eram efeminados e conhecidos por suas lamentações ruidosas, a ponto de serem contratados para cerimônias fúnebres na Grécia”.
43
caríssimos aos helenos pelos quais Xerxes demonstra total desprezo – definem a
fronteira que separa o heleno do persa, o que põe os persas na posição de
bárbaros, etnicamente diferentes. Em suma, o persa é aquele que não respeita os
deuses, é aquele que não tem controle sobre si mesmo, é um transgressor por
natureza. Bem sabemos que os diálogos são fictícios, dado que é uma situação
idealizada pelo tragediógrafo, mas isso não invalida os elementos que estão
presentes de forma latente no texto, o que torna quase irrelevante para nossa
análise o fato de não tratar-se de transcrições de diálogos reais.
44
CAPÍTULO III XENOFONTE
A FRONTEIRA ÉTNICA ENTRE HELENOS E PERSAS NO SÉCULO IV a.C.
III.1) Xenofonte e o contexto do século IV a.C.
Passemos agora à Anábase ou “A retirada dos dez mil”. A respeito desta
obra, podemos dizer que se trata de uma espécie de “diário de campanha”, que
descreve a complicada retirada do exército de mercenários gregos em território
asiático, por volta de 401 a.C, contratados por Ciro, “O Jovem”. Este sátrapa25
pretendia usurpar o trono do irmão, o Grande Rei Artaxerxes e acabou morto em
combate na batalha de Cunaxa (MOSSÉ, 2004: 284). Contudo, antes de
iniciarmos a análise propriamente dita de nosso documento, cabe fazer alguns
breves apontamentos acerca da figura de Xenofonte e do contexto no qual
produziu sua Anábase.
De acordo com o historiador Alexandre Camargo (citando a tese de Luciano
Canfora), Xenofonte, que foi discípulo de Sócrates e se considerava filósofo,
possivelmente tinha ligações com o círculo oligárquico responsável pelo golpe que
deu origem ao “regime dos trinta tiranos” instaurado em Atenas em 404 a.C,
Temendo a condenação pelos atos cometidos durante a tirania, Xenofonte teria
permanecido no exílio durante um longo tempo. O envolvimento de Xenofonte com
a expedição promovida por Ciro seria então “um expediente para escapar da
revanche democrática e do seu provável julgamento pelos crimes de sangue
praticados como hiparca no regime dos trinta” (CANFORA apud CAMARGO,
2008: 53). Camargo aponta ainda que ao retratar Sócrates (em nota, apresenta o
exemplo em Memoráveis I, 4,19), Xenofonte “se concentra nas ações
propriamente cívicas do cidadão militante e piedoso.” (CAMARGO, 2008: 63 –
25
Título atribuído aos governantes (administradores) das províncias no Império Persa, submetidos á autoridade do Grande Rei.
45
grifo nosso). Devemos atentar para a importância deste comentário, pois trata-se
de elementos que se encontram não apenas no retrato que Xenofonte constrói de
Sócrates, mas que permeiam toda a sua obra. É necessário termos sempre em
mente que Xenofonte é um aristocrata, oligarca convicto26, que escreve também
sobre as atividades ligadas à vida de um proprietário de terra (basta ler seu
Econômico para uma noção mais clara), amante da caça (cinegética), e
evidentemente da atividade militar – sobretudo o comando – aristocrática por
excelência e finalmente, que valoriza a postura exemplar do cidadão no tocante às
questões cívico-religiosas, isto é, aos rituais tradicionais considerados sagrados
pela pólis, inclusive e principalmente no âmbito da guerra.
É importante refletirmos também acerca do contexto, da época na qual
Xenofonte produziu a Anábase. Cabe, portanto, um rápido panorama político de
Atenas no primeiro quarto do século IV. a.C. Estamos em plena restauração da
democracia ateniense após um golpe da facção oligárquica, conhecido como
“Regime dos trinta tiranos”. Os democratas radicais iniciaram uma perseguição
implacável à oligarquia ateniense, grupo do qual Xenofonte fazia parte. Situamo-
nos, portanto, entre o fim da Guerra do Peloponeso e o domínio macedônio sobre
a Hélade com a expansão de Felipe II, pai de Alexandre, o Grande. Ainda há,
neste momento, uma clara hegemonia lacedemônia, e o próprio Xenofonte
ressalta este detalhe em um dos seus discursos:
“– Soldados, [...] Se nos deixarmos, porém, dominar pela raiva e, para lavrar vingança dos Lacedemônios com quem tratamos, saquearmos esta cidade [...] Imediatamente passamos a ser inimigos declarados dos Lacedemônios e imaginai agora [...] que guerra se vai seguir! Quando Atenas rompeu guerra com Esparta, tinha ao menos trezentas trirremes, seja na água, seja nas darsenas; um tesouro na cidadela, sem falar na receita anual de mil talentos ,
26
Interessante citar aqui os comentários do Prof.Dr. André Chevitarese acerca da obra A caça (ou Cinegética)
de Xenofonte, para que possamos identificar melhor sua tendência política oligárquica e sua condição de
Aristocrata: “A caça constitui não apenas uma forte barreira moral contra o avanço das idéias sofistas entre a
juventude (oligarca) ateniense [XENOFONTE, A Caça 13.1-18], como também estabelece uma linha
demarcatória entre oligarcas e oponentes ideológicos advindos de outros estratos sociais. Esta atividade
representando uma das bases da educação tradicional teria a capacidade de reintroduzir os jovens aos
verdadeiros valores políades. [...] O seu objetivo, no momento em que escreveu uma obra sobre a cinegética,
portanto, não era o dês estabelecer um tratado sobre esta atividade, mas o de constatar que por meio dela, a
juventude oligárquica poderia ser educada de forma diferenciada daquela proporcionada aos demais estratos
sociais atenienses.” (CHEVITARESE, 2002: 29 –30)
46
provenientes da Ática e terras anexadas. Dominava em todas as ilhas, numa grande quantidade de cidades, tanto da Europa como da Ásia, e até nesta Bizâncio em que nos encontramos agora; pois bem, não obstante tudo isso, Atenas acabou por sucumbir. Que imaginais que nos iria acontecer, hoje que os Lacedemônios tem como aliados não apenas os Aqueus, mas os Atenienses e os antigos aliados destes? Acrescentai- lhes, ainda, Tissafernes e os Bárbaros, nossos inimigos fidagais. [...] Pelos Deuses Imortais , não levemos a loucura tão longe; não cavemos a nossa destruição, levantando o ferro contra a pátria, amigos e próximos!” (VII, 1, 123 – 154)
De acordo com Camargo, há três mudanças essenciais no contexto do
século IV em relação ao século anterior: o uso de exércitos mercenários, e a
conseqüente profissionalização da atividade bélica, devido à longa duração dos
conflitos a partir da Guerra do Peloponeso; a venda da força de trabalho por parte
dos cidadãos atenienses empobrecidos por conta da guerra e o aumento da
autonomia dos estrategos no tocante ao comando do exército, dado que os
mercenários eram contratados muitas vezes com os recursos destes
comandantes, que se valiam deste fato inclusive, para aumentar seu prestígio
pessoal:
A “identidade de modelo” entre o exército cívico e a política da cidade se veria abalada pelos desdobramentos da Guerra do Peloponeso, introduzindo mudanças que seriam fortemente sentidas no século IV. A longa duração do conflito, ocorrido entre 431 e 403, e o deslocamento dos terrenos de operação das batalhas obrigavam a maior parte dos beligerantes, incluindo os espartanos, a recorrera mercenários, soldados profissionais estranhos á cidade. Uma prática que se generalizaria com o fim da confederação marítima e da hegemonia de Atenas. [...] Muitos dos atenienses, depauperados por conta da guerra e das crises agrícolas, se viram obrigados a vender sua própria força de trabalho, o que contrariava o ideal campesino fundamental da não-sujeição. Outrossim, a dependência cada vez maior do soldo de guerra poderia tornar mais atraente, aos olhos de um cidadão empobrecido, a idéia de um novo conflito. Ao mesmo tempo, amplia-se o recurso aos mercenários, uma vez que não assumem funções produtivas e permitem aos estrategos planear campanhas mais longas. [...]A nova instituição do mercenariato ganha papel de destaque e favorece a emergência do profissionalismo militar no corpo cívico. Afinal, a utilização dos mercenários custava caro,
47
afetando seriamente o orçamento das cidades. O financiamento das expedições longínquas ficava, muitas vezes, ao cargo particular dos estrategos, que podiam se valer dele em benefício de sua ascendência pessoal (CAMARGO, 2008: 113 – 114).
Há também mudanças no quadro mental desta sociedade. Hunt sugere
uma “crise” do ideal hoplítico igualitário, tão defendido por Vernant (vide capítulo
anterior), latente no século V a.C, porém um tanto anacrônico para o século IV,
considerando as evidências no pensamento de Xenofonte. Observando os textos
do “filósofo-historiador”, Hunt observou que no tocante ao comando militar,
Xenofonte utiliza constantemente a analogia oficial/soldado – senhor/escravo, para
discutir as relações hierárquicas nas tropas:
The distinction between soldier and officer explains Xenophon‟s recommendation of farming on the grounds that it teaches how to lead men. The farmer who needs to inspire his slaves is like the man “who is leading men against the enemy” 27 . In the Cyropedia too, Xenophon explicitly
compares the command of slaves and of soldiers. In contrast to the ideal of hoplite generals fighting in the first rank, in the Anabasis we find Xenophon as an officer on horseback urging the hoplites on. Xenophon did not always conceive of military service as an egalitarian experience. From the point of view of an officer the common soldiers might even be in a position analogous to slaves. This outlook was completely at odds with the exclusive and egalitarian hoplite ethos (HUNT, 1998: 189)28.
III.2) A Etnicidade em Xenofonte e a desqualificação da democracia.
Após verificarmos o contexto, devemos lembrar que a narrativa relata um
episódio não situado na Hélade e sim na Ásia, território bárbaro por excelência.
27
Econômico, V: 15-16. 28
“A distinção entre soldado e oficial explica a recomendação de Xenofonte de que os fundamentos da agricultura é que ensinam como liderar homens. O fazendeiro que precisa inspirar seus escravos é como „aquele que lidera homens contra o inimigo‟. Na Ciropedia também, Xenofonte explicitamente compara o comando de escravos e de soldados. Em contraste ao ideal dos generais hoplitas lutando na primeira fila, na Anábase encontramos Xenofonte como um oficial á cavalo instando os hoplitas ao combate. Xenofonte nem sempre concebeu o serviço militar como uma experiência igualitária. Do ponto de vista de um oficial, os soldados comuns podem mesmo estar em uma posição análoga à de escravos. Esta perspectiva estava completamente em desacordo com o exclusivo e igualitário ethos hoplita” (tradução livre).
48
Não podemos negligenciar esta referência, pois, confirma a teoria de Barth,
mostrando que a seleção dos elementos identitários no processo de construção de
fronteiras étnicas não é vinculado ao espaço e sim à cultura, tratando-se de um
fenômeno “móvel”. Diferentemente do texto esquiliano, no qual, temos uma
narrativa ficcional (embora Ésquilo tenha lutado nas Guerras Médicas, o cenário
do drama não é a Hélade e sim a Pérsia), onde há elementos que nos permitem
vislumbrar a alteridade e a construção da fronteira étnica entre helenos e persas,
vemos na Anábase uma experiência pessoal real, pois, Xenofonte estava presente
no episódio da retirada e comandou esta empreitada. Neste relato, mais do que
em qualquer outro documento, conseguiremos visualizar muito claramente os
elementos elencados pelos helenos para se diferenciarem dos persas, pois o
contato com o Outro é muito mais palpável, em virtude da própria presença física
do autor.
No primeiro livro temos alguns trechos bastante emblemáticos que expõe
nitidamente os mecanismos textuais, podemos dizer mais sutis, utilizados por
Xenofonte para diferenciar os helenos dos persas em seu relato. Comecemos com
a fala de Ciro, o Jovem a respeito de seus compatriotas asiáticos (não
esqueçamos que o Império Persa neste período engloba praticamente a Ásia
inteira). Notaremos uma euforização do ideal helênico de liberdade e logo em
seguida uma disforização do que seria uma “etnia” bárbara (o uso do termo “raça”
explicita bem esta idéia), o que denota um caráter pan-helênico no discurso:
“– Gregos, tomei-vos ao meu serviço não porque me faltassem Bárbaros; nada disso; tomei-vos porque vos considero superiores a eles. O que vos peço agora é que vos mostreis como sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas. [...] – coro até de vergonha em o dizer – que raça de gente produz essa terra.” (I, 7, 15 - 26)29
29
A documentação que utilizamos, lamentavelmente está escrita em prosa, e dada a dificuldade de encontrar este texto traduzido para a língua portuguesa, optamos por mantê-lo, e tomamos a liberdade de numerar as linhas para tornar a citação mais completa. Cremos que no texto em verso, haverá uma diferença na numeração das linhas por conta disso, mas , caso o leitor queira verificar o texto aqui utilizado, nosso procedimento facilitará sobremaneira a consulta. Vale dizer também que como repetiremos trechos da Anábase freqüentemente, a citação apresentará apenas os números do capítulo, livro e linhas correspondentes, sem incluir o título.
49
.
Há neste trecho uma oposição entre helenos e bárbaros, quase como nos
textos do século V a.C. Entretanto, não é um heleno que se pronuncia e sim um
persa, logo, não se trata de uma inversão direta “à la Heródoto”. Eis uma
diferença importante: a forma da diferenciação entre os dois pólos no âmbito
discursivo é outra. A alusão á superioridade dos helenos é explícita, mas o que
nos importa é o fato de um persa reconhecer esta superioridade e declará-la tão
espontaneamente, e logo em seguida “difamar” sua própria etnia. Os elementos
que diferenciam os dois grupos neste caso são a superioridade, confirmada no fim
do trecho pela afirmação de uma “degeneração étnica natural”, logo inescapável
(“coro até de vergonha em o dizer – que raça de gente produz essa terra”) e a
euforização da liberdade, muito cara, como já sabemos, aos helenos em geral
(“daquela liberdade que tendes pelo sumo bem”). Há outro trecho, no segundo
livro, que traz, de forma ainda mais latente, a noção de uma etnicidade pan-
helênica (desta vez muito mais semelhante aos textos relativos ás Guerra
Médicas). Aqui a fronteira étnica é bastante visível, haja vista a denotação de uma
autoconsciência étnica pan – helênica pela vinculação a um território comum (leia-
se: Grécia) e o próprio uso dos termos “grego” e “gregos”:
“– Falino – obtemperou ele – é com o maior prazer, de certo partilhado pelos camaradas, que te vejo aqui. Não podia ser doutro modo: és grego, todos os presentes gregos são. [...] A tua voz ficará a ressoar na posteridade, pois em toda a Grécia não se deixará de se vir a dizer: tal e tal foi o conselho de Falino, enviado aos compatriotas por Artaxerxes para que entregassem as armas.” (II, 1, 110 – 123)
Outro fator que ressalta o pan-helenismo e aparece no texto de Xenofonte é
a realização de jogos comemorativos dos quais todos os helenos participam. O
autor até menciona as diferentes regiões de origem dos soldados envolvidos no
evento. Há inclusive uma ocasião na qual os Jogos Olímpicos são citados:
Realizaram também jogos de força, e Dracôncio, de Esparta, foi encarregado de preparar as corridas e presidir à luta. [...] Mocinhos, na maior parte prisioneiros, tomaram parte nas
50
corridas; Cretenses em número superior a sessenta inscreveram-se na corrida do dólico; outros jogaram as lutas, o pugilato e o pancrácio. [...] Havia ainda corridas de cavalos [...] De todos os lados se ouviam gritos, risos, imprecações, uns que exortavam, outros que escarneciam (IV, 8, 144 – 151; 164 – 177)
Aconteceu que estando Xenofonte, exilado da pátria, a residir em Cilonte, cidade edificada pelos Lacedemônios, perto de Olímpia, Megabiso veio assistir aos Jogos Olímpicos e encontraram-se (V, 3, 39 – 42).
Xenofonte também nos fornece um interessante comentário acerca do
processo educacional da nobreza persa. Contudo, antes de citarmos o trecho,
tomaremos a liberdade de abrirmos uma “pequena janela” para algumas
considerações importantes, pois cremos ser um momento oportuno para
apresentar mais informações e esclarecimentos acerca de nosso autor. Segundo
Claude Mossé, após o seu retorno da expedição relatada em nosso texto,
Xenofonte acompanhou o rei espartano Agesilau e por essa razão, lutou ao lado
dos espartanos na batalha de Coronéia (ou Queronéia) em 394, tendo sido por
isso condenado ao exílio. Durante o tempo que permaneceu afastado de sua
pátria, o ateniense se instalou em diversos locais sob domínio lacedemônio, e
tornou-se um profundo admirador do modo de vida espartano (MOSSÉ, 2004:
284). Quando lemos outra obra de Xenofonte, intitulada Ciropedia30, podemos
verificar com absoluta clareza o encantamento do aristocrata pelo modelo
educacional lacedemônio. Vejamos então como esta admiração também aparece
na Anábase:
“– Porque é de lei na Pérsia receberem os rapazinhos fidalgos criação às portas do Paço. Ali se formam no culto da modéstia; não ouvem nem vêem coisa que represente menos desprimor; estão presentes quando o monarca distribui distinções ou faz censuras e, se não estão presentes, são informados do que se passa. Deste modo se habituam desde os tenros anos a obedecer e a mandar.” (I, 9, 10 – 15)
30
Uma espécie de biografia de Ciro o Grande, fundador [quase mítico] do Império Aquemênida [Persa], que relata como [supostamente] esse soberano foi educado e como se tornou um grande governante e um hábil general no campo de batalha,
51
Cabe aqui uma pergunta inquietante: Seria esse realmente o modelo de
educação persa? Qualquer bom estudante da cultura helênica clássica, ou alguém
que aprecie as instituições espartanas diria que se trata de um ideal muito
semelhante - para não dizer um “plágio” – ao modelo educacional lacedemônio
Não há uma “disforização direta” dos helenos, mas sim, uma euforização dos
persas, através de um elogio ao seu modelo de educação que, no entanto, não é
persa e sim espartano, não é bárbaro e sim helênico. Lembremos: o estereótipo
do heleno por excelência nos textos produzidos no período clássico é ATENIENSE
e não lacedemônio. Isso nos leva mais uma vez a repensar as especificidades de
cada século no “conjunto” que chamamos de “época clássica”. Assim como
Eurípides, que como já vimos, critica com certa acidez o status quo do cidadão
ateniense com relação aos considerados “Outros” - sobretudo os estrangeiros –
em suas tragédias, Xenofonte também “deplora” de certa forma o modelo político
(e educacional) ático, embora seja um bem-nascido de origem ateniense. É claro
que as motivações dos dois autores, bem como a natureza de suas obras, são
diferentes, mas o que nos interessa aqui é perceber que não há aquele pan-
helenismo exaltado, com o enaltecimento da figura do cidadão e, especialmente,
da pólis31 de Atenas. Portanto, aqui o modelo bárbaro de educação é “bom” em
oposição ao ideal clássico de educação ateniense, estabelecendo uma relação de
alteridade.
De acordo com Camargo, Xenofonte critica de forma mordaz, mas velada o
modelo democrático ateniense do século IV a.C, desqualificando a cidadania de
duas formas principais: ou “eliminando” em seu discurso a diferença entre os
cidadãos e os não-cidadãos, tão essencial no regime democrático estabelecendo
apenas duas categorias - os que comandam e os que são comandados –
equiparando aqueles que obedecem, mesmo sendo livres, à mulher, á criança e
ao escravo, não-cidadãos por excelência; ou transformando indivíduos como o
Grande Rei da Pérsia em modelo de virtude (o que Camargo chama de ética
31
Lembrando que a pólis não é apenas o espaço físico urbano, mas principalmente a comunidade dos cidadãos.
52
interindividual), o que para os padrões democráticos é absurdo, posto que todo
monarca é, como já vimos, um tirano na concepção helênica de governo;
O esforço de Xenofonte em subverter as distinções sociais da ordem políade e restringir a definição de cidadania é flagrante. Por diversas vezes, ele aproxima trabalhadores livres e escravos, adotando uma terminologia imprecisa, que freqüentemente identifica estágios entre escravidão e servidão [...]. Temos aí a apropriação das relações de trabalho em uma abordagem que descaracteriza a separação radical entre as categorias de cidadão e não-cidadão que se tornam escalonáveis, de acordo com a propensão para o comando [...]. Ao não perceber os não-cidadãos como grupos verdadeiramente distintos e não articular suas relações com os cidadãos, sua crítica à democracia revela-se pouco efetiva para a formulação da prática política. Não consegue superar os estreitos limites da ação subversiva, já então inviável no século IV, e da ética interindividual, forjada em modelos de moralidade, como os de Ciro e Sócrates [...]. Ao nosso ver, ao lançar mão de indivíduos excepcionais e exemplares [a ética interindividual, de que falamos] Xenofonte consegue conjugar o esforço de justificação pessoal e a crítica mordaz, porém velada à democracia (CAMARGO, 2008: 131; 133)
Lembremos agora da importante questão colocada por Barth, no que tange
á mobilidade das fronteiras étnicas: Há elementos que os helenos ressaltam para
se diferenciarem dos persas, e na Anábase, particularmente temos dois que são
bastante explicitados: o exercício do voto através das assembléias (ou conselhos
privados) – considerado por Ciro Flamarion Cardoso como o mais importante,
justamente pelo fato de representar o sistema políade - para deliberar acerca das
questões mais importantes para o exército, e a preocupação com a manutenção
das práticas religiosas, que analisaremos mais profundamente. No tocante às
reuniões para tomada de decisões, podemos dizer que são onipresentes na obra e
geralmente os discursos mais elaborados aparecem quando estes eventos estão
em curso. Cardoso nos fala a respeito deste indício de mobilidade da fronteira
étnica “levada” pelos helenos para o interior do Império Persa:
Passando agora a distinguir no texto de Xenofonte que elementos culturais partilhados por todos os helenos da expedição chamada dos “dez mil” aparecem como os mais
53
importantes, isto é, aqueles que em sua própria opinião, estabeleciam o fato de pertencerem ao mundo helênico – um exercício que o caráter pan-helênico dos mercenários favorece – o mais importante deles era, provavelmente, a fidelidade ao modo de funcionamento da pólis. Independentemente de serem as Cidades-Estado aristocráticas, oligárquicas ou democráticas, o próprio de todas elas era que, em órgãos coletivos variavelmente restritos ou inclusivos (do tipo dos conselhos ou das assembléias), se chegasse a decisões obrigatórias para todos por meio do debate, da deliberação e do voto (CARDOSO, 2002: 84).
III.3) A eusebeia como diferencial étnico em Xenofonte.
No tocante à religião, temos um elemento, constantemente ressaltado no
relato de Xenofonte: a piedade, ou em grego eusebeia 32 , que, a nosso ver,
poderíamos entender como “respeito ás práticas e tradições cívico-religiosas”, ou
numa alusão mais grosseira, como “devoção”. Como já vimos em um dos
comentários de Camargo, Xenofonte tinha profunda preocupação com esta
questão, e cremos sinceramente que em nenhum outro texto produzido por este
autor a eusebeia aparece de forma tão latente quanto na Anábase. Poderemos
verificar esta assertiva, citando algumas passagens (há muitas, por isso
selecionamos as que consideramos mais elucidativas e/ou emblemáticas) nas
quais é nítida a preocupação, principalmente, com os ritos de sacrifício. De acordo
com Duarte, o nome dado a este ritual pelos antigos helenos era sfagia, e
consistia no sacrifício de um animal saudável (comumente um caprino) que tinha
sua garganta perfurada para que o sangue ali vertido, ao tocar o solo, garantisse a
aprovação ou impedisse hostilidades das forças sobrenaturais do mundo
subterrâneo (DUARTE, 2011: 79).
32
Eusebeia, [em grego: εὐσέβεια de εὐσεβής "piedoso" de εὖ eu que significa "bem", e σέβας sebas que significa "reverência"], é uma palavra usada abundantemente na filosofia grega, assim como no Novo Testamento, que significa piedade interior, maturidade espiritual [...]. A raiz seb [σέβ] está ligada ao perigo e vôo, e, portanto, o sentido de reverência originalmente descrito é “um medo saudável dos deuses” (Burket, Walter. Greek Religion. trans. by John Raffan. Cambridge: Harvard University Press, 1985: 272-275 – grifo nosso).
54
Notamos durante a leitura do documento, que a prática do sacrifício possui
duas finalidades principais além das celebrações cívicas tradicionais em honras ás
divindades: a) Verificar os auspícios [“presságios”] antes de uma batalha ou
decisão importante; b) sacramentar pactos [contratos] considerados importantes.
Vejamos duas interessantes passagens que relatam a prática do sacrifício para
que o exército pudesse conhecesse a vontade divina e o uso do sacrifico para a
celebração de uma aliança militar:
“Os capitães resolveram tomá-las pelas armas, a fim de dar alguma coisa que pilhar aos soldados, por isso não aceitaram os presentes que lhe traziam, a título de boas-vindas, dizendo que os deixassem primeiro sacrificar aos Deuses e conhecer a divina vontade. Celebrado um grande holocausto, todos os adivinhos foram concordes em ler nas entranhas das vítimas que os Deuses não aprovavam semelhante guerra.” (V, 5, 8 – 17)
“Solenemente, Gregos, Arieu e graduados do exército juraram ser aliados fiéis uns dos outros e não usar de nenhuma espécie de traição entre eles; os Bárbaros juraram, além disso, ser guias leais. Antes de começar o juramento imolaram um javali, um touro, um lobo e um aríete. O sangue das vítimas foi apanhado para um escudo e os Gregos molharam nele as pontas das espadas e os Bárbaros as hastes dos chuços.” (II, 2, 55 – 63)
Abrindo um rápido parêntese, não podemos deixar de reparar que há uma
passagem na segunda citação que é muito interessante e merece um comentário:
A diferença entre as duas etnias é denotada pelas armas portadas pelas partes no
ato do juramento (espadas x chuços). A Anábase está repleta destes indícios,
contudo, como já dissemos, nossa análise deve se concentrar naqueles que são
mais ressaltados. Retomando aqui a questão da alteridade, vale dizer, que
Xenofonte não ressalta a eusebeia dos helenos apenas apontando como os ritos
são “religiosamente” praticados, ou seja, não negligenciados. Não, ele faz mais
que isso, pois mostra que em contraste com os helenos, os persas são
impiedosos, isto é, não respeitam os deuses, não respeitam o que é sagrado
(violam tratados, cometem perjúrio), em suma, são desprovidos de devoção e
caráter:
55
“Os bens que estes Persas usufruem são como que um prêmio ao mais nobre. Entre eles e nós, os Deuses declarar-se-ão em nosso favor. E como não se os Bárbaros os provocaram com seus perjúrios enquanto que nós, com mil tentações à volta, nos mantivemos fiéis aos nossos juramentos e aos Deuses Imortais?!” (III, 1, 133 -138)
Além de estabelecer uma comparação de cunho moral, enaltecendo os
helenos e disforizando os persas (como faz na Ciropedia), Xenofonte nos mostra
que estes últimos não respeitam os deuses. Contudo, há outra reflexão
interessante que podemos fazer acerca deste discurso: não parece paradoxal, que
ora Xenofonte apresente os persas como sensatos e virtuosos – ainda que seja
para admitir uma superioridade helênica - pondo estas características em suas
falas durante a narrativa (recorre á este procedimento explicitamente tanto na
Ciropedia, com Ciro o Grande, quanto na Anábase com Ciro, o Jovem!) e em
outros momentos os disforize, qualificando-os como impiedosos e sem caráter?
Por que Xenofonte faz isso? Apesar de não podermos afirmar com absoluta
certeza, a razão pela qual nosso autor adota tal postura, podemos sim, lançar uma
hipótese que talvez seja plausível e possa contribuir para iluminar o debate. Como
já dissemos, Xenofonte era um profundo admirador do modelo educacional e
político espartano. Sendo assim, quando deseja construir um modelo de virtude
helênica em seu discurso e este discurso envolve como figura central os persas
(sobretudo nobres e especialmente o próprio Grande Rei), o ateniense põe na
boca das personagens um discurso racional e conservador, uma espécie de
apologia aos princípios mais caros à aristocracia de Atenas. Lembremos;
Xenofonte está exilado da própria pátria por representar uma ameaça ao regime
democrático, dado o seu envolvimento com os lacedemônios, que detêm a
hegemonia, sobretudo militar, na Hélade após derrotar Atenas na Guerra do
Peloponeso. Agora se torna mais simples visualizarmos a questão. O que ocorre,
como já vimos, é uma nítida influência do contexto no processo de diferenciação
dos helenos enquanto grupo étnico. Em outras palavras, temos o contexto
56
relacional influenciando o discurso, a própria construção da fronteira étnica entre
helenos e persas.
Após esta breve análise, percebemos que no contexto das Guerras
Médicas (século V a.C.), os textos sugerem uma fronteira étnica baseada numa
inversão direta, numa desqualificação dos persas, que quando tem “voz” (caso da
tragédia de Ésquilo, texto que selecionamos) apenas atestam sua inferioridade ou
demonstram claramente “desvios” inaceitáveis para um heleno. No texto de
Xenofonte (bem como nos de Eurípides, que não analisamos aqui), há uma
diferença na forma como os persas são vistos. Xenofonte ora os torna bárbaros á
maneira de seus predecessores, ora suaviza a estranheza ou mesmo os euforiza,
colocando em sua boca discursos profundamente “helênicos”, ainda que isto sirva
para enaltecer os próprios helenos.
57
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletindo acerca da discussão desenvolvida ao longo deste trabalho,
percebemos que há uma relação entre o contexto do período no qual Ésquilo e
Xenofonte escrevem suas obras e a maneira de representar os persas
textualmente, através da forma como selecionam os elementos que diferenciam
estes últimos dos helenos.
Enquanto na obra de Ésquilo, produzida no fim das Guerras Médicas, os
persas são apresentados como o arquétipo daqueles que cometem hybris, ou seja,
que são completamente descomedidos em suas atitudes, escravos “por natureza”,
opulentos e etc., em Xenofonte, que escreve logo após a Guerra do Peloponeso,
temos uma “relativização” desta representação, embora haja ainda, evidentemente,
uma diferenciação clara. O discurso de Xenofontiano tende a colocar sentenças
racionais e de um forte teor moral, muito mais ligado a uma aristocracia helênica
do que oriental. É importante notarmos isto: não há mais o estranhamento radical
no texto. Por que isto ocorre?
Podemos pensar no seguinte argumento: enquanto Ésquilo escrevia sua
tragédia, havia uma forte tendência da maior parte das póleis da Hélade contra o
Império Persa (digo maior parte, porque algumas destas póleis eram
declaradamente aliadas dos persas), ou seja, havia o Outro que era um inimigo
comum à todas as póleis que integravam esta “abstração” que chamamos de
Hélade. No caso de Xenofonte, o que havia era uma forte inclinação ao
antagonismo, sobretudo entre Atenas e Esparta (ambas fizeram parte da vida de
nosso autor), que arrastaram outras tantas póleis para um conflito fratricida sem
precedentes, cujo desfecho foi o colapso do Império Marítimo Ateniense. Temos,
portanto, que no momento no qual Xenofonte escreve as animosidades não estão
mais concentradas no “Outro-bárbaro”, no “exterior”, mas sim, na pólis rival que há
pouco foi enfrentada no campo de batalha, no inimigo da própria Hélade. A própria
noção de Hélade fica muito fragilizada neste momento, mantida graças ao
58
elemento identitário, que tomamos a liberdade de considerar aqui como o mais
forte, que é a religião.
Além da questão do Contexto Relacional, que acabamos de discutir, temos
a questão da “portabilidade” da fronteira étnica, ou seja, que os helenos
selecionam os mesmos elementos para se diferenciar dos persas, estando na
Hélade ou fora dela. No caso de Ésquilo, temos um heleno escrevendo uma
experiência vivida na Hélade, para a encenação no teatro para expectadores
atenienses. No caso de Xenofonte, temos uma situação diferente, pois trata-se do
relato de uma campanha militar realizada na Ásia, fora da Hélade, um lugar
distante, uma realidade outra, e no entanto os helenos mantém seus
procedimentos políticos e religiosos, seus jogos, e é justamente isso que o autor
enfatiza para se diferenciar dos persas enquanto heleno: a manutenção do modo
de vida helênico, mesmo em terra estrangeira. Neste sentido, podemos concluir
que há sim uma fronteira étnica entre helenos e persas, mas ela não é construída
da mesma forma durante todo o período clássico, o que também nos leva a crer
que há uma heterogeneidade nos contextos sociais do período clássico, o que não
deve ser negligenciado. Longe de pensarmos em uma classificação diferente, é
importante deixar o alerta contra o exagero nas simplificações e generalizações.
Interessante notarmos que apesar da complexidade no primeiro contato, foi
gratificante dialogarmos com os saberes antropológicos, e eles nos
proporcionaram uma visão muito mais ampla de nossa questão. Apesar de
tratarmos de sociedades complexas do mundo antigo, as idéias de Fredrik Barth
foram extremamente elucidativas, mostrando que sua teoria da etnicidade
transcende o campo da Antropologia. É possível refletir sobre uma série de
problemas recorrendo á esta proposta teórica. Talvez fosse interessante pensar
nossas relações com o Oriente hoje à luz do que verificamos a respeito de
helenos e persas, mas, isto seria outra pesquisa...
59
DOCUMENTAÇÃO ÉSQUILO. Os persas. In: KURY, Mário da Gama. Os Persas / Ésquilo. Electra / Sófocles. Hécuba / Eurípides – 6ª ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção “A Tragédia Grega”; vol. 4) HERÓDOTO. Histórias; estudo crítico por Vítor de Azevedo; tradução de J. Brito Broca. São Paulo: Ediouro, 2001. XENOFONTE. Ciropedia – A Educação de Ciro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/data
XENOFONTE. A Retirada dos Dez Mil (Anábase). Tradução e prefácio de Aquilino Ribeiro. Lisboa: Livraria Bertrand-Lisboa, 3ª Edição, s/data.
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60
DUARTE, Alair Figueiredo. A análise comparativa do poder e das armas de soldados-cidadãos e soldados-mercenários na Atenas do século V e IV a.C. Dissertação de Mestrado em História Comparada. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos. Lisboa : Edições 70, 1988 GARLAN, Yvon. Guerra e economia na Grécia antiga. Trad. Claudio Cesar Santoro. Campinas: Papirus, 1991. HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 [1980]. HOLLAND, Tom. Fogo Persa; tradução de Luiz Antonio Aguiar; revisão técnica de Paloma Roriz Espínola. – Rio de Janeiro: Record, 2008. HUNT, Peter. Slaves, warfare, and ideology in the greek historians. London: Cambridge University Press, 1998. KALLET, Lisa. "El siglo V: narraciones políticas y militares", In: OSBORNE, Robin (org.). La Grecia Clásica, 500 - 323 a.C.; Traducción castellana de Gonzalo G. Djembé. Barcelona: Crítica, 2000. LESSA, Fábio de Souza. “O esporte como memória e festa na Hélade”, In: LESSA, Fábio de Souza e BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha (org.). Memória & Festa. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. LORAUX, Nicole. A democracia em confronto com o estrangeiro (Atenas, Paris). In: CASSIN, Barbara, LORAUX, Nicole e PECHANSKI, Catherine. Gregos Bárbaros e Estrangeiros: a cidade e os outros. RJ: Editora 34, 1993. MOERBECK, Guilherme Gomes. A forma, o discurso e a política: as gerações da tragédia grega no século V a.C. Dissertação de mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007. MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. João Batista da Costa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. ______________. Dicionário da civilização grega. Trad. Carlos Ramalhete. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. PESCHANSKI, Catherine. Os Bárbaros em confronto com o tempo (Heródoto, Tucídides e Xenofonte). In: CASSIN, Barbara, LORAUX, Nicole e PECHANSKI, Catherine. Gregos Bárbaros e Estrangeiros: a cidade e os outros. RJ: Editora 34, 1993.
61
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Trad: Leonor Santa Bárbara. Lisboa: Edições 70, 1997. VERNANT, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Difel, 1977. __________________. Mito e sociedade na Grécia Antiga; Tradução de Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. __________________. Mito e religião na Grécia Antiga; Tradução de Myriam Campello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. __________________. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica; Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
63
Universidade do Estado do Rio de Janeiro IFCH - Departamento de História
Núcleo de Estudos da Antiguidade Profª Drª Maria Regina Candido
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL Análise de Conteúdo - semiótica do discurso conforme: GREIMAS, A. J. Semiótica e Ciências Sociais. São Paulo: Cultrix, 1981 1. Processo de descrição do conteúdo
Autor/obra Xenofonte – Anábase (“A retirada dos dez mil”)
Período/região Séc. IV a.C Atenas
Publico/privad
o
privado
Manifestação Da língua
Grego ático
1.2. Análise do texto
Propriedades da Linguagem do texto
Texto em língua grega, grego ático do V século
Qualificação do
texto
Relato de campanha militar
Comunicação do
texto
Diário de expedição – narrativa em terceira pessoa.
Processo de
interação
Oral
Conceitos operacionais do texto
Monofonia/Polifonia: Polifonia, pois, traz referencias ao passado: Xerxes
Referencia ao contemporâneo: Artaxerxes e Tissafernes
1.3. Seleção do Conteúdo
Trechos Temas Pertinência Objetividade
“– Clearco, Próxeno, Gregos que estais presentes, perdestes
Euforização da fala de um
64
o juízo ou quê? [...] Os Bárbaros que nos acompanham, assim que virem que as nossas coisas correm mal voltar-se-ão contra nós e serão os nossos inimigos piores inimigos ainda do que aqueles que estão do lado de lá com o meu adversário” (I, 5, 129 - 136)
Comportamento / Alteridade
bárbaro (Ciro, o Jovem), dando-lhe um caráter racional, aproximando-a do comportamento ideal helênico.
“– Gregos, tomei-vos ao meu serviço não porque me faltassem Bárbaros; nada disso; tomei-vos porque vos considero superiores a eles. O que vos peço agora é que vos mostreis como sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas. [...] – coro até de vergonha em o dizer – que raça de gente produz essa terra.” (I, 7, 15 - 26)
Alteridade / Etnicidade
Euforização das características culturais dos Helenos através da disforização do comportamento e da etnia dos “Bárbaros”.
“– Porque é de lei na Pérsia receberem os rapazinhos fidalgos criação às portas do Paço. Ali se formam no culto da modéstia; não ouvem nem vêem coisa que represente menos desprimor; estão presentes quando o monarca distribui distinções ou faz censuras e, se não estão presentes, são informados do que se passa. Deste modo se habituam desde os tenros anos a obedecer e a mandar.” (I, 9, 10 – 15)
Processo Educacional /
Alteridade
Euforização do modelo educacional monárquico destinado à elite persa.
“E voltando-se para os capitães, seus camaradas, com um dos impedidos o chamasse para ver as entranhas das vítimas, acrescentou: – Dêem a resposta
Religião
Menção à prática de sacrifícios para efetuar análises.
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que parecer mais honrosa e assisada que eu volto já... Estavam, com efeito, a sacrificar quando chegaram os Persas.” (II, 1, 55 – 62)
“– Falino – obtemperou ele – é com o maior prazer, de certo partilhado pelos camaradas, que te vejo aqui. Não podia ser doutro modo: és grego, todos os presentes gregos são. [...] A tua voz ficará a ressoar na posteridade, pois em toda a Grécia não se deixará de se vir a dizer: tal e tal foi o conselho de Falino, enviado aos compatriotas por Artaxerxes para que entregassem as armas.” (II, 1, 110 – 123)
Etnicidade / Pan
- helenismo
Denotação de uma autoconsciência étnica pan – helênica pela vinculação a um território comum: Grécia. Uso dos termos “grego” e “gregos”.
“– Camaradas, mandei sacrificar para saber se podia marchar contra o rei Artaxerxes, e as entranhas das vítimas nada pressagiaram de bom.” (II, 2, 17 – 20).
Religião
Menção à prática de sacrifícios para verificar presságios.
“Solenemente, Gregos, Arieu e graduados do exército juraram ser aliados fiéis uns dos outros e não usar de nenhuma espécie de traição entre eles; os Bárbaros juraram, além disso, ser guias leais. Antes de começar o juramento imolaram um javali, um touro, um lobo e um aríete. O sangue das vítimas foi apanhado para um escudo e os Gregos molharam nele as pontas das espadas e os Bárbaros as hastes dos chuços.” (II, 2, 55 – 63)
Religião / Alteridade
Menção à prática de sacrifícios para sacramentar juramentos / contratos. Diferença entre as duas etnias é denotada pelas armas portadas pelas partes no ato do juramento (espadas x chuços)
“Infeliz daquele que tem sobre a consciência o peso de ter ludibriado os Deuses! Para fugir
Alusão à importância de uma postura
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à sua vingança, nenhum passo lhe é suficientemente veloz e nenhuma noite bastante escura. [...] Ora nós contraímos o nosso pacto de amizade sob o patrocínio dos Deuses Imortais. Eles, em nossa consciência, respondem por cada um de nós, e aí está porque eu digo que não podemos ser inimigos.” (II, 5, 31 – 42)
Religião
piedosa diante das divindades e do respeito aos pactos tornados sagrados (patrocínio dos Deuses Imortais)
“Os bens que estes Persas usufruem são como que um prêmio ao mais nobre. Entre eles e nós, os Deuses declarar-se-ão em nosso favor. E como não se os Bárbaros os provocaram com seus perjúrios enquanto que nós, com mil tentações à volta, nos mantivemos fiéis aos nossos juramentos e aos Deuses Imortais?!” (III, 1, 133 -138)
Alteridade / Religião
Euforização dos helenos através da alusão ao favoritismo (diante das divindades) em relação aos persas devido á impiedade destes últimos (prática de perjúrios).
“Pela compleição dos nossos corpos, estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio, ao calor e aos trabalhos. As nossas almas são também de têmpera mais rija; e com a ajuda dos Deuses, sob o nosso braço, os homens deles hão de cair como tordos, mais débeis e menos resistentes em tudo do que nós.” (III, 1, 139 – 145)
Alteridade / Religião
Denotação da diferença através da euforização dos atributos físicos dos helenos. Menção à intervenção divina em favor destes últimos.
“A minha opinião, camaradas, é que este homem deve ser expulso da nossa companhia [...] um grego deste estofo é a vergonha da Grécia! – Este homem – declarou Agásias de Stinfalo – nada tem de comum com a Beócia nem mesmo com a Grécia [...]” (III, 1, 183 – 189)
Etnicidade /
Pan - Helenismo
Denota a existência de fronteira étnica entre os próprios helenos (etnicidade embutida – nível
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intermediário dialetal/regional) através da menção dos termos Grécia e Beócia para referir-se a um mesmo indivíduo.
“Mas para tudo há remédio e temos que nos safar do atoleiro, como gente de brio que somos. Em vez de nos deixarmos desmoralizar, tentemos com ânimo denodado a fortuna das armas. Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro.” (III, 2, 11 – 16)
Alteridade
Denotação da diferença através da euforização dos atributos morais dos helenos
“Falou-vos Cleanor dos perjúrios e da perfídia dos Bárbaros [...] somos observadores dos juramentos em que tomamos os Deuses como testemunhas, enquanto os inimigos violaram com a maior desfaçatez a religião da fé jurada.” (III, 2, 47 - 48; 73 – 77)
Alteridade / Religião
Euforização dos helenos através da alusão à postura respeitosa diante das divindades e disforização dos Bárbaros devido á impiedade destes últimos (prática de perjúrios).
“Quando em seguida, Xerxes, que tinha reunido um exército inumerável, marchou contra a Grécia, os nossos maiores bateram o inimigo na terra e no mar. Por toda a parte restam troféus da vitória. Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em que viestes à luz e fostes criados, porque nós não reconhecemos outros amos além dos Deuses.” (III, 2, 93 – 100)
Alteridade
Disforização dos persas utilizando a memória das Guerras Médicas (derrota de Xerxes). Denotação da diferença através de alusão à incapacidade
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dos helenos de se submeter á vontade de outros povos/homens (amos).
“Fizeram, logo a seguir a esta resolução, sacrifícios aos Deuses, de modo a estarem prontos a partir á hora que lhes conviesse” (III, 5, 95 – 98)
Religião
Menção à prática de sacrifícios para verificar presságios.
“Folgou Quirísofo com a comunicação e, mal o dia clareou, os dois com os mais capitães celebraram sacrifícios aos Deuses.” (IV, 3, 54 – 56)
Religião
Menção à prática de sacrifícios.
“Não é verdade que desde meninos sois educados na escola do furto ou da destreza , que é a mesma coisa? Os latrocínios, que a lei de Esparta não proíbe, são para vós motivo de glória em vez de vitupério. Para chegardes a mestres na arte de escamotear e pôrde-vos ao fresco sem ninguém dar conta, apanhais a vossa chicotada, se a lição não foi bem aprendida. Eis chegado o ensejo, Quirísofo, de nos mostrar os frutos da educação que recebeste.” (IV, 6, 73 – 82)
Alteridade / Etnicidade
Denota a existência de fronteira étnica entre os próprios helenos (etnicidade embutida – nível primário/políade) através da disforização/difamação da educação e da legislação espartanas.
“Também não é novidade para ninguém – replicou Quirísofo – que os Atenienses são exímios a roubar o erário público, por muito grandes que sejam os riscos a correr, e que os mais distintos são os que se mostram consumados [sic.] em tal arte, se é certo que na vossa República elegeis para magistrados os mais distintos. Por tanto, Xenofonte,
Alteridade / Etnicidade
Denota a existência de fronteira étnica entre os próprios helenos (etnicidade embutida – nível primário/políade) através da
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tens tanto como eu belíssima ocasião para mostrar as tuas habilidades.” (IV, 6, 85 – 93)
disforização/difamação da política ateniense.
“Na manhã seguinte, depois de fazer holocausto aos Deuses, Quirísofo pôs-se em marcha.” (IV, 6, 123 – 125)
Religião
Menção à prática de sacrifícios.
“Uma vez no coruto da serra, sacrificaram aos Deuses e ali elevaram uma memória” (IV, 6, 139 – 141)
Religião
Menção à prática de sacrifícios
“Os Gregos, a certa altura, trataram de preparar o holocausto que tinham prometido à divindade. Tinham bois de sobra para sacrificar a Zeus, salvador, a Hércules, que tão bem os guiara, e aos outros Deuses benignos. Realizaram também jogos de força, e Dracôncio, de Esparta, foi encarregado de preparar as corridas e presidir à luta.” (IV, 8, 144 – 151)
Religião / Esporte /
Etnicidade
Menção à prática de sacrifícios e à prática esportiva. O uso da designação “Gregos” denota uma autoconsciência étnica pan-helênica.
“Mocinhos, na maior parte prisioneiros, tomaram parte nas corridas; Cretenses em número superior a sessenta inscreveram-se na corrida do dólico; outros jogaram as lutas, o pugilato e o pancrácio. [...] Havia ainda corridas de cavalos [...] De todos os lados se ouviam gritos, risos, imprecações, uns que exortavam, outros que escarneciam.” (IV, 8, 164 – 177)
Esporte / Etnicidade
O uso da designação “Cretenses” reforça a hipótese de que a prática de jogos ocorria em diversas regiões da Hélade (caráter Pan – helênico). Some-se a isso o fato do nome das modalidades
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ser mencionado de forma genérica, não havendo particularidades regionais.
“Aconteceu que estando Xenofonte, exilado da pátria, a residir em Cilonte, cidade edificada pelos Lacedemônios, perto de Olímpia, Megabiso veio assistir aos Jogos Olímpicos e encontraram-se.” (V, 3, 39 – 42)
Esporte / Etnicidade
Menção aos Jogos Olímpicos (maior evento esportivo Pan-helênico do período). O uso da designação “Lacedemônios” denota a existência de fronteira étnica entre os próprios helenos (etnicidade embutida – nível primário/políade).
“Agora temos de mostrar aos Bárbaros, que fizeram aliança conosco, que valemos mais do que eles, e aos adversários que vão ter pela frente gente diversa daquela com que se mediram há pouco” (V, 4, 90 – 94)
Alteridade
Denotação da diferença (Helenos x Bárbaros) através da euforização dos atributos morais e das habilidades dos helenos
“No dia seguinte, depois dum holocausto aos Deuses, em que se leu bom agouro nas entranhas das vítimas, o exército tomou a sua refeição matinal e começou a formar em colunas.” (V, 4, 96 – 99)
Religião
Menção à prática de sacrifícios para verificar presságios (agouro).
“Os capitães resolveram tomá- Menção à
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las pelas armas, a fim de dar alguma coisa que pilhar aos soldados, por isso não aceitaram os presentes que lhe traziam, a título de boas-vindas, dizendo que os deixassem primeiro sacrificar aos Deuses e conhecer a divina vontade. Celebrado um grande holocausto, todos os adivinhos foram concordes em ler nas entranhas das vítimas que os Deuses não aprovavam semelhante guerra.” (V, 5, 8 – 17)
Religião
prática de sacrifícios para verificar presságios e/ou conhecer a vontade divina.
“Ali se quedaram quarenta e cinco dias. Neste meio tempo fizeram sacrifícios solenes aos Deuses, e organizaram povo por povo, procissões votivas. Simultaneamente cultivavam o atletismo e gimnástica.” (V, 5, 22 – 26)
Religião / Esporte
Menção à prática de sacrifícios e procissões votivas. Alusão também à práticas esportivas.
“– Soldados, estamos aqui enviados pela cidade de Sinope para vos felicitar, na qualidade de Gregos, pelas vitórias que alcançastes sobre os Bárbaros e vos manifestar o nosso regozijo por vos encontrardes entre nós sãos e salvos, depois de tão estupendos trabalhos. Na qualidade de vossos irmãos de raça, temos esperança de receber de vós demonstrações de amizade [...]” (V, 5, 36 – 43)
Etnicidade / Alteridade
A designação “Gregos” e a expressão “irmãos de raça” denotam uma autoconsciência étnica pan-helênica. O uso do termo “Bárbaros” explicita a Alteridade (Heleno x Outro).
“–Sinopenses, também nós nos congratulamos por nos vermos aqui, rijos, feros e de armas na mão. Sem isso, ser-nos-ia impossível combater o inimigo e proceder à necessária pilhagem. Enfim, eis-nos em terra grega e com gente da nossa raça.” (V, 5,
Etnicidade
A designação “terra grega” e a expressão “gente da nossa raça” denotam uma autoconsciência étnica pan-
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62 – 66) helênica.
“– Camaradas, não vale a pena pensar em erguer aqui casa. Nada iguala a nossa querida terra. Ouço dizer que há entre nós Gregos que, sem nos consultar, acalentam tão estapafúrdio projeto e que fizeram sacrifícios aos Deuses nesse sentido.” (V, 6, 143 – 147)
Etnicidade / Religião
O uso da expressão “nossa querida terra” e o termo “Gregos” denotam uma autoconsciência étnica pan-helênica. Há também a Menção à prática de sacrifícios para conhecer a vontade divina, além da necessidade de consulta prévia á coletividade para autorização do sacrifício.
“Doutro modo, como podemos com as mãos sujas por tais abominações sacrificar ao grande Zeus! Com que consciência combateremos o inimigo se nos devoramos uns aos outros? Que cidade nos receberá como amigos quando assim abusamos da hospitalidade? Quem ousará vir ao nosso arraial vender mantimentos, quando souber que faltamos aos respeitos mais sagrados?” (V, 7, 210 – 217)
Religião
Menção à prática de sacrifícios. Alusão à importância de uma postura piedosa diante das divindades e dos homens e ás conseqüências trazidas por uma atitude impiedosa.
“E ficou decidido que os capitães fizessem julgar todos os atos criminosos, praticados desde a morte de Ciro até então, sendo juízes os comandantes de
Prática Jurídica
Alusão à existência de uma instituição jurídica
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coorte. Em seguida a uma proposta de Xenofonte, apoiada pelos adivinhos, procedeu-se à purificação do exército.” (V, 7, 226 – 232)
/ Religião durante a expedição. Referência à prática religiosa de purificação.
“– Soldados, [...] Se nos deixarmos, porém, dominar pela raiva e, para lavrar vingança dos Lacedemônios com quem tratamos, saquearmos esta cidade [...] Imediatamente passamos a ser inimigos declarados dos Lacedemônios e imaginai agora [...] que guerra se vai seguir! Quando Atenas rompeu guerra com Esparta, tinha ao menos trezentas trirremes, seja na água, seja nas darsenas; um tesouro na cidadela, sem falar na receita anual de mil talentos , provenientes da Ática e terras anexadas. Dominava em todas as ilhas, numa grande quantidade de cidades, tanto da Europa como da Ásia, e até nesta Bizâncio em que nos encontramos agora; pois bem, não obstante tudo isso, Atenas acabou por sucumbir. Que imaginais que nos iria acontecer, hoje que os Lacedemônios tem como aliados não apenas os Aqueus, mas os Atenienses e os antigos aliados destes? Acrescentai- lhes, ainda, Tissafernes e os Bárbaros, nossos inimigos fidagais. [...] Pelos Deuses Imortais , não levemos a loucura tão longe; não cavemos a nossa destruição, levantando o ferro contra a pátria, amigos e próximos!” (VII, 1, 123 – 154)
Etnicidade / Imperialismo /
Alteridade / Religião
Denota nítida oposição entre Atenas e Esparta. Uso do termo “Lacedemônios” indica um nível políade de etnicidade.. Alusão à hegemonia exercida por Atenas antes da Guerra do Peloponeso, através de suas práticas imperialistas, e á crise que seguiu após o conflito com a ascensão de Esparta como pólis hegemônica. O uso do termo “Bárbaros” explicita a Alteridade (Heleno x Outro). A evocação “Deuses Imortais” aponta um caráter religioso e pan – helênico no discurso.
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“Então nós tivemos repugnância em conservar uma só cidade bárbara, de tantas que conquistamos, e na primeira cidade de nação grega em que entramos, havíamos de pô-la a saque? [...] Sois Gregos, como tal sou de conselho que vos submetais aos chefes da Grécia e procureis às boas obter tratamento equitativo” (VII, 1, 156 – 165)
Etnicidade / Alteridade
As designações “Gregos” / “Grécia” e a expressão “nação grega” denotam uma autoconsciência étnica pan-helênica. O uso da expressão “cidade bárbara” explicita a Alteridade (Heleno x Outro).
“A estas palavras Seutes exclamou que não desconfiava dos atenienses, gente leal, gente da sua raça, pois corria-lhe sangue ateniense nas veias.” (VII, 2, 182 – 184)
Etnicidade
Enaltecimento da comunidade ateniense. Subentende-se a disforização dos demais grupos da Hélade.
“[...] ficai, porém, sabendo que, se dais andamento aos vossos instintos, sacrificais o homem que velou pela vossa segurança mais do que era legítimo pedir-lhe; sofreu mil fadigas e correu mil perigos à vossa frente; ergueu, com a graça divina, troféus inúmeros nas terras dos Bárbaros; matou-se para impedir que cada um de vós se tornasse inimigo figadal do seu irmão de raça!” (VII, 6, 222 – 230)
Alteridade / Etnicidade
O uso da expressão “terras dos Bárbaros” explicita a Alteridade (Heleno x Outro). A expressão “irmão de raça” denota uma autoconsciência étnica pan-helênica.