UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
A Escultura como Experiência Estética: Rui Chafes e Alberto Carneiro
Maria João Pereira de Vasconcelos
Dissertação
Mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte
Dissertação orientada pelo Prof. Doutor José Carlos Pereira
2020
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu Maria João Pereira de Vasconcelos, declaro que a presente dissertação intitulada
“A Escultura como Experiência Estética: Rui Chafes e Alberto Carneiro”, é o resultado da
minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes
consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes
documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo
do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
Lisboa, 6 de fevereiro de 2020
RESUMO
O panorama artístico do século XX foi profundamente marcado pela criação de novas
linguagens plásticas, onde inúmeros artistas enveredaram por novos caminhos, procurando
desta maneira criar discursos e propostas artísticas inovadoras. Com Marcel Duchamp,
deu-se início a um diálogo sobre a natureza da arte, os seus ready-made proporcionaram uma
reinvenção do panorama artístico, e criaram uma rutura com toda a tradição escultórica até
então. A sua abordagem pioneira abriu caminho a novas linguagens e consequentemente a
uma maior liberdade artística, onde a escultura se afirma enquanto experiência estética e o
papel do observador ganhou cada vez mais importância na composição e na relação com o
objeto artístico. As práticas escultóricas de Rui Chafes e Alberto Carneiro surgem como
herdeiras deste legado artístico iniciado por Duchamp, neste sentido, e no contexto da
história da arte, os artistas aparecem como duas figuras singulares, de grande relevo e
importância no campo da escultura portuguesa contemporânea.
A presente dissertação tem como objetivo principal explorar e aprofundar as diferentes
linguagens artísticas dos dois escultores, procurando de compreender a sua abordagem face
à produção escultórica e, posteriormente, a relação estabelecida pela mesma com os seus
observadores.
Apesar de, formalmente, as suas obras numa primeira impressão não possuírem semelhanças,
as duas práticas escultóricas assentam sobre princípios idênticos, procurando atingir um
único objetivo, o de proporcionar uma experiência estética única aos seus observadores.
Rui Chafes defende que a escultura deve ser tocada com o olhar, no sentido em que com a
sua arte, pretende estimular a emoção mas também o intelecto do observador, provocando
uma transformação de dimensão espiritual. Alberto Carneiro pretendia que os seus
“envolvimentos” constituíssem uma experiência profundamente sensorial, ao acreditar que
a escultura deveria ser “vista” com as mãos, apelando não apenas ao toque como a todos os
sentidos de quem a experienciasse.
Deste modo, as esculturas dos dois artistas assumem-se como elementos potenciadores da
experiência estética, na qual o observador ocupa um lugar de relevo, e pois, no limite é na
experiência estética que se realiza plenamente a existência e o sentido da escultura.
Palavras-Chave:
Escultura; Experiência Estética; Rui Chafes; Alberto Carneiro
ABSTRACT
The 20th century artistic panorama was deeply marked by the creation of new plastic
languages, where countless artists took new paths, seeking in this way to create discourses
and innovative artistic proposals. With Marcel Duchamp, a dialogue on the nature of art
began, its ready-made provided a reinvention of the artistic panorama, and created a rupture
with all the sculptural tradition until then. His pioneering approach opened the way to new
languages and consequently to greater artistic freedom, where sculpture asserts itself as an
aesthetic experience and the role of the observer gained more importance in the composition
and the relationship with the artistic object. The sculptural practices of Rui Chafes and
Alberto Carneiro appear as heirs of this artistic legacy initiated by Duchamp, in this sense,
and in the context of the history of art, the artists appear as two singular figures, of great
importance in the field of contemporary Portuguese sculpture.
This dissertation aims to explore and deepen the different artistic languages of the two
sculptors, seeking to understand their approach to sculptural production and, subsequently,
the relationship established by it with its viewers.
Although formally their works at first impression have no similarities, the two sculptural
practices are based on identical principles, seeking to achieve a single objective, to provide a
unique aesthetic experience to their observers.
Rui Chafes defends that sculpture should be touched with the eyes, in the sense that with his
art, he intends to stimulate the emotion but also the intellect of the viewer, provoking a
transformation of spiritual dimension. Alberto Carneiro wanted his "involvements" to
constitute a deeply sensorial experience, believing that sculpture should be "seen" with the
hands, appealing not only to the touch but also to all the senses of those who experienced it.
In this way, the sculptures of the two artists assume themselves as potentiating elements of
the aesthetic experience, in which the observer occupies a prominent place, and therefore,
in the limit it is in the aesthetic experience that the existence and meaning of sculpture is
fully accomplished.
Keywords:
Sculpture; Aesthetic Experience; Rui Chafes; Alberto Carneiro
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e ao meu irmão, pelo carinho e apoio incondicional desde sempre.
Ao professor José Carlos Pereira, pela disponibilidade, orientação e clareza.
Aos meus amigos pela paciência, as longas conversas e a vida boémia.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 01
I - A DIMENSÃO EXISTENCIAL NA ESCULTURA DE RUI CHAFES
1. A Verdadeira Biografia ...................................................................................... 04
1.2 A Lição dos Mestres .................................................................................... 08
1.2.1 Tilman Riemenschneider - A Espiritualidade Medieval ........................ 08
1.2.2 Alberto Giacometti – A Redução ............................................................ 11
1.2.3 David Smith – A Experiência Artística do Ferro ..................................... 15
1.2.4 Richard Serra – A Leveza e o Peso ......................................................... 17
1.2.5 Ad Reinhardt – A Absorção da Luz ........................................................ 19
2. A Condição Existencial ...................................................................................... 21
2.1 A Queda do Objeto ....................................................................................... 21
2.2 A Suspensão do Tempo ................................................................................ 27
II - A DIMENSÃO ENERGÉTICA NA ESCULTURA DE ALBERTO CARNEIRO
1. A Aprendizagem: da Infância ao Ofício .............................................................. 42
1.2 A Espiritualidade Oriental ............................................................................ 45
2. A Condição Vivencial do Corpo ......................................................................... 51
2.1 A Escultura como Energia ............................................................................ 51
2.2 A Escultura como Experiência ..................................................................... 59
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 67
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 71
ANEXO .......................................................................................................................... 77
1
INTRODUÇÃO
Escultura, “palavra oriunda do latim sculptura, etimologicamente significa talhar, gravar
em função da realização de obras tridimensionais, obtidas a partir duma matéria
preexistente a que vulgarmente se chama bloco, sobretudo quando se trata de pedra.
A estas características, outras se podem juntar, definindo aquilo que a escultura procurou
e afiançou ser, até à modernidade novecentista, quando outros valores e objectos se
afirmaram de modo inusitado, senão mesmo em ruptura com o conceito tradicional”.1
Sendo considerada uma das expressões artísticas, a escultura ocupa desde os seus
primórdios um lugar de grande importância e relevo na história da arte. Em relação ao
seu conceito associa-se qualquer representação realizada em três dimensões, na qual os
materiais utilizados são transformados em obras de arte, tendo em consideração a
organização de volumes, contornos, texturas e contrastes de luz e sombra. Neste sentido,
pode-se afirmar que a escultura é uma arte do espaço, capaz de o moldar, construir, ocupar
mas também uma arte relacional, na medida em que tem a capacidade de se relacionar
com o lugar onde se insere, e a sua envolvência pré-existente, potenciando-a.
Atualmente, muitos dos princípios teóricos e estéticos relacionados com a produção
escultórica não possuem o significado de épocas anteriores, pois a definição de escultura
expandiu os seus limites. Com o aparecimento e desenvolvimento de novas linguagens
artísticas iniciou-se um processo de alteração, do conceito de obra de arte provocando
também uma alteração nos temas escultóricos, nas formas de representação e nos
materiais por si utilizados.
O princípio do século XX foi marcado por reações ao academismo onde inúmeros artistas
enveredaram por novos caminhos, procurando, deste modo, criar novos discursos, novas
propostas artísticas, e dar início a uma reflexão sobre a natureza da arte.
Na escultura, a diminuição da sua escala, uma nova linguagem plástica mais dinâmica e
inovadora, a ausência de plinto, uma orientação espacial tendo por base a horizontalidade,
a utilização de outros materiais, que não o mármore, proporcionaram uma maior
aproximação do observador.
1 PEREIRA, José Fernandes – Escultura in Dicionário de Escultura Portuguesa. Lisboa: Caminho, 2005, p.226.
2
Foi com Marcel Duchamp que se deu início ao diálogo entre a natureza da arte e a
possibilidade do objeto artístico; os seus ready-made proporcionaram uma reinvenção da
arte ao apropriar-se de objetos da vida quotidiana, industriais ou comerciais,
colocando-os em determinado contexto, ou, ao denominá-los como arte foi capaz de lhes
conferir uma outra natureza. A sua Fonte, datada de 1917, assumiu-se como uma atitude
radical, e representa um corte com a tradição escultória e artística até à época,
inaugurando deste modo um discurso sobre as barreiras entre o que é “arte” e “não-arte”,
a função e condição da própria arte, permitindo a sua abordagem colocar no mesmo
patamar artístico o observador e o criador.
A abordagem pioneira de Duchamp abriu caminho a novas linguagens e,
consequentemente, a uma maior liberdade artística, fornecendo a base teórica e estética
para a arte conceptual que se estende até à contemporaneidade. Perante o objeto, surgiu
um mundo de possibilidades, uma nova forma de fazer arte onde esta se afirma como
experiência estética, reforçando o papel do observador na sua relação com o objeto.
A partir do momento em que é considerado arte, o objeto artístico transforma-se num
instrumento produtor de ideias, em que a sua transformação só pode ser realizada pelo
observador.
Ao focar-se na ideia e atribuindo grande importância ao conceito a arte conceptual foi
capaz de reduzir um objeto a um conceito, permitindo desta maneira que se transformasse
a relação com o espectador, a partir da ativação da dimensão inteligível, confirmando o
papel ativo do observador na experiência estética. Deste modo, o objeto artístico exige
mais do observador, constituindo-se um elemento potenciador da experiência estética o
que contribui para a reconfiguração da prática escultórica.
Neste contexto, à medida que o tempo foi passando, tornou-se cada vez mais difícil
aplicar o conceito tradicional de escultura, por esta exceder os limites da
tridimensionalidade. De forma a abranger as novas formas das práticas escultóricas,
Rosalind Krauss no seu artigo, Sculpture in the Expanded Field, datado de 1979, cria o
conceito de campo expandido para englobar o espectro das possibilidades formais da
escultura.
As obras de Rui Chafes e Alberto Carneiro são herdeiras deste vasto legado escultório,
encontrando-se também inscritas na definição de campo expandido. No contexto da
3
história da arte portuguesa, os dois surgem como duas figuras singulares na escultura
portuguesa contemporânea.
A presente dissertação tem como objetivo abordar as diferentes linguagens artísticas dos
dois escultores, mais precisamente no sentido de compreender a sua abordagem face à
produção escultórica e posteriormente a relação estabelecida com o espectador.
Deste modo, encontra-se dividida em duas grandes partes, a saber, a dimensão existencial
na escultura de Rui Chafes procura caraterizar a obra deste escultor, dividindo-se em dois
capítulos; no primeiro, aborda-se a sua verdadeira biografia artística, as lições dos
mestres, as suas influências e, no segundo, a sua prática escultórica, nomeadamente os
conceitos de queda e de suspensão do tempo presente.
Na segunda parte, teremos os estudo da dimensão energética na escultura de Alberto
Carneiro, dividindo-se, também, em dois capítulos: no primeiro é abordado o seu percurso
de vida e a relação singular que mantinha com a espiritualidade oriental; o segundo
capítulo centra-se na linguagem artística do escultor, no modo como perceciona a
escultura, a abordagem perante o seu material primordial a energia, e, nos modos como a
escultura se consubstancia numa experiência estética.
Numa época em constante transformação, marcada por um universo cada vez mais digital
e pela aceleração de tempo, as obras de Rui Chafes e de Alberto Carneiro surgem como
“lugares” proporcionadores de um abrandamento e reencontro com essas experiências
sensoriais perdidas e com a própria existência do observador.
4
I
A DIMENSÃO EXISTENCIAL NA ESCULTURA DE RUI CHAFES
1. A Verdadeira Biografia
Rui Chafes nasceu em Lisboa no ano de 1966. Estudou Escultura entre 1984 e 1989 na
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, após terminar o curso ingressou em
1990 na Kunstakademie em Düsseldorf, na Alemanha, onde durante dois anos frequentou
a classe do escultor Gerhard Merz. Enquanto jovem artista à procura do seu caminho
demonstrou, desde cedo, interesse pela cultura alemã, sobretudo “pela cultura do período
romântico alemão, séculos XVIII e XIX, e pela língua alemã”.2 Foi durante o tempo em
Düsseldorf que o artista teve a oportunidade de enriquecer a sua formulação teórica e
aprofundar o seu interesse pela cultura germânica, centrando-se sobre o romantismo
alemão e em autores como Friedrich Hölderlin, Heinrich Von Kleist, Friedrich Schlegel
e, especialmente, Novalis.
Numa fase inicial do seu percurso artístico o escultor começou por trabalhar em pedra,
mas, devido às limitações próprias deste material, “o seu peso quase fúnebre”3, como
refere o escultor e o simbolismo associado, decidiu abandoná-lo para realizar com
materiais diversos, “nomeadamente materiais naturais em confronto com materiais
artificiais”4, instalações efémeras de grandes dimensões, que ocupavam por completo o
espaço a si destinado, sendo que, a partir do ano de 1988, se dedica a trabalhar
exclusivamente com ferro e a pintá-lo de negro.
Apesar da contemporaneidade da sua obra, Rui Chafes assume-se, enquanto escultor,
como uma força do passado; em A História da Minha Vida,5 a sua autobiografia artística,
refere que nasceu em 1266 “numa pequena aldeia, que já não existe, na Francónia, na
Baviera”.6 Esta frase marca o início do seu verdadeiro percurso de vida, e por toda a sua
longa tradição escultórica, que começou aos vinte anos com a sua colaboração nas
2 Entrevista por Sílvia Gonçalves, no jornal Público, em Dezembro de 2008. 3 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p. 112. 4 Ibid., p. 112. 5 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014. 6 Ibid., p. 11.
5
esculturas para a ala oeste dos patronos fundadores da Catedral de Naumburg, Uta e
Ekkehard II.
Despertado pela curiosidade em relação à produção artística realizada nessa época
noutros locais da Europa, e devido à necessidade de trabalho, começou um extenso e
árduo caminho que duraria vários anos, sendo conduzido a diferentes paragens o que se
traduziu numa aprendizagem decisiva para a realização da sua obra atual.
A primeira paragem fora do seu país natal foi em França, onde durante um breve período
de tempo trabalhou nas esculturas na Catedral de Reims, tendo-se especializado na
representação de sorrisos de anjos, porém o desejo de conhecer o que estava a acontecer
no outro lado dos Alpes, o chamado berço do ocidente, fez com que se dirigisse a Itália
onde, em Lucca, entre 1406 e 1407, teve a oportunidade de trabalhar na execução do
Túmulo de Ilaria del Carreto com o mestre Mestre Jacopo Della Quercia, cuja “escultura
possuía uma qualidade formal irrepreensível aliada a uma serenidade e sentido de beleza
inultrapassável”.7
Os anos vividos em Itália transformaram por completo a visão artística do escultor e a
decisão de retornar à sua origem na Francónia foi tomada com o objetivo de retomar o
seu caminho na procura ardente não só de um trabalho vantajoso, mas também de um
mestre, alguém que fosse capaz de lhe mostrar o sentido da sua procura “para ela não ser
apenas uma demanda errática”.8
Segundo o escultor há muito que admirava com grande fervor um dos grandes nomes
dessa época, Tilman Riemenscheider, o mestre de Würzburg; na altura surgiu a
oportunidade de trabalhar com ele, o que para o artista foram “dias inesquecíveis em que
a honra e o privilégio de trabalhar com aquele que eu considerava o maior Mestre-
Escultor de toda a Alemanha me encheram da maior alegria que se pode ter: saber que se
está a tomar parte, mesmo que ínfima, na criação de um momento de eternidade”.9
Segundo refere o escultor, foi com Tilman Riemenscheider que aprendeu a lidar com os
seus próprios limites, com os limites da matéria, e a transformar esses mesmos limites
“numa marca da passagem de um sopro capaz de transformar o peso da matéria na leveza
7 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014., p.16. 8 Ibid., p.19. 9 Ibidem.
6
do espírito”.10 Enquanto seu aprendiz entre 1497 e 1510, trabalhou nas esculturas para o
Túmulo do Imperador Heinrich II e Imperatriz Kunigunde, na Catedral de Bamberg, no
Altar do Sangue Sagrado, em Rothemburg Ob der Tauber e, por fim, no Altar de Maria,
em Creglingen.
Após esse período considerado por si maravilhoso, regressou em 1530 a França onde,
decorriam obras de extrema relevância arquitetónica e escultórica, e foi aceite para
trabalhar com Jean Juste (Giovanni di Giusto Betti) na concretização do túmulo de Louis
XII e de Anne de Bretagne que, segundo o escultor, a “obra representou a passagem
maravilhosa que se possa imaginar do hieratismo e rigidez das representações arcaicas e
góticas da morte para assunção da imagem da morte”.11 Finalizada a encomenda, teve
ainda a honra de trabalhar com o grande mestre francês Germain Pilon na elaboração do
primeiro túmulo de Henri II e Catarina de Médicis, onde lhe foi atribuída a árdua tarefa
de executar a mão da rainha.
A necessidade de “regressar à luz que transforma tudo o que é real numa hipérbole da
realidade”12 fez com que, depois da longa estadia em França, se dirigisse a Roma onde
conheceu e trabalhou com Stefano Maderno, um dos primeiros mestres do período de
transição que se vivia na elaboração do retrato fúnebre de Santa Cecília na Chiesa di
Santa Cecilia, em Trastevere, finalizado em 1600, cabendo-lhe a responsabilidade de
esculpir a ferida aberta no pescoço degolado da Santa.
Quis o destino que o seu caminho se cruzasse com o de Gian Lorenzo Bernini no começo
da sua brilhante carreira, trabalhando na sua oficina, entre 1622 e 1623, na produção da
escultura Apolo e Dafne, tendo a aprendizagem anterior com o mestre de Würzburg
atingido a perfeição por via da transformação do mármore em carne. A força e a energia
que emanava do génio criativo de Gian Lorenzo Bernini deixaram-no à beira de um
esgotamento, pondo em causa tudo o que tinha realizado até então e, exausto, sentiu-se
obrigado a regressar ao seu país natal, a Alemanha, que era o “local da alma, o local onde
o nevoeiro, a falta de luz e a pele branca dos seus habitantes nos prometem a existência
de um mundo interior, não apenas um mundo virado para fora como no sul”.13
10 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.19. 11 Ibid.,p.21. 12 Ibid.,p.24. 13 Ibid.,p.21.
7
Viveu durante esta época principalmente de dinheiro acumulado enquanto assistente do
famoso escultor italiano e de alguns trabalhos realizados de pouca relevância. Habitava
em si um sentimento de tristeza, um mal-estar e acima de tudo o sentimento de traição a
todos os grandes Mestres que havia venerado no passado, especialmente em relação a
Tilman Rimenschneider, que lhe tinham ensinado a espiritualidade da Escultura.
Com o início da revolução romântica, por volta do ano de 1795, o escultor reencontrou o
rumo que havia perdido anos antes; a visão do mundo apresentada por um grupo de
filósofos, artistas e pensadores interessava-o de tal forma que se tornou amigo de um
deles, Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, mais conhecido por Novalis; foi neste
poeta-filósofo que finalmente encontrou alguém que dava sentido à sua corrente de
pensamentos. A sua relação foi de um crescente envolvimento, de tal forma que o artista
sentiu a necessidade de traduzir para português uma seleção de palavras e fragmentos do
escritor romântico, que lhe tocavam profundamente a alma. Após a morte repentina, em
1802, de Novalis, com apenas 29 anos de idade, decidiu permanecer na Alemanha, onde
no ano de 1808 trabalhou com Philip Otto Runge na elaboração das gravuras do seu
projeto As Horas do Dia; este trabalho constituiu a escola de desenho tardia do escultor.
Com a morte de Philip Otto Runge, no ano de 1810, sentiu-se mais uma vez desamparado,
mas, acima de tudo grato, pela sua existência, e à de Novalis no seu percurso pois, graças
a eles conseguiu reconciliar-se com o seu passado e sobretudo com a sua natureza mais
íntima.
Todo este trajeto percorrido pelo escultor, ao longo dos séculos, tornaram possível a
criação do seu próprio caminho nos dias de hoje, onde graças à aprendizagem com os
mestres e pensadores do passado pode dedicar-se exclusivamente à sua própria obra na
esperança de conseguir criar “um dia alguma escultura válida”.14
14 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.34.
8
1.2 A Lição dos Mestres
1.2.1 Tilman Riemenschneider - A Espiritualidade Medieval
O trabalho do escultor português encontra ressonâncias em inúmeros artistas ao longo de
uma vasta e diversa cronologia. Apesar da história da arte compreender diferentes
momentos, para Rui Chafes, assume-se como uma continuidade e é por esta razão que
elege o escultor alemão Tilman Riemenschneider, como o seu grande mestre e exemplo.
Segundo o artista, a obra deste artista do Gótico Tardio foi “uma grande revelação na arte.
Tive então o sentimento real de que algo tremendo poderia ser criado pela forma. Aquelas
eram as esculturas que eu queria ver. Um artista tem de fazer a arte que ele próprio quer
ver, não é verdade?”15
Tilman Riemenschneider nasceu no ano de 1460 em Heiligenstadt, Estado da Turíngia,
na Alemanha central. Em 1483, instalou-se na cidade de Würzburg, onde se juntou à
Irmandade de São Lucas, e deu início ao seu percurso artístico enquanto aprendiz numa
oficina local. O seu casamento com Anna Schimdt, no ano de 1485, permitiu-lhe ocupar
um lugar de relevo na classe burguesa da cidade, adquirir o título de mestre e
posteriormente constituir a sua própria oficina.
A virtuosidade dos seus trabalhos iniciais e o seu estatuto social fizeram com que
rapidamente a sua oficina de escultura se tornasse uma das mais prolíferas e importantes
da região da Francónia, tendo recebido comissões eclesiásticas e municipais da cidade de
Würzburg e também de outras cidades como Bamberg e Wittenberg, situadas nos
arredores e fora do território diocesano. O escultor empregava cerca de quarenta
assistentes, o que na época correspondia a uma equipa de trabalho sólida e fértil, e
enquanto mestre liderou e procurou manter a excelência da sua produção durante mais de
quatro décadas.
Em 1505, foi eleito vereador municipal, cargo que viria a desempenhar durante duas
décadas o que contribuiu para que conseguisse obter encomendas de grande valor e
importância. Entre os anos de 1520 e 1524, ocupou o lugar de Presidente da Câmara, no
entanto durante a revolta dos camponeses alemães, por se recusar a seguir ordens
15 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 156.
9
superiores, foi preso, torturado e perdeu não só grande parte das suas propriedades como
também o seu estatuto de artista e cidadão de respeito. Este acontecimento fez com que a
sua carreira artística terminasse de forma repentina e trágica. Tilman Riemenschneider
faleceu a 7 de julho de 1531 na cidade que o acolheu e permaneceu maior parte da sua
vida, tendo deixado um importante legado artístico, com obras dispersas por várias
catedrais e igrejas da região da Francónia e Alta Baviera.
O escultor alemão ganhou notoriedade pela forma precisa como trabalhava diversos
materiais, entre os quais a pedra, o alabastro, o mármore avermelhado, o calcário amarelo
e a madeira. A sua obra caracterizada por linhas cortantes, com contornos de grande
precisão e rigor, pelo modo notável de tratamento das figuras que lhes conferia uma
expressividade emotiva interior ímpar, demonstrou ser capaz de transcender as limitações
da escultura da época. Sobre o escultor alemão, Rui Chafes afirma: “esta exatidão no
Tilman Riemenschneider, esta sobriedade que para mim é exemplar. O que também muito
admiro nele é a linha. Ele trabalha com contornos precisos, a partir de linhas claras e
cortantes e, quando consigo eu próprio isso, fico feliz.”16
A exaltação de jogos de luz, a minúcia e a intensidade expressiva das suas obras criam
uma arte direcionada a cativar não apenas o olhar do devoto mas também fazer com que
este eleve o seu espírito, convidando-o a abandonar o seu próprio corpo e ascender
perante Deus. Uma arte destinada a alcançar o espírito através da emoção, elemento
também valorizado pelo escultor português no seu trabalho, pois defende que “o mais
importante na arte é a emoção. Só a emoção pode tocar as pessoas”.17
Na referida autobiografia artística , o escultor português reitera o que verdadeiramente
aprendeu com aquele que considerava na época o maior Mestre-escultor de toda a
Alemanha:
Com ele, com as suas sábias e experientes palavras, aprendi como o vento passa pelos cabelos e pelas roupagens de pedra dos santos, se for soprado pelos olhos visionários de quem acredita nos limites intemporais e permanentes da Escultura. Com esse grande mestre aprendi a lidar com os meus limites, com os limites da matéria, e a transformar esses limites numa marca da passagem do sopro que transforma o peso da matéria na leveza do espírito. Não há magia aqui, apenas o trabalho, a sabedoria e a experiência. Só a certeza e a crença de que, apesar de os objectos não existirem, de não ser possível acreditar na sua existência, de apenas
16 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 156. 17 Ibid., p.95.
10
serem uma possibilidade e não uma certeza definitiva, eles são a única maneira, que temos ao nosso alcance, de mostrar um pensamento no espaço.18
Se, com Tilman Riemenschneider, Rui Chafes aprendeu lições de extrema importância,
foi neste período de transição do Gótico tardio assim como na Arte Medieval que
encontrou muitos dos valores que enformam o seu pensamento e obra.
Nestes destacam-se a sabedoria, a experiência, a espiritualidade mas, acima de tudo, o
despojamento do ego, o trabalho de oficina e a ética do artista. Para o escultor português
é lhe inconcebível não existir uma ética de trabalho, é nela que reside a diferença entre os
artistas. Ao mesmo tempo interessa-lhe na escultura medieval “a ideia de prescindir do
ego...De facto é um luxo; mas ao mesmo tempo o mais difícil é abdicar e prescindir do
ego; e ao abdicar do ego, todas as portas estão abertas”.19 Rui Chafes afirma ainda que só
acredita “na obra dos artistas individualistas, dos que são inclassificáveis, dos que fazem
tropeçar a máquina, dos que são uma pedra no sapato ou um acidente na história : os lobos
loucos, os casos diferentes, os casos raros, não me interesso por artistas de grupo ou de
gaveta”.20
Ao escultor português sempre lhe interessou refletir sobre o lugar da escultura no mundo,
como refere, pois existe uma grande diferença em a expor no local a si destinado, a igreja
e o museu um espaço inerte e neutro. Segundo Rui Chafes, “os museus preparam a morte
cuidadosamente, encenam a morte sob a forma de tédio e de vigilantes adormecidos. A
igreja é o local onde estes trabalhos iniciaram o seu questionamento do mundo é o inicio
dos seus problemas; porque antes de serem arte no museu, foram instrumentos de fé numa
igreja”.21 Para o escultor português, “a arte sempre foi religiosa. No fundo, não era
necessário conhecer a verdade, era preciso amar e acreditar: a fé era o conhecimento. Sem
esse espaço de silêncio e sem essa sacralização das palavras e gestos torna-se difícil
acontecer a sublime mentira da arte. E assim será sempre, desde do principio do mundo
até ao fim do mundo.”22 Esta ideia fundamental expressa na sua obra liga-o a Tilman
Riemenschneider e à espiritualidade medieval.
18 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.19. 19 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.95. 20 Ibid., p.94. 21 Ibid., p.95. 22 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.48.
11
1.2.2 Alberto Giacometti – A Redução
No contexto europeu pós-segunda guerra mundial, Alberto Giacometti, juntamente com
Joseph Beuys são considerados por Rui Chafes como possivelmente os grandes escultores
desse período; segundo o artista “os dois são, à distância que o tempo nos permite, os que
conseguem instaurar uma linguagem de resistência válida e sólida, capaz de ser
confrontada com a vitalidade, a radicalidade, a inovação e a capacidade de afirmação
(e de teorização das próprias práticas artísticas) da escultura americana”.23
Alberto Giacometti nasceu a 10 de Outubro de 1901 em Borgonovo, na região dos Alpes
Suíços. Em 1922, mudou-se para Paris, onde ingressou na Académie de la Grande
Chaumière, e frequentou as aulas do escultor Antoine Bourdelle.
Nos primeiros anos na cidade visitou inúmeros museus, dedicou-se ao estudo e à cópia
de obras egípcias, medievais, desenvolveu um interesse pela escultura africana e pela arte
oceânica. Descobriu também o Surrealismo, e algumas das suas esculturas iniciais como
a Tête qui regarde, de 1929, ou a Boule suspendue, de 1930-31 demonstram uma clara
influência do movimento nos seus traços e formas. A convite de André Breton, a partir
de 1931, o escultor suíço colaborou em manifestos, publicações, exposições e atividades
realizadas pelos Surrealistas, antes de abandonar o grupo no ano de 1935.
Ao longo deste período Giacometti, intensificou as suas experiências estilísticas através
da combinação de formas cubistas com elementos egípcios e alguns traços de influência
primitivista, numa tentativa de representar o movimento e elaborar esculturas afetivas.
Durante a Segunda Guerra Mundial regressou à sua localidade natal onde conheceu a
futura mulher, Annette Arm, que, juntamente com a sua mãe e o irmão Diego serviu de
modelo para as suas obras posteriores. Em 1946, voltou a Paris e ao trabalho no seu
pequeno atelier, na rua Hippolyte-Maindron conservado, no decurso da sua ausência pelo
irmão também artista e seu assistente.
23 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p. 60.
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Num período marcado pela tentativa de reencontro com valores humanos, considerados
esquecidos, e pela constante memória dos horrores vividos durante a guerra, abriu-se à
luz da época o debate sobre a condição humana. Ao encontrar a cidade completamente
transformada e diferente daquilo que conhecera, Alberto Giacometti começou a
frequentar novos locais, a aumentar os seus círculos de amizade e a participar em
discussões de carácter filosófico na companhia de Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre.
Este último filósofo e escritor viria a escrever dois textos, que se tornariam importantes
para a receção do trabalho do escultor não só no meio artístico como na sociedade da
altura.
Enquanto no panorama artístico predominava maioritariamente uma arte de carácter
abstrato, as esculturas do artista restabeleceram a figura humana como temática principal,
sendo que a partir deste momento Giacometti iniciou uma busca obsessiva pela sua
representação e desmaterialização através da redução, característica que viria marcar a
sua obra até ao final dos seus dias.
As suas esculturas ascendem a uma dimensão espiritual, Giacometti representa figuras
esguias maioritariamente do sexo feminino, em andamento, alongadas, assemelhando-se
a sombras assentes sobre um bloco quadrangular, primeiramente moldadas em gesso, e
finalizadas depois em bronze. Na época, Jean Paul-Sartre referiu a razão desta escolha;
segundo o filósofo, Giacometti “não gosta da resistência da pedra, que trava os seus
movimentos. Escolheu para si uma matéria sem peso, a mais dúctil, a mais perecível, a
mais espiritual: o gesso. Mal o sente na ponta dos dedos, o gesso é a contrapartida
impalpável de seus movimentos”.24
A obra do escultor suíço pretende ser uma tentativa de representação da condição frágil
do ser humano, da sua efemeridade, através da anulação e redução da matéria, reduzindo
a escultura à sua essência, ao seu núcleo confrontando, o observador com a sua própria
existência, a sua fragilidade e vulnerabilidade. Com Giacometti, segundo o juízo de
Sartre, “jamais a matéria foi menos eterna, mais frágil, mais próxima de ser humana”.25
Na realidade as suas esculturas acabam por ser versões de apenas uma única escultura,
numa obsessão constante por parte de Giacometti de tentar representar o invisível através
24 SARTRE, Jean-Paul – Textos de Giacometti. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 20. 25 Ibid., p.22.
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do visível, reduzindo a escultura à sua essencialidade, neste caso a um traço, um
movimento.
Na verdade, e de acordo com Rui Chafes:
O caminho da negação, da redução, da austeridade e ascetismo, da discriminação, tomado por Giacometti, conduziu-o à criação de um espaço calcinado. O espaço é a matéria da sua escultura: mais do que invólucros vazios, as suas figuras são espaços ou impossibilidades de ocupar o espaço. Aqui se apresenta um testemunho do homem desprovido de qualidades individuais, o Homem tornado local, lugar, espaço. O Homem destruído, esburacado, dissecado, exaurido. A secura, a rarefação radical dos propósitos figurativos e a redução da figura à sua própria tortura abriram o caminho para a moderna escultura: a escultura da consciência. Aliás a enorme grandeza de Giacometti reside na sua extrema e radical consciência, que o levou sempre a tentar e a falhar e a considerar sempre a arte como uma tentativa votada ao fracasso. 26
A ideia de redução é também para Rui Chafes indispensável; o escultor acredita que a
“redução é uma transcendência e essa ideia de transcendência associada à redução, é uma
ideia que é fundamental para o meu trabalho”.27
Apesar da distância temporal existente entre os dois escultores, ambos apresentam
grandes afinidades entre si, o abrandamento, a sua forma de trabalhar isolada e
persistentemente, o aparente distanciamento entre a sua obra e uma suposta estética
homogénea contemporânea, o regresso à solidão e ao trabalho de oficina como elementos
essenciais na construção da obra de arte e a assunção da impossibilidade do objeto.
Em relação a este aspeto, o artista português afirma que Alberto Giacometti é “um
escultor de quem me sinto próximo por trabalhar na desmaterialização do objecto e na
sua apresentação enquanto impossibilidade.”28 Em relação à obra do escultor suíço,
Jean Paul Sartre chegou também a afirmar na época que “se para esculpir, é preciso talhar
e recoser nesse meio incompreensível, então a escultura é impossível.”29
Segundo Rui Chafes a memória no trabalho de Giacometti é uma memória não histórica
e como afirmam as palavras de Jean Genet;
Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é a oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem ou rejeitam [...] Embora presentes, onde pertencem essas figuras de Giacometti, senão à morte? De onde voltam ao mínimo apelo dos nossos olhos, direito a
26 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 59. 27 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 93. 28 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Espaço ( Arte Contemporânea). Montemor-o-Novo: Oficinas do Convento, 2009, p.94. 29 SARTRE, Jean-Paul – Textos de Giacometti. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 23.
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nós. [...] A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas; solidão, nossa mais certa glória! [...] Giacometti não trabalha para os contemporâneos nem para as gerações futuras: ele esculpe estátuas que arrebatam enfim os mortos.30
Semelhante ao pensamento do escritor francês a arte para o escultor português é também
para os mortos, pertence ao considerado território da morte. A escultura de Rui Chafes
procura assim como a de Alberto Giacometti ser uma “arte muito dura capaz de se infiltrar
pelas paredes porosas do reino das sombras.”31
Alberto Giacometti, faleceu em 1966, em Chur, Suiça, curiosamente no mesmo ano em
que nasceu o escultor português.
30 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p.61. 31 Ibidem.
15
1.2.3 David Smith – A Experiência Artística do Ferro David Smith assume-se como uma das figuras mais importantes no contexto do
modernismo e da escultura em ferro, partilhando com Rui Chafes uma relação de
proximidade, no sentido em que os dois escultores pertencem à tradição milenar do
trabalho com o ferro.
Numa das suas primeiras exposições individuais, em 1995, no Centro de Arte Moderna
intitulada de Würzburg Bolton Landing o escultor português criou uma proximidade com
David Smith e Tilman Riemenschneider, fundindo duas obras escultóricas temporais
distintas, enfatizando desta maneira, a sua ideia de uma arte involutiva e o próprio
posicionamento na história da escultura da sua obra.
David Smith nasceu a 9 de março de 1906, em Decatur, no estado do Indiana, Estados
Unidos da América. Durante um ano frequentou a Universidade de Ohio, tendo desistido
para trabalhar em 1925 na Studebaker Automobile Factory South Bend numa linha de
montagem de automóveis. Neste período aprendeu a soldar e outras técnicas associadas
a este processo que viria depois recuperar e utilizar ao longo da sua carreira artística.
Em 1926 mudou-se para Nova Iorque, onde estudou pintura e desenho na The Arts
Students League, durante cinco anos.
Iniciou a sua carreira artística como pintor, tendo sido assistente de Arshile Gorky e
Willem de Kooning, porém, no ano de 1930, trocou de forma definitiva este papel para
se dedicar apenas à escultura, após tomar conhecimento do trabalho escultórico de Pablo
Picasso e de Júlio Gonzalez através da revista Cahiers d’Art. Este momento demonstrou
ser fulcral para o seu trajeto, pois percebeu naquele instante que as técnicas aprendidas
na fábrica de automóveis se podiam aplicar à arte, mais precisamente à prática escultórica.
Em 1940, decidiu trocar Nova Iorque definitivamente por Bolton Landing, local onde
tinha instalado um estúdio para se dedicar à escultura livremente, sem restrições de espaço
e afastar-se do panorama artístico vivido mais intensamente nos ambientes urbanos.
As suas primeiras esculturas em madeira apareceram como um prolongamento das suas
telas, seguindo a tradição pictórica do expressionismo abstrato, assemelhando-se a
desenhos no espaço, foi só entre 1930 e 1933 que começou a introduzir linhas, formas
realizadas em metal e a utilizar materiais não convencionais nas suas obras.
16
Como assinala Rosalind Krauss, a influência do Surrealismo em “David Smith nas
décadas de 30 e 40 voltou a atenção do artista para uma escultura imbuída de uma
estratégia de confrontação e para temas envolvendo objetos mágicos como fetiches e
totens”.32 Foi também a partir desta época, e com a ajuda de uma bolsa da Fundação
Guggenheim que o escultor conseguiu obter as condições necessárias para ampliar a
dimensão das suas obras, a sua série Totem situa-se em um estranho limiar, a meio
caminho entre a figura humana e o signo abstrato”.33 O totem não era para Smith, um
objeto arcaico, mas uma expressão poderosa de desejos e sentimentos que sentia atuar
sobre ele e na sociedade como um todo.
A sua série mais conhecida Cubi, iniciada em 1962 e finalizada no ano de 1965 consistia
em dezoito esculturas de dimensões monumentais, realizadas em aço inoxidável polido,
num estilo mais abstrato espaços vazios intercalados com figuras geométricas
equilibradas através de uma composição imutável, demonstrando uma qualidade instável
e dinâmica, características presentes no seu trabalho mais maduro, e reflexo também de
uma civilização tecnológica. Ao invés de disfarçar as características do material industrial
como a durabilidade, Smith optou sempre por exalta-las nas suas esculturas, tornando-se
assim um dos artistas que mais contribuiu para a utilização do metal no meio artístico.
A obra de David Smith foi capaz de se libertar das convenções escultóricas americanas
da época, apesar das formas maciças e dos materiais pesados por si utilizados, assim como
das técnicas que empregava o que lhe permitiu trabalhar com grande liberdade e acima
de tudo rapidez, assemelhando-se neste aspeto à prática artística de Rui Chafes e do seu
trabalho escultórico.
Para o escultor americano o uso da cor nas suas obras funciona não como componente da
experiência estética do observador mas como material da escultura per se em
contrapartida para o artista português este elemento é utilizado como forma de apagar a
sua presença, o seu toque, a matéria e esconder o material por si utilizado.
David Smith faleceu no ano 1965 tendo deixado para além de um grande legado artístico,
o testemunho do seu trabalho presente na sua propriedade de Bolton Landing, Nova
Iorque.
32 KRAUSS, E.Rosalind – Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.184. 33 Ibid., p.175.
17
1.2.4 Richard Serra – A Leveza e o Peso
No contexto artístico norte-americano pós segunda guerra mundial, a obra de Richard
Serra surge como uma referência estética associada principalmente ao minimalismo e ao
pós-minimalismo continuando a trabalhar nos dias de hoje. Nasceu em São Francisco,
nos Estados Unidos da América em 1938, vivendo e trabalhando atualmente entre Nova
Iorque e North Fork of Long Island. Estudou literatura inglesa entre 1957 e 1961 na
University of California at Berkeley e Santa Barbara antes de ingressar na Universidade
de Yale para estudar pintura durante os anos de 1961 e 1964.
Ao terminar o curso foi lhe atribuída a Yale Travel Fellowship, uma bolsa destinada a
viajar, com ela o artista aproveitou para passar o ano a visitar inúmeros locais da Europa
e do norte de África. Durante este período, o jovem artista foi ainda convidado a realizar
a sua primeira exposição individual na Galleria La Salita, em Roma.
Em 1966, ao regressar aos Estados Unidos, mudou-se para Nova Iorque, convivendo com
Eva Hesse, Carl Andre , Sol LeWitt, Robert Smithson e Walter De Maria. Durante esse
ano, realizou também as suas primeiras experiências escultóricas com materiais não
convencionais, como a fibra de vidro, a borracha, as lâmpadas de néon e, posteriormente,
o aço. A este material podemos associar uma vasta parte da sua obra, ao decidir usá-lo de
uma forma exclusiva, demonstra uma tentativa de explorar todas as possibilidades
associadas ao aço, evitando o risco de se esgotar as suas potencialidades.
O método e os processos de trabalho de Serra, apresentam-se como uma clara herança da
revolução industrial, através da criação de uma linguagem muito própria assente em
princípios como o peso, o equilíbrio e a densidade os quais fizeram com que o escultor
tivesse de trocar o seu atelier pela fábrica, tornando-se dependente de estruturas de
produção industriais. Neste sentido, pode afirmar-se que a fábrica funciona como uma
oficina, onde cada pessoa possui uma função especifica e importante na elaboração da
escultura, desde do engenheiro ao responsável pelo transporte da mesma.
Na obra de Rui Chafes, podemos encontrar diversas afinidades com a de Richard Serra,
nomeadamente na dicotomia leveza-peso, existente no modo como os dois escultores
utilizam e manipulam o aço e o ferro, respetivamente. Apesar de trabalharem um material
e objetos extremamente pesados a sensação que transmitem é a de uma leveza ímpar como
18
se através dos processos utilizados fossem capazes de eliminar o peso inerente ao
material, numa espécie de busca da transcendência da forma.
Rui Chafes e Richard Serra foram capazes de superar a questão de self-expression, ao
criar uma arte sem referências autobiográficas diretas, de universos interiores intangíveis
ou das suas próprias sensibilidades. Na sua obra, o escultor americano procura deixar as
marcas de todo o processo oficinal, numa tentativa de envolver o observador no seu
processo criativo e exploratório; por outro lado o artista, português pretende eliminar
qualquer tipo de vestígio associado à sua presença, à conceção e ao excesso do objeto,
revelando apenas o essencial, o que considera ser, no limite, a sua inexistência.
As esculturas de Serra envolvem o espectador, possibilitando uma experiência
espácio-temporal, na qual o corpo e objeto se confrontam enquanto que as esculturas de
Chafes são realizadas para serem experienciadas com o olhar mas acima de tudo com o
espírito e o pensamento. Se ao escultor americano interessam maioritariamente os
percursos e a espacialidade da sua escultura, o artista português parece buscar um único
caminho, abrindo “espaço” ao espírito e à transcendência.
19
1.2.5 Ad Reinhardt – A Absorção da Luz
Adolph Frederick Reinhardt, mais conhecido por Ad Reinhardt, nasceu no ano de 1913
em Buffalo, estado de Nova Iorque, no seio de uma família de imigrantes. Desde uma
tenra idade, manifestou um grande interesse pelo universo artístico, mais precisamente
pelo desenho e pela pintura. Estudou história da arte e filosofia na Columbia University
antes de ingressar na American Artists School no ano de 1936 para estudar pintura, onde
foi colega de Carl Holty e Francis Criss. Trabalhou como professor grande parte da sua
vida, dedicou-se à leitura e à escrita de documentos que se tornariam importantes para o
panorama artístico do seu e do nosso tempo. Foi membro do movimento American
Abstract Artists e fundador do Artist’s Club. Tendo falecido a 30 de Agosto de 1967, em
Nova Iorque.
Sob influência do Cubismo, do construtivismo e das composições austeras de Piet
Mondrian, Ad Reinhardt deu início à sua carreira artística como pintor no ano de 1936,
tendo sido associado neste período ao expressionismo abstrato, as suas obras
assumem-se maioritariamente de carácter abstrato com colagens de jornais e
representações geométricas planas de cores vivas.
A partir da década de 1940 a sua pintura tornou-se mais expressionista, e o seu interesse
recaiu sobre o estudo cromático, tendo-se dedicado à expressão pictórica através do uso
de apenas uma cor com variações sobre a mesma. Durante a década de 1950 e seguintes
aprofundou, radicalizou e centrou a sua obra em variações cromáticas sobre três cores
distintas: o azul, o vermelho e o preto.
A sua obra gradualmente foi-se simplificando através do jogo de formas geométricas,
diminuição das cores utilizadas, e o pintor passou a integrar um movimento apelidado de
Hard Edge; nesta fase, pintou faixas de cor pura com contornos claramente separados
sobre a tela. Entre 1953 e 1967, levando ao extremo o abstracionismo realizou a série que
viria a tornar-se mais conhecida, Black Paintings, consistiam em pinturas
monocromáticas onde o artista, através do uso total do preto ou de variações cromáticas
do mesmo, pretendia eliminar o caráter simbólico na sua totalidade. Constituindo-se o
preto uma não-cor, ou a ausência de cor, conceito presente e importante na obra de Rui
Chafes.
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Defensor de uma arte pela arte – art as art , Ad Reinhardt conseguiu superar a questão da
self-expression, quando escolheu centrar a sua obra nas possibilidades de variações
cromáticas, fê-lo por estas transmitirem o seu conhecimento sobre a sua função e
possibilidades, não por causa do simbolismo a si associado. Com as suas obras pretendia
alcançar uma experiência rigorosamente estética, onde as sensações provocadas no
observador advinham da experiência perante a pintura e não através de referências ou
experiências meramente evocativas. Deste modo, queria atingir um objeto auto
consciente, transcendente, puro que não refletisse o ambiente onde se inseria.
Após várias tentativas e anos de pesquisa, acreditava no fim da sua vida ter atingido aquilo
que considerava ser o fim da pintura, a sua pureza máxima atingida nos seus Ultimate
Paintings, Nestas obras de grandes dimensões, as diferentes tonalidades do preto eram
impercetíveis, Ad Reinhardt pretendia alcançar uma pintura ausente de textura onde a sua
pincelada simplesmente não era visível e a sua assinatura inexistente.
Desta forma as suas séries de cor negra exigem mais por parte do observador, “todas as
pinturas negras procuram a intemporalidade estática da forma e todas procuram absorver-
nos no insondável mistério das sombras que adivinhamos querer envolver-nos, fechar-
nos os olhos. Por vezes é uma experiência religiosa de esvaziamento e recomeço.”34
Muitas das características do trabalho de Reinhardt podem ser observadas na escultura de
Rui Chafes nomeadamente a ausência de self-expression, a utilização da cor negra como
forma de apagamento, ausência não apenas da sua presença como a do objeto, para anular
o uso da matéria e a ausência da sua assinatura nas obras, enfatizando desta forma o seu
anonimato.
No seus escritos o escultor português referiu a razão pela qual nas suas esculturas utiliza
a cor negra, segundo ele: “as minhas esculturas são negras mas sem brilho. Não quero
que a sua presença reflicta a luz, quero que a absorva. Tal como as pinturas de Ad
Reinhardt, a presença vem do negativo, da absorção da luz, não da sua reflexão. São
sombras, são negativos. São negativos de esculturas, sombras de esculturas, um
contra-mundo, anti-esculturas”.35
34 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.52. 35 SERRA, Rui – Esferas Suspensas, entrevista a Rui Chafes in Revista:Estúdio, Vol.5, 2014, p.182.
21
2. A Condição Existencial
2.1 A Queda do Objeto
Por considerar que o mundo é feito de impurezas, corrompido pela sua própria
materialidade, Rui Chafes recusa a matéria e não acredita na existência dos objetos.
Neste sentido, e numa tentativa de superar esta problema, atribui grande importância à
elevação destes a um estatuto de pensamento, com a crença de que apenas deste modo é
possível a sua validade e existência. Apesar de nunca referir explicitamente Platão, esta
linha de pensamento, recorrentemente defendida pelo escultor, atribui à sua obra uma
dimensão quase neoplatónica, aproximando-a à conceção do mundo apresentada pelo
pensador grego.
Platão foi dos primeiros filósofos da antiguidade clássica a reconhecer a espiritualidade
da alma e a existência de um ser superior, um demiurgo, responsável pela criação e
organização do universo; de uma forma clara, o pensador concebeu ainda a distinção de
dois mundos, o mundo sensível e o mundo inteligível, neste residindo a verdade.
O primeiro corresponderia ao mundo da corporeidade, material, físico, e o segundo ao
mundo das Ideias, necessárias, invisíveis e eternas. Para o filósofo, as Ideias são
realidades objetivas, puras, imutáveis e perfeitas.
Segundo também Platão, o mundo sensível é uma fonte de ilusões, a sua realidade é
“emprestada”, pois o princípio da sua existência encontra-se no mundo verdadeiro das
Ideias, o inteligível, os objetos sensíveis são apenas uma cópia imperfeita deste mundo,
uma mera aparência da verdadeira realidade. O mundo é criado a partir de paradigmas e
através de modelos; como afirmou no diálogo Timeu, as coisas existem apenas por
imitação, e a sua existência é o resultado da operação realizada pelo demiurgo que deu à
matéria uma forma, ela própria incriada e eterna.
Desta forma, a nossa realidade objetiva, a do mundo sensível, é apenas uma cópia
imperfeita daquela que é a verdadeira realidade, a do mundo inteligível. O filósofo
acredita que as coisas que habitam o mundo sensível são corruptas no sentido em que são
cópias de algo muito anterior à sua própria existência. Segundo Platão, para além do
mundo sensível e do mundo inteligível, existe ainda um “espaço”, lugar, que apelidou de
22
Chora, e que repousa entre dois mundos, onde tudo passa e nada é retido. A Chora possui
características do inteligível e do sensível, é invisível e amorfa, ao mesmo tempo que é
tangível. Este espaço é responsável por receber e moldar as cópias sensíveis das Ideias,
tornando assim possível a sua existência no mundo sensível.
Neste sentido, e como afirma Raymond Bayer, “a metafísica platónica é uma estética
formada pelas Ideias que [...] verificamos, no termo da dialética, por um salto, por uma
espécie de intuição intelectual, temos a visão das Ideias. Logo, a exerção suprema excede
o intelectual e pertence à intuição da inteligência, domínio próprio da estética”.36
As Ideias são apreendidas pelo raciocínio e o intelecto, não pela opinião que, por sua vez,
é associada à subjetividade individual e, acima de tudo, à sensação. As obras de Rui
Chafes, ao requisitarem também uma inteligibilidade, dirigem-se inicialmente aos
sentidos pare se consumar uma experiência de feição espiritual.
Anterior ao nascimento do nosso corpo e da nossa materialidade, Platão acredita que foi
gerada a alma; esta foi gerada de maneira a cumprir uma única finalidade, a de conceder
vida, desígnio e movimento ao corpo. A alma é anterior à criação do mundo sensível,
feito a partir do mundo inteligível; é justamente no mundo sensível, criado pelo
Demiurgo, que opera uma duplicação material do mundo ideal que a alma vai cair por
efeito de uma degradação que Platão nunca explica, a passagem da alma pelo mundo do
tempo e do espaço é considerada uma queda.
A prisão da alma é a materialidade do corpo, quando ela se depara com a Beleza, anseia,
libertar-se e regressar ao mundo anterior à sua queda; Platão define a alma como eterna
e imortal, sendo que a Beleza reside essencialmente nas almas, por estas participarem
daquele que é o mundo das Ideias.
No diálogo Fedro, o filósofo explica a queda da alma humana, que após ter vivido no
mundo superior, o inteligível, caiu no mundo sensível, onde se uniu a um corpo,
materializando desta forma a sua existência. Platão refere também neste diálogo que,
durante a sua vida terreste, os filósofos e os homens nunca conhecerão nada a não ser
através da anamnese.
36 BAYER, Raymond – História da Estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p.37.
23
Em grego, anamnese significa reminiscência, é um ato de recordação da alma, à
semelhança de uma memória esquecida, associada a um estado prévio da sua existência,
ao período anterior à queda. Através da anamnese, o indivíduo reencontra a Verdade
dentro de si, ascendendo a alma ao mundo inteligível, recordando, deste modo, o lugar
onde viveu antes de habitar o mundo sensível. Ao ver as coisas sensíveis, a alma é capaz
de reencontrar, pela semelhança entre a forma física dos objetos e as ideias que lhes
serviram de modelo, a essência inteligível, isto é, a Verdade. Para Platão, a perceção da
Beleza desencadeia um processo anamnésico no qual se atualiza a recordação de um
conhecimento prévio ou seja do verdadeiro real.
O único ser capaz de conseguir transformar objetos em Ideia é o Homem, o seu conhecer
é, deste modo, um recordar de algo que se encontra no interior da alma humana; esta,
através dos sentidos, desloca-se até ao seu cerne, onde confronta os dados da experiência
vivenciada com as ideias que originalmente nela residem, tornando possível atingir o
conhecimento, através da recordação de arquétipos. O conhecimento reside no
re-conhecimento que a alma faz da Ideia, quando, nos objetos, re-conhece a semelhança
que estes mantêm com o mundo inteligível, que foi o modelo da sua conceção, como já
referimos.
Numa sociedade materialista e presa à sua condição mundana, as obras de Rui Chafes
surgem como sombras, negativos que se tornam presenças enigmáticas em colisão com o
mundo onde se encontram, ansiando pelo lugar imaterial de onde vieram e para onde
“regressarão”, por via da experiência estética. Na realidade a única escultura que interessa
ao artista é precisamente a “não escultura”, aquela que “é apenas uma sombra, que existe
entre, que é um negativo, um negativo do mundo, a escultura fugitiva, que não quer
pertencer ao mundo”.37
O artista acredita que a humanidade se encontra prisioneira daquele que é o seu próprio
corpo; na realidade os seus corpos são “apenas resquícios que habitam um mundo mal
feito, incorrecto, mal construído, desconfortável, errado”.38 Enquanto matéria também a
escultura é impura, suja e errada, Chafes defende que a nossa única esperança recai nos
objetos que tenham um estatuto de pensamento, só estes poderão ser uma “uma criação
37 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Rui Chafes - Sob a Pele. Lisboa: Documenta, 2018, p.124. 38 CHAFES, Rui – A Vocação do Medo. Porto: Galeria Atlântica, 1990.
24
que ignore o erro, o peso, a sujidade, a impureza”.39 Para o escultor, todos os objetos que
não advêm de uma ideia, são sujos e errados, como refere.
Ao considerar a própria matéria impura, suja e errada, surge na sua prática escultórica
uma contradição, pois apesar de o artista a elevar a um estatuto de pensamento, não é
possível impedir que esta seja um objeto, sujeitando-se ela própria à materialidade que a
prende. Neste sentido, resta-lhe apenas a “esperança do objeto”, onde a palavra aparece
como a única salvação possível, da redução do objeto à ideia, por via da transcendência.
O objeto apenas é necessário para provar a sua não-existência, a “escultura é apenas uma
hipótese; não é um momento absoluto, é apenas um exemplo. Um objeto é apenas uma
ausência não se pode acreditar nele”.40
A verdadeira dificuldade do escultor reside na impossibilidade de fugir à matéria, fato
que o leva a afirmar: “construo objectos em ferro sem acreditar na existência de objectos,
sem acreditar em matérias. Por isso todos estes objectos têm de ter um estatuto de ideia.
É essa a dificuldade, o eterno paradoxo: criar objectos de matéria para provar que eles
não existem. Não acredito em objectos, mas sei que só posso demonstrar a sua ideia por
meio de objectos. É tudo que me é possível fazer”.41 É necessário que o objeto tenha o
estatuto de ideia, já que o objeto artístico é apenas uma possibilidade, nunca uma certeza,
só uma tentativa:
A distância angustiante entre a matéria e o nome, entre a nossa vontade perceptiva e o estado real do objecto, testemunha a fuga do objecto: deixa de ser para querer ser. Rigorosamente, os objetos tornam-se discursos de ausência, de deslocação. Não há objecto, há a todos os níveis a esperança do objecto. Ele é a especificação da fuga. A ausência é a forma de consciencializar uma afeição. Os objectos estão na sua deslocação. Não são produtos mas estados de movimento: existências em fuga. A ausência torna-se válida como forma criada. No entanto, a falta de realidade sofrida pelo objecto nunca nos faz aproximar dele. Pelo contrário, é sempre a aparência de realidade que nos faz desconfiar dele. Mas, realmente o que amamos é a deslocação, a ausência, a esperança do objecto.42
Quando Rui Chafes constrói os seus objetos não o faz com o intuito destes serem
admirados ou contemplados, mas, antes para serem pensados e transformados por parte
do observador elevando-os a um estatuto de Ideia, numa tentativa de re-encontro com a
39 CHAFES, Rui – A Vocação do Medo. Porto: Galeria Atlântica, 1990. 40 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.41. 41 Ibid., p.119. 42 CHAFES, Rui – A Vocação do Medo. Porto: Galeria Atlântica, 1990.
25
Verdade, a Bondade e a Beleza desaparecida, intangível e absoluta. Com as suas
esculturas, oferece ao espectador a possibilidade de se transformar e, por alguns
momentos, evadir-se deste nosso mundo corrompido, proporcionando-lhe assim uma
experiência estética ímpar. Os transcendentais da Verdade, da Bondade e da Beleza
surgem então como universais que condicionam e tornam possível a experiência estética.
Fora deste contexto da experiência purificadora através da Arte, o objeto acaba por se
tornar matéria, pois sem a existência de um observador o fim estético do objeto não é
completado nem cumprido. Este facto revela a importância determinante da necessidade
de ativação da escultura pelo espectador.
Para habitar este mundo, onde existe matéria os seus objetos assumem formas, as quais,
apesar da sua estranheza acabam por demonstrar uma certa familiaridade com o
espectador, acabando por captar a sua atenção. Acontece que quando tentaram evadir-se
durante a queda, para regressarem ao lugar onde pertencem, um lugar onde não existe a
corporeidade, ou seja o lugar do Espírito, da Beleza, onde reside apenas a Verdade, os
objetos ficaram encarceradas neste mundo, cobertos de cinza.
O escultor fere-nos, desperta-nos, confronta-nos com a nossa queda, e acima de tudo com
a nossa finitude. As suas esculturas transmitem também uma sensação de fragilidade e
leveza, encontram-se em situações limite, de um grande risco, na iminência da sua
permanente queda, num estado de equilíbrio instável entre a presença e a ausência.
Ansiando para que sejam reconhecidas, o encontro com o observador dá inicio e
desencadeia aquele que é considerado como um processo analogamente anamnésico. Ao
depararmo-nos com as esculturas de Rui Chafes, constatamos que estas funcionam como
uma espécie de catalisadores que parecem relembrar o processo gnosiológico platónico,
e o lugar no qual a alma residia antes da queda; de modo análogo, o espectador, parece
lembrar-se da verdadeira identidade dos objetos artísticos, das ideias, do pensamento que
lhes deu origem.
Através deste processo, o espectador “relembra-se”, reencontra a verdadeira Beleza,
transformando assim o objeto em ideia, libertando também a alma, que pretende
reencontrar o mundo anterior à queda, e escapar, assim, à prisão que é o mundo material
e impuro que a acolheu. Na verdade, o trabalho do escultor “é um trabalho de recusa e
de ocultação do individuo e (do individual) através da única e mais nobre demonstração
26
do espírito: a forma pura. Só a forma pura guarda em si a força suficiente para superar o
individual e tender para o universal”.43
Rui Chafes acredita que a salvação do homem se encontra na Arte, como forma da sua
purificação e transformação: aqueles que recusam aceitar estes fatores estão condenados
a ver a escultura como uma forma material e a continuarem presos a um mundo
contaminado e corrupto. A Arte é um enigma, provoca um apelo ao pensamento, é um
meio que nos liga ao espírito, não é explicável, só afeta quem realmente se encontra
disponível para receber essa transformação. “A arte será sempre a fricção entre o mundo
interior e o mundo exterior. A capacidade de transformar esse conflito numa forma
possível é o trabalho dos artistas e dos poetas”.44
43 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.39. 44 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa: Documenta, 2014, p.42.
27
2.2 A Suspensão do Tempo
Segundo Étienne Klein, o tempo pode ser dividido em Chronos e Tempus, o primeiro
corresponde ao tempo físico, objetivo, independente do Homem sendo possível medi-lo
através do uso de relógio, “não depende de nós, é considerado uniforme, sabemos
cronometrá-lo, marca o ritmo do nosso uso do tempo”.45 O segundo designado pelo termo
latino Tempus, diz respeito ao tempo da consciência este é subjetivo, singular, capaz de
ser experienciado pelo Homem ou psicológico, que medimos «no interior de nós
mesmos». “Não se escoa uniformemente e a sua fluidez é variável ao ponto de a própria
noção de duração experimentada ter apenas uma consistência muito relativa. O tempo
psicológico, condicionado pela perspetiva de quem o experiencia, assemelha-se a uma
borracha”.46
A natureza enigmática do tempo intrigou desde sempre a existência humana, que se
dedicou ao longo dos séculos ao seu estudo, na tentativa de conseguir elaborar um
discurso coerente sobre a mesma. No entanto, ao contrário de outras temáticas é
impossível criar-se um distanciamento em relação ao seu conceito, pois este encontra-se
tão intimamente ligado ao ser-humano que se tornou inexequível explicá-lo sem ser
através do uso de metáforas.
Um dos primeiros filósofos da Antiguidade Clássica a dedicar o seu estudo ao conceito
de tempo foi Platão; na obra Timeu apresenta a sua conceção sobre o processo de criação
do mundo sensível e de todos os seres que o habitam, na tentativa de estabelecer um
modelo explicativo do mundo assente numa cosmologia, cujo modelo foi copiado por um
demiurgo. Nesta narrativa o tempo, surge como fenómeno associado ao movimento:
Ora, quando o pai que o engendrou-se deu conta de que tinha gerado uma representação dos deuses eternos, animada e dotada de movimento, rejubilou; por estar tão satisfeito, pensou como torná-la ainda mais semelhante ao arquétipo. Como acontece que este é um ser eterno, tentou, na medida do possível tornar o mundo também ele eterno. Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna, e não era possível ajustá-la por completo ao ser gerado. Então pensou em construir uma imagem móvel da eternidade, e, quando ordenou o céu, construiu a partir a eternidade que permanece uma unidade, uma imagem eterna que avança de acordo com o número; é aquilo a que chamamos tempo.47
45 KLEIN, Ettiene – O Tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.15. 46 Ibid., p.16. 47 PLATÃO – Timeu- Crítias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p.109.
28
Consequentemente revela ainda que os dias e as noites, os meses e os anos não existiam
antes de o céu ter sido criado e nele colocado o sol, a lua e os planetas “gerados também
de acordo com a natureza eterna, para que lhe fossem o mais semelhantes possível”,48
pois todos estes elementos são parte integrante do tempo e, por sua vez, uma imagem
móvel da eternidade.
No seu tratado sobre este tema, composto pelos últimos capítulos do livro IV da Física,
Aristóteles associa o conceito de tempo ao conceito de movimento, no sentido que é
através deste que tomamos consciência da sua existência e passagem enquanto fenómeno
e medida. Salienta também que o tempo é “composto por um passado que já não é e por
um futuro que ainda não é”49 sendo o instante/presente responsável pela divisão entre
estas duas dimensões a sua grande realidade e o único tempo autêntico. Para Aristóteles
a verdadeira natureza do tempo encontra-se de tal forma vinculada ao movimento que
estes dois conceitos são impossíveis de se dissociar entre si.
Plotino no seu sétimo tratado do Terceiro livro das Enéadas reflete sobre o tempo e a
eternidade, apesar de, à semelhança de Aristóteles acreditar que o movimento e o tempo
de algum modo se intersetam, defendendo também que estas duas entidades são
totalmente autónomas entre si, no sentido em que o tempo não pode ser movimento pois,
em descanso, perante a ausência do mesmo o tempo não deixa de existir.
Simultaneamente afirma também que o tempo é:
A «extensão do movimento». Se o tempo não é nem o «espaço», nem «o próprio movimento multiplicado», nem o «número» dos vários períodos – tudo casos em que o tempo pura e simplesmente não aparece – então ele é sem dúvida ele próprio, o tempo mas não sabemos o que é. Tudo o que sabemos – faz notar – é que a própria extensão do movimento se dá «no tempo». Da sua natureza não conhecemos rigorosamente nada.50
Enquanto neoplatónico, Plotino afirma ainda que, o tempo, tendo derivado da eternidade
é uma imagem móvel da mesma, o seu principio interno é a Alma sem a existência desta
não existe tempo, pois este é assunto da alma.
48 PLATÃO – Timeu- Crítias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p.111. 49 REIS, José – Estudo sobre o Tempo in Revista Filosófica de Coimbra, vol. 5, nº9, [Março 1996], p.144. 50 REIS, José – O Tempo em Plotino in Revista Filosófica de Coimbra, vol.6, nº12 [Outubro 1997], p.384.
29
Na sua autobiografia Confissões Santo Agostinho descreve o caminho percorrido por si
antes de se converter ao cristianismo, proferindo o seu discurso a Deus. Escrita, durante
o século IV reflete sobre inúmeras questões e os mais diversos assuntos dos quais se
destacam, no XI, Livro as suas considerações sobre o conceito de tempo, de eternidade
e as suas diferenças, sendo que “na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente,
ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo
futuro e que todo o futuro está precedido dum passado e todo o passado e futuro são
criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente”.51
Desta forma o filósofo inicia o estudo sobre o tempo, partindo da problemática da sua
existência; devido à sua complexidade questiona o seu próprio conceito pois apesar da
sua familiaridade quando “dele falamos, compreendemos o que dizemos.
Compreendemos também o que nos dizem, quando dele nos falam. O que é, por
conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me
fizer a pergunta, já não sei”.52
A sua natureza parece ser questionável na medida em que a eternidade não se pode medir,
pois “se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não
existia o tempo presente. [...] Quanto ao presente, se fosse presente e não passasse para o
pretérito, já não seria tempo mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem
necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a
causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?”53
Consequentemente o tempo presente só pode ser viável através do meio da comparação
pois o passado existe apenas como memória e o futuro enquanto previsão no presente.
Este é desta forma interpretado apenas como uma simples e pura divisão entre o futuro e
passado.
Para Santo Agostinho, a eternidade de Deus não conhece tempo, foi Ele que o gerou
quando criou a terra e o céu, antes desse momento não existia. O filósofo refere ainda no
seu estudo e “está convencido de que o tempo é na verdade independente do
51 SANTO AGOSTINHO – Confissões. Madrid: Prisa Innova S.L, 2008, p.368. 52 Ibid., p.371. 53 Ibid.,, p.372.
30
movimento”,54 criticando desta forma a conceção clássica de Aristóteles onde se defende
que o conceito de movimento se encontra interligado ao de tempo.
Na sua teoria influenciada pelo pensamento de Platão, Santo Agostinho “atribui um certo
papel ativo ao sujeito na constituição do tempo”55, no sentido de que a compreensão do
tempo por parte do Homem só pode ser apreendida através do espírito, o tempo reside no
seu interior, na alma. Santo Agostinho defende ainda que o tempo surge como cópia
daquilo que considera o modelo perfeito, a eternidade.
O tempo como grandeza fundamental da física surge pela primeira vez com Galileu
Galilei, “devendo entender-se por isto uma grandeza mensurável em toda uma série de
sistemas físicos e, consequentemente, susceptível de regular experiências e de relacioná-
las matematicamente”.56 Com Galileu a teoria de Aristóteles proposta no século IV a.C.
concretiza-se, e o tempo torna-se medida do movimento: “a ideia passara, é certo por uma
ascensão em força desde do aparecimento dos primeiros relógios mecânicos no Ocidente,
no final do século XIII, materializando o tempo através de uma sucessão de engrenagens
de rodas dentadas ou da oscilação de pêndulos”.57
No entanto, foi com Isaac Newton, na sua obra Princípios Matemática de Filosofia
Natural, que se desenvolveu e teorizou o primeiro conceito de tempo da Idade Moderna;
segundo o físico, o tempo não é flexível, discorre uniformemente, é universal, absoluto e
invariável ou seja não depende de nenhum dos elementos que contém nem das mudanças
que vai sofrendo. O físico afirma também que o tempo “flui uniformemente do passado,
para o futuro, o que deixa entender que segue sempre no mesmo sentido”.58
No final do século XVIII, Emannuel Kant apoia o seu pensamento numa perspetiva
transcendental, pois para o filósofo “o tempo não é senão uma condição subjectiva da
nossa (humana) intuição (que é sempre sensível, isto é, que se produz na medida em que
somos afectados pelos objectos), e não é nada em si, fora do sujeito”.59 Ou seja o tempo
54 REIS, José – O Tempo em Sto.Agostinho in Revista Filosófica de Coimbra, vol.7, nº14 [Outubro 1998],p.331. 55 Ibid., p.341. 56 KLEIN, Ettiene – O Tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.23. 57 Ibid., p.24. 58 Ibid., p.25. 59 Ibid., p.81.
31
com Kant surge como algo que não se pode dissociar do pensamento, um esquema
psíquico e como forma de intuição à priori da mente.
Em contrapartida, no século XX o filósofo francês Henri Bergson defende que a
inteligência do ser humano cria uma reprodução falsa daquela que é a verdadeira natureza
do tempo; esta consiste no “progresso, na criação de novas formas, na invenção contínua
e na emergência borbulhante de novidade ininterrupta”.60 Neste sentido faz a distinção
entre o conceito de tempo verdadeiro e o de tempo falso, “apoiando o senso comum, que
sabe perfeitamente que o tempo existe e que a intuição da duração o prova, Bergson
conclui que o momento não é mais do que uma abstração imposta pela inteligência, que
só compreende o devir como referência a estados imóveis”.61 Para o filósofo, o tempo só
é verdadeiro quando é experienciado.
Friedrich Nietzsche retoma a teoria cíclica pitagórica e estóica segundo a qual as coisas
após um período de vários milhares de anos regressarão exatamente semelhantes ao que
foram. O filósofo na sua teoria temporal defende que “num tempo infinito, deve alcançar-
se o número das permutações possíveis , e o Universo tem de se repetir. De novo nascerás
de um ventre, de novo crescerá o teu esqueleto, de novo chegará esta mesma página às
tuas mãos iguais, de novo percorrerás todas as tuas horas até à tua morte incrível”.62
O eterno retorno defende que a combinação primária das forças da vida ocorrerá
repetidamente/ciclicamente. Sendo o tempo considerado infinito enquanto as energias
dinâmicas da natureza são finitas, só é possível existir um número limitado de
combinações que resultam assim no retorno cíclico de cada situação em tempos
infinitamente numerosos.
Em 1927, o filósofo alemão Martin Heidegger, na sua obra Ser e Tempo desenvolve o
estudo do Ser a partir do conceito de tempo, começando por tentar definir à luz da filosofia
o tempo eterno. Para o autor sendo a eternidade uma realidade de Deus só poderá ser
compreendia pelo teólogo, pois o Dasein (ser-aí) é tratado “como ser perante Deus, e do
seu ser temporal na sua relação com a eternidade”63; se a sua compreensão só pode ser
60 KLEIN, Ettiene – O Tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.84. 61 Ibid., p.85. 62 BORGES, Jorge Luís – História da Eternidade. Lisboa: Quetzal, 2012, p.71. 63 HEIDEGGER, Martin – O Conceito de Tempo. Lisboa: Fim de Século Edições, 2008, p.21.
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feita através da fé, o filósofo, enquanto ateu nunca, poderá ter acesso à mesma,
procurando por isso compreender o tempo através do mesmo.
Neste ensaio analisa o Ser do homem como Dasein (ser-aí). O ser-aí revela-se como
ser-no-mundo, na forma como se detém no mesmo, existindo nele através da execução
de tarefas, componentes essenciais do seu quotidiano, distinguindo-se por estar-ocupado,
pois ao completar essas mesmas tarefas vive e existe. Caracteriza-se também como ser-
com-os-outros, através do convívio por meio da modalidade fundamental e universal da
linguagem, o falar: “no seu sentido pleno, é: falar com outrem expressando-se acerca de
alguma coisa. O ser-no-mundo do homem sucede predominantemente no falar”.64
O conceito de ser-no-mundo revela-se como estrutura fundamental do ser-aí pois sugere
a indissociabilidade do homem e do mundo e de modo igual do mundo em relação ao
homem.
A sua existência é a essência do homem, que pretende compreender e dar sentido à mesma
enquanto projeto, como ser-no-mundo o homem é esboçado na qualidade de
ser-para-a-morte; sendo um ser finito cabe-lhe a responsabilidade de escolher como
pretende viver, não sendo o responsável pelo seu nascimento é responsável pela forma
como decide habitar o mundo:
O Ser fundou esta vida que agora temos, mas essa mesma vida acaba: a antecipação da morte é até, por toda a parte dos seus escritos, o grande dado donde é preciso partir. Pelo que, em definitivo, se nos limitamos ao domínio da filosofia, o nosso fazer não tem qualquer valor, não só porque tudo vem do Ser mas também porque temos de aceitar a morte. Nós vivemos na verdade para ela (<resolução antecipante>), e não podemos trabalhar – como ao contrário sempre o temos feito – para adiá-la no tempo e, quem sabe, para um dia a superar de uma vez por todas.65
Heidegger acaba também por esclarecer a relação do ser face ao tempo da seguinte forma;
“o ser-aí, entendendo-se por ser-aí o ente que, no seu ser, conhecemos como vida humana;
este ente respectivamente-em-cada-momento do seu ser, o ente que cada um de nós acerta
a dizer no enunciado fundamental “eu sou”. O enunciado “eu sou” enuncia em
64HEIDEGGER, Martin – O Conceito de Tempo. Lisboa: Fim de Século Edições, 2008, p.37. 65 REIS, José – O Tempo em Heidegger in Revista Filosófica de Coimbra, vol.14, nº28 [Outubro 2005], p.413.
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propriedade o ser [que tem] o carácter do ser-aí do homem. Este ente é em-cada-momento
enquanto meu”.66
Pode-se reconhecer que “concebido na sua possibilidade de ser mais extrema, o ser-aí não
é no tempo, ele é mesmo o tempo”67; o filósofo coloca o Dasein num movimento de
transcendência através da antecipação, “fazendo-o sair de si; esta transcendência
originária é a temporalidade”.68 O ser-aí existe na temporalização, projetado para o
futuro, um futuro reconhecido como finito encerrado pela morte, “o carácter estático da
existência só é possível porque o Dasein, aberto para o passado, o presente e o futuro, se
move no interior duma abertura cujas fronteiras se deslocam com ele, formando um
horizonte para além do qual não poderia penetrar, que não poderia deixar para se achar
no exterior, e que por conseguinte determina a sua compreensão do ser. Este horizonte é
o tempo”.69
O ser-aí existe na temporalização, como afirma Heidegger aberto para o passado, presente
e futuro esta abertura permite compreender histórica e temporalmente qualquer momento
do mundo. A temporalidade é a extensão do desdobramento do ser, o tempo é responsável
pela unidade do ser-aí, ser finito, existimos enquanto tempo, não no tempo mas somos
nós o próprio tempo. Para Heidegger o ser-aí é tempo.
Enquanto dimensão primordial da condição humana, o tempo manifesta-se como uma
sucessão de instantes que se esgotam e renovam, simultaneamente a sua perceção difere
de indivíduo para indivíduo, transformando-se desta forma num tempo muito próprio
inserido naquele que é considerado o tempo universal. “Apresenta-se de uma forma quase
sempre ambígua, desconcertante, e, por vezes contraditória. É simultaneamente evidente
e impalpável, substancial e fugaz, familiar e misterioso”.70
O tempo assumindo-se como constituinte fundamental da nossa existência e
consequentemente da produção artística, é através dela que o seu criador, o ser-humano,
se procura transformar e imortalizar. Neste sentido, a arte compete diretamente com
66 HEIDEGGER, Martin – O Conceito de Tempo. Lisboa: Fim de Século Edições, 2008, p.33. 67 Ibid., p.51. 68 Enciclopédia Einaudi – Tempo/Temporalidade, vol.29, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p.75. 69 Ibidem. 70 KLEIN, Ettiene – O Tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.9.
34
aquele que é considerado o domínio temporal, numa tentativa de conseguir a sua
suspensão ou até mesmo a sua paragem.
Numa época em constante transformação, marcada por um universo cada vez mais digital,
pela escassez de tempo e acima de tudo por uma aceleração constante onde acabam por
se perder experiências temporais, tácteis e enriquecedoras para a nossa condição humana,
a obra de Rui Chafes surge como uma tentativa de desaceleração daquilo que o artista
apelida de velocidade vazia. Por essa razão o seu trabalho assenta em valores que na sua
maioria são inteiramente ignorados por esta mesma contemporaneidade : como afirma “o
silêncio e a sombra, a quietude, a religião e o mito, a beleza e a impossibilidade de beleza,
a solidão, a dor, a morte e a serenidade, a suspensão do tempo, a paragem do tempo no
meio da velocidade”.71
Um dos maiores desejos, não só da humanidade como de cada artista, é ser capaz de
atingir esta mesma paragem do tempo; o escultor português vê o espaço artístico como
um espaço de resistência onde através do seu trabalho constrói pontos ásperos, baços,
negros e densos que se assumem como lugares de atrito e contraste dentro de um mundo
cada vez mais estéril, vazio e detentor de um brilho efémero.
Na obra escultórica de Rui Chafes a relação com o tempo surge num primeiro momento
ainda durante a sua conceção no atelier do artista, lugar único ao qual se encontra
intimamente ligado. Situado na casa dos pais, onde passou toda a sua infância, o escultor
nunca foi capaz de trabalhar em qualquer outro local, só aqui o seu corpo como afirma
também reconhece o tempo e a memória de um espaço longínquo.
O trabalho no atelier permite-lhe o encontro com o início e com o seu próprio ser e as
suas raízes, com os grandes mestres do passado e também com um tempo particular ligado
aos materiais por si eleitos, nomeadamente o ferro, que se transforma em algo misterioso
e simbólico:
O meu trabalho com ferro é um trabalho arcaico que se coloca numa história milenar, a história mais antiga do mundo, que é também uma história de morte e vida, subsistência, construção, proteção, ataque e defesa. (....) Ele possuí a energia telúrica ancestral vinda do fogo do centro da Terra e foi trabalhado por demiurgos e alquimistas e pelos ferreiros de todas as tribos e pré-civilizações de África, Europa e Ásia.72
71 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.94. 72 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Espaço ( Arte Contemporânea). Montemor-o-Novo: Oficinas do Convento, 2009, p.95.
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Num mundo repleto de distrações, o isolamento e a solidão demonstram ser elementos
imprescindíveis, para o artista se conseguir concentrar na construção das suas imagens.
Segundo o escultor, “um homem deve estar no mundo, mas não deve ser do mundo.
Significa que há uma relação indissociável entre o mundo e o isolamento do mundo”.73
Durante este processo de desenvolvimento da sua prática escultórica, quer em termos
conceptuais quer materialmente, o tempo desenrola-se de forma distinta do tempo
universal, no sentido que desacelera, abranda, chegando até a suspender-se; para o artista
é-lhe essencial não ter qualquer tipo de pressa em relação ao seu trabalho, o tempo é o
seu único amigo.
Por acreditar estar situado num presente intolerável, corrompido e acima de tudo
contaminado pela materialidade e sobretudo pelo materialismo o artista através das suas
esculturas, defende a sua superação e o regresso a um passado que assume como redentor.
Revela-se igualmente importante para Rui Chafes, o discurso de Jean Genet quando
afirma a propósito da obra de Alberto Giacometti que “nunca, nunca a obra de arte se
destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem.
Ou rejeitam”.74 Na perspetiva de Rui Chafes, “a arte não é para os contemporâneos, nem
para as novas gerações, nem para o futuro. Enquanto atividade do passado, tem de ter as
suas arestas bem afiadas para perfurar as densas paredes do reino dos mortos. Por isso
não gosta da arte mole, pegajosa, gelatinosa, para ele a arte tem de ser aguçada, possuir
esquinas afiadas e certeiras”.75
Neste sentido, acredita que a “arte exprime a necessidade de harmonia do homem”, 76 e
por este motivo o dever do escultor é o de continuar a “transportar a chama”, preservá-la,
mantê-la, acesa para que não se esqueça o passado, os seus mestres e antecessores, pois,
tais como ele, pertencem e são parte importante e integrante daquele que considera ser o
grande filme da escultura:
Eu acredito que existe sempre um escultor que está a executar uma escultura e eu estou sempre a fazer a mesma escultura há anos mas essa mesma escultura também está a ser feita há centenas de anos e há milhares de anos. Quando eu falo na minha autobiografia desses escultores que vão atravessando o tempo e vão criando diferentes esculturas é precisamente
73 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Rui Chafes - Sob a Pele. Lisboa: Documenta, 2018, p.63. 74 GENET, Jean – O Estúdio de Alberto Giacometti. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p.19. 75 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Espaço ( Arte Contemporânea). Montemor-o-Novo: Oficinas do Convento, 2009, p.92. 76 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.47.
36
essa ideia do trabalho fabril, do artista que veste o seu fato de macaco e que está a trabalhar de manhã à noite a fazer uma escultura, não no sentido de expressão individual mas pelo contrário de levar a chama da escultura mais à frente e portanto quanto a mim existe apenas um escultor sempre e esse escultor vai sendo sempre assumido por diversas pessoas, por diversos indivíduos mas a escultura é sempre uma, é sempre a mesma e está a ser feita há milhares de anos. E é por isso que cada escultor ou cada artista no fundo contribui apenas com alguns fotogramas para esse filme grande e eu vejo o meu trabalho também como uma sucessão de pequenos fotogramas que são as esculturas mas que só fazem sentido quando estão ao lado das outras e essas outras também só fazem sentido quando estão ao lado de outras. Por isso digo que é uma escultura apenas e um escultor apenas que está a obedecer a esse movimento muito fabril de ir construindo essa escultura durante séculos.77
Por esta razão, ao criar as suas imagens, não tem qualquer intenção de esquecer a sua
herança artística ou encobrir a sua história; a escultura Eu sou os outros, de 2007
(Fig.1, cf. anexo), enfatiza e materializa esta mesma ideia. Nela as densas esferas surgem
interligadas por ramificações de origens distintas, que se elevam e acabam por culminar
na extremidade, numa única esfera. O escultor só existe porque os outros existem, a nossa
existência só tem sentido quando temos uma relação recíproca com o mundo, por isso, é
que o artista afirma que é os outros e os outros são ele. O escultor existe à semelhança
dos seus mestres, estende a sua mão, e, apesar de se situar em percursos distintos caminha
na mesma direção que eles em prol de algo maior, a escultura. Sem os grandes mestres,
sem o passado, não existiria presente, o “mais importante é a ideia que nós somos a nossa
própria memória, o ontem é o hoje”.78
Tal como o cineasta russo Andrei Tarkovsky, Rui Chafes não acredita no conceito nem
na própria ideia de vanguarda, a arte não se assume como uma ciência e por essa mesma
razão não evolui: “não passa de um ponto a outro, não é melhor do que já foi, não está
mais evoluída. Pelo contrário, a arte avança e recua, anda em círculos, parte e regressa,
involui”.79 Aquisição recente do início do século XX, esta ideia na arte de vanguarda para
o escultor português não tem qualquer sentido; aceitar esta conceção significa aceitar o
progresso no contexto artístico. “Mas como poderá alguém, na arte, estar mais evoluído
do que outro? Acredito que a arte seja um continuum”.80
77 GRILO, João Mário. Viagem aos confins de um sitio onde nunca estive. (filme), 2014, 9:15 – 11:03. 78 DRATHEN, Doris Von – Rui Chafes. Milano : Edizione Charta, 2007, p.34. 79 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Espaço ( Arte Contemporânea). Montemor-o-Novo: Oficinas do Convento, 2009, p.94. 80 CHAFES, Rui - Würzburg Bolton Landing. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016, p.10.
37
O seu interesse recai principalmente sobre uma arte intemporal, não o fascina uma arte
refém do seu próprio tempo, daí ser importante uma arte que consiga ultrapassar esse
mesmo tempo e a sua história. Devedora daquele que é o grande projeto do passado, a
escultura de Rui Chafes contraria os conhecidos conceitos de tempo histórico,
cronológico e linear, procurando inserir-se no legado que ultrapassa a vida e vai para além
da mesma e do tempo da sua existência.
Na medida em que Rui Chafes fala de uma duração atemporal, pode-se dizer que poderá
aproximar-se da ideia que Friedrich Nietzsche defende de um eterno retorno:
Regressarei com este Sol, com esta Terra, com esta águia, com esta serpente – não a uma vida nova, nem uma vida melhor, nem a uma vida melhor, nem a uma vida semelhante: regressarei eternamente a esta mesma e idêntica vida, no que ela tem de mais grandioso e também de mais ínfimo, para voltar a ensinar o Eterno Retorno de todas as coisas, para voltar a falar do Grande Meio-Dia da Terra e do Homem, para voltar a anunciar aos homens o supra-humano.81
Chafes acredita que o árduo ofício do escultor reside em “formar o espaço, de o interrogar,
de o inverter, de substituir um objecto pela sua sombra”.82 Sendo esta a razão para
procurar transformar a materialidade em pensamento, tornando-se presente igualmente a
estética metafísica de Novalis.
Quando não puderem tornar os vossos pensamentos indirectamemente (e aleatoriamente) perceptíveis, façam ao contrário, então, tornando as coisas exteriores directamente (e voluntariamente) perceptíveis – o que é o mesmo que: se não podem tornar os pensamentos em objetos exteriores, tornem, então os objectos exteriores em pensamentos. Se não podem fazer com que um pensamento seja autónomo, separado de vocês – e que vos é, então, estranho – quer dizer dar-lhe uma alma que se basta a si própria então, procedam inversamente com os objectos exteriores – e transformem-nos em pensamentos.83
No entanto, sendo inevitável no seu trabalho escultórico o uso da matéria, procura
transcender a mesma através do seu apagamento durante ainda o momento da sua
construção. Numa primeira fase por via, da utilização do fogo: enquanto plasma o objeto
revela uma materialidade imaterial, e assume-se como o “parente próximo do pensamento
e da anulação. Em suma, do vazio”,84 que purifica e destrói a matéria; de seguida e num
segundo momento, através da utilização da cor negra, ou cinzenta escura que anula o
81 NIETZSCHE, Friedrich – Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998, p.248. 82 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa: Documenta, 2014, p. 12. 83 CHAFES, Rui - Würzburg Bolton Landing. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016, p.150. 84 QUINTAIS, Luís – Exúvia, Gelo e Morte – A arte de Rui Chafes depois do fim da arte. Lisboa: Documenta, 2015, p.29.
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ferro, esconde o material, e acentua a sensação de não pertença do objeto ao mundo.
Como transcendência, o apagamento e a redução acentuam a perceção da suspensão dos
objetos, assegurando o seu desconforto ou evasão deste mundo.
As esculturas de Rui Chafes revelam não a presença de objectos, que o escultor acredita
serem inexistentes, mas o momento exato da “sua ausência, da sua fuga. Estas esculturas
são estados de movimento que têm que ver com energia e não com presenças, requisitam
directamente o pensamento. [...] o dinamismo perceptível resulta da incapacidade de
materializar a fuga que falei, esse estado de equilíbrio instável entre a presença e a
ausência”.85 Por requisitar diretamente o pensamento, torna-se fulcral a existência de um
“espectador válido”, para que o sentido da obra artística do escultor se concretize e se
encerre o seu ciclo. Tal como compreendia Pasolini, Chafes acredita que o sentido poético
“é o que nos permite agir sobre o mundo a partir de uma deslocação (por vezes mínima
por vezes enorme) de sentido do ponto de vista”.86
Este sentido poético é responsável por deslocar o observador para um ponto onde uma
nova construção da realidade pode acontecer, como refere inúmeras vezes o artista; não
existe arte sem transformação, a arte é um segredo que apenas atinge algumas pessoas,
transformando-as através da emoção. Em silêncio, perante a escultura de Chafes, o
observador experiencia a dissolução do tempo: “pelo menos do tempo cronológico. Quem
se demora algum tempo com os trabalhos de Rui Chafes, irá mudar gradualmente no
espaço-tempo da duração, onde conflui passado, presente e futuro.”87 Pode-se afirmar que
perante a obra deste escultor, o tempo para o observador também se suspende, imerso no
seu próprio pensamento e contemplação.
O termo exúvia, do latim exuvĭas, que o antropólogo Alfred Gell utiliza para descrever
partes de corpos que cresceram e se separaram do mesmo, como cabelos, unhas e pele,
ou, então assumindo-se como um conceito, que designa a pele que alguns animais largam
na ocasião da muda, implicando o crescimento e a separação, assume-se como uma
presença constante no trabalho deste artista. Esta ideia materializa-se em obras como
Doce e Quente, de 1995 (Fig.2), concebida para a representação nacional na Bienal de
85 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 102. 86 CHAFES, RUI in SERRA, Rui – Esferas Suspensas, entrevista a Rui Chafes. Revista: Estúdio vol.5, p.179. 87 DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017, p.32.
39
Veneza; Crianças e Flores, do mesmo ano elaborada enquanto site-specific para o Museu
do Chiado em Lisboa, e uma outra mais recente datada de 2012, intitulada Contramundo
(Fig.3), situada no Parque de Escultura Contemporânea de Vila Nova da Barquinha. De
dimensões distintas, são constituídas por tiras de ferro modeladas através de linhas
circulares, que formam uma gigantesca carapaça, assemelhando-se, de uma forma geral,
a casulos de insetos abandonados por um corpo, os mesmo que, como afirma o artista
“sempre evocam a ideia de resguardos de onde aquilo que cobriam e encobriam se evadiu,
como a serpente que larga a antiga pele”.88 Apesar da abertura que possuem na zona da
sua cabeça na sua maioria são impenetráveis, a temática central destas esculturas reside
sobre a ausência do corpo.
As esculturas de Rui Chafes relembram-nos de que não há futuro sem memória, e vida
sem fendas ou zonas de penumbra, na sua maioria, aparentam ter sofrido as marcas da
passagem do tempo e dos corpos que delas se ausentaram, após terem escapado deste
mundo, deixando para trás apenas um vestígio daquilo que outrora foram.
Os seus invólucros vazios tornam-se a única forma visível do observador ter consciência
e perceção da sua existência enquanto objeto. As formas mais pronunciadas e explícitas
da presença de um corpo que deixou de existir podem ser observadas na série Vertigem
constituindo-se exemplo as esculturas Vertigem IV (Fig.4), e Vertigem V, datadas de 1989
e 1990, estas obras assemelham-se a um casaco de malha de ferro, mais próximo, daquilo
que é considerado uma cota de malha ou até uma armadura. De tamanho quase
sobrenatural, modelados através de uma rede de ferro rígida, “são como invólucros de
fatos abandonados pendurados na parede, que ficaram inteiriçados e – esquecidos pelo
tempo – enferrujados, porque os seus misteriosos donos, despindo-os, se escaparam para
a zona do invisível de onde certamente não regressarão para voltar a enjaular-se nos seus
trajes metálicos”.89
Na realidade é precisamente do invisível que parecem emergir muitas das obras do
escultor português, existindo nelas uma espécie de aparição; surgem à “nossa frente,
simultaneamente palpáveis e impalpáveis. Tocá-las não serve de nada. Rui Chafes não
constrói objetos. Como se a sua materialidade não fosse senão o prelúdio para a sua perda
88 CHAFES, Rui – Harmonia. Porto: Canvas & Companhia, 1998, p.6. 89 Ibidem.
40
no momento da sua aparição”.90 Apresentam-se como um movimento rápido e subtil no
espaço, assemelhando-se a um vulto ou um sopro, nelas o escultor pretende capturar o
momento anterior ao seu desaparecimento. Apesar de, em termos formais serem
semelhantes aos trajes metálicos referidos anteriormente, as estruturas de Würzburg
Bolton Landing (I a VII) de 1994-1995 (Fig.5), ou Não Durmas (Fig.6), datada de 1999,
não denotam a presença de um corpo, antes as malhas metálicas, presentes na parte
inferior, parecem envolver o vazio, acentuando o contraste entre o peso do ferro e a leveza
da rede metálica, conseguindo aqui o artista tornar um material pesado, como o ferro, em
algo orgânico: “Tais revestimentos forjados, arqueados, entrelaçados ou entrançados,
envolvem um vazio que representa o que desapareceu, ou é invisível para os nossos
sentidos limitados. Em qualquer dos casos, as formas côncavas metálicas evocam na
envolvência visível, o invisível envolto; na dureza e fixidez, o maleável ou fluido, no
corpóreo, o incorpóreo; em suma , no que está presente, o que está ausente”.91
Este vazio assume grande importância na sua obra convertendo-se no próprio espaço
escultórico: “o vazio é absoluto e só poderá ser preenchido com a verdade (a beleza), a
identidade, a consciência do nada e do próprio vazio. Só o vazio e a forma são universais.
O resto é pó”.92
Se em muitas das suas séries vemos o vazio a tornar-se o próprio “espaço escultórico”,
existem outras em que esse mesmo vazio se materializa na forma da escultura, como
acontece na série É assim que começa (I – XI), de 2016 (Fig.7). As onze esculturas, de
dimensões tão pequenas que cabem na própria mão do escultor, assemelham-se a moldes
do vazio criado pela mesma, numa tentativa de o materializar e dessa maneira assumindo-
o como a própria escultura. No entanto, com estas pequenas esculturas o artista parece
também querer agarrar o vulto que tenta desaparecer e escapar deste mundo, numa
tentativa de evitar esta mesma fuga, e suspendendo-se desta forma o tempo.
A suspensão dos objetos no espaço reafirma a dimensão de sopro na sua escultura; a série
Deine Hände, As tuas mãos de 1998-2013 (Fig.8), assume-se como a materialização desta
mesma intenção. No espaço, surgem formas ondulantes, semelhantes a linhas que
parecem dançar e terminam em anéis como afirma Doris Von Drathen: “os anéis pareciam
90 DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017, p.11. 91 CHAFES, Rui – Harmonia. Porto: Canvas & Companhia, 1998, p.7. 92 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 119.
41
mãos enlaçadas; um movimento desencadeava o seguinte; todas as formas se
condicionavam umas às outras, interagiam umas com as outras. Nesta inexplicável
interdependência, os anéis e as fitas de ferro baloiçam como se dançassem sem peso pelo
espaço, com uma segurança sonâmbula”.93
O observador é convidado a entrar no espaço dos vultos, entrar na dança, torcer-se,
curvar-se, encolher-se para partilhar o espaço com eles, o visitante através de uma
coreografia linear, iria também ele fazer parte da composição. Ao tornar-se elemento
integrante da mesma, o seu ser abranda e por consequência é transportado para um lugar
onde não existe o tempo, mas sim a memória do que estas presenças estranhas outrora
foram. Parece ser neste sentido que a dimensão temporal na obra de Rui Chafes ultrapassa
as suas esculturas, simultaneamente materializando-se também nos títulos das suas obras
que remetem para o seu caráter transcendental e transcendente. Exemplo disso são as
esculturas Il tempo é il mio unico amico, de 2011 (Fig.9), Parar o tempo de 2009,
Enquanto eu vivia datada de 2013, Que tudo sem nós por si continua, 2000 , Depois de
para sempre, 1988 (I- XV) A minha vida acabará no dia em que principiou, 2013, Um
sono profundo, de 1998. Para o artista, “não existe passado , presente ou futuro : é uma
criação individual (é uma criação da arte). É a casa criada. Encaremos a verdade: a
realidade não existe, é uma criação nossa, desaparece connosco”.94
A arte de Rui Chafes não conhece tempo pois a sua eternidade reside para além da sua
própria existência, no observador.
93 DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017, p.15. 94 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.30.
42
II
A DIMENSÃO ENERGÉTICA NA ESCULTURA DE ALBERTO CARNEIRO 1. A Aprendizagem : da Infância ao Ofício
Alberto Carneiro nasceu em São Mamede do Coronado, concelho da Trofa, no ano de
1937, filho único cresceu no seio de uma família humilde. A sua infância foi marcada
maioritariamente pela paisagem circundante do local onde vivia, perdendo-se durante
horas a transformar a terra húmida, folhas e ramos caídos de árvores nos seus brinquedos
de eleição, inventava formas, estruturas, construía universos. Sem se aperceber foi
criando um elo de ligação com a natureza, que haveria de recuperar mais tarde nas suas
obras enquanto artista.
Como era habitual na época, ao terminar a instrução primária e de forma a assegurar a
subsistência, era necessário aprender um ofício, contra a vontade dos pais, recusou a ida
para o seminário e, em 1948, com dez anos, ingressou como aprendiz na Oficina de Arte
Religiosa de José Ferreira Tedim. Enquanto santeiro, Alberto Carneiro aprendeu a talhar
diretamente a madeira, a conhecer as suas diferenças, particularidades, o seu toque, os
seus diferentes paladares, a dominar os instrumentos que atuam sobre ela e, acima de
tudo, aprendeu um ofício e os processos de um fazer tecnológico. Como aprendiz,
trabalhou ainda na oficina do santeiro Avelino Moreira Vinhas, antes de, em 1956,
começar a trabalhar por conta própria, sem nunca ter esculpido uma cabeça, a parte mais
importante do santo, que revelava a mestria do santeiro.
O interesse em dar continuidade à sua formação académica surgiu no momento em que
se apercebeu que a atividade de santeiro limitaria a sua necessidade de mais vasta e
complexa realização artística. Em 1954, ingressou no curso noturno de escultura na
Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis. No ano de 1958 é convocado a prestar
serviço militar em Lisboa, na Escola Prática de Transmissões na zona da Graça; durante
este período na capital, continuou os seus estudos na Escola de Artes Decorativas António
Arroio. Aos vinte e um anos, regressa a São Mamede do Coronado, decidido a abandonar
a sua casa e a formação de santeiro instalando-se na cidade do Porto com o intuito de dar
seguimento aos seus estudos.
43
No ano de 1961, inicia a frequência no curso geral de escultura dirigido por Barata-Feyo
na Escola Superior de Belas Artes da Universidade do Porto, de onde sairia diplomado
em 1967. No ano seguinte, enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian ingressa
na Saint Martin’s School of Arts, em Londres, para realizar o Advanced Course in
Sculpture, sob a direção de dois antigos assistentes do escultor Henry Moore, Anthony
Caro e Philip King que conclui em 1970.
Durante a estadia na capital inglesa contactou com o panorama artístico emergente da
época, especialmente com a arte minimal, a Arte Conceptual, Land Art e Arte Povera
através da importante exposição When Attitudes Become Form, com a curadoria de
Harald Szeemann realizada no Institute of Contemporary Arts. A crescente
desmaterialização da obra de arte permitiu-lhe a exploração de novos meios escultóricos,
assim como novos materiais, através de desenhos e projetos para obras tridimensionais,
que viria a reunir e publicar em O Caderno Preto, no ano de 1971.
O tempo em Londres fica ainda marcado por um episódio que viria a transformar o seu
percurso artístico; a 12 de Dezembro de 1968, às duas e meia da tarde, no seu quarto tem
uma revelação na qual a obra O canavial: memória/metamorfose de um corpo ausente
lhe aparece de forma clara e finalizada, como um “flash”.
Esta obra assume-se como uma grande revelação; segundo o artista, “foi uma espécie de
acordar, uma coisa que se impôs imediatamente, ou melhor que criou um pólo
complementar em relação àquilo em que eu estava então profundamente envolvido que
era a cultura erudita. Foi uma chamada para qualquer coisa que tinha a ver com uma
experiência estética de outra ordem”.95 Nesse instante, Alberto Carneiro percebeu que o
seu caminho, enquanto artista, seria indissociável das suas experiências de vida e daquilo
que ele chamou de “coisas da natureza”, decidindo por isso estruturar a sua obra a partir
da consciência destes fundamentos.
De regresso a Portugal, em paralelo com a sua atividade artística, iniciou uma carreira
enquanto professor, atividade a que se dedicou durante décadas, tendo lecionado no
Círculo de Artes Plásticas da Universidade de Coimbra, na Escola Superior de Belas Artes
95 CARNEIRO, Alberto in MELO, Alexandre – Alberto Carneiro. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p.18.
44
do Porto e na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Escreveu inúmeros
textos e livros sobre Arte e Pedagogia, estudou Psicologia Profunda, a espiritualidade do
Zen, do Tao e do Tantra, temas sobre os quais lecionou cursos, deu conferências e que
exerceram uma grande influência nas suas obras assim como o pensamento do filósofo
francês Gaston Bachelard nomeadamente o seu livro A Poética do Espaço.
Começou a expor em 1963, tendo realizado mais de noventa e cinco exposições
individuais, e participado em mais de cem exposições coletivas no estrangeiro e em
Portugal. Representou Portugal nas Bienais de Paris em 1969, Veneza em 1976, e São
Paulo, no ano de 1977. Realizou esculturas públicas em países como a Eslovénia,
Inglaterra, Taiwan, Andorra, Coreia do Sul, Chile, Espanha, Irlanda e Portugal. Fundou
o Museu Internacional de Escultura Contemporânea na Cidade de Santo Tirso em 1991.
Viajou inúmeras vezes pelo Oriente e Ocidente, de forma a vivenciar e interiorizar
diferentes culturas.
Figura incontornável no universo artístico português, Alberto Carneiro faleceu aos setenta
e nove anos a 15 de Abril de 2017, na cidade do Porto, tendo deixado um vasto e
importante legado teórico e escultórico.
45
1.2 A Espiritualidade Oriental
Em 1965, quando frequentava o terceiro ano do curso de escultura, Alberto Carneiro
contactou pela primeira vez, com os escritos do filósofo francês Gaston Bachelard,
nomeadamente a obra A Poética do Espaço, que acabaria por se tornar uma das
referências mais importantes e estruturantes do seu trabalho, sobretudo das suas reflexões
teóricas. Foi no pensamento de Bachelard que o escultor encontrou os instrumentos, mas
também as “formulações teóricas que sentia através do próprio trabalho, mas não
conseguia formular por ausência de instrumentos de reflexão”.96 Para Alberto Carneiro,
a descoberta do filósofo francês assumir-se-ia como uma autêntica revolução na sua
prática escultórica, como referiu, encontrando “a dimensão poética de tudo o que eu vivia
na relação mais íntima com os materiais que as minhas mãos trabalhavam”.97
Apesar das ferramentas teóricas encontradas em Gaston Bachelard serem determinantes
para o artista, habitava em si um sentimento de insatisfação, reconhecia que lhe faltava
algo que ainda não compreendia. Foi no ano de 1968, durante a sua estadia em Londres,
que descobriu a espiritualidade oriental, através da leitura da obra Tao Te King, de Lao
Tse; neste momento, a insatisfação que sentia desapareceu e percebeu então que tinha
encontrado a formulação que procurava.
Se anteriormente a obra de Gaston Bachelard teve em si grande impacto, esta descoberta
abriu-lhe as portas para um novo mundo de potencialidades face aos materiais utilizados
na sua prática. Apesar de anteriormente já existir uma relação com os quatro elementos
ocidentais (fogo, terra, água e ar), a partir deste momento começaram a ser utilizados com
uma clara consciência do seu verdadeiro significado, não apenas para si vivencialmente,
como no seu trabalho.
Quando regressou a Portugal, após o período de Londres, a sua prática escultórica tinha
sofrido grandes mudanças, tornando-se mais complexa, intimamente ligada às suas raízes,
e o artista, consciente da sua profunda conexão com a natureza, aprofunda agora a
potencialidade da sua relação com a mesma e com a matéria.
96 CARNEIRO, Alberto in LIMA, Francisco – O Artista pelo Artista na Voz do Próprio. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2013, p.308 [tese de doutoramento]. 97 ROSENDO, Catarina – Alberto Carneiro - Os Primeiros Anos (1963-1975). Lisboa: Edições Colibri, 2007, p.57.
46
Juntamente com o Confucionismo e o Budismo, o Taoismo é uma das doutrinas
filosóficas tradicionais mais importantes da China. Apesar de existir uma religião Taoista,
que conserva muitos dos traços do Taoismo filosófico, esta tem por base um corpo de
doutrinas e de práticas culturais e religiosas que se afastam dos seus ensinamentos.
Deste modo, pode afirmar-se que existe uma enorme distância entre a considerada
religião Taoista e o Taoismo filosófico. O fundamento deste encontra-se nas lições do
filósofo Lao Tse, presentes na obra Tao Te King (também conhecida por Tao Te Ching),
a qual, segundo a tradição, terá sido escrita no século VI a.C.
Na sua essência, o Taoismo filosófico defende uma relação de harmonia do ser humano
com a natureza, ou seja de uma vida em concordância com os seus ritmos, deixando tudo
fluir por si, em harmonia com o que é natural. O seu nome deriva do caracter Tao (dào)
que, traduzido, significa Caminho ou Via; sendo um conceito abstrato, assume-se como
uma realidade que vai para além da perceção humana, que os Taoistas associam ao mundo
natural e à força invisível que governa o universo:
É o que há de mais profundo e misterioso na realidade e que faz com que tudo seja como é. É o conjunto indiferenciado de tudo o que existe, mas também é o princípio supremo que gera e está na origem do seu devir. (...) Embora seja invisível, inaudível e intangível, manifesta-se pela sua influência, a que se chama Virtude – Te. Mas essa influência é espontânea, ou seja faz parte da sua própria natureza, do seu próprio fluir natural. Como se diz no Tao Te King: o Tao «age sem agir».98
A manifestação do Tao encontra-se presente na harmonização do Yin Yang; este símbolo
representa a dualidade de tudo o que existe no universo, dos aspetos opostos de todas as
coisas e de todos os processos. A representação do Yin Yang demonstra a coexistência
desses mesmos opostos, os quais apesar das suas diferenças existem de forma pacífica;
na verdade, só existem em relação um ao outro, pois “são inseparáveis, e o ritmo do
mundo é o próprio ritmo da sua alternância.”99 A harmonia cósmica resulta do equilíbrio
entre os conceitos de Yin e Yang, já que tudo o que existe no mundo é criado a partir do
encontro oscilante entre os dois pólos e a dinâmica do Tao é caracterizada precisamente
por esta transformação realizada entre opostos.
98 TSE, Lao – Tao Te King – Livro do Caminho e do Bom Caminhar. Trad. António Miguel de Campos. Lisboa: Relógio de Água, 2010, p.20. 99 CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Editorial Teorema, 2018, p.704.
47
Para além do constante apelo à simplicidade e à reconciliação com a natureza, o Taoismo
filosófico relembra-nos de que tudo se encontra sujeito a constantes metamorfoses, já que
a mudança é algo natural, e nós, enquanto humanos deveremos respeitá-la e aceitá-la. É
importante ser sensível à forma como o universo funciona, devemos procurar elevar-nos
e integrar esta harmonia cósmica.
Segundo o escultor, todos estes aspetos parecem terem sido por si experienciados antes
dele os ter descoberto, ou ter tomado consciência da sua existência, sendo que a
comunhão com a natureza e a vida simples assumem-se como modeladores da sua
infância e, posteriormente da sua vida e obra. Este mundo, que procurava encontrar para
dar sentido à sua arte, na verdade já existia dentro de si, no entanto, foi apenas devido à
necessidade de autoconhecimento que conseguiu atingir este momento de revelação.
Na sua prática escultórica é precisamente esta vivência inicial com as coisas da terra e a
harmonia com a natureza que tentava recriar através da utilização de materiais e de
elementos orgânicos. Em muitas das suas esculturas o artista apresentava a natureza no
seu estado primário, transportando situações existentes na mesma e da paisagem rural
para o espaço interior, do museu ou da galeria de arte. Por exemplo, em Um campo depois
da colheita para deleite estético do nosso corpo (1973-76), (Fig.10), Alberto Carneiro
reconstrói um campo recém-ceifado com medas de feno, centeio e/ou de trigo, cobrindo
com palha o espaço museológico na sua totalidade. O observador é desta forma
transportado para uma paisagem rural, numa experiência completamente imersiva e
sensorial, onde o seu corpo entra em contato com a matéria, sente o seu o aroma, e
completa o vazio deliberadamente deixado pelo escultor entre as medas, não apenas
através da sua presença, mas também através do som do seu caminhar, que invade a sala
e o espaço.
Elemento central nas mais importantes correntes de pensamento oriental, o vazio
assume-se também como constituinte primordial na prática escultórica de Alberto
Carneiro, mais precisamente no sentido do corpo do artista como elemento compositivo
ausente.
No capítulo décimo primeiro de Lao Te King, Lao Tse centra o seu discurso sobre a
importância do vazio, nele referindo a disparidade existente entre o que pode estar e o
que realmente está na origem da utilidade das coisas. O ser humano dá valor ao que existe,
48
mas é o que não existe que por vezes o torna útil. Por exemplo, aquilo que dá utilidade a
um copo é precisamente o que nele não é visível, o seu vazio possibilita enchê-lo com
líquido para desta forma cumprir a sua função: “O Tao é também algo que não se vê, mas
em que repousa a vida de todas as criaturas: é o vazio oculto e misterioso, cuja influência
faz que tudo seja como é”.100
O Vazio é fundamental para a ontologia Taoista, principalmente na forma como nela é
concebido o universo, antes de existir o Céu e a Terra existia o Não ser, o Nada e o Vazio.
Apesar de se assumir como uma entidade natural sem necessidade de definição, François
Cheng, nas suas inúmeras obras e particularmente no seu livro Vide et Plein, procurou
sistematizar, delimitar, enquadrar este conceito, e compreender também o seu papel nas
artes da poesia e da pintura de paisagem. Presente em todas as práticas, não apenas
artísticas, o Vazio apresenta-se como um elemento dinâmico e ativo, ligado ao lugar de
transformação onde a plenitude pode ser alcançada.
Na pintura de paisagem chinesa, o pintor deveria conseguir esse vazio através da
utilização do branco do papel contribuindo desse modo para o harmonioso devir de todos
os seus elementos: “em diversos tratados de pintura encontramos esta referência: sem o
vazio, Montanha e Água, ou qualquer outro par de complementares apresentar-se-ia em
oposição rígida, estagnado. O vazio conferia dinamismo a estas relações provocando um
devir recíproco das diversas entidades. Este devir recíproco verifica-se a vários níveis:
para além dos elementos representados, é o próprio homem que devém em conjunto com
a natureza, tal como o espectador e obra”.101
Após a estadia em Londres e o contato com o Taoismo filosófico, Alberto Carneiro
atribuiu ao vazio um papel central nas suas obras. Este elemento não era apenas o lugar
da ausência do material, mas, sim, do seu próprio corpo, que poderia agora ser preenchido
e completado pelo corpo do observador. Na sua instalação O canavial: memória-
metamorfose de um corpo ausente de 1968 (Fig.11), como explicitamente refere o título,
a importância da obra reside não apenas nos elementos que a constituem mas também no
corpo ausente. Através da manipulação formal das canas que constituem o canavial o
100 TSE, Lao – Tao Te King – Livro do Caminho e do Bom Caminhar. Trad. António Miguel de Campos. Lisboa: Relógio de Água, 2010, p.40. 101 TAVEIRA, Rogério – O Corpo como Vazio na obra de Alberto Carneiro in Revista:Estúdio,Vol.2, 2011, p.170.
49
escultor foi capaz de transpor uma paisagem natural para o universo artístico, e recriar
uma experiência por si vivida anteriormente. Com esta obra, Carneiro pretende que o
observador ao ocupar o espaço vazio, deixado pela ausência do seu corpo, sinta as
sensações por si vividas no canavial enquanto um jovem rapaz, as possibilidades de poder
perder-se no meio das canas, deitar-se entre elas, sentir o seu aroma. O vazio e o corpo
ausente são elementos fundamentais na composição, pois introduzem a presença do
observador, do seu corpo, para que, com o artista, a viva e habite o seu espaço.
Outro exemplo onde o vazio aparece de uma forma mais explícita é a obra Corpo
Mandala (1995), (Fig.12) nela; quatro troncos de mogno trabalhados formam uma
mandala que, ao centro, apresenta um espaço deixado deliberadamente desocupado,
correspondente ao corpo do escultor: “Se a mandala, enquanto arquétipo, remete para o
centramento do indivíduo, o espaço ocupado por este [o autor] encontra-se vazio. É um
vazio que extravasa as ideias de cheio e vazio centrais à escultura, mas nos remete para o
Vazio como elemento gerador de dinamismo criador no pensamento taoista. A escultura
delimita um negativo”.102 Apesar do diálogo existente entre os quatro troncos voltados
para o interior, o espectador sente que o vazio provocado por esta disposição é tão
importante quanto os próprios elementos compositivos:
Um vazio que não advém do acto de esculpir as árvores, mas da determinação de um centro, o próprio artista nas suas diversas dimensões. Este vazio provocado pela ausência do escultor, na obra é também a ideia do vazio médio, o vazio que impõe o movimento ao conjunto, tal como nos sopros vitais da cosmologia taoista. Este é o verdadeiro reino do intervalo. Como nos diz Cheng é no côncavo dos interstícios que o Tao aflora. O entre revela-se nesta visão como uma entidade.103
Em Corpo Mandala, o corpo do escultor encontra-se ausente, mas, ao mesmo tempo,
presente, é este aspeto, no que diz respeito ao Tao, que interessa a Alberto Carneiro, do
princípio do não ser, do estar não estando, de dizer sem dizer, algo que na sua opinião
escapava ao mundo ocidental. A partir da década de 1970, também a Mandala será um
elemento que o escultor explorará e utilizará de forma recorrente na sua obra. Complexo
desenho sagrado, representativo do universo, apresentando-se na sua simbologia:
102 TAVEIRA, Rogério – O Corpo como Vazio na obra de Alberto Carneiro in Revista: Estúdio, Vol.2, 2011, p.171. 103 Ibidem.
50
Como o iantra (forma emblemática), mas de forma menos esquemática, a mandala é, ao mesmo tempo, um resumo da manifestação espacial, uma imagem do mundo, além de ser a representação e a actualização de forças divinas; é também uma imagem psicagógica, própria para conduzir aquele que a contempla à iluminação.[...] A mandala pela magia dos seus símbolos, é simultaneamente a imagem e o motor da ascensão espiritual, que age por uma interiorização cada vez mais elevada da vida e por uma concentração progressiva do múltiplo no uno: o eu reintegrado no todo, o todo reintegrado no eu.104
Em relação à razão pela qual decide incorporar a mandala na sua obra, Alberto
Carneiro afirma nos seus escritos:
Quando escolho a mandala como algo que vai ser recorrente como figura essencial na minha obra, considero-a como símbolo e como imagem poderosa que agrega e revela a unidade do eu e do universo : um cosmos. (...) Por outro lado, o que me interessa como principio é que a minha obra toque as pessoas mais profundo do ser delas próprios no seu íntimo, no limite da não consciência.105
Durante a sua vida, as inúmeras viagens que realizou pelo Oriente, nomeadamente na
Índia, no Japão e na China, revelaram-se fundamentais para a sua prática artística, na
medida em que aprofundou os seus interesses pela arte e cultura orientais e estreitou a já
existente relação com a espiritualidade oriental: “Alberto Carneiro espalhou pela sua obra
influências e ideias muito diversas, numa síntese pessoal que ajuda a integrar na nossa
percepção outras maneiras de compreender a arte em relação com a natureza. Todas estas
referências tendem a construir uma visão própria, entre as influências do Oriente e a
memória e a experiência do Ocidente”.106
Tendo por base a espiritualidade oriental, do zen, do tantra, Alberto Carneiro afirma que
através da sua obra o que procurava: “é aquilo que ainda não sei como arte, como
manifestação da minha capacidade de abstração perante um real que me é exterior e que
eu quero interior”.107
104 CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Editorial Teorema, 2018, p.434 105 CARNEIRO, Alberto in BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art : Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.63. 106 ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007, p.145. 107 CARNEIRO, Alberto in BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art: Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.63.
51
2. A Condição Vivencial do Corpo
2.1 A Escultura como Energia Para Alberto Carneiro, a arte e nomeadamente a escultura, é energia. Esta energia habita
o mundo, é responsável por animar todas as entidades que nele existem, e, por sua vez
tudo aquilo que é considerado matéria viva, encontra-se contida nas coisas, delas sai,
desloca-se, circula entre e dentro delas. A decisão do artista em utilizar principalmente
materiais e elementos orgânicos na sua escultura deveu-se muito à sua procura desta
mesma energia, sendo com ela que trabalhava, constituindo-se a sua matéria prima.
O tempo passado na oficina de santeiro permitiu-lhe também aprender a manusear os
utensílios e elementos da madeira com tal destreza que estes acabariam por se tornar uma
extensão do seu próprio corpo. A matéria da árvore foi nele interiorizada, passou a
conhecer de forma profunda as diferentes madeiras, o seu aroma, a sua textura, o seu
sabor, a sua história e, acima de tudo, os seus segredos.
Através da utilização e procura de materiais provenientes da natureza, nomeadamente de
uma matéria virgem para a sua obra, o artista pretendia aproximar-se deste mundo natural
considerado primário. Neste sentido, o jardim e a horta da sua casa em
São Mamede do Coronado funcionavam como um microcosmos, uma espécie de
laboratório onde ensaiava as relações entre os vários elementos, e explorava as
possibilidades operativas que, posteriormente, transportava para a sua oficina e prática
escultórica.
Nele conseguia aprofundar a sua ligação de proximidade e intimidade com a natureza,
observar o seu comportamento, o seu crescimento, a sua mutação durante as diferentes
estações do ano, vivendo em contacto direto e constante com a mesma. O ato de cuidar
das plantas era para o escultor um tipo de meditação e de contemplação, apesar desta
relação íntima que mantinha com os elementos vivos, as flores, as plantas hortícolas, as
árvores de fruto, apenas trabalhava a árvore morta no seu estúdio.
Ao longo da sua vida, Alberto Carneiro plantou inúmeras árvores, contudo, por algum
motivo inerente à sua natureza, quando chegava o momento de as trabalhar no seu estúdio,
era incapaz de as cortar com esse propósito. Neste sentido, tomava a madeira previamente
transformada, ou já cortada por outros, como o seu material primordial.
52
Embora morta, a sua matéria isto é a madeira parecia manter-se “acordada”, numa
constante mutação, como se estivesse à espera das mãos do artista. Como afirma o
escultor: “o ato de criar pressupõe muita paciência. Ao criar uma obra como um tronco
de árvore posso passar seis meses sem lhe tocar, mas a cada momento estamos a trabalhar,
eu e o tronco, pois a matéria da árvore está em mutação. Tenho que esperar pacientemente
que a matéria me responda para que eu possa atuar sobre ela, senão desvirtuo-a.”108
Pousada sobre a mesa ou no chão do seu estúdio, por vezes esta espera poderia durar
vários anos, sendo o tempo o seu único assistente, responsável por lhe secar as árvores,
mudar-lhes a cor, transformar a matéria de maneira a que após todos estes processos, o
escultor conseguisse entrar em simbiose com a mesma e cuidadosamente atingisse o seu
núcleo essencial:
Nestes últimos dias as minhas mãos têm procurado o silêncio das mais íntimas congeminações. O tronco de cedro que dorme no chão da minha oficina espera que o acordem. Eu e ele temos os nossos segredos. Há muito tempo que nos namoramos e ontem as minhas mãos acariciaram-no na sofreguidão de sermos o ser um do outro. As goivas, os palhetes, os coxiberes, aguardam o tempo da acção próxima. Sinto à minha volta o cheiro da terra. O tronco será a natureza da floresta sem tempo na forma de ser a razão do meu ser. Eu e a árvore rodopiamos em torno um do outro. Esta inquietação, conheço-a já, levar-me-á aos momentos de revelação e eu terei então os gestos para que os segredos se revelem na metamorfose da matéria possuída.109
Quando chegava finalmente o momento de ser trabalhada, Carneiro pretendia ultrapassar
a própria materialidade e encontrar novamente a árvore, a sua singularidade, a sua
verdadeira essência, como se uma alma possuísse.
Este trabalho vagaroso assemelhava-se a um diálogo constante entre o escultor e o tronco
da árvore, onde este lhe indica qual o caminho a percorrer, por onde deve avançar. Ao
retirar as suas camadas, através do uso de uma serra ou da goiva, seguindo os seus veios,
liberta a energia da árvore, até atingir um momento em que tem de parar não por ter
encontrado o seu núcleo, mas por ter reencontrado a árvore, a sua singularidade e
verdadeira essência. O trabalho de Alberto Carneiro com a árvore não era no sentido de
trabalhar formalmente a sua matéria, a sua forma, mas sim, o sentido da energia desta
108 CARNEIRO, Alberto in BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art : Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.73. 109 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio&Alvim, 2007, p.53.
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mesma forma, da energia essencial da árvore, numa busca libertadora destas energias
encerradas na matéria por si esculpida. Através deste ato não lhes devolvia apenas a sua
identidade, a vida, mas atribuía-lhes também uma segunda natureza, a da arte:
Quando trabalho a madeira, atuo sobre ela para encontrar a árvore outra vez. O que é importante para mim é a energia da matéria. De facto, a energia da madeira é a energia da árvore que ainda e sempre está nela. Cada árvore tem a sua energia na sua diferente natureza. Cada árvore tem um tempo de crescimento próprio, uma reação aos elementos diferente, etc. As suas qualidades são intrínsecas à espécie correspondente. Todavia cada árvore é única e agrega em si toda a natureza.110
Quando elege esta matéria como material primordial na sua obra, fá-lo com consciência
do peso simbólico inerente à mesma, ou seja, para Alberto Carneiro, a árvore assumia-se
como a síntese da natureza. Na verdade, a árvore é talvez o elemento simbólico mais
poderoso da história, provavelmente o único a atravessar todas as culturas e utilizado
desde os primórdios da humanidade. Como o escultor afirmou nos seus escritos, “o meu
principal material é a Árvore enquanto energia essencial da vida e símbolo universal”.111
Axis mundi, em constante transformação, representante do caráter cíclico da evolução
cósmica, próprio cosmos, a árvore simboliza também a vida e as ligações que se
estabelecem entre o céu e a terra: “A árvore põe também em comunicação os três níveis
do cosmos: o subterrâneo, com as suas raízes abrindo caminho nas profundezas onde
penetram; a superfície da terra, com o tronco e os primeiros ramos; as alturas, com os
seus ramos superiores e o seu ponto mais alto, atraídos pela luz do céu. [...] Reúne todos
os elementos: a água circula com a sua seiva, a terra integra-se no seu corpo através das
raízes, o ar alimenta as suas folhas, o fogo brota quando esfregamos os dois paus”.112
O arcebispo de Constantinopla, pseudo-Crisóstomo descreveu-a no século IV, liricamente
como “firme sustentáculo do universo, ligação de todas as coisas, suporte de toda a terra
habitada, entrelaçamento cósmico, compreendendo em si toda a diversidade da natureza
humana. Fixada pelos pregos invisíveis do Espírito, para não vacilar no seu ajustamento
ao divino; tocando no céu com o topo da sua cabeça, fortalecendo a terra com os seus pés,
110 CARNEIRO, Alberto in BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art : Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.73. 111Ibid.,p.67. 112 CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Editorial Teorema, 2018, p.89.
54
e, no espaço intermediário, abraçando a atmosfera inteira com as suas mãos
incomensuráveis”.113
No Oriente, a árvore da vida é apresentada muitas vezes invertida pois “esta inversão,
segundo os textos védicos, proviria de uma certa concepção do papel do sol e da luz no
crescimento dos seres: é do alto que estes extraem a vida, é em baixo que se esforçam por
fazê-la penetrar. Daí, a inversão de imagens: a copa desempenha o papel das raízes, as
raízes o dos ramos”.114
Em diversas obras, Alberto Carneiro empregou inúmeras vezes esta mesma inversão; na
sua Árvore da Vida, (1998-2000), (Fig.13), a laranjeira aparece com a raiz para cima e a
copa para baixo; segundo o escultor, a razão desta decisão recaiu na ideia de acentuar
“exatamente a síntese que a árvore faz, exatamente esse processo energético das energias
que sobem e que descem – não é importante que a raiz esteja na terra, ou que esteja em
cima, o motivo ao fazer esta transmutação, estou no plano simbólico a introduzir, um
significado, ou uma inquietação que suscita naturalmente no espectador, ou terá de
suscitar algo que o leve a uma consideração determinada”.115 Segundo o escultor ao
identificar-se com a energia da matéria, a forma desta laranjeira poderia corresponder “a
muita coisa, a uma relação entre um dentro e um fora, entre as condições de envolvência
atmosférica, de solo, de rega, etc. Nenhuma laranjeira tem a forma igual à outra, sendo
todas identificáveis como laranjeiras. Quando eu vou mais longe nas indagações verifico
que essa forma resulta dessa reciprocidade de energias entre um dentro e um fora, entre
todas as condições de existência da laranjeira”.116
Também em Mandala Sobre a Paisagem (1998), (Fig.14) situada no Parque
Metropolitano de Quito, no Equador, os quatro eucaliptos de tamanho monumental estão
invertidos, a composição contém ainda pedras de granito, terra e relva. O escultor
trabalhou nesta obra apenas com materiais encontrados no lugar, como era habitual ao
realizar obras in-situ; através deste ato, Carneiro enfatizou o envolvimento da escultura
113 CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Editorial Teorema, 2018, p.89.. 114 Ibid., p.90. 115 VAZ, Luís Armando – Entre Nós – Alberto Carneiro. (entrevista), 2005, 9:10-9:50. 116 CARNEIRO, Alberto in TAVEIRA, Rogério – As Árvores Esculpidas de Alberto Carneiro: Matéria e Paisagem na Confluência entre Gaston Bachelard e a Inspiração Taoista. Valência: Universidad Politecnica de Valencia, 2010, p.341. [Tese de Doutoramento]
55
com o local onde se insere, pois para ele era essencial que esta habitasse o ambiente que
ocupava sem se opor a ele. A inversão das árvores permitia também que a sua energia se
espalhasse pela terra e desta forma alimentasse a floresta que a rodeava.
Ao deparar-se com esta disposição, o observador imagina a continuidade da árvore,
debaixo da terra como se a sua copa lá continuasse, apenas mergulhada na imensidão, à
espera de florescer, e as raízes viradas para o céu dão a sensação de uma continuidade
como se de ramos se tratassem:
A paisagem em Quito é a montanha que desenha o horizonte e eleva a terra até ao céu. Três círculos de terra sobre a montanha, sete árvores, irmãs das árvores vivas, crescendo ao contrário, invertendo as energias, e três pedras roladas soltas da montanha como seu corpo presente. A mandala da paisagem contendo a paisagem no centro que está dentro e fora, simultaneamente no ser do corpo e no seu cosmos. O lugar de se ser montanha, árvore e terra. O corpo penetra na matéria e suscita o acto criador. Essência do acontecer. Revelação da obra como ser. Arte.117
Dentro da sua espécie, nenhuma árvore é igual a outra, cada uma possui os seus próprios
traços, diferentes texturas e aromas; neste sentido, era precisamente esta singularidade
que pretendia recuperar nas suas obras, e que o espectador confrontado com a mesma
fosse capaz de se reconhecer nela, como própria imagem de si. Alberto Carneiro
acreditava que a comunicação estética se fazia através de trocas de energia, na sua
opinião, a obra variava tendo em conta o quadro cultural que o espectador transportava
consigo, dai a importância do princípio da energia, (a energia contida na matéria) animar
a sua escultura.
Na obra Água e fogo de 2003 (Fig.15), dois troncos de nogueira trabalhados são colocados
sobre o chão do espaço expositivo; nela é possível observar-se o trabalho vagaroso, atento
e cuidadoso do escultor. A materialidade do tronco ficou aqui reduzida à sua essência, ao
seu cerne; Alberto Carneiro foi capaz de retirar o excesso sem comprometer a sua
verdadeira identidade, exaltando-a. O observador confrontado com estes elementos toma
consciência deste aspeto, das suas diferentes texturas, da sua energia essencial; aqui a
nogueira transforma-se em água e em fogo, incorporando em si a verdadeira natureza
destes elementos.
117 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.124.
56
Em Sobre os rios I (1996-98), (Fig.16), os dois elementos que formam a composição são
colocados horizontalmente sobre o chão; aqui Alberto Carneiro trabalhou a madeira de
tola de forma a manter a estrutura dos troncos e revelar apenas o seu interior. Quando se
aproxima da obra, caminhando por entre o seu espaço compositivo o observador depara-
se com este mesmo interior, trabalhado seguindo os veios da árvore assemelhando-se ao
leito de um rio que corre. A sua forma varia ao longo da composição, como a água que
flui e saltas as barreiras naturais ao longo do seu percurso até ao momento em que desagua
no mar.
Na realidade, quando a árvore ainda se encontra enraizada, a água percorre todo o seu
interior, como num rio, alimentando-a, desde da raiz ao topo dos seus ramos, aqui nesta
obra, e apesar de o tronco estar seco o observador parece continuar a ver esta mesma água
a percorrer o seu interior:
Cada uma destas obras tem no centro, como um coração, gravada a memória de antes ter sido árvore. O amor da árvore que foi persiste nelas como um resíduo, tal como na estátua repousa tranquilo o amor (o espírito) da pedra. A escultura revela, como num desvelamento, a nudez essencial da árvore primeira. Ideia de escultura: todo o espaço que existe como presença a obra, subtraída do espaço (volume) que a própria obra ocupa. Peso do imaterial. Total abstracção. Espaço em que ocorre a vibração da própria obra enquanto matéria/energia.118
Apesar da prática escultórica de Alberto Carneiro se centrar maioritariamente sobre a
energia essencial da árvore, é relevante referir também algumas obras como Operações
Estéticas em Vilar do Paraíso (1973), Caldas de Aregos (1974-75), Trajeto dum corpo
(1976-77), na Floresta (1978) ou Corpo rio (1981), realizadas durante os anos setenta e
início dos anos oitenta. Através do recurso à fotografia a preto e branco, numa vertente
mais performativa e concetual, o seu trabalho nestas é com a energia da matéria, as
energias provenientes da própria natureza. Quando o escultor se fotografa em contacto
com a paisagem, é no sentido de aprofundar não apenas a sua relação com a natureza, do
seu corpo com a matéria, mas também das energias fundamentais da mesma.
Em O ribeiro de 1978, (Fig.17), é possível observar-se Alberto Carneiro a transportar as
rochas do ribeiro, de um lugar para outro, reorganizando-as de modo ao seu corpo nu
poder integrar de uma forma harmoniosa a paisagem. Sobre as rochas, o corpo acompanha
o curso da água que corre; ocorre neste momento uma troca de energias essenciais que
118 ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007, p.126.
57
permitem uma fusão energética, através destas o escultor pretende ele próprio tornar-se
paisagem. Desta forma, o ribeiro, as rochas e o escultor tornam-se um só, a natureza e o
escultor existem assim como unidade sensível. Em relação às suas obras Alberto Carneiro
refere uma vez mais o seguinte:
Estou diante da montanha, defronte da árvore, tenho a matéria rocha, a matéria madeira para transformar. Sou sentimento/pensamento buscando a simbiose de energias, de forças que suscitem imagens, superação ainda de conjugação de formas prefiguradas. Busco-me e procuro o novo, aquilo que possa corresponder a esse durante, entre o que estava antes e o que vem depois, também corolário do que já percebi e quero mais profundo.119
Em A floresta, datada também de 1978, (Fig.18) surge um retângulo composto por vinte
e quatro folhas; a sua composição assemelha-se a um filme, onde cada uma das folhas se
assume como um fotograma revelando por inteiro a duração e as diferentes ações do
artista face à árvore. O título convida o observador a entrar na obra, a observá-la como se
dentro da própria floresta estivesse. Em cada um dos fotogramas, na parte inferior,
aparece uma parte da natureza circundante; no meio a árvore à qual agarrado na imagem
superior o escultor aparece fotografado nu junto. A mandala, colocada no topo de cada
retângulo, retoma a unidade que o artista pretende estabelecer entre si, a árvore e a
natureza.
“A natureza recriada à nossa imagem e semelhança: nós dentro dela e ela polarizadora
dos nossos sentimentos estéticos”.120 O corpo nu do escultor surge junto ao tronco sem
causar qualquer tipo de interferência na composição, enfatizando, desta forma,
a harmonia pretendida com a natureza. Escultor e floresta são um só, entre eles não existe
qualquer barreira, o seu corpo, despojado de qualquer tipo de veste permite o contacto
direto com ela, podendo assim captar as energias da própria matéria,
metamorfoseando-se.
Quando escolhe os materiais ou espaços para a realização destas obras, há no escultor
uma procura de uma simbiose entre o seu corpo, e o meio, a natureza, seja ela a pedra, o
ribeiro, ou a árvore. Segundo Alberto Carneiro; “essa simbiose é a essência e substância
da obra. Procuro criar um campo energético a partir da origem primordial das coisas da
119 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.49. 120 Ibid., p.25.
58
natureza e do meu corpo para que seja possível geral um processo equivalente na
comunicação da obra”.121
Em relação ao suporte utilizado, quando decide trabalhar com a fotografia a preto e
branco fá-lo por esta permitir um distanciamento afetivo em relação à natureza,
transformando-a em artificial de forma a ser possível torná-la obra de arte. Sobre esta
questão Alberto Carneiro afirma: “sendo a natureza a matéria das minhas comunicações
estéticas, considero que a cor seria aqui limitação. A natureza natural basta-se a si mesma
e eu não direi que ela é uma obra de arte “eu apenas poderei tomá-la e transformá-la em
obra de arte”.122
Em toda a sua prática artística, o que Carneiro pretendia segundo as suas próprias palavras
era:
Pegar na montanha, na árvore, moldá-las em matéria de arte e inscrever nelas os gestos da memória do corpo sobre a terra – todos os caminhos, todas as viagens, todas as mudanças, todos os saberes, todas as inquietações... Se imagino sobre as revelações das matérias da terra, logo me habitam miríades de sensações, as que me antecederam no nascimentos, as que vivi desde o primeiro gesto, as que reflecti sobre os sentidos da vida e da existência e que se tornaram formas de escultura... Evoco memórias das mutações de sucessivas vivências com a matéria, tempos de anamneses transformados agora em tempos de criação, como consciência de identidade da forma/acção do corpo. Um fruto, por exemplo, com o seu cheiro/sabor, com a sua macieza, a sua cor, a sua forma particular, plenitude de sensações e de pensamento sobre elas. Entendê-lo assim e, para além das articulações lógicas, encontrar a árvore já morta dos frutos naturais e transformá-la outra vez nos frutos da sua consubstanciação, como totalidade de sensações temporais do corpo olfactivo, gustativo, táctil, visual, auditivo, em todos os movimentos e elevações do corpo subtil.123
Com Alberto Carneiro a natureza deixa de ser apenas natureza, tornando-se obra de arte,
mas, acima de tudo, campo energético, onde a energia, a do escultor e posteriormente a
do observador, se fundem integrando-se na harmonia cósmica.
121 BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art: Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.67 122 CARNEIRO, Alberto – Alberto Carneiro. Lisboa: Galeria Quadrum, 1979. 123 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.50.
59
2.2 A Escultura como Experiência
Durante a estadia em Londres, o contacto com o panorama artístico vivido na época,
nomeadamente a crescente desmaterialização do objeto artístico, a liberdade
experimental, o questionamento da tradição académica e os ensinamentos dos seus tutores
na Saint Martin’s School of Art contribuíram para que Alberto Carneiro desse início a
uma nova fase na sua prática escultórica. Iniciou a exploração de novos materiais, entre
os quais se destacam o metal, o perspex (acrílico), a fibra de vidro e as várias suas
possibilidades formais. Interessava-lhe compreender as suas características como a cor, a
transparência, a forma e o modo como, através de justaposições, se relacionavam entre
si, com o espaço, a obra e a sua envolvência.
Estes estudos consistiam maioritariamente em maquetas de pequenas dimensões,
desenhos e projetos de obras tridimensionais que viriam mais tarde a ser reunidos e
publicados no seu Caderno Preto (1968-1971). Estas pesquisas, para além de
apresentarem uma faceta mais concetual da obra do escultor, demonstravam também uma
maior preocupação da sua parte face ao papel do observador nas suas instalações.
Através do estudo de possibilidades de percursos dentro das mesmas, atribuiu a este um
lugar de relevância na composição, procurando desta maneira estabelecer uma relação
entre o fruidor e a matéria, os elementos compositivos e as sensações apreendidas perante
o espaço envolvente.
O período na capital inglesa ficou ainda marcado por um episódio que acabaria por
redefinir todo o seu percurso artístico: a 12 de Dezembro de 1968, pelas 14h30min.
Alberto Carneiro sofre um processo de anamnese, onde revive intensamente um episódio
da sua infância. A anamnese surgiu como uma espécie de epifania, onde lhe apareceu de
forma completa e finalizada, a obra O Canavial: memória-metamorfose de um corpo
ausente (Fig.11), neste momento o escultor percebeu que a sua obra teria de ser
estruturada tendo por base a recolha de sensações, as suas vivências com a matéria,
nomeadamente com as coisas da natureza e da terra. Este momento marcante seria
relembrado e descrito pelo escultor inúmeras vezes durante a sua vida:
O Canavial é na minha obra o momento de grande revelação. Sei o momento exacto em que apareceu, a 12 de Dezembro de 1968 às 14h30 no meu quarto em Londres. Apareceu como um flash, e o título da obra também apareceu imediatamente (O Canavial:
60
memória/metamorfose de um corpo ausente). [...] Foi uma espécie de acordar, uma coisa que se impôs imediatamente, ou melhor, que criou um pólo complementar em relação à aquilo em que eu estava então profundamente envolvido que era a cultura erudita. Foi uma chamada para qualquer coisa que tinha a ver com uma experiência estética de outra ordem. É por isso que “O Canavial” é para mim uma obra fundadora. Não tanto por muitas pessoas pensaram que é uma obra muito apelativa, do ponto de vista da forma, mas porque também está associada àquela outra dimensão.124
Ao transportar situações existentes na natureza ou na paisagem rural para o espaço
museológico ou para a galeria, Alberto Carneiro, nas suas instalações para além de recriar
a sua vivência inicial com as coisas da terra, e a harmonia com a natureza pretendia
proporcionar uma total imersão do visitante. Desejava que as suas instalações fossem
capazes de atingir os seus sentidos, desde da visão ao tato passando pelo olfato; aliás;
preferia o termo envolvimento em relação as suas instalações. Como o próprio afirmou,
“sempre houve da minha parte uma preocupação nesse sentido. Sempre associei todos os
sentidos à percepção da obra”.125
Em cada exposição, uma das preocupações de Alberto Carneiro era a de trabalhar com o
espaço que lhe era dado; para ele, o espaço gerava a forma e não o contrário; a obra
definia-se no espaço a partir da relação específica que com ele estabelecia.
Interessava-lhe mais a relação criada “no espaço do que aquilo que se estabelece de modo
intrínseco a cada uma das formas;”126consequentemente, assumia também como sendo
de grande importância a relação estabelecida posteriormente entre a obra e o espectador.
O escultor acreditava que a comunicação estética se realizava através de trocas de energia:
“trocas de informação, porque qualquer obra varia com o quadro do espectador, com o
quadro cultural que o espectador transporta”.127 O fruidor assumia-se, portanto, como
elemento essencial para o ciclo da obra se completar, o seu verdadeiro sentido só poderia
ser alcançado através da presença deste. À semelhança de Marcel Duchamp, Carneiro
considerava que a eternidade da obra estava no espectador e não no autor: “o espectador
124 ROSENDO, Catarina – Alberto Carneiro - Os Primeiros Anos (1963-1975). Lisboa: Edições Colibri, 2007, p.49. 125 CARNEIRO, Alberto in TAVEIRA, Rogério – As Árvores Esculpidas de Alberto Carneiro: Matéria e Paisagem na Confluência entre Gaston Bachelard e a Inspiração Taoista. Valência: Universidad Politecnica de Valencia, 2010, p.346. [Tese de Doutoramento] 126 MELO, Alexandre – Alberto Carneiro. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p.16. 127 CARNEIRO, Alberto in TAVEIRA, Rogério – As Árvores Esculpidas de Alberto Carneiro: Matéria e Paisagem na Confluência entre Gaston Bachelard e a Inspiração Taoista. Valência: Universidad Politecnica de Valencia, 2010, p.342. [Tese de Doutoramento]
61
é não só absorvido pela escultura, como esta só existe através dele e das suas percepções,
quando ele se situa no seu interior”.128
Nas instalações, Alberto Carneiro deslocava a sua vivência com a natureza para um
posterior envolvimento do espectador na obra, convidando-o à formulação dos seus
próprios significados, à recriação e apropriação dessa mesma experiência: “Arte e vida
relacionam-se através de uma experiência sensorial onde o próprio corpo do espectador
recria uma rutura com as suas expectativas em relação ao lugar da arte e ao lugar da
natureza”.129
O Canavial: memória-metamorfose de um corpo ausente, apresentado pela primeira vez
em 1972 na Galeria de Arte Abel Salazar no Porto, apresentava uma forma diferente
daquela que tomou a partir do ano seguinte, aqui possivelmente pela falta de espaço: “a
obra era constituída por um número restrito de canas encostadas a uma parede. O que está
em falta aqui é, sobretudo, a ideia de envolvência e de labirinto que
O Canavial... depois apresenta, apesar de o desenho projecto já o mostrar como ele é hoje
conhecido e de, tal como surge aí referido, uma cana valer por um milhão”.130
Esta obra consistia numa instalação de canas que ocupavam totalmente o espaço
expositivo adaptando-se ao espaço; neste sentido, a sua organização poderia variar em
relação ao próprio local que a acolhia: “O seu esquema está fixado em alguns elementos,
como a verticalidade e a obliquidade das canas, que fecha o topo da instalação e sugere a
ideia de abrigo ou acolhimento; o apoio de canas enfileiradas às paredes que indica a
infinitude da peça e anula os limites físicos do espaço.”131 Por sua vez, as canas eram
unidas entre si com ráfia que, para além de as sustentar estruturalmente, invocam o
interesse do escultor por procedimentos agrícolas, combinadas através de um código
cromático permitiam tornar simbolicamente presente um corpo ausente.
A ideia de ausência, subjacente ao título e à composição, remete para uma entidade
material que não se encontra fisicamente presente; conhecendo o episódio que deu origem
à realização desta obra seria possível afirmar que o “corpo-ausente” se refere a um amigo
128 BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art: Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.27. 129 Ibid., p.29. 130 ROSENDO, Catarina – Alberto Carneiro - Os Primeiros Anos (1963-1975). Lisboa: Edições Colibri, 2007, p.92. 131 Ibidem.
62
do escultor, que o acompanhava naquele momento. No entanto, o corpo-ausente a que se
refere Alberto Carneiro é o seu próprio corpo, o qual através da ideia de ausência, convoca
o observador a entrar na composição; ao percorre-la, o seu corpo ocupa o lugar que
outrora pertenceu ao do escultor, recriando uma nova experiência estética, possibilitando,
assim, a recriação do corpo-ausente e da memória de um episódio por si vivido.
Na mesma linha de pensamento e abordagem do espaço iniciada dois anos antes, surgiu
Uma floresta para os teus sonhos (1970), (Fig.19), apresentada pela primeira vez em
1971 na Galeria Buchholz e, posteriormente, em 1977 na exposição da Alternativa Zero,
na Galeria de Arte Moderna de Belém. À semelhança do que aconteceu com várias
instalações de Alberto Carneiro, esta escultura possuiu diversas versões, seja como um
ambiente trespassável ou como um conjunto de troncos, que definem um espaço sem
saída ou sem possibilidade de ser atravessado.
Na exposição da Alternativa Zero, organizada e comissariada por Ernesto de Sousa, esta
obra ocupava um lugar central no espaço da galeria; a sua configuração consistia em
alguns troncos amarrados e outros colocados no chão, circundada por um outro conjunto
de troncos que definiam o espaço da obra. À semelhança de O Canavial também aqui se
observa a utilização de um único material, neste caso duzentos troncos de pinho
previamente tratados, dispostos de forma quase aleatória, de pé, dispersos pelo espaço
expositivo: “Despojadas da copa, de raízes, de ramos e retendo a intervenção humana, a
anulação da individualidade de cada árvore é realizada para favorecer a ideia mais geral
de floresta, transportada para dentro do espaço da galeria mas mesmo assim mantendo a
sua integridade simbólica”.132 Aqui o observador é convidado a entrar, a percorrer o
espaço entre os troncos, não existia um caminho certo a percorrer, pois o importante seria
deambular e encontrar o seu próprio percurso, ficando à mercê da floresta como se dentro
dela estivesse. Apesar de muitas vezes não ser possível, Alberto Carneiro apelava com
esta obra ao toque, pretendendo que o visitante sentisse as rugosidades dos troncos, as
suas diferentes texturas, a sua materialidade e, desta maneira, sentisse também a energia
essencial proveniente dos mesmos.
132 ROSENDO, Catarina – Alberto Carneiro - Os Primeiros Anos (1963-1975). Lisboa: Edições Colibri, 2007, p.157.
63
Um Campo depois da Colheita para Deleite Estético do nosso Corpo (1973-1976),
(Fig.10) ao contrário dos dois “envolvimentos” referidos, apenas foi exposto algumas
vezes, maioritariamente devido à especificidade do seu material. Ao tratar-se da
representação de um campo de centeio, só poderia apresentar-se durante o verão,
encontrando-se desta forma dependente do ciclo da própria natureza e da escassez de
produção de centeio no nosso país. Foi mostrado pela primeira vez no ano de 1976, no
Museu Soares dos Reis, e incluído na exposição retrospetiva do artista; sendo
extremamente sensorial, esta instalação atingia o espectador não apenas visualmente, mas
também através do olfato e do tato. Ao cobrir completamente o chão de palha, e ao
acentuar a inexistência de um limite entre o espaço museológico e a sua obra, Alberto
Carneiro transporta o observador para o interior de uma paisagem rural, onde este acaba
por tornar-se parte integrante da mesma. Ao caminhar entre as medas de trigo e centeio,
o visitante desperta em si a memória de um final de tarde de um dia quente de verão, em
que a brisa percorre o campo e consigo leva o aroma de centeio recém-ceifado.
Embora na aparência formal as suas esculturas e envolvimentos, “sejam diferentes, eles
mantêm uma continuidade nas estruturas subjacentes, pela necessária procura de uma
poética da matéria que seja libertadora das necessidades estéticas de qualquer fuidor,
permita uma maior interpenetração dos valores não objectivos nas relações obra-
espectador e dilua a importância do autor na renovação de si mesma”.133
Neste sentido, ao falar-se dos “envolvimentos” de Alberto Carneiro, não se pode deixar
de referir outras obras que apesar de não ocuparem por completo o espaço museológico,
mas apenas parte dele, também se apresentam como obras que pretendem cativar o
observador. Neste contexto, surge Uma linha para os teus sentimentos estéticos (Fig.20),
obra realizada especificamente para a Galeria Alvarez no ano de 1970, na qual o espaço
expositivo é integrado na própria obra. As paredes da galeria adquirem uma importância
fundamental na apreensão estética, e tornam-se, juntamente com o observador, parte
constituinte da obra. Esta intervenção consistia em duas fitas pretas, divididas entre si por
um cordão igualmente preto, que percorria as paredes da Galeria, sendo que a fita superior
colocada à altura dos olhos do próprio artista reconfigura o horizonte do observador e
133 CARNEIRO, Alberto – Alberto Carneiro. Lisboa: Galeria Quadrum, 1979.
64
define deste modo, uma escala humana. As frases escritas a branco, Aqui os teus
sentimentos estéticos são prolongamento de todos os teus sentidos e Após isto as minhas
comunicações serão ferramentas para ti mesmo, repetem-se sucessivamente ao longo do
percurso expositivo, envolvendo o observador e tornando-o uma vez mais parte integrante
e agente do processo artístico.
Numa abordagem semelhante do espaço expositivo, aparece a obra Três linhas do
horizonte com céu aberto e uma descrição contínua de paisagens com vinte e uma
imagens do teu ser imaginante (Fig.21), apresentada na exposição Arte Vida/Vida Arte,
no ano de 2013 no Museu de Serralves. Ao longo do corredor da sala expositiva, foi
colocada uma faixa de papel que por sua vez foi dividida em três linhas diferentes do
horizonte; na parte superior surgia uma linha preta contínua, na parte inferior Alberto
Carneiro descrevia, através da escrita e em pequenas frases, diferentes paisagens, como
um campo de carrajó em flor ou tapando o horizonte, pequenos malmequeres.
Ao centro da faixa, juntavam-se várias linhas, assemelhando-se a cordilheiras que se
prolongavam pelo espaço a elas destinado; em diferentes momentos, todas as partes eram
interrompidas pela colocação de um espelho, onde apareciam escritas diferentes
afirmações, como, por exemplo eu sou terra, ou eu sou rio. Os vinte e um espelhos para
além de ritmarem a composição, enfatizavam a ideia do observador como parte integrante
da obra; ao percorrer o espaço, e ao deparar-se com o seu reflexo na faixa, tornava-se
elemento compositivo da mesma, apropriando em si a natureza no espelho descrita. Todos
nós, seres humanos, pertencemos à natureza, dela viemos, nela ficaremos, ela habita em
nós e no nosso interior somos também um pouco do rio, da montanha, da terra; com esta
obra, Alberto Carneiro tentava retomar esta mesma ligação que muitas vezes é esquecida
pela ausência de um contacto autêntico com a mesma.
Enquanto criador, Carneiro pretendia que as suas esculturas, os seus “envolvimentos”
fossem um lugar para os outros, procurava comunicar o seu mundo, o qual, como afirmou,
“pode muito não ser o mundo que determinado contemplador encontrará se a sua
formação e necessidades estéticas não coincidirem com as minhas. Considero que a obra
65
de arte deve dar-se até ao ponto de poder ser recriada por quem a frui. Isso autentica a
comunicação que se faz entre o criador e o contemplador no seio da coisa criada”.134
A necessidade estética é inata ao ser-humano, independentemente da sua formação, do
seu conhecimento, e encontra-se nele como algo vital; para o escultor, a obra de arte não
possuía um significado fixo, era sempre circunstancial, depende de quem a interroga, de
quem se coloca perante ela, aguardando ou provocando a “resposta” da obra.
Ao criar as suas obras, Alberto Carneiro pretende superar o que já tinha sido dito, procurar
inquietar o plano da arte, suscitar questões, “porque não é a forma fechada, não é a forma
da coisa que significa é a relação que a forma estabelece, quer com as outras coisas no
espaço, quer acima de tudo com os significantes que a pessoa transporta”.135
A arte deveria ser feita para suscitar algo novo, que antes era desconhecido, para quem
quer que fosse, sem o contemplador a obra de arte não existiria, nem viveria.
Uma característica comum a todos os “envolvimentos” de Alberto Carneiro é serem todos
penetráveis, a partir do momento em que o espectador entra também ele passa a ser visto
e a ser parte integrante da obra, esta, por sua vez, só existe por causa dele e é o espectador
dá sentido. Em relação a este aspeto na sua obra o artista afirmou o seguinte: Eu sei que os objetos que crio deixam de me representar no momento da vossa contemplação, há uma apropriação pela vossa necessidade que anula os meus valores estritamente personalizados. Eu só lá estou na proporção de qualidade e através dos meus valores abstratos, isto é, universais, se o campo se abrir para todo o diálogo; na adesão ou repulsa da vossa contemplação.136
Para Alberto Carneiro “a escultura nasce nesse momento em que o ser e o estar da obra
se unificam na matéria: ser de tempo, estar de espaço nas prefigurações da matéria que o
gesto transforma. Um corpo habita então outro corpo e tudo acontece. Mas a criação
poética não se pode explicar: ela é ainda um enigma, sempre uma vertigem. [...] sei apenas
que estas esculturas têm a ver com o meu corpo, com tudo o que ele sabe do universo,
física, mental e subtilmente”.137
134 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.20. 135 VAZ, Luís Armando – Entre Nós – Alberto Carneiro. (entrevista), 2005, 11:10-11:44. 136 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.20. 137 Ibid., p.49.
66
Um elemento também importante e recorrente na sua prática artística; é a linguagem, esta
funciona como forma de reflexão para o autoconhecimento do escultor e assume-se como
fundamental para comunicar o seu processo criativo e integrar nesse mesmo processo o
espectador. “A linguagem é assim uma outra dimensão da obra, que se torna importante
interrogar para uma melhor compreensão de trabalhos que nunca renunciaram à
explicitação de algumas das suas condições de interpretação”.138
As obras de Alberto Carneiro assumem uma condição poética, que supera a sua própria
existência, permitindo que o espectador seja transportado para uma outra dimensão.
Através delas, a natureza volta a renascer dentro dele e reconhece-se a si mesmo nela e
nas suas obras, vê para além de si, mas, ao mesmo tempo, vê se a si próprio. Mais do que
“envolvimentos”, acabam por se tornar uma verdadeira experiência, não apenas sensorial
mas que permitem também um reencontro com a nossa verdadeira identidade.
Neste contexto Alberto Carneiro afirma:
O tempo é o real espaço da arte: o tempo de fazer, o tempo de sentir, o tempo de pensar. Na percepção da arte, o espaço é medido com o tempo. O tempo do corpo que vê e toca, que se move em torno da obra e de si mesmo na busca de se fundir com ela, de ser uno nessa simbiose da coisa que se gera única e, no último estádio da significação, intransmissível.139
As suas obras são lugares onde acontecem verdadeiros encontros estéticos com o
espectador. Levando-nos a perguntar: Que seremos nós seres-humanos quando a natureza
deixar de existir no nosso interior? Acima de tudo o que pretende Alberto Carneiro na
sua prática artística é que esta mesma natureza nunca deixe de nos habitar, nós somos e
seremos sempre parte dela e ela parte nossa. Haverá sempre no nosso interior, um pouco
de montanha, de árvore, de rio, ou como diria Jorge Sousa Braga, é tão difícil guardar um
rio quando ele corre dentro de nós.
138 BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art: Alberto Carneiro. Porto: Fundação de Serralves, 2013, p.29. 139 CARNEIRO, Alberto – Das notas para um diário e outros textos – antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.65.
67
CONCLUSÃO
No contexto da história da arte portuguesa, Rui Chafes e Alberto Carneiro surgem como
dois artistas singulares, de grande relevo e importância para o panorama artístico
contemporâneo, e nomeadamente para o campo da escultura. Apesar de formalmente as
suas obras não possuírem, à primeira vista semelhanças, as práticas escultóricas destes
artistas assentam sobre princípios semelhantes, procurando atingir um único objetivo, a
saber, o de proporcionar uma experiência estética ímpar aos seus observadores.
Para os dois escultores, o lugar da infância, ao qual se encontram intimamente ligados,
ocupa um papel essencial no momento de criação da sua linguagem artística.
Neste sentido, Rui Chafes nunca foi capaz de trabalhar em qualquer outro lugar que não
o Guincho, onde, junto da casa dos seus pais, se encontra o seu atelier; só aqui o seu corpo
é capaz de reconhecer o tempo, a memória de um espaço longínquo, o que possibilita o
encontro com o seu próprio ser e os seus mestres do passado. No caso de Alberto
Carneiro, a sua oficina, juntamente com o jardim da sua casa em São Mamede do
Coronado, permitiam-lhe o reencontro com a natureza que acompanhou o seu
crescimento, e só neste lugar o escultor como confessa conseguia reproduzir as relações
íntimas que mantinha com os elementos vivos, as flores, as árvores de fruto, e recriar,
assim, as vivências através do contato com a matéria das suas esculturas.
A relação com a natureza, e a natureza em si, revela-se também na obra de Rui Chafes
como uma importante componente da sua linguagem artística; para o escultor e como o
próprio afirma; “é extremamente importante viver de forma consciente a harmonia do
ritmo da Natureza, com as quatro estações, os ventos, as mudanças, as chuvas que nos
podem apresentam muitas formas. Penso que as formas da Natureza são parte da nossa
cultura. A nossa memória está inscrita na grande memória da Natureza”.140
Na sua série Andrej filho de Andrej filho (2004-2011) e ao longo da costa atlântica de
Sintra, o artista abandona as esculturas como uma forma de agradecimento a esta
paisagem entre a terra e o mar, que já tanto lhe ofereceu, pois a existência do homem só
é possível por causa da natureza. Se neste projeto as obras de Chafes ficam à mercê da
140 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.153.
68
natureza, em Alberto Carneiro, esta torna-se o material primordial da sua prática
escultórica, transformando-a em obra de arte. Ao apresentar a natureza no seu estado
primordial, transportando situações presentes na mesma e na paisagem rural para o
interior do espaço museológico, ou da galeria de arte, o escultor deixa por sua vez, o
observador à mercê dessa mesma natureza, numa tentativa deste retomar a ligação
profunda com a mesma. Este ato é também uma forma de agradecimento por tudo o que
a natureza e continua a fazer pelo observador, já que se constitui condição vital para
ambos.
Nas suas práticas escultóricas o vazio manifesta-se como um elemento compositivo
fundamental, no entanto, é pertinente referir a maneira distinta como os escultores o
abordam. Para Rui Chafes, o vazio aparece como uma entidade distante do observador,
este pode observá-la mas é impossível tocar-lhe, o seu corpo não tem autorização para
“entrar” e ocupar o espaço, pois este existe apenas para demonstrar a sua verdadeira
ausência, assumindo-se quase como “sagrado”. O artista acredita que o vazio é absoluto,
e só pode ser preenchido, com a Verdade e a Beleza, conceitos universais.
Com Alberto Carneiro, o vazio apresenta-se como constituinte primordial da sua
escultura, mais precisamente no sentido do próprio corpo do artista como elemento
compositivo ausente. Ao ocupar o espaço vazio, o escultor pretendia que o observador se
converta em elemento fundamental da composição para que, juntamente com Carneiro
habite e viva o espaço agregando ou integrando em si a natureza.
Nas obras do escultor o espectador tinha a consciência que o vazio era tão importante
quanto os outros elementos compositivos, pois para o artista é fundamental passar a
mensagem de que apesar de ausente, se encontra presente.
Apesar das esculturas de Rui Chafes e Alberto Carneiro trabalharem com a materialidade,
na verdade os dois escultores trabalham com o que supera a própria matéria, isto é, a sua
dimensão imaterial.
Para Carneiro, o que parece ser realmente importante na sua prática escultórica é o seu
trabalho com a energia da matéria, a energia essencial da árvore, ou seja, a energia
proveniente da própria natureza. A escultura é energia, e essa mesma energia deverá
entrar em contato com o observador, sendo que este necessita de a sentir, a partir da
criação de um campo energético, em que as forças se interligam numa harmonia cósmica.
69
Em Rui Chafes, os objetos existem para superar a própria matéria, já que esta é como
afirma o escultor, impura, suja e errada. Neste sentido, existe apenas a “esperança do
objeto”, já que este é apenas necessário para provar a sua não-existência, pois só são
válidos os objetos que se elevem a um estatuto de pensamento. O escultor trabalha com
a matéria para conseguir superá-la; na sua obra a presença do espectador é essencial para
que, através de um processo de redução, o objeto atinja o estatuto de ideia, ou
pensamento, constituindo-se apenas uma possibilidade, nunca uma certeza.
Os dois artistas possuem em comum um assistente muito singular, o tempo.
No caso de Alberto Carneiro este é responsável por lhe secar as árvores, mudar-lhes a
cor, transformar a matéria de maneira a que após todos estes processos, o escultor
conseguisse entrar em simbiose com a mesma e cuidadosamente atingisse o seu núcleo
essencial, reencontrando novamente a árvore, a sua verdadeira essência.
Na obra de Rui Chafes, a relação com o tempo surge logo no seu atelier; porém e como
afirma. só neste lugar o tempo se desenrola de forma distinta do tempo universal, no
sentido que desacelera, abranda, chegando quase a suspender-se. Para o escultor, o tempo
é o seu único amigo, e assistente, é-lhe essencial não ter qualquer tipo de pressa em
relação ao seu trabalho.
Sendo herdeiros do legado de Marcel Duchamp, para ser possível completar e dar sentido
às suas obras, torna-se essencial que exista a presença de um espectador válido, pois a
eternidade das suas esculturas reside precisamente neste, só ele lhes dá sentido, só ele
possibilita que tudo os que os escultores criam na sua prática escultórica seja realmente
concretizado e alcançado.
Neste sentido, a escultura de Alberto Carneiro assume-se como uma obra aberta. O espaço
da sua escultura assume-se como um espaço propiciador de relações, do observador, com
a composição, com o escultor através do seu corpo ausente, e ainda com a matéria; esta
funciona também como potenciadora da experiência estética. Carneiro acreditava que a
escultura deveria ver-se com as mãos, sendo necessário senti-la para a compreender,
sendo que, em muito dos seus envolvimentos, apelava ao toque, para atingir todos os
sentidos do observador, numa completa experiência sensorial.
Para Chafes, a escultura deve ser tocada com o olhar, como o artista afirma: “para mim,
é impensável deixar tocar nas esculturas, que aliás são como sombras. Nas sombras não
70
se toca, não há nada palpável para agarrar”.141 A sua arte, é uma arte que requisita o
pensamento, sem ser necessário o toque, pois o objeto é capaz de incendiar o cérebro do
observador, através do seu olhar, é capaz operar uma transformação espiritual.
Apesar do trabalho dos escultores ser formalmente diferente, o espectador assume
realmente grande importância nas suas composições; Rui Chafes e Alberto Carneiro
pretendem, que através da experiência estética resultante das suas obras, estas sejam
capazes de tocar no cerne, no interior de quem as presencia, originando um reencontro
com aquela que é a sua verdadeira essência.
141CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Rui Chafes - Sob a Pele. Lisboa: Documenta, 2018, p.141.
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ANEXO
Fig.1 Eu sou os Outros, 2007 Fonte:https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre
_pomar/2007/11/rui-chafes.html
Fig.3 Contramundo, 2012 Ferro Pintado, 250x148x130cm
Fonte: DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017.
Fig.2 Doce e Quente, 1995 Ferro Pintado, 185x124x108cm
Fonte: https://www.serralves.pt/pt/museu/a-colecao/obras-por-artista/?l=C&col=&cat=
Fig.4 Vertigem IV, 1989 Fonte: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/06/28/uma-
singularidade-elegiaca/
78
Fig.5 Würzburg Bolton Landing VI, 1994 Ferro, 290x42x47cm
Fonte: https://www.artsy.net/artwork/rui-chafes-wurzburg-bolton-landing-vi
Fig.6 Não durmas, 1999 Ferro
Fonte: DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017.
Fig. 7 É assim que começa VIII , 2016 Bronze, 5x14x7cm
Fonte: DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017.
79
Fig. 8 As tuas mãos, 1998-2013
Dimensões Variáveis Fonte: DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L.,
2017.
80
Fig. 9 Il tempo é il mio único amico , 2011 Ferro, 145x75x160cm
Fonte: DRATHEN, Doris Von – Unborn: Rui Chafes. Bial, D.L., 2017.
Fig. 10 Um campo depois da colheita para deleite estético do nosso corpo, 1973-76 Dimensões Variáveis
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
81
Fig. 10 Um campo depois da colheita para deleite estético do nosso corpo, 1973-76
Dimensões Variáveis Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de
Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
Fig. 11 O canavial: memória metamorfose de um corpo ausente, 1968 Dimensões Variáveis
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
82
Fig. 12 Corpo Mandala, 1995 Madeira de mogno, 167x100x100cm
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
Fig. 13 Árvore da Vida, 1998-2000 Laranjeira, 335x200x180cm
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
Fig. 14 Mandala sobre a paisagem, 1998 Eucaliptos, granito, terra relva, 1000x1000x1000cm
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
83
Fig. 16 Sobre os rios I, 1996-98 Madeira de mogno, 167x100x100cm
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
Fig. 15 Água e Fogo, 2003 Madeira de Nogueira, 68x65x85cm, 73x75x70 cm
Fonte: PEREIRA, Cecília – Alberto Carneiro. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2001.
84
Fig. 17 O ribeiro, 1978 (pormenor) Fotografia sobre papel impresso 50 placas de 20x20cm
Fonte: ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Alberto Carneiro – Lição de Coisas. Porto: Campo das Letras, 2007.
Fig. 18 A floresta, 1978 Fotografia sobre papel impresso 24 folhas de 62x12cm
Fonte: https://www.serralves.pt/pt/museu/a-colecao/obras-por-artista/?l=C&col=&cat=
85
Fig. 19 Uma floresta para os teus sonhos, 1970 Fonte: https://contemporanea.pt/edicoes/05-06-2017/alberto-carneiro-
inventor-de-florestas-para-sonhar
Fig. 20 Uma linha para os teus sentimentos estéticos, 1970 Fonte: http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/pecas/ver/265/artista
86
Fig. 21 Três linhas do horizonte com céu aberto e uma descrição contínua de paisagens com vinte e uma imagens do teu ser imaginante, 2013 (pormenor)
Fonte: BURMESTER, Maria; BUEK, Paul – Arte Vida/ Vida Arte – Art Life/Life Art:
Alberto Carneiro. Porto: Fundação Serralves, 2013.
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