Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Curso de Doutorado
Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas
JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA
A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:
DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO
DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS
RECIFE
2015
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Curso de Doutorado
Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas
JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA
A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:
DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO
DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de
Pernambuco como requisito para
obtenção do título de doutora em
Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Rosângela
Tenório de Carvalho
RECIFE
2015
JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA
TESE DE DOUTORADO
A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:
DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO
DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS
COMISSÃO EXAMINADORA:
_________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho
1ª Examinadora/Presidente
_________________________________________
Profa. Dra. Silke Weber
2ª Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas
3º Examinador
__________________________________________
Profa. Dra. Karina Mirian da Cruz Valença Alves
4ª Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Rui Gomes de Mattos de Mesquita
5º Examinador
À minha avó materna, Maria Odília da Silva, que viveu e morreu sem saber ler e
escrever, mas sabia rir dessa condição, que não a impediu de ser uma das maiores fontes
de sabedoria em minha vida, expressa em provérbios para todas as horas do dia,
palavras que voam e permanecem, contrariando o ditado latino “verba volant scripta
manent”, palavras e saberes que se fazem presentes hoje e por longo tempo.
Ao meu avô materno, Luís Targino da Silva, operário da Fábrica da Macaxeira,
alfabetizado, que dava aulas de ler e escrever no horário de almoço a outros operários
que assim o desejavam.
AGRADECIMENTOS
Em princípio, manifesto minha gratidão aos seres cujo labor secular e cuidado
antiquíssimo me permitiram estar aqui e fazer o que faço e seguir fazendo. Àqueles e
àquelas cuja caminhada na terra em vários planos energéticos traçou as estradas pelas
quais pude percorrer minha própria andança neste mundo. Gratidão às forças do
universo que me sustentam e me fazem ver o que tem de ser visto, escutar o que tem de
ser escutado, falar o que tem de ser falado. Axé!
À minha orientadora, Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, com quem
naveguei para adentrar no arquipélago das ilhas desconhecidas do pensamento
foucaultiano e dos meandros da escolarização, meu agradecimento profundo pela
parceria intelectual, pelo afeto transbordante, pelas valiosas lições sobre a carreira
acadêmica, pela habilidade de falar e silenciar nos momentos certos, permitindo que o
meu processo de reflexão fosse constituindo-se com a autonomia necessária para o
aprendizado.
À minha família ― Luzinete Targino, Samuel Cavalcante, Tatyana Cavalcante e
Lucia Moura ―, cujo suporte afetivo vem sendo a base sólida para minha
sobrevivência!
A Joana D’Arc Santos, professora da Rede Municipal de Ensino do Recife, meu
reconhecimento pela sua perspicácia e compromisso que, mesmo em contexto altamente
desfavorável, diante de um trabalho por vezes desumanizador à frente da coleta de
dados da educação, não permitiu que a biopolítica limitasse sua visão a ponto de
impedi-la de chegar até a mim ― então gerente da Educação de Jovens e Adultos
daquela Secretaria Municipal ―, entregar um calhamaço de históricos escolares e fazer
a pergunta certa: o que você vai fazer com isso?
Às amigas da Secretaria de Educação do Recife: Vilma Lins, Andréa Lobo,
Fátima Bizarro, Lucia Ferraz, Márcia Cabral, Taciana Durão, pelas tardes e noites de
trabalho, pelos risos, pelo companheirismo, pela dedicação, compromisso e pela
confiança sempre inspiradora. Ao companheiro Inaldo Rocha, exemplo de servidor
público e, sobretudo, amigo no compromisso com a educação. Ao companheiro
Antonio Elba, que compartilhou desses momentos. A todas as diretoras de escolas,
professoras, alfabetizadoras de programas que não poderei citar aqui por falta de espaço,
mas com quem de algum modo pude aprender sobre o funcionamento da escolarização
de EJA, meu agradecimento cheio de esperança!
A Lenira Silveira, pela amizade delicada e doce, e pela incrível habilidade de
transformar cada dificuldade em um aprendizado profundo, duradouro e comprometido
com o povo.
Ao Prof. Dr. Licínio Carlos Viana Silva Lima, da Universidade do Minho, pelas
horas de intensa discussão sobre as políticas de Educação de Adultos, nas quais teoria e
prática se combinavam para uma compreensão mais profunda sobre a realidade; pelos
livros disponibilizados de sua biblioteca particular, inacessíveis de outro modo, pela
generosidade intelectual que pude testemunhar durante o período de estudos no
doutorado sanduíche sob sua orientação, meus agradecimentos sinceros.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação, nas pessoas de
Morgana Marques e Karla Reis Gouveia, cuja competência técnica e capacidade de
escuta foram imprescindíveis para que eu, mesmo distante, pudesse ter minha vida
acadêmica organizada e exequível.
Às companheiras do Grupo de Estudos Foucaultianos coordenado pela Profa.
Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, Ana Paula Abrahamian, Ana Paula Rufino, Ana
Cristina Hazin, Camila Oliveira, Natália Belarmino, Patrícia Ignácio, Talita
Nascimento, pelos momentos de aprendizado mútuo que contribuíram para minha
compreensão melhorada sobre o pensamento de Michel Foucault.
A Jacirema Bernardo, educadora, antropóloga e pensadora olindense, ao lado de
quem pude participar de algumas das mais contundentes experiências de aprendizagem
da alfabetização e da Educação de Adultos, através do enfoque Reflect-Ação, quiçá uma
das pedagogias mais revolucionárias já criadas para o fortalecimento dos povos. Evoé!
A Beatriz de Barros de Melo e Silva, a pessoa que me fez o primeiro convite
para participar de uma atividade de alfabetização de adultos no sertão profundo de
nosso estado. A Graça Melo Vital, cuja delicadeza e generosidade me fizeram aprender
a observar os detalhes da prática pedagógica.
Ao Professor João Francisco de Souza, in memorian, pela vivacidade intelectual
com que produziu em algumas de nós, estudantes dos projetos do NUPEP, a paixão pela
Educação de Adultos e pelos estudos críticos da Educação Popular, no bom lugar onde
estiver, professor João, meu agradecimento póstumo!
A Aline Cavalcanti, com quem o exercício da amizade vem sendo um longo
diálogo, aberto, fluido, intempestivo, criativo e comprometido com a humanidade!
Gratidão, irmã!
Aos colegas do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas:
Jorge Luiz Feitoza Machado, João Caetano Linhares, Márcio Javan Camelo, Clever
Luiz Fernandes e Hawbertt Rocha Costa, do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em
Ciências Naturais, do Campus de Bacabal da Universidade Federal do Maranhão, pelos
momentos de debates rigorosos e animados sobre as perspectivas epistemológicas do
mundo contemporâneo, sobre os problemas da formação de professores e da produção
de ciência a partir dos princípios éticos da vida docente concernentes à nossa condição
de servidores públicos.
Às irmãs de fé e luta Ciani Neves, Janny Rodrigues e Rozário Silva, aos
queridos irmãos Augusto Crisóstomo e Lucas Ryman, com quem pude atravessar com o
coração leve e tranquilo uma tempestade necessária para confirmar que o mundo não é
como estavam querendo nos dizer.
Aos professores do Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco, pelo estimulante ambiente intelectual do qual pude desfrutar em diferentes
etapas de minha formação em graduação e pós-graduação. Aos professores Alexandre
Simão de Freitas e Flávio Henrique Brayner, pelos questionamentos, provocações e
pelas leituras estimulantes e profundas dos problemas da educação.
À Prof. Dra. Cíndia Brustolin, pelas conversas de alto nível sobre as
epistemologias da resistência aos processos de dominação, pela atenção cuidadosa que
nunca poupou uma palavra coerente de incentivo e motivação, pela amizade sempre
presente nos momentos mais difíceis de nossas vidas de imigrantes!
A Maria Tereza Trabulsi, Isabell Mendonça, Paloma Sá, Márcio Boás,
educadoras e educador do Jardim Waldorf Guará Mirim, cuja ousadia e prática
pedagógica me trouxeram de volta a esperança com os processos de Formação Humana.
Mas, também por todo o acolhimento e afeto franqueados nessa minha vida tão especial
no Maranhão.
A Márcio Soares e Gabriel Kafure, dois amigos cuja síntese entre inteligência e
sensibilidade foram fundamentais para algumas das reflexões expostas neste estudo.
A Johnny Martins, detalhista leitor deste texto, cujo apuro e delicadeza
contribuíram com a legibilidade final da tese, minha gratidão!
Ao povo brasileiro que, através de seus impostos, financia estudantes como eu
na realização de seus estudos, com bolsas fornecidas pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
A escritura metódica me distrai da presente condição dos homens.
A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos assombra.
Eu conheço distritos onde os jovens se prostram diante dos livros e
beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma só letra.
As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que
inevitavelmente degeneram em banditismos dizimaram a população. Creio
ter mencionado os suicídios, a cada ano mais frequentes. Quiçá me
enganam a velhice e o medo, mas suspeito que a espécie humana – a única
– está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária,
infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil,
incorruptível, secreta.
J.L. Borges, A biblioteca de Babilônia, 1941.
8
RESUMO
A tese intitulada “A Educação no horizonte do provável: dispositivos biopolíticos na
escolarização de pessoas jovens e adultas” tem como objeto as relações de poder que
sustentam os dispositivos de governamentalidade desenvolvidos para a administração
social das populações adultas no âmbito da escolarização. Tomando a Educação de
Adultos como um discurso biopolítico, o estudo objetiva explicitar e discutir as linhas
de visibilidade e enunciabilidade pelas quais esta modalidade educacional se produz
enquanto fenômeno biopolítico no âmbito da educação escolar. Para proceder a este
intento, analisa as estratégias enunciativas que se desdobram sobre os territórios
discursivos dessa modalidade educacional, configurando os mecanismos que a fazem
agir sobre sujeitos e populações. A partir das conceituações de biopolítica e
governamentalidade em Foucault, o estudo enfoca os procedimentos do poder no
processo de criação da população não alfabetizada como alvo das tecnologias do
constrangimento e do abandono. Com o aporte das discussões de Giorgio Agamben
sobre subjetivação e dessubjetivação, vida nua e estado de exceção é desenvolvida a
análise sobre as posições de sujeitos presentes nos enunciados da metanoia e da
vergonha como operadores do constrangimento, e da precariedade como operadora do
abandono. O posicionamento metodológico da tese realiza-se numa síntese das
abordagens genealógicas, dos estudos foucaultianos sobre o discurso e de suas análises
biopolíticas, priorizando os processos de compreensão sobre a atualidade das relações
de poder nos dispositivos analisados. São focalizados enunciados advindos do discurso
parlamentar, do audiovisual e das campanhas de alfabetização, além do campo reflexivo
da pedagogia, os quais participam da produção de diferentes modos de veridição da
relação do sujeito com o projeto social da escolarização. Também são enfocados os
enunciados presentes em históricos escolares, pelos quais são discutidas as
temporalidades divergentes e os deslocamentos produzidos pela população não
alfabetizada presente ao espaço complexo da escola e inserida no processo ambíguo da
escolarização. A análise problematiza categorias estáveis a respeito dos benefícios da
Educação Escolar para populações adultas, o valor da escrita na vida dessas populações,
além das formulações subjetivantes encarregadas pela interpelação dos sujeitos a
inserirem-se na ordem do discurso escolar.
Palavras-chave: Alfabetização de Adultos. Educação de Adultos. Escolarização.
9
ABSTRACT
The thesis entitled "Education in the horizon probable: education of young people and
adults as bio-political device" has as its object the power relations that make up the
governmentality devices developed for the social management of adult populations
within the school. Taking Adult Education as a bio-political discourse, the study aims to
explain and discuss the lines of visibility and enunciabilidade why this educational
modality is produced as bio-political phenomenon in the field of school education. To
carry out this purpose, it analyzes the declared strategies that unfold on the discursive
territories this educational modality, setting up mechanisms that make it act on
individuals and populations. From conceptualizations of biopolitics and
governmentality in Foucault, the study focuses on the power of the procedures in the
creation of the population illiterate targeting technologies embarrassment and
abandonment. With the contribution of Giorgio Agamben discussions of subjectivity
and desubjectivation, bare life and state of emergency is developed analysis of the
subject positions present in the statements of metanoia and shame, and embarrassment
operators, and precarious as operator of abandonment. The methodological positioning
of the thesis carried out a synthesis of the genealogical approaches of Foucault's studies
of the speech and its biopolitical analysis, prioritizing the understanding of processes on
the current power relations in the analyzed devices. Are focused statements arising from
the parliamentary speech, audiovisual and literacy campaigns, in addition to the
reflective field of pedagogy, which participate in the production of different modes of
veridição the subject's relationship with the social project of schooling. Also they
focused on the statements present in transcripts for which discusses the different time
frames and displacements produced by the population illiterate by the school complex
space and ambiguous schooling process. It is considered as a result of analyzing the
performance of denaturalization of the categories for which it is thought the Adult
Education generated by the debate over the power lines that say what is visible and what
can be said in the regime of truth of Adult Education educated in their version.
Keywords: Adult Literacy. Adult Education. Schooling.
10
RESUMÉ
La thèse intitulée «L'éducation à l'horizon probable: l'éducation des jeunes et des adultes
en tant que dispositif de bio-politique» a pour objet les relations de pouvoir qui
constituent les dispositifs de gouvernementalité développés pour la gestion sociale des
populations adultes dans l'école. Prenant l'éducation des adultes comme un discours de
bio-politique, l'étude vise à expliquer et discuter les lignes de visibilité et
enunciabilidade pourquoi cette modalité éducative est produit comme phénomène de
bio-politique dans le domaine de l'enseignement scolaire. Pour réaliser ce but, il analyse
les stratégies déclarées qui se déroulent sur les territoires discursifs cette modalité
d'enseignement, la mise en place des mécanismes qui rendent agir sur les individus et
les populations. De conceptualisations de la biopolitique et la gouvernementalité à
Foucault, l'étude met l'accent sur la puissance des procédures dans la création de la
technologies de ciblage des populations analphabètes embarras et l'abandon. Avec la
contribution de discussions Giorgio Agamben de la subjectivité et de désubjectivation,
la vie nue et l'état d'urgence est mis au point l'analyse des positions de sujet présents
dans les états de la metanoia et la honte, et les opérateurs de l'embarras, et précaire en
tant qu'opérateur de l'abandon. Le positionnement méthodologique du travail de thèse
réalisé une synthèse des approches généalogiques des études de Foucault du discours et
son analyse biopolitique, la priorité à la compréhension des processus sur les relations
de pouvoir actuelles dans les dispositifs analysés. Sont des déclarations ciblées
découlant des campagnes parole, de l'audiovisuel et de l'alphabétisation parlementaires,
en plus du champ de réflexion de la pédagogie, qui participent à la production des
différents modes de veridição la relation du sujet avec le projet social de la scolarité. En
outre, ils ont porté sur les comptes présentent dans les transcriptions pour lequel aborde
les différentes échelles de temps et les déplacements produits par la population
analphabète par l'espace complexe scolaire et processus de scolarisation ambiguë. Il est
considéré comme un résultat de l'analyse de la performance de dénaturalisation des
catégories pour lesquelles il est considéré l'éducation des adultes générée par le débat
sur les lignes électriques qui disent ce qui est visible et ce qui peut être dit dans le
régime de vérité de l'éducation des adultes instruits dans leur version.
Mots-clés: L’alphabetisation des adultes. L'éducation des adultes. Scolarité.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
PARTE I: HORIZONTES TEÓRICOS
Capítulo 1: A população como objeto da razão: a arte de conduzir as multidões........................ 33
1.1. Trajeto teórico-metodológico ........................................................................................................ 35
1.2. A genealogia como procedimento epistêmico .............................................................................. 39
1.3. O biopoder e regulação das populações ....................................................................................... 42
1.4. O jogo estratégico das forças: a noção de dispositivo.................................................................... 47
1.5. Uma análise biopolítica: seus desdobramentos ............................................................................. 58
1.6. Exceção e vida nua como alegorias do analfabetismo................................................................... 63
Capítulo 2: A escolarização das populações adultas: um problema biopolítico 72
2.1. A emergência da população de adultos analfabetos e baixo-escolarizados................................... 78
2.2. Neoliberalismo: a razão política na administração do precário...................................................... 91
2.3. A Educação de Adultos nos diversos arranjos da estatalidade....................................................... 94
2.4. Poder dizer sobre Educação de Adultos: elementos do debate epistemológico............................. 103
PARTE II: TECNOLOGIAS BIOPOLÍTICAS DA ESCOLARIZAÇÃO DE ADULTOS
Introdução: secularização e normalização da escrita........................................................................... 123
Capítulo 3: A vergonha e a conversão: a enunciação do constrangimento ................................... 132
3.1. A vergonha nacional nos discursos parlamentares sobre alfabetização de adultos........................ 138
3.2. O circuito da conversão: uma linha de força na Tecnologia do Constrangimento . ...................... 148
3.2.1. O discurso da metanoia em Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire ................................................. 150
3.2.2. Vida Maria: “perder tempo desenhando nome”.................................................................. ........ 162
Capítulo 4: O precário como estratégia: a visibilidade do Abandono............................................ 172
4.1. A campanha como dispositivo biopolítico .................................................................................. .. 180
4.2. Urgência, parcimônia e improviso: regularidades discursivas nas campanhas de alfabetização
brasileiras 1947-2003..............................................................................................................................
186
Capítulo 5: Tempos e Deslocamentos Divergentes no Espaço Biopolítico da
Escolarização........................................................................................................................................
196
5.1. Racionalidade estatística e biopoder na gestão da população não alfabetizada............................. 200
5.2. A documentação “Histórico Escolar” e as operações sobre o arquivo .......................................... 205
5.3. Deslocamentos divergentes problematizando os parâmetros da escolarização.............................. 219
5.3.1 A EJA de longa permanência: os ciclos dos adultos longevos..................................................... 220
5.3.2. Os excessos de ausência e os regimes de persistências de estudantes adultos............................ 228
5.3.3. 9,6 anos de estudos e nenhum diploma: o ciclo de escolarização das pessoas negras................ 231
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ .... 237
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 243
ANEXOS
12
INTRODUÇÃO
O título desta tese faz referência a um texto de Haroldo de Campos de 1969,
intitulado “A arte no horizonte do provável”, no qual o poeta e teórico da literatura
discorre sobre a incorporação do acaso na produção estética, com especial ênfase na
música e na poesia. Poeta concretista, integrante de um movimento que propulsou a
poesia brasileira ao status de vanguarda de um tempo que começava a se autodenominar
como “contemporâneo”, Campos informa que a incorporação do acaso na arte dialoga
com o reconhecimento do princípio da incerteza tal como discutido na física quântica,
mas busca também questionar os automatismos ― então em franco desenvolvimento ―
que pareciam anunciar a supressão da liberdade e do acaso por uma sociedade do
controle e da previsão.
Controle e previsão são dois dos principais termos relacionados à dimensão
política do contemporâneo, na qual, para nosso assombro, torna-se mais forte o jogo de
garantir que o movimento das populações, cada deslocamento dos sujeitos, seja
devidamente registrado, fotografado, anotado. A produção contínua desse espaço social
controlado produz documentações, técnicas e tecnologias cada vez mais diminutas,
rarefeitas, dispersas, mas articuladas por linhas de força que condicionam práticas e
lugares sociais, destinos, narrativas sobre o sujeito e caminhos que ele pode ou deve
percorrer. Cria-se o espaço biopolítico, em que as regras do que pode ser dito e do que é
visível são administradas, assimiladas às médias, e assim colocadas sob a providência
da lei e da ordem através de seus dispositivos.
Para Haroldo de Campos, além de serem procedimentos incorporados pela arte
como “contra tecnologias”, o acaso e a incerteza são assumidos em seu viés de
possibilidades interpretativas, colocados, assim, no lugar da hermenêutica possível do
presente, que se resguarda do passado como herança e o desmonta numa nova tradição
da qual resta apenas uma proveniência. A genealogia dos dispositivos que se movem
nessa proveniência assimila, desse modo, aquilo que o russo Boucourechliev (apud
CAMPOS, 1977, p.20), discutindo a estética musical de Pierre Boulez, descreve como
“duas redes de trajetórias que devem ser executadas alternativamente (são assinaladas
com tintas de cores diferentes) propõem ao intérprete conjuntos de estruturas dentre os
13
quais ele escolherá seu percurso guiado pela própria notação. O antes e o depois perdem
aí seu sentido tradicional; a leitura não é linear, mas diagonal, vertical, em giro...”.
Com esse espírito interpretativo, necessário ao desdobramento de uma
compreensão aprofundada sobre os mecanismos pelos quais dispositivos educacionais
colaboram com o governo das populações, nosso trabalho mobiliza as teorizações de
Michel Foucault e Giorgio Agamben sobre poder e sujeito ― relação instável,
contingente, incerta e perigosa ― para dar conta das questões que a convivência com o
campo teórico-prático da Educação de Adultos fez vir à tona.
O caminho tomado priorizou o estudo de algumas ancoragens que consideramos
significativas na constituição do fenômeno da Educação de Adultos como prática
biopolítica. Elencamos os pontos onde essa modalidade educacional sustenta um
discurso da salvação do sujeito, no qual produz um lugar de vergonha a partir do qual
ele deve se mover em direção à salvação pela alfabetização. Esses pontos de ancoragem
constituem o regime do enunciável, da ordem das coisas ditas, denominado neste estudo
por Tecnologia do Constrangimento. Além daqueles, elencamos os pontos em que o
espaço institucional da escola funciona enquanto política que torna essa população
visível e administrável. Sujeitos e objetos nessa dimensão recebem a marca do precário,
sendo, por conseguinte, produzidos pelo regime de visibilidade que atua na população
quando interpelada e colocada sob a lei e a ordem do aparato escolar. Essas ancoragens,
da ordem das coisas visíveis, constituem a Tecnologia do Abandono.
É importante salientar que a face biopolítica da Educação de Adultos é uma das
tantas possibilidades de sua realização. Esta pesquisa não se dedicou a análises de
práticas singulares, mas de arranjos de práticas, que respondem por algumas
regularidades de tal modo que constituem uma racionalidade posta em funcionamento
quando acionamos a discursividade dessa forma da escolarização. A Educação de
Adultos, portanto, não é apenas biopolítica, mas é biopolítica também. Compreender de
que modo opera essa biopolítica é o objetivo central deste trabalho.
Há diversas racionalidades presentes na Educação de Adultos, desde aquelas que
dizem respeito às suas formas não estatais, nas quais a prática dos movimentos
14
emancipatórios encontra, no domínio do conhecimento poderoso1 e prestigiado da
escrita, uma das ferramentas de sua luta, até aquelas que reconhecem no Estado um ente
executor fundamental na garantia da ideia de universalidade a ser produzida pelas
políticas públicas de educação. Há, também, as formas locais da razão que se
apresentam ali onde o saber do método se dirige ao sujeito propondo sua instrução, onde
professores se dirigem a alunos, onde escolas como instituições recebem, nos seus
modos típicos, a população não alfabetizada. Nosso estudo se dirige à racionalidade
biopolítica, aquele uso específico da razão que confere inteligibilidade à questão da
escolarização de pessoas adultas no horizonte da modernidade, no recorte específico em
que o Estado governamentalizado interpela as populações demarcadas pela “falta
universal” da escrita.
Genealogia empírica da pesquisa
O tema do nosso estudo nasce de uma série de observações, vivências e leituras
em torno à questão dos modelos de atendimento à demanda social por escola para
adultos e “combate” ao analfabetismo. No Brasil, já se fala sobre campanhas de
alfabetização de adultos há pelo menos 70 anos. A nossa pergunta inicial de pesquisa,
ainda ingênua, porque composta no lugar da pesquisa informal, na dinâmica da
operação de um sistema de alfabetização numa rede pública de educação, questionava:
por que há tantos limites para que se realize a ação alfabetizatória?
A observação contínua dos mecanismos de operação dos programas de
alfabetização e sistemas formais de ensino deixava a cada dia mais e mais perguntas no
ar, tais como: por que o perfil de professor leigo não foi superado ainda? Por que os
valores investidos continuam sendo tão pequenos? Por que o tempo de aprendizagem
continua sendo o tempo do sistema e não o do sujeito? Por que há tantas brechas para a
reinserção dos mesmos sujeitos nos mesmos programas? Por que a lógica quantitativa
continua superando qualquer outro argumento na operação de uma ação educacional?
Por que não conseguimos modelos diferenciados para atender mulheres com filhos,
trabalhadores noturnos, moradores de rua? Por que não conseguimos que o
1 Conhecimento poderoso refere-se aos saberes que representam condição de acesso a um acervo de
saberes/poderes estratégicos para a obtenção de direitos, fortalecimento de lutas e empoderamento diante
das opressões.
15
financiamento público da educação cubra as matrículas dos estudantes da EJA, oriundos
dos programas de alfabetização, no mesmo ano calendário2? Por que não podemos
matricular os estudantes diretamente na rede pública, no ensino fundamental, sem a
passagem pelo programa de alfabetização? Por que precisamos submeter pessoas jovens
e adultas a 200 dias letivos de aula, dezenas de horas anuais de frequência escolar,
avaliações balizadas por critérios de frequência e rendimento? Por que as turmas de EJA
precisam ter número mínimo de alunos para funcionar, e por que elas são fechadas
quando possuem menos de 10 alunos com frequência regular? Por que o cálculo de
frequência individual dos estudantes de turmas de EJA é feito com base numa lógica
linear e formalista, desprezando a sabedoria das professoras, que contabilizam a
presença e não a ausência, considerando já uma vitória a pessoa adulta conseguir chegar
até a escola, num contexto essencialmente desfavorável a essa prática?
O argumento de que uma racionalidade orçamentária, liberal, estatal, presidiria
as decisões no campo das políticas públicas não parecia suficiente, uma vez que ela
também era e permanece sendo parte de alguma outra coisa, da qual é semelhante e com
a qual é articulada. O fato de estarmos diante de políticas neoliberais parecia ser um
horizonte de explicações, mas esse horizonte continuava não sendo suficiente, e
precisávamos compreender de forma mais refinada essa influência.
Diante desse cenário, não era um fato surpreendente que os principais problemas
das turmas de programas de alfabetização fossem justamente a dificuldade crescente em
conseguir formar/mobilizar grupos de 15 pessoas não alfabetizadas para legitimar (ou
ativar, na linguagem do sistema) uma turma, bem como a dificuldade em manter estas
turmas em funcionamento durante o tempo de execução do programa. Ao lado dessa
questão, o principal problema das turmas regulares de EJA, as turmas do ensino
fundamental, era também relativo às matrículas, bem como à evasão e ao abandono
escolar, assuntos já clássicos do campo da Educação de Adultos.
Os principais argumentos em circulação na explicação desses fenômenos
remetem ao fato, aparentemente inegável, de que ocorre anualmente uma diminuição do
público de EJA, pois a sociedade está sendo escolarizada mais cedo. Mas esse é um
argumento sofismático. Ele não se sustenta diante de alguns contornos do próprio real:
2
No ano de 2012, foi criada a Resolução FNDE nº 48, de 02 de outubro de 2012, garantindo o
financiamento per capta dos estudantes de EJA oriundos do Programa Brasil Alfabetizado, para sua
inserção no mesmo ano calendário em escolas públicas dos anos iniciais do ensino fundamental.
16
pensando a EJA para além da alfabetização, como sustentar o argumento de uma
sociedade mais alfabetizada diante de frequentes súmulas estatísticas que dão conta,
pelo menos a cada dois anos, de uma diminuição dos índices de analfabetismo na
população total, por um lado, e de uma ampliação do analfabetismo funcional, de outro,
bem como da regularidade da taxa absoluta de analfabetos no total da população3?
Aumentando as evidências sobre as incertezas desse cenário, nosso olhar para o
cotidiano das práticas de execução dos programas de alfabetização percebia
constantemente os vazamentos do sistema: as dezenas de pessoas que passavam várias
vezes pelos programas e pelas turmas de EJA, reincidindo numa relação com a escola e
com o programa; a dificuldade da ação alfabetizatória se concretizar diante de tantos
pequenos entraves que se acumulavam (materiais que nunca chegam aos estudantes,
merenda inadequada em quantidade e qualidade, um tempo de atendimento diário
precarizado pelas condições materiais dos alfabetizadores e alfabetizandos); a
permanência longa de sujeitos nas ações, tanto na função de alfabetizadores, quanto na
função de alfabetizandos (em contraponto com a lógica da urgência instalada nos
discursos sobre alfabetização); pessoas que se inscrevem em turmas de alfabetização
apenas para “ajudar” o alfabetizador a obter uma ajuda de custo, dentre outros
infinitesimais elementos invisíveis que permeiam essas ações. A percepção de que o que
menos ocorria nessas ações era o acesso à língua escrita, seu pretexto maior de
existência, levou-me a sentir que participava de uma luta sisífica.
Ao mesmo tempo em que os processos de alfabetização e escolarização se
apresentavam com tais instabilidades, elementos da cultural social em torno à pessoa
não alfabetizada e ao analfabetismo pareciam articular um discurso da separação, da
teratologia do analfabeto, da segregação econômica, produzindo um aparato
subalternizante aparentemente invisível, mas, simultaneamente articulado a uma
normatividade e, portanto, a uma forma específica de visibilidade da pessoa não
alfabetizada, em línguas escritas de matriz colonial.
O estudo do pensamento foucaultiano trouxe às perguntas iniciais um grau de
abstração sobre o tipo de relação que se estabelece entre tantos diferentes objetos,
distribuídos no tempo e no espaço sem uma correlação de causalidade evidente, mas
3 No período em que se desenvolvia esta pesquisa, o IBGE, através do PNAD, identificou que o índice de
pessoas não alfabetizadas deixou de cair pela primeira vez desde os anos 1970 no total da população.
17
articulados por um movimento similar no que tange à natureza das relações de poder ali
ser configuradas4.
Aprendemos que Foucault (1988, p. 103) entende o poder como uma relação,
como uma prática estratégica, articulatória e produtiva. Desde a problematização
biopolítica, o poder é aquilo que, agindo sobre a vida, eleva ao máximo a eficácia das
tecnologias mínimas no exercício de governo das populações (FOUCAULT, 1988,
p.152). As perguntas impertinentes da fase ingênua inauguram a perspectiva
genealógica da pesquisa no processo mesmo em que denotam um campo de lutas
intrínsecas à efetivação da escola de adultos, mas lutas mantidas em silenciosa marcha
no cotidiano das práticas.
A partir das observações empíricas que antecederam o presente estudo
acadêmico do tema, e do aporte teórico do pensamento foucaultiano, auxiliado pelo
pensamento agambeniano, observamos como o abandono e o constrangimento
apareciam como linhas de força na caracterização da Educação de Adultos.
Observávamos como aqueles problemas focalizados nas perguntas iniciais da pesquisa
encontravam-se relacionados com os enunciados sobre precariedade, postergação,
vergonha e salvação em livre circulação no território discursivo da Educação de
Adultos.
Observamos como esses enunciados estão fortemente associados ao público da
Educação de Jovens e Adultos, emergindo em diversos contextos discursivos que
denotam os tipos de relações desses sujeitos com a instituição escolar, evidenciando a
presença de um modo de racionalidade que governa tais relações. Esses enunciados
surgem naturalizados em discursos, práticas e comportamentos e possuem uma
produtividade.
Ao nos debruçarmos mais atentamente sobre esse fato, percebemos que os
diversos elementos do que hoje chamamos de dispositivo da campanha e dispositivo da
4
A fase experiencial desta pesquisa é o momento em que as perguntas iniciais nasceram, ainda antes
da entrada no curso de doutoramento, na qual atuei como gestora de EJA na Rede Municipal de
Ensino do Recife, momento no qual a realidade nos desafiou com sua incongruência e despertou o
interesse por uma compreensão mais refinada do que atualmente chamamos de “dispositivo da
campanha”. Ao longo dos últimos quinze anos, minha convivência com programas de alfabetização e
escolas de Educação de Adultos, em diversas funções, levou-me à mesma problemática enunciada
acima. Passamos a considerar esse momento anterior como parte do estudo por compreender a
pesquisa social dotada de uma dimensão auto-reflexiva, na perspectiva de uma conexão observador-
no-campo (MELUCCI, 2005).
18
escolarização concorrem para a criação de um espaço em que o direito a aprender e o
direito à educação escolar se apresentam mais como falta do que presença, mais
negação do que vivência, mais interdição do que fluência. Observamos que a
alfabetização e o analfabetismo não são problemas em si, mas eventos de certo modo
essencializados em enunciados como “erradicação do analfabetismo” e “Brasil
alfabetizado”, funcionando como índices de um modo específico da relação do sujeito
adulto não alfabetizado com as práticas de educação.
A ferramenta conceitual que utilizamos para desenhar o diagrama dessa rede de
relações é o dispositivo, oriundo da teorização biopolítica baseada em Foucault, com
auxílio das leituras de Deleuze e Agamben. Nossa hipótese afirma que os dispositivos
acionados para o governo das populações não alfabetizadas atuam através de duas
tecnologias discursivas, configuradas em torno das noções de constrangimento e
abandono, produzindo ininterruptamente um campo de veridição da relação do sujeito
com a instituição escolar.
O dispositivo é um conjunto de elementos que se estende sobre a escolarização
de EJA com a marca da precariedade tipificada na imagem símbolo da campanha. As
campanhas foram construídas pela discursividade dos grupos que interpelam a
governamentalidade como a expressão de uma precariedade a ser superada por
“políticas públicas de Estado”, nas quais as escolas funcionam como a marca da
plenitude do direito.
A escola, entretanto, e não apenas neste estudo, aparece como uma instituição
ambígua, composta por muitas possibilidades, mas organizada de modo a dar sua
contribuição ao processo mais geral de governo das populações. No âmbito dessa
instituição, o governo da população analfabeta produz visibilidades severas, como a
demarcação de um mesmo sujeito como retido, reprovado ou marcado pelo abandono
num histórico escolar; produz, ainda, enunciações constrangedoras, aquelas usadas para
convocar os adultos não alfabetizados através da vergonha e da salvação.
A condição produzida para as pessoas interpeladas por tal ordem discursiva é
similar à que Agamben discute com o conceito de vida nua a partir da figura jurídica
arcaica do homo sacer. Analisamos essa condição de modo a compreender como se
produz a relação do sujeito adulto na escolarização com a sua inclusão num regime de
19
exceção, que produz uma enunciação constrangedora e uma visibilidade abandonada à
força da lei.
Com Agamben, tocamos em pontos dolorosos da experiência social da
escolarização de adultos, como os processos de dessubjetivação que percorrem os
enunciados da vergonha nas políticas de enunciação em jogo na referência à população.
Por outro lado, ao lançarmos o olhar para as políticas de visibilidade da população
analfabeta, o conceito de abandono emerge como operador das tecnologias do precário
no espaço escolar.
A dessencialização de alguns termos desse debate, através da presente pesquisa,
visa a contribuir com a reflexão sobre a produção da experiência escolar para adultos,
superando o aparato biopolítico que produz o analfabeto e sua circunscrição em relações
sociais subordinadas. Nossa pesquisa alia-se a estudos no campo da alfabetização de
adultos que problematizam a validade da alfabetização universal, bem como os
pressupostos liberais a respeito do valor intrínseco das alfabetizações em línguas
escritas de matriz colonial (Cf. FACHEH, 2007; GRAFF, 1994; PARAJULI, 1990;
FREIRE, 1978).
O analfabetismo, assim como a fome e a seca do nordeste, é um problema
político e, como tal, aciona um conjunto de saberes, práticas e relações correspondentes
ao fato de que a alfabetização e o analfabetismo de pessoas adultas não são problemas
da ordem da biologia ou da cognição, mas da luta pelo poder. A dualidade entre
analfabetismo e alfabetização interpela nossas reflexões sobre o poder quanto ao reforço
de certas condições destinadas a determinados grupos populacionais, construídas
sutilmente pelos aparatos jurídicos, institucionais, subjetivos e pedagógicos acionados
no governo dessas populações. A análise que suporta esse tipo de questão é de natureza
genealógica, ao investigar os focos de luta entre os saberes produzidos no interior do
dispositivo, as formas do poder nas relações constituídas e os efeitos sobre
subjetividades.
Um dos efeitos centrais do dispositivo investigado não seria tanto uma
reprodução das condições de vida, não tanto uma subjugação, mas o convencimento a
ocupar um lugar social, através do apelo ininterrupto à mudança de condição pelo
sujeito. Esse processo ocorre, no entanto, através de práticas que não se consolidam, não
se afirmam, e constantemente parecem deter a mudança de condição. As lutas políticas
20
em torno à alfabetização, a luta pela escola pública, a luta de classes como “pano de
fundo” da luta contra o analfabetismo, a disputa interna pela hegemonia entre as classes
proprietárias, e, sobretudo, o conflito racial estruturante das relações sociais brasileiras,
todos esses cenários corroboram a hipótese central de que os dispositivos de
alfabetização e escolarização estão a serviço do controle de populações específicas.
O conjunto que temos diante dos olhos na atualidade fala de uma estabilidade,
com mais de 90% de alfabetização no total da população adulta do país e uma estrutura
ampla e disseminada de equipamentos escolares voltados ao atendimento educacional
desse grupo. Mas a maioria das pessoas adultas passa pelo sistema e não atinge a
conclusão da educação básica. O estremecimento vem de dentro. Ao analisar suas
disfunções, encontramos sua produtividade. As palavras de Agamben (2010, p. 118)
são, a respeito disso, provocativas:
É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo
tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos
que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais
simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente
inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e
mais temível instância ao poder soberano do qual desejam libertar-se.
Trata-se de uma dispersão de enunciados que alimentam práticas e imaginários
sociais sobre a modalidade e seus sujeitos, e reforçam subjetivações em torno a
significados que subordinam. Dizermos que tal produtividade está relacionada à
produção da subescolarização não significa colocá-la numa relação de causalidade
linear, torná-la evidência de um insucesso, ou motor único de um conjunto de relações.
Significa, conforme Foucault, aprofundar nossa leitura em torno das nossas próprias
demandas e ainda reconhecer a força dessa discursividade na criação das relações que
elas interpelam, compreender, através do jogo poderoso das palavras, a implicação
dessa racionalidade com os efeitos produzidos pela escola e, ainda, poder questionar
essa escola e o tipo de oferta de escolarização que estamos a fazer aos sujeitos da
Educação de Adultos. Nesse sentido, o estudo se insere no conjunto de pesquisas que se
dedica a
Fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir de mecanismos
infinitesimais, os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto,
21
sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de
poder, que têm, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia
própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados,
inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por
mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.
(FOUCAULT, 2005, p. 36).
A história da escolarização de adultos no Brasil atravessou todo o século XX
para se configurar já no século XXI como um aparato aparentemente estável de garantia
do direito à educação para pessoas jovens e adultas. Dos modos de afirmação da
educação como instrução básica aos modos de afirmação da ideia de “qualidade social”,
a forma de incidência das práticas de poder sobre as populações não alfabetizadas vem
sendo caracterizada ou como “necessidade” ou “urgência” ou “reparação”. No Brasil, a
ideia de qualificação é introduzida a partir do parecer nº 11/2000, de Carlos Roberto
Jamil Cury, um dos raros documentos jurídicos que dedica atenção substantiva à
escolarização de adultos, a partir do ano 2000.
Nesse parecer, o jurista discorre sobre três funções básicas para a escolarização
de jovens e adultos ― sejam elas: a supletiva, de caráter compensatório; a reparadora,
também de caráter compensatório; e a função equalizadora, que propõe a equalização
das desigualdades ―, assim formulada: “Esta tarefa de propiciar a todos a atualização
de conhecimentos por toda a vida é a função permanente da EJA que pode se chamar
de qualificadora. Mais do que uma função, ela é o próprio sentido da EJA.” (BRASIL,
2000, p. 11, grifos no original). Compreendemos, neste estudo, que as diferentes
funções apresentadas pelo Parecer nº 11/2000 extrapolam uma função descritiva sobre o
funcionamento da escolarização de adultos, e correspondem a diferentes racionalidades
que demarcam as práticas da EJA, sejam elas discursivas ou extradiscursivas.
A função qualificadora se coaduna com a concepção de Educação Permanente,
propugnada pela UNESCO, a partir do relatório Aprender a Ser, redigido por Edgar
Faure em 1972. Esse conceito, segundo Lima (2007), é fonte de diferentes
posicionamentos consignados nas perspectivas da educação ao longo da vida e
aprendizagem ao longo da vida. Fazendo a crítica das posições reducionistas da
Educação de Adultos, que a subordinam a lógicas funcionais e adaptativas, Licínio
Lima (2007, p.44) reflete que,
22
As perspectivas mais pragmatistas e tecnocráticas de formação e
aprendizagem ao longo da vida vem, de fato, subordinando a vida a
uma longa sucessão de aprendizagens úteis e eficazes,
instrumentalizando-a e amputando-a das suas dimensões menos
mercadorizáveis, esquecendo, ou recusando, a substantividade da vida
ao longo das aprendizagens. Esquecendo, ainda, que a principal força
da educação reside, paradoxalmente, na sua aparente fragilidade, nos
seus ritmos próprios e geralmente lentos, nos ensaios de tentativa-erro,
na incerteza e na falta de resultados imediatos e espetaculares, nos
seus continuados processos de diálogo e convivialidade, os quais
partem do princípio de que ninguém educa, forma ou muda alguém
rapidamente e à força, seja através de instrumentos legislativos, seja
por meio de programas vocacionalistas, de reeducação,
ressocialização ou reconversão. Simplesmente porque a educação
exige sempre a participação ativa dos sujeitos, ou educandos, no
processo educativo.
A ideia de uma Educação de Adultos é, portanto, segundo Lima, irredutível a
algumas de suas formas e formulações do campo teórico e político em que se dá a luta
pela sua definição. Tomada como algo mais que uma simples estratégia de treinamento
para a inserção subordinada na esfera laboral ou mesmo de algumas porções da cultura,
a Educação de Adultos seria responsável por uma tarefa emancipatória e civilizatória
mais ampla. Na formulação de João Francisco de Souza (2007, p. 166), Educação de
Adultos é fenômeno mais amplo, portanto, que alfabetização, escolarização e
treinamento laboral:
Trata-se, portanto, de processos e experiências de intercomunicação e
interação que possam garantir a recuperação, a valorização, a
produção e a apropriação de valores e conhecimentos: recognição e
reinvenção. Ressocialização. Essa constituir-se-á como um exercício
emancipatório e intercultural do poder-conhecer-ter-emocionar/se
(SER). Por meio do desenvolvimento da competência linguística,
argumentativa, decisória, ética, estética, técnica, política. Essa
perspectiva situa-nos no seio da cultura em construção na história.
Depreende-se, pelas formulações apresentadas, que o debate de resistência do
campo da Educação de Adultos produz concepções mais amplas para essa prática,
atentas à multidimensionalidade dos processos humanos e à contingência das relações.
Logo, nesta tese, quando nos referimos à Educação de Adultos, estamos fazendo
23
menção a esse processo mais amplo de formação humana defendido pelo pensamento de
resistência às práticas reducionistas da Educação.
A distinção entre os processos de Educação de Adultos e escolarização de
pessoas adultas é fundamental na leitura deste trabalho. A Educação escolar de Jovens e
Adultos é o processo mais geral mediado pelo Estado, seja na forma da lei, seja na
forma de práticas efetivas realizadas pelas escolas públicas ou privadas regidas pelo
ordenamento legal em vigor. A Educação de Jovens e Adultos, portanto, representa uma
singularização daquele processo mais amplo de formação humana, sendo uma das
formas pela qual o Estado se envolve na rede de atendimento à educação de pessoas
adultas, concernente, de modo específico, à Educação Básica.
O que chamamos de EJA – Educação de Jovens e Adultos ― nesta pesquisa, é o
conjunto de práticas de escolarização de pessoas adultas, executadas através de uma
modalidade da educação básica, em conformidade com o que define o Parecer
CNE/CEB nº 11/2000 (embora uma noção abrangente de EJA estenda sua vigência até
o Ensino Superior e inclua outras práticas além da escolarização) através da qual grupos
sociais de pessoas acima de 15 anos são interpelados pelas ações de governo a se
(re)inserirem na ordem do discurso escolar.
A EJA contempla tanto ações de alfabetização, através de programas, quanto
ações de escolarização através de estabelecimentos regulares de ensino, podendo
assumir a feição do que o Parecer supra citado chama de “cursos de Educação de Jovens
e Adultos”. Para Cury, ainda no mesmo documento, a “EJA é uma categoria
organizacional constante da estrutura da educação nacional, com finalidades e funções
específicas.” (2000, p.5). A EJA é uma prática específica do campo mais abrangente da
Educação de Pessoas Adultas, ou Educação de Adultos, da qual participam ainda as
práticas não escolares de educação.
Enquanto problema da ordem das relações de poder, a escolarização de adultos
no Brasil atravessa um diagrama difícil e complexo que articula diferentes questões. As
relações que envolvem o sujeito não escolarizado e o projeto de escolarização da
modernidade, em sua versão brasileira, estão marcadas pelo estabelecimento de uma
modernização tardia, configurada pela situação colonial que rege o conjunto das
relações sociais e é demarcada pela inserção subordinada do País nas relações
econômicas mundiais. A condição colonial e pós-colonial é circunscrita a um projeto
24
social racista, configurado pelo procedimento de separação entre sujeitos legítimos e
não legítimos para ascender à esfera do social através da escola e da escrita.
O cenário que configura a legitimidade da educação na modernidade
(POPKEWITZ, 2005) está relacionado à naturalização do valor intrínseco do
conhecimento como prática emancipatória, herança iluminista que subsidia a instalação
progressiva de técnicas de controle e regulação da distribuição social do saber, através
de mecanismos dualistas que definem que tipo de conhecimento para qual tipo de
sujeitos. É dessa forma que a escola, da maneira como foi formulada entre os séculos
XVI e XIX no continente europeu (VARELA 1991; VEIGA-NETO, 2010; SOUZA,
2004), atende a classes sociais de modo diferenciado e diferenciador, e sempre atento ao
papel do acesso controlado ao saber como ferramenta de regulação dos movimentos das
diferentes populações.
O saber regente dessa formação histórica é a escrita, valorizada na luta entre as
classes sociais em disputa no processo de constituição da modernidade, bem como entre
as forças religiosas que lhe atribuem diferentes papéis no processo de formação e
controle das almas. A hipertrofia da valorização do conhecimento escrito acompanha o
processo de institucionalização da Educação Escolar, sendo o principal elemento
legitimador desta instituição e servindo de parâmetro para o processo de separação
acionado pelo racismo de Estado.
É nesse lugar em que os mecanismos de separação, seleção e diferenciação
social se inscrevem que a Educação de Adultos constitui sua existência enquanto prática
biopolítica. Referindo-se a um dos modos de compreender o poder como “condução de
condutas”, a biopolítica é uma prática que se dirige à condução da vida de uma
multidão, construída como uma população a ser conduzida através de uma série de
mecanismos que visam a mantê-la sob os “cuidados” adequados para que se
movimentem no ambiente social de forma conveniente.
Os vários mecanismos têm funções e incidências diversas e a educação escolar
se configura como um mecanismo que denominamos, no interior dessa teorização,
como dispositivo da escolarização. O dispositivo da escolarização para a população
adulta foi formulado pela produção discursiva do sujeito não alfabetizado, pela sua
localização numa subalternidade política, produtiva e social amplamente reafirmada, e
pelo movimento temporal caracterizado pelo “adiamento” reincidente de seu acesso
25
pleno às práticas escolarizadas no horizonte em que elas são compreendidas como
direito.
A produção do sujeito não alfabetizado é um processo que se observa na
primeira metade do século XX, até aproximadamente os anos 1940 (CARLOS, 2008)
através do surgimento de uma discursividade que se dedica a localizar, afirmar e
produzir o analfabetismo como chaga social e vergonha nacional.
A subalternidade social do analfabeto é alvo de uma difusão de discursos que
vão do religioso ao legislativo, a exemplo das narrativas sobre o voto do analfabeto, que
se faz presente também nas afirmações sobre a vida triste e pobre das pessoas sem
acesso à escrita, discursividade reforçada até os dias de hoje, inclusive com a inscrição
desses enunciados nos registros mais típicos de nosso tempo, tal como as peças
audiovisuais, a exemplo da animação “Vida Maria”, analisada no Capítulo 3 desta tese.
A mesma racionalidade se expressa nas peças publicitárias que apresentam com
notas tristes a vida dos escolares da Educação de Jovens e Adultos e o quanto suas vidas
se transformaram com a escola, peças que, em geral, se concluem com um sorriso alegre
em câmera fechada no rosto do sujeito, ou imagens de suas mãos calejadas pelo trabalho
escrevendo o nome num caderno. O processo de restrição reincidente tem como
exemplo mais expressivo a série temporal que começa com as primeiras discussões
sobre o acesso de homens negros adultos a cursos noturnos de primeiras letras, ainda no
império, em classes especiais, e encontra sua atualidade na questão do financiamento
progressivo da modalidade EJA pelo Fundo Nacional de Financiamento da Educação
Básica, no qual essa modalidade de educação escolar só teve pleno repasse de recursos a
partir do ano de 2011.
O projeto de escolarização da sociedade brasileira escolheu suas prioridades e
definiu os sujeitos que deveriam viver a experiência da escolarização. A retórica da
alfabetização cumpriu ao longo de todo o século XX uma função sustentadora do
mecanismo de controle dessa população, primeiro esvaziando o mundo simbólico das
populações a que se dirigia, centralmente operado pelo processo em que esse mundo
simbólico não foi assimilado pela escola. Segundo, porque acionou uma série de
dispositivos não discursivos que atuaram sobre a população. Esses dispositivos
discursivos e não discursivos sustentados pela retórica da alfabetização são chamados
neste estudo de “dispositivo da campanha”, que é um dispositivo especializado no
26
interior do dispositivo mais amplo da escolarização. Não é coincidência que a campanha
seja uma forma de organização militar e que os dispositivos de segurança dos estados
tenham utilizado tal estratégia para enfrentar os perigos a que estavam expostas as
sociedades modernas recém-constituídas (FOUCAULT, 2008a).
O analfabetismo é um problema da segurança do Estado brasileiro e o analfabeto
é constituído como alguém que representa risco. Por isso, não podia votar e, por isso, o
enfrentamento a uma questão da ordem da cultura foi alinhavada pelo uso de um
dispositivo de ampla utilização no campo das problemáticas biológicas. A campanha é
mais do que uma forma de organização de salas de aula baratas e rápidas para superação
de uma problemática social. É o signo de uma racionalidade que se naturaliza na
sociedade brasileira e carrega, entre outros elementos, o fato de que uma parte da
população nunca esteve integrada ao projeto de nação defendido pelas classes
governantes.
Retornamos, pois, ao problema do racismo estrutural da sociedade brasileira, e
retomamos a informação de que levamos mais de 100 anos apenas para afirmar de
forma constitucional o direito à educação “independente da idade” de seu demandatário.
Dessa forma, além da precariedade explicitada no modo de funcionamento da
campanha, ela também representou ― vem representando ainda ― o fato de que nunca
escolhemos, como nação, priorizar o acesso aos saberes legitimados e poderosos da
cultura escrita escolarizada pelos sujeitos adultos, pobres, em sua maioria negros e
nordestinos ― e, essencialmente a nós, mulheres negras.
A produtividade biopolítica da escolarização de adultos participa da produção do
lugar subalterno atribuído na sociedade às pessoas não alfabetizadas ou não
escolarizadas. As emancipações presumidas pelos discursos iluministas e seus
desdobramentos na modernidade, inclusive na pós-modernidade, não se confirmam, e a
escolarização cumpre seu papel político no governo das populações interpeladas pela
sua retórica.
Nessa contextualidade, o papel de uma teorização biopolítica é colocar no debate
sobre escolarização a relação entre educação e poder a partir de uma teorização pós-
metafísica sobre esse fenômeno, o que gera alguns deslocamentos no âmbito da teoria
educacional. A colocação em xeque das noções de sujeito, razão e verdade supõe a
27
desnaturalização daquilo que constituiu a ideia moderna de escola em suas principais
bases.
A própria ideia de escola como um bem maior parece poder ser problematizada,
assim como as suas realizações específicas, no âmbito de situações concretas que
podem ser analisadas e “desmontadas”. No caso da reflexão sobre o papel da escola
para adultos numa sociedade de classes, de todo o leque de explicações teóricas, o
argumento mais largamente utilizado tem sido o da reprodução. A análise biopolítica
não se ocupa da reprodução, mas da produção contínua não da mesma sociedade
entendida como um ente, mas da adequação permanente das relações de poder através
das novas estratégias exigidas para sua manutenção.
O poder, entendido como uma relação, um campo de forças que se organiza de
maneira estratégica e atua sobre a conduta dos indivíduos, tem menos a tarefa de
garantir que as pessoas estejam no mesmo lugar de classe e mais a função de assegurar
que estejam submetidas a uma relação de controle eficiente e econômica, de modo que o
controle seja produzido através das diferentes técnicas disponíveis, sejam elas
disciplinares, biopolíticas ou éticas.
Ao provocar novos movimentos na população interpelada, o biopoder
apresenta-se através de muitas facetas, algumas sutis, como um projeto de atuação sobre
a vida. Lembrando que a vida pressupõe a morte, em certas circunstâncias é do caráter
do biopoder propiciar o desaparecimento ou “entregar à própria sorte” partes “não
necessárias” do Estado Nação. No limiar em que o biopoder se encontra com esta
possibilidade, o que está posto é a estratégia do genocídio.
Por outro lado, antes de atingir esse limiar, o biopoder tem a capacidade de gerar
uma série de posições desfavoráveis, constrangedoras, de hipertrofia de uma
visibilidade pejorativa, tal como no caso dos analfabetos. A trajetória social do
analfabeto, sua construção como sujeito “anormal”, sua teratologia são focalizados neste
estudo através do conceito agambeniano de vida nua. A vida nua, antes de ser uma
excepcionalidade, é uma regularidade quando acionada para determinados grupos
sociais, inseridos numa rede difícil de ser desatada.
A condição em que o sujeito convive numa sociedade que torna a escrita uma
condição vital de existência, que tem assegurada a legitimidade de seu acesso a esse
conhecimento, mas não dispõe do aparato concreto que lhe garanta atingir esse objetivo
28
de forma pertinente ― adiando-o através de vários mecanismos, inclusive fechando as
salas de aula disponíveis ―, pode ser concebida como uma experiência de vida nua, ou
de homo sacer, se preferirmos utilizar a terminologia do Direito Romano indicada por
Agamben.
Homo sacer não é uma etiqueta teórica para descrição de uma condição objetiva,
é uma alegoria da posição estratégica assumida pelo sujeito no dispositivo da
escolarização em sua interpelação às pessoas adultas pobres, negras, nordestinas e do
gênero feminino, e recentemente às idosas, sobre sua participação no projeto de
escolarização da sociedade brasileira. Tal alegoria nos permite a visualização de todo o
diagrama que descreve o modo peculiar com que o biopoder atua sobre essas vidas em
específico.
O acionamento destas condições para a vida de um sujeito exposto ao biopoder
produz imagens nas multidões atingidas pela escolarização que implicam a produção
não apenas discursiva de posições subalternas nas relações sociais. A emancipação
prometida é regulada por um acesso tendente a zero ao Ensino Superior pelos estudantes
da EJA, pela “reincidência” na condição do analfabetismo, pela dificuldade de obter a
certificação nas etapas da educação básica.
Em virtude de uma inserção precária nos códigos regentes da vida sociopolítica,
o efeito central é a subalternidade como norma, sugerindo que a população adulta
analfabeta interpelada pela escola não altera muito de sua condição a partir dessa
inserção. Porém, o poder se interessa por essa população, produz um lugar e uma
documentação sobre ela, demarca sua posição, de modo que o efeito central da
escolarização não recai em benefícios para o sujeito, mas é amplamente eficaz na
estratégia de poder, que assim obtém informações contínuas sobre essa multidão, torna-
a visível e a administra através das forças traçadas nos enunciados, como o
constrangimento e o abandono. A esse efeito, Souza (2004, p.26) chamou de “inclusão
perversa”, do mesmo modo que Agamben fala de uma “exceção” que é produzida não
pela dissolução dos contratos anteriores ao vínculo biopolítico, como na relação
soberana, mas ― e, sobretudo ― pela estratégia do abandono do sujeito, de sua zoé e de
sua bios, aos poderes que, ao incluir, excluem.
A EJA se torna problema político desde sua emergência ainda sob a
discursividade do analfabetismo: foi a questão do voto que inaugurou a preocupação
29
com a existência de amplos contingentes populacionais analfabetos. O contexto eleitoral
influenciou de maneira fundamental o processo histórico que faz as “condições de
possibilidade” para a emergência das práticas alfabetizatórias e de escolarização de
adultos com caráter massivo. A educação dos adultos como problema político passou
por várias enunciações: erradicar o analfabetismo, proibir ou liberar o voto do
analfabeto, alfabetizar para o desenvolvimento, direito à educação e, mais recentemente,
política de Estado.
“EJA como política de Estado” significa uma articulação estratégica em torno da
qual os movimentos e grupos interessados em disputar o modelo de atendimento de
Educação de Adultos põem em jogo a garantia do papel do Estado na consecução das
políticas de atendimento para esse setor. Esse é atualmente o discurso predominante dos
movimentos sociais da Educação de Jovens e Adultos, representados pelo Fórum
Nacional de Educação de Jovens e Adultos, organismo da sociedade civil que, em
íntima relação com os governos instituídos no poder executivo, vem construindo o
debate público da EJA, entendida nesse contexto prioritariamente enquanto educação
básica.
Neste estudo, defendemos que a EJA sempre foi assunto de governos, tendo sido
criada como problema educacional da ordem das relações de poder na sociedade
brasileira.
A Educação de Adultos, especificamente da educação básica de pessoas adultas,
configurada nas etapas do Ensino Fundamental e Médio, sempre foi uma política em
que o poder investiu atenção, esforços, recursos. Obviamente que o fez conforme suas
próprias demandas internas: necessidade de ampliação do número de eleitores,
necessidade de obtenção de índices em indicadores internacionais de desenvolvimento,
formação de mão de obra. E o fez nem sempre com a mesma intensidade, com a mesma
frequência, nem com a eficiência e a eficácia investidas na construção de outras
tecnologias, como a base energética brasileira, por exemplo, ou das tecnologias
aeronáuticas ou de exploração de petróleo. Numa perspectiva biopolítica, a EJA sempre
foi uma política de Estado.
A análise biopolítica nos permite compreender a produtividade da EJA não
como um problema de reprodução social, ou de exclusão social, mas como um
problema da ordem da regulação, em que está em jogo a permanência no sistema
30
escolar, não como índice de uma continuidade em relação ao sistema social, nem como
a colocação do sujeito numa exterioridade do social, mas a regulação de seus
movimentos no interior desse sistema, como uma manifestação do controle sobre uma
população.
A escola obrigatória nasce da solução a dois problemas de governo conjugados.
De um lado, as iniciativas que coibiam de forma permanente e estável a participação
dos clérigos na direção cultural das populações e, de outro, a contenção do movimento
de trabalhadores, com sua crescente organização e os perigos que ela envolvia, na
perspectiva do poder das classes proprietárias (VARELA, 1991, p.179). Uma
administração política e outra moral estavam, pois, no cerne da invenção da escola da
modernidade. É realmente digno de nota que a educação oferecida a pessoas adultas no
início do século XXI seja realizada nos mesmos moldes do modelo que nasce com tais
tarefas. É essa matriz que sugere que a Educação de Jovens e Adultos no Brasil não seja
apenas uma modalidade de inclusão educacional ou de reparação de direitos, mas,
sobretudo, uma manifestação do biopoder.
Visando a elaborar argumentos para dar conta desse debate, esta tese está
organizada em cinco capítulos, através dos quais apresentamos as discussões que
suportam a problemática apresentada. O texto está dividido em duas partes, sendo a
Parte I composta por dois capítulos: no primeiro, são discutidos os conceitos que
constituem nossa grade analítica e explicitados os caminhos metodológicos das
reflexões expostas ao longo do trabalho; no segundo, apresentamos os debates teóricos
que constituem nosso objeto no campo reflexivo da educação e procuramos evidenciar
pensamentos com os quais construímos “amizades” no estudo da questão da
alfabetização.
A segunda parte do trabalho é composta por dois capítulos, nos quais cruzamos
nossa grade analítica com a análise das séries de enunciados que evidenciam o diagrama
dos dispositivos biopolíticos estudados. O primeiro capítulo dedica-se à tecnologia do
constrangimento, em que são analisadas a vergonha e a conversão como enunciados
genealógicos da escolarização de adultos; o segundo capítulo é dedicado à tecnologia do
abandono, no qual o próprio enunciado do abandono à lei e da oferta do precário são
analisados. Esses dois capítulos são precedidos por uma breve introdução.
31
O quinto capítulo da tese não compõe nem a primeira parte nem a segunda de
forma exclusiva: relaciona-se com ambas, mas se projeta como um deslocamento na
ordem geral do estudo. Nesse capítulo, dedicamo-nos a compreender o funcionamento
dos movimentos da população no interior do dispositivo escolar, registrados nos
históricos escolares de estudantes adultos. Dessa análise, emergem as linhas de fratura
dos dispositivos e a identificação de tempos outros e de um espaço outro produzido
pelos sujeitos. Em respeito a essa característica estranha dos mecanismos ali tratados,
esse capítulo aparece também localizado de forma diferenciada no conjunto da tese. O
trabalho é encerrado por nossas considerações finais.
32
PARTE I
HORIZONTES TEÓRICOS
33
CAPÍTULO 1: A POPULAÇÃO COMO OBJETO DA RAZÃO: A ARTE
DE CONDUZIR AS MULTIDÕES
Tenet arepo sator opera rotas5
As Ciências Humanas são um discurso que inventou o homem como objeto do
pensamento, e as teorias não passam de discursos de veridição com diferentes grades
analíticas que correspondem a diferentes vontades de verdade. As teorizações
participam do jogo de poder no campo da ciência. Foucault participou desse território de
poder a partir da divergência, da diferença, da descontinuidade, da abolição da
pretensão de certeza ou da conclusão, irmãs siamesas da vontade de verdade. Seu modo
de trabalhar priorizou a compreensão de campos de saber, de poder e da subjetividade
num debate sobre as formas das nossas diversas relações com a verdade. Nos seus
modos de trabalhar, confrontou as Ciências Humanas com seus próprios modos de
operar, identificou racionalidades comuns entre diferentes apresentações do pensamento
científico da modernidade, instalou o discurso numa zona de distinção em relação ao
real, à verdade e à vontade, gerando uma diferenciação fundamental para a compreensão
do funcionamento dos nossos modos de pensar e agir no real. Produziu uma
Arqueologia, cavando vagarosamente nossos próprios documentos que, de forma
descontínua, mas articulada, traziam à evidência quem somos e para quais deuses
realmente rezamos. Produziu um gráfico, uma forma imagética para se referir a relações
que não se esgotam em duas dimensões e, com isso, nos ajudou a compreender o poder
como uma teia de relações entre sujeitos, instituições e lugares arranjados em
dispositivos que operam sobre o próprio sujeito e sobre as populações. Através de uma
Genealogia, mostrou-nos a proveniência de relações que definem quem somos para nós
mesmos, que nos localizam, nos limitam, mas centralmente nos movem pelo espaço
esquadrinhado dos territórios sociais, em conformidade com vontades outras e desejos
nossos. Ao desdobrar sua pesquisa sobre as formas pelas quais a própria ideia de sujeito
foi-se constituindo no ocidente, mostrou-nos o quão longínquas são as bases de nossas
políticas de si atuais, arraigadas numa longa série de instituições e práticas formativas.
5 “O lavrador sustém cuidadosamente o arado sobre a terra” na versão de Osman Lins ou, numa tradução
mais teológica “O Criador mantém a roda do mundo em sua órbita”, mas, em minha livre versão,
interpreto como: “A linguagem governa os trabalhos sobre o real”.
34
Entre os inumeráveis aspectos da pesquisa foucaultiana, que se desdobram em
temáticas amplas e variadas, sustentadas pela erudição rara e profunda do autor,
aproximamo-nos mais das pesquisas sobre o poder. Entretanto, as pesquisas sobre o
poder são pesquisas simultaneamente sobre o saber e o sujeito. Não há uma separação,
pois, como o próprio Foucault gostava de recordar, seu trabalho foi toda uma
investigação sobre o sujeito, que estava o tempo todo no centro de suas buscas. Sua
forma de compreender o poder, eminentemente pragmática e não sistêmica, abre a
linguagem que usamos, permitindo referirmo-nos ao poder como um tipo de relação da
qual ninguém está ausente. Poder sempre está ali, fazendo-se presente, poder não é
apenas a submissão, é também a parte de cada um no acordo sobre como se portar
diante das possibilidades de atuação postas no diagrama das relações apresentadas.
Portanto, ao aproximarmo-nos do poder como relação de forças entre sujeitos,
como relações estratégicas entre diferentes verdades num espaço de disputas, como
práticas de dominação, resistência e subjetivação, estamos abrindo mão de um programa
de pesquisas instituído e tranquilo, em que já temos a carta náutica dos portos onde é
seguro atracar, onde já sabemos as ilhas cujos nativos são amigáveis e falam nossa
língua, onde há comida e água para reabastecer nossos navios. Aceitamos que adotamos
um programa fundamentado num pesquisador cuja produção de mais de 30 anos de
pesquisas ainda está vindo a lume, mais de trinta anos após seu desaparecimento. Dessa
forma, nossa aventura parte em busca da ilha desconhecida, dos caminhos novos, dos
riscos dessa navegação sem carta náutica, com mapas misteriosos, onde a língua dos
povos encontrados pela frente é um mistério insondável e sedutor.
Ao navegar por esses mares, temos de aceitar que a certeza, como uma figura da
verdade, é uma terra que ficou para trás e sumiu no horizonte. Também precisamos
reconhecer que nossas ferramentas não são as mesmas que usávamos nos navios em que
aprendemos a navegar. É preciso agora abrir olhos e ouvidos para fazer a leitura do céu
e daí traçar as rotas imaginárias sobre as águas revoltas. Embora numa rota rumo ao
desconhecido, a navegação, contudo, exige precisão, rigor, disciplina. E, para tanto,
foram tomados alguns cuidados, pois, ainda que soubéssemos aonde iríamos chegar,
não sabíamos o que nos aguardava no percurso, mas tínhamos a determinação de que ao
aportar deveríamos estar bem e com nossa carga intacta.
35
O mapa que segue é a nossa sistematização da aventura, nosso diário de bordo
da descoberta da ilha desconhecida da biopolítica da educação de pessoas adultas.
Através dessa cartografia da navegação, mostramos a rota, mas também as razões da
rota. Mostramos as ferramentas, mas as justificativas das ferramentas; mostramos os
portos por onde embarcamos, as ilhas conhecidas das quais desviamos e aquelas onde
foi preciso fazer uma parada e estabelecer algumas trocas.
1.1. Trajeto teórico metodológico
O marco teórico aqui assumido refere-se a um posicionamento conceitual e
político inspirado no paradigma pós-estruturalista. O pós-estruturalismo é uma escola de
pensamento que planta raízes na filosofia pós-metafísica ou não fundacionista (VEIGA-
NETO, 2010, p.148), apresentando maior ênfase no pensamento filosófico sobre a vida
política. Em outra chave, o pós-estruturalismo é também uma reflexão sobre os limites
da análise no campo literário, assim como apresenta desdobramentos para o estudo da
sociedade com base, originalmente, no modelo da linguística estrutural desenvolvida a
partir do formalismo russo trazido ao ocidente por Roman Jakobson. O pós-
estruturalismo se beneficiou das reflexões de Heidegger, a partir de sua crítica radical ao
humanismo, e de Wittgenstein, em sua teoria dos jogos de linguagem.
O conjunto disperso e disforme que recebe o nome de pensamento pós-
estruturalista tem na linguagem uma questão central. O modo de olhar para a relação
entre o real e o signo é pautado numa crítica à versão tradicional da representação do
mundo pelo signo linguístico (EAGLETON, 1997). Para os pensadores pós-
estruturalistas, de modo geral, a relação entre mundo e significado não é uma relação
representacional no sentido de uma realidade existente “além” do mundo dos signos que
estes “representam”. Tudo a que chamamos de realidade é parte de uma construção
humana “significada” e historicizada, construída enquanto linguagem. O mundo real
não é apenas a dimensão da materialidade pura e simples, mas a elaboração de sentidos,
que constitui a realidade mesma e as noções que a acompanham. Tal concepção do
papel da linguagem reconhece a noção saussuriana a respeito da arbitrariedade do signo
e vai apresentar desdobramentos em vários campos do saber, explicitamente nas
36
análises políticas, nas quais entram em suspeita noções operacionais importantes como
verdade e poder.
A condição central que ocupa a linguagem torna imprescindível compreender a
elaboração humana sobre o mundo como uma produção de significados, razão pela qual
a cultura assume status relevante nas análises dos pensadores situados nesse campo,
sendo compreendida como um “sistema de significações” (WILLIAMS, 1992, p.207).
No trânsito entre as reflexões filosóficas e aquelas de teor sociológico, a cultura é uma
categoria imprescindível para compreender os debates no campo pós-estruturalista. É
também por essa mesma categoria teórica que a pedagogia, como campo reflexivo da
educação, coloca-se no cenário das análises realizadas desde esse horizonte teórico.
No interior desse pensamento, o processo analítico é marcado pela concepção
não essencialista do sujeito, a partir de uma lógica de historicidade cujo modelo foi o
exercício genealógico nietzschiano (FOUCAULT, 2013a, p. 328). Uma perspectiva de
desnaturalização do sentido, do sujeito e da linguagem acarreta a posição de que o poder
e as práticas correlatas são também históricas e contingencialmente construídas. A
arbitrariedade do signo como pressuposto das concepções sobre o funcionamento da
linguagem interpõe um relativismo crítico sobre os construtos normativos e os
binarismos modernos, cujos desdobramentos em termos políticos acarretam uma
problematização das camadas de dominação e subordinação nas relações sociais
(EAGLETON, 1997; FOUCAULT, 2013a).
Foucault (2013a, p. 332) fala de uma “história contingente da racionalidade” ao
fazer referência à possibilidade de uma crítica racional da razão. Ele refere-se ao fato de
que toda a nossa tradição pós-iluminista é, de certa forma, uma história crítica das várias
racionalidades erguidas ao patamar de uma Razão universal. A inteligibilidade de um
fenômeno qualquer, investigado sob a suspeição genealógica, passa pela possibilidade
de conceber uma racionalidade pensando/agindo sobre outra racionalidade sem, no
entanto, buscar reerguer uma verdade que estivesse adormecida num fundo qualquer de
realidade. A verdade é parte dos jogos de linguagem que constituem o real.
Entre o sujeito e o poder se instalam práticas. Essas práticas são modos
específicos com que a razão se apresenta. Logo, para Foucault, a razão não constitui um
princípio universal e de validade irrestrita, mas uma série de práticas de verdade que
relacionam sujeito e poder. Portanto, ao falarmos sobre racionalidades nesta tese,
37
estamos nos referindo às diferentes instaurações possíveis da razão pelas quais sujeito,
verdade e poder estão conectados em arranjos específicos.
O sujeito, por sua vez, não é mais a instância que confere unidade à dispersão do
mundo através de sua consciência, ele passa a ser uma instância de refração sobre a qual
as diferentes narrativas sociais vão intervir, sendo constituído, assim, com uma imagem
mais fragmentada, mais múltipla, mais contingencial. Para a produção de tal concepção
do sujeito, foi fundamental a releitura do pensamento de Nietzsche pelos filósofos
franceses dos anos de 1960 (PETERS, 2000) e a crítica de Heidegger ao humanismo
clássico apresentada na sua Carta sobre o humanismo, de 1945.
A "ontologia do presente" em Michel Foucault reafirma a atualidade como um
conceito central justamente pela impossibilidade de reerguer os monumentos soterrados
da razão e pela imperiosa tarefa de discutir as práticas que constituem o nosso presente.
O abandono de perspectivas teleológicas refere-se principalmente ao reconhecimento da
falibilidade das leis e regras de funcionamento dos processos humanos,
impossibilitando-nos de utilizá-las para a descrição de tendências. A partir de Nietzsche,
desejo e poder são as forças que parecem constituir de forma mais consistente os
diferentes movimentos do sujeito e da história.
Tal compromisso implica em considerar, no exercício racional de investigar
racionalidades locais para compreendê-las como acontecimento, que “não tenha havido
uma espécie de ato fundador pelo qual a razão em sua essência tenha sido descoberta ou
instaurada.” (FOUCAULT, 2013a, p.333).
Ao analisar as “formas de racionalidade” da ação biopolítica da Educação de
Adultos, identificamos como ocorre a convivência entre enunciados do acesso e do
direito e enunciados do constrangimento e do abandono, denotando que a congruência
entre estes aspectos se constrói por um exame dessas racionalidades, e sua
inteligibilidade pode ser percebida ao nível dos efeitos de poder que acarreta. Ao lado
do acontecimento da “emergência da questão do analfabetismo”, convive o enunciado
da “retenção por infrequência”; ao lado da “questão nacional” está colocado o fato de
que a escolarização para adultos é um “sucesso” para bem poucas pessoas dessa mesma
nação. Nessa rede intrincada, nossas opções teóricas funcionam como uma “caixa de
ferramentas”, buscando compreender o funcionamento dessas relações de poder e
aceitando, conforme propõe Foucault (2003, p. 251), “que essa pesquisa só pode se
38
fazer aos poucos, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de
suas dimensões) sobre situações dadas.”
Ao tratar-se da condição de “produção de mundos”, essa apresentação específica
do fenômeno humano da linguagem é tratada como Discurso. Discurso é a condição de
uso da linguagem no processo permanente de constituir mundos possíveis e, sendo esse
um processo agônico e permeado por disputas entre diferentes concepções de mundo, é
“aquilo pelo que se luta”, o próprio espaço do poder. Tecnicamente, discurso, para
Foucault (1972, 135), dentre muitas outras possibilidades, é um “conjunto dos
enunciados de um mesmo sistema de formação; é assim que poderei falar do discurso
clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso
psiquiátrico” e, em nosso caso, do discurso da Educação de Adultos.
As categorias linguagem, cultura, história, sujeito, poder e discurso são, ao lado
da premissa analítica da dessencialização dos fenômenos humanos, categorias próprias
ao campo da reflexão educacional. Ainda que Foucault não se permitisse
enquadramentos, observamos, juntamente com Eagleton (1997), que sua obra é uma das
teorizações (VEIGA-NETO, 2006, p.15) fundamentais para a constituição do campo
pós-estruturalista, bem como de outros desdobramentos da virada linguística ocorrida a
partir da década de 1960. Isso se dá pelo questionamento à razão, pela obstinação em
pesquisar o contemporâneo, pela forma como aborda a linguagem, pela luta que
estabelece com as noções transcendentes da verdade e pelas consequências
fundamentais de sua pesquisa para a compreensão das relações de poder
contemporâneas.
Essa abordagem nos ajuda a realizar a problematização das categorias sobre as
quais a educação, o ensino e a escolarização estiveram fundadas por dois séculos de sua
hipertrofia sem precedentes. Graças ao exercício de desnaturalização das formas de
realização dos fenômenos do ensino e da escola, pode-se hoje construir uma crítica mais
refinada dos mecanismos de dominação neles inscritos, atuantes através deles,
evidenciados pela produtividade do campo de reflexão sobre a diferença, num momento
contemporâneo em que o aumento dos dispositivos pedagógicos contra-hegemônicos no
39
campo da raça, do gênero e da etnia6 contrasta com o avanço sem precedentes do
conservadorismo político e do reacionarismo moralista de cunho religioso.
Ao aplicar essa grade de análise ao problema da Educação de Adultos, emerge a
possibilidade de verificarmos um pouco mais de perto os deslizamentos provocados
pelas defesas irrestritas da educação escolar e os contornos específicos que essa prática
assume quando dirigida à população de pessoas adultas. Nesse sentido, nossos
procedimentos de pesquisa, municiados pela investigação dos documentos, e ocupados
pelas noções acima discutidas, tomam forma a partir da adoção da perspectiva
genealógica foucaultiana.
1.2. A genealogia como procedimento epistêmico
A genealogia é a fase do pensamento de Foucault em que o autor aprofundou
suas análises sobre as práticas de poder. É também o procedimento investigativo
voltado à construção de uma história a partir da irrupção do acontecimento, da raridade
dos objetos e das relações entre as forças que configuram as práticas de poder. A
genealogia em nossa pesquisa é um modo de ação epistêmica operada através da análise
de dispositivos de governamento das populações não alfabetizadas, visando pôr em
debate as práticas de poder na formação da escolarização da pessoa jovem e adulta.
No debate sobre as genealogias, Foucault (2013a, p.278) analisando Nietzsche
explicita que este trabalhou com as palavras alemãs correspondentes a: proveniência,
origem, formação e herança7. Esses termos, utilizados ao longo da obra nietzschiana,
são relativos aos procedimentos de análise genealógica e remetem ao questionamento de
pesquisas de origens fundadas em pressupostos metafísicos e essencialistas que buscam
a “identidade cuidadosamente guardada em si mesma” (FOUCAULT, 2013a, p. 275)
dos fatos e eventos analisados. Foucault ensina que a pesquisa das origens em
Nietzsche, e também em sua própria obra, polemiza com a busca das essências e assume
6 Refiro-me, por exemplo, à Lei 10.639/2003, que institui o ensino obrigatório de História da África e dos
povos africanos no Brasil; às dezenas de práticas pedagógicas sobre gênero e orientação sexual, saúde
reprodutiva e temas correlatos que entraram no campo das lutas da educação escolar nos últimos 15 anos;
a institucionalização de um modelo de Educação Escolar Indígena, proposto pela Resolução nº 3/99, do
CEB/CNE. 7 Respectivamente, Herkunft; Ursprung; Entstehung; Erbschaft;
40
o conflito como “começo histórico das coisas” (2013a, p.276). O começo das coisas está
ligado, nessa perspectiva, não à nobreza ou à pureza das narrativas de origem, mas aos
movimentos irrisórios da vida humana.
Essa inversão realça a importância de eventos e objetos destituídos da “nobreza
da procedência”. Destitui, sobretudo, a noção de verdade de seu lugar transcendente. É
através dos conceitos de proveniência e herança que o filósofo francês faz, a nosso ver,
uma aproximação entre os procedimentos genealógicos e arqueológicos8. A
proveniência fala de procedimentos de inclusão de diferentes objetos em uma mesma
classificação, visando a constituir um espaço de identidade. Porém, Foucault vislumbra
aí a constituição de uma dispersão. Em Arqueologia do saber, texto de 1969, o autor
refere-se a “sistemas de dispersão” como um arranjo de objetos que torna possível
evidenciar uma regularidade ou, evitando palavras “demasiado carregadas”, uma
formação discursiva.
O termo Entstenhung, que no alemão significa também “formação”, é
apresentado pela tradução brasileira do texto de Foucault (2013a, p.281) como
designativo de “emergência”. Notamos como Michel Foucault tece, paulatinamente, sua
concepção de genealogia como procedimento analítico das relações de poder.
Utilizando-se de uma linguagem muito próxima da utilizada na Arqueologia do saber, e
trazendo dessa obra alguns conceitos determinantes, o autor descreve a emergência não
como um nascimento, mas como um “estado de forças” que faz aparecerem, na
instância das relações, os objetos; logo, é da luta, do confronto das forças, e não de
condições substantivas e transcendentes que emerge o poder, visível a partir de seus
efeitos (FOUCAULT, 2013a, p.281). A genealogia trata, portanto, de um “poder de
constituir domínios de objetos”. Nesse sentido, as relações de poder, desnaturalizadas,
desmistificadas da sacralidade, representam uma arquitetura do que pode ser visível,
discutível e desmontável.
A noção de emergência é descrita como um espaço intersticial através do qual
irrompe o acontecimento. O acontecimento é o próprio objeto da análise genealógica na
concepção de história pós-fundacionista foucaultiana. Através do acontecimento, o
genealogista pretende investigar as relações de forças sem recorrer ao absoluto ou às
8 Observamos que a entrevista “Nietzsche, a genealogia e a história” discutida neste trecho, data de 1971
e a Arqueologia do saber de 1969, ou seja, há uma relação de proximidade também cronológica entre os
dois textos.
41
constâncias como fatores de legitimação (FOUCAULT, 2013a, p.284). Está em jogo
uma prática de pesquisa que exige o desvencilhar-se de uma concepção essencialista de
sujeito, da história e da linguagem e atuar no campo das descontinuidades, regularidades
e séries. Conforme Albuquerque Junior (2006, p.3):
As inovações no campo da historiografia devem nascer não apenas das
novas perguntas que somos capazes de fazer aos documentos, da
ampliação do questionário, como diria Veyne, mas das novas
conexões que consigamos estabelecer entre as séries de eventos
documentos que conhecemos.
Essas novas perguntas, prossegue Albuquerque Junior, referem-se à compreensão da
trama que envolve o acontecimento, como evento raro que se desdobra sobre um campo
de uniformidades.
É buscando esse tipo de objetos que o projeto genealógico libera a história para
podermos contar “uma” história sem buscar a precisão da “verdade histórica” e articula
a possibilidade de constituir os objetos a partir do próprio exercício em que os discursos
e as práticas são liberados daquelas categorias já constituídas e estabilizadas, como
tradição e identidade, por exemplo. Para o filósofo, “apenas os conteúdos históricos
podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações
funcionais ou as sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar.”
(FOUCAULT, 2005, p.11). É exatamente nesse lugar onde o olhar cristalizado vê
apenas o que lhe interessa que implantamos nossas grades de análise sobre práticas,
saberes, enunciados e buscamos compreender a dimensão estratégica que joga as
diferentes racionalidades nas relações de poder e, especificamente, na produção da
escolarização de pessoas adultas. Para Veiga-Neto (2004, p.4):
A genealogia examina como se pensava, o que se pensava, o que se
fazia, o que se dizia em determinada época, quais os poderes que
então estavam em jogo, de modo que tenha sido possível - e até
mesmo necessário, naquele momento histórico - pensar, dizer e fazer
coisas novas, coisas diferentes. Isso equivale a dizer que a genealogia
examina as condições de possibilidade no interior das quais se deu o
surgimento de algo novo.
42
A genealogia se ocupa das relações entre o discurso e o poder, e do discurso que
se apresenta na luta pelo poder, no seu questionamento, numa localização em que mais
do que ferramenta, o discursivo é o próprio campo de luta, onde se confrontam, através
de diferentes saberes, de interlocuções intempestivas, de tomadas e retomadas
temáticas, de novas narratividades, as forças em disputa pela verdade.
Nessa ambiência conceitual, a racionalidade que sustenta a oferta de
escolarização de adultos no Brasil é perpassada por vários enunciados contundentes,
como “ensinar a ler é salvar vidas”. Mais do que um fundo messiânico, enunciados
como esse acionam, no interior das práticas, determinados comportamentos,
sentimentos, posturas. Um dos efeitos de frases como essas é o reforço de atitudes de
dependência ou subordinação por parte de estudantes adultos cujas vidas precisam ser
“salvas”. Esse tipo de enunciado não é um reflexo de uma natureza, ou de uma verdade
trans-histórica, mas o resultado de opções realizadas no plano histórico das práticas
humanas. E ele está no âmago das políticas do constrangimento e do abandono que
permeiam as práticas da Educação de Pessoas Jovens e Adultas, cuja discussão
realizamos de forma mais detalhada nos capítulos 3, 4 e 5 desta tese.
1.3. O biopoder na regulação das populações
O poder sempre atuou sobre a vida, dirigindo-a, eliminando-a, protegendo-a ou
tornando-a útil. A introdução da vida no cálculo político é um fenômeno da história das
sociedades ocidentais e da sua formulação enquanto forma de hegemonia político-
cultural sobre os povos do mundo, com maior ênfase a partir do século XV. A noção de
biopolítica instrui um campo de análises que se dedica a investigar as práticas de poder,
desde sua proveniência, atuando sobre as multidões e na interpelação dos indivíduos. A
racionalidade biopolítica é primordialmente dirigida à administração das forças vitais
das multidões que são constituídas, a partir do saber médico e do saber estatístico, como
populações. A incorporação da vitalidade humana como ativo dos processos de
produção é uma condição fundamental para a instalação das sociedades capitalistas, e se
desdobra em diversos mecanismos de controle que perpassam não apenas a certeza de
43
que a vida pode ser politicamente incorporada, mas que seu limite, a eliminação,
também é um horizonte possível das práticas de governo.
A biopolítica é o termo consagrado por Foucault para designar a forma assumida
pelo poder em meados do século XVIII, momento no qual há uma alteração profunda na
forma como o poder de Estado passou a ser praticado. Segundo Castro (2011), foi o
geógrafo sueco Rudolf Kjellén quem primeiramente cunhou o termo com conotação
política, referindo-se ao “estilo de vida” e às formas de lutas que representam uma
ameaça à sociedade. Para Foucault, a biopolítica nasce da crise do modelo de poder
soberano e de sua metamorfose lenta em “nova arte de governar”, na qual as práticas de
Estado, sob a influência da economia política, se transformam em razão governamental
(FOUCAULT, 1988; 2005; 2008a; 2008b).
A biopolítica como campo de estudos investiga as práticas inventadas para atuar
na administração lucrativa da vida humana. Uma dessas práticas é a ideia de
escolarização obrigatória e a instituição da escola como espaço dedicado à
administração da infância e à sua produção como corpo social (VARELA, 1991). As
práticas de biopoder representam uma especialização sutil e complexa dos mecanismos
de controle das populações porque envolvem a lei, a norma e a subjetividade.
O biopoder e seus desdobramentos são analisados por Foucault num conjunto de
cursos do ciclo que se dedica a compreender as práticas de governamentalização das
sociedades a partir do século XVIII9. Mas cumpre recordar que a problemática
biopolítica é anunciada já no primeiro volume da História da sexualidade I: a vontade
de saber, e aparece também na palestra proferida pelo filósofo em 1974 no Rio de
Janeiro, intitulada “O nascimento da medicina social” (1994). Conforme esse conjunto
de estudos, depreende-se que o biopoder corresponde a uma tecnificação das formas de
lidar com a vida. É a incorporação dos processos vitais de uma população visando à
manutenção desses processos e à sustentação e ampliação da estratégia geral do poder
(FOUCAULT, 2008a, p.4; 2005, p.285).
A investigação sobre os diferentes mecanismos de condução da vida humana, na
esfera das relações de poder estudadas por Foucault em sua “história do sujeito”,
identificou três tecnologias que tiveram seus aparecimentos em distintos momentos da
9 São eles: Em defesa da Sociedade, de 1976, Segurança, território e população, curso de 1978 e
Nascimento da Biopolítica, de 1979;
44
história. Esses mecanismos partem de realidades distintas e têm efeitos diversos. A
soberania dirige-se ao território, sendo a imagem força do exercício do poder do
soberano, poder de fazer morrer ou deixar viver, explicitado por Foucault na obra Em
defesa da sociedade; a disciplina dirige-se ao corpo e estabelece um sistema de
vigilância do indivíduo baseada no binarismo permitido/proibido; o autor apresenta na
obra Vigiar e punir uma detalhada descrição desses mecanismos a partir das instituições
que promovem o disciplinamento dos corpos; por último, Foucault analisa o dispositivo
de segurança como manifestação do poder sobre uma população, explicitando nos
cursos de 1978 e 197910
(os detalhes desse mecanismo já foram anunciados em História
da Sexualidade I: a vontade de saber, e no curso de 1976, intitulado Em defesa da
sociedade). Destacamos desse percurso o alerta dado pelo autor a respeito da
imbricação entre essas diferentes tecnologias de poder, que não se excluem numa lógica
evolutiva, mas convivem e adaptam-se umas às outras.
A análise desses mecanismos reconhece que o poder se manifesta também como
técnica de uso geral, dedicado à regulação de populações inteiras, que surgiam no
cenário da urbanização dos séculos XVIII e XIX como fenômeno sócio-histórico
associado ao desenvolvimento do capitalismo, na fase posterior à organização dos
estados-nação, à reordenação das relações entre Igreja e Estados do período pós-
medieval e à deflagração da oposição entre classes proprietárias e classes obreiras como
forças e questões políticas nos territórios nacionais. A atualidade da análise biopolítica
reside no fato de que esses elementos continuam sendo pontos de singularização das
linhas de forças que constituem as relações sociais e aparecem em dispositivos
intrinsecamente relacionados com a arte de governar presente em nossos dias através da
escolarização.
Comentando o pensamento foucaultiano, Deleuze (2005) afirma que as relações
sociais são constituídas sobre relações de poder e, por sua vez, toda forma do poder
produz um campo de saber que lhe constitui “pelo lado de fora”. Os saberes entram no
campo das lutas, constituem e consolidam as forças em disputa e desse modo reforçam
as práticas de poder. Sendo poder e saber constitutivos entre si, a história das práticas de
dominação é também uma história dos diversos saberes em luta e dos modos de sua
10
Respectivamente: Segurança, território e população e Nascimento da Biopolítica.
45
constituição, dos seus desaparecimentos e de suas emergências. Foucault (2005, p.16),
discutindo essa relação a partir da sua peculiar linguagem filosófica, expõe:
A arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades
locais, e a genealogia a tática que faz intervir, a partir dessas
discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que
daí se desprendem.
Portanto, uma das finalidades de uma analítica de poder é destravar os saberes
soterrados e fazê-los funcionar no interior de uma estratégia mais ampla de
questionamento das relações de poder. Os saberes soterrados, quando emergem, trazem
à visibilidade o campo de lutas, as forças em combate, tornam possível falar das
oposições e resistências, bem como dos processos de dominação.
A incorporação da vida pelo poder tem início em técnicas dispersas que se
iniciam pelo indivíduo, através do disciplinamento do corpo. As técnicas disciplinares
são incorporadas pelas técnicas biopolíticas, que não se referem mais ao indivíduo
apenas, mas ao corpo social:
Depois de uma ánatomo-política do corpo humano, instaurada no
decorrer do século XVII, vemos aparecer, no fim do mesmo século,
algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu
chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana. (FOUCAULT,
2005, p.289).
É sobre a ideia de população que se inscrevem as contingências biológicas que o
poder tenta controlar a partir de então. Nascimento, morbidade e adoecimento passam a
ser alvo de novos saberes médicos e estatísticos que contribuem para o controle do que
se passa nas populações, através da criação de técnicas que visam à manutenção de suas
forças, à otimização de sua vitalidade e ao controle de sua movimentação pelos
territórios. Ao lidar com a população, na primeira versão do biopoder, o que passa a
importar é o “agir de tal modo que se obtenham estados globais de equilíbrio, de
regularidade (...) assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação”
(FOUCAULT, 2005, p.294).
A ideia de biopolítica surge no pensamento foucaultiano nas pesquisas
apresentadas nos cursos da década de 1970, sendo apresentada como nova arte de
46
governar que se desenvolve a partir dos séculos XVIII e XIX, onde o fenômeno da vida
biológica assume importância decisiva para a organização das práticas de poder. Trata-
se de um deslocamento e um adensamento nas práticas de conduta das populações,
objetos que começam a ser pesquisados por Foucault a partir dos seus estudos sobre a
medicalização.
Inicialmente, a questão é levantada a partir da hipótese de Nietzsche, em que a
guerra é considerada um conceito heurístico fundamental para compreensão das
relações políticas. São examinados os enfrentamentos que o saber histórico das lutas
realiza e esse tipo de análise leva o autor a indicar o racismo de Estado como uma
apresentação fundamental do poder biopolítico, ao estabelecer o direito de morte como
uma das premissas de um Estado que se dedica à manutenção da vida, dando finalidade
ao que aparentemente é uma contradição.
Em seguida, é investigada a proveniência dessa forma específica das relações de
poder chamada governamentalidade. Foucault encontra no cristianismo da Antiguidade
a forma pastoral, demonstrando as relações entre o papel político do pastor e a ideia de
governo ― agora, já um atuando como um deslocamento da forma do poder soberano
―, porque dedicado à conduta das populações (assim como o pastor conduz ovelhas,
velando por todas e por cada uma). Dedicar-se à população significa que o problema
central inscrito entre a arte de governar do liberalismo e a governamentalidade
neoliberal consiste na incorporação da população não como fenômeno natural, mas a
partir de sua naturalidade. Então a população surge como o objeto a ser conduzido, em
sua naturalidade, através da governamentalidade estatal (FOUCAULT, 2008a, p.474).
Isso quer dizer que população não é um dado natural, mas um campo onde as questões
da vida biológica representam um problema para as práticas políticas. A condução da
população na perspectiva da governamentalidade neoliberal se faz através mais da
incitação e menos da regulação. A regulação é um fenômeno da forma de Estado de
polícia, baseado na ideia de Razão de Estado. À nova governamentalidade caberá
“manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer,
vai ser preciso, em outras palavras, gerir e não mais regulamentar.” (FOUCAULT,
2008a, p. 474). Os mecanismos de segurança foram desenvolvidos pela nova razão de
Estado, orientada pelos princípios da economia política, como formas de evitar certos
movimentos e propiciar outros no âmbito das populações.
47
A liberdade aparece como preceito fundamental, pois, ao invés de reprimir ou
regular a circulação, a questão passa a ser liberar a circulação das pessoas e dos capitais.
Para Foucault, a liberdade se constitui um problema do liberalismo que “se propõe a
fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la” (2008b, p. 88). Uma das formas de se
produzir e incitar um certo tipo de liberdade é aquela veiculada através da legitimação
dos saberes característicos à educação escolar. Outra forma de produzir essa incitação é
a produção de uma cultura da alfabetização plena, sustentada por aparatos estatais,
atendendo a critérios quantitativos de metas de atendimento e avaliações em larga
escala, constituída sobre a legitimidade (que retorna sobre si mesma) das línguas
escritas de matriz colonial, aquelas levadas ao mundo através dos processos de invasão
e catequese desenvolvidos pelos países metropolitanos.
A compreensão mais refinada do poder e de seus mecanismos exige também a
produção de ferramentas epistemológicas diferenciadas, capazes de capturar os
mecanismos na grade analítica. Esse desafio traz à tona, no pensamento foucaultiano, o
conceito de dispositivo, cuja utilização permite dialogar com a dimensão estratégica das
relações de poder.
1.4. O jogo estratégico das forças: a noção de dispositivo
A fase genealógica da pesquisa foucaultiana refere-se ao momento em que as
relações entre o sujeito e o poder passam ao primeiro plano das análises. Com a obra
Vigiar e punir, o estudo das relações de poder é focalizado nas práticas disciplinares,
nos processos de conhecimento construídos para garantir a fabricação de corpos dóceis
no momento em que o poder aprende que talvez seja melhor educar do que eliminar. É
nessa obra que o conceito de dispositivo desponta como operador importante na análise
das práticas de poder (2009, p.134). Contudo, é em História da Sexualidade I: a
vontade de saber, que o autor define de forma mais detalhada a abordagem que preside
esse tipo de análise, focalizando o modo de atuar, ao tomar como objeto o dispositivo da
sexualidade.
Dessa forma, observamos, assim como fizeram Stassun e Assman (2010), bem
como Carvalho (2004), que o dispositivo implica uma configuração arqueogenealógica
48
do processo epistêmico, considerando tanto a relação com o saber, e as relações entre as
pessoas, quanto os aspectos éticos da relação de si para si. Os dispositivos acionam
então, numa mesma racionalidade, as configurações de saber, poder e subjetividade.
Para Foucault, o dispositivo é uma rede de relações que se estabelece entre diversos
objetos do real, discursivos e não discursivos, articulados de maneira estratégica:
... ce que je voudrais repérer dans le dispositif, c'est justement la
nature du lien qui peut exister entre ces éléments hétérogènes. Ainsi,
tel discours peut apparaître tantôt comme programme d'une institution,
tantôt au contraire comme un élément qui permet de justifier et de
masquer une pratique qui, elle, reste muette, ou fonctionner comme
réinterprétation seconde de cette pratique, lui donner accès à un
champ nouveau de rationalité. Bref, entre ces éléments, discursifs ou
non, il y a comme un jeu, des changements de position, des
modifications de fonctions, qui peuvent, eux aussi, être très
différents.11
(FOUCAULT, 1977).
Agamben (2009, p.39), perscrutando a genealogia do conceito de dispositivo, a
ele se refere salientando tanto sua perspectiva estratégica, pragmática, quanto sua
natureza múltipla relacionada à ideia de governo das pessoas:
A referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de práxis, de
saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar,
governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os
comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens.
Trata-se de um conceito complexo, amplo e, de certo modo, de difícil definição.
Deleuze (1999), como leitor privilegiado de Foucault, afirma que os dispositivos são um
“conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente”. Os dispositivos são
feixes de relações que correlacionam saber-poder a partir de linhas de visibilidade e
linhas de enunciação. Enquanto ferramenta teórica, permite-nos lidar com variados
objetos, configurados em nossa pesquisa como estratégias, súmulas estatísticas,
documentos de vida escolar, registros de matrículas, relatórios de supervisão
11
Tradução nossa: "... O que eu gostaria de identificar no dispositivo é precisamente a natureza da relação
que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Assim, tal discurso pode parecer às vezes como
programa de uma instituição, outras vezes como um elemento que permite justificar e ocultar uma prática
que em si é silenciosa, ou funcionar como segunda reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um
novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivas ou não, não há algo como um
jogo, mudanças de posição, mudanças nas funções, que podem, também, ser muito diferentes."
49
educacional, disciplinas teóricas do campo da didática. O exercício genealógico atua
desarmando esses documentos de seus arcabouços de origem para buscar compreendê-
los diante de uma argumentação que põe em xeque sua eficácia ou sua legitimidade, ou
ambas, sem necessariamente reinscrevê-los numa lógica englobante. Com a noção de
dispositivo, pretendia Foucault efetivar uma análise dos diagramas do poder
(DELEUZE, 2005, p.80).
Deleuze (2005, p. 78) esclarece que para Foucault o poder não é uma forma, mas
uma força. É da relação entre as forças que nasce o espaço relacional identificado como
poder. Para Foucault (1988, p.103), “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada”.
Dessa forma, capturar o fenômeno do poder a partir das suas substancialidades
torna-se uma tarefa inócua. Devemos persegui-lo através de suas visibilidades, nas
práticas, nos diversos pontos que são definidos pelas relações de poder e conectados
pelas linhas de força do dispositivo. O que estabelece um regime diferenciado de luz
sobre as relações no âmbito do dispositivo são aquelas perguntas que fazemos aos
documentos, inquirindo-os sobre os acontecimentos, sobre a irrupção da diferença que
os constitui por dentro.
As relações de poder são imanentes ao conjunto das relações sociais, são
constitutivas, não exteriores. Nessa perspectiva, o poder é produtivo, pois ele incita,
pro-move coisas no real, porque as forças são dotadas da possibilidade de afetar outras
forças. De tal configuração, depreende-se que a análise biopolítica trata não de fazer
uma teoria, mas uma analítica do poder (FOUCAULT, 1988, p. 92).
No caso da escolarização de adultos, por exemplo, verbos de ação, como
“mobilizar” (alfabetizandos), “ativar” (turmas de alfabetização), “fechar” ou “manter”
(turmas de EJA) remetem à proposição de que o poder é visível a partir de seus efeitos.
No caso da EJA, os efeitos imediatos acionam as vidas de determinados grupos de
indivíduos, bem como o enunciado do seu direito à educação, numa ordem em que as
forças interpeladas entram num processo muito refinado de subjetivação, pelo qual as
linhas de fratura do dispositivo pouco são visíveis. Uma vez que esses enunciados
referem-se a populações e estão inscritos numa racionalidade de regulação da vida como
objeto político, o seu efeito central atende pela função biopolítica do dispositivo.
50
As forças que atuam no interior do dispositivo agem entre pontos que demarcam
a aplicação dessas forças, ou seja, a relação entre as forças constrói os pontos em que
podemos perceber a singularidade das relações de poder ali inscritas, em que se torna
perceptível sua ancoragem como, por exemplo, nos enunciados sobre a vergonha que
incitam os sujeitos a tomarem parte da cultura escolarizada. Para Foucault (1988, p.
104), as correlações de forças “servem de suporte a amplos efeitos de clivagens que
atravessam o conjunto do corpo social”. Essas clivagens, como a criação de uma
população de analfabetos pelo saber estatístico, demarcam sujeitos e supõem narrativas
e trajetórias.
As linhas de força são essas formações que capturam os pontos singulares, e
procedem à elaboração de uma economia de lugares, conexões, diálogos. A analítica do
poder é “uma estratégia imanente às correlações de força” (FOUCAULT, 1988, p. 107)
e, por isso, analisar as ancoragens do dispositivo nos permite conhecer os caminhos para
desarmar alguns objetos mais explosivos, mais perigosos, mais ameaçadores. Percebe-
se que o poder é uma estratégia, no sentido de que sua ação se faz sentir a partir de uma
certa ordenação de recursos variados tendo em vista a obtenção de um objetivo
(RAFFESTIN, 1993, p.42).
Deleuze informa que as relações de poder são estabilizadas (ainda que de modo
sempre precário, contingente e vazado) por processos de integração. Por processos de
integração podemos compreender um tipo de operação que visa concatenar as
singularidades. As singularidades são estados de poder afetados sempre de modo local e
instável. O processo de integração por sua vez, constitui uma linha de força entre as
singularidades. São as práticas que efetivam os processos de integração, fazendo
funcionar as linhas de força entre os pontos do dispositivo. Portanto, uma parte
importante da pesquisa sobre o poder é a possibilidade de ver e fazer ver essas linhas de
força e suas atuações. A outra questão reside no para que desse tipo de análise, sua
finalidade enquanto prática social, uma questão da qual Foucault não se furtou, embora
não se demorasse muito em explicações a respeito. Segundo o autor,
Falo da verdade, procuro ver como se atam, em torno dos discursos
considerados como verdadeiros, os efeitos de poder específicos, mas
meu verdadeiro problema, no fundo, é o de inventar instrumentos de
análise, de ação política e de intervenção política sobre a realidade que
51
nos é contemporânea e sobre nós mesmos. (FOUCAULT, 2003, p.
240)
O processo de integração é identificado com as instituições, tais como Estado,
família e escola, que compõem o quadro das práticas, criando um “sistema de
diferenciação formal” composto por duas características dos dispositivos: as curvas de
visibilidade, que relatam o saber, as formações, os aparelhos e o regime de luz que age
sobre os objetos e as curvas de enunciação, que definem as regras, as relações
diferenciais de forças, e o regime de legibilidade (DELEUZE, 2005, p.87). O que pode
ser visto e o que pode ser falado. A luz e a palavra: duas imagens também fortemente
associadas ao analfabetismo e às formas de seu “enfrentamento”.
O que define a regra dos jogos de poder são as regularidades, pois, atuando no
interior dos sistemas de diferenciação, traçam uma linha de força geral entre as
singularidades (os pontos de atuação das forças, os afetos) afetando as relações postas e
tornando-as enunciáveis e visíveis sob determinadas condições.
Dessa forma, a desnaturalização dos enunciados sobre escolarização de pessoas
adultas representa uma fratura num campo de forças destinado a legitimar a ausência
como dado normal na enunciação dessa modalidade educacional. Ora é o sujeito que
carrega a ausência da escrita, ora é o sujeito que produz uma ausência da escola. O
enunciado sobre sucesso típico da escola de crianças e adolescentes fica cerceado em
sua abrangência, pois os afetos que singularizam esses enunciados como legítimos
parecem menos seguros e, portanto, menos confiáveis.
Desse modo, temos exposta uma intrínseca oposição entre duas “verdades” sobre
a escolarização de EJA, ambas criando uma tensão com a racionalidade escolar em
relação à articulação entre presença e tempo. Do ponto de vista das práticas, os preceitos
sobre aprovação por frequência e frequência por presença física do sujeito ao ambiente
escolar são desestabilizados e, desse modo, podem ser contestados.
Por conseguinte, podemos afirmar que a noção de dispositivo permite operar
com objetos que não pertencem à mesma classe, nem são necessariamente
contemporâneos, nem se expressam numa lógica causal linear. Construir o dispositivo é
“construir um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas” (DELEUZE, 1999). A
trama formada pelas relações entre diferentes objetos é o que produz efetivamente o
dispositivo, fazendo funcionar as relações entre os elementos discursivos e não
52
discursivos, quando dispostos na rede. Dessa forma, podemos afirmar que os
dispositivos são funcionais e estratégicos. As estratégias são tanto locais, definidas por
relações táticas, quanto globais, uma vez que o poder “se exerceria do mesmo modo em
todos os níveis” (DELEUZE, 1999, p. 95). A tal movimento das estratégias, Foucault
nomeia como “duplo condicionamento”.
Os efeitos de práticas são dotados de contemporaneidade, sendo desnecessário
que os elementos do dispositivo desfrutem dessa mesma condição para continuar
produzindo as relações. O dispositivo é o índice de uma racionalidade, e de uma
racionalidade que prescinde da coerência como um fator de ordem. Para Foucault (2005,
p. 10), analisar uma racionalidade é investigar um uso local da razão, perscrutando sua
operacionalidade como prática diante de um conjunto de relações.
O saber é irredutível ao poder, mas entre ambos existe uma relação de imanência
pelo “lado de fora”. Trata-se de uma relação diferencial constitutiva dos discursos. O
saber é composto de relações formadas, estratificadas. O poder por matérias não
formadas e funções não formalizadas (DELEUZE, 2005). A principal característica que
define essa relação diferencial matricial é o “lado de fora”, condição diferente da
externalidade, mas que define regimes: a visibilidade está para o visível assim como a
enunciação para o dizível. Poder e saber podem se produzir porque não coincidem
(DELEUZE, 2005, p. 85). Há uma diferença de natureza entre ambos. O poder
disciplinar que atua produzindo corpos dóceis é acompanhado por todos os novos
saberes a respeito da criança. Os saberes sobre o sexo acompanham a “história do que
foi dito” (FOUCAULT, 1988, p.18) e o que foi dito em grande parte compõe a vontade
de saber sobre as coisas, tal como o dispositivo da sexualidade analisado por Foucault.
O que atualiza cada uma dessas “potências” é a dimensão estratégica das forças,
constituindo as relações de poder. Por exemplo, a insistência de governos em “fechar
turmas de EJA” em um contexto de amplos contingentes populacionais não
alfabetizados parece ser menos a simples execução de ações administrativas com
aplicação de normas de funcionamento e mais a possibilidade de continuar
“erradicando” o analfabetismo, seja por uma via, seja por outra. É o jogo de presenças
furtivas entre a ação de um princípio de soberania ― a aplicação da lei ― e a ação de
um princípio de segurança ― a economicidade, resultando numa condição de
53
disciplinamento e numa prática biopolítica ―, localização dos corpos, neste caso,
dentro e fora da escola.
Em nossa tradição epistemológica, somos demasiado acostumados a buscar a
coerência como fator da racionalidade, mas Foucault nos mostra em suas reflexões ao
longo da obra que tal edifício de longas cadeias de coerências é mais uma “pretensão da
razão” que sua própria matéria. Agamben chama de mitologemas a ideias tais como a
associação da razão à lógica, relações causais e coerências lineares. O exercício
arqueogenealógico, nesse sentido, nos mostra a possibilidade de verificar os
funcionamentos do pensar e do agir ao longo da história sem reinvestir em tais
mitologemas, sem buscar reinaugurar a razão como um fundo coeso e harmônico de
coerências e relacionamentos causais entre eventos (FOUCAULT, 2013a).
O conceito de dispositivo apresenta produtividade devido a essa sua vinculação
aos procedimentos genealógicos e à compreensão de poder como força que constitui
relações. A proposição de que as racionalidades dispostas nos eventos e objetos dos
dispositivos não possuem um fundo causal nem um fundamento imanente que as
caracterize, legitime e as autorize a funcionar salienta o fator relevante de que, mesmo
assim, essas racionalidades seguem atuando no espaço da legitimidade, da autoridade e
da funcionalidade.
Todo esse debate, no entanto, não se abstém de uma noção de responsabilidade
que nos questiona a todos a respeito de nossa participação nos dispositivos biopolíticos.
Não se trata, a nosso ver, de uma diluição do campo de responsabilização sobre
condições sociais e públicas que envolvem a vida dos sujeitos. Antes, pelo contrário, o
que está posto é o reconhecimento da dispersão que nos implica a todos no
funcionamento da maquinaria.
A própria conceituação de poder, aberta, fluida e permissiva, do autor francês
em análise, remete ao fato de que os pontos de resistência não são exteriores às relações
de poder, lhes são constitutivos, são imanentes ao poder. Não há poder sem resistência e
não há resistência ao poder, mas enquanto poder. É como relação irredutível que o
poder é também uma possibilidade, uma abertura. As relações de escolarização para
adultos representam mais um capítulo da história geral da escolarização. Por dentro da
escola depois que o portão é fechado e os estudantes e professores iniciam os rituais
desse processo geral, ocorrem as pequenas rupturas, as táticas locais, que criam linhas
54
de fratura, enfrentamentos com a norma, outras disposições. Nas palavras de Foucault
(2003, p. 231),
Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com
frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de
Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer
que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura
de Estado só podem funcionar se há, na base, essas pequenas relações
de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por
exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada
indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a
seu patrão, a seu professor - àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na
cabeça tal ou tal ideia? A estrutura de Estado, no que ela tem de geral,
de abstrato, mesmo de violento, não chegaria a manter assim, contínua
e cautelosamente, como uma espécie de grande estratégia, todos os
indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie
de grande estratégia, todas as pequenas táticas locais e individuais que
encerram cada um entre nós.
O procedimento de anotar como presente um aluno ausente, num documento
oficial, prática arriscada, uma desobediência civil de professoras de Educação de
Adultos (estejam elas nas escolas, estejam elas nos programas-campanhas) estabelecem
outra gramática da presença e da ausência. Conferem valor a pequenos fatos jamais
observados pela norma e seus fiscais, como um aluno ausente que retorna depois de
várias semanas ao ambiente escolar num mesmo ano letivo. Não parece que se trate
apenas de um desvio à norma. Com decisões dessa ordem, professoras garantem que a
turma continue existindo, que não seja fechada por “falta de alunos”, que aqueles
poucos estudantes que ali estão continuem ocupando o espaço que apenas espera pela
sua saída. Trata-se de um enfrentamento local altamente complexo, em que jogam
diversos interesses e no qual as linhas de força do dispositivo vão costurando as abas
soltas da escolarização de adultos.
O conceito de dispositivo é um recurso analítico que permite a abordagem de
objetos discursivos e não discursivos articulados por uma racionalidade específica. O
estudo dessas racionalidades relaciona-se ora com o poder disciplinar, ora com o
regulador e, para Foucault, por fim, trata-se de uma discussão sobre as formas da
verdade, os modos como construímos as verdades sobre nós mesmos e executamos
práticas de poder com estas verdades. O tema da verdade, que relaciona não apenas os
sujeitos com o Estado, mas consigo e com os outros, acompanha o estudo do
55
dispositivo. Nessa perspectiva, trabalhamos com a seguinte afirmação de Foucault
(2003, p. 233) sobre a verdade:
Entendo por verdade o conjunto de procedimentos que permitem a
cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão
considerados verdadeiros. Não há absolutamente instância suprema.
Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente
codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a
enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados.
Em nosso trabalho, trazemos essas considerações para pensar o olhar
“pessimista” e “negativo” da escolarização a partir do qual uma análise dos dispositivos
parece se construir. Retomemos o tema da produtividade do poder. Despido de uma
roupagem transcendente, o poder pode ser visto como algo produtivo, não apenas de um
“mal”, mas de acontecimentos, saberes e subjetividades, conforme a racionalidade local
instalada pelas condições sempre precárias, instáveis e contingentes de produção da
verdade. Por seu turno, o compromisso com o presente, defendido pelo autor, no sentido
da busca de uma compreensão profunda a respeito de como viemos a ser o que somos,
participa dessa perspectiva em que o pessimismo não é imobilizante, mas antes uma
forma de realismo crítico. Reconhecer e deflagrar a emergência dos problemas
vivenciados como nossa atualidade, compreender as forças envolvidas com a sua
constituição são fundamentais para estabelecer novos parâmetros de ação e entrar na
instância das lutas de forma mais contundente e ativa.
Nosso estudo trata do conjunto de eventos, discursos, práticas que permeiam um
processo de produção de posições de sujeito numa relação de tensionamento no campo
da educação escolar. Defendemos que um dispositivo específico entra em atuação no
campo da educação escolar visando o engajamento de pessoas adultas no projeto da
escolarização.
A exigência de ampla erudição e estudos de áreas conexas como filosofia,
história, teoria política, sociologia e da própria teorização pedagógica para fazer frente à
profundidade do pensamento foucaultiano, de modo a operar adequadamente com seus
termos, também justifica nossa escolha por uma abordagem especificamente nos termos
da pesquisa mantida no âmbito da epistemologia foucaultiana. Em que pesem as
considerações acima, a produtividade para construir, analisar e compreender os
56
fenômenos que compõem nosso objeto usando as ferramentas da análise biopolítica
foucaultiana é ainda o maior fator da escolha.
A característica central dessa opção teórica baseia-se no fato de que os conceitos
de ordem metodológica não se desprendem do processo analítico-interpretativo, ou seja,
a estratégia descritiva é carregada de força reflexiva diante dos objetos descritos. É o
caso, por exemplo, do conceito de dispositivo utilizado como categoria do estudo. Ao
tempo em que é um potente conceito de ordem descritiva, contribuindo para tornar
visível a articulação de diferentes objetos que fazem atuar uma racionalidade, é também
um conceito que se refere ao modo como o poder se articula de maneira estratégica para
exercer a conduta dos sujeitos num determinado campo de referência. Estaremos ao
longo do estudo articulando essas duas dimensões indissociáveis, mas que possuem
diferentes funcionalidades no processo reflexivo sobre os fenômenos escolares.
Lembramos, juntamente com Larrosa (1994), que a educação é uma prática
dotada de especificidade formativa, nem sempre visível ou explícita como espaço de
produção de subjetividades. Segundo o autor catalão,
O sentido comum pedagógico e/ou terapêutico produz um
esvaziamento das práticas mesmas como lugares de constituição das
subjetividades. Não deixa de ser paradoxal que o primeiro efeito da
elaboração pedagógica e/ou terapêutica da autoconsciência e da
autodeterminação consista em um ocultamento da pedagogia ou da
terapia. Ambas aparecem como espaços de desenvolvimento ou de
mediação, às vezes de conflito, mas nunca como espaços de
produção.” (LARROSA, 1994, p.44).
Desse modo, as relações que se dão no interior de dispositivos pedagógicos, tais
como o dispositivo da campanha, possuem uma especificidade entre as várias formas de
relações sociais. A produção de subjetividades numa ordem de subordinação social é
um problema característico da Educação de Adultos, pela destinação social das políticas
discursivas dessa modalidade educacional, configuradas em mecanismos que, em
conformidade com os dados de nossa pesquisa, são construídos para assegurar essa
subordinação. Quando falamos e perscrutamos o conjunto de fenômenos que
denominamos políticas discursivas, buscamos compreender como esse processo ocorre,
o que está implicado, quais enunciados colaboram para sua constituição, quais práticas
produzem as escolarizações do campo da EJA contemporânea.
57
Foucault considera que o discurso possui materialidade, que se expressa em
produções verbais, mas não parte de uma distinção entre o discurso e a língua como se o
primeiro fora o local da enunciação da verdade e o segundo o significante que a
expressa. Foucault considera que o jogo dos discursos é constitutivo da própria verdade,
como processos de veridição, em que a ideia de verdadeiro prevalece como marcação
do campo de disputa. Os esforços dos vários discursos para se constituírem em
domínios do verdadeiro é o que constitui a única dose de verdade a ser capturada pela
análise.
O dispositivo é composto por objetos (as unidades de elementos que o compõem
numa realidade material, discursiva e extradiscursiva) dispersos em tempos, contextos
enunciativos e condições institucionais que remetem a um conjunto de relações. Essas
relações compõem uma estratégia que opera, no campo de forças analisado neste estudo,
através das Tecnologias do Constrangimento e do Abandono, com efeitos de
subjetivação e de regulação marcados pela incidência de tais políticas discursivas sobre
a população de pessoas adultas não alfabetizadas.
Os dispositivos que atuam na escolarização de adultos desenham um diagrama
composto por campos de luz alinhavando visibilidades que chamamos de
constrangedoras. O regime de luz lançado sobre os sujeitos da EJA no processo de
escolarização é investigado a partir das imagens projetadas nos históricos escolares
como formas do abandono à lei no interior do espaço escolar. É também graças à
visibilidade dos movimentos da população registrados nesses documentos que pudemos
vislumbrar as heterocronias e as heterotopias dos sujeitos no interior do espaço escolar.
Com o inventário desses objetos, dedicamo-nos à analítica do biopoder na escolarização
de adultos.
58
1.5. Uma análise biopolítica: seus desdobramentos
A pesquisa social, da qual participa a pesquisa educacional, em virtude de suas
articulações epistemológicas e vínculos teóricos, é uma das formas de narrativa
legitimada da ciência sobre o cotidiano (MELUCCI, 2005, p.33). Nessa perspectiva, a
análise dos discursos é uma narrativa sobre narrativas, que busca o sentido na forma da
apresentação dos discursos ― sua emergência ― considerados como acontecimento,
em que sua objetividade é um desafio. A pesquisa como prática que participa da
construção do real é “uma forma de tradução do sentido produzido no interior de um
certo sistema de relações” (MELUCCI, 2005, p. 34).
O discurso é uma prática que “forma sistematicamente os objetos de que fala”
(FOUCAULT, 1972, p.64) e nessa perspectiva o trabalho com os discursos da
escolarização de pessoas adultas solicita uma análise de sua Herkunft (proveniência),
compreendendo que a genealogia é uma prática que busca, sobretudo, “manter o que se
passou na dispersão que lhe é própria” (FOUCAULT, 2013a, p.279).
Vimos argumentando, ao longo da exposição do marco teórico-metodológico da
presente investigação, diversos caminhos e tarefas do processo analítico que sustenta
nossas discussões a respeito da biopolítica da escolarização de adultos. Retomamos
agora o caminho e as tarefas, de modo a tornar mais claro o trabalho a que nos
propusemos.
Partimos do pressuposto de que há necessidade de se interrogar as práticas de
escolarização de adultos, no tocante à superfície de inscrição biopolítica da
escolarização, por se tratarem de mecanismos em pleno vigor na atualidade, cuja função
específica na ordem das relações de poder produz interdições, silenciamentos e
constrangimentos. Perscrutar os sentidos da escolarização a partir dos documentos da
instituição sobre os sujeitos remete aos enunciados que indicam arestas, vazamentos e
abandonos no desenrolar das práticas dessa instituição, constituindo um campo de
visibilidades sobre o sujeito, um regime de luz que produz a exposição reminiscente
desse sujeito numa posição de homo sacer, instaurando uma politicidade polêmica que
fala da relação do Estado com esse sujeito como uma relação de exceção.
Em intrínseca articulação com esse regime de luz, afirmamos que o sujeito é
constituído como alvo das ações de governo na Escolarização a partir de uma
59
discursividade que atuou aplicando mais um binarismo da modernidade: a separação
entre alfabetizados e analfabetos, numa enunciação que no tempo em que produz uma
visibilidade, produz um problema e cria um campo de poder em torno desse problema:
uma população sobre a qual atua um dispositivo.
Para dar conta dessas tarefas, analisamos a imbricação de diferentes enunciados
que se apresentam numa dispersão mais ampla na cultura, contemplando aspectos não
discursivos, numa investigação a respeito das relações de força que constituem o poder
saber sobre a população interpelada pela escolarização. A materialidade de algumas das
práticas da instituição sobre a vida escolar dos sujeitos adultos não alfabetizados é uma
coleção de “históricos escolares” que descrevem as caminhadas intermitentes, as longas
paradas, as retomadas e as marcações do caminho: retido, reprovado, aprovado,
abandono. Essas marcas trazem à tona aquilo que acontece aos sujeitos depois que o
acesso já foi garantido, depois que o direito já foi contemplado. É quando entra em cena
a efetividade das práticas e o modelo de escola entra em jogo, com todos os seus
artifícios, para, entre outras coisas, assegurar o lugar social da “ignorância”. As
campanhas foram historicamente a afirmação dessa lógica e sua dispersão a todos os
rincões: “alfabetize-se para deixar de ser a vergonha nacional”.
A análise arqueológica debruça-se sobre os diferentes saberes que produziram o
sujeito das Ciências Humanas, analisando as discursividades locais, no exercício de
compreender o funcionamento desses saberes. Já a genealogia dedica-se a investigar a
proveniência das formas de poder-saber que produzem o exercício do governo, criando
padrões de normalização que atuam no processo de conduta dos corpos, mentes e
desejos.
Em suas pesquisas, o autor mantém uma postura bastante cuidadosa em relação a
prescrições metodológicas. A cada curso que apresenta anualmente no Collège de
France, o início é dedicado, via de regra, à apresentação do percurso metodológico
seguido, das razões para a tomada de determinados caminhos analíticos, a constante
ressalva com o uso de categorias consagradas como razão, método, generalização,
evidência, entre outros. Para Foucault (2008a, p. 160), “É verdade que nenhum deve ser,
em si, uma meta. Um método deve ser feito para nos livrarmos dele”. Em sua forma de
abordar o problema da construção do conhecimento, Foucault considera o método um
60
“ponto de vista, um acomodamento do olhar, uma maneira de fazer o suporte das coisas
girar pelo deslocamento de quem as observa”.
No início do curso de 1976, por exemplo, Foucault destaca alguns
procedimentos da genealogia como uma análise implicada com a compreensão do poder
enquanto prática e “relação de força”. Para escapar dos determinismos, frequentemente
o autor refere-se às suas técnicas de pesquisa como perguntas, espécies de “questões
procedimentais” que fornecem o mapa metodológico dessa forma de investigação.
Numa dimensão genealógica, o autor inquire: “se o poder se exerce, como é esse
exercício? Em que consiste? Qual a sua mecânica?” (2005, p.21). Portanto, perguntas
procedimentais sobre os procedimentos do poder. Da mesma forma, no início do curso
de 1979, visando investigar a arte de governar, ele pretende “partir dessa prática tal
como ela se apresenta” (2008b, p.5).
O fundo de referência para a emergência da análise sobre as formas do poder é o
palco das lutas históricas, das lutas que foram apagadas, silenciadas, dos conflitos
escondidos sob o verniz de explicações racionais. Ao deflagrar a compreensão desses
“saberes sujeitados”, a análise genealógica valoriza os “conteúdos históricos das lutas”
como aqueles que podem “descobrir as clivagens dos enfrentamentos e das lutas que as
ordenações funcionais ou organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente,
mascarar.” (2005, p. 11). A irrupção dos saberes históricos das lutas é a tática de
Foucault para questionar o modo tradicional de fazer ciência, problematizando como
premissa o próprio poder do discurso científico no seu papel de produtor de um discurso
verdadeiro, unitário, hierárquico e ordenado.
Nesse horizonte, a genealogia seria “a tática que faz intervir a partir dessas
discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem”
(2005, p.16). No Curso de 1978, dedicado à governamentalidade, as perguntas
procedimentais de Foucault buscam compreender não o que é o poder, questão que ele
ressalta como menor em várias passagens da obra, mas como funciona: “onde se passa,
como se passa, entre quem e quem, entre que ponto e que ponto, segundo quais
procedimentos e com quais efeitos” (FOUCAULT, 2008a, p.4).
No curso de 1979, Nascimento da Biopolítica, quando fala de métodos, Foucault
(2008b, p. 4) explicita que o estudo do biopoder é compreender a “racionalização da
prática governamental no exercício da soberania política”, remetendo novamente o
61
olhar para as práticas e menos para as definições e conceituações. Como procedimento
central, o filósofo pede que as categorias abstratas sejam passadas através da grade das
práticas.
Contar a história da proveniência das coisas, seu percurso de emergência como
acontecimentos, vislumbrar seu aparecimento, é uma das ferramentas fundamentais na
compreensão do que somos, ou de como se produziu nosso presente. No entanto, esse
procedimento genealógico, que expõe, por exemplo, a história das lutas e demarca o
campo sobre o qual os mecanismos de poder exercem seu jogo, exige-nos atenção para
uma dimensão fundamental da analítica foucaultiana: o fato de que algumas de suas
análises extrapolam esse intuito de "contar uma história" e atravessam a ponte na
direção de uma ampla descrição das práticas estratégicas que dão forma ao poder. O
arquivista de que fala Deleuze (2005), recém-chegado à cidade, é heterodoxo em suas
práticas como investigador. E cremos que a ideia de uma “análise biopolítica” em
alguns momentos se desdobra do ambiente analítico genealógico e assume um lugar
mais específico.
Os delineamentos apontados pelo autor deslocam-se desses dois conjuntos
procedimentais para guiar-se pelas questões nas quais percebemos que Foucault faz um
recorte na própria análise genealógica e, de certo modo, adentra no que estamos
chamando, nos limites deste texto, de “análise biopolítica”.
É certo que a orientação original sobre a genealogia exige a compreensão das
“proveniências”, ou seja, pede que as práticas de poder sejam analisadas a partir de seus
processos de emergência, investigando as formas como surgiram e se desenvolveram.
Entretanto, cremos que alguma coisa extrapola o exercício genealógico quando Foucault
nos pede para analisar como as práticas se dão em sua contemporaneidade e para
analisarmos o poder a partir de seus efeitos. A visibilidade das relações de poder que
pode ser vislumbrada ao fazermos os exercícios de recorte, remontagem, análise das
proveniências dos conceitos e modos específicos com que cada época construiu
determinados conceitos, remete ao processo arqueogenealógico, mas a análise dos
efeitos parece se localizar num outro quadrante de abordagem do problema do poder.
Ao investigar os efeitos do poder, sua produtividade, Foucault parece estar
voltado mais para o momento específico em que as formas genealogicamente descritas
assumem sua contemporaneidade e sua validade, produzindo de modo mais premente
62
sua presença nas relações sociais permeadas por esta forma de poder. Os efeitos da
biopolítica são explicados por suas condições de emergência, mas são compreendidos a
partir de sua interpelação ao campo do real sobre o qual a biopolítica está atuando, quais
os objetos que ela toca, como produz seus efeitos. Nesse âmbito da análise, o poder é
compreendido como uma articulação estratégica de objetos, que noções como
dispositivo, estratégia e tecnologia descrevem a partir de sua objetividade. Conforme
explicita Foucault (2008b, p. 05, grifo nosso):
Os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essas relações,
são circularmente o efeito e a causa delas, mesmo que, é claro, entre
os diferentes mecanismos de poder que podemos encontrar nas
relações de produção, nas relações familiares, nas relações sexuais,
seja possível encontrar coordenações laterais, subordinações
hierárquicas, isomorfismos, identidades ou analogias técnicas, efeitos
encadeados que permitem percorrer de uma maneira ao mesmo tempo
lógica, coerente e válida o conjunto dos mecanismos de poder e
apreendê-los no que podem ter de específico num momento dado,
durante um período dado, num campo dado.
Seguindo esse raciocínio, a biopolítica da escolarização explica como chegamos
até o ponto em que estamos através de mecanismos que interpelam o sujeito não
escolarizado para inserir-se na escola, e a análise biopolítica nos permite compreender
os impactos disso que chegou ao nosso cotidiano, bem como as relações produzidas por
essa forma específica de poder, que possui uma atualidade, uma contemporaneidade a
partir do momento em que nos deparamos com a magnitude dos seus efeitos.
63
1.6. Exceção e vida nua como alegorias do analfabetismo
Neste trecho do estudo, enfocamos as categorias trazidas à tona pela reflexão de
Giorgio Agamben, cujas interlocuções com os objetos analisados em nossa pesquisa
fornecem um horizonte através do qual podemos pensar as várias formas da ausência
que se apresentam como fruto da ordenação estratégica das relações de poder
apresentadas na escolarização de adultos.
O desafio ético-político configurado pela percepção de que a extinção da vida
por morte “natural” tem sido mais eficaz, na redução dos índices de analfabetismo
(critério estatal do sucesso da escolarização), que nossas práticas de Educação de
Adultos, defronta-nos com o desafio teórico de produzir ferramentas com as quais seja
possível trazer à visibilidade o problema que se encontra para além da estatística, ou que
esta apenas sugere.
Toda a noção de biopolítica é implicada por uma noção de tanatopolítica, ou
seja, uma política da pulsão de morte. Conquanto a vida biológica esteja envolvida, o
limite da existência, a manutenção desse suporte biológico compõe a paisagem a partir
de uma possibilidade concreta que é a eliminação. No tocante ao conceito de racismo de
Estado, Foucault elabora a eliminação, não apenas a separação, como produto de uma
ação de governo. Porém, Foucault não elabora um conceito de campo, como reflete
Agamben, e de certo modo isso se constitui numa ausência sobre a questão do
genocídio. O genocídio é um meio de controle da população visando limitá-la, mas
também representa um meio de controle da diferença no interior do território,
implicando a eliminação étnica de uma parcela da população. Segundo Raffestin (1993,
p. 79): “É a violência elevada à categoria de meio político”.
No tocante à eliminação de um grupo social, o desaparecimento de seus códigos
simbólicos é uma das ferramentas desse genocídio, ou uma de suas etapas. Na relação
da pessoa não alfabetizada interpelada pelo discurso da escolarização, ao que parece a
proposta é suprir uma falta ― os saberes da escrita ― ao tempo em que se “civilizam”
as populações. Não se trata aqui de reafirmar a falsa oposição, já derrubada inclusive
pela própria ciência linguística, entre o oral e o escrito, ou entre a tradição e a
modernidade. Não poderíamos afirmar que as populações não alfabetizadas detêm a
oralidade como principal manifestação de sua presença no mundo. Isso as colocaria
64
numa regularidade perigosa, porque encobre a diversidade de suas práticas de inscrições
sobre o mundo.
Trata-se de reconhecer aquela condição de seres de cultura afirmada pelo melhor
da obra freiriana, e refletir que sua corporalidade não foi assumida pela escola, sua
religiosidade não foi assumida pela escola, suas formas de interação visual e auditiva
não foram assimiladas pela escola, cuja pretensão biopolítica era reafirmar esse sujeito
no lugar de um Outro e ali mantê-lo de forma econômica e eficaz, administrando sua
diferença.
Portanto, o genocídio precisa exterminar também o que o sujeito é capaz de
reconhecer enquanto seu mundo simbólico, e nessa perspectiva a cultura escrita
desempenha uma função estratégica na modernidade. Não qualquer escrita
genericamente colocada, mas a forma como esta técnica foi escolarizada na relação com
os sujeitos adultos não alfabetizados, presentes a um mundo diverso em suas
temporalidades e plural nas formas de participação nos destinos da vida social; tem sido
a ferramenta responsável por realizar, com precisão cirúrgica, a inserção de um outro
mundo naquele já existente dos adultos. Esse mecanismo é parte do fenômeno genocida
que envolve a biopolítica numa articulação estratégica com o racismo no campo da
escolarização de adultos.
A questão da vida e da morte remete ao debate sobre a vida nua em Agamben.
Para esse autor, a vida nua é um processo de segregação e ao mesmo tempo de inclusão.
É a partir da inclusão da vida nua, a zoé, no espectro da vida política, a bios, que se
desenha o que, para o autor, é a chave da política na modernidade. A vida nua é um
termo que se refere à existência biológica do humano, sua inscrição na natureza, numa
espécie, no suporte de um corpo biológico. É essa dimensão que passa a ser alvejada
pelas ações de Estado entre os séculos XVII e XVIII, segundo Foucault. É justamente
pela sua inclusão entre as preocupações do governo, quando a zoé passa a ser
compreendida como um fenômeno de população, para ser então administrada pela razão
governamental, que se constitui para Foucault o momento da viragem do poder
soberano para o biopoder.
Para Agamben (2010, p.16), no entanto, bios e zoé ocupam uma “zona de
irredutível indistinção”. Foucault, segundo ele, teria marcado a incorporação da zoé pela
bios como irrupção, acontecimento, mas Agamben afirma a antiguidade dessa
65
incorporação, dessa presença e sua indistinção muito primitiva no campo do político. A
negação da zoé se dá no mesmo passo de sua assunção enquanto problema político. Ela
é objeto de ação de governo porque a vida nua é problemática.
Um dos traços do discurso do analfabetismo, uma das formas pelas quais uma
forma de vida foi transformada em problema social e “falta universal” (no jogo das
cadeias de sentido sobre a sociedade ocidental, ser analfabeto pode ser considerada uma
falta universal), é a associação da situação de analfabeto a condições próximas da
natureza. Expressões como “papagaio velho não aprende a ler”, a associação do
analfabetismo à cegueira, e a associação semântica que vincula o analfabeto ao
significante “burro” e ao significado “ignorante” demonstram, além da característica
violenta dos enunciados, que a luta pela “erradicação” do analfabetismo refere-se a um
fundo muito complexo de significados que a sociedade construiu em torno da pessoa
que transita por códigos culturais diversos da escrita das línguas ocidentais modernas.
Portanto, esse é um problema de ordem colonial, e é um problema da ordem do racismo
brasileiro em suas nuances e disfarces.
Um elemento fundamental do conceito de vida nua nos diz que ele é
originalmente jurídico, oriundo do direito romano, considerado uma figura arcaica desse
código (AGAMBEN, 2010, p.16). A vida nua é a situação do homo sacer, um sujeito
cuja condição é de ser “matável, mas não sacrificável”, portanto, sua vida não poderá
ser eliminada em um ofício sagrado, ao mesmo tempo em que sua morte está autorizada
pelo poder leigo. Jogando com a ambivalência dos termos latinos, pois sacer,
separadamente significa “o sagrado”, e homo sacer “o condenado”, Agamben recupera
a trajetória desses significados, a sua potência descritiva para situações do nosso tempo.
Ser um sujeito de uma relação de homo sacer, ter a vida exposta, e ao mesmo tempo
abandonada pela lei de deus e pela lei dos homens, é uma condição que sustenta sobre si
um paradoxo de difícil compreensão para o nosso tempo.
A pertinência dessa antiga formulação para o entendimento de situações do
contemporâneo reside por sua vez no fato inegável de que muitas das situações que
vivemos são trespassadas por paradoxos semelhantes. O fato de que a escola de
Educação de Adultos reprova mais do que aprova, de que insere os sujeitos na
escolarização para em seguida provocar situações que o expulsam, a invisibilidade
66
dessas questões, torna bastante compreensível a necessidade de paradoxos para auxiliar
a leitura dessa realidade.
A condição do sujeito não alfabetizado na sociedade atual parece coincidir com
a do homo sacer. Do analfabeto conduzido da zoé do iletrismo à bios da cidadania,
vemos o próprio espaço do político se constituindo enquanto ato educacional.
Na trajetória da Educação de Adultos, o primeiro argumento utilizado para as
práticas de alfabetização era da ordem da política representativa e relacionava-se à
questão do voto do analfabeto. Alfabetizar-se era o processo que autorizava o sujeito ao
exercício central da política numa democracia representativa. Antes da alfabetização,
ele se equiparava à criança ou ao animal. Depois disso, ele se equiparava ao eleitor.
Mais do que isso, se toda educação é ato político, a biopoliticidade das práticas
escolares para adultos, em toda a sua paradoxal profusão de enunciados que ressaltam
tanto o direito a estudar quanto a inferioridade social do analfabeto, aparece aqui como
questão estratégica da gestão social de populações marcadas para viver de alguma
forma, ou para morrer de algum modo.
Agamben defende ainda que o biopoder é uma manifestação paroxística da
soberania e que a zoé nunca esteve fora da vida política e sempre foi de alguma forma
presumida pelo poder, de modo que o princípio de deixar viver e fazer morrer parece
nunca ter sido abandonado. Para Foucault (2008b, p.424), as formas da
governamentalidade variam no tempo, mas, de algum modo, articulam-se em arranjos
estratégicos no presente: “é isso que vocês veem no mundo moderno, o mundo que nós
conhecemos desde o século XIX, toda uma série de racionalidades governamentais que
se acavalam, se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente.”
A vida do sujeito é o alvo das estratégias que configuram o dispositivo mais
geral da escolarização de adultos (LARROSA, 1994; CARVALHO, 2012;
TRAVERSINI, 2003) e, nesse sentido, a EJA é um caso bastante peculiar de biopolítica.
Agamben (2010, p. 84) esclarece que: “Aquilo que define a condição de homo sacer,
então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente,
quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da
violência a qual se encontra exposto.”
A dupla exclusão refere-se à condição prescrita no direito romano, em que o
homo sacer não está nem na condição de objeto da lei divina, nem de objeto do direito
67
humano. É ao abandono em que é deixado esse sujeito “matável, mas não sacrificável”,
que Agamben afirma nascer o espaço do político, no momento em que o sujeito é uma
nudez abandonada pela lei e submetido completamente a ela. Se a escrita é um soberano
ou, sem forçar o conceito, é um instrumento da soberania, ou do poder, numa sociedade
que a institui como norma de existência, é necessário que o sujeito se alfabetize para
que o soberano possa exercer sobre ele seu direito de vida e morte. O analfabeto precisa
estar dentro da lei. Quiçá (e agora forçando a imaginação sociológica), sabendo dessa
possibilidade, as pessoas produzam o abandono da EJA, como resposta a esse espaço
que as práticas de poder lhes reservaram. As aproximações entre a condição do
analfabeto e a de homo sacer podem ser refletidas à luz desta “ameaça” do político:
A déliaison não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo
preexistente (que poderia ter a forma de um pacto ou de um contrato);
sobretudo o vínculo tem ele mesmo originariamente a forma de uma
dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo
tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do
abandono a um poder incondicionado de morte. (AGAMBEN, 2010,
p.91).
Ora, a criação de uma população a quem é postergada sua inserção em plenitude
na esfera social, o tempo do adiamento produzido pelas opções políticas que sempre
deixaram a Educação de Adultos para depois, a ausência como alegoria da
Escolarização de Adultos remete à exceção explicitada por Agamben (2004, p.13),
embora não se caracterize como uma técnica de governo que seja essencialmente rara
em sua aplicação.
O lugar da exceção é um lugar de abandono (AGAMBEN, 2004, p.12) em duas
formas: estar abandonado à lei, ou seja, sob a lei, e estar esquecido pela lei ou fora dela,
um espaço de indeterminação, uma deriva do horizonte normativo que, no contexto da
redemocratização brasileira, contrariamente deveria conter um ingrediente fundamental
de “garantia de direitos”.
Ao articular Foucault e Agamben neste estudo, relacionamos a biopolítica
foucaultiana, como uma análise das práticas de poder e dos jogos de veridição, com os
conceitos de Estado de exceção e de vida nua.
Dois esquemas emergem dessa articulação: primeiro, a análise foucaultiana vai
tomar como objeto as ações de Estado, sua ordenação estratégica, e investigar por quais
68
meios os enunciados da escolarização se pronunciam sobre as pessoas adultas; o
segundo vai usar a linguagem biopolítica de Agamben, o conceito de vida nua, para
discutir o caso dos indivíduos interpelados pela escolarização, permitindo-nos falar, dar
nome às condições em que são inscritos indivíduos dos quais o sistema não necessita,
mas que deve atender de alguma forma, incluindo-o em sua oikonomia. Diante da
irracionalidade que nos parece ser a forma de atendimento ao direito de pessoas jovens e
adultas poderem aceder a um processo social constitutivo como a Educação Escolar, é
preciso forçar os limites da linguagem usual e não temer algumas categorias que tornam
explícitos os limiares das relações investigadas.
O que de fato nos permite afirmar que a escolarização de adultos se constitui
como exceção e, ainda, como um Estado de Exceção? Ao longo deste estudo
apontaremos os vários elementos dessa trama, a começar pela definição do processo de
constituição do dispositivo da escolarização de adultos em sua emergência como
problema da nação e de Estado; em seguida, discutiremos a biopolítica em seus dois
dispositivos centrais, a retórica da alfabetização e o dispositivo tardio da escolarização,
e suas duas tecnologias específicas, o abandono e o constrangimento; mais além,
discutimos, a partir da documentação dos históricos escolares de estudantes adultos,
alguns exemplos do que ocorre com essa população quando inserida num aparato
escolar clássico.
Ao longo de todas essas análises será possível verificar o estado de
excepcionalidade em que são colocadas as práticas de Educação de Adultos. Agamben
(2004, p.12) nos fornece o conceito de exceção para referirmo-nos ao fato de que “a
criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente,
não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” A discursividade da
campanha, os enunciados do medo e da escuridão associados ao analfabetismo, a
produção de um perigo ou ameaça à nação na enunciação do analfabetismo como
problema nacional ao longo do século XX reforçam que uma população analfabeta
representa um perigo. A excepcionalidade atua como regra da administração dessa
população ao verificarmos a intermitência dessas práticas, sua curta duração, enfim, a
postergação como forma típica de realização.
69
O estado de exceção refere-se ao modo com que uma anomia é incorporada pela
norma jurídica, é o momento em que a lei precisa aceitar sua própria ausência. Quando
o sujeito é interpelado pela retórica da alfabetização a escolarizar-se, observamos que o
movimento de inclusão a que é instado produz uma série de ausências, estados de
excepcionalidade em que sua inclusão é proscrita do espaço legal escolar. Essa inclusão
pela ausência é visível na discursividade sobre a EJA que remete, virtualmente, para o
problema da evasão. A este respeito, recordamos a seguinte passagem de Agamben
(2004, p.93):
O conflito parece incidir sobre o espaço vazio: anomia, vacum
jurídico de um lado e, de outro, ser puro, vazio de toda determinação e
de todo predicado real. Para o direito, esse espaço vazio é o estado de
exceção como dimensão constitutiva. A relação entre norma e
realidade implica a suspensão da norma, assim como, na ontologia, a
relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da denotação
sob a forma de uma langue. Mas o que é igualmente essencial para a
ordem jurídica é que essa zona – onde se situa uma ação humana sem
relação com a norma – coincide com uma figura extrema e espectral
do direito, em que ele se divide em uma pura vigência sem aplicação
(a forma da lei) e em uma aplicação sem vigência: a força de lei.
Numa leitura alegórica12
da conceituação acima, a respeito do processo de
escolarização de pessoas adultas, ousamos pensar que o governamento neoliberal
agencia a relação presença/ausência do sujeito na escolarização, através de dispositivos
e tecnologias específicos, suspendendo assim a valência do direito anunciado.
O direito está ali, no espaço escolar, mas se o sujeito não está presente, isso
parece supor a suspensão da própria norma ou, em termos melhores, a aplicação de uma
lei mais geral, que, não estando escrita nas normas escolares, regula a existência dessa
população e assegura sua localização no espaço que ela deve ocupar para proceder à
oikonomia do campo social.
E esse espaço é fora do poder conferido pela técnica da escrita. Portanto, são os
vazamentos do sistema escolar que aparecem, é a EJA como escola da evasão, da
repetência, da retenção dos estudantes por anos a fio. É o desdobramento do
12
Para Quintiliano “a alegoria é composta por uma metáfora contínua”. Etimologicamente, alegoria
significa “discurso acerca de uma coisa para fazer compreender outra” (MOISÉS, 2004). Com leitura
alegórica, referimo-nos à leitura dos conceitos propostos pelo autor como imagens-força na hermenêutica
dos problemas em análise. Trata-se de utilizar um discurso para fazer referência a outro que se encontra
ocultado nas imagens.
70
analfabetismo funcional em quase um quarto da população do território nacional. É a
não universalização do ensino médio. É o fechamento de escolas e turmas de Educação
de Jovens e Adultos. É o fato de que as matrículas da Educação de Jovens e Adultos
decaem ano a ano, embora o quantitativo de adultos aprovados nos programas de
alfabetização se avolume.
Em síntese, nesta tese trabalhamos com uma problemática, ou seja, com um
“mecanismo que consiste em determinar, antes de qualquer análise, o estatuto de
inteligibilidade capaz de justificar um sistema” (RAFFESTIN, 1993, p. 31), que se
dedica a investigar a face biopolítica da escolarização de adultos, investigando as
políticas discursivas presentes na discursividade geral dessa modalidade educacional.
Ao debater o funcionamento dessas políticas discursivas, propomos o
deslocamento dos lugares pacificados nos quais os enunciados se apresentam, tais como
a premissa e confiança cegas na condição emancipatória da escrita fornecida pela escola
ou a crença de que a educação é uma forma de conversão do sujeito. Ao sobrepor a
grade analítica que pensa a relação da lei e da norma com o sujeito sobre alguns
dispositivos, levantamos questões sobre a relação do Estado com o sujeito no território
específico da Educação de Jovens e Adultos – doravante EJA, prática escolarizada do
fenômeno mais abrangente da Educação de pessoas adultas.
Os dispositivos analisados são compreendidos como parte de uma estratégia
abrangente de controle das condutas da população não alfabetizada, o que passa pela sua
construção enquanto problema nacional, sua teratologia13
através dos discursos da
vergonha e pela sua inserção no aparato espacial de visibilidade conhecido como escola.
A partir da análise de cronologias escolares, podemos sugerir uma aproximação entre o
conceito de homo sacer e os lugares de sujeito produzidos naquela instituição. As
relações que aí se dão assumem o caráter de relações de exceção, o que nos permite
dizer que há uma captura da vida nua pela biopolítica da escolarização e seus
dispositivos específicos.
Porém, como todo poder possui uma relação intrínseca e imanente com a
resistência, os tempos levantados na análise dos históricos escolares são compreendidos
a partir de sua estranheza em relação aos tempos formais esperados dos estudantes pela
escola e sociedade que ela representa. Os tempos divergentes abrem a escolarização
13
Na medicina, teratologia é o estudo das monstruosidades, das anomalias.
71
como uma espécie de distopia dos enunciados modernos, cuja estabilidade se encontra
então ameaçada.
No capítulo seguinte, fazemos uma discussão específica sobre a questão da
alfabetização de adultos, os estudos que a configuram como campo temático no setor
educacional. Ampliamos o debate para as compreensões sobre escolarização de adultos,
trazendo alguns de seus significados e autores com quem dialogamos para o
entendimento do campo.
72
CAPÍTULO 2.
O PROJETO SOCIAL DA ESCOLARIZAÇÃO DAS POPULAÇÕES
ADULTAS: UM PROBLEMA BIOPOLÍTICO
O homem ocidental aprendeu
durante milênios o que nenhum grego
jamais teria aceitado admitir, aprendeu
durante milênios a se considerar uma
ovelha entre as ovelhas.14
A emergência das biopolíticas é um marco que delimita também o nascimento
da escolarização básica naquele horizonte em que o poder se redefine, e às suas técnicas
e procedimentos. Concordando com Varela (1991), Larrosa (1994), Veiga-Neto (2010),
a escolarização de massas é uma das práticas sociais mais articuladas com essa nova
forma do poder que emerge entre os séculos XVII e XIX.
Nessa contextualidade, o projeto social de escolarização trabalha no espaço do
governamento dos perigos à segurança social das classes proprietárias, o que significa
que tal projeto é uma estratégia de subordinação voltada contra as classes do trabalho. A
escola configura-se como uma tecnologia de poder que se tornou eficaz ao ponto de ser
quase transparente.
A pedagogia é um saber-poder (VEIGA-NETO, 2010) que traz a possibilidade
de lidar com o indivíduo, sobre o qual faz funcionar a disciplina, mas sem perder de
vista a regulação da população. De modo ainda mais contundente, a escolarização
permite que a relação de si para si seja construída no espaço de formação do sujeito,
constituindo assim um circuito em que a internalização da norma, o controle sobre o
corpo e a regulação das massas funcionem de forma articulada e inseridas numa lógica
estratégica, cuja imagem arcaica é a concepção de economia como prática de “boa
condução das condutas” para manutenção da vida.
As práticas pedagógicas, dentre outras funções, permitem que “se elabore ou
reelabore alguma forma da relação reflexiva do educando consigo mesmo”
(LARROSA, 1994, p.36), propiciando o instrumental necessário à produção de
populações educadas para viver de maneira adequada nos territórios citadinos, conviver
nos espaços da vida privada e atuar eficientemente nos campos do trabalho do mundo
14
Foucault, 2008a, 174.
73
capitalista. De preferência, sem revoltas e cuidando de evitar doenças e comportamentos
anômalos.
O biopoder se configura como uma tecnologia que busca a segurança da cidade
através da regulação da vitalidade e encontra no processo de eliminação dos perigos à
vida seu ponto polar de intervenção. O processo de eliminação é direcionado não aos
adversários políticos, mas aos que de algum modo representam um perigo, por isso, “a
raça, ou o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade da
normalização (...) o racismo no exercício de um poder assim: é uma condição para que o
Estado possa exercer o direito de matar” (FOUCAULT, 2005, p.06).
O interesse da questão do racismo para o debate sobre a Escolarização de
Adultos reside no detalhe explicitado por Foucault a respeito das formas de eliminação,
quando ele afirma que “é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio
direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a
expulsão, a rejeição” (2005, p.306, grifo nosso). Destacamos que as formas de
eliminação dos perigos não são exatamente aquelas em que os corpos são despojados da
vida biológica, mas também aquelas em que as condições de vida consideradas
essenciais são negadas, ou proteladas, ou retidas pelos processos de
governamentalidade.
Retornaremos a esse ponto, mas é pertinente salientar por agora que o tratamento
da Escolarização de adultos como biopolítica reside nesse quadrante em que os saberes
tidos como poderosos para a existência considerada plena numa sociedade neoliberal
sejam regulados com parcimônia para alguns grupos sociais e que isso se faz através da
escolarização.
A questão do governo liga-se ao papel do Estado. Olhando para o problema que
nos ocupa nesta pesquisa, a escolarização de adultos se constituiu como um dever do
Estado de forma mais consistente a partir de 1988, após vários séculos de sua inscrição
titubeante na condição de obrigatoriedade. Os fatores que constituem essa
obrigatoriedade são o avanço da lógica do Direito à Educação ao longo de todo o século
XX; a ideia de reparação, que significa, entre outras coisas, o equacionamento dos
efeitos tardios do processo colonizador através de processos distributivos mais
abrangentes no tocante à raça, gênero e classe; a implicação entre trabalho e educação
74
escolar, que fornece um fundo de legitimidade para a implantação desse dispositivo
legal da obrigatoriedade da oferta escolar para jovens e adultos e se conecta,
obviamente, com as necessidades de mão de obra em processos desenvolvimentistas nos
quais o país sempre está envolto.
Observamos que o Estado brasileiro, em sua intervenção junto às populações
não alfabetizadas, não foi sempre um Estado biopolítico, embora o dispositivo racista
estivesse sempre presente a partir da discriminação racial contra a pessoa negra. Houve
momentos em que o Estado se manifestou a partir dos mecanismos jurídicos, referindo-
se à população adulta não alfabetizada através do binarismo proibição/permissão
relativamente ao acesso à escola. Ao longo de vários séculos, o Estado, colonial,
imperial ou republicano, acionou o regime de soberania, através da lei e dos
regulamentos, para determinar quem poderia acessar o conhecimento escolar, onde,
quando e por quanto tempo.
Nessa perspectiva, seguindo a leitura de Castro (2014), o que temos não é uma
governamentalidade ainda, em seu desenvolvimento mais visível, mas uma estatalidade,
considerando que o processo de governamentalização do Estado ainda não se
encontrava em condições mais desenvolvidas. Isso significa que podemos falar de
Estado governamentalizado em Educação de Adultos no quadrante em que a questão da
alfabetização e escolarização das massas passa a ser um problema de população e isso
só ocorre de forma mais pertinente no século XX a partir das injunções do campo
internacional sobre a Educação de Adultos e do desenvolvimento de uma razão de
Estado modernizante no âmbito da sociedade brasileira, aproximadamente na década de
40 daquele século. Dessa forma, podemos observar os mecanismos de escolarização de
adultos como parte de uma estratégia mais ampla de poder, e não como uma função do
sistema social (FOUCAULT, 2008b).
A governamentalidade é o termo utilizado por Foucault para designar a
passagem a um modelo de práticas de poder, não necessariamente focalizadas no
Estado, e que se configura através de “instituições, procedimentos, análises e reflexões,
os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito
complexa, de poder que tem por alvo a população, por principal forma de saber a
economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança”
(2008a, p. 143). Governar significa conduzir as condutas (FOUCAULT, 2008a, p.258),
75
e nesse sentindo um Estado governamentalizado não é aquele responsável pela
segurança do território, mas pela segurança da população. Embora essas tarefas não se
excluam, a governamentalização está ligada ao momento em que os movimentos das
multidões passam a ser alvo da ação de governo. Não a escola simplesmente, nem a
educação (ainda que multidimensionalmente entendida) cumprem esse papel; quem o
cumpre é a Escolarização, o processo mais geral em que os dispositivos disciplinares e
os dispositivos de segurança se encontram para efetivar uma forma eficaz e permanente
de conduta das populações e de cada um dos indivíduos que a compõem, através da
ação de um Estado governamentalizado.
O Estado brasileiro que, até certo momento, proibia o acesso de alguns grupos
sociais à Educação escolarizada15
, sobretudo negros e negras, ao governamentalizar suas
práticas relativamente à Educação de Adultos, modifica sua discursividade e passa a
oferecer um serviço de atendimento a um direito, para o qual os sujeitos “livremente”
poderiam aceder. Quando passamos da oposição permitido/proibido para a articulação
estratégica do poder em torno do tema da liberdade, ou seja, das práticas disciplinares
para as práticas biopolíticas, a condição do acesso muda de tonalidade e o que antes era
denominado por “atraso” passa a ser uma “oportunidade” ou uma “reparação” ou ainda
uma “dívida social”16
. Esse contexto se desenvolve ao longo do século XX e seu apogeu
coincide historicamente com a implementação de políticas de caráter neoliberal durante
a década de 1990.
A análise deste processo não ocorre apenas em formulações internas sobre a
natureza das práticas de Estado, seus modelos, ou sobre a fisiologia das políticas
públicas, com análises sobre efetividade de sua implementação. A sustentação dessas
práticas encontra sua ressonância em campos tão diversos quanto o jurídico (que
regula), o pedagógico (que formula), o legislativo (que representa), a sociedade civil
(que problematiza). Nesse caso, as práticas de governo ― entre elas os objetos que
15
Segundo a Lei nº1/1837, Artigo 3º: “São prohibidos de frequentar as Escolas Publicas: 1º Todas as
pessoas que padecerem molestias contagiosas. 2º Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejão (sic)
livres ou libertos.”. Também o edito de Pedro Correa Manoel de Aboim, de 1765, estabelece severo
controle sobre a abertura de escolas de ler e escrever em Portugal “Ordena o Senado, que de hoje em
diante não seja pessoa alguma tão ousada, que abra escola de ler, escrever e contar, sem licença do
mesmo tribunal”. Cf. no anexo 1 reprodução do edito. 16 Como anuncia o Parecer CNE/CEB nº 11/2000, p. 5: “Nesta ordem de raciocínio, a Educação de
Jovens e Adultos (EJA) representa uma dívida social não reparada para com os que não tiveram acesso a
e nem domínio da escrita e leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a força de
trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras públicas”.
76
costumamos chamar de políticas públicas ― representam um dos nós em que a rede
estratégica do biopoder se expressa.
O Estado é entendido como uma realidade específica e descontínua, como uma
certa maneira de governar, mas principalmente, o Estado é um espaço que faz funcionar
a racionalidade biopolítica que submete a razão de Estado à demarcação de um regime
específico de verdadeiro e falso, não mais ao legítimo e ao ilegítimo, como vigorava
numa ordem jurídico-soberana, nem ao modo moral do bom ou mal juízo (2008a, p.26).
Como campo de veridição, o Estado passa a ser o detentor da verdade sobre a
população.
Logo, na imbricação entre Estado e escolarização, a verdade produzida sobre os
sujeitos dessa escolarização é, em grande medida, decorrência das práticas de Estado. A
ação de Estado se constitui como um conjunto de práticas que produz regimes de
visibilidade e de invisibilidade, pelos quais se define “o que se deve fazer e o que
convém não fazer” (2008b, p.16).
Nesse sentido, trata-se de investigar a rede que constitui a escolarização de
pessoas adultas no Brasil como um objeto possível das ações de governo, não apenas
como norma jurídica, mas, sobretudo, como aparato de atendimento escolar concreto,
inserido no cotidiano das práticas gerais de escolarização. Refletimos sobre o que se
passa nesse interstício entre o “dever fazer” e o que “convém ser feito”, espaço de
indeterminação onde propriamente existe a biopolítica da escolarização de adultos,
analisada aqui a partir das marcas do abandono e do constrangimento.
A passagem do liberalismo para o neoliberalismo como razão de Estado, como
racionalidade predominante nas análises econômicas que passam a dirigir a produção
das políticas nos Estados ocidentais pós-industriais reflete a mudança de ênfase da
lógica de controle sobre a economia. Se numa primeira versão liberal tratava-se de um
modelo intervencionista amplo sobre o mercado, regulando-o, no modelo neoliberal,
trata-se de uma intervenção que se amplifica em direção a toda a sociedade, tendo no
mercado o princípio básico de organização e na empresa o modelo de funcionamento
das demais relações sociais.
Com a reformulação do pensamento liberal para a versão neoliberal, a empresa
passa a ser o modelo das práticas sociais. O mercado assume então o lugar a partir do
qual o governo se faz “senhor” de uma verdade. É nesse contexto que as políticas
77
internacionais sobre escolarização de adultos são desenhadas, ora articulando uma
racionalidade keynesiana, ora articulando uma forma mais próxima de um Estado
mínimo neoliberal. A Educação de Adultos, enquanto versão escolarizada de acesso à
educação pelas populações não alfabetizadas, uma modalidade, sobretudo presente nos
países de economia periférica, no entanto, não parece ser objeto prioritário nem da
versão mais Wellfare State (que nem chega a se concretizar no Brasil), nem de uma
versão mais neoliberal de ação do Estado.
O discurso da mobilidade social que acompanha historicamente a oferta de
escolarização incide sobre a população adulta com especial ênfase. A ligação entre
Educação de Adultos e profissionalização ou formação para o trabalho, quase sempre se
deixa resumir a uma intervenção rápida de instrução em torno de técnicas de atuação em
algum campo específico da economia, com destaque para as ocupações menos
prestigiadas das cadeias produtivas, e muito frequentemente inseridas no aspecto
manual da divisão social do trabalho.
Tardiamente, as populações adultas não escolarizadas, frequentemente não
alfabetizadas, habitantes das periferias do capitalismo, entram no circuito social da
escolarização como parte de um projeto que não necessita de sua força de trabalho.
Desse modo, a produção de capital humano numa perspectiva de sociedade empresarial,
no âmbito de uma racionalidade neoliberal (FOUCAULT, 2008a, p. 311), não parece
ser uma razão suficiente para promoção de sua escolaridade.
A localização desse debate no âmbito da teorização foucaultiana da
governamentalidade neoliberal é necessária, a esta altura, como forma de salientar a
inscrição biopolítica da escolarização de adultos enquanto um problema da ordem da
regulação de uma população através da escola, mas também a partir da inscrição dessa
população no conjunto das relações econômicas, sociais e culturais dos quais participa e
sobre as quais o governo exerce sua força.
78
2.1. A emergência da população de adultos analfabetos e baixo-escolarizados
Esta população espera os milagres a que o mundo
lhe parece dar direito; sente correr sangue purpúreo
nas veias e lança um longo olhar carregado de tristeza
à luz do sol e às sombras dos grandes parques.
Baudelaire17
Ao longo deste item, analisamos a escolarização de adultos como
acontecimento, observando sua emergência na discursividade da Educação no período
que vai da década de 1940 a 2012. Ao realizar esta análise, entendemos que ela é
subsidiária do debate mais amplo da tese, sobre a orientação biopolítica desta
modalidade educacional, descortinando o horizonte de onde se instituíram os modelos
disponíveis para esta escolarização na atualidade.
Considerando a ideia de que tanto a pedagogia como a escola são também
acontecimentos, logo, desprovidas da sua condição de narrativas de origem e flagradas
em sua emergência ao lado das coisas baixas, pequenas, derrisórias, irônicas, estudos
desse tipo evidenciam a natureza impura da educação escolar (FOUCAULT, 2013,
p.276). A formulação desse tipo de olhar mantém uma dívida com os conceitos
foucaultianos de subjetivação e governamentalidade, a partir do questionamento às
práticas pedagógicas, mas, centralmente, o debate biopolítico repõe a relação entre
educação e poder numa chave que não é mais a da ideologia, nem da reprodução, mas
da governamentalização, da regulação ao nível da população. Numa análise, esses
posicionamentos significam que “a genealogia restabelece os diversos sistemas de
submissão: não absolutamente a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual
das dominações” (FOUCAULT, 2013, p.281).
Ao buscar compreender como se constituiu o discurso por educação escolar para
pessoas adultas, temos por objetivo desta parte do trabalho mostrar que uma série de
enfrentamentos produziu o tipo de atendimento escolar para adultos consolidado
historicamente, cujos contornos são questionados nesta tese como um problema da
ordem da governamentalização das populações adultas.
Por enfrentamentos compreendemos o campo de tensões produzidas na ordem
discursiva e não discursiva, envolvendo as disputas pela verdade da relação do sujeito
17
Baudelaire, 2001.
79
adulto com a escola. Essas lutas locais desenvolveram-se em torno de alguns pontos de
ancoragem que serão detalhados nos capítulos subsequentes do estudo: a questão da
metanoia, ou conversão, pela qual os discursos sobre Educação de Adultos reafirmam
ou problematizam, ou abandonam, o preceito iluminista da transformação do sujeito em
outro através do conhecimento; a concepção de escolarização, quando surge, como
surge e sua vinculação com a ideia de instrução básica e de alfabetização; concepção do
sujeito educando e de sua cultura.
Com essas três séries, podemos discutir de que forma a Educação de Adultos
chega ao século XXI com os contornos biopolíticos que apresenta. Isso porque a face
biopolítica da Educação de Adultos pode se sustentar com especial relevo nesses três
pontos. Em primeiro lugar, a ideia de conversão é um argumento central à convocação
dos sujeitos para participarem da escolarização, subsidiando não apenas a mobilização
para a escola, mas também a inscrição do Outro e de sua cultura numa posição de
subalternidade que justificaria não apenas sua ida à escola, como a superação de
condições de vida degradantes.
Segundo, a concepção de escolarização foi, no caso da Educação de Adultos, por
muito tempo, e apesar de todos os discursos laudatórios sobre os benefícios da educação
para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, um projeto permeado por uma
lógica do precário e marcado pela postergação como modo de relação com o tempo.
Terceiro, a concepção de sujeito sustenta as práticas a partir de noções
materializadas nos enunciados da ignorância, da simplicidade de pensamento, da
dependência, do pensamento sincrético, em resumo, uma lógica da minoridade.
Portanto, o sujeito em relação à verdade do conhecimento, à verdade da escolarização e
à verdade de si.
Como essas verdades se sustentam e constituem linhas de força a produzir um
dispositivo de governamento que se atualiza constantemente em relação à Educação de
Adultos? Esses enunciados possuem uma densidade, que seria a forma como se
intensificam em diversos cenários discursivos algumas versões desses discursos
verdadeiros, como se apresentam em textos legais, acadêmicos e políticos. Além disso,
são dotados de longevidade, pois esses enunciados vêm se atualizando, encontrando
novos pontos de apoio, novos modos de se apresentar, caminhando através do tempo,
mas mantendo algumas regularidades, como o reconhecimento de que certa
80
racionalidade, a que chamaremos aqui de “colonial”, mantém-se e se metamorfoseia em
novas ancoragens, mas que muda para permanecer a mesma.
Por que isso constitui um debate, um campo de enfrentamentos? O elemento que
causa tensões nesse campo é constituído por um silencioso movimento de negação da
escola pelo sujeito–alvo da biopolítica, que ora não procura o espaço escolar, não
demanda a escolarização como direito, ora o abandona, pode-se dizer que com uma
enorme frequência, informando-nos que algo de instável atravessa nossas crenças, e
aquelas verdades, a respeito da escolarização.
O enfrentamento está bem aqui neste espaço em que um dispositivo sustenta a
escolarização como projeto emancipatório ou desenvolvimentista, mas não consegue
estabelecer de maneira eficaz a governamentalização dessa população, pelo fato até
simples de que ela se nega a participar de tal projeto. Portanto, temos um
enfrentamento, ainda que silencioso, pouco delineado, velado, mas vívido e atuante,
entre a concepção da finalidade da educação escolar para adultos, a concepção de escola
e de sujeito que ela sustenta e o movimento resistente da população de pessoas não
alfabetizadas que se recusa a ser subalternizada pelo dispositivo escolar.
A racionalidade que sustenta a face biopolítica da Educação de Adultos se
espraia em diversos territórios discursivos. Surgem estes enfrentamentos no debate
internacional sobre escolarização de adultos, que só supera a invisibilidade de sua
enunciação no palco das conferências da Unesco no ano de 1997, com a Reunião de
Hamburgo, após quase 50 anos de estabelecimento desse cenário, uma vez que até então
o tema central eram os dispositivos de alfabetização. Surgem também na lenta
incorporação das demandas por especificidade nas práticas pedagógicas realizadas nas
escolas para adultos.
Discursos sobre alfabetização acionam poderosamente os indivíduos, mas não
quaisquer grupos de indivíduos, e sim aqueles já inscritos num contexto de “exclusão
social”, como negros, mulheres, idosos, jovens de periferias urbanas, nordestinos,
moradores do campo e pobres. O analfabetismo representa, para muitos indivíduos no
interior dessas categorias, apenas mais um dentre os problemas de suas vidas, nem
sempre o mais importante, nem sempre o mais urgente. Para outros, não é um problema.
Ao lado do combate à mortalidade infantil e à miséria, a questão da
alfabetização incorpora um conjunto de ações do governo endereçadas a tais
81
populações. Renda, Educação e Saúde compõem o escopo do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), usado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), para medir o grau de acesso das populações a condições de
vida consideradas adequadas. No quadro dos modelos de desenvolvimento, o combate,
ou a superação, ou, como se disse durante muito tempo, a erradicação do analfabetismo
entre adultos representa um dos problemas mais expressivos do setor educacional no
Brasil e no mundo. Desafiando o País a obter índices considerados como padrão de
desenvolvimento humano, um aparato legal e institucional foi desenvolvido e aplicado
para produzir a “alfabetização plena” da sociedade brasileira.
A articulação da alfabetização com a escolarização é a clivagem principal do
campo discursivo da Educação de Adultos, não apenas no Brasil, mas também no nível
internacional. Ao longo do século XX, especificamente a partir de sua segunda metade,
observamos uma paulatina ampliação dessa articulação, buscando a superação da
dualidade que caracterizava a alfabetização como um campo de práticas aparentemente
diversas à escolarização. Argumentamos, nesta pesquisa, que o discurso da
alfabetização se organizou enquanto uma retórica que buscou o convencimento das
populações não alfabetizadas a se inserirem na ordem do discurso escolar. Dessa forma,
a alfabetização não só é constitutiva do processo de escolarização, como é constituída,
em grande medida, por processos pedagógicos de caráter escolarizado e escolarizante.
O atendimento educacional para jovens e adultos tem sua emergência histórica
marcada pelo discurso da alfabetização das sociedades. O problema do analfabetismo é
da ordem da cultura, do simbólico, não da ordem do biológico, mas a vinculação do
tema a uma ordem biológica sempre esteve presente nas suas diversas formulações.
Campanhas de vacinação, conteúdos de higiene, práticas de “combate”, o uso frequente
e socialmente difundido da palavra “erradicação” estão presentes nos textos históricos
das campanhas de combate ao analfabetismo e remetem à ordem médica e à ordem
biológica, envolvendo assim a questão do analfabetismo num campo difuso e complexo
das relações de poder regulador na ordem da construção do Brasil como sociedade
normalizadora.
A alfabetização é um marco na relação do sujeito com a cultura. Ela estabelece
uma inclusão e uma exterioridade a partir do poder da escrita. Por outro lado, o
analfabetismo é um fenômeno que emerge exatamente como um problema de
82
população. Foucault (2005, p.293) nos alerta que a biopolítica lida com a população
“como um problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e
como problema de poder”. As técnicas biopolíticas foram acionadas na história do
analfabetismo desde a sua formulação, a exemplo do argumento estatístico, usado para
construí-lo como problema de governo e do desenvolvimento, já depois da Segunda
Guerra18 e através dos organismos internacionais, como a UNESCO.
A questão do analfabetismo emerge então como um problema biopolítico. A
biopolítica pode ser compreendida como o poder que “se situa e se exerce ao nível da
vida, da espécie, da raça e da população” (FOUCAULT, 1988, p. 151). Defendemos que
o governo da população através do controle do seu acesso ao discurso, à força da
palavra, atuou como um adensamento, no caso da Educação de Adultos, do poder
meramente disciplinar para o poder regulador, visível em seus efeitos diretos na
invenção do corpo social dos analfabetos. No Brasil, a população de analfabetos
brasileiros irrompe como problema de Estado no contexto da década de 1940 (PAIVA,
2003; CARLOS, 2008), momento em que o debate sobre a escolarização da sociedade
brasileira acompanhava o acelerado processo de industrialização e a rápida urbanização.
A obra clássica sobre o tema, de Paiva (2003, p.187), nos informa que o censo
populacional de 1940 indicava a existência de uma taxa de 54% de analfabetos na
população acima de 18 anos.
No processo de invenção do analfabetismo como problema, o Brasil inventou
também o analfabeto como a imagem social da ignorância, num processo poderoso a tal
ponto, que a palavra tem uma valência semântica mais ampla do que o seu uso
localizado referente às pessoas que não sabem ler e escrever na língua portuguesa.
Termos difundidos em provérbios populares, do tipo “escreveu, não leu, o pau comeu”
remetem à natureza violenta da formação discursiva em análise e à sua inscrição no
campo das lutas, evidenciando tanto a dimensão estratégica dos enunciados do discurso
da alfabetização, quanto o aspecto conflituoso que o permeia desde sua emergência.
Aquilo que a cultura cristaliza e, através de vários mecanismos, dispersa, possui
forte poder de formação de subjetividades, de constituição de traços de sentido sobre si
que demarcam a experiência de indivíduos nas diversas práticas sociais de que tomam
18
A primeira Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFITEA), data, especificamente,
de 1949, tendo sido realizada na cidade de Elsinor, Noruega.
83
parte. É desse modo que o problema da alfabetização é também um problema cultural,
não apenas porque ele significaria um limite de participação na esfera da cultura
(alguma porção da cultura, é certo) por parte daqueles que não leem e não escrevem nos
sistemas legitimados daquela cultura, mas, sobretudo, porque ele representa uma forma
de subjetivação no conjunto das práticas sociais. A subjetivação na condição de
analfabeto, articulada com a associação perversa entre analfabetismo e ignorância, fruto
de nossa matriz colonial e catequizadora, certamente é um dos principais problemas
culturais da escolarização brasileira.
Mantendo-nos na teorização foucaultiana, podemos dizer que a distribuição
social do analfabetismo na atualidade mantém-se como uma face do “racismo de
estado”. A sutileza do racismo à moda brasileira retoma sua eficácia no tocante ao
analfabetismo, pois realiza mais uma aproximação à “eliminação dos perigos à vida”
(FOUCAULT, 2008b), representados pelas parcelas da população sobre as quais o
“direito de deixar morrer” do Estado brasileiro vem se efetivando. Ocorre que no caso
do acesso à escrita, da luta pela alfabetização e contra o analfabetismo, o que está em
jogo, além da vida como fator biológico, é a luta cultural, a vida simbólica, o governo
dos discursos e a tentativa de suprimir do outro a força da sua palavra.
Nessa ambiência discursiva, o campo educacional frequentemente afirma que o
projeto social da modernidade nunca foi atingido, que houve falhas, que a escola é a
principal instituição responsável pela socialização, mas que ela também falhou em sua
tarefa. Argumentamos, juntamente com Souza (2004), que a escola é um sucesso para
alguns grupos sociais, as classes médias urbanas, do ponto de vista da garantia de sua
participação efetiva no campo dos direitos. Mas uma visada biopolítica nos alerta que a
escolarização tem sido tanto mais eficiente para estes grupos quanto para os que
também atingem o insucesso (de participação social, de acesso ao conhecimento, de
mobilidade social) com sua participação nos processos escolares. A esse respeito,
Veiga-Neto (2000, p.03) alerta:
O declarado projeto iluminista de escolarização única/igualitária,
universal e obrigatória, está se revelando uma impossibilidade
histórica na medida em que ele se insere na lógica da própria
Modernidade, uma lógica ambígua que está implicada, per se, tanto
com a domesticação da diferença quanto com o diferencialismo e a
desigualdade e, por consequência, com a exclusão.
84
A respeito das populações adultas não alfabetizadas (atualmente cerca de 13
milhões de brasileiros, segundo o IBGE), cremos poder afirmar que a fórmula do
constrangimento tem funcionado de maneira excepcional no processo histórico que,
através da escolarização, interdita o acesso ao conhecimento prometido. A fórmula do
constrangimento é uma denominação para o conjunto de situações que colocam o adulto
não alfabetizado numa condição de minoridade. Como exemplo, observamos que já foi
possível melhorar em algumas coleções de livros didáticos de EJA as marcas do
discurso da infantilização do adulto; os materiais didáticos, por força das interpelações
dos educadores do campo da EJA, já assumiram sua especificidade de um texto que fala
para adultos.
Não é apenas dessa minoridade traduzida na ordem didática que estamos
falando. Referimo-nos à política permanente de localizar o adulto não alfabetizado em
práticas de dependência, em espaços físicos originalmente criados para corpos infantis,
de servir aos trabalhadores merendas idênticas às de crianças, de fazê-los fardar-se,
cantar hinos, rezar orações cristãs, ter caderno, lápis, borracha e bolsa escolar, sentar em
filas. Estas práticas são ainda bastante frequentes mesmo no século XXI. Ao lado delas,
as múltiplas experiências de si que vêm acompanhadas da lição e dos rituais da
escolarização (CARVALHO, 2012), as formas de dependência emocional com
professoras e alfabetizadoras de programas-campanhas, o fato contínuo de que se
produz ainda hoje uma Educação de Adultos sem a audição necessária do sujeito
educando, numa prática de assujeitamento permanente e de longa data.
O cenário biopolítico da Educação de Adultos é também denotado pela
materialidade dessa população, permanentemente citada em notas estatísticas,
frequentemente exibida como sujeitos de superação em matérias jornalísticas a respeito
do sucesso dos governos em oferecer EJA, cujo participante é constantemente anotado
pelos documentos internos da escola como sujeito evadido, retido e de abandono. Não
se trata de uma interdição para entrar na escola, mas de uma série de instrumentos que
garantem a sua “permanência sem sucesso” naquele espaço.
Esse é, portanto, o cenário em que o governo da vida se faz representar na
contemporaneidade de uma Educação de Adultos capturada pelas tecnologias
biopolíticas do constrangimento e do abandono. A vida como ato político remete ao
conjunto das relações do sujeito com o poder e remete à resistência, à crítica, às lutas
85
instaladas. Ao silenciamento do sujeito adulto nos diversos enunciados sobre a EJA,
uma prática persistente, contínua, que se faz presente, contrapõe-se uma marcha
também contínua para além da escola.
A administração social do adulto não alfabetizado perpassa investimentos de
diversas ordens, bastante expressivos, que são por sua vez silenciados no fenômeno da
evasão. A evasão escolar na EJA é uma resposta silenciosa que por sua vez provoca um
silenciamento dos sistemas. Em termos quantitativos, é um fenômeno de população. A
média de uma grande capital nordestina varia em torno de 35% a 40% de evadidos ao
ano, em dados oficiais. Quem atua no cotidiano sabe que os índices de evasão e
repetência, se apensos ao real, seriam ainda maiores.
Portanto, se partimos da concepção de que o poder é relação, e a relação como
algo que se estabelece entre pontos de assujeitamento e resistência no jogo permanente
das forças, para compreender a matriz biopolítica de que nos fala a EJA contemporânea
é necessário ouvir essa voz que se expressa repetindo em paralaxe o abandono a que foi
relegada sua existência.
A razão governamental, com um sentido expandido, é ainda o que serve de
justificação para muitas práticas do âmbito das políticas de atendimento educacional
para jovens e adultos. A burocracia em torno do financiamento, as regras para abertura e
existência de turmas de EJA, e as normas que indicam a necessidade de fechamento das
turmas, quando há um “número insuficiente” de alunos matriculados, são baseadas em
argumentos como “necessidade de administrar a rede”; “impossível manter em
funcionamento devido ao repasse per capta”; “10 alunos matriculados não pagam nem o
salário do professor”, entre outros em que tal racionalidade é enunciada. No regime de
verdade que tal racionalidade instala em relação ao que pode e o que não pode continuar
a existir em EJA, fica visível a atuação do biopoder. Como esclarece Foucault (2008b,
p. 27): “o par série de práticas/regimes de verdade forma um dispositivo de saber-poder
que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à
demarcação do verdadeiro e do falso”.
Se as disciplinas se dirigem ao indivíduo, são individualizantes, como forma de
impregnar os corpos com a interiorização obediente da norma, o biopoder atua de modo
massificante sobre a população. A Educação de Jovens e Adultos, ademais como uma
prática de escolarização existente no quadrante da modernidade, refere-se aos
86
estudantes adultos não alfabetizados tanto na clave disciplinar, quanto na clave
massificante, ora indivíduo, ora população (FOUCAULT, 2005, p.289).
É possível ainda acrescentar, sem temor de uma aplicação demasiada do
pensamento foucaultiano sobre o objeto, que o exercício do poder sobre a vida, no
sistema biopolítico, inclusive contemporâneo, refere-se à Educação de Adultos com a
mesma lógica do racismo de Estado. A polaridade da sociedade entre alfabetizados e
não alfabetizados, com o número dos que carregam essa marca decrescendo
“oficialmente” a cada biênio, ao lado da ineficácia dos sistemas escolares em garantir a
realização de algumas promessas aos não alfabetizados e aos pós-alfabetizados
(mobilidade social entre elas) denota um cenário em que o “corte entre o que deve viver
o que deve morrer”, embora tênue em nossa atualidade, mantém-se e incorpora-se à
experiência de vida de milhares de pessoas.
No interior da ordem biopolítica, o racismo de Estado constituiu legalidades para
estados nacionais atuarem contra populações que representavam perigos e que “era
preciso expulsar por razões de ordem política e biológica ao mesmo tempo” (2005, p.
101). É com base nos traços dessa relação política com a vida que a condição das
pessoas não alfabetizadas se aproxima ao lugar estranho e paradoxal da vida nua, da
captura da vida pelo mecanismo do biopoder, que a circunscreve a homo sacer “sem
maiores constrangimentos”.
É também no alongamento dessa análise sobre o comportamento da lei diante
dos indivíduos acionados pela ordem biopolítica que podemos definir os traços da
exceção que caracteriza as práticas de escolarização de pessoas adultas. Seu caráter de
Estado de Exceção pode parecer uma visão muito pessimista sobre uma prática que em
geral é permeada por enunciados de carinhos, afagos, ajudas, pequenas vitórias e
filantropias outras. Mas, também é real que não avançamos ao considerar apenas os
aspectos “dourados” de uma prática. É por essa razão que precisamos investigar as
estratégias de poder e a partir delas compreender onde estamos enredados e como nos
desenredar dos processos de subordinação.
Contudo, a nosso ver, o problema central não é tanto a demarcação de que o não
alfabetizado está condenado a não viver, ou a viver de forma “menor” (embora esse seja
um problema bastante grave, não é bem o problema, mas um de seus efeitos); o
problema é organizar-se um mundo onde o direito a ser escolarizado é enunciado como
87
uma necessidade vital, sendo repetidamente negado esse direito a muitos que seriam
seus demandatários. Com essa reflexão, podemos sugerir que a questão da alfabetização
como problema da hegemonia da escrita nas práticas sociais representa para a sociedade
brasileira uma espécie de genocídio, ao lado dos epistemicídios relacionados à
oralidade, cultura, memória e trajetórias de sujeitos do meio popular. A alfabetização
como norma não deixa margens para outras possibilidades de saberes, mas estas outras
possibilidades continuam existindo, porque é da natureza das relações de poder que haja
a dominação e ao seu lado a resistência e que as relações entre as forças ocorram num ir
e vir constante, evidenciando que o poder não é apenas dominação, mas jogo.
É irreversível esse papel dominante da escrita na vida social? Certamente é uma
prática cultural dotada de imenso poder, sem precedentes na história humana, mas a
força do que está fora do dispositivo da escrita certamente não é desprezível. Para
Facheh (2007, p.132):
Exaltar alfabetização é como enaltecer carros. Mas, quando olhamos
os efeitos dos carros sobre importantes e antigas cidades como Cairo e
Atenas, nos damos conta de que precisamos tomar mais cuidado. Em
outras palavras, precisamos analisar não somente o que a
alfabetização acrescenta na forma como é concebida e implementada,
mas também o que subtrai ou torna invisível.
Para além de um idealismo imobilista, basista19
, ou romântico sobre a felicidade
e a beleza de uma tradição oral, das pessoas que sabem muito sem saber escrever, ou de
qualquer desses argumentos em torno de comunidades imaginadas, a relação
estabelecida com este fator de socialização que é a escrita no mundo atual
necessariamente deveria ser perguntar: de qual alfabetização as pessoas necessitam? Ou
refinando ainda mais, perguntar diretamente às pessoas: Qual alfabetização vocês
necessitam ou desejam?
Como resposta a essa pergunta, certamente as mulheres chefes de família com
filhos, que não podem estudar (mesmo quando o desejam), porque o horário das escolas
não é adequado, porque não há creches noturnas no Brasil, porque precisam trabalhar,
19
“Basista” é termo corrente na linguagem de movimentos sociais e seus interlocutores, referindo-se a
pessoas que consideram tudo que vem das “bases”, ou seja, dos grupos populares, que dão sustentação às
lutas, como verdades dogmáticas.
88
etc., essas mulheres teriam uma resposta a respeito de qual alfabetização elas precisam,
para o seu momento e para os seus projetos de vida. O problema é que a instituição
escolar não tem ouvidos para realizar essa escuta, porque está justificada em sua
deficiência por uma racionalidade que define os saberes escolares como uma das
melhores coisas a que pode aceder um sujeito numa sociedade moderna.
Todas as nossas propostas, mesmo as mais avançadas em termos de
compromissos de classe ou com a liberdade (as práticas de alfabetização
emancipatórias, como a freiriana), partiram de um lugar extremamente poderoso, pois
de saída já definiam, e continuam definindo, qual alfabetização era e é melhor para as
pessoas. É desse modo que se constrói o silenciamento do sujeito da EJA, esse fator tão
marcado do dispositivo, e que pode ter plantado suas raízes nesse procedimento que é,
mais do que circunstancialmente, a imposição de uma racionalidade local como uma
razão universal. A ideia de sociedades plenamente alfabetizadas possivelmente nasce do
mesmo mecanismo.
Quando governos passam a se ocupar do fenômeno da vida das populações, e
não apenas do poder de legislar sobre a morte, uma série de eventos relacionados a
grupos específicos são produzidos, alterando paulatinamente o foco das ações de
governo, desde uma lógica repressiva, para uma racionalidade produtora de condições,
separações, lugares e práticas. Os analfabetos foram interpelados pelos discursos
governamentais após a Segunda Guerra Mundial e sua inserção no mundo letrado estava
vinculada ao discurso do desenvolvimento no pós-guerra, o mesmo que fomentou a
formação de organismos supranacionais como a ONU.
Segundo Foucault (2001, p. 69), as racionalidades geradas para dar conta dos
grupos abarcados pela teratologia do poder, os anormais, os desviantes, todos esses
grupos, representam um perigo qualquer à sociedade. Situar a questão dos analfabetos
dessa forma requer atenção para não reincidirmos naquilo que condenamos: justamente
o esvaziamento da experiência vital dos sujeitos não alfabetizados, prática já denunciada
por Paulo Freire em sua obra, com a conceituação do Ser Mais, bem como pelo conceito
de saber feito da experiência e a valorização da cultura popular. Portanto, é pertinente
relembrar aqui que estamos trabalhando com enunciados que se apresentam à análise
através de sua materialidade, mas também de suas conexões e oposições intrínsecas e
extrínsecas (FOUCAULT, 1972).
89
Perguntarmo-nos qual o perigo representado pelos analfabetos para a sociedade
brasileira significa ativar uma pergunta biopolítica típica, pois sua resposta indica os
caminhos que justificam a existência de práticas de governo sobre essa população. Não
é preciso ir muito longe para construir essa resposta. Basta observarmos com mais
atenção os textos reitores das primeiras campanhas, modelo de interpelação dos
analfabetos, no tocante aos conteúdos típicos dos cursos de alfabetização. As primeiras
letras eram acompanhadas de princípios de higiene pessoal, de noções sobre os deveres
e de rudimentos de práticas laborais. Vê-se o risco de uma população analfabeta que era
também portadora de doenças, desobediente e preguiçosa, ou inábil. Sem dúvida, um
risco político grande para uma sociedade colonial, patriarcal e racista.
No tocante aos mecanismos de controle do analfabeto, há similaridades com os
procedimentos de controle da peste: territorialização, vigilância, definição de lugares,
definição de presenças, individualização ― Foucault tinha razão ao afirmar que o
mecanismo de “inclusão” do pestífero serviu como modelo de controle para o ocidente
após o século XVIII. A norma da alfabetização é uma imagem de sociedade
desenvolvida, a qual corresponde a teratologia do analfabeto como índice do
subdesenvolvimento, a ser superado no processo de escolarização:
Enfim, vocês estão vendo que não se trata de uma marca, não
definitiva de uma parte da população; trata-se do exame perpétuo de
um campo de regularidade, no interior do qual vai se avaliar sem
cessar cada indivíduo, para saber se está conforme a regra, a norma de
saúde que é definida. (FOUCAULT, 2001, p.37).
No arco que envolve o conjunto das políticas discursivas estudadas nessa
pesquisa, a produtividade do regime de verdade instalado pelo dispositivo da
escolarização nas práticas de alfabetização atravessa momentos de produção de
alfabetização propriamente dita (o ensinar a ler e escrever), momentos de descoberta de
si, de direitos, de despertar de possibilidades para a construção de trajetórias individuais
mais autônomas. Mas, também é perpassado pelos constantes movimentos para dentro e
para fora da escola, as interrupções longas, as desistências, as reprovações, as
intermitências da trajetória. O foco dedicado por esta pesquisa à tensão sobre o poder
saber da alfabetização remete aos efeitos dessa ordem que determina quem lê, quando e
90
como o faz, ou seja, a distribuição social do poder saber alfabetizado, através de eventos
que marcam a escolarização dos sujeitos interpelados pelo dispositivo.
A escola também é lugar de rupturas e na EJA elas se dão pela determinação de
educadoras e educandos que “ludibriam” o sistema normalizador do tempo e do espaço,
produzindo outras modalidades de presença, frequência e existência escolar. Sobre esse
aspecto ambivalente da dimensão do agente no interior dos dispositivos, reflete Deleuze
(1999):
Na medida em que se livrem das dimensões do saber e do poder, as
linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar
caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também,
na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do
antigo dispositivo.
A governamentalização das populações não alfabetizadas refere-se a um
conjunto amplo de estratégias, dispositivos e técnicas utilizados para o exercício de sua
conduta. Dentre estas estratégias, esta tese ocupa-se de dois conjuntos, configurados
aqui como Tecnologias, no entendimento de que são saberes aplicados que articulam
poder saber num conjunto estratégico. Focalizamos, primeiramente, as Tecnologias do
Constrangimento, que representam o regime de enunciabilidade dos dispositivos da
alfabetização de pessoas adultas, dirigidas por seu turno ao indivíduo e sustentado por
técnicas de si. Em seguida, focalizamos as Tecnologias do Abandono, que são
acionadas pelo regime de visibilidade dos dispositivos de escolarização de adultos, e
voltadas à condução da população não alfabetizada.
Visando a evidenciar a contextualidade que suporta este debate, discutiremos os
elementos sociais, econômicos e culturais sobre os quais se apresenta o tema no âmbito
das sociedades neoliberais; em seguida, discutimos as relações entre modelos de Estado
e políticas de Educação de Adultos; logo após, trazemos uma breve recensão a respeito
da Educação de Adultos no campo de estudos que faz o debate sobre essa modalidade
de escolarização.
91
2.2. Neoliberalismo: a razão política na administração do precário
O neoliberalismo é um conjunto de doutrinas aparentemente econômicas
formulado por teóricos dos países do capitalismo central em meados do século XX, mas
originalmente delineada desde o século XVIII. Foucault localiza o neoliberalismo como
uma racionalidade baseada no cálculo, que se desdobra nas ações do Estado autorizando
certa performance das condutas de poder, em nome da segurança e baseadas no mercado
como espaço de veridição. Dizer que o mercado é o espaço de veridição equivale a
afirmar que ele é o espaço de constituição da verdade das práticas de governo, aquilo
que constitui sua legitimação e inteligibilidade.
Essas condições ocorrem a partir do modelo em que o mercado inspira não a
liberdade de ação dos agentes, mas a regulação de seu movimento, de forma discreta,
eficaz e permanente (FOUCAULT, 2008a, p.334), mas também “maciça quando se trata
desse conjunto de dados técnicos, científicos, jurídicos, demográficos, digamos, grosso
modo, sociais, que vão se tornar cada vez mais objeto de intervenção governamental”
(FOUCAULT, 2008a, p.194).
O neoliberalismo toma como modelo de funcionamento da sociedade a empresa
e a lógica concorrencial. As intervenções planificadas do Estado sobre as populações
são orientadas a produzir as melhores condições, através dos mecanismos mais diversos,
visando à produção do melhor ambiente possível para a continuidade e expansão do
próprio capital. Desse modo, a educação e as práticas de escolarização assumem um
papel central na formação não apenas da mão de obra, mas também de sujeitos capazes
de se adaptar aos modos de existência do capitalismo e contribuir para produzi-lo sem
maiores questionamentos. Veiga-Neto (2000, p.6) informa que “o liberalismo foi ― o
neoliberalismo continua sendo ― uma prática, uma maneira de fazer política, orientada
para objetivos e se regulando por uma reflexão contínua”.
Não obstante sua base filosófica, o neoliberalismo caracterizou-se ao longo da
segunda metade do século por um conjunto de procedimentos que foram alterando o
papel do Estado, não apenas em relação à economia, mas, sobretudo, em relação à
sociedade como campo de intervenção. A governamentalização neoliberal produziu seu
conjunto particular de crenças sobre a vida social e obteve um notável consenso nas
92
sociedades graças ao controle das grandes linhas de ação política dentro dos Estados
(GENTILI, 1998).
A principal incidência da governamentalização neoliberal repousa na
interpretação dos problemas sociais e de seu equacionamento pelo Estado. Observamos
que de saída uma das primeiras formulações do neoliberalismo, a versão alemã, se
constitui como um pensamento que critica de forma contundente o Estado de Bem
Estar, ou seja, as políticas de base keynesianas que faziam do Estado uma instância
mediadora entre o mercado e a sociedade, que deveria atuar no arrefecimento dos
efeitos sociais e políticos da contradição capital versus trabalho. A formulação
neoliberal sobre as políticas sociais é clara a respeito de que o Estado não deve intervir
no equacionamento das desigualdades produzidas pelo jogo do mercado. Para o
pensamento neoliberal, “uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo”
(FOUCAULT, 2008b, p. 196). Esse é um elemento central da discussão sobre os
processos de escolarização, porque o preceito da igualdade constitui uma das maiores
promessas sociais dos Estados modernos quando se referem à educação escolar (LIMA,
2007, p.41).
O neoliberalismo, segundo Foucault, altera o foco das políticas sociais dos
efeitos para as causas dos problemas que podem ser gerados pela autorregulação do
mercado. Uma vez que a lógica das biopolíticas reside na manutenção das condições
vitais das populações, o processo de produção de subjetividades aptas a desenvolver-se
autônoma, mas obedientemente20
, assume um papel sensivelmente mais forte na
formação do homo oeconomicus.
As políticas de Educação são, portanto, nessa contextualidade, um espaço
fundamental de produção das subjetividades necessárias à adequada gestão da sociedade
no ambiente neoliberal. É através das práticas escolarizadas que o projeto neoliberal
procura garantir a produção dos sujeitos flexíveis e competentes para atuar na
economia. No entanto, para o funcionamento de uma economia financeira, digital, de
20
Em algumas cosmovisões políticas, a associação entre autonomia e obediência seria uma contradição,
ou mesmo uma impossibilidade. Na perspectiva anarquista, por exemplo, em que autonomia é o exercício
da autodeterminação da vida livre, constituir-se autônomo é equivalente a não ser obediente a nenhuma
forma de governo. Já na perspectiva neoliberal, autonomia seria equivalente a autogerir sua própria
existência dentro dos limites do capitalismo, conforme a lei, Deus e o patrão, ou seja, sendo simplesmente
obediente.
93
fluxos livres e desterritorializados da ideia de Estado-nação, não são necessários tantos
braços como no primeiro momento do capitalismo.
Na relação entre capital, trabalho e educação, a questão da qualificação técnica
da força de trabalho foi central ao capitalismo e o amplo desenvolvimento dos sistemas
nacionais de educação foi uma das alavancas desse processo. Porém, essa qualificação
era quase sempre de nível instrucional e elementar, e para isso a escola básica serviu de
forma bastante eficaz. Nos desenvolvimentos posteriores, a necessidade de alta
qualificação em competências técnicas tornou-se cada vez mais exigente e elevada,
ampliando o escopo do que se exige enquanto formação básica para participação na
esfera produtiva. A educação básica não é mais suficiente. Nessa nova fase, “o pleno
emprego não é um objetivo, pode até ser possível que um quantum de desemprego seja
absolutamente necessário para a economia” (FOUCAULT, 2008b, p. 191).
Ora, a questão que nos importa de forma mais direta é justamente a articulação
de algumas destas questões: primeiro, o pleno emprego não é um objetivo; segundo, a
escola básica já não garante o mínimo suficiente para o sujeito participar da esfera
produtiva; terceiro, o Estado atua de forma maciça sobre as populações como forma de
constituir a governamentalidade que garanta a manutenção das condições adequadas ao
livre fluxo do capital em circulação. Essas três condições empurram as populações não
alfabetizadas, num contexto de amplo desenvolvimento da tecnociência, de volta a um
lugar do qual apenas haviam se deslocado alguns poucos metros ao longo dos anos de
políticas de bem-estar social, quando essas populações puderam acionar a instrução
básica de maneira universalizada naqueles países de capitalismo avançado.
Poderíamos estar descrevendo aqui as condições conjunturais que teriam
produzido a eliminação das políticas educacionais voltadas para as populações não
alfabetizadas, mas a relação entre os três fatores em deriva nos informa que, diante do
desaparecimento do pleno emprego como objetivo e da ineficácia da escola básica na
garantia da construção de competências laborais ou pré-laborais pertinentes, apenas o
terceiro fator parece justificar a existência dessas políticas: era preciso governar essas
populações, e governá-las através de mecanismos de baixo custo, ampla incidência e
forte apelo subjetivo.
Cremos poder entender as políticas de Educação de Adultos em contexto
neoliberal a partir dessa correlação entre os fatores expostos, embora consideremos
94
necessário salientar que esse é apenas um dos aspectos possíveis de seu
desenvolvimento, não exclusivo e não exaustivo, dada a diversidade quase inalcançável
de atividades nesse campo em todo o mundo.
Políticas de Educação de Adultos são, portanto, voltadas para populações que se
encontram no limiar da exclusão pelo fato de não serem numericamente necessárias ao
processo de reestruturação produtiva pelo qual passou o mundo do trabalho nas últimas
décadas. Não obstante essa premissa, o discurso sobre o emprego e inserção produtiva
consegue ser, ainda nos dias atuais, um dos argumentos mais utilizados pela retórica de
Estado para incentivar as populações não alfabetizadas e de baixa escolaridade a se
(re)inserirem na escola. Para o pesquisador português Licínio Lima (2012, p.31), essa
forma de oferecer aprendizagens está “longe de poder, ou sequer de ter a intenção de
incluir toda a gente. Em muitos casos é limitada a processos de gestão da crise,
amortecendo as taxas de desemprego, através de bolsas de formação, na busca de efeitos
paliativos.”.
Numa perspectiva biopolítica, acionar a função do processo de escolarização a
partir de seu efeito regulador sobre uma população constitui uma das tarefas centrais
dos dispositivos de governamentalização e observamos que a finalidade reguladora da
escolarização de adultos tem aparições tanto nos projetos de discursividade
emancipatória quanto nos projetos neoliberais. Ela continua presente porque suas bases
são as mesmas: uma forte crença no papel da escrita e outros saberes legitimados pela
escola na produção do sujeito civilizado que, numa versão ou na outra, é sempre o
convencimento a tomar parte numa conversão, uma metanóia em direção ao mundo
iluminado dos saberes escolarizados do desenvolvimento, da inclusão e da cidadania.
2.3. A Educação de Adultos nas diversas manifestações da estatalidade
O debate sobre a Educação de Adultos atravessa campos temáticos específicos,
como das questões sobre o lugar social da alfabetização e sobre as abordagens ao
fenômeno da linguagem. Ao lado desses, encontramos os estudos sobre as instituições
envolvidas na oferta educacional de alfabetização para pessoas adultas. Ao longo do
século XX, pode-se registrar avanços na institucionalização a partir do processo que
95
vinculou alfabetização e escolarização, o que provoca uma demanda por compreensão
sobre o funcionamento dessas maquinarias estatais. Esse aumento no grau de
institucionalidade refere-se primordialmente aos diferentes graus de responsabilização
do Estado diante das políticas de escolarização das massas. O argumento central nesse
processo é a questão do direito, que estabelece a população como demandatária de um
objeto e o Estado como cumpridor das condições de acesso ao objeto, no caso, a
Educação Escolar. Os diferentes arranjos encontrados na relação entre população e
Estado para a garantia desse direito vão proporcionar a produção de políticas públicas
de diversos modelos, que encontrarão correspondência com os modos hegemônicos de
concretização da ação estatal.
A relação entre Estado e população é transversalizada pela maquinaria estatal,
assim como pelos modelos de escola, pelas concepções de sujeito e saber, as
concepções sobre língua e poder no campo discursivo da Educação de Adultos. Nos
modelos de oferta de educação escolarizada podemos observar a inscrição de
parâmetros mais amplamente difundidos na sociedade, visíveis em enunciados bastante
demarcados, a respeito de qual alfabetização e qual educação escolar devem ter acesso
os sujeitos interpelados por essas políticas.
Portanto, a adoção de medidas de Estado para promover o alfabetismo, (ou
combater o analfabetismo) se manifesta na concretude das políticas públicas. Isso se
torna evidente, por exemplo, na aplicação de campanhas e mais campanhas em
condições precárias de atendimento, nas quais a regra é o “pouco” ou o “menos”, ou na
produção social de uma escola que muitas vezes não é mais do que a continuidade da
experiência do precário das campanhas; ou, ainda, nas quais a concepção sobre as
necessidades de aprendizagem das pessoas adultas está condicionada por um olhar
direcionado ao indivíduo desvinculado de sua própria história e das experiências que o
constituem; o tipo de correlação entre tempo e recursos financeiros aparece governado
pelo interesse estatístico e menos, bem menos, condicionado ao ritmo ou desejo das
pessoas pela aquisição dos saberes escolarizados.
Desse modo, a análise do processo de escolarização de adultos exige um olhar
sobre essas formas específicas de apresentação do Estado e suas manifestações nas
políticas educacionais para pessoas adultas. Uma tipologia do Estado é um dos objetos
possíveis de análise na compreensão do fenômeno mais amplo da governamentalidade,
96
que abarca não apenas o Estado, mas também outras instituições que singularizam as
linhas de força dos dispositivos de poder. Nessa perspectiva, os níveis micropolíticos de
análise encontram-se articulados com a compreensão desses modelos, uma vez que
enunciados desse campo possuem força de verdade na hora da produção de políticas
públicas e, consequentemente, de seus objetivos, metas, parâmetros e desenhos.
O modelo analítico de Lima e Guimarães (2011) divide os paradigmas de ação
do Estado nas políticas de Educação de Adultos em três versões. O Modelo
Democrático Emancipatório, o Modelo da Modernização e Centralidade do Estado e o
Modelo de Gestão de Recursos Humanos.
Tomando como referência os paradigmas de Estado de bem-estar, ou social
democrata, e do Estado neoliberal, esses três modelos evidenciam arranjos de políticas
de Educação de Adultos que vão se consolidando em diferentes estratégias, como
programas nacionais, modalidades de financiamento, lógicas de constituição dos
sistemas educacionais, ora mais próximos, ora mais distantes do ideário de um Estado
que “garante direitos”. Salientamos que o Estado brasileiro não pode ser apresentado
como encaixado nesses modelos, principalmente porque são construtos teóricos que
permitem uma aproximação ao modo como as políticas de Educação de Adultos se
apresentam.
Desse modo, o Modelo Democrático Emancipatório (LIMA; GUIMARÃES,
2011) descreve um tipo de Estado interessado em construir uma sociedade baseada nos
ideais de solidariedade, justiça social e bem comum. Como manifestação desses
princípios, as práticas são descentralizadas e os agentes locais possuem alto nível de
autonomia. Esse modelo propõe que a Educação é um direito social fundamental na
constituição de uma sociedade democrática. Muitos dos nossos argumentos em defesa
da Educação Pública, Gratuita, Universal e de Qualidade, no Brasil, rementem a esse
ideário, sobretudo pela importância desses valores para as sociedades pós-coloniais da
América Latina. O modelo abarca em geral programas que fazem a distinção entre ações
de educação e de instrução, além de valorização das tradições culturais locais em seu
valor educativo e integrador. No Brasil, as experiências fundamentadas no paradigma da
Educação Popular representam situações em que o Estado atuou com esse tipo de
arranjo. É fundamental destacar ainda que, nessa abordagem, o Estado tem um papel
97
planificador e interventor, diante dos desafios postos à ampliação da esfera democrática
e dos riscos sempre presentes nas lógicas burocráticas de gestão.
O Modelo da Modernização e Centralidade do Estado pode ser caracterizado
como uma versão mais intervencionista da ação estatal, baseada na lógica de que a
Educação deve fortalecer o processo mais amplo de acumulação e legitimação do
sistema econômico (LIMA; GUIMARÃES, 2011, p.48). É a atuação do Estado
condizente com o agenciamento da relação capital e trabalho desenvolvido na lógica da
social democracia. Associado ao ideário liberal humanista, entende que: “As education
is an essential pillar of social policies in the construction of a democratic capitalist state,
it involves a set of processes that are directed at ensuring equal opportunities for
everyone, especially for those who are less able to get education and training.”21
(LIMA; GUIMARÃES, 2011, p.48).
Trata-se do modelo de Estado fortemente interventor, produtor de políticas
universalistas e dirigidas para finalidades amplas em torno da elevação da escolaridade
obrigatória e da inserção rápida de adultos nos sistemas produtivos. Segundo Lima e
Guimarães (2011, p.49), nessa versão, as políticas de Educação de Adultos estão
focadas em sistemas educacionais encarregados de certificação, e raramente conferem
prioridade às ações de educação não formal. A Educação de Adultos é definida pelo
mínimo que pode oferecer aos indivíduos, atendendo a uma lógica que poderíamos
identificar no paradigma da suplência pelo qual a Educação de Adultos foi, durante
muito tempo, compreendida no Brasil. Completando o quadro, ao lado de intervenções
pontuais e compensatórias, esse modelo de Estado também promoveu maior ênfase nas
práticas de formação para o trabalho.
O modelo de Gestão de Recursos Humanos agencia a relação da educação com o
trabalho de um modo diferente do modelo citado anteriormente. Enquanto no modelo
social democrata, ou de centralidade do Estado, essa relação é mediada pelo Estado e
associada à noção humanista de direitos sociais, nesta versão o Estado passa a perceber
a educação de forma mais visivelmente instrumentalizada, e mais submetida aos
princípios do crescimento econômico e competitividade (2011, p. 57).
21
Tradução nossa: Uma vez que a Educação é um pilar essencial das políticas sociais na construção de
um Estado de democracia capitalista, ela envolve um conjunto de processos que são dirigidos a garantir
iguais oportunidades para todos, especialmente para aqueles que são menos capazes de ter educação e
treinamento.
98
Correspondendo ao ideário neoliberal e atuando na conjuntura da reestruturação
produtiva pela qual passou o capitalismo em meados do século XX, essa perspectiva
privilegia a lógica individual e compreende que o Estado deve deixar de prover os
serviços básicos e envolver-se com a regulação dos processos de oferta e demanda
desses serviços pelo mercado, que passam a ser entendidos como regras de distribuição
social do acesso aos direitos, como qualquer outra mercadoria. Segundo os autores,
“Public policies influenced by this model embrace priorities in which an essential aspect
is the promotion of 'employability, competitiveness, and economic modernisation'.”22
(LIMA; GUIMARÃES, 2011, p. 56).
Uma característica da Educação de Adultos sob esse modelo é o fato de que uma
grande parte do seu público encontra-se em condições muito desvantajosas para
participar de um mundo competitivo, de alta tecnologia, de mudanças contínuas nos
modos de produção. No entanto, esses sujeitos e suas necessidades educacionais estão
inseridos numa lógica que anuncia a “aprendizagem ao longo da vida” como uma
responsabilidade do próprio indivíduo. Como afirmam Lima e Guimarães (2011, p. 28):
“In the face of ‘crisis’ and the emergence of the neo-liberal state, the public provision of
adult education has been progressively conceived as lifelong learning, as an individual
matter, and as experience and moments of learning occuring in non-formal or informal
contexts.”23
No marco das políticas neoliberais, foi produzida uma clivagem central ao
campo da Educação de Adultos ao longo do século XX. A primeira identifica-se com a
lógica da Educação ao longo da Vida e com uma discursividade e compromissos
emancipatórios ou liberais humanistas. A segunda utiliza a expressão "aprendizagem ao
longo da vida" e se caracteriza pela subordinação à lógica neoliberal. Essa clivagem
exibe um momento de mudança conceitual importante pelo qual o campo passou, ao
testemunhar a mudança do termo educação para o termo aprendizagem. Essa mudança
se dá no âmbito da discursividade internacional, configurada pelos relatórios, súmulas,
convenções e outros documentos emitidos pelas grandes agências de desenvolvimento,
22
Tradução nossa: "Políticas públicas influenciadas por esse modelo adotam prioridades nas quais um
aspecto essencial é a promoção de 'empregabilidade, competitividade e modernização econômica'." 23
Tradução nossa: "Diante de 'crise' e da emergência do Estado neoliberal, a oferta pública de educação
de adultos foi progressivamente concebida como aprendizado ao longo da vida, como uma questão
individual e como experiência e momentos de aprendizado que ocorrem em contextos não formais ou
informais."
99
como OCDE, UNESCO e OIT24
, e tem ocasião durante a década de 1990. Essa é uma
das lutas do campo dos saberes sobre a Educação de Adultos, uma luta de resistências
críticas ao paradigma social neoliberal.
Os sujeitos altamente autorizados que falam deste lugar internacional são as
instâncias mega ou supranacionais (LIMA, 2012) que constroem diagnósticos de amplo
recorte sobre a Educação de Adultos pelo menos desde os anos 1950, a partir de
informação privilegiada e acesso a uma reverberação potente de suas análises. Seu foco
de incidência política são os governos nacionais que, através de organismos locais como
ministérios de educação, recebem injunções sobre suas políticas a partir das finalidades
definidas alhures.
Essa passagem expressa uma alteração da relação educação/sujeito/poder numa
nova equação, com a incorporação da ideia mais ampla de Educação pela ideia mais
específica de aprendizagem. A educação aparece subordinada à aprendizagem, o sujeito
individual torna-se o foco e principal gestor de sua aprendizagem, o Estado se desobriga
de uma oferta educacional massiva, uma vez que “toda a sociedade e todas as
experiências sociais contribuem para a aprendizagem e desenvolvimento do sujeito” e
novos sujeitos institucionais ganham destaque na cena da provisão de serviços.
O trabalho por uma escolarização de adultos que contemple a noção de direito de
forma substancial e pertinente ― ou seja, que garanta o acesso à educação básica em
condições de igualdade e isonomia ― sofre uma alteração nesse cenário, pois a lógica
universalista que preside esse tipo de serviço se desfaz e novos modos de oferta
educacional são desenhados. No contexto internacional, isso significou a alteração do
modelo de atuação dos Estados, ocasionando um novo tipo de oferta de Educação de
Adultos, segundo a qual: “The neo-liberal state denotes a change in the state’s role in
AE as it shifted from being a service provider to being a service coordinator for
customers of decentralised and fragmented education and training systems."25
(LIMA,
2011, p.26).
24
Respectivamente, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Organização das
Nações Unidas para Educação e Cultura e Organização Internacional do Trabalho. 25
Tradução nossa: "O Estado neoliberal denota uma mudança no papel do estado na Educação de Adultos
ao converter-se de um provedor de serviço para ser um coordenador de serviço para clientes de uma
educação e sistemas de capacitação descentralizados e fragmentados."
100
No Brasil da década de 1990, observamos que o Programa Alfabetização
Solidária configurou-se como um exemplar típico desse modelo. Segundo Traversini
(2003, p.200),
A diluição da responsabilidade do Estado fez com que se inventassem
outros arranjos para resolver os problemas do analfabetismo no país.
As práticas solidárias da adoção de analfabetos/as e da instituição de
parcerias, a multiplicação de sujeitos solidários e o empresariamento
da erradicação do analfabetismo são exemplos desses novos arranjos
inventados para governar.
A inscrição neoliberal se confirma inclusive pela valorização das iniciativas
locais, baseadas em background cultural e expertise de mobilização das redes
comunitárias.
As ações de alfabetização no Brasil desde a década de 1990 passaram de um
modelo de natureza gerencialista, no marco das políticas neoliberais então em vigor em
toda América Latina (BARREYRO, 2010), tendo como expoente o Programa
Alfabetização Solidária, para um modelo mais centralizado, com a implementação do
Programa Brasil Alfabetizado, a partir de 2003. Embora haja muitas semelhanças entre
os dois programas, cada um equaciona a relação entre Estado, Sociedade e Mercado de
forma específica, denotando não apenas um modelo de políticas públicas, mas uma
forma de exercício de poder.
No tocante à relação entre Estado e organizações da sociedade civil, é
importante reconhecer que elas tiveram no Brasil um papel estratégico na luta pelo
direito à educação de pessoas adultas, e mesmo na oferta dessa educação. A
legitimidade da escolarização na oferta de alfabetização e de escolarização é
problematizada pela presença dessas organizações. Desse modo, no Programa
Alfabetização Solidária, a presença das ONGs era parte de uma estratégia que se
aproxima do modelo de Gestão de Recursos Humanos, posto que a própria gestão da
política de alfabetização, ao nível macro foi transferida para uma organização com esse
cariz. Predominavam então as lógicas de autonomia, criatividade, esforço local, com
repasse de recursos pelo Estado e angariação de uma lógica de filantropia em torno da
provisão de educação.
101
Já o Programa Brasil Alfabetizado parecia em seu início representar uma ruptura
com o modelo anterior. Construído para ser a resposta de um governo de esquerda para
o problema do analfabetismo, esse programa passou a uma estrutura organizacional em
que o Estado reassume uma função diretiva clara sobre o enfrentamento à questão do
analfabetismo. Os parceiros prioritários passam a ser os municípios e estados, reduzindo
substancialmente o papel das ONGs na execução do programa. Segundo Henriques
(2006, p.30),
O Programa Brasil Alfabetizado recolocou a alfabetização de jovens e
adultos como prioridade na agenda educacional do País. Ao tomar esta
iniciativa, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da
Educação, chamou para si a responsabilidade política e constitucional
de induzir, sustentar e coordenar um esforço nacional de
alfabetização, adotando uma nova concepção de política pública que
reconhece e reafirma o dever do Estado de garantir a educação como
direito de todos.
Nesse formato, uma lógica de Estado forte e intervencionista evidencia uma
conexão com o modelo de Centralidade e Modernização do Estado, ainda que os
documentos oficiais afirmem o contrário:
No que se refere à forma de implementação, a ação foi desenhada
descentralizada, com participação direta de Estados, Distrito Federal e
municípios, permitindo o aproveitamento da experiência dos diversos
parceiros e o respeito à diversidade das realidades locais. Além disso,
garantiu-se a pluralidade de métodos pedagógicos. O MEC passa a
definir parâmetros gerais de qualidade, via resolução publicada no
Diário Oficial, sem direcionamento a qualquer metodologia
específica. (HENRIQUES, 2006, p.31).
Nessa versão de campanha de alfabetização, os municípios realizam uma
“adesão” e de certo modo “contratam” do Governo Federal a execução da política
pública de alfabetização, num modelo que tem uma série de justificativas do ponto de
vista das relações burocráticas de controle dos recursos do Estado, mas que, no fundo,
parecem corresponder ao ideário de um Estado regulador tipicamente neoliberal. Na
“troca”, os entes executores possuem muitas responsabilidades e uma pequena margem
de adaptação da execução ao seu contexto, prioritariamente delimitada às opções
“pedagógicas”. Nesse modelo, os municípios são deslocados para uma função quase
102
“terceirizada”, uma vez que se encontram inseridos numa lógica que controla o tempo
de atuação e, portanto, as práticas.
O arranjo prevê uma flexibilidade pedagógica ao lado de um compromisso
estruturado em torno do atingimento de metas quantitativas (HENRIQUES, 2006, p.31;
ULYSSEA, 2006, p.151). Esses dois elementos, flexibilidade e controle de outputs
quantitativos, inscrevem esse programa numa racionalidade que não é mais a das
políticas de Centralidade e Modernização do Estado, mas de Gerenciamento de
Recursos Humanos, demonstrando a complexidade das práticas, tal como alerta Lima
(2011).
No entanto, essa racionalidade é desestabilizada por um fator preponderante: as
populações atendidas pelos programas de alfabetização não estão socialmente
localizadas no campo da empregabilidade como pressupõe a lógica neoliberal dos
modelos de Gestão de Recursos Humanos. Os adultos não alfabetizados compõem a
economia, colaboram para ela, mas pelas suas margens. Não fazem parte do sistema
central das relações de consumo, participam delas através das diversas economias que
vão se constituindo na informalidade, na contracorrente da sobrevivência em meio à
reformulação estrutural do campo do trabalho (ANTUNES, 2008).
Os adultos estão inseridos nas arestas desse sistema econômico e por isso o
acesso à alfabetização como acesso à mobilidade social ou à empregabilidade parece
não funcionar como argumento suficiente de tais políticas. Restariam então os
argumentos clássicos da emancipação política e o argumento da inserção cidadã. Há, no
entanto, um quarto elemento que chamamos de argumento biopolítico e está relacionado
ao controle, ou seja, tais políticas estariam inseridas numa lógica de regulação que se
institui através do dispositivo da alfabetização e do dispositivo da escolarização.
Ao longo do desenvolvimento histórico desses modelos de apresentação da
estatalidade, o lugar instrumental dessas políticas é acompanhado pelas discursividades
que ininterruptamente acompanham as práticas de execução da Educação de Adultos.
As políticas discursivas do constrangimento e do abandono conseguem metamorfosear-
se ao longo do século XX, ganhando os contornos necessários para manterem-se no
horizonte da Educação de Adultos e acionando inclusive esses diferentes modos de
operação para que atuem a partir dessa oikonomia geral do poder que relaciona sujeito e
Estado no campo da Educação de Adultos.
103
2.4. Poder dizer sobre Educação de Adultos: elementos do debate
epistemológico
O homem é uma corda estendida
entre o animal e o Super homem:
uma corda sobre um abismo;
perigosa travessia, perigoso caminhar;
perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
(Zaratustra)
O tema geral da Educação de Adultos pode ser sistematizado em duas linhas
mestras: de um lado um paradigma de cariz emancipatório, pelo qual o projeto
iluminista se apresenta a partir do compromisso entre conhecimento e emancipação
(BRAYNER, 1995); de outro, um paradigma da ordem e da integração, oriundo da
subordinação do conhecimento à instrumentalidade econômica. O que esteve em jogo
nesse debate foi a direção do processo de educação por uma via libertadora, ou por uma
via conservadora, ou direita ou esquerda, ou progressista ou tradicional, ou bancária ou
crítica. Na atualidade, ou educação ao longo da vida ou aprendizagem ao longo da vida.
A Educação de Adultos é acompanhada no contexto latino-americano pelo
paradigma da Educação Popular, que lhe confere um marco normativo de práticas, um
sujeito a quem se dirige, um programa de ação e um horizonte político que estabelece
uma peculiar articulação entre sujeito e escolarização. Educação popular também
representa a “educação pobre para pobre” nas versões estatais liberais. E vem sendo,
entretanto, um ambiente crítico desde onde se olha para as práticas educacionais
visando à sua problematização.
Esse debate ganha muitos contornos porque a realidade não é pura e límpida,
mas convulsionada e, conforme a perspectiva de Souza (2004), os modelos escolares
são produzidos pelas lutas políticas, emergem como acontecimentos do embate cultural
a respeito da melhor forma de direcionar as mentes, almas e corpos através da educação.
Os paradigmas emancipatórios e conservadores de Educação de Adultos envolvem
outros tipos de polarização que não se resolvem por exclusão mútua, mas por
correlações que dão forma às práticas, pois, segundo Souza (2000, p.13),
A reflexão política pode ser feita sem se falar da aquisição dos
códigos alfabéticos; a conscientização se dá em processos de
104
transformação cultural. A politização se faz através da ação
organizada e não das letras. Mas parece poderem as letras contribuir
para a compreensão da política e da economia, ainda que a capacidade
política e econômica do domínio da leitura e da escrita do código
alfabético não seja evidente. No entanto, no contexto atual, torna-se
uma questão de sobrevivência.
O embate entre esses paradigmas parece encontrar um desafio considerável
quando nos referimos ao processo em que pessoas adultas, dotadas de experiência e
saberes, histórias e desejos desenhados numa trajetória de diálogo com a vida,
participam das práticas que chamamos de Educação Escolar.
Nem sempre houve escolarização de adultos. Mas sempre houve Educação de
Adultos, sendo ela um lugar de direção de consciências, corpos e almas. O que eram as
academias gregas? E o que eram os monastérios medievais e os templos japoneses do
Budismo Zen ou do Budismo Tibetano senão espaços formativos para pessoas adultas?
Quando Nietzsche diz, pela boca de Zaratustra, que o homem é uma corda
estendida sobre um abismo, ele nos recorda o aspecto perigoso do viver e o aspecto
perigoso, ainda mais para o Estado, de seres viventes que se constituem como sujeitos
através da reflexão de suas experiências de alegrias e dores. O poder precisa intervir
nessas experiências, orientá-las, dar forma a elas, conceder-lhes uma linguagem,
alimentá-las com conceitos da certeza e do erro, do bem e do mal, da lei e da ordem. Ou
da consciência e alienação, da emancipação e opressão, da crítica ou da obediência, da
servidão ou da revolução. A educação é uma forma de afastar os perigos, esses e mais
alguns outros.
A educação de crianças foi pensada para evitar que os sujeitos criassem
demasiadas compreensões sobre a vida aquém dessas orientações e esclarecimentos
fornecidos pela luz do conhecimento. E a Escolarização de Adultos foi desenvolvida
também como uma forma de evitar os perigos inerentes à vida vivida de tantas pessoas.
Deixar que as pessoas escolham seus caminhos não é necessariamente uma finalidade.
Reconhecer que são capazes de bem viver sem os conhecimentos escolares não é uma
hipótese viável. O que se tornou viável foi a necessidade de inserir a todos na norma da
cultura escrita, no modo de vida ocidentalizado e na condição política da cidadania.
Referimo-nos ao fato de que o Brasil produziu uma escolarização de adultos, um
certo modo de Educação de Adultos, no qual, a despeito da tradição da Educação
Popular, da participação ampla de setores progressistas na definição de políticas, do
105
forte apelo por especificidade, o que se consolidou foi o modelo de uma escola
tradicional, conservadora, diretiva. Que cruzamentos são esses entre tantas linhas de
força, que o diagrama final redunda na produção de tempos escolares reduzidos, em que
menos de 20% das pessoas obtém a certificação prometida e esperada, em que as
promessas de melhoria de vida e ampliação das expectativas nunca parecem se realizar
ou realizam-se de forma episódica?
Vamos olhar mais de perto algumas das contribuições teóricas ao campo da
Alfabetização de Adultos, visando a apreender de que forma os paradigmas se
imbricaram, na luta interna pela definição desse modelo, bem como de que modo essas
propostas foram acomodadas no interior de um projeto de governamento neoliberal das
populações não alfabetizadas. Salientamos que o enfoque dado à questão da
alfabetização vincula-se com o seu lugar estratégico no processo de constituição da
escolarização de adultos. Se há uma escolarização como tema hoje, é porque houve uma
disciplinarização do campo de estudos sobre alfabetização de adultos que mobilizou a
emergência da escolarização.
A escolarização de pessoas adultas constitui-se como um campo de práticas e
um campo do saber consolidado pelo volume e constância das produções teóricas. Esse
campo é multidisciplinar a partir da interlocução com ambientes teóricos afins à
pedagogia, como a sociologia e a filosofia, que fornecem material crítico reflexivo para
pensarmos conceitos centrais à educação, como sujeito, saber, razão, cultura e poder.
Para Canário (2013, p.18), a Educação de Adultos é um campo, na medida em que
possui “uma realidade social de práticas educativas com características próprias,
susceptíveis de uma delimitação temporal, geográfica e institucional, de uma descrição
compreensiva e não arbitrária”.
O debate filosófico sobre a Educação de Adultos trabalha com questões como
concepções de sujeito e saber, saber e poder, bem como as justificativas e finalidades
das práticas de Educação. Investigando as peripécias das concepções, a filosofia nos
desnuda o substrato de formas tomadas como evidentes e nos anuncia os problemas
sobre a relação do sujeito com a escrita, com o tempo e com a razão. Já a reflexão
sociológica sobre a alfabetização de adultos, por sua vez, vem se dedicando a investigar
os caminhos de integração e exclusão social, as concepções de Estado e suas
implicações para as práticas de escolarização, o papel da escola nos processos de
106
mobilidade social ascendente, produção de capital cultural e de subjetividades. Os
estudos de teoria do ensino avançaram em compreensões sensíveis e focalizadas nas
especificidades da aquisição da escrita pelo sujeito adulto, dedicaram-se ao mapeamento
e sistematização de práticas e vem dando contribuição à superação do infantilismo que
permeou por décadas as práticas de ensino com adultos.
Os estudos sobre escolarização de adultos preocupam-se com a escola como
instituição; com as políticas públicas de educação para pessoas adultas; os indicadores
dessa escolarização; sua participação nos processos de inclusão e exclusão social; o
tema do desenvolvimento, o papel de atores nacionais e internacionais na promoção
dessa educação, o papel do currículo e da escola como espaços de poder; a incidência da
escolarização para populações específicas. Ocupando-se também do tema da cultura, o
campo sociológico produziu farta documentação sobre essa modalidade educacional.
Neste item, faremos uma breve passagem por esse campo com a finalidade de
delinear algumas interlocuções do nosso trabalho com outros estudos da área. Sem a
pretensão de uma recensão exaustiva, selecionamos alguns estudiosos cujas questões
nos interessam, seja pela sua inscrição em uma tradição de estudos sobre o tema, seja
pela aproximação de abordagens ou argumentos.
Os dois temas prioritários dos estudos de Educação de Adultos, durante os anos
1960 e 1970, foram a articulação entre os temas da alfabetização e da escolarização com
a questão do desenvolvimento. Se alfabetização já foi considerada como passagem do
estado de barbárie para o estado de civilização, com a mudança discursiva e conceitual
que se inaugura nessas décadas, passa a ser entendida como passagem de uma condição
subdesenvolvida para o desenvolvimento. No centro desse debate, as populações
acionadas pelo dispositivo da campanha. Como principais interlocutores desse campo, a
ONU e os Estados nacionais em meio a um contexto de pós-guerra (mais pertinente aos
países do Hemisfério Norte), e o avanço das ditaduras no contexto da América Latina.
No campo econômico, o avanço do consenso internacional do capital em torno das
políticas neoliberais. Na geopolítica mundial, a clivagem da Guerra Fria.
Neste estudo, partimos da concepção de que alfabetização é uma prática
escolarizada e escolarizante que se encontra vinculada ao direito à Educação como parte
de uma estratégia que envolve conquista de espaços e formas de governamentalidade. A
alfabetização, numa sociedade que tem a escrita como norma, é condição de acesso a
107
um acervo de saberes/poderes estratégicos para a obtenção de direitos, fortalecimento de
lutas e empoderamento diante das opressões. Logo, a alfabetização se justifica enquanto
etapa de acesso à escolarização como o processo que tem por meta prover os saberes
poderosos para a produção de relações mais horizontais dentro do jogo democrático. No
marco das análises biopolíticas que aqui realizamos, sustentamos que a alfabetização
plena das sociedades se constitui como uma retórica a sustentar um dispositivo de
governamento que aciona populações em torno do projeto de escolarização da
modernidade, que não corresponde necessariamente à alfabetização que as populações
poderiam solicitar para sua “emancipação” política.
No entanto, não é consensual a inscrição da alfabetização como parte da
escolarização para pessoas adultas, isso em decorrência do fato de que o próprio campo
da Educação de Adultos é composto por imensa diversidade de práticas e muitas delas
inscritas no âmbito não escolar da Educação. Canário (2013) faz referência ao fato de
que a Educação de Adultos é um campo de práticas dentre as quais a alfabetização é um
dos seus exemplares. Para o autor, a alfabetização e a escolarização não se sobrepõem
(2013, p. 47). No entanto, no contexto latino-americano e especificamente brasileiro, a
conjugação das práticas de alfabetização com as práticas de escolarização representa
uma estratégia política de inserção das populações que demandam a Educação como
direito.
A dicotomização da alfabetização em relação à escolarização contribuiu com a
predominância das campanhas como dispositivo central de oferta educacional para as
populações consideradas não alfabetizadas ao longo de todo o século XX. O
reducionismo da alfabetização a um exercício de aquisição de regras para o
deciframento de um código produziu uma forma de verdade circulante entre
governantes e governados a partir da qual iniciativas intempestivas, de baixo custo,
realizadas por voluntários sem formação específica e em tempos reduzidos garantiria a
passagem das populações ao estado de civilização e do País ao estado de
desenvolvimento. Como informa Beisiegel (2004, p. 76), a respeito da emergência da
Educação de Adultos no Brasil, ainda no período do Império, “Os cursos de adultos
poderiam ser instituídos com um pequeno acréscimo de despesa, funcionando nos
prédios escolares existentes, sob a responsabilidade de professores das mesmas escolas,
mediante ‘razoável’ gratificação”.
108
O mesmo autor salienta que a Educação de Adultos passa a ser assumida como
problema nacional a partir da década de 1940, e a partir daí o ambiente para a instalação
de dispositivos biopolíticos se faz mais adequado. Primeiro, porque há um substancial
aumento das populações urbanas; segundo, porque o Estado se organiza cada vez mais a
partir de lógicas liberais; terceiro, porque o processo desenvolvimentista do período
exigia a ampliação quantitativa da instrução básica da população. Nesse momento,
“todos os brasileiros analfabetos, nas cidades ou nos campos, conscientes ou não dessa
necessidade, deverão ser alcançados pela escola” (BEISIEGEL, 2004, p.78).
Logo, o problema da alfabetização não pertence inicialmente aos sujeitos não
alfabetizados, é antes um problema de Estado desde seu aparecimento enquanto prática
discursiva na sociedade brasileira. Essa é a versão de educação popular como “uma
educação concebida pelas ‘elites’ com vistas à preparação do ‘povo’ para a realização
de certos fins” (BEISIEGEL, 2004, p.42). A integração dessas populações ao projeto de
desenvolvimento do país passou por uma estratégia de normalização sob o signo da
pessoa alfabetizada, ao lado de opções operacionais que garantiram a realização precária
dessa integração e, portanto, uma localização subordinada nesse projeto.
A racionalidade do precário na Educação de Adultos é sustentada pela crença na
necessidade de baixos investimentos, na opção por instrução elementar, na urgência em
atingir as massas, na subjetivação do analfabeto como ignorante, na postergação do
acesso a outras etapas de ensino, na opção pelo educador leigo. Beisiegel (2004, p.113),
embora com outro quadro conceitual, identifica a disposição biopolítica do processo de
alfabetização desenvolvido no Brasil representado pela Campanha Alfabetização de
Adolescentes e Adultos, de 1947: “A elevação do nível educacional das localidades e,
em particular, o maior domínio das técnicas básicas de comunicação criariam novas
condições de organização da vida coletiva e tornariam as populações mais permeáveis
às pressões modernizadoras”. É com tal racionalidade, fundada no precário, no urgente,
e orientada pela finalidade de integração ao processo de desenvolvimento econômico
que o campo da Educação de Adultos vem se debatendo, e defendemos que a dicotomia
entre alfabetização e escolarização de adultos é um dos elementos que sustenta tal
racionalidade.
O que estava em jogo não era necessariamente a disputa entre diferentes projetos
de desenvolvimento, embora agonismos locais estivessem presentes nas disputas entre
109
grupos pela liderança desse processo (o que não quer dizer, exatamente, que havia
vários projetos em disputa). Do ponto de vista das populações que naquele momento
passam a ser chamadas pela alcunha de analfabetas, esse projeto era apenas um e
correspondia à sua inserção subordinada, através da educação, ao horizonte de uma
provável cidadania.
Para Parajuli (1990, p.326),
esas nociones elementales (leer, escribir y hacer operaciones
aritméticas sencillas) son el resultado de uma compleja trama de
tensiones contradictorias entre el saber y el poder, el Estado y la
población marginada por las políticas desarrollistas.
O que esse autor salienta é que a alfabetização, e os dispositivos acionados para
efetivá-la, não se podem realizar de maneira emancipatória se elas atuam exatamente
sobre os efeitos do desenvolvimento e não sobre suas causas. Esse argumento salienta,
sobretudo, a natureza retórica das práticas de alfabetização de adultos configuradas nas
campanhas. A não participação das populações não alfabetizadas nos projetos de
desenvolvimento, como sujeitos de saber e poder desses projetos, é causa e não efeito
do analfabetismo de massas. Essas populações nunca estiveram contempladas nos
projetos de desenvolvimento de outra forma.
Desconstruindo por fora a lógica iluminista da emancipação através do
conhecimento, Parajuli (1990, p.331) reflete que: “Sólo es posible apreciar ese saber
popular renunciando a la concepción estática, según la cual la gente es consciente, y por
tanto revolucionaria, o bien inconsciente y tranquila”. O antropólogo nepalês afirma que
na equação entre saber, poder e desenvolvimento um longo processo de deslegitimação
do saber popular das populações não alfabetizadas é constantemente realizado. Alega
ainda que as pedagogias críticas da alfabetização, as de base freiriana inclusive, se
encontram por demais fundadas sobre os mesmos pressupostos racionalistas que
sustentam os projetos desenvolvimentistas. Isso se observa quanto às definições de
desenvolvimento, progresso e mudança latentes no pensamento do pedagogo
pernambucano e distribuídas por toda a obra, mas formuladas com especial atenção na
Pedagogia do Oprimido (1990, p.332).
A verdade poderosa com que a Pedagogia do Oprimido configura o próprio
sujeito e a necessidade de sua conversão são aspectos que não podem ser abstraídos
110
como elementos periféricos, pois, conforme defende ainda Parajuli (1990, p.334), lo que
tiene que hacer la alfabetización en el decenio de 1990 no es cambiar la conciencia de
los llamados analfabetos ni lo que tienen en la cabeza, sino cambiar "el régimen
político, económico e institucional de producción de la verdad", e salientamos: da
verdade sobre o saber e o sujeito escolarizado.
Nesse sentido, a alfabetização é menos do que diálogo entre saberes diferentes,
configurando-se mais como um enfrentamento do qual o saber popular sai muitas vezes
subalternizado. Por outro lado, as formas múltiplas do saber e as verdades perspectivas
que as acompanham, como verdades de mundividências diversas do pensamento
ocidental hegemônico, precisam encontrar as formas de se expor e manifestar, e a
estrutura escolar não tem sempre conseguido ser esse espaço. Mais uma vez, o saber dos
oprimidos não é apenas uma consciência ingênua ou mágica que precisa ser
“melhorada” em consciência crítica, é uma forma de saber que precisa entrar no regime
dos poderes a partir de outras posições estratégicas. Isso significa abandonar
perspectivas colonialistas de conhecimento, como o regime de verdade da ciência
moderna e mesmo a crença na escrita como forma superior de articulação entre
pensamento e mundo.
Logo, temos que a tensão entre os saberes locais das comunidades e pessoas não
alfabetizadas e os saberes dos programas-campanhas de alfabetização e, por extensão,
da escolarização de adultos, reflete uma tensão no plano teórico com o universalismo da
razão moderna, e com a ciência e instituições que lhe são herdeiras.
É importante compreender esse aspecto para podermos pensar que, na passagem
da estratégia da alfabetização para a estratégia da escolarização, no campo da Educação
de Adultos, essas tensões não se resolvem, mas se aprofundam. Ao questionarmos esses
fundamentos e a sua presença entre discursos altamente legitimados, o que se pretende
não é uma crítica local, mas uma desorganização crítica das verdades em torno da
escola. Nesta tese, as cronologias escolares dos estudantes da EJA, discutidas no
capítulo 5, representam outro tipo de argumentação, de natureza empírica, nessa
direção.
Se na década de 1940 os problemas da alfabetização não estavam tão
equacionados ao nível internacional, observamos, na análise dos documentos finais das
Conferências Internacionais de Educação de Adultos, que, ao longo da década de 60 e
111
70 daquele século, o olhar sobre a produção social do analfabetismo se aprofunda, bem
como as ferramentas teóricas para propor novas questões.
Quando, em 1976, o iraniano Majid Rahnema (1976, p. 72) propõe a questão
“Literacy for what?”, é bem o zeitgeist dessa década que se faz presente perscrutando os
problemas da alfabetização a partir do desencanto com a racionalidade moderna do pós-
guerra, das críticas ao universalismo, produzidas ao longo da década de 1960, e da
emergência da questão do desenvolvimento, que atuou como mecanismo de
classificação (e, logo, de hierarquização e subordinação) das sociedades a partir do
paradigma econômico.
A vitalidade de tal racionalidade classificatória pode ser compreendida mais
amplamente, e sem dúvida o índice de alfabetização das sociedades manteve esse
quadro funcionando tanto do ponto de vista interno (população alfabetizada e não
alfabetizada) quanto externo aos países (desenvolvidos e subdesenvolvidos). O índice
de alfabetização, no sistema de razão que compõe o cenário discursivo da Educação de
Adultos, constitui um eixo de veridição dos Estados e sujeitos.
Majid Rahnema é crítico da articulação alfabetização e desenvolvimento, assim
como o nepalês Pramod Parajuli e o também iraniano Munir Fasheh; para este último
“Após cinquenta anos transformando a maioria das sociedades em ruínas
socioeconômicas, o desenvolvimento é ainda considerado, principalmente pelos
escolarizados, liberdade e um sonho!” (2004, p.166). Essa crítica só poderia vir das
margens, de pessoas iranianas, nepalesas, brasileiras, mexicanas, argentinas, africanas,
que contribuem para produzir um pensamento desestabilizador das categorias
universalistas que sustentam o projeto de escolarização da modernidade e sua longeva
aplicação entre nós na sustentação da escolarização como um dispositivo de
governamento.
O problema biopolítico da escolarização relaciona-se diretamente com esse tipo
de reflexão, com a ocupação do lugar da razão universal pelas racionalidades locais, e
dessa forma a pergunta que ainda nos ocupa na atualidade parece ser a mesma lançada
por Rahnema: escolarização para quê? O que esses argumentos sobre desenvolvimento
noticiam é a existência das lutas silenciadas sobre esse projeto e o incômodo
fundamental que nos aflige é: por que continuamos insistindo em projetos dessa
natureza?
112
O abandono de uma estratégia se dá virtualmente por duas razões: ou as
condições se alteram, ocorrendo uma mudança das regras do jogo de tal modo que seja
preciso acionar outros dispositivos, logo, a estratégia perde sua eficácia, ou as
finalidades que se buscava com aquela estratégia são atingidas e passa-se a outro tipo de
estratégia. Se a escolarização, como defende Graff (1994, p.68) “era útil ao treinamento
eficiente da população para a ordem social”, isso no âmbito do pensamento liberal
clássico, possivelmente a manutenção de investimentos discursivos sobre escolarização
sem uma alteração profunda nas relações de poder sustenta finalidades similares.
Recordo a esta altura que a educação escolar responde virtualmente a três
grandes estratégias de controle, numa perspectiva foucaultiana: o controle disciplinar
dos corpos e dos saberes produzidos sobre o sujeito pela Pedagogia e ciências afins, o
controle governamentalizado dos dispositivos de conduta da população acionados pela
escolarização e a normalização da relação ética do sujeito de si para si. Desse modo,
havendo atualidade no uso destas ferramentas, podemos intuir a atualidade das
finalidades a que correspondem. Mas a biopolítica vai mais adiante do que promover a
coesão social: ela trata de produzir a vitalidade necessária ao regime político em ação e
garantir a gestão adequada do princípio de “deixar morrer”.
Esse espectro das relações de poder com as políticas de escolarização de adultos
(aqui políticas em sentido foucaultiano, como conjunto de táticas locais que se
relacionam com estratégias mais gerais de poder) é acompanhado, segundo Graff
(1994), pelos mitos criados em torno do problema da alfabetização em geral, que no
âmbito sócio histórico são articulados com a superestimação das qualidades da
alfabetização, e escolarização dela decorrente, como mecanismo gerador de democracia,
igualdade e integração econômica dos sujeitos. Exemplificando esses mitos, Graff
reflete que os mecanismos que justificaram a alfabetização das massas, nos séculos XIX
e início do XX, estavam mais ligados a estruturas conservadoras que revolucionárias.
Para o pesquisador estadunidense,
O poder do currículo moralmente guarnecido e moralmente baseado
que forneceu a substância do ensino alfabetizador, a experiência do
próprio treinamento, as estruturas institucionais explícitas e implícitas,
tudo combinado com as inseguranças econômicas e a pobreza dos
trabalhadores e dos pobres – e com os mecanismos de controle muito
mais abertos e óbvios – para evitar explosões revolucionárias.
(GRAFF, 1994, p. 81).
113
No conjunto de estudos que se dedicam a analisar o problema da alfabetização,
tornou-se mais presente, a partir dos avanços da sociolinguística nas décadas de 1960 e
70, a inserção de questões da ordem da aprendizagem vinculadas aos usos sociais da
escrita escolar ensinada em campanhas ou em escolas e suas relações com as vidas
cotidianas das pessoas envolvidas na escolarização. Essa abordagem enfatiza “os
processos pelos quais a alfabetização é construída na vida diária, através de
intercâmbios interacionais e da negociação de significados em muitos contextos
diferentes.” (COOK-GUMPERZ,1991, p.12).
Desenvolvendo o argumento de que a relação entre alfabetização e escolarização
não pode ser tomada de forma linear, como causa e efeito, e aprofundando a reflexão de
Graff a respeito dos interesses envolvidos no projeto de alfabetização plena das
sociedades, e ainda, localizando a relação entre tal “ideologia” e os estudos que
demonstraram existir nos países industrializados uma presença da escrita em práticas
sociais não escolarizadas, Cook-Gumperz (1991, p.35) defende que “a introdução da
escolarização deve ter tido, e certamente teve, outras finalidades além da
alfabetização.”.
As pesquisas de natureza sociolinguística realizadas por métodos e abordagens
antropológicos e sociológicos evidenciaram que o argumento cultural também deveria
ser levado em consideração em relação à disseminação das práticas de alfabetização das
sociedades. O argumento cultural refere-se ao fato de que algumas sociedades, que
alfabetizaram suas populações antes mesmo do processo de industrialização massiva do
século XIX, fizeram-no por razões de ordem religiosa, cultural ou motivações de
natureza nacionalista, como afirmação de línguas nacionais ou produção de
pertencimento identitário. Obviamente, essas são questões da ordem do político, no
entanto, não são as configurações do político que estrategicamente localizam na escola
prioritariamente as funções de controle, regulação e normalização social.
Ao lado da postergação dos resultados de aprendizagem e de certificação da
população adulta em processos de escolarização, um dos traços que caracterizam os
dispositivos biopolíticos governantes nesse campo é a restrição, ou seja, um movimento
em que a oferta de conhecimento para essa modalidade educacional é regulada pelo
preceito bastante difundido de que para esse público o currículo tem que ser “resumido”
em relação ao currículo da escola de crianças e adolescentes.
114
Esse traço da racionalidade biopolítica é mais antigo, conforme expõe Cook-
Gumperz (1991, p. 38, grifo nosso), citando um trecho de documento sobre educação
para adultos do século XVIII: “Ao serem alfabetizadas, elas [as pessoas da classe
operária] receberiam ensinamentos sobre os hábitos de produtividade e economia
através de um programa muito restrito de pouca escrita e alguma leitura de textos
religiosos”. Esses aspectos são mais do que uma “ideologia”, ou seja, um conjunto de
crenças que se comporta como verdade, mas uma racionalidade, um discurso
performativo, no sentido de que opera situações no real, preside práticas, direciona
ações e localiza sujeitos nas relações de poder, nesse caso, de modo subalterno.
Cook-Gumperz chama a atenção para a escolarização da alfabetização e seus
resultados de controle da “cultura popular” durante o século XIX nos países que
primeiro se industrializaram, refletindo que a incorporação das práticas de alfabetização
pela escola oficial representou uma viragem nos modos de compreender a relação da
escola com o ensino da escrita, incluindo aí a distribuição regulada desse saber com o
controle do que deveria ser lido, como, por quem e quando. Para a autora, “a
alfabetização escolarizada foi, assim, diferenciada dos usos rotineiros da leitura e
escrita. O que era ensinado através da alfabetização escolarizada não mais era parte de
uma cultura local, de modo que as pessoas comuns tinham menos controle sobre os
produtos de sua própria cultura.” (1991, p.43). Nesse sentido, concordamos com Geraldi
(2000, p.105), quando ele afirma que:
A escrita, exigindo aprendizagem formal e transmissão social
marcada, sofreu um processo de apropriação social por certas camadas
da população que nela foram imprimindo seus modos de apreciação
do mundo, seus modos de falar, suas palavras – no sentido de logos –
de modo que qualquer outra escrita que não se conforme ao discurso
proferido pelas camadas que se apropriaram de um artefato
coletivamente construído é considerada não escrita, quando na
verdade o que se está excluindo são os discursos proferidos e seus
sujeitos sociais.
O questionamento das campanhas e práticas escolarizadas de alfabetização de
adultos foi realizado de modo eficaz pelo campo de estudos chamado em língua inglesa
de “new literacy studies”. Segundo Kelder (1996), esses estudos foram desenvolvidos
sob uma abordagem que combina um modelo antropológico com um quadro de
questões de ordem sociolinguística, formando um campo de pesquisas que produziu
115
farta documentação a respeito dos processos de aquisição e pós-aquisição da
alfabetização em processos escolares e não escolares.
Tais estudos permitiram não apenas problematizar as frágeis bases das
concepções e expectativas ideológicas em torno da alfabetização das décadas anteriores,
como também propor um sem-número de novas questões que paulatinamente foram
incorporadas pelo campo pedagógico, como, por exemplo, problemas de ordem
epistemológica relacionados aos métodos de observação das interações didáticas,
diferentes técnicas de verificação dos níveis de domínio da língua escrita,
desmistificação da eficácia das formas escolares de uso da escrita e ampliação do
entendimento sobre os processos e usos sociais da escrita em comunidades e na vida dos
indivíduos dentro e fora da escola (COOK-GUMPERZ, 1991; STREET, 2003; GRAFF,
1994).
Segundo Street (2003, p.77), essa abordagem “represents a new tradition in
considering the nature of literacy, focusing not so much on acquisition of skills, as in
dominant approaches, but rather on what it means to think of literacy as a social
practice”26
. Para o autor britânico, foi necessário o reconhecimento dos múltiplos
letramentos como um objeto epistêmico que envolve a reflexão sobre as relações de
poder nas práticas de ensino aprendizagem das línguas escritas, configuradas,
sobretudo, na delimitação dos letramentos dominantes e das formas de relação com a
escrita, constituídas como periféricas ou subalternas.
Street problematizou os modelos de alfabetização a partir de duas posições
epistemológicas a respeito da língua e dos usos da escrita. São eles os conceitos de
alfabetização ideológica e autônoma. O paradigma autônomo refere-se à concepção de
que uma alfabetização universalmente tomada como benéfica, destituída de sua
contextualização nos usos sociais, históricos e culturalmente situados seria meramente a
imposição de padrões ocidentais a outras culturas e povos. O modelo das alfabetizações
ideológicas reconhece a variação e a contextualização cultural como pressuposto do tipo
de alfabetização que se oferta, bem como das relações de poder das quais participa. Por
ideológico o autor compreende um tipo de visão de mundo particular que busca se
universalizar em processos de dominação (2003, p.78). Como consequência dessa
26
Tradução nossa: "[...] representa uma nova tradição ao considerar a natureza do letramento, dando
enfoque não tanto à aquisição de habilidades, como nas abordagens dominantes, mas antes ao que
significa pensar o letramento como uma prática social."
116
perspectiva, toda alfabetização está fincada em concepções “verdadeiras” de mundo que
buscam se afirmar diante de outras formas.
No Brasil, o acoplamento da alfabetização à escolarização de pessoas adultas se
deu no marco do argumento sobre a universalização do “direito à educação”. Os
enunciados que defendem tal perspectiva remetem à concepção de que a “alfabetização
é a porta de entrada da escolarização”. Isso significa que lutamos para garantir um
direito mais substancial e resistir à política do precário configurada na racionalidade das
campanhas, mas, simultaneamente, estivemos contribuindo para a inserção das
populações adultas não alfabetizadas no regime de normalização do acesso ao saber da
escrita e outros saberes correlatos. Sem conseguir uma mudança estratégica nos modos
de realização da escola de adultos (na estratégia política que a faz funcionar), o que
obtivemos como resultado parece ser a evasão como marca discursiva da EJA, os
índices elevados de analfabetismo funcional, a baixíssima taxa de aprovação e
certificação escolar nas etapas do ensino fundamental em EJA, e o esvaziamento de uma
lógica de rebeldia popular que virtualmente as pedagogias críticas tencionavam
produzir.
Ao longo do século XX, a escolarização assume o patamar de prática
legitimadora da inserção do sujeito na vida social e da sua inscrição na esfera do
trabalho. Com as mudanças proporcionadas pela reestruturação estratégica da relação
capital-trabalho observadas nos últimos 50 anos, as práticas de escolarização ficam à
deriva na oferta de integração social e moral dos indivíduos à ordem social. Com a
assunção do paradigma das sociedades cognitivas e a produção da lógica de produção
do capital social individual configurada no discurso da aprendizagem ao longo da vida,
os argumentos sobre participação na vida social e promoção do desenvolvimento
comunitário também ficam ampla e, estrategicamente, deslocados.
Esse cenário aponta para uma remodelação daquelas finalidades das práticas de
escolarização, agora num cenário biopolítico. Se antes o discurso da moralização de
uma sociedade ou de integração à ordem econômico-social parecia suficiente inclusive
para construir o processo de legitimação da sociedade escolarizada, o que nos resta hoje
é unicamente a face biopolítica da escolarização, quando direcionada a populações em
condições sociais de inscrição subalterna.
117
O debate sobre escolarização de adultos se avolumou no Brasil a partir da
promulgação da LDB 9394/96, que finalmente reconheceu de forma substantiva o
acesso das pessoas adultas à escolarização e não apenas aos processos alfabetizatórios.
Quando, em fins da década de 1990, o educador pernambucano João Francisco
de Souza, juntamente com uma extensa equipe de colaboradores, cunhou uma proposta
mais abrangente de educação popular para a escola pública, o processo de escolarização
de pessoas adultas ainda não se encontrava consolidado no País. Embora garantido pela
então recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o projeto de
escolarização oficial de jovens e adultos não se encontrava concretizado em âmbito
nacional.
Nesse momento, a assim chamada Educação de Jovens e Adultos passou a ser o
tema central do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e
Adultos e Educação Popular (NUPEP), da Universidade Federal de Pernambuco,
dirigido pelo professor João Francisco de Souza. O Nupep, através da participação
direta de professores e professoras da Educação de Adultos, iniciou a elaboração de uma
proposta pedagógica voltada para a escolarização daquele público. As bases dessa
proposta eram as concepções freirianas de diálogo, cultura e inacabamento, articuladas
num arcabouço teórico que assumiu, a partir da síntese própria de Souza, o conceito de
Ressocialização como fundamento.
A Ressocialização, a despeito do que podem pensar as pessoas que atuam hoje
no campo da educação prisional ou da saúde mental, não se refere à reinserção do
sujeito na vida social após um hiato de convivência. É um conceito, refletido também a
partir da leitura detalhada de Freire, que remete à abertura ontológica da pessoa humana
como ser aprendente, em permanente processo de desenvolvimento de suas capacidades
e possibilidades. Mais do que o retorno após uma ruptura, está vinculado à percepção
das contínuas vivências do sujeito que se aprofundam em sua experiência do social e
para as quais a escola poderia dar alguma contribuição, desde sua tarefa central. A tese
de Souza é que a escolarização de adultos poderia contribuir para “os processos de
socialização que vamos experimentar ao longo de nossa existência, depois do processo
vivido na primeira infância” (2000, p.101). O papel da escola, ou dos saberes e práticas
escolares, nesse processo, é propiciar experiências de recognição e de reinvenção, ou
seja, mudanças nas formas de pensar e de agir sobre o mundo. Segundo Souza, se estes
118
dois processos foram vivenciados, o sujeito reconstrói sua inserção na vida social e se
ressocializa.
Partindo de um comprometimento com as lutas populares e com a classe
trabalhadora, Souza acompanha a compreensão dos educadores da década de 1980/90
pela qual a escolarização das classes trabalhadoras assume papel estratégico na luta de
classes. O tema gerador dessa fase é justamente a “escola pública de qualidade para
todos”. Já não é mais o analfabetismo a questão, embora ainda seja um problema àquela
altura, mas o direito à educação, que passa a ser compreendido como direito à escola de
qualidade, gratuita e universal. Nessa perspectiva, Souza considera que a educação
escolar pode se configurar numa síntese melhorada do modelo bancário de escola a
partir das contribuições da Educação Popular.
A Educação Popular como pedagogia, práxis e utopia, como narrativa
libertadora, está associada ao ideário emancipatório da modernidade e se vincula à
proposta de conversão a partir de noções em que a ideia de conscientização é
lateralmente localizada e assume maior relevo o tema do diálogo cultural como prática
de humanização. Dessa forma, Souza incorpora em sua problematização as questões da
multi/interculturalidade e propõe à escola ser o espaço mediador onde as questões da
identidade e da diferença devam ser enfrentadas e debatidas. Para o autor, a educação de
pessoas adultas contempla tanto as práticas escolares quanto não escolares, sendo a
Educação de Jovens e Adultos sua “feição escolarizada”:
A EJA, assegurada como direito subjetivo do cidadão e dever do
Estado, pode ser conceituada como processos e experiências de
ressocialização (recognição e reinvenção) de jovens e adultos, através
dos conhecimentos escolares orientados a aumentar e consolidar
capacidades individuais e coletivas dos sujeitos populares mediante a
promoção e recriação de valores, a produção, apropriação e aplicação
de conhecimentos que permitam o desenvolvimento de propostas
mobilizadoras capazes de contribuir para a transformação da realidade
natural e cultural dos seus sujeitos. (2007, p.176).
Discutindo os problemas da implantação da escolarização para adultos como
parte da educação básica na década de 1990, Souza e seus colaboradores tecem uma
proposta que abandona o discurso da conversão pela escola e compreende a Educação
Escolar de forma mais estratégica como uma prática que busca menos transformar o
sujeito em outro, que ampliar as possibilidades dos sujeitos tais e quais. Menos
119
messiânica e menos populista, portanto, e mais realista, ao tempo em que convive
tranquilamente com enunciados em que a finalidade última da Educação de Adultos é
compreendida como “contribuir para a construção da humanidade do ser humano em
todas as suas dimensões e âmbitos” (SOUZA, 2007, p.166).
Trata-se de uma proposta de ação mais realista, pois abandona o discurso sobre a
metanoia do sujeito e assume a tarefa da escolarização como “práxis pedagógica escolar
com pessoas jovens e adultas que não tenham conseguido se escolarizar no nível do
Ensino Fundamental e do Ensino Médio ― ou se encontrem subescolarizadas ― para
que consigam ampliar suas capacidades decisórias, técnicas, éticas, estéticas, políticas,
intelectuais; numa palavra, construam sua competência humana.” (SOUZA, 2007,
p.177).
Essa proposta, apesar de ter sido vivenciada como prática concreta em escolas de
diferentes regiões do Estado de Pernambuco ao longo dos últimos 20 anos, de ter sido
concretizada em coleções de materiais didáticos e numa ampla produção científica
relacionada aos seus pressupostos, não chegou a circular no âmbito nacional. Talvez a
inscrição regional do seu coordenador, talvez o seu desaparecimento precoce tenham
contribuído para esse fato. Mas, consideramos que o diagrama de poder em torno da
EJA, tal como vem sendo hegemonicamente vivenciado, não vem permitindo que
experiências como aquela sejam incorporadas pelas práticas de escolarização.
O tema da emancipação acompanha as práticas de educação desde o iluminismo,
estando fincado na própria concepção de saber que sustenta esse momento do
pensamento ocidental: a ideia de que a razão salva ou liberta da escuridão ou da
ignorância. Simultaneamente ao processo de laicização da escrita, que por sua vez
acompanha a construção do espaço social dividido entre público e privado, oferece as
bases para uma economia de mercado liberada do poder irrestrito do soberano, a ideia
de emancipação obtém sua formulação mais divulgada através das proposições de Karl
Marx, nas quais a emancipação se dá através de um sujeito histórico que reúne em si as
condições e motivações da transformação: a classe operária e seu correspondente
partido.
É por essa formulação que o campo conhecido como campo crítico da educação
aciona a ideia de que escola emancipa ou liberta, além de ser sob esses mesmos
fundamentos que o povo se torna esse sujeito que precisa ser emancipado ou libertado.
120
O povo é o sujeito histórico atingido pela opressão e pela exploração. Se numa primeira
versão era a instrução básica e posteriormente foi a educação básica como necessidade,
o que se coloca é a produção de um argumento geral de defesa da legitimidade da
educação escolar, ainda que durante toda a segunda metade do século XX a sociologia
da educação tenha se dedicado a mostrar os descaminhos dessa instituição, suas faces
ocultas, suas produtividades constrangedoras, suas exclusões.
Quando retomamos nesta tese o princípio da emancipação pela educação escolar
e a colocamos em suspensão reflexiva, estamos querendo novamente retomar a questão
sobre a efetividade de tal prática, sua abrangente potência junto às sociedades e
considerar, inclusive, seu fracasso histórico na produção dessa emancipação.
Observamos que a ampla legitimidade dessa prática, e do processo de escolarização que
lhe dá forma institucional, impede que outras formas de educação e produção de sujeitos
sejam vivenciadas. É por esta razão que levamos adiante o intento de produzir uma tese
em que a esperada escolarização de adultos, depois de sua conquista jurídica e
institucional, pedagógica e socialmente legitimada, mostra-se mais uma vez como
escola que exclui, que mantém a clivagem social entre os que sabem e os que não
sabem, como escola que subjetiva na direção de uma subalternidade política, social e
econômica.
No interior dessa reflexão repousa o argumento de que a escrita, e as formas de
conhecimento a ela relacionadas, como os saberes escolares, são formas poderosas de
saber, necessárias para a experiência social dos indivíduos. Porém, necessárias para
aqueles que reconhecem nela esse poder e a desejam. É salutar imaginar que há pessoas,
não poucas, para quem a experiência escolar não faça a mínima diferença em suas vidas.
Isso não só é possível, como talvez seja muito mais comum do que parece, haja vista a
quantidade enorme de pessoas que vivencia a escola por alguns anos e depois se
ausenta, e não retorna, seguindo suas vidas, que imaginamos cheias de dificuldades em
virtude dessa escolha.
A não frequência a uma escola pode ser uma escolha, e defendemos que é
escolha para muitos. Excluídas as possibilidades emancipatórias da educação escolar, e
suas possibilidades meramente reprodutivas, no contexto em que vivemos, no qual a
exclusão é uma experiência produzida de forma identitária, bem como econômica, em
que a crise estrutural do capitalismo tem como uma de suas premissas a crise
121
fundamental do emprego, em que a participação política é mediada por uma série de
mecanismos que se tornam mais e mais rarefeitos e dispersos, o que resta à escola
oferecer às pessoas jovens e adultas? Sua subjetivação como “desnecessários” numa
ordem social sem teleologia?
A regulação das populações é um aspecto desse cenário, não sua única matriz,
ou sua fórmula geral, mas uma das faces necessárias à governamentalidade diante de
massas de sujeitos a quem o poder precisa oferecer algum tipo de verdade. Uma terceira
opção é a deserção. Desertar é mais do que abandonar e mais do que fugir. Desertar é
assumir um movimento de não integração ao que está posto, é abjurar o vínculo. Quiçá
a evasão escolar da EJA seja uma forma de deserção.
122
PARTE II
TECNOLOGIAS BIOPOLÍTICAS DA ESCOLARIZAÇÃO DE ADULTOS
123
INTRODUÇÃO: secularização e normalização da escrita
Abalar a alma para que o ouvinte aja
em conformidade com a convicção
que lhe foi comunicada.27
Em seu opúsculo Regras para o parque humano, o filósofo alemão Peter
Sloterdijk (2000, p.10) analisa a função da escrita na formação do humanismo ocidental
como elemento central de uma “seita ou clube – o sonho da predestinada solidariedade
dos que foram eleitos para saber ler”. A divisão da sociedade entre dois corpos ―
analfabetos e alfabetizados ― contemporaneamente já foi problematizada pelo avanço
nos estudos sobre oralidade e escrita, bem como pelo aprofundamento do saber a
respeito do cotidiano de sujeitos não alfabetizados. Compreende-se hoje o
analfabetismo e o alfabetismo não como estados absolutos de ignorância e
conhecimento, mas como diferentes posições na aquisição e uso social da tecnologia da
escrita. Tecnicamente, numa sociedade grafocêntrica, todas as pessoas desenvolvem
estratégias de uso da escrita, ainda que não dominem as regras de funcionamento do
sistema de notação alfabética e seus desdobramentos.
Portanto, a separação da sociedade entre alfabetizados e não alfabetizados
constitui um problema da ordem das relações de poder e não de uma ordem estritamente
técnica ou cognitiva. Para Sloterdijk, o modelo filosófico que toma a escrita como
elemento constitutivo das relações de amizade intelectual serviu de base para as nossas
instituições modernas. O autor, ao problematizar o papel político da escrita, está
produzindo uma crítica ao humanismo ocidental, cujo tema latente, segundo ele, é que
“as boas leituras conduzem à domesticação” (2000, p. 17).
O humanismo literário apresenta-se como uma ferramenta de domesticação do
sujeito, de modo que sua vida moral seja contida pelo exemplo, pela disciplina e pela
lei. Além disso, o humanismo se constitui como um convencimento ininterrupto pela
assunção de um modo de vida específico universalizado como norma. Essa atividade
ininterrupta autoriza uma constante produção de lugares para a diferença, que é
incorporada e mantida sob as ordens do civilizatório, do progresso e por fim do
27
Perelman, 1999.
124
desenvolvimento. É importante salientar que esse texto de Sloterdijk é um comentário à
clássica Carta sobre o Humanismo (1967), de Heidegger, na qual o humano é definido
como um pastor do ser, habitante da morada do ser que é a linguagem. Para Sloterdijk,
no entanto, essa habitação do homem coincide como seu sedentarismo e com a
domesticação dos animais, fato que esse autor considera um evento biopolítico. A partir
de Nietzsche, ele questiona os vários processos de produção dos humanos, as
antropotécnicas que podem contribuir para inibir ou desinibir, processos para os quais o
discurso do humanismo quase sempre dá sua contribuição domesticadora. Nesse
sentido,
A própria cultura da escrita produziu – até a alfabetização universal
recentemente imposta – fortes efeitos seletivos: ela fraturou
profundamente as sociedades que a hospedavam e cavou entre as
pessoas letradas e iletradas um fosso cuja intransponibilidade alcançou
quase a rigidez de uma diferença de espécie. Se quiséssemos,
contrariamente às advertências de Heidegger, falar mais uma vez em
termos antropológicos, os homens dos tempos históricos poderiam ser
definidos como aqueles animais dos quais alguns sabem ler e escrever
e outros não. (SLOTERDIJK, 2000, p.44).
De modo que essa discussão nos traz de volta ao problema biopolítico do
controle das condutas da população de pessoas não alfabetizadas. Controle que se
exerce por várias técnicas voltadas ao humano, que Sloterdijk chama de antropotécnicas
e Foucault chama de governamentalidades. Dentre elas, a educação escolarizada é
fincada sobre aquela distinção inicial do humanismo, entre os amigos da escrita e seus
párias, diferença que além de distinção produz subalternidades (ou diferenciação
hierárquica), porque existe, segundo ainda Sloterdijk28
(2000, p.50), sob “o ponto cego
de todas as pedagogias e políticas de alta cultura – a presente desigualdade dos seres
humanos quanto ao conhecimento que gera poder"29
.
A história do poder da escrita tem uma longa trajetória, e não pretendemos aqui
retomá-la, mas um vislumbre pelo processo que relaciona a aquisição da escrita com os
problemas da população enquanto uma questão de Estado pode ser útil para a
compreensão das Tecnologias do Constrangimento e do Abandono que acompanham a
administração social das populações não alfabetizadas.
28
Mas, como já vem afirmando toda uma teoria crítica e pós-crítica do currículo. 29
O conhecimento poderoso de que falamos anteriormente.
125
A escrita assume um lugar de crescente poder nas sociedades ocidentais desde o
fim do medievo, sendo a alfabetização paulatinamente incorporada ao ideário ocidental,
primeiramente da civilização (entre os séculos XVII, XVIII e XIX), posteriormente do
desenvolvimento (século XX) como um bem de tal modo inquestionável a ponto de a
ideia de alfabetização plena ser considerada quase um dogma e uma condição para o
bem viver dos indivíduos e das sociedades.
A alfabetização das massas tornou-se uma necessidade para ampliação do
sistema econômico inspirado pelos ideais liberais (mais tarde neoliberais) que
acompanhou esse lento caminho de sua dogmatização como bem simbólico,
perpassando processos coloniais de dominação cultural e econômica. De sua
divinização, associada aos textos sagrados das religiões coloniais, à sua inscrição como
mercadoria no contexto das economias neoliberais, a secularização30
da escrita
(ZUMTHOR, 1993) é um fenômeno que se deu lentamente através dos processos que
constituíram o Ocidente como referência universalizada de vida e de organização social,
cultural e política.
Como informa Zumthor, a palavra esteve por toda a Idade Média associada à
autoridade e, a partir desta, à verdade. Pela boca dos clérigos, dos professores ou dos
juristas, a palavra verdadeira fluía oralmente para a audição das populações: “o
pregador contribuirá para difundi-la junto a uma população que lhe é estranha e para
integrar setores inteiros desta nas tradições orais” (1993, p.78). O aspecto mágico e
misterioso da palavra, associada à força criadora, estrategicamente vinculada à imagem
do criador do universo, fonte de toda cosmogonia, é explorado sabiamente como
instrumento de produção da obediência.
Os movimentos desertores desse exercício contínuo da dominação clerical são
justamente, na visão de Zumthor, os nomadismos que irrompem na Europa até mais ou
menos o século XVI. Esses deslocamentos são detidos pela existência das cidades e pela
concentração das populações nesses espaços cada vez mais controlados e planejados. O
momento de produção da razão de Estado, das novas artes de governar, coincide com a
alteração de uma polaridade entre a palavra oral e a escrita, colocando esta última no
patamar de uma tecnologia de fundamental importância para o mundo pós-medieval. O
cenário é conhecido pelos estudiosos da reflexão disciplinar e biopolítica foucaultiana:
30
Secularização refere-se ao processo pelo qual a escrita deixou de ser uma exclusividade dos grupos
clericais e passa a ser objeto de aquisição ampla e desvinculada da religião.
126
As cidades são filhas da escrita. Em torno delas se reconstruíram
muralhas ou ergueram-se outras, às vezes concentricamente, como em
Paris, na proporção do crescimento da população. Essas paredes,
porém, recortam o mundo em “dentro” e “fora”, rejeitam os
marginais, excluídos por algum tempo ou por natureza, ou tidos como
perigosos, miseráveis, lascivos, mulheres da vida ou leprosos, e outros
subjugados, mas úteis, mantidos a uma distância salubre, como os
judeus e os “lombardos”. (ZUMTHOR, 1993, p.93).
Compartilhando esse mundo, a técnica da escrita também se comportou como
uma muralha, e o caráter mágico e verdadeiro da palavra proferida é assumido pela
palavra escrita que, além de tudo, carregava consigo o aspecto de um código, de um
mistério a mais consignado pela natureza do seu uso através de uma técnica pouco
acessível: “A palavra francesa grimoire, que designa alguma receita de bruxaria, vem do
latim grammatica; e o termo inglês, de origem dialetal escocesa, glamour (“encanto”,
primitivamente no sentido mais forte) tem a mesma etimologia” (ZUMTHOR, 1993, p.
113). O aspecto mágico da escrita não passou despercebido dos governos e, como toda
forma de poder, também passou a ser alvo do desejo dos governados.
Esses traços, que parecem não ser mais tão relevantes nos dias atuais, falam da
proveniência da racionalidade em torno do acesso à escrita, que governa as práticas de
promoção da escolarização baseadas no argumento da alfabetização plena. É esse lugar
de verdade ocupado pela escrita que autoriza os Estados e outras instituições a serem
mais demandatários da alfabetização que os próprios sujeitos não alfabetizados nas
línguas escritas de matriz colonial.
Do ponto de vista da governamentalização das populações não alfabetizadas, a
cultura da alfabetização plena e consequentemente da escolarização de adultos é ativada
tanto por mecanismos sutis produtores de subjetivação, quanto por mecanismos de
grande porte remetidos às populações. Dentre os primeiros, a crença muito arraigada de
que o acesso ao conhecimento escrito produz uma forma de domesticação do selvagem
potencial alocado em cada um/a de nós. Conforme estudou Foucault (2010, p. 321) a
respeito das práticas de si: “É escrevendo, justamente, que assimilamos a própria coisa
na qual se pensa. Nós a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no corpo, a
tornar-se como que uma espécie de hábito ou em todo caso de virtualidade física.”
Logo, primariamente, e no processo de produção das formas pré-modernas de
127
subjetivação, atravessando mesmo todo o período da história antiga e medievo, vê-se o
quão arraigada, profunda e antiga é a crença no papel civilizador do exercício da escrita.
O outro aspecto relevante é que a modernidade, e seus desdobramentos ao longo
do século XX, criou uma hipertrofia dos sistemas de dominação, profissionalizando e
ampliando o raio de intervenção desde o nível territorial dos Estados-nação até alcançar
lógicas como as que permitem falar em uma “população mundial”. A amplificação da
ciência estatística, ao lado da melhoria das bases tecnológicas de tratamento de dados,
permitiu a produção de informações detalhadas sobre a “população mundial” de
analfabetos, pelas quais sabemos hoje, por exemplo, que dois terços estão no
Hemisfério Sul ou que dois terços são mulheres e meninas. Os sistemas escolares
criados nesse contexto foram encarregados da gestão dessa população e de sua inserção
num patamar de “desenvolvimento” que inclui a sua alfabetização e escolarização
básica. As escolas ocupam o lugar institucional onde o poder espera operar sobre os
sujeitos através da escrita.
Desse modo, as práticas dirigidas ao sujeito e as práticas dirigidas à população
se ocupam da produção ininterrupta dessa biopolítica em que a vida é interceptada pela
escrita através da escola. No Brasil, essas questões se associam ao racismo estrutural
contra as pessoas negras e ao colonialismo impregnado na forma de pensar da
sociedade, produzindo algumas estratégias peculiares de governamento. Selecionamos
dois modos de funcionamento desses dispositivos para progredir com nossa
argumentação em torno da biopolítica da educação escolar de pessoas adultas. As
políticas discursivas aqui enfocadas representam dois aspectos das estratégias investidas
pelo poder no processo de governamentalização das populações adultas não
alfabetizadas.
As práticas aqui analisadas como tecnologias de poder correspondem a dois
agrupamentos. O primeiro refere-se às estratégias de produção de uma enunciação
social do analfabetismo e da pessoa não alfabetizada, constituindo uma Tecnologia do
Constrangimento dirigida ao sujeito e mediada pelas táticas da metanoia e da vergonha.
A Tecnologia do Constrangimento é uma curva de enunciação que torna possível a
teratologia31
da pessoa não alfabetizada, a sua constituição como anormal em relação à
norma discursiva que legitima a escrita como conhecimento dotado de prestígio nas
31
Teratotogia: o estudo da anomalia.
128
sociedades modernas. O segundo conjunto é uma Tecnologia do Abandono, que
interpela a multidão a inserir-se no espaço biopolítico da escolarização. Uma vez
integrada a esse processo social, a multidão passa a ser administrável, condutível,
abandonada à força da lei e, logo, tornada visível enquanto população governada. A
tática local que operacionaliza a Tecnologia do Abandono é a precariedade, e será
evidenciada especificamente em discursos e práticas da escola regular.
Estas tecnologias são operadoras da ação do Estado governamentalizado no
campo da Educação de Adultos. Governamentalidade é o termo utilizado por Foucault
para descrever uma nova forma de poder configurada pela articulação das técnicas de si
com as técnicas de conduta do outro. Esse conjunto resulta naquilo que ele chamou a
“arte de governar”. Segundo Rose (2000, p.19), os estudos de governamentalidade, ou
de análise biopolítica, dedicam-se a compreender as condições de possibilidade e de
inteligibilidade pelas quais se constituem certos modos de atuar sobre a conduta dos
outros mediante certas finalidades. É por esse tipo de cálculo que podemos falar de uma
razão de Estado e de uma racionalidade que não se restringe às ações especificamente
estatais, espraiando-se em diversos enunciados, práticas ou estratégias. Isso se dá, ainda
segundo Rose, porque o Estado não é uma entidade homogênea, mas um discurso
interceptado por outros discursos, sejam eles científicos ou morais, etc.
A análise do poder em Foucault não se ocupa da sua definição nem da
substancialidade do fenômeno, mas das práticas que constituem relações de poder. As
práticas são formas de regularidade constituídas pelas epistemes, que são as práticas
discursivas, e pelos dispositivos, que são as relações de poder (CASTRO, 2009). O
poder compreendido como tática e estratégia constitui uma tecnologia. A função tática é
identificada com os meios, e a estratégica com os fins. As tecnologias são
especificamente um modo de constituir uma verdade em relação ao sujeito, seja ela uma
verdade sobre o corpo, ou seja, uma disciplina; uma verdade sobre a população, uma
biopolítica; e ainda uma verdade sobre o si mesmo, uma ética.
A rede é formada por discursos, práticas, crenças, documentos, compondo um
arquivo extenso sobre o qual realizamos recortes e examinamos detalhadamente alguns
elementos. Entre esses elementos não há uma racionalidade no sentido dialético, em que
se pode configurar uma síntese superadora a partir das contradições encontradas.
Realmente não poderemos chamar de contraditórias as forças que alinham os diversos
129
objetos ora analisados, ainda que situações contraditórias sejam encontradas em regimes
discursivos locais no interior dos dispositivos. Chamaremos a essas relações de “linhas
de força”, conforme a terminologia foucaultiana informada por Deleuze (1999).
As linhas de força dividem-se entre linhas de visibilidade e linhas de enunciação.
As linhas de visibilidade representam o regime de luz que atua sobre os objetos e as
linhas de enunciação, sobre o regime do dizer. Aquilo que pode ser visto, dadas as
condições postas entre as relações de poder constituídas no fenômeno em análise, ou
aquilo que pode ser dito, em formações históricas com as quais o dispositivo entra em
contato.
Dessa forma, a possibilidade de se falar da pessoa não alfabetizada na chave da
ignorância é a regularidade que permite que essa ignorância seja a própria matriz do
exercício do poder. A linha de enunciação denota quem pode falar e, nesse caso, quem
pode falar do analfabeto, antes dele próprio, é a população letrada nas línguas de origem
europeia. A regularidade do dizer sobre o analfabetismo é uma linha de força que
articula o Estado e suas instituições, autorizando outros agentes como o INEP32
, que por
sua vez produz informação que legitima, suporta e fortalece o Estado em suas ações de
governo da educação escolarizada.
Os dizeres sobre o analfabetismo sofreram mutações e foram adequando-se a
novas formações históricas, determinando pontos em que as relações de poder se tornam
visivelmente singularizadas, disponíveis diríamos, para uma abordagem. Por exemplo,
as ações alfabetizatórias, por precisarem mover-se em direção aos sujeitos, demovê-los
de outras práticas para trazê-los à escola, têm nas ações de “mobilização” um dos focos
centrais de suas atividades. A palavra “mobilizar” descreve a interpelação por parte das
ações de governo, aos sujeitos não alfabetizados, convocando-os para inserirem-se na
Educação Escolar.
No processo de mobilização, uma diversidade de argumentos é levantada para
justificar, aos olhos dos sujeitos, a necessidade, a positividade, o valor de alfabetizar-se.
Isso ocorre porque o processo de alfabetização está constituído atualmente como
“direito social”, significando que o Estado não pode “obrigar” o sujeito adulto a
alfabetizar-se ou escolarizar-se. Mas, como o Estado precisa dessa alfabetização, ele
32
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, órgão do Ministério da
Educação responsável pela elaboração de estatísticas sobre a educação.
130
envida esforços nos processos de mobilização no âmbito das campanhas
contemporâneas. Essas atividades são realizadas pelas alfabetizadoras e alfabetizadores,
educadoras populares encarregadas de arregimentar os batalhões de analfabetos da
nação para o ambiente das práticas de escolarização.
A campanha é, assim, um cenário de argumentações das mais diversas em torno
à alfabetização. Referimo-nos à campanha não apenas para trazer, ao debate desta
pesquisa, o fato de que adultos não alfabetizados demandam pouco a alfabetização
espontaneamente. Sobretudo, a campanha é a materialidade da retórica social em torno à
escolarização de pessoas adultas e sua alfabetização.
A retórica é, segundo Perelman (1997, p.83), “uma lógica dos juízos de valor”,
um gênero argumentativo do discurso, cuja relação com a verdade se estabelece não
mediante provas evidentes desde a aplicação de um método (como na dialética), mas a
partir de argumentos que buscam, sobretudo, a adesão do ouvinte à tese apresentada. A
retórica age por convencimento. A argumentação está baseada no fato de que os sujeitos
compõem, em relação ao orador, uma comunidade, e o discurso retórico atua
sedimentando o campo dos juízos de valor que instituem essa base comum entre
audiência e orador. Ocorre que a retórica, na perspectiva de Perelman, não se ocupa dos
argumentos construídos com valor de verdade, mas com argumentos que ocupam o
lugar do verdadeiro para produzir o convencimento. Nesta perspectiva, também o
discurso baseado na lógica seria composto por juízos de valor e, ao fim, seria uma
prática discursiva como outra qualquer.
Outra característica do discurso epidíctico que caracteriza as práticas discursivas
retóricas, além do fato de serem discursos de “elogio ou censura”, é a exigência de
legitimidade por parte do orador para realizar tal discurso: “para pronunciar o discurso
epidíctico, que pode conferir-lhe essa glória, o orador já deverá ter prestígio prévio,
prestígio devido à sua pessoa ou à sua função” (PERELMAN, 1997, p. 68). Porém,
além do prestígio que confere autoridade ao autor, tal gênero de oratória só se legitima
se tiver outra função, ou seja, um discurso de exortação a algum benefício. Este só
amplia a legitimidade de quem fala porque possui outra finalidade, que é o benefício ao
que vem sendo exortado.
Por um mecanismo similar atua o discurso da alfabetização na biopolítica da
escolarização de adultos. Nesse sentido, referimo-nos à imagem da campanha como
131
uma alegoria, inscrita numa discursividade retórica33
, para podermos falar do diagrama
de poder que relaciona sujeitos não alfabetizados na ordem do discurso escolar e que
inscreve a vida dessa população em processos de escolarização.
Estamos usando a imagem de um diagrama, proposta por Deleuze em suas
leituras de Foucault, como imagem das relações que estamos a descrever no presente
estudo, em que fazemos a leitura da escolarização de adultos como uma biopolítica.
Nesse sentido, afirmamos que o dispositivo em análise apresenta duas linhas de força
principais que articulam os diversos pontos traçados das relações estratégicas descritas.
Veremos em seguida o que significam as denominações “constrangimento” e
“abandono” para o entendimento de uma racionalidade que tenciona governar uma
população não alfabetizada, inserindo-a na escola.
O estudo das tecnologias de governo trabalha num caminho que foi tecido por
Foucault entre a analítica da governamentalidade e a analítica da subjetivação,
transitando de uma noção em que o poder é estudado como relação de conduta do outro
para as noções em que a conduta de si está implicada com os mecanismos de controle.
As tecnologias do constrangimento e do abandono encontram suas ancoragens
em aparatos institucionais em torno da questão da Educação de Adultos. No primeiro
arquivo, trabalhamos com os enunciados do constrangimento, aqueles que promovem a
vergonha e a salvação como argumentos para o sujeito escolarizar-se. No segundo
arquivo, mostramos os enunciados do abandono que produzem a experiência escolar
através da precariedade, configuradas no dispositivo da campanha.
33
O pesquisador francês Bernard Lahire, que tem uma vasta produção no campo da sociologia da
educação, já havia feito referência à discursividade da alfabetização, no caso específico francês,
utilizando a referência ao comportamento retórico dessa discursividade. No artigo “Rhetorique de
l’illetrisme” (1998), ele analisa a forma como a questão do analfabetismo foi construída como um
problema social e mesmo de “segurança nacional”.
132
CAPÍTULO 3.
A VERGONHA E A CONVERSÃO: A ENUNCIAÇÃO DO
CONSTRANGIMENTO
No campo da educação, remetido ao processo de produção do analfabetismo
como um objeto cultural, o constrangimento acumula, sedimenta, refina e aprofunda as
práticas de sustentação do racismo estruturante. O constrangimento é uma das marcas
da experiência da pessoa não alfabetizada na sociedade brasileira. Foi através do
constrangimento que o analfabetismo se instalou na experiência de toda a sociedade
como um “mal a ser erradicado” e como “vergonha nacional”. O constrangimento é a
linha de força do dispositivo da escolarização para fazer com que o próprio sujeito não
alfabetizado buscasse inserir-se na ordem do discurso escolar. É uma tecnologia de
subjetivação refinada, produtora de “verdades” que alinham a noção de analfabeto à
noção de ignorante, "burro" e incapaz. Por isso, neste estudo, o constrangimento é
tratado como uma tecnologia envolvida nos discursos da governamentalidade da EJA.
Etimologicamente a palavra constranger deriva do latim constringere, que
significa “ligar em conjunto apertadamente, amarrar, encadear, conter, reprimir,
aguentar, suspender” (MACHADO, 1959, p.216). Refere-se, portanto, a algo que é
limitado por uma força, uma situação, que leva algo ou alguém a ter suas ações
restringidas em virtude de algum princípio externo. O constrangimento é o substantivo
que remete a essa ação, sendo portador de outros traços de sentido, sendo o seu uso
atual na língua portuguesa referente a uma situação vexatória. “Passar um
constrangimento” significa também “passar uma vergonha”, no uso cotidiano e informal
da língua. Logo, constranger, ao limitar uma ação, implica, para aquele a quem a ação
foi limitada, passar por uma situação vergonhosa.
Vamos acionar a ideia de liberdade ao pensarmos sobre o constrangimento. Ao
se ter um conjunto “bem amarrado” e colocando-se em condição de “vergonha” aquele
que teve sua ação restringida, produz-se um constrangimento. Ser constrangido significa
duplamente ser colocado na condição de objeto de ações alheias, ora por limitação da
ação do sujeito, ora pela repressão simbólica sobre quem é alvo dessa condição. Ser
constrangido também significa, em alguns contextos discursivos, ser “instado” a agir
conforme posições determinadas por outrem. É, portanto, um tipo de atividade dirigida
133
contra a liberdade de alguém ou de um grupo por uma força externa a esse grupo ou
indivíduo. Constrangimento é atividade política, na medida em que, apropriando-se de
significados dispersos na cultura, faz uma síntese específica, por sua vez direcionada a
limitar a ação de um grupo ou indivíduo, o que demarca o constrangimento na ordem
das relações de poder.
O constrangimento é uma atitude que se volta sobre o sujeito, não apenas
instando-o a agir conforme a determinação alheia, mas localizando-o numa relação de
submissão que lhe captura pela interioridade. Produz uma localização externa, e uma
subjetivação que colabora com essa localização. É um arranjo eficaz na produção de
subjetividades subalternas, alimentadas pela ideia da vergonha. O constrangimento
produz subordinação através da vergonha. A vergonha é esse tipo de situação em que
um sujeito não pode assumir publicamente uma característica ou condição, porque o
padrão de normalidade o coíbe através do chiste, da negação, ou da inferiorização.
A vergonha é uma condição a qual um sujeito é submetido, na condição de
objeto, à opinião de outrem. Ela funciona através do mecanismo da bifurcação da
experiência de si por parte de um sujeito que “desloca sua atenção de si mesmo para o
outro e para como o outro o vê” (DE LA TAILLE, 1999, p.18). A vergonha é um afeto
(DE LA TAILLE, 1999, p.27) que se manifesta sob duas condições: a inferioridade e a
exposição.
A inferioridade é realizada pela dissociação entre uma imagem de si baseada na
confiança e relaxamento e uma imagem projetada em tensão com a confiança. Isso se dá
porque o sujeito adere a um quadro axiológico que condena sua própria imagem (DE
LA TAILLE, 1999, p.29). Esse processo ocorre através de mecanismos de exposição ao
outro, em cadeias de enunciados que produzem os traços de inferioridade
normativamente constituídos. A exposição é o processo responsável pela localização de
determinados traços em determinados sujeitos, e o poder que gera tanto a exposição,
quanto a inferioridade sustentadora da vergonha é legitimado por práticas das mais
sutis, desde a enunciação do analfabetismo como vergonha nacional, até a oferta de
escolarização em tipos de espaços reduzidos, escuros, fechados, com mobiliário
inadaptado, mediada por pronunciamentos e rituais da educação infantilizadora do
adulto.
134
No caso da escolarização de adultos, a enunciação da pessoa não alfabetizada
como portadora de uma condição vexatória é ampliada pelo fato de que o discurso da
vergonha é proferido por sujeitos institucionais legitimados. Como informa De La
Taille (1999, p.31): “É bom ressaltar, alguém somente se sente exposto, se considerar
seu espectador legítimo. O sentimento de exposição, portanto, pressupõe, por parte do
sujeito, o reconhecimento da instância que o olha e o julga como legítima.” Portanto,
senhores de engenhos discursivos como deputados na Câmara Federal, prefeitos e
presidentes, educadores e técnicos governamentais representam esse campo de
promotores altamente legitimados de um discurso da vergonha que se dirige
inicialmente à nação e se estende ao sujeito não alfabetizado.
A vergonha como tecnologia de governamento das populações não alfabetizadas
possui a dupla função de ser causa e efeito dos processos de exortação e de
inferiorização da pessoa denominada analfabeta que, no entanto, transita por outros
códigos além da escrita. Os enunciados da vergonha participaram da construção da
demanda social de alfabetização. Os processos de alfabetização das populações adultas
expõem a pessoa não alfabetizada a uma enunciabilidade constrangedora,
permanentemente reforçada, amplamente divulgada, legitimada pelos mais diversos
discursos autorizados, disseminando a experiência dessa “vergonha sem culpa” que as
populações acionadas pela biopolítica da escolarização de adultos parecem carregar.
Comentando Levinas, Agamben (2008, p.109) informa que, para aquele filósofo,
a vergonha advém de uma impossibilidade de “nosso ser de dessolidarizar-se de si
mesmo, na sua absoluta incapacidade de romper consigo próprio.” Como caminhar
numa sociedade de alfabetizados sendo uma pessoa analfabeta? Estamos falando de
uma condição em que um discurso de condenação social irresponsavelmente repetido
reflete-se na vida de pessoas, milhões delas, como algo de que não pode “afastar-se”.
Obviamente, pode afastar-se mediante sua participação no dispositivo, sua aceitação de
outros códigos de vida (a civilidade, a cidadania, a moralidade ensinada pela leitura),
mas não pode tanto, pois o ensino público para jovens e adultos só foi garantido na letra
da lei de forma substancial apenas em 1988.
Neste ponto temos uma encruzilhada onde as tecnologias do abandono e do
constrangimento se cruzam, e elas se cruzam em diversos pontos do diagrama. A
visibilidade da enunciação do analfabetismo como uma chaga social e um mal a ser
135
erradicado, e a precariedade do atendimento que deveria ser a vacina a este mal se unem
para manter as populações no lugar do constrangimento, que é um lugar de abandono
sob a lei escrita pelos que dominam a magia da escrita. A potência subjetivante desse
saber/poder é ampla e sua desconstrução problemática.
Da vergonha advêm as táticas bem conhecidas do disfarce, pelas quais as
pessoas não alfabetizadas criaram diversas formas de lidar com seu analfabetismo,
escondendo-o em mímicas de leitura, em argumentos sobre problemas de visão. O
espaço onde essas táticas são desnudadas, postas à vista, é justamente o lugar da escola,
mas também do trabalho e do cotidiano da cidade. Se vai à escola, o adulto não
alfabetizado precisa superar a vergonha de não saber o que a sociedade diz que ele devia
saber, ainda que não tenha tido essa possibilidade anteriormente. Uma vez na escola, ele
é exposto à sua própria história e o circuito do constrangimento pode ser interrompido,
ou ser novamente reforçado através dos dispositivos pedagógicos ali presentes.
Esse movimento de exposição de si para si é formulado por Agamben (2008, p.
110, grifo nosso) como uma dessubjetivação, situação em que algo do sujeito desaba e
ele se faz consciente desse desabamento: “Na vergonha, o sujeito não tem outro
conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do próprio
desconcerto, da própria perda de si como sujeito.” O que denuncia a violência desse
processo no caso da educação de pessoas adultas é o fato de que essa enunciação
encontrou uma larga aplicação, por um longo tempo, e sustentada por um amplo
conjunto de instituições sociais.
Com esta tese em processo de finalização, um programa da TV Universitária de
Recife, Opinião Pernambuco do dia 25/02, apresentou o problema como uma “triste ou
trágica realidade”. As vidas das pessoas não são trágicas porque não sabem ler, mas por
uma série de outros mecanismos da ordem da economia, da distribuição das riquezas,
dos modos de viver nas cidades. Perguntamos o porquê da continuidade desse tipo de
formulação e as respostas informam sobre a disseminação ampla dessa racionalidade
iluminista que atribui ao conhecimento escrito e escolarizado um valor absoluto e
inquestionável. Também o sentido de eliminação mantém-se como ameaça constante do
discurso social sobre analfabetismo.
Agamben chega à concepção de que a vergonha é uma condição biopolítica. É
uma condição que se produz “entre uma servidão e uma soberania”, com isso quer dizer
136
o filósofo que ao saber-se exposto, e exposto diante de si, o sujeito encontra-se numa
relação em que concomitantemente se subjetiva e se dessubjetiva, ao que ele conceitua
como “uma experiência fundamental de ser sujeito” (2008, p.112). Enquanto uma
relação de servidão e soberania, essa subjetivação se dá como ato permeado pelo poder,
no qual ser submetido ao chicote ou à lei é parte da situação que se apresenta. E
novamente, nessa imagem, a Tecnologia do Abandono encontra a Tecnologia do
Constrangimento, pois a visibilidade da exposição do analfabetismo (o caminho
escolhido para essa visibilidade) é consuetudinária das alternativas propostas para a
“solução” do problema: a precariedade e a postergação com que são formuladas as
diversas ferramentas de Educação de Adultos produzidas pelo Estado.
A dessubjetivação é caracterizada, no limite do não alfabetizado, por um
movimento de exterioridade em relação à escrita. Essa exterioridade atravessa o
fenômeno da linguagem como a poesia atravessa o ser do poeta (Agamben, 2008,
p.118). Enquanto o poeta faz a travessia armado com o domínio da técnica, a pessoa
adulta não alfabetizada faz a travessia com outras ferramentas, línguas outras, estranhas
ao ato, e, portanto, não reconhecidas. As razões pelas quais uma forma de exterioridade
é prestigiada e não a outra se explicam pelos jogos de poder entre culturas, pelo
enfrentamento entre formas e tradições culturais que se encontram a partir de condições
coloniais, em que apenas um é sujeito e ao outro resta ser objeto, ou lutar.
A flecha da dessubjetivação pode ser vivenciada por obra de uma busca pessoal,
estética, a partir de um cuidado de si que é o abandono à espessura da linguagem, da
experiência de linguagem tal como a poesia propicia, mas pode ser uma ferramenta do
poder para produzir um lugar de sujeito, constrangendo-o em virtude da sua
exterioridade em relação à técnica.
Ao reduzir a experiência de linguagem do sujeito adulto ao domínio da técnica, a
relação de exterioridade é ignorada como processo de subjetivação e dessubjetivação, de
constituição de si, e acionada como exclusão pela qual é marcada inclusive pelo nível
significante ― an-alfabetizado. O olhar reduzido é a manifestação de uma ignorância
por parte do poder daqueles que o usam para excluir, ignorância sobre aquilo a que pode
se referir a experiência de ser de linguagem das pessoas adultas não alfabetizadas,
manifesta em diversos outros modos de atuar nesse teatro. Tal ignorância não seria, no
137
entanto, inocente, apenas um desconhecer, é antes um “virar de costas”, e ao mesmo
tempo uma medida estratégica dirigida a alguns sujeitos tomados como perigosos.
A experiência de dessubjetivação realizada como visibilidade constrangedora da
pessoa não alfabetizada é uma tática que visa à tomada de suas forças, a redução de sua
palavra, o apagamento da outra margem a que pode levar o circuito inteiro em que
subjetivar-se e dessubjetivar-se aufere uma potência ao sujeito. Na relação que a escola
estabelece com o sujeito não alfabetizado se produz uma relação similar àquela que,
segundo Agamben (2008, p.119), “apresenta, portanto, a aporia de uma absoluta
dessubjetivação e ‘barbarização’ do acontecimento de linguagem, no qual o sujeito
falante cede lugar a outro”.
O estranhamento com a linguagem do outro é um limite não atravessado na
relação da escola com o sujeito não alfabetizado. As estratégias são conhecidas: é a
escuta e depois a ressignificação em imagens geradoras sistematizadas e devolvidas ao
educando, é o acolhimento benevolente da história do outro, e depois a tentativa de
oferecer uma nova versão da história, acompanhada pela submissão ao código escrito e
pela alegria de integrar-se ao mundo letrado; é a promoção de uma cultura da filantropia
pela qual o adulto não alfabetizado é exposto como alguém que sofre e sangra, mas que
encontra alegria ao aprender a escrever (apenas) o próprio nome.
O constrangimento é um efeito dos regimes de verdade, que forçam o sujeito a
certo número de atos de verdade (FOUCAULT, 2014, p.85); logo, a exposição do
sujeito enunciado como analfabeto dá-se por uma exortação a que apareça em meio à
multidão e faça visível sua condição de não portador da escrita. Uma vez instalado
nesse circuito, o sujeito torna-se apto a compor uma série de atos de verdade, realizados
a partir dos rituais da escolarização (CARVALHO, 2012).
Além desses fatores de ordem genealógica, o interesse dessa discussão repousa
na inegável atualidade dos enunciados analisados, evidenciada no uso ainda recorrente
de imagens constrangedoras para referir-se ao problema da alfabetização plena da
sociedade. Chamamos a atenção para o fato de que esse discurso refere-se ao problema
como algo intangível, mas incide de forma concreta sobre o sujeito dessa problemática,
a pessoa que carrega a não alfabetização como característica definidora de sua
existência pública. É no encontro desses elementos que a Tecnologia do
Constrangimento encontra sua eficácia: a atualidade do uso desses enunciados, a
138
incidência sobre o indivíduo, e o traço de que essa forma de racionalidade encontra
apoio em práticas no âmbito extradiscursivo, como em políticas públicas e práticas
pedagógicas cuja realização é sempre postergada ou precarizada.
O circuito da vergonha expõe assim uma população ao crivo não apenas de uma
exclusão como fenômeno social, mas também reforça, sobretudo, o fenômeno subjetivo
de ser constituído com portador de uma ausência cujo suprimento é simultaneamente
oferecido e negado. Acompanhando a linha de força da vergonha, o segundo elemento
tático da Tecnologia do Constrangimento é a metanoia. Após uma pausa para observar o
funcionamento dos enunciados da vergonha, passaremos ao seu exame.
3.1. A vergonha nacional nos discursos parlamentares sobre alfabetização de
adultos
Os discursos parlamentares carregam os enunciados do senso comum,
amplificados pelo desejo dos deputados em corresponderem às expectativas de setores
da sociedade, ou de se produzirem como portadores da opinião verdadeira sobre
assuntos de interesse nacional. Durante todo o século XX o país esteve mergulhado nas
questões do nacionalismo, discutindo e aprofundando noções sobre sua concepção de
nação.
Os discursos proferidos nesse espaço legislativo de nível federal relacionam-se
com essa ordem discursiva em que são tratados os “temas nacionais”. Sabemos a força
política da ideia de nação e os jogos que ela preside, desde a emergência dessa temática
nos países europeus, o debate sobre quem está contemplado ou não na ideia de nação, o
tipo de mecanismos de exclusão sustentados por essa lógica, desde os processos que
levaram ao massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial até as recentes
políticas (anti) migratórias dos países europeus. Os limites do território primeiramente
geopolítico se desdobram para os limites internos em que o Estado de segurança define
os lugares a serem ocupados pelas populações. Os discursos parlamentares, portanto,
atuam na produção da discursividade que agencia o campo das legalidades fornecidas
pelo Estado, as quais determinam e gerenciam lugares e movimentos.
139
Ao disponibilizar uma parte dos discursos proferidos em plenário nestes últimos
setenta anos, a Câmara Federal permite que possamos acessar essa produção e a
memória que ela aciona. O banco de dados do sítio eletrônico da Câmara Federal
disponibiliza discursos proferidos em plenário desde o ano de 1946, sendo, portanto, um
arquivo que nos permite acompanhar a forma como a classe política confere visibilidade
ao problema do analfabetismo praticamente desde sua emergência como questão
nacional (CARLOS, 2008; PAIVA, 2003).
Selecionamos discursos presentes naquele banco de dados a partir dos termos de
busca "analfabetismo", com 996 ocorrências, "alfabetização de adultos", com 15
documentos e "Educação de Jovens e Adultos", com apenas 1 documento catalogado. O
procedimento constou de leitura dos resumos, seleção das peças que se detinham na
discussão do tema, leitura e demarcação de trechos que pronunciam enunciados
relativos às políticas discursivas investigadas na pesquisa. Em seguida, foram
selecionados trechos que participam do regime de enunciabilidade sobre Educação de
Adultos, ou seja, que traduzem as formas pelas quais se pode falar da questão.
Uma grande parte do arquivo selecionado sob o termo de busca “analfabetismo”
refere-se a citações de casos de sucesso do combate ao analfabetismo em municípios ou
estados, elogios ou ataques à política educacional vigente no momento. São comuns os
discursos que tomam como base matérias jornalísticas sobre o tema, evidenciando o
papel da mídia em fazer o agendamento das questões nos âmbitos políticos. Ao citar
esses casos, os parlamentares também se demoram na citação de outros países que já
“lograram êxito” no tratamento da questão ― sempre aberta ― de por que o Brasil não
consegue “vencer este problema”.
Há toda uma seção do arquivo devotada à apresentação de novos projetos, na
qual os parlamentares buscam dar sua “contribuição à resolução do problema”, além de
discursos de questionamento aos Ministros da Educação sobre ações do Ministério na
área da Alfabetização de Adultos. Outro conjunto refere-se à passagem do Dia Nacional
(14 de novembro) e do Dia Internacional da Alfabetização (8 de setembro), com
manifestações de elogio aos programas governamentais, bem como acusações sobre a
permanência e gravidade do problema “apesar dos esforços empreendidos”.
Os textos selecionados para o arquivo são transcrições dos discursos proferidos
em sessões plenárias e se alongam de 1948 a 2014. Procurando dar visibilidade à
140
questão das regras sobre o poder dizer do analfabetismo, selecionamos os discursos que
pronunciavam sobre a vergonha, sobre as dificuldades, e demos uma atenção às
propostas, pois estas se relacionam de forma estratégica com a racionalidade biopolítica,
uma vez que falam para alguém, desde o lugar do poder do Estado, numa tribuna oficial
e, nas opções sobre o como dizer, selecionam os enunciados de forma a obter o
convencimento.
Os discursos sobre analfabetismo estão inseridos no âmbito dos grandes temas
nacionais com o início da década de 1940, e as estratégias que conferiram visibilidade
ao tema existiram no interior da questão mais abrangente que negociava as definições
sobre quem e o que era o Brasil de fato. No tocante às questões do analfabetismo e
Educação de Adultos, os discursos parlamentares amplificam visões circulantes e as
fazem transitar no lugar da autoridade legislativa, onde se produzem leis, onde a
normatização da sociedade se faz procedimento especializado.
O pronunciamento disponível mais antigo a referir-se ao analfabetismo adulto
data de 1948 e apresenta o projeto de lei que cria uma curiosa cobrança de multas para
adultos que não se matricularem nas escolas de Ensino Primário. Esse pronunciamento
nos parece uma peça interessante por conjugar, sob as rédeas da benevolência que em
geral acompanha o debate sobre o analfabetismo, alguns enunciados que compartilham
os regimes de visibilidade e de enunciabilidade da questão da alfabetização de adultos.
A proposta apresentada pelo deputado constituinte Aureliano Leite tem por
escopo a cobrança de multas aos responsáveis por crianças e aos adultos que não se
matriculassem nas escolas de ensino primário disponíveis em sua região. As multas
visam a coibir a baixa frequência dos estudantes. Tendo em vista a escassa rede de
educação escolar até então implantada no país, o próprio autor do discurso já adianta
que essa obrigação se aplica aos lugares “onde houver escolas de ensino primário”.
A justificativa apresentada pelo autor do projeto é bastante clara e fala de uma
regularidade ainda hoje presente nas práticas de Educação de Jovens e Adultos: “O
memorial focaliza o fato de se verificarem, no Brasil, fechamentos de escolas, quer
primárias, quer de alfabetização de adultos, por falta de frequência”, e segue “É
lastimoso, se não fosse paradoxal, que esse fenômeno aconteça em nosso país, terra que,
como todos sabem, bate o record no coeficiente de analfabetismo no mundo” (DIÁRIO
DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1948, p.3.247). Percebe-se, nesse pequeno trecho,
141
que a diferença entre os dados de analfabetismo e os dados de matrícula, problema da
década de 1940, permanece dotado de impressionante atualidade. E uma das linhas de
força da discursividade que mantém a face biopolítica da Educação de Adultos é
justamente essa atualidade vigorosa de alguns dos seus problemas mais antigos.
A associação salvacionista não tarda a aparecer no texto, em geral associada à
dualidade bem e mal: “acho, todavia, que poderemos, com as medidas consubstanciadas
na proposição que apresentei, atenuar o mal, suavizando esse estado de coisas de que o
Brasil sofre de longa data.”. A multa para adultos entre 14 e 45 anos que não
frequentarem a escola estava prevista para 50 a 500 cruzeiros34
e para se livrar da multa
a pessoa deveria provar “já saber ler e escrever”, “incapacidade física do analfabeto” ou
“inexistência no lugar de residência do analfabeto de escolas próprias ou que estas já
estejam lotadas”.
A enunciação do problema da alfabetização das pessoas adultas se dá num
ambiente em que a liberdade de escolha do sujeito a respeito de participar ou não das
práticas de alfabetização não parece ser uma razão considerável. A extensão da
obrigatoriedade da frequência à escola aos adultos é entendida por esse projeto de lei
como uma manobra simples para superar os índices de analfabetismo.
Na longa continuidade dos problemas que enunciam a Educação de Adultos,
algumas séries são encontráveis nesse arquivo. O enunciado do fechamento de turmas
se faz presente, seja no projeto de obrigatoriedade do deputado Aureliano Leite, seja no
apelo e protesto apresentado pelo deputado maranhense Pedro Braga, em 1957, relativo
ao fechamento de turmas de alfabetização de adultos naquele estado. Encerrar turmas de
alfabetização de adultos num país com grande quantidade de analfabetos constitui-se
numa posição contraditória no campo da Educação de Adultos. A manifestação dessa
oposição não é apenas uma mera contradição de fatos. Ela se explica pela conformação
necessária de dispositivos específicos atuando em diferentes territórios da biopolítica.
Logo, a eficácia do atendimento ao analfabetismo em algumas regiões do País
desfrutava de clara legalidade, e ampla legitimidade, enquanto que em outras regiões
não se configurava como uma prioridade. É contra isso que o deputado maranhense
protesta em plenário: “Sr. Presidente, eis um paradoxo terrível: enquanto o Sr. Ministro
da Educação diz que abriu um crédito de 800 milhões para extinguir o analfabetismo, a
34
Em valores atuais algo em torno de R$187,50 e R$1.875,00 respectivamente.
142
Assembleia do meu estado solicita, em telegrama, dirija eu apelo a S. Exa. para que não
extinga 400 escolas locais”35
.
Fechar turmas da Educação de Adultos é um problema que encontra sua relação
com o contemporâneo através das páginas dos jornais e nos sítios eletrônicos
especializados. Segundo matéria de um sítio eletrônico da área de Educação, “O
processo de nucleação dos cursos de EJA tem ocorrido em outras cidades do país, como
São Paulo. Esse mecanismo consiste na concentração da modalidade de ensino em
escolas polos, reduzindo o número de espaços que oferecem EJA”36
. Há espanto e
protesto, mas o enunciado do fechamento de turmas ainda se faz presente, atravessando
mais de sessenta anos. Logo, a Educação de Adultos, e sua versão escolarizada no
Brasil, a EJA, passa por essa grade de enunciação em que o fechamento de turmas é um
dispositivo possível, frequentemente acionado, e cujas causas se dissolvem num amplo
leque de hipóteses.
O traço que se impõe é que a EJA é um lugar de esvaziamento, de ausência e
clausura. E isso contrasta com os fatos dos números que afirmam haver milhões de
pretendentes a essa modalidade. Em 2013, o deputado Izalci chama a atenção em
plenário para o mesmo objeto: “Eu vi algumas matérias nos jornais de hoje também
tratando da questão do EJA, que é a Educação de Jovens e Adultos. O número de evasão
é muito grande. Aqui em Brasília há turmas em que 80% se evadem, não concluem o
curso do EJA”. O esvaziamento da experiência da EJA, acusado pelo esvaziamento das
escolas, que no ano de 1948 gerou um projeto de obrigatoriedade e multa aos evadidos,
que provoca a necessidade administrativa de fechamento de turmas de EJA, por falta de
alunos, aparece aqui em 2012 já com seu nome mais conhecido de evasão. São três
enunciados que se cruzam: o fechamento, a clausura, e o abandono pelo estudante.
Nesses enunciados, estar sob a lei e tornar-se enunciável passa pela exibição da falta
que caracteriza essa relação do sujeito com o Estado.
35
O Ministro da Educação e Cultura na ocasião era Clóvis Salgado, que ficou no cargo entre 1956 e 1961,
com breve pausa para disputar eleições. Apoiou o Golpe Militar de 1964, tendo sido membro do
Conselho Nacional de Educação entre 1964 e 1968. Fonte: CPDOC/FGV, disponível em
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/Clovis_Salgado>. 36
Disponível em:
<http://www.observatoriodaeducacao.org.br/index.php/eja-e-educacao-nas-prisoes/64-eja-e-educacao-
nas-prisoes/1202-fortaleza-reduz-a-metade-numero-de-escolas-com-educacao-de-jovens-e-adultos>
Acesso em: dez. 2014.
143
Fechar e proibir de abrir se localizam na mesma região de atos de poder. Quando
referidos à educação, lembram-nos de que essa é uma prática perigosa que precisa ser
regulada. Corresponde ao mesmo exercício de delimitação dos lugares educacionais por
onde pode transitar a população adulta presente uma pequena ordenação do reino,
registrada na legislação de Portugal datada de 1700, bastante clara a respeito dos atos
possíveis no campo educacional daquele período:
Ordena o Senado, que de hoje em diante não seja pessoa alguma tão
ousada que abra Escóla de ler, escrever e contar, sem licença do
mesmo tribunal, que não só a devem pedir as ditas pessoas, que de
novo abrirem as mesmas escolas; mas também todas as que de
presente as tiverem aberto; e a estas se lhes dá o termo prefixo de
quinze dias, que serão contados do dia da data deste; com declaração
que os Mestres que atualmente tem suas Escolas abertas no Termo
desta cidade, se lhes concede hum mez de tempo para tirarem suas
licenças, e os que fizerem o contrário, do que fica declarado no
presente edital, incorrerão na pena de hum mez de prizao, e das mais
que parecem ao sobredito Tribunal. Lisboa, 9 de Julho de 1765 –
Pedro Correa Manuel de Aboim.37
Esse tipo de norma regulando o exercício da profissão docente e a oferta de
educação às populações possui uma longa história de discursos que se remetem uns aos
outros, desafiando tempo, localização geográfica, contextos políticos. Não nos é
estranho que uma prática no âmbito do Estado dito “de direito” seja juridicamente
regulada. O que salta aos olhos é que a violência presente nesses enunciados revela o
grau de perigo associado às iniciativas educacionais, tendo em vista a necessidade de
regulá-las com veemência.
Os enunciados da vergonha também desfrutam de longevidade entre os modos
de dizer autorizados pelo discurso da alfabetização. Em 1961, o deputado Miguel
Bahuri, do Estado do Maranhão, apresenta projeto de lei que previa o envio de recursos
federais para aquele estado, tendo em vista os índices de analfabetismo ali existentes,
em sua participação na plenária, diz o seguinte: “Senhor Presidente, o Maranhão, com
uma população de dois milhões e trezentos mil habitantes, noventa por cento da qual
vivendo em regiões rurais, segundo estatísticas recentes, apresenta um dos mais altos
índices de analfabetismo no mundo. Isto, convenhamos, para um estado cuja capital já
foi considerada a Athena brasileira, constitui uma vergonha, não somente uma vergonha
37
A ortografia original foi respeitada. Fac-símile do edito pode ser visualizado no anexo 1.
144
para os maranhenses, mas também para a Nação Brasileira.” (DIÁRIO DA CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 1961, p. 5.656).
Em março de 1965, o deputado Carlos Werneck, ao citar o índice de 87% de
analfabetos na população da capital do Ceará, dá seguimento à série genealógica dos
discursos em que o analfabetismo é associado à vergonha, como parte da retórica
pública pela sua superação. Ele afirma: “No momento em que o país se esforça para sair
do subdesenvolvimento e ingressar numa etapa mais avançada, sabemos que na capital
de um dos mais antigos estados brasileiros existe um índice de analfabetismo que atinge
quase a 90 por cento é qualquer coisa que nos humilha, que nos envergonha, que nos
avilta. É desses dados que, divulgados, deixam o País muito mal.” (DIÁRIO DA
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1965, p.1.306).
No conjunto das estratégias biopolíticas das quais estes discursos fazem parte, a
rede de sustentação alcança pontos de enlace também com discursos da ordem moral e
econômica. São enunciados que se dirigem desde o lugar das autoridades políticas,
constituindo linhas de força que atuam sobre subjetividades, sendo promovido através
de práticas de nomeação dos destinatários da ação do Estado.
A insistência na apresentação da pessoa analfabeta numa imagem social de
esvaziamento, pobreza, rudeza, incapacidade possui uma série longa que se estende
desde a década de 1940 até o ano de 2014. Como afirmou o deputado Florim Coutinho,
em seu pronunciamento de 14 de março de 1974:
145
Fonte: Diário da Câmara dos Deputados, 14/03/1974, p. 0523.
São esses enunciados que produzem a experiência do analfabetismo como uma
anomalia, num exercício de constrangimento que atua de forma paradoxal sobre o
sujeito. Por um lado, sente-se o olhar do outro a delinear a nossa falta, a nossa
subalternidade, empurrando-nos para o encontro com a face da biopolítica que vai nos
normalizar e inserir nesse mundo maravilhoso proporcionado pela escrita.
Simultaneamente, esse investimento discursivo na vergonha produz uma
necessidade de tornar-se invisível, de mascarar a condição de falta atribuída com
estratégias de convivência com a escrita sem que se esteja efetivamente dominando a
técnica correlata. Nesse caso, a experiência social da escrita, enquanto tática do sujeito,
assume o lugar de uma técnica cujo domínio é protelado, porque assumir-se nesse lugar
de subjetivação envolve assumir-se publicamente como alvo do constrangimento.
Talvez por esse mecanismo não exista um movimento social de pessoas não
alfabetizadas, os “sem escrita” como há um Movimento dos Sem Terra. Ao mesmo
tempo em que obtém um grau elevado de eficácia na regulação da população, esse
processo gera um plus de controle através da minoração da mobilização por um direito,
tornando a economia dos discursos da alfabetização altamente eficaz do ponto de vista
das relações de poder.
Como falar de si, nos tantos exercícios que a escola propõe, como caminhar
voluntariamente para um espaço social já demarcado pela violência dos discursos do
146
constrangimento? Como abandonar o lugar de onde se fala para assumir-se enquanto
falta propagada pelo outro? Participar dessa enunciação se assemelha ao que o Mestre
Pastinha, baiano e mestre da capoeira angola, ensinava aos seus aprendizes: “Se você
quer chamar uma moça pra dançar, vai bater nela?” Portanto, como convidar para tomar
parte de uma versão do mundo através de um posicionamento humilhante para o
convidado? Compartilhar do mundo normalizado da escrita, desde o lugar da vergonha,
é um dos movimentos mais contraditórios que essa discursividade produz. Um
permanente encaixe e desencaixe de perspectivas várias sobre o mesmo horizonte que
remete ao processo de subjetivação e dessubjetivação discutido por Agamben.
Paradoxos que vão se articulando, como a dialética direito versus dever.
Cumpre recordar que os movimentos de alfabetização, não apenas no Brasil, mas
aqui especificamente, são movimentos de pessoas alfabetizadas, educadores e
interessados no tema. Se essa discursividade, graças também a este movimento social
amplo que inclui pessoas pesquisadoras e educadoras, conseguiu transformar
internamente a regra de enunciação para se referir às pessoas não alfabetizadas como
“sujeitos da EJA”, buscando formas menos violentas para referir-se às pessoas que não
frequentaram a escola, já em outros territórios discursivos, a referência à vergonha ainda
se encontra vívida e circulante. Em 2011, no Congresso Nacional, a classe de políticos
profissionais brasileiros continua manifestando vergonha ao referir-se ao analfabetismo:
“Acho que uma nação desenvolvida, uma nação que caminha para ser a quinta
economia do mundo e que hoje é a sétima economia do mundo não pode conviver com
um índice vergonhoso de população analfabeta como o que temos hoje.” (DIÁRIO DA
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2014).
A análise dos discursos parlamentares resulta na conclusão de que o reforço
contínuo dos enunciados da vergonha, da urgência, da campanha, da erradicação
participa do contexto geral que contribui para o equacionamento insatisfatório da
questão da alfabetização. Há uma tendência forte para a negatividade, para a denúncia e
o assombro, poucas referências ao modo de vida das populações não alfabetizadas,
quase nenhum registro sobre o respeito à sua cultura ou interesses.
O que se repete, da década de 1940 aos anos 2000, é a necessidade de alfabetizar
as pessoas para que o Brasil supere a situação de vergonha em que se encontra devido à
147
relação de exterioridade com a escrita, transformada em questão nacional irresoluta até
os dias atuais.
O enquadramento da questão precisa avançar de uma formulação insistente
sobre esses fatores e encontrar um modo de enunciação e uma forma de visibilidade da
questão do acesso à escrita, da escolarização para adultos por outras chaves que não
submetam os sujeitos e populações não alfabetizadas ao suplício de serem os portadores
de uma chaga social ou envolvidos por uma permanente estratégia de adiamento de suas
necessidades e objetivos educacionais. É preciso, sobretudo, deixar de dizer às pessoas
quais devem ser esses objetivos e essas necessidades. Deixar que tracem seus planos de
vida e considerem a alfabetização uma possibilidade ou não de acesso ao mundo escrito
e à educação escolar.
Pensar o direito à educação passa também por refletir em que medida a alguns é
facultado o direito a escolher, enquanto para outros o direito é o disfarce da regulação.
No jogo de máscaras que tenta nos convencer a todo custo de que a salvação dos nossos
problemas é o acesso à escrita e à submissão à salvação que ela carrega, é uma tarefa
dura poder pensar a Educação de Adultos de modo diferente, radicalmente diferente, a
ponto de poder até reconhecer como possibilidade que o fracasso nas práticas de
escolarização e a baixa efetividade dos programas de alfabetização pode significar
apenas que as pessoas não querem aquilo que estamos oferecendo. Mas, elas podem
querer outras coisas que a nossa benevolência não consegue compreender, porque
estamos comprometidos demais com a ideia de salvá-las.
É pela possibilidade de desmontagem desses enunciados, dispositivos, pela
possibilidade de criarmos outras tecnologias, mais amenas e conformes às escolhas das
pessoas, que um trabalho como este pode encontrar um pouco de sua finalidade e o
destino das questões que levanta.
148
3.2. O circuito da conversão: uma linha de força na Tecnologia do
Constrangimento
O tema da conversão faz seu aparecimento na discursividade sobre a
escolarização de adultos no Brasil mediado pelos discursos reitores de pensadores que
fundamentam o campo. Encontra-se, ainda, numa rede que envolve discursos
midiáticos, parlamentares, documentos técnicos e científicos. A sua dispersão envolve
também peças audiovisuais referidas à escolarização ou aos seus sujeitos. Sua presença
legitima algumas das regras do que pode ser dito sobre a alfabetização e escolarização
de pessoas adultas, compondo o cenário que torna possível a enunciação do tema.
Ao enunciar a inserção do sujeito no mecanismo geral da escolarização a partir
do argumento geral da transformação de si, a governamentalidade dessas práticas
produz efeitos que constrangem o sujeito a não ser mais o que é e tornar-se outro em
benefício da sociedade (do desenvolvimento, do progresso ou da civilidade). A
problemática central sobre esse aspecto aparentemente inocente das políticas de
Educação de Adultos é a presunção de que as pessoas precisam da escrita para serem
“melhores”, o dogma de que a escrita confere “uma vida de direitos e cidadania”, e a
percepção colonialista de que a vida fora da escritura é “menor”, mais “pobre” e mais
“vulnerável”.
O tema da conversão tem raízes profundas no pensamento ocidental referido ao
sujeito. Segundo Foucault (2011, p.190), a metanoia é o modo específico com que o
tema da conversão aparece no cristianismo, sendo configurada por três elementos: um
acontecimento único histórico e meta-histórico, uma passagem ou mudança de estado
do sujeito, e uma ruptura no interior do próprio sujeito. O sentido geral da noção de
metanoia é a mudança da alma. Metanoia refere-se à conversão de si para a salvação. A
segunda forma de salvação seria a epistrophé platônica, caracterizada pelo ato de
desviar-se das aparências, retornar a si para ocupar-se consigo, fazer a reminiscência e
assim retornar à sua essência (FOUCAULT, 2011, p.188). O terceiro modelo
apresentado por Foucault consiste na versão helênico-romana da conversão,
caracterizada, primeiro, pelo deslocar-se do que não depende de si para o que depende
exclusivamente de si. Trata-se de uma relação completa de si para consigo e o ato de
conhecer constitui-se na ação central do processo de conversão. Em relação à conversão
cristã, o modelo helenístico-românico difere em relação à ruptura, que não se dá no
149
sujeito, mas com algo que se situa no entorno; a segunda diferença é que o olhar deve
voltar-se a si; o terceiro é que a meta da conversão é o eu.
Nos modelos apresentados por Foucault, a ideia de uma conversão para ser
Outro, a partir de uma ruptura consigo, aparece na metanoia cristã. Cremos ser por essa
via que a noção de conversão presente nos discursos da alfabetização de adultos se
apresenta no contexto brasileiro.
Em todos os modelos de conversão, uma constante é que por esse mecanismo se
revela um certo modo de relação do sujeito com a verdade. A versão da conversão
acionada pelo discurso da Educação de Adultos tem uma de suas fontes no racionalismo
iluminista e outra na teleologia cristã. Trata-se de um arranjo que vincula a
transformação de si através da renúncia de si, característica da conversão cristã, com o
preceito da Aufklarüng, essencialmente a ideia de emancipação pela razão.
A esta fórmula é adicionado um conteúdo de libertação social, no qual o povo é
constituído como sujeito de libertação. As contribuições do existencialismo, do
marxismo e do cristianismo são os termos que compõem o círculo externo da espiral
dessa fórmula. Entretanto, a configuração final dessa conversão no modo como se
apresenta no discurso da Educação de Adultos tem uma estrutura aparentemente mais
laica, referida menos à transformação como aspecto do cuidado de si e mais fortemente
apropriada pela ideia de governo da vida e transformação de si a partir da aquisição de
uma técnica, o que difere em muitos aspectos das práticas de si helênico-românica e
platônica. Foucault (2010, p. 188) nos informa que a conversão tem uma inegável
matriz religiosa, mas também moral e por fim política, que se trata da mais antiga e
tradicional tecnologia de si.
A incorporação da conversão como tecnologia de si mantém algumas linhas de
relação com o discurso da alfabetização de adultos ainda hoje circulante. As técnicas em
torno do escutar-ler-escrever do século I-II, descreve Foucault na Hermenêutica do
sujeito (p.324-325), serviram como modelos para as práticas de si na pastoral e na
espiritualidade cristãs e estas, por sua vez, influenciaram práticas pedagógicas das
ordens religiosas que se espalharam pelo mundo. Nessas práticas, o filósofo francês
destaca o discurso do mestre, que se baseia na revelação e nas escrituras, e a fala do
“dirigido”, que pressupõe seu dizer verdadeiro sobre si mesmo como requisito da
salvação. Segundo Foucault (2010, p.325),
150
Penso ser preciso considerar como um acontecimento de grande
importância, nas relações entre sujeito e verdade, o momento em que
o dizer-verdadeiro sobre si mesmo tornou-se uma condição para a
salvação, um princípio fundamental na relação do sujeito consigo
mesmo e um elemento necessário ao pertencimento do indivíduo à
comunidade.
O dizer-verdadeiro sobre si mesmo da pessoa não alfabetizada pode ser
vislumbrado justamente naquele momento em que ela se desdobra de seu cotidiano e faz
um movimento em direção à escola, que quase sempre é um retorno a algo deixado
muito tempo atrás. Essa mobilização é também a assunção de um lugar de vergonha e
sua superação na busca pelo acesso à escrita e tudo que ela promete trazer. Do ponto de
vista dos sujeitos autorizados sobre a alfabetização (educadores, políticos, etc), a
salvação equipara-se à libertação e daí advêm os argumentos tão comuns no campo da
Educação de Adultos sobre o caráter redentor da alfabetização e da escola.
É na escola que se operam, através de mecanismos controlados e cotidianos, as
práticas muito similares à do dizer-verdadeiro como técnicas de subjetivação, incluindo
“a escuta dos discursos verdadeiros que lhe são propostos” (FOUCAULT, 2011, p.326).
Percebe-se que uma governamentalidade só pode operar adequadamente se o sujeito
estiver exposto a tais práticas, o que deve ocorrer prioritariamente no espaço escolar, no
que tange às populações não alfabetizadas.
O cuidado de si era uma condição para a salvação da cidade na cultura grega das
práticas de si; já na versão do séc. XX presente no discurso da Educação de Adultos, a
salvação da cidade está dissociada do cuidado de si, mas é submetida à inscrição do
sujeito na ordem do poder, através de sua participação na escolarização. A pedagógica
submete a possibilidade de cuidar de si para ser parte da salvação da cidade ao apelo
apenas para contribuir na salvação da cidade, sem exercer o cuidado de si propriamente
voltado a si. Como traços dessa forma de conversão, a ideia de renúncia a si aparece
nessa discursividade a partir do reforço a noções negativas do sujeito, executadas pelo
mecanismo da vergonha. O sujeito da alfabetização é aquele a quem falta uma
“racionalidade científica ou complexa”, cujo pensamento é “ingênuo e sincrético”.
A dimensão biopolítica das tecnologias aqui discutidas não se esgota na questão
do controle das populações e da incorporação da vida como objeto político ao nível do
151
múltiplo. Diante da questão da vida biológica das populações, a biopolítica da
escolarização de adultos e seu dispositivo central da alfabetização localiza a escrita
como uma tecnologia refinada dirigida ao sujeito, cuja ênfase específica é que se
constitui como o saber que permitirá à vida do sujeito ser melhor, tornar-se aquilo que
deve ser, com um traço distintivo em relação às formulações do período helenístico:
aqui já não se faz um serviço em torno do sujeito: o cuidado de si é o aspecto menos
enfatizado em detrimento da metanoia que beneficia a cidade.
3.2.1 O discurso da metanoia em Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire
Os enunciados da metanoia encontram em sujeitos e instituições altamente
legitimados no meio social uma parte considerável de sua sustentação. Ao lado desse
mecanismo fundador, em que o autor é antes um “princípio de agrupamento do
discurso” do que propriamente um sujeito empírico, alguns enunciados ouvidos à
distância obtêm certas sínteses que se fazem reconhecer e ecoar por longo tempo. Os
discursos que são ditos e continuarão sendo ditos se fazem presentes nas políticas
discursivas sem que seja necessário o prestígio dos seus enunciadores. Mas, quando o
prestígio entra em cena, são reforçados, encontram ecos mais longos, inscrevem-se de
forma mais permanente, e alongam seus comentários ad infinitum. Os dois casos que
analisamos abaixo constituem um exercício de interpelação de dois enunciados de
prestígio no discurso educacional referido à Educação de Adultos. São dois pensadores
centrais ao campo e inscritos numa discursividade emancipatória, crítica, o que torna
sua análise ainda mais necessária.
Álvaro Vieira Pinto é um representante do grupo de intelectuais brasileiros,
organizados em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), responsáveis
por provocar um momento de intensa reflexão sobre o País, sobre o povo e sobre os
destinos da nação durante a década de 1940. Considerado uma influência sobre o
pensamento de Paulo Freire, era um filósofo interessado nas questões do Brasil, que
proferiu, ainda na década de 1960, as “Sete lições sobre Educação de Adultos”
(SAVIANI, 2010). Nessa obra, expõe sua reflexão de que a educação é “eminentemente
ameaçadora”, porque exige transformação da consciência dos sujeitos. Para Vieira
152
Pinto, formação e educação formam uma identidade, ou seja, elas representam dois
aspectos de um mesmo processo. Além de observar a educação como processo, fato
existencial, fato social, ele também ressalta o papel que essa prática tem no
engendramento da “ruptura do equilíbrio presente, de adiantamento e da criação do
novo” (2010, p.33). Como intelectual de pensamento crítico, de matriz histórico-
dialética, compreende o papel do “saber letrado” como um privilégio de alguns grupos
sociais em sociedades industrializadas. Segundo o filósofo, o analfabetismo é uma
realidade sociológica, que deve ser tomada em consequência da realidade humana, do
sujeito que o vivencia.
O tema da metanoia, que acompanha as justificativas liberais, neoliberais e
críticas da educação escolar, aparece aqui no sentido da integração social, bastante
aproximada, portanto, à perspectiva funcionalista: “No sentido geral esse fim é a
conversão do educando em membro útil da comunidade.” (2010, p.35). Esse tipo de
formulação integra-se na rede de enunciados que sustentam a convocação dos sujeitos
para inserirem-se na ordem do discurso escolar, demarcando o lugar e a forma de
participação do sujeito interpelado na comunidade.
As estratégias biopolíticas se apropriam dessa formulação e a aplicam de forma
massiva na convocação dos adultos para a escola, reproduzindo indefinidamente o apelo
à mudança de si, expressa como uma das finalidades mais antigas da instituição escolar
e de sua processualidade chamada “escolarização”.
Vieira Pinto (2010, p. 38, grifo nosso) contrapõe à colocação mais geral sobre a
finalidade da educação uma afirmação mais detalhada sobre o processo de conversão:
“na forma elementar, ingênua, a educação é considerada como o procedimento de
transformação do não-homem em homem. Na forma superior, crítica, a educação se
concebe como um diálogo entre dois homens, na verdade entre dois educadores”,
remetendo, portanto, à noção mais geral da conversão à responsabilidade de concepções
por ele consideradas ingênuas de educação. Tal ideia também se apresenta na concepção
sobre a pessoa não alfabetizada: “O analfabeto não é um ignorante, não é um inculto,
mas apenas o portador de formas pré-letradas de cultura (as quais coexistem às vezes
com uma nascente consciência crítica de seu estado, de seu papel social, de seu
trabalho)” (2010, p.39).
153
Seria desnecessário chamar a atenção para a lógica evolucionista, presente nessa
visão “generosa” sobre a pessoa não alfabetizada nas línguas escritas de matriz colonial.
Aqui, o analfabeto é localizado como alguém cuja cultura encontra-se “antes”, e cuja
consciência crítica ainda é nascente. Cremos que formulações dessa ordem encontram-
se aproximadas das lógicas etnocêntricas que presidiram os processos mais amplos da
própria colonização, e se desdobram nos processos que naturalizaram a escola, e a
escrita escolar, como processos essencialmente benfazejos e destituídos de “funções
impuras”.
Ao reforçar os lugares de subalternidade das pessoas não alfabetizadas através
de enunciados como “pré-letradas”, admitem a existência de outros saberes, mas
reafirmam a escrita como norma. Por outro lado, Vieira Pinto afirma que o educando
adulto é sujeito de cultura, homem culto no sentido não idealista, querendo afirmar que
o conhecimento “da experiência feito” é, para ele, válido e legítimo.
Esse mesmo tipo de formulação aparece no pensamento de Paulo Freire, embora
de formas variadas ao longo da obra, e com graus atenuados e cada vez mais críticos em
relação ao lugar social do analfabeto.
O que caracteriza o pensamento crítico é a possibilidade de avançar em termos
dos compromissos que expressa. No caso brasileiro, o que chamamos de pensamento
crítico se constitui como a defesa de uma categoria de alta abstração que é a categoria
povo. Álvaro Vieira Pinto (2010, p.47) traz essa categoria para o debate como um
elemento legitimador das práticas de educação, segundo ele: “O conteúdo da educação é
popular por excelência. Só deixa de sê-lo de fato em condições de alienação cultural.”
O popular é também o fiel que avaliza a legitimidade de uma “educação para
todos”, problematizando, pelos idos da década de 1960, as premissas atuais defendidas
pela UNESCO. O autor faz isso colocando as massas no lugar de sujeitos históricos de
sua própria educação, em termos bem marxistas, datados numa filosofia da consciência,
mas atentos ao fato inegável de que sem o desejo das pessoas a quem a educação é
destinada, as práticas de escolarização se esvaziam em efeitos puramente reguladores:
“a exigência de educação para um maior número (e por fim para todos) só chega a ser
irresistível quando parte da própria massa que começa a recebê-la. Porque de agora em
diante se constitui em fato político. Não é mais o projeto bem intencionado de alguns
pedagogos generosos” (2010, p. 50).
154
Ainda sobre o popular, Vieira Pinto localiza nessa posição subjetiva a ideia de
atraso. Esse é um dos enunciados mais complexos de serem lidos no pensamento de um
ideólogo do pensamento crítico. Na afirmação de que “o país é atrasado em virtude dos
modos de vida de suas massas (não de suas elites)”, observamos uma das matrizes do
mecanismo sutil que localiza a vida popular não alfabetizada no lugar do que precisa ser
modificado, alterado, evoluído, civilizado. Difícil não recorrer à noção de perigo que o
Estado governamentalizado produz para justificar suas intervenções no corpo social das
populações. Por isso, o tema da metanoia pela escola é uma constante tanto das
propostas emancipatórias quanto das propostas conservadoras, configuradas, por
exemplo, nos períodos de ditaduras pelos quais o Brasil passou no último século.
É interessante ao nosso debate, que problematiza as noções de que o
analfabetismo é um vazio que a escola vem suprir, destacar a interessante leitura que o
professor Vieira Pinto traz sobre o sentido de ignorante, essa palavra tão utilizada para
se referir à condição da pessoa analfabeta, uma vez que o autor, aplicando a lógica
dialética, desdobra o sentido do termo utilizado e evidencia que, em meio à articulação
complexa de diversos enunciados sobre povo e analfabetismo, há uma tática local de
caráter lógico que se mascara como verdade no jogo das formações discursivas. A esse
respeito, analisa Vieira Pinto (2010, p. 65):
Absolutiza-se o conceito de ‘ignorante’ para as classes populares,
enquanto se relativiza esse mesmo conceito para as elites (a fim de
que os representantes dessa elite possam aparecer como não
ignorantes). Vê-se a duplicidade de critérios, que revela o caráter
interessado da noção de ignorância: o homem do povo é ignorante
porque não sabe alguma coisa, enquanto o membro da elite é culto
porque sabe alguma coisa. Um indivíduo não pode ignorar assim
alguma coisa, que é concretamente sabida por outro. Como, porém,
este outro ignora muitas coisas que o primeiro sabe, o caráter da
ignorância é sempre relativo. A consciência ingênua necessita
absolutizar a ignorância, o que só pode fazer convertendo-a em noção
irreal.
É interessante destacar ainda, desse texto, em virtude da posição do seu autor
junto ao pensamento pedagógico crítico do país em meados do século passado, uma das
características da atitude pedagógica que coloca o educando em posição de objeto. A
155
primeira da lista de quatro38
refere-se ao fato de que esse tipo de posicionamento é “1)
moralmente insultante, pois ignora a própria dignidade do homem pelo simples fato de
ser homem, não importando se é letrado ou não”. Ora, um dos enunciados mais fortes
sobre a conversão da pessoa não alfabetizada é justamente aquele em que a inserção na
cultura letrada é o que vai garantir ao sujeito a dignidade e que simultaneamente associa
a vida não alfabetizada a um vazio, uma não vida. Vemos nesse texto complexo e
interessante, recheado de oposições, uma crítica ancestral a essa discursividade. A
oposição estratégica que esse enunciado expressa em relação ao enunciado da vergonha
na rede discursiva que sustenta a face biopolítica da Educação de Adultos parece ter
encontrado baixo eco na luta pelas definições sociais a respeito da condição de
analfabetismo.
Para Vieira Pinto, a participação das pessoas não alfabetizadas na vida social e
política não é posterior à sua inserção na escolarização; antes, é esse processo que deve
vir como resposta à presença ativa do sujeito na vida social. Essa é uma inversão
completa dos posicionamentos sobre a vida política e o analfabetismo que se
apresentam dispersos nos vários enunciados sobre o direito ao voto, por exemplo. O
autor considera sociologicamente falsa e pedagogicamente errônea a tese de que é mais
pertinente concentrar os esforços da educação das crianças, deixando os adultos na
externalidade do saber alfabetizado. Preocupado com o conteúdo da continuidade dos
estudos de alfabetizandos, Vieira Pinto tece vários comentários às campanhas, fundadas
nessa crítica primeira à concepção de pessoa não alfabetizada presente nas
racionalidades políticas hegemônicas. Segundo o autor, ao invés de campanhas, que
tratam o analfabeto como “inimigo ou infiel”, deveria haver “apenas a ação normal,
constante e intensa do poder público” (2010, p.98). Aqui, mesmo que não use a palavra
escolarização, parece ser sobre esse processo que o autor está falando.
O tema do mal, da anormalidade, do inimigo ou do infiel, enfim, a taratologia do
analfabeto é por ele condenada. Vejamos a atualidade de seus comentários:
Em lugar de reconhecer no analfabetismo um índice natural da etapa
em que se encontra o processo de desenvolvimento nacional,
apresenta-o como uma anormalidade, uma monstruosidade que é
38
O autor aponta, ainda, sobre as características das concepções ingênuas em educação: 2)
antropologicamente errôneo; 3) psicologicamente esterilizante e 4) pedagogicamente nocivo. (Cf. 2010, p.
67).
156
preciso “combater”, “erradicar”. Estas expressões, frequentes na
oratória dos promotores de campanhas de alfabetização, demonstram
bem que os pedagogos desta estirpe concebem o analfabetismo como
um “mal”, uma “enfermidade”, uma “endemia”, uma “erva daninha”,
ou seja, que o veem como algo não natural no corpo da sociedade.
Assim, enquanto este for o pensamento dominante não há
possibilidade de que o educador ou o legislador entre pela correta via
de resolução do problema do analfabetismo, que é de fato uma
deficiência culturalmente grave, mas que nada tem de
sociologicamente anormal. (2010, p. 93).
Essa passagem tem elementos que nos interessam. Primeiramente, faz uma
leitura pertinente da questão da anormalidade no discurso da alfabetização de adultos e
relaciona o equacionamento da questão à mudança na racionalidade que preside as
decisões políticas e pedagógicas; segundo, traz à tona a face biopolítica das práticas
alfabetizatórias a partir da construção deste “outro estranho” que seria o analfabeto, uma
anormalidade que seria uma doença, o que nos devolve ao tema da segurança biológica.
Por último, apesar de avançar na crítica à racionalidade sobre a pessoa não alfabetizada,
ao situar o analfabetismo como uma “deficiência culturalmente grave” parece recair no
mesmo discurso que critica, voltando a reforçar a localização subalterna da pessoa não
alfabetizada nas línguas escritas de matriz colonial.
No que toca à definição de analfabetismo, Vieira Pinto novamente apresenta
concepções bastante interessantes. Ele define que o analfabeto “em sua essência, não é
aquele que não sabe ler, sim aquele que, por suas condições concretas de existência, não
necessita ler.” (2010, p. 95). Essa definição não trata o analfabetismo como uma chaga
social, nem como um dado natural da pessoa não alfabetizada, mas situa na ontologia
materialista a explicação sobre essa condição, deslocando o olhar da questão da falta
para a questão da necessidade: “pode-se dizer que é o trabalho que alfabetiza ou
analfabetiza o homem, segundo exija dele o conhecimento das letras, ou seja, de tal
espécie que o dispense de conhecê-las.” (2010, p.96).
Para o filósofo, o tema da necessidade é um crivo para que o indivíduo se
reconheça nas práticas de alfabetização, pois importa que ele sinta como necessário esse
saber em sua vida; no plano coletivo, Vieira Pinto (2010, p.107) alerta que “se faz sentir
a iniciativa do poder público, que promove e comanda o esforço de alfabetização do
povo, é porque a sociedade agora precisa que os atuais analfabetos possam ler”. Um dos
objetivos da leitura mais detalhada desse texto é a presença nele de uma série de
157
enunciados que participam da discursividade sobre a Educação de Adultos no Brasil de
forma constante desde a década de 1960.
Observe-se nesse último trecho que um dos traços mais marcantes do campo da
Educação de Adultos no Brasil é o fato de não haver grandes mobilizações de pessoas
adultas demandando essa educação. É um fator incômodo para nossas reflexões do
campo crítico da educação e uma questão ainda não resolvida, podendo indicar um
baixo índice de interesse pela escola. Discutindo o processo das Confinteas, Ireland
(2013, p. 25) alerta que “em nível nacional e internacional, a Educação de Adultos tende
a constituir uma estratégia voltada para a oferta em vez de para a demanda. Os sujeitos
do processo educacional tendem a ter seus direitos passivamente ‘defendidos’, em vez
de ativamente ‘reivindicá-los’.”
Observamos, pois, como Vieira Pinto tratou os temas da conversão à cultura
letrada, da concepção de pessoa não alfabetizada, concepção sobre as tarefas da
Educação de Adultos.
Vejamos agora no pensamento de Paulo Freire como essas questões se
apresentam.
Um dos pontos de partida da reflexão pedagógica de Paulo Freire é o fato de que
a escrita é um poder. Com base nesse reconhecimento, estrutura uma pedagogia
vinculada a um discurso emancipatório que comunga com a perspectiva geral da
modernidade em torno da escrita e do conhecimento como agentes de uma
transformação do sujeito e da vida social. O problema da alfabetização das massas surge
então, nesse pensamento, como uma tarefa histórica fundamental para a emancipação da
sociedade brasileira, algo circunstanciado no discurso do desenvolvimento presente na
obra Educação como prática da liberdade, mas distribuído com parcimônia ao longo de
sua produção que se estende dos anos 1960 até início dos anos 1980. Não resta dúvida,
ao fazer a leitura da obra freiriana, de que a alfabetização era uma tarefa da ordem do
político. Ao fazermos referência a essa dimensão não estamos aqui retomando o
enunciado tantas vezes repetido de que a educação é um ato político.
Pela via foucaultiana, estamos afirmando que a educação, para Paulo Freire, está
inscrita no campo das lutas, dos enfrentamentos, dos confrontos que precisamos realizar
no espaço próprio das relações sociais que é o poder. Dessa forma, nunca foi ingênuo
para Freire que o processo de alfabetização era uma estratégia, dentro de um processo
158
mais amplo de lutas, para a consecução de um projeto de sociedade, que ele chamava de
democrática, numa perspectiva de educação identificada por ele como crítica. A
contribuição da educação para o desenvolvimento do país e para a construção de uma
sociedade emancipada passava, necessariamente, pela garantia de que todas as pessoas
tivessem acesso à leitura e à escrita.
A conflitividade dessa perspectiva é algo que Freire acomodava com uma teoria
da conscientização, a qual sobrepunha à realidade essa camada de percepção chamada
consciência, que poderia caminhar da perspectiva ingênua para crítica através do
processo de apropriação da realidade pelo sujeito. Essa transição da consciência é
acionada pelo dispositivo do saber produzido na situação de reflexão sobre o mundo
imediato do sujeito.
A “leitura de mundo” é um conceito fundamental, porque é a partir dele que o
conhecimento se estrutura, seja o conhecimento “da experiência feito” seja o
conhecimento “sistematizado” fornecido pelos processos educacionais. A teoria da
conscientização é um arcabouço das reflexões mais específicas de Freire a respeito dos
modos de interpretar a realidade e de atuar pedagogicamente sobre o mundo. A partir da
aplicação do método dialético de reflexão, Freire compreende que o confronto dos
saberes produz uma clivagem no pensamento do sujeito que sempre vai caminhar para
uma postura diferente em relação ao mundo e, em geral, suas afirmações em torno do
resultado desse processo são otimistas, considerando que a reflexão leva para esse lugar
qualitativamente superior de vinculação com o meio e compromisso com as questões da
emancipação.
É dessa forma que a alfabetização é compreendida, na fase de sua produção
anterior ao exílio, como uma tarefa de democratização da cultura, contendo objetivos
mais amplos que a aquisição das regras e modos de funcionamento do sistema de escrita
alfabética. É um dispositivo de resistência e questionamento da ordem. Para Freire, a
alfabetização não é o motor da emancipação, mas uma parte do mecanismo que provoca
a transformação. Essa concepção estava ancorada, por conseguinte, numa atitude de
respeito pela cultura do educando, mas também numa atitude de que a cultura letrada
permitia uma sistematização e um deslocamento do sujeito de uma atitude passiva e
ingênua para uma atitude que Freire (1967, p.106) descrevia como ativa, consciente e
criativa no processo:
159
O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a
nossa, inserida no processo de democratização fundamental,
com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma
educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável
organização reflexiva de seu pensamento.
O tema da conversão em Paulo Freire (1967, p.108) é da ordem da consciência,
não é um chamado ao sujeito para tornar-se outro, mas, de forma mais sutil, é um
chamado a mudar um aspecto mais íntimo da subjetividade, a consciência, o modo
como o sujeito observa o mundo e o decodifica: “O aprendizado da escrita e da leitura
como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da
comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo.” Esse tema da
melhoria da visão de mundo e alteração da consciência como passos da emancipação
são também temas da metanoia moderna da escolarização das populações. Obviamente,
a contribuição de Freire não se resume a essa inscrição, mas ela se faz presente e
compõe parte dos pressupostos colonialistas que as perspectivas emancipatórias
contraditoriamente carregam.
Por outro lado, as compreensões sobre o processo de conversão do sujeito à
cultura escrita, apesar de serem articuladas com a questão colonialista do papel da
escrita nas sociedades modernas, são confrontadas com as reflexões oriundas de sua
prática como assessor de programas educacionais nos países africanos, por exemplo:
“Como estrangeiro, não podia impor minhas propostas sobre a realidade da Guiné-
Bissau e sobre as necessidades como os líderes políticos as percebiam. Por exemplo, a
questão linguística foi um dos limites que não consegui ultrapassar, embora tenha
discutido longa e enfaticamente com os educadores minhas preocupações a respeito de
levar avante uma campanha de alfabetização na língua dos colonialistas.” (2011, p.
116).
Como um pensamento caminhante, a concepção de Freire sobre alfabetização
desse período não abandona a inscrição central de que escrita é poder, mas a reformula à
luz das suas experiências principalmente nos países africanos. Ao reposicionar a questão
da língua numa reflexão pós-colonialista, Freire (2011, p.122) mantém uma linha de
coerência com o que dizia antes e durante os primeiros anos do exílio, sobre o fato de
160
que alfabetização não constitui uma espécie de panaceia do social, uma redenção pela
escrita, mas apenas “uma parte do mecanismo deflagrador da transformação”. Segundo
Freire (2011, p. 123)., para gerar uma outra forma de alfabetização era necessário que
uma outra sociedade estivesse em vigência: “A Guiné-Bissau atendia à primeira
condição básica que torna possível o êxito de uma campanha de alfabetização: a
transformação revolucionária da sociedade”.
A contribuição de Paulo Freire extrapola o campo da reflexão teórica e insere-se
na dimensão das práticas. Freire experimentou formas de atuação concreta junto às
populações não alfabetizadas e, mesmo tecendo críticas contundentes aos modos
autoritários de educação, podemos considerar a experiência das 40 horas de Angicos
como um modelo ancestral da campanha de alfabetização. Ali estão presentes todos os
elementos que constituem a campanha como modelo de ação na oferta de alfabetização
para adultos ao longo de todo o século XX: o tempo curto, acelerado; a aprendizagem
instrucional, utilitária; professores leigos e voluntários, baixo custo financeiro e pouca
articulação com a escolarização como processo subsequente.
O que torna problemático esse exemplo ancestral, além das narrativas de tom
mitológico que o sustentam, é a ampla legitimação que o modelo passa a ter em virtude
de ter sido realizado por um importante intelectual e militante do campo crítico; para
Vanilda Paiva (1980, p.20), “a sua pedagogia e a aplicação do seu método devem ser
vistos, nos anos 60, como parte de um processo que inclui a tentativa de rompimento
das amarras do populismo tradicional por parte das classes populares e da busca de
mantê-las sob controle, por parte das lideranças populistas.”
Para além de uma crítica ao pensamento freiriano ou à sua inscrição na rede
política do período, o que importa para nossa pesquisa é delinear que as forças da ação
política não variam, numa perspectiva biopolítica e foucaultiana, de acordo com sua cor
ou inscrição teórica, mas pelo arranjo das relações de poder que essas forças expressam
relativamente aos enfrentamentos que propõem.
Por essa linha de pensamento podemos afirmar que a campanha atuou como
dispositivo biopolítico também em sua inscrição ancestral configurada pelas 40 horas de
Angicos, na qual o que estava em jogo, ao fim e ao cabo, era um processo de
reorganização da governamentalidade, mudando suas ancoragens institucionais, mas
mantendo suas linhas de força regulatórias sobre a população alvo da biopolítica. O
161
governo da palavra, sob a insígnia da alfabetização, inseria as populações não
alfabetizadas no marco da regulação pelo Estado, pela via representativa do voto e pela
via da ideologia, entendida aqui como um efeito discursivo específico de um conjunto
de enunciados. Constitui-se, via campanha, o vínculo com o bando, com a condição de
abandono sob a lei que configura a visibilidade necessária à ação do biopoder. Os
cruzamentos das linhas de força do dispositivo são inevitáveis.
O ponto em que a concepção freiriana parece trazer elementos de uma linha de
fuga em relação a esse marco biopolítico é a concepção de educando como sujeito de
cultura, ancorada numa concepção de cultura mais antropológica e, por isso, mais aberta
e fluida em direção à convivência com a diferença cultural numa lógica não
subalternizante. Considerando também o papel do diálogo, Carvalho (2004) analisa que
as concepções de cultura e saber em Freire contribuíram para o estabelecimento de um
discurso intercultural nas práticas pedagógicas da Educação de Adultos no Brasil, a
partir do contexto de mudanças sociais da década de 1940 em diante. Para a autora, a
perspectiva pós-colonialista de Freire permite que a escrita e a escola passem a ser
espaços onde os discursos do outro circulam, onde também podem ser inscritos: “A
escrita passa assim a ter, também, marcas de outras culturas, culturas do povo,
reconhecidas como Cultura Popular” (2004, p.164).
Em termos biopolíticos, a incorporação do discurso do outro no âmbito de uma
instituição destinada à governamentalidade pode parecer, à primeira vista, uma
estratégia de inclusão para garantir a visibilidade necessária ao exercício do biopoder.
Contudo, sendo a escola um campo de lutas, a inserção dos saberes populares traz
consigo histórias de falares outros que ampliam as superfícies de atrito entre as
referências e, em virtude dessa presença conflitiva, e dos processos de resistência e luta
que se podem desencadear, não apenas linhas de força se expressam, mas também
linhas de fuga. O problema empírico reside no fato de que as perspectivas
conservadoras e monoculturalistas acabaram prevalecendo e a prova disso são os
programas atuais de alfabetização que enfatizam o modelo escolarizante sem maiores
constrangimentos, seja através de seus rituais (chamada, anotação de frequência, prova,
formaturas), seja pelas suas estratégias (avaliação por frequência e rendimento,
currículos, financiamento).
162
O tema da escolarização aparece no Freire tardio, focalizado no debate sobre a
democratização da escola pública, sua efetividade enquanto espaço de garantia do
acesso ao saber. É importante recordar que na década de 1960 o tema da escolarização
não estava em destaque, pois a preocupação era com a alfabetização das massas. Além
disso, o modelo desenvolvido, o Círculo de Cultura, visava a outra possibilidade de
atuação pedagógica e certamente a garantia do acesso ao saber, mas o debate corria
longe da questão de acesso e garantia da qualidade na forma da escolarização.
3.2.2. Vida Maria: perder tempo desenhando nome
A inserção da animação de curta-metragem "Vida Maria" nos arquivos desta
pesquisa se deu de forma tardia, pois originalmente não havíamos feito a opção pela
análise de material fílmico. No entanto, em virtude do questionamento levantado por
uma colega pesquisadora sobre o filme, a autora desta tese se debruçou sobre a
animação e se defrontou com mais um modo de repartição do discurso da escolarização
de adultos, as redes de significação de que ele participa e os desdobramentos dos seus
enunciados nos mais diversos suportes com interlocução em diversos setores sociais.
Após desconfiarmos da primeira camada de significados que esta peça de animação
oferecia, vimos surgir, ao aplicarmos a grade analítica da governamentalidade da
Educação de Adultos, um interessante debate a respeito da questão da metanoia e do
constrangimento presentes nos enunciados presentes ao filme, que participam, por sua
vez, da rede de sustentação da face biopolítica da escolarização de adultos.
Esse pequeno filme é um “curta de animação”, categoria utilizada pelo meio
cinematográfico para se referir a uma produção audiovisual de pequeno porte, na qual a
característica principal é possuir menos de 30 minutos de duração. Na análise que
realizamos neste estudo, a animação "Vida Maria" é tomada como uma narrativa sobre a
pessoa adulta não alfabetizada e a escrita.
A animação "Vida Maria" tem uma longa trajetória de sucesso no meio
audiovisual, tendo recebido inúmeros prêmios39
e desfrutado de largo reconhecimento,
principalmente nos meios educacionais e, muito frequentemente, nos meios
39
Ver em anexo lista de prêmios recebidos pelo curta metragem.
163
educacionais da Educação de Adultos. Não poucas vezes o curta-metragem é exibido
em cursos de formação de professores de EJA, cursos de pós-graduação, aulas de
graduação e mesmo para estudantes da Educação de Adultos. A temática que enfoca e a
beleza estética da peça inspiram debates e promovem a oportunidade de ampla reflexão
sobre a questão da escrita e da escolarização na vida das pessoas. No que nos interessa
neste estudo, enfocamos a relação com a escrita a partir de sua exterioridade e
observamos a forma como o sujeito é narrado a partir de uma ausência cultural.
Primeiramente, é importante delimitar que esta análise trata dos enunciados que
existem nas imagens, e as estratégias estéticas são discutidas na medida mesma em que
informam sobre o funcionamento desses enunciados.
Logo, a animação, no debate teórico que esta tese propõe, insere-se no que
chamamos de curva de enunciabilidade, ou seja, as linhas de força que de algum modo
enfocam a forma como se pode falar do sujeito num campo de regras sobre os objetos
da discursividade geral da escolarização de pessoas adultas. Sabemos, juntamente com
Foucault, que o que se pode ver e dizer sobre um assunto é parte dos regimes de
dominação existentes e garante, na economia específica do poder, a efetividade da
normalização. Essa efetividade é constituída por diversos mecanismos, dentre eles a
própria dispersão dos discursos, mas, sobretudo, pela densidade da presença desses
enunciados em diferentes regiões discursivas. "Vida Maria" participa então de um
circuito cultural no qual a sociedade se ocupa da questão da alfabetização, em que a não
alfabetização aparece associada à imagem da pobreza e do abandono, bem como da
repetição sem rupturas de padrões sociais de classe e gênero. A personagem se vê
enredada por situações que escapam à sua vontade, nas quais forças disseminadas em
seu entorno a levam a sofrer uma série de reveses, o que confere à vida da personagem
um forte traço de tragicidade.
A peça tem 8 minutos de duração, e sua sinopse nos informa o seguinte: “Maria
José, uma menina de 5 anos de idade, é levada a largar os estudos para trabalhar.
Enquanto trabalha, ela cresce, casa, tem filhos, envelhece.40
A página web na qual o
curta está hospedado nos informa ainda que “o curta-metragem mostra personagens e
cenários modelados com texturas e cores pesquisadas e capturadas no Sertão Cearense,
no Nordeste do Brasil, criando uma atmosfera realista e humanizada.”. Realismo e
40
Portal Porta Curtas. Disponível em: <http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria> Acesso em:
mar.2015.
164
humanismo são dois enunciados bastante funcionais para pensarmos a argumentação
que sustenta a animação. A peça busca apresentar a vida Maria da protagonista a partir
do “realismo e do humanismo”, logo, propõe-se a contar alguma coisa tratada a partir de
dois enunciados carregados do desejo de verdade. Sabemos que as estratégias de
produção de uma peça ficcional contemplam processos seletivos dentre os significados
disponíveis sobre um determinado tema que se faz objeto da narrativa. O efeito realista
de uma peça de ficção é uma das tantas possibilidades de diálogo com a realidade no
jogo de sentidos. Portanto, ser mais ou menos realista não confere um grau de maior
“verdade” à obra de arte, da mesma forma que a fantasia ou simbolismo não
representam um afastamento do verdadeiro ou do real.
O outro argumento que apresenta o filme de animação é o “humanismo” que, da
mesma forma que o “realismo”, é um enfoque sobre a realidade, uma possibilidade de
enunciar. Nesse caso, o humanismo parece estar associado ao tom emotivo com que as
imagens são tratadas, bem como pelo foco em situações-limite vividas pela personagem.
O humanismo é também um discurso com função universalizante no Ocidente,
carregado por diversas articulações estratégicas em relação ao colonialismo, à opressão
de gênero e aos processos de imperialismo religioso. Portanto, um discurso perigoso,
recheado de posições movediças, que nos leva para o terreno inseguro de uma vontade
de verdade poderosa em relação às mulheres, aos negros, aos indígenas e aos
camponeses.
"Vida Maria" é um título que remete à singularidade e à universalidade da
experiência. É comum e ao mesmo tempo é específica daquela mulher apresentada
como protagonista. O jogo semântico com o vocábulo "Maria", que ora é nome próprio,
ora é substantivo comum, informa do trivial, do usual, do inespecífico e preenche de
sentidos a narrativa em torno de quem é a personagem. Ser sujeito de uma vida Maria
significa, na estrutura da peça analisada, estar submetida à pobreza, à repetição do
tempo circular, ao lugar de reprodução destinado às mulheres em sociedades patriarcais,
à vida seca em suas várias dimensões. A forma de enunciação do sujeito Maria José,
protagonista da peça fílmica, aponta sua reclusão à vida Maria.
A universalidade da experiência permeada pela pobreza herdada e repetida
parece sobrepor-se a uma singularidade que pudesse, quiçá, abrir-se como interrupção
daquela experiência esmagadora de universalidade. Esse jogo semântico encontra uma
165
referência a outros textos que compõem as formações discursivas sobre o Nordeste
brasileiro e seus sujeitos, através de comentários que vão adensando certo modo de
dizer e certo regime de visibilidade.
O comentário é um procedimento que remete à economia interna dos discursos,
são “conjuntos ritualizados de discursos que se narram” (FOUCAULT, 2010a, p.22) e,
nessa perspectiva, o título do filme guarda um comentário, faz um deslocamento e
reafirma uma discursividade que encontra no clássico Vidas secas, de Graciliano
Ramos, uma das mais fortes referências desse modo de dizer sobre a vida das pessoas
pobres do Nordeste. Segundo Albuquerque Jr. (1999, p. 78), a invenção do Nordeste se
deu através de produções discursivas ancoradas num jogo de memórias produzidas
pelos discursos regionalistas que se materializaram na sociologia, na literatura e em
outras áreas.
Dentre outras funções, o discurso regionalista dos romancistas da Geração de 30
cumpre uma função agonística em relação aos processos modernizantes então em pleno
desenvolvimento no Brasil, produzindo uma contenção dessa integração nacional
acachapante, mas estando, simultaneamente, inseridos numa reordenação das estruturas
de poder no interior do que se passa a chamar de Região Nordeste. Isto significa que,
internamente, nas relações de classe locais, esse movimento estético se configura de
forma conservadora ao dar sua contribuição à produção da subjetividade nordestina a
partir da imagem do pobre como aquele ser triste, destituído de linguagem, como
Fabiano de Vidas secas, como Maria José de "Vida Maria". Conforme explica
Albuquerque Jr.,
Esse nordeste é uma máquina imagético-discursiva que combate a
autonomia, a inventividade e apoia a rotina e a submissão, mesmo que
esta rotina não seja o objetivo explícito, consciente de seus autores,
ela é uma maquinaria discursiva que tenta evitar que os homens se
apropriem de sua própria história, que a façam, mas sim que vivam
uma história pronta, já feita pelos outros, pelos antigos; que se ache
natural viver sempre da mesma forma as mesmas injustiças, misérias e
discriminações. (1999, p. 85).
Ao cenário da seca social e cultural em que as personagens são apresentadas,
acrescente-se este outro cenário, da ordem política, do campo dos enfrentamentos entre
diferentes versões da história, do espaço social resistente, cujas marcas de saber-poder-
166
ser são silenciadas através de todo um investimento discursivo recorrente. A história das
pessoas não alfabetizadas, sintetizada com esses símbolos da pobreza, do esvaziamento
e da desesperança se constituem como um conjunto de regras do que pode ser dito e do
que pode ser visto em relação ao povo nordestino, às mulheres sertanejas, e às pessoas
que não leem a escrita produzida nas línguas de matriz colonial. Novamente, o
problema consiste também no que não é dito, no que não é visto.
As cenas que carregam os enunciados do constrangimento mostram Maria José
criança exercitando a escrita num caderno, na janela da casa, de joelhos sobre um
banquinho de madeira. Sua mãe a interrompe e exige duramente que a menina arranje
alguma coisa pra fazer ao invés de ficar “perdendo tempo desenhando nome”. A
imagem da inocência e da pureza de Maria José contrasta com a rudeza do ambiente e
das palavras de sua mãe. No entanto, faz par com o exercício da escrita, aqui visível a
partir de sua possibilidade positiva e otimista. A escrita é uma figura importante da
narrativa, posto que sua presença em dois momentos-chave demarca o ponto em que as
pontas do círculo se tocam e partem em nova volta em torno desse mesmo centro. Trata-
se das trajetórias de mãe e filha, retomadas sob as mesmas linhas de força. Vamos
analisar a que se refere esse centro.
Fotograma do trecho 1:03’
167
A escrita compõe o cenário ao lado da pouca felicidade, da pureza que
rapidamente é sucumbida pelo realismo agreste da vida dura na caatinga. Um dos traços
característicos da narrativa é que a escrita apresentada é a típica forma escolar, na qual o
caderno, o lápis e a repetição dão o tom da disciplina didática do ensino da língua. Que
a escrita escolar seja (re)conhecida desse modo num texto cujas imagens precisam
comunicar de maneira imediata a informação é sintomático do vínculo inextricável entre
as imagens da escrita e da escolarização presentes em nossa cultura. Portanto, a escrita
aparece iluminada e positivamente associada.
Fotograma do trecho 00:45’
Na sequência à exortação de sua mãe para que “arrume o que fazer” ao invés de
“desenhar nome”, os demais fatos da vida de Maria José são apresentados numa série
longa que começa com um flerte afetivo, desenvolve-se numa sequência de gravidezes,
e culmina no retorno ao centro comum da trajetória, a ausência que nesses dois únicos
momentos se faz presente, figurada na escrita interrompida de mais uma Maria, desta
feita a filha da Maria José que, no mesmo lugar da casa, ajoelhada num banco de
madeira, desenha letras num caderno com o olhar inocente de criança. E a cena se
repete com a mãe intervindo rudemente nesse momento de delicadeza, expulsando a
filha Maria de Lourdes dessa pequena morada a qual ela se abandonava, exigindo que
ela “vá lá pra fora arranjar o que fazer” ao invés de ficar “desenhando nome”.
168
É flagrante o embrutecimento vivido pela personagem Maria José, tendo os
traços do rosto cada vez mais contorcidos pela dureza do olhar ao longo da linha
narrativa. A menina vai para o terreiro, a parte externa da casa, tirar água do poço, e a
cena desloca-se para o funeral do marido e pai, para a dor rígida da mãe e daí toda
possibilidade de Lourdes se tornar protagonista se esvai, sendo ela mais um elo na
corrente de pobreza e tristeza que se repete.
Podemos deslindar alguns fios em torno do centro de tensão da narrativa,
focalizado na interrupção do acesso da primeira Maria ao conhecimento escrito, o que
cria uma corrente de repetição da condição social que implica sua descendência. O
primeiro deles é o fato de que a escrita ali pode representar muitas coisas. A escrita
pode representar a tecnologia, ou a vida moderna; pode representar o “conhecimento
melhor” para produzir uma vida menos pobre; pode representar o questionamento ao
fechamento de um mundo em torno dele mesmo e a pobreza que advém dessa clausura.
Nessa narrativa, no entanto, a escrita está associada a duas figuras importantes
para a discussão sobre uma forma da metanoia. A primeira figura é a janela, indicando
que esse acesso é literalmente uma abertura para o mundo externo ao sujeito. A segunda
é a sua localização entre a sombra e a luminosidade. Dentro de casa, e olhando para
fora, nesse espaço limítrofe entre a luz e a sombra, Maria José se localiza numa
passagem que permitiria a ela enxergar certas coisas no mundo. Então a escrita, nesse
pequeno filme, representa uma janela e uma luminosidade que nem é tão intensa a ponto
de cegar, como muitas vezes o sol do sertão faz conosco, nem é tão débil a ponto de
impedir a leitura. No seu mundo, onde pratica os exercícios do “desenhar dos nomes”,
Maria José está de costas para a casa e de frente para a rua, o mundo aparentemente sem
limites do Sertão. Na sequência em que é expulsa de sua morada pacífica, e instada a
fazer algo “mais útil”, Maria José é arremetida de volta ao mundo da reprodução, ao
mundo doméstico, ao mundo da sobrevivência e parece então sucumbir ao mundo da
necessidade.
Portanto, nossa protagonista carrega um encerramento, uma clausura de si nas
imagens que a narrativa nos oferece. Esses aspectos são focalizados como meio para
caracterizar o sujeito na externalidade da escrita. O elemento central da narrativa fica
em torno do não dito sobre o que poderia ser a vida se, ao invés de interromper, a mãe
tivesse incentivado a continuidade do estudo por parte da criança. As imagens da
169
salvação aqui se afirmam em torno daquilo que não é dito. Mas, a narrativa toda entra
em funcionamento para mostrar, a partir da intenção realista do autor, “aquilo que
acontece”, ou seja, o que realmente se passa quando o dispositivo da alfabetização não
se faz presente. Contudo, arte é simulacro, invenção de mundos e todas as citações
dirigidas ao mundo real ajudam a construí-lo, a dar-lhe forma, assim como estão sujeitas
às regras do que pode ser dito e visto sobre os sujeitos.
Há vários “não ditos” da narrativa, a começar pelo não dito sobre a personagem.
Maria é retratada num lugar de vítima. Maria é vítima dos padrões normativos de
gênero numa sociedade tradicional do campo brasileiro. Maria não esboça reação, sendo
passiva a todas as injunções. Maria não apenas se submete em silêncio como mais tarde
repete o gesto em relação à sua filha. O que não se diz sobre Maria é se ela possui
outros interesses na vida, se ela possuía conhecimentos tradicionais sobre ervas, se
Maria desenvolvia uma relação de íntima compreensão com a natureza, se ela era
parteira, ou carpideira, se Maria tocava algum instrumento musical. Ora, tudo isso que
não está dito no filme também “não interessa” uma vez que a personagem efetivamente
mostrada, o enunciado concretizado nas imagens, optou por apresentar uma Maria
passiva, vitimizada pela cultura, localizada numa relação de externalidade com a escrita
e “portanto” condenada a uma vida trágica.
O elemento que nos causa desconforto na animação "Vida Maria" repousa
justamente nesse fato de que uma discussão em torno do acesso à escrita repita o mesmo
enunciado sobre o esvaziamento da experiência do sujeito que vem sendo propagado de
forma tão continuada desde o advento da alfabetização de massas e da escolarização na
modernidade. Pelo que é efetivamente mostrado, Maria seria salva pela escrita, ela teria
direito a outra vida, em que não fosse vítima de relações trágicas. Observe-se o papel de
tal modo potente que esta enunciação exerce no circuito da metanoia moderna em torno
da escrita e da escolarização.
Numa produção audiovisual de 2006, o circuito de representação do sujeito a
partir da ausência, da pobreza, da ignorância e do isolamento mantém-se ativo ao ponto
de produzir uma peça cuja circulação é ampla, a exibição é premiada e a narrativa é
recebida de forma altamente legitimada nos mais diversos contextos, inclusive com
destaque no campo educacional, no qual compartilha a rede de conteúdos de um
170
currículo cultural atuante na formação inicial de professores, em escolas de pessoas
adultas, em cursos de formação continuada e outros espaços sociais da educação.
A expectativa, por parte de quem observa a cena, é de que o acesso à escrita
poderia "salvar" Maria de sua vida "Maria", porque esse foi o investimento feito até o
presente pelo capitalismo e pelo liberalismo desde que a modernidade foi inaugurada: a
ideia de que a escola e os saberes a ela relacionados são salvadores. O que ocorre é que
a escola capitalista também é aquela dotada de imensa capacidade de produzir outra
vida "Maria", desta feita deslocada de sua experiência vital e jogada num espaço
desidentificado de si mesmo, um espaço de dessubjetivação radical (Agamben, 2010).
Experiências que propõem um espaço de esvaziamento de si, ao invés de cumprir a
promessa de potencialização do sujeito tão propagada pelos enunciados da escolarização
e da alfabetização.
O filme olha para Maria do mesmo modo que a escolarização como projeto
modernizante: pelo que lhe falta. A solidão e o isolamento cultural que o filme mostra
parecem ocorrer apenas para quem não acessou a escrita. Ou seja, na perspectiva que
adotamos nesta análise, o filme articula a mesma relação de verdade entre sujeito e
escrita que o pensamento da modernidade; tratando-se do enunciado da redução ou
aproximação da vida humana à condição de zoo, animal, em virtude de sua relação de
exterioridade com a cultura escrita.
O curta-metragem também participa da rede de enunciação sobre a vida de uma
mulher não alfabetizada ao selecionar um ponto de vista em que a personagem tem sua
trajetória esvaziada a partir da interrupção do acesso à escrita. Desse modo, participa
das regras sobre o que pode ser dito e visto quando a referência é uma mulher pobre e
negra do nordeste brasileiro. Ao produzir uma narrativa focalizada nos aspectos trágicos
de uma vida comum, o filme compartilha a regularidade que vincula escrita e
escolarização com a questão da metanoia. Ao participar dessa rede, o filme contribui
com o reforço constante dessa tecnologia que vem sustentando a escolarização de
pessoas adultas como um espaço de subjetivações constrangedoras, dentre várias
possíveis. O seu circuito de recepção e sua ampla difusão e aprovação em premiações
do campo cinematográfico evidenciam a dispersão destes enunciados e a ampla
legitimidade de que gozam. Frequentemente, a produção de experiências escolares para
171
pessoas adultas a partir de um outro referencial cultural tem que se confrontar com esses
enunciados, o que certamente não é uma tarefa simples.
172
CAPÍTULO 4.
O PRECÁRIO COMO ESTRATÉGIA: A VISIBILIDADE DO
ABANDONO
Neste capítulo, apresentamos a formulação dada nesta pesquisa à noção de
abandono e de Tecnologia do Abandono no processo de governamentalização da
escolarização de adultos. Também apresentamos a análise de uma série de documentos
que oferecem suporte à distribuição dos enunciados do abandono, através da política do
precário.
Abandonar é um verbo inserido no léxico da língua portuguesa no século XVI,
tomado de empréstimo do francês antigo Abandoner. Na forma anterior, francesa, a
palavra é uma derivação da locução “laisser à bandon”, cujo último vocábulo, segundo
nos informa o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Machado (1959),
deriva de uma forma nominal antiga proveniente do frâncico41
relativa a “poder,
jurisdição”, com registros de aparições nos territórios de língua francesa a partir do
século XII, de acordo com o Dictionaire historique de la langue française (1992). O
mesmo dicionário nos informa que a expressão francesa Abandon designa uma ação de
desistir de uma coisa anteriormente colocada sob o poder de alguém.
A expressão “donner à ban” refere-se à “dar proibição”. Então, inicialmente, o
sentido da palavra estaria ligado ao ato de proibir, e a alocação do prefixo –a remeteria
ao oposto da ação de proibir, que não seria, no entanto, libertar, mas “deixar de dar
proibição”. O sentido do termo abandonar remete, então, sua inscrição semântica à fase
em que o vocábulo sofreu uma “estabilização” do seu sentido, a uma relação com o
poder. A palavra remete ao momento em que o poder cessa sua ação. Pode-se fazer aqui
uma aproximação ao princípio soberano do “deixar viver, fazer morrer”. A interrupção
da ação do governante sobre o indivíduo corresponde a um abandono, no sentido de que
se está “entregue à própria sorte”.
O termo abandono no seu uso contemporâneo tem diversos sentidos, indo de
uma semântica do romantismo, na qual a ideia de “abandonar-se” ao amor é uma
constante metáfora da entrega, passando pelo sentido de “deixar, entregar à própria
41
Língua dos Francos, pertencente ao grupo das línguas do alto-alemão, falada atualmente por 350.000
pessoas na França, na Alemanha e também na Bélgica. Fonte:Wikipédia.
173
sorte”, com largas possibilidades de significação. Abandonar, na terminologia
pedagógica, representa a ação do estudante que “deixa a escola”, desistindo dela.
A noção de abandono, a partir do que levanta Agamben quando analisa a
soberania, sugere que a ideia de inclusão é necessária à instalação da exceção. A
condição de exceção de alguns objetos aos conjuntos dos quais devem participar é
mediada pela necessária inclusão dos mesmos na forma da lei. A exclusão se estabelece
a partir da vigência da lei. A lei precisa existir para que o processo de exclusão por ela
produzido faça seus efeitos. Entre a exceção e a norma há um vínculo fundamental. Pois
a lei só é necessária porque referida a tudo quanto lhe escapa. Segundo o filósofo
italiano, “A relação da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência
insuperável do nómos, a sua originária ‘força de lei’, é que ele mantém a vida em seu
bando abandonando-a.” (2010, p. 35).
É por esse caminho que a política do abandono se configura como um regime de
visibilidade. A lei funciona como um território discursivo, pois, ao tempo em que cria
um espaço de inclusão pelo qual todos são capturados ― o direito à educação ―
carrega como significado que a população se torna visível ao poder, passando, de certo
modo, a existir a partir daí como suscetível à exclusão.
Na visibilidade provocada pela lei, o corpo e a alma estão disponíveis para as
intervenções do espaço e do saber. Ali se aprende a ser alguém da cidade, ser um
cidadão, característica que alguns, muitos, não adquiriram pelo simples nascimento no
interior de um território, ou porque falam a mesma língua (apenas falam, mas não
escrevem...), é preciso tornar-se cidadão através das operações propostas pela
escolarização e sua escritura. É preciso aceitar a conversão e tornar-se outro,
participando do mecanismo que cruza as linhas de enunciação com as linhas de
visibilidade do dispositivo biopolítico da escolarização.
Dessa forma, o estudante adulto precisa estar sob as regras da escola (ainda que
pela sua externalidade) para que aja sobre ele o abandono da lei, ou seja, o momento em
que a lei se produz como ausência em relação ao sujeito, sendo esse o ponto mesmo que
justifica sua existência (2010, p.35), pois a lei se afirma enquanto referida àquilo que
lhe escapa. Nas palavras de Agamben (2010, p. 91), “o vínculo tem ele mesmo
originalmente a forma de uma dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado
174
é, ao mesmo tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do abandono
a um poder incondicionado de morte”.
Podemos argumentar que a relação de pessoa não alfabetizada com a sociedade
na qual se estabelece a alfabetização como norma é uma relação de exceção na medida
em que ali se estabelece um atrito fundamental de uma população com o social que a
constitui. Há uma captura e uma incorporação pela excepcionalidade que se deseja em
vigor nessa relação. Seja a lei como direito à educação, há a produção de um vínculo
paradoxal entre a vida e o direito, então a lei se apresenta como vigência sem
significado, implicando a permanência no espaço escolar sem a aquisição efetiva dos
efeitos prometidos, ou a aquisição de forma precária e subalterna. Em sua performance
de norma, que reivindica sentidos à subjetividade, a forma da lei é significado sem
vigência, o que constitui o sujeito analfabeto pela dessubjetivação na experiência dessa
população, através da vergonha e do permanente apelo a tornar-se outro. Entretanto, é
pelo caminho da dessubjetivação e ressubjetivação que o sujeito pode construir tempos
outros e espaços outros no espaço de vigência da lei que é a escola, produzindo outros
significados, evitando a lei, esvaziando-a, produzindo ausências que ferem o poder
normativo, que o desgastam e assim produzem, quiçá, o estado de exceção de que nos
fala Agamben (2010, p. 65):
Ler esta relação como vigência sem significado, ou seja, como o ser
abandonado a e por uma lei que não seja nada além de si mesma,
significa permanecer dentro do niilismo, ou seja, não levar ao extremo
a experiência do abandono. Somente onde este se desata de toda ideia
de lei e de destino, (aqui compreendidas a kantiana forma de lei e a
vigência sem significado), o abandono é verdadeiramente
experimentado como tal.
Portanto, é na suspensão da vigência da lei e na ultrapassagem experiencial da
relação de abandono, em manifestação paroxística, que se pode pensar em movimentos
heterotópicos na escola de pessoas adultas.
O direito à escolarização funcionaria, nessa discursividade da Educação de
Adultos, como uma porta aberta, no sentido que Agamben relata de um “já-aberto” no
qual não se entra porque “entrar é ontologicamente impossível no já aberto”
(CACCIARI, apud AGAMBEN, 2010, p. 55). Uma das faces do alargamento do direito
175
à educação e sua extensão às populações não prioritárias, como os jovens e adultos não
alfabetizados em sociedades industrializadas, é o fato de que a lei obriga. Manifesta
como direito, ela é uma oferta, mas uma exigência velada acompanha essa oferta e
(representada na norma), por esse motivo, mais do que convidadas a entrar, as pessoas
são instadas a saírem dos seus lugares e procurarem aquela prática de escolarização
protegida sob toda uma discursividade do direito.
A ambiguidade da relação entre direito e obrigação, no caso da Educação de
Adultos, aparece mais explícita ali onde o mecanismo da vergonha aciona o sujeito a
vincular-se a um projeto de escolarização e de socialização em que ele parece se
reconhecer pouco (junte-se a esse fato a proverbial desmobilização dos próprios sujeitos
adultos pela escola). Portanto, o enunciado “analfabetismo como vergonha nacional”
supõe a própria ideia de educação como direito e de escola como o campo, o espaço
destinado a normalizar essas populações identificadas pela alcunha de analfabetas.
Logo, é-se submetido pelo constrangimento e colocado simultaneamente “sob a
lei”, abandonado à lei, submetido à lei, que além de preceito jurídico é também uma
norma, uma vez que regula a normalidade e essa é a condição para estar incluído. A
distinção entre violência e norma não parece aqui tão nítida e seguimos concordando
com Agamben (2010, p.38) quando afirma que “o soberano é o ponto de indiferença
entre violência e direito, o limiar em que a violência trespassa o direito e o direito em
violência”. É essa estrutura que produz um estado de exceção nos processos de
governamento das populações não alfabetizadas, um estado de exceção em que formas
jurídicas e de subjetivação são acionadas para o eficaz processo de regulação.
A Tecnologia do Constrangimento representa em grande parte também uma
tecnologia da visibilidade, remetida ao processo de trazer à luz através de uma
nomeação específica e de formas próprias de delineamento uma população antes
dispersa na forma da multidão. Porém, é no espaço próprio da escola que a visibilidade
dessa população é um objeto sobre o qual se trabalha. Ali, certa noção de vida, a vida
escolar, passa a ser alvo de uma série de mecanismos devotados ao seu controle a partir
do que chamamos de Tecnologia do Abandono.
Por essa razão, defendemos neste estudo que a experiência escolar de pessoas
adultas não alfabetizadas constitui-se numa relação de homo sacer, em que a vida nua é
capturada pelo poder de uma forma paradoxal na qual o direito se assemelha à
176
obrigação, em que o sujeito é instado a usufruir do direito como forma de salvar a
comunidade ampla da qual faz parte, mesmo sem fazer parte. No discurso da
alfabetização são usuais enunciados como “estudar para melhorar de vida”, “aprender a
ler para adquirir melhores condições de vida” ou mesmo de “nascer para outra vida”. A
vida é de tal modo focalizada no campo discursivo da Educação de Adultos (inclusive a
valorização dos saberes prévios, que inclui por sua vez a experiência de vida) ― e
muito especialmente no campo discursivo da alfabetização de adultos ―, que podemos
avançar para pensá-la como sagrada. Forçando um pouco o sentido proposto nos
estudos de Agamben (2010, p. 85), usamos o trecho abaixo para fazer uma aproximação
com os paradoxos presentes nessas relações entre o sujeito e a escolarização:
A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder
soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental,
exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a
um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de
abandono.
No entanto, cumpre salientar que uma Tecnologia do Abandono é operadora da
governamentalidade na superfície de inscrição biopolítica da Educação. Isso significa,
primeiro, que nem tudo o que ocorre nos processos educacionais corresponde ao que
descrevemos; segundo, que essa rede de dispositivos atua numa dispersão que envolve
vários aspectos da cultura em torno da escolarização, escrita e populações interpeladas;
terceiro, as relações dispostas pelas linhas de força do abandono, que são da ordem da
visibilidade, estão em constante processo de atuação, mas não representam uma vontade
poderosa e onipresente a esmagar os sujeitos. São, entretanto, operadas pelos sujeitos
que dela participam, são reconfiguradas, em constante movimento, fazendo-se
disponíveis para a efetivação da ação biopolítica, embora também se encontrem
disponíveis para serem desmanteladas pela ação dos próprios sujeitos.
A Tecnologia do Abandono na biopolítica da Educação de Adultos representa
uma norma de inclusão que opera a produção de subalternidades, uma vez que há
relações assimétricas de poder em jogo. Não se pode afirmar que o abandono é um
leitmotiv da escola, mas defendemos neste estudo que colocar populações não
alfabetizadas sob a lei, de modo que elas se tornem visíveis e, portanto, governáveis,
representa uma das tarefas dessa instituição.
177
No entanto, o que caracteriza essa inclusão é a precariedade e a postergação. As
tecnologias do abandono compõem a curva de visibilidade, como um mecanismo pelo
qual um jogo de luz torna algumas coisas visíveis e deixa outras na invisibilidade, num
determinado campo de objetos. O escopo da análise é justamente o exercício de buscar
compreender quais regras presidem o que pode ser visto e o que deve ser ocultado.
Esse debate atravessa o mar de argumentações que constituíram a alfabetização
plena como meta do desenvolvimento social e econômico das sociedades pós-coloniais
do Hemisfério Sul, sobretudo da América Latina. Sabemos que um conjunto de
conhecimentos produzidos nos mais diversos campos conexos, e na própria pedagogia,
avançaram em problematizações sobre esse tema.
As mudanças no modelo de funcionamento do Estado, bem como o avanço da
compreensão sobre o papel da escola na produção das relações de poder (com seus
vários matizes de empoderamento e/ou subalternidade), o acréscimo de melhores
saberes em relação aos processos de ensino e aprendizagem da língua, incluindo as
noções de múltiplos letramentos e diálogos interculturais entre saberes escolares e
saberes dos sujeitos da alfabetização, enfim, todas essas compreensões vêm alimentando
a produção de práticas pedagógicas escolares no sentido de superação da condição
colonialista da escola. No entanto, no âmbito das estratégias, os efeitos das relações de
poder existentes em operação no campo da Educação de Adultos resultam numa
distribuição assimétrica das condições de acesso à tecnologia da escrita.
A visibilidade de populações não alfabetizadas e potencialmente demandatárias
de educação escolar foi constituída pelos mecanismos da estatística, do discurso da
vergonha nacional e pela produção de um aparato institucional para a sua inclusão.
Nesse aparato, as populações passaram a ser vinculadas a normas que determinam como
e quando devem se apresentar, quem é interpelado e sob quais circunstâncias, enfim,
tornam-se visíveis para a governamentalidade.
O precário é constituído pelas estratégias que se identificam sob a famosa
fórmula "educação pobre para gente pobre”, e parte da presunção bastante comum nas
elites brasileiras a respeito do critério de “merecimento” de alguns grupos populacionais
a acessar certos espaços sociais. Trata-se da ideia, muito frequente na educação de
pessoas adultas, de que com pouco se faz muito, que com poucos recursos se atingirá
um resultado satisfatório. Graças a uma racionalidade como essa, as campanhas foram a
178
opção prioritária para o atendimento escolar das populações não alfabetizadas, e o
aparato jurídico obtido na década de 1990 com a vinculação constitucional do direito à
escolarização para jovens e adultos, não se fez seguir pela produção e ampliação de um
aparato institucional para o atendimento a esta população, finalizando com a sua
inserção no espaço da educação escolar das crianças e adolescentes, com todo o prejuízo
que esse incômodo encaixe acarretou.
A postergação é a estratégia fortemente relacionada à precariedade e se
manifesta de forma difusa e complexa. Postergar está relacionado ao tempo. Trata-se do
adiamento de uma ação que era esperada em um ponto determinado da nossa relação
com o tempo. Postergar é colocar um pouco mais adiante aquilo que se espera para
agora, ou para ontem. Significa colocar para a frente, sob a guarda do futuro, esse
parceiro incerto e traiçoeiro, os objetivos esperados no presente. Como capturar essa
relação se é preciso colocarmo-nos num ponto qualquer para poder determinar o que
está no seu tempo devido, o que foi adiado, o que está atrasado? Como obter esse ponto
de vista sem nos tornarmos normativos na tentativa de compreender a contingência da
vida humana?
A natureza sorrateira desse mecanismo é o primeiro ponto de sua
funcionalidade. É sobremaneira difícil acessar o regime de verdades sobre a
escolarização para poder dizer que um determinado elemento desse processo está sendo
governado pela postergação. Ora, como dizer que em processos sociais estamos diante
de um atraso, ou uma retenção do tempo de atendimento, ou uma postergação do
direito?
Reconhecer a instabilidade de tal categoria torna necessário recordar que a
análise genealógica não se pretende o estabelecimento das relações sistêmicas,
normativas, dos processos em estudo. Postergar é estudado aqui como o levantamento
de uma topografia do tempo em que os fatos do acesso à Educação pelas populações
adultas indicam que esse acesso foi tratado como algo para “depois”, para “outro
momento”, para “mais tarde”. Já citamos neste estudo o caso do financiamento pelo
Estado dessa modalidade educacional. Porém, nos documentos legais uma outra forma
de adiamento também se observa, quando, por exemplo, a Educação de Adultos só
passa a ser regulada por normas educacionais depois que outras modalidades e etapas da
Educação Básica, consideradas como prioritárias, se afirmam legalmente. Entre a
179
proclamação do direito e a regulação do seu exercício, um vão, um vácuo, um espaço de
exceção em que a modalidade está não apenas disponível a ser inventada, como
abandonada sob o regime da mesma lei.
Neste trecho do estudo tomaremos o discurso verdadeiro, mas sob suspeita, de
que a escolarização é uma forma adequada de acesso ao direito à educação para pessoas
adultas, do mesmo modo que a alfabetização seria a porta de acesso a essa
escolarização. O objetivo da análise é trazer à visibilidade os modos enunciativos pelos
quais a escolarização emerge a partir das políticas centrais de oferta educacional a
pessoas adultas. Com a discussão dessa visibilidade focalizamos mais um aspecto da
face biopolítica da escolarização dedicada às populações não alfabetizadas nas línguas
de matriz colonial. Para tanto, o argumento central é de que as políticas que vincularam
alfabetização e escolarização são permeadas por estratégias marcadas pela postergação
do acesso e pela marca da precariedade, configurando que estar sob a lei pode ser um
direito, mas que as modulações desse direito, os modos como ele se apresenta
evidenciam as lutas, as oposições intrínsecas, os agonismos que demarcam as práticas.
Defendemos que esta Tecnologia constitui um polêmico debate com a presunção da
alfabetização como acesso à escolarização, e desta por sua vez como direito à Educação.
Esperamos tornar visíveis essas relações estratégicas a partir das séries que
examinam os dispositivos de subjetivação e os dispositivos de regulação presentes em
diferentes enunciados. Partindo desse ponto de vista, a primeira série para a qual
olhamos são os enunciados sobre o direito e a obrigação de estudar circulantes em
textos reitores das campanhas de alfabetização brasileiras do período de 1947 até 2003,
dentre as quais selecionamos a Campanha de Alfabetização de Adolescentes e Adultos
de 1947, o Programa Brasil Alfabetizado, de 2003, e o Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral), de 1967. Também são destacados nessa análise os principais
elementos do precário, como o tempo, a urgência, o professor leigo e os recursos
disponíveis. O cenário do precário é finalmente composto pelos apelos ao improviso,
representando uma linha de sustentação para o dispositivo da campanha, que se
desdobra também na escolarização.
O último objeto de análise dessa tecnologia são as cronologias escolares de
estudantes da Educação de Jovens e Adultos. Com essas cronologias, a ideia de uma
vida escolar é exibida a partir das lógicas produzidas pelas pessoas jovens e adultas
180
sobre a própria superfície de inscrição biopolítica das práticas que as interpelam. Em
outras palavras, as cronologias, que são descrições dos movimentos de entrada,
permanência e saída dos estudantes ao longo da escolarização, evidenciam que não
apenas a instituição executa um modo de descrição e visibilidade do sujeito, mas que
este também realiza inscrições próprias sobre a superfície na qual a biopolítica se revela,
nesse caso, os documentos que registram o “histórico escolar”. Ao enunciar tempos
próprios, essas cronologias escapam do normativo e propõem tempos outros, espaços
outros dentro do espaço escolar. Esses tempos e espaços comportam-se como
heterotopias, constituindo linhas de fratura nos dispositivos de regulação presentes. A
discussão mais detida dessas linhas de fratura será desenvolvida no quinto capítulo
desta tese.
4.1. A campanha como dispositivo biopolítico
O dispositivo da campanha está inserido na estratégia geral de poder que
constitui o que vimos estudando como uma biopolítica da Educação de Adultos.
Compondo as estratégias desenvolvidas para realizar a condução das populações não
alfabetizadas, a campanha é um dispositivo por excelência, desde sua proveniência
como forma de enfrentamento ao inimigo, ao perigo, ao elemento ameaçador, seja ele
um povo guerreiro que ameaça o Estado, seja uma fé que ameaça o imperialismo
religioso, seja uma bactéria que ameaça a saúde de uma população. A campanha é parte
dos dispositivos de segurança pelos quais o Estado intervém sobre o corpo, a mente ou a
alma das populações. Campanha é uma forma de intervenção rápida, localizada e
intempestiva sobre um problema.
A crítica histórica às campanhas de alfabetização é um campo de enunciados
sobre o devir da EJA e seus sujeitos, servindo de eixo articulador para várias
enunciações e demarcando posições de sujeito nas relações de poder instituídas nesse
campo. No jogo da historicidade dessas práticas, a educação básica para pessoas jovens
e adultas é uma decorrência do reconhecimento das campanhas como mecanismos de
baixa eficácia para obtenção de conhecimento poderoso para a vida social. O
desenvolvimento da noção de qualidade como um aspecto fundamental do direito pleno
181
à educação compõe o quadro de mudanças nas demandas sociais sobre a escola. O
campo da Educação de Adultos incorporou a discursividade da ideia de educação básica
cedo em sua formação, mas a dimensão prática, extra-discursiva, do campo só observou
a efetividade dessa ideia no final do século XX, e ainda de forma pouco contundente.
Isso significa que o dispositivo de atendimento por campanhas se impôs e observou uma
vigência ampla que chega à atualidade.
Na ordem biopolítica da trajetória da Educação de Adultos no Brasil, as
campanhas e a escolarização formal representam os dois modelos produzidos para dar
consecução aos objetivos de Estado direcionados à população não alfabetizada. As
campanhas podem ser consideradas, primariamente, como agentes de escolarização, por
atuarem na direção das práticas escolares, embora numa relação ambígua e contraditória
com a escola. A escolarização formal é discursivamente construída como aparato
estável, permanente, e como “um espaço democrático de conhecimento e de postura
tendente a assinalar um projeto de sociedade menos desigual” (CURY, 2000, p. 8). Ao
constituir-se a escola como o ponto de chegada de uma trajetória de “inclusão” social e
acesso democrático ao conhecimento, parece evidenciada uma pressuposta supremacia
desse modelo em relação ao das campanhas. Mas, trata-se de um espaço de crise, de
posicionamentos em disputa pelos significados desse campo do real, num processo
simultaneamente agônico e produtivo.
A leitura do dispositivo da campanha é o exercício de descrição e compreensão
do funcionamento da racionalidade biopolítica da Educação de Adultos que, ao tempo
em que interpela os sujeitos pelo argumento do direito, da inclusão, e da emergência em
“resolver seu analfabetismo”, resolve-se em processos mediados pela política do
precário. A política do precário responde pela forma do abandono à lei que torna as
pessoas não alfabetizadas visíveis no espaço da institucionalidade do Estado. A partir
das campanhas, essas populações passam a ser “sujeitos de direitos” e podem enfim ser
administradas como convém à governamentalidade.
O que chamamos de dispositivo da campanha assume esse lugar na perspectiva
de uma trajetória histórica que narra o que passou a ser esse conjunto de objetos
envoltos em uma relação de poder que cria inclusões perversas (SOUZA, 2004) e
visibilidades constrangedoras. As campanhas já foram parte das estratégias de nascentes
movimentos sociais de orientação crítica, mais tarde identificados no campo da
182
educação popular. O modelo de atuação por campanhas já esteve inscrito numa lógica
emancipatória, tendo sido mesmo fundado sob essa perspectiva. Para Fávero (2005), a
relação entre as campanhas e os movimentos sociais pela Educação de Adultos no
Brasil são intrínsecas. Segundo Weber (1984, p. 234), a educação se apresenta como
uma das principais demandas de um contexto marcado por uma complexa correlação de
forças: “a educação popular teria se transformado pouco a pouco em uma das formas da
disputa por hegemonia que punha em confronto grupos sociais com propostas de
organização social de natureza diversa”.
Essa relação demarca o momento da emergência do dispositivo, no marco de
relações sociais complexas de subordinação e emancipação das classes populares,
mulheres e negros adultos não alfabetizados e do papel que a escolarização passa a
assumir nessa relação. Atravessam o dispositivo as relações de classe, mas, sobretudo,
de raça e gênero.
O contexto do Brasil em meados do século XX é apontado por Souza (2004)
como período favorável à emergência de pedagogias. Para o autor, as pedagogias
emergem da dimensão conflituosa que envolve diferentes grupos sociais em luta.
Foucault (1988, p.103) entende o dispositivo no quadro da analítica do poder, e de um
poder que não se apresenta como instituição nem estrutura, mas como dimensão
estratégica:
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de
lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e
contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
Compreendemos que é justamente no contexto das lutas pela definição dos
rumos da educação que ocorrem as relações que suscitarão o dispositivo da campanha.
Como já explicitou Carlos (2008, p.21), “a assunção da Educação de Adultos se deu,
sobretudo, através de sua vinculação com a problemática da instalação de um regime
183
republicano, alicerçado no direito, não no privilégio, na democracia, não na monarquia
ou aristocracia, na nação, não nos interesses particulares”.
A campanha se torna condição de inteligibilidade para a Educação de Adultos
acompanhando o debate sobre o desenvolvimento, que exigia urgência, tal como ficou
configurado no famoso slogan dos "50 anos em 5" do presidente Juscelino Kubitschek.
Entre as urgências, o desenvolvimentismo exigia a superação rápida de problemas
considerados graves ameaças ao projeto, como o analfabetismo. Simultaneamente à
instalação de um regime de aparência mais republicano, era preciso garantir também
uma camada de legitimidade popular, que viesse a ser o lastro da nacionalidade que se
afirmava no novo projeto. Mas, conforme alerta Chaterjee (2004, p.100),
A ideia de soberania popular tem uma influência mais universal que a
ideia de democracia. Mesmo os regimes modernos mais
antidemocráticos têm de reclamar legitimidade não sobre o direito
divino, a sucessão dinástica ou o direito de conquista, mas sobre o
desejo do povo, qualquer que seja a forma pela qual esse desejo se
expresse. Autocracias, ditaduras militares, regimes de partido único –
todos governam, ou afirmam governar, em nome do povo.
Se esse projeto se realizasse de forma a garantir simultaneamente padrões
adequados de controle das condutas, tanto melhor. No campo da educação, o
agenciamento específico dessa problemática relação com as populações não
alfabetizadas, cujo voto era alvo de desejo e de repulsa por parte do poder, cujas
matrizes de organização da vida eram baseadas na experiência ancestral mesclada com a
dureza da vida pós-ato abolicionista, representava um desafio de monta, que não era
ignorado pelos grupos que operavam a frágil hegemonia então vigente.
Observamos que as campanhas nascem de uma série de procedimentos críticos e
de práticas envoltas por contextos conflituosos e vêm à tona a partir de uma
discursividade emancipatória, crítica, que visava a mudanças e mantinha compromissos
de ordem pública com grupos desfavorecidos, subordinados nas relações de poder
vigente.
Voltando à dimensão conflituosa dos contextos que originaram o dispositivo, o
País passava por um momento importante de redefinição das forças políticas na primeira
metade do século XX. Esse contexto demarca a dimensão estratégica das práticas que se
materializam no dispositivo no contexto, na luta entre classes, frações de classes e
184
grupos opositores. A construção da hegemonia política passava pela educação, não
apenas no tocante à dimensão de subjetividade apontada por Gramsci como fator
decisivo para a tomada de poder, mas, sobretudo, pela luta objetiva pela quantidade de
eleitores.
A questão da alfabetização de adultos e da educação popular passa por
justificativas tais como as que indicamos acima. O enunciado do sujeito, de sua vida,
seu direito à aprendizagem, a possibilidade de a educação conferir qualidade em sentido
amplo à vida humana se fez presente nos discursos pela educação popular em alguns
contextos específicos e temporalmente marcados, como os documentos reitores das
campanhas originadas em grupos como Movimento de Cultura Popular e o Movimento
de Educação de Base, mas o debate público inicial sobre a necessidade de combate ao
analfabetismo era o argumento mais presente, no contexto de um Brasil do início do
século XX e até meados dos anos 1960. O sujeito adulto não alfabetizado era um ente
externo da educação como direito, menos um endereçamento e mais um fator estatístico
no marco dos discursos do período.
A dimensão quantitativa presente nos discursos de então, chamados por Paiva
(2003, p.37) de “otimismo pedagógico”, é uma das linhas de força que encontramos no
dispositivo da campanha, sendo um dos seus enunciados mais frequentes. Essa linha de
força assume a forma do discurso estatístico e representa um dos principais argumentos
em torno da realização de ações de governo sobre a população analfabeta. No
nascimento do dispositivo, a pessoa não alfabetizada já não era pessoa, mas número:
O 'entusiasmo pela educação', caracterizado por preocupações
eminentemente quantitativas em relação à difusão do ensino, visava à
imediata eliminação do analfabetismo através da expansão dos
sistemas educacionais existentes ou da criação de para-sistemas, de
programas paralelos – de iniciativa oficial ou privada, abstraindo os
problemas relativos à qualidade do ensino ministrado. Seu
aparecimento, coincidindo com a maior firmeza conseguida pelo
industrialismo na década de 10, parece estar ligado ao problema da
ampliação das bases eleitorais, através do aumento do número de
votantes proporcionado pela multiplicação das oportunidades de
instrução elementar para o povo. (PAIVA, 2003, p.37, grifos nossos).
Observamos aqui duas linhas de desenvolvimento de práticas que vieram a
caracterizar o dispositivo da campanha. De um lado, temos o processo de constituição
185
de práticas de mobilização de sujeitos não alfabetizados, a conclamação da sociedade à
luta pela escolarização e contra o analfabetismo, e de outro temos a aproximação das
ações das campanhas à cultura escolar, aos seus métodos e, por conseguinte, aos seus
mecanismos de controle e vigilância. De um lado, as ações de mobilização de sujeitos, o
enunciado da mobilização, a nosso ver, reificador da pessoa não alfabetizada. De outro
lado, o dispositivo da escolarização agindo sobre o processo de alfabetização de grupos
populares, disputando o domínio das práticas com as nascentes propostas de ação
pedagógica alternativa.
O estudo de Paiva (2003) além de servir como rica fonte de dados (ainda que
não seja uma fonte primária) é importante no vislumbre da relação entre o dispositivo da
campanha e a educação escolar de adultos. A existência de mais de um caminho para a
EJA, incluindo as práticas de alfabetização de adultos, é flagrante desde o seu
aparecimento. Segundo Paiva (2003, p.187, grifo nosso), alguns “acreditavam ser mais
razoável solucionar o problema do analfabetismo através da maior ampliação das redes
de ensino elementar comum e os que solicitavam medidas de efeitos mais a curto prazo,
enfatizando a necessidade de programas especiais para adultos.”
Trata-se de um processo de institucionalização progressiva das práticas de
alfabetização das populações, em que a presença do Estado vai se fazendo mais forte
paulatinamente. O marco dessa institucionalização é a assunção definitiva dos
programas pelas políticas públicas de educação, no marco dos governos neoliberais do
início da década de 1990 no Brasil. O título dessa regularidade é o “Programa
Alfabetização Solidária”, mais tarde transformado em “Programa Brasil Alfabetizado”.
A escolarização das práticas de campanhas (no contexto contemporâneo chamadas de
"programas" por inserção de uma terminologia tecnocrática) assume seu apogeu através
do campo normativo criado pelos documentos reitores desses dispositivos.
186
4.2. Urgência, parcimônia e improviso: regularidades discursivas nas
campanhas de alfabetização brasileiras 1947-2003
O precário foi se impondo como linha de força no dispositivo no cenário das
lutas de concepção, em que escolhas como a de uma solução rápida para o problema
venceu a perspectiva que defendia a ampliação das redes públicas em todo o território
nacional. Quando se optou pela contratação de ações terceirizadas junto à sociedade
civil, pelo professor leigo, por ações de caráter pontual, por práticas de baixa inversão
financeira.
A questão do financiamento público da educação, acompanhado pelo discurso da
educação como direito de todos, redundou em decisões de investimento em EJA, mas
apenas no marco temporal de curto prazo (justificando as campanhas) o que apresenta
inegável vinculação com a opção eleitoreira da maioria dos governantes em relação a
essa modalidade.
A política do precário fez com que apenas em 2011, portanto, já no século XXI,
o financiamento da EJA pelo estado brasileiro atingisse os 100% do repasse per capta
previsto para os estados e municípios. Em outras palavras, no contexto de uma
Constituição cidadã, de uma LDB que institui a Educação de Adultos como política de
Estado, a despeito do princípio da isonomia entre os cidadãos brasileiros, a EJA foi
deixada para “depois”, só atingindo a totalidade do financiamento a que fazia jus depois
que todas as outras populações do setor educacional haviam sido atendidas na sua
“plenitude”.
Desse exemplo deriva a crença de que o dispositivo da campanha é econômico
no sentido monetário, despendendo baixos recursos para solucionar os problemas a que
se refere. A permanência dessa racionalidade, o fato de que essa regularidade se
mantém em contextos históricos e políticos tão diversos em seus arranjos hegemônicos
é um dos fatos que nos mobilizou à realização do presente estudo.
A urgência sob a qual foram colocadas as práticas de Educação de Adultos
remete tanto à lógica do tempo na sociedade ocidental, o tempo do progresso rápido,
dos movimentos acelerados, das imagens imprecisas e dos encontros furtivos, típicos da
modernidade, logo, o tempo do controle, mas também se refere à precariedade desse
tempo para a vida humana e o atendimento de suas necessidades. O problema da
187
alfabetização das massas tem seu contraponto exato no tempo que a nação vem levando
para atingir patamares de alfabetização considerados adequados (taxa de analfabetismo
adulto menor que 5%, segundo a UNESCO). Contra o tempo da urgência colocam-se
também os tempos distópicos das cronologias escolares da Educação de Jovens e
Adultos.
Ao inserir-se na discursividade da Educação de Adultos, o dispositivo da
campanha encontrou nos enunciados da metanoia sua contraparte retórica, na
predisposição estatal em ampliar à instrução básica sua base material, no processo de
urbanização desencadeado pelas recentes políticas de industrialização sua justificativa
biopolítica, uma vez que as populações estavam agora configuradas como um problema
de governo sobre o qual era preciso operar.
Como parte de seu horizonte de formulação, as campanhas possuem documentos
geradores de sua prática, manuais de orientação sobre os passos que deveriam ser
seguidos. Nesses documentos estão presentes as finalidades, os procedimentos
metodológicos, a concepção de educação ou de alfabetização, o modelo de pessoa que
se espera formar. Além disso, trazem também as marcas da vontade de poder investida
nesses dispositivos, as formas da subjetivação, a reminiscência dos jogos de verdade
que os atravessam. Selecionamos alguns documentos, relativos a três conjuntos de
enunciados que expressam como o dispositivo da campanha colaborou com a
biopolítica da Educação de Adultos, através de um projeto de governo do corpo, da
alma e da vida política da pessoa não alfabetizada.
O primeiro elemento refere-se aos enunciados que se relacionam com o tipo de
sujeito a ser produzido a partir das populações não alfabetizadas. Essas posições se
tornam mais evidentes quando as campanhas enunciam entre seus propósitos, ou
finalidades de existência, objetivos como, por exemplo, os expressos nos documentos
de trabalho do Projeto Rádio Educativa Nacional (SIRENA), de 1957: “Formação do
caráter: simplicidade, sinceridade, discrição, justiça, cortesia, bondade, solidariedade,
amizade, economia, previdência, respeito às leis”. Como dispositivos operadores de
relações de subjetivação, as campanhas possuíam, aliás, como todo projeto educativo,
um perfil de sujeitos a serem formados. Não é estranho que esse perfil seja traçado
conforme as expectativas dos grupos que operavam as políticas.
188
As características apresentadas falam dos lugares de onde se enuncia a produção
de sujeitos cujo caráter fosse simples, sincero, discreto, justo, cortês, bondoso, solidário,
amigo, econômico, previdente e obediente às leis. Além disso, a Campanha Nacional de
Adolescentes e Adultos, como foi denominada essa primeira operação da biopolítica,
planejava instalar nas comunidades centros cívicos, voltado à “propagação de
informações úteis, no sentido da educação da saúde, da educação cívica, da
vulgarização das modernas técnicas de produção agrícola e de pequenas indústrias”.
(MARIANI, 1947, p. 65). O pacote da alfabetização, ao lado do direito de estudar,
carregava tudo aquilo que o Estado brasileiro temia nas populações não alfabetizadas: a
doença, a deserção, a improdutividade no trabalho do campo ou da cidade.
Para o então ministro da Educação, Clemente Mariani, a campanha de 1947 seria
uma “salvação nacional” e uma “nova abolição”. Ao criar esse paralelo, Mariani
demarcava exatamente a destinação social dos processos de alfabetização benevolentes
que então começavam a se desenvolver. Na Campanha Nacional de Educação Rural
(CNER), lançada em 1952, as finalidades anunciadas tornam mais evidente esse
endereçamento, voltado às populações negras de ex-escravos, cujos modos de vida, os
usos do corpo, as práticas de conhecimento fundamentalmente orais eram
responsabilizadas pelo subdesenvolvimento do País:
Menos da necessidade de alfabetizar e mais da necessidade de
aculturar populações infensas à alfabetização, isto é, que ainda não
haviam encontrado no alfabeto o valor instrumental que possuíam
para as populações urbanas e semi-urbanizadas. A educação de base
estava sendo utilizada em outros países para recuperar, em larga
escola, populações de áreas subdesenvolvidas, cujos problemas de
carência, desnutrição, baixos níveis de vida, baixa produtividade,
rotina de trabalho, alta mortalidade infantil constituem peso morto na
organização social e econômica de vastas regiões do globo.
(REVISTA DA CAMPANHA NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE
BASE, p. 17, grifo nosso)
Destacamos o trecho acima como forma de evidenciar a violência intrínseca a
esse projeto. Por trás de um desejo de promoção da sociedade brasileira a outro grau de
desenvolvimento, esconde-se um desejo de eliminação que é diuturnamente endereçado
às populações negras. A alfabetização se tornou um “cavalo de Tróia” dos processos de
189
dominação simbólica voltados contra essas populações. Embora o fenômeno do
analfabetismo fosse largamente vigente na sociedade brasileira do início do século XX
― mais de 70% da população do Nordeste ― atingindo brancos e negros, o índice de
analfabetismo entre os negros, segundo o Censo demográfico de 1940, atingia algo em
torno de 81% da população na categoria racial preta, 74% na categoria pardos, e 61%
entre os brancos42
.
As séries históricas sobre analfabetismo e raça evidenciam taxas da população
negras continuamente mais baixas que as da população branca. A essa mesma
constatação chegou Rosemberg (1992, p. 305), levando-a a afirmar: “Enquanto a
discriminação racial persistir, o analfabetismo não irá desaparecer”, o que corrobora
nossa hipótese de que o analfabetismo em si, e toda a biopolítica inventada para
substituí-lo, são mecanismos de conduta com efeitos de dominação endereçados
primordialmente às populações negras. Ao lado da desigualdade de renda, o racismo,
como política de segurança do Estado, como mecanismo de separação que pressupõe a
eliminação, é um dos fatores que intervém na produção da escolarização das populações
adultas como uma biopolítica.
A necessidade e a urgência de transformação dessas populações em massas
administráveis e “úteis” foram recorrentes. O processo de aculturação das populações
não alfabetizadas fala desde um lugar de enunciação externo. São os outros, são
“aqueles”, externos à nação, mas presentes, externos à cultura, que precisam ser trazidos
para dentro. No mesmo documento, a CNER afirma ainda:
Fonte: Revista da Campanha Nacional de Educação Rural, p. 17.
42
Fonte: Rosemberg, 1996.
190
A assunção sem constrangimentos de um projeto de “substituição de culturas”
soa estranha aos nossos ouvidos contemporâneos, comprometidos com políticas de
promoção da equidade e convivência com a diferença. Mas, esse projeto não apenas era
legitimado naquela década de 1950, como era assumido como compromisso
governamental. O dispositivo da campanha se prestou, assim, a um bom número de
práticas de governamentalidade, pelas quais foram agenciadas diversas estratégias das
relações de poder que envolviam as populações não alfabetizadas, classes populares
como eram chamadas no momento, e as classes proprietárias, que se consideravam
donas, inclusive da ideia de nação e de uma suposta “civilização brasileira”. O
dispositivo deu corporeidade à biopolítica ao entrar em diálogo direto com as
populações, ao impulsionar uma macroestrutura de acesso aos indivíduos, ao produzir
uma camada de práticas que acionavam corpo, pensamento e alma dos sujeitos numa
direção adequada aos interesses em jogo.
O dispositivo da campanha organizou-se sobre uma expectativa de baixo
investimento financeiro, e mesmo o reconhecimento de uma causa nacional tão
abrangente, com tantas finalidades vinculadas, exigia dos promotores constante apelo à
economia das inversões financeiras nas campanhas. Conforme artigo de Lourenço Filho
publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em agosto de 1947: “Pode-se
afirmar, desde já, no entanto, que as dotações destinadas a estes dois últimos itens serão
gastas senão em parte reduzida, dadas as normas de rigorosa economia com que os
serviços estão sendo executados”.
Fonte: Plano Piloto de Erradicação do Analfabetismo – 1958, p.7
191
Fonte: Carta enviada ao ministro da educação em 1957, sobre o Projeto Rádio
Educativa Nacional, argumentando sobre a validade do método de ensino pelo rádio.
Ao lado dos aspectos materiais das políticas do precário há também os aspectos
relacionados à parcimônia na distribuição dos saberes. As campanhas não são as
escolas, nem universidades. São ações intempestivas voltadas a dar solução rápida de
instrução a amplos contingentes populacionais. No projeto de nação que então se forma,
a integração desses contingentes, como já é sabido, não contemplava uma distribuição
do poder, nem mesmo da riqueza circulante. O que estava previsto, na melhor das
hipóteses, era a integração subordinada da força de trabalho e a criação de um mercado
consumidor interno que de algum modo propiciasse uma rede de consumo à nascente
produção industrial. Nunca é demais recordar que a indústria automobilística se instala
no País a partir desse momento, graças à bem estruturada articulação dos organismos de
cooperação estadunidenses junto às elites brasileiras.
Portanto, as campanhas agenciavam uma estratégia de distribuição parcimoniosa
de conhecimento, como figura em vários dos documentos tanto da década de 1950,
quanto de 1960. Essa que era uma característica das correlações de poder vigentes nesse
momento em que o dispositivo começa a operar, se desmaterializa e se desdobra numa
racionalidade que fornece sentidos, por exemplo, para as práticas curriculares da
Educação de Adultos, frequentemente mediadas pela lógica do tempo menor, pela ideia
de que o adulto tem pressa, que precisa de menor tempo de aprendizagem e que o seu
currículo pode ser menos extenso.
É mais uma vez Lourenço Filho (1947, p.11), discorrendo sobre a Campanha
que coordenava, quem explicita esse enunciado:
Não visa a Campanha, no entanto, apenas essa aprendizagem
elementar, mas também a da difusão de noções sôbre a conservação da
192
saúde, o trabalho, a economia e a formação moral e cívica. Isso está
sendo feito, e os meses restantes de ensino atenderão de modo especial
a esses pontos, para os quais conveniente material está sendo
ultimado.
As campanhas, na abrangência de seus objetivos, visavam, além do corpo, à
administração do tempo liberado das populações. De forma explícita ou mais sutil, a
noção de combate à “malandragem” constituía um dos escopos do dispositivo. Na
declaração do ministro Clemente Mariani sobre a Campanha de 1947, aparece
explicitamente este objetivo:
Onde fôr desde logo possivel, tratar-se-á de criar "centros de
comunidade", nos quais grupos de populações, agora como que
marginais, se ponham em maior contacto com a cultura, por
intermédio do rádio, do cinema, e de coleções de livros e de jornais.
Será preciso favorecer a vida social nos pequenos centros, para as
preocupações mais nobres e elevadas da vida.
O projeto civilizatório enviado às populações não alfabetizadas envolvia o
acesso a bens culturais também como pequenos mecanismos de controle do tempo, das
mentes, dos modos de vida, revelando as campanhas como dispositivos muito sutis e
abrangentes de controle das condutas, sobre os quais o poder investiu fortes
expectativas. Na Campanha Nacional de Educação Rural, um dos objetivos era assim
apresentado: “5) contribuir para a elevação dos padrões educativos, sanitários,
assistenciais, cívicos e morais das populações do campo” (REVISTA DA CNER, 1959,
p. 22).
Tratava-se de uma produção de mecanismos direcionados à vida inteira do
sujeito: uma governamentalidade ampla, abrangente, de pretensões totais: “o trabalho
não visará apenas a alfabetização. Cada classe deverá ser um centro de propagação de
informações úteis...”. A substituição da cultura do povo, o ensino de noções mais
“úteis” para sua vida, a administração do seu tempo. Todas essas ofertas compunham a
promessa de desenvolvimento oferecida às populações não alfabetizadas, e para isso
elas só precisavam aderir às campanhas.
O precário também atingia, ao lado da parcimônia dos saberes, e como um dos
operadores desse aspecto, o recurso à mão de obra de baixa qualificação. A docência no
âmbito do dispositivo é exercida por qualquer pessoa bem intencionada, com desejo de
193
ajudar a pátria e dotada de disposição para o trabalho voluntário. No chamamento aos
professores da Campanha de 1947, o tom messiânico não passa despercebido:
Ao assumirdes a regência de uma classe de ensino supletivo para
adolescentes e adultos analfabetos, cumpris uma das mais belas tarefas
de vossa missão de educador. Onde quer que trabalheis, nas cidades
ou nos campos, estareis colaborando num grande movimento de
redenção nacional e humana.
No entanto, o reconhecimento desse papel não era coetâneo das reais condições
em que a docência existia no âmbito do dispositivo das campanhas. No documento
nº428, de 11/04/1957, exposição de motivos na qual o Sr. Heli Menegali argumenta
sobre as vantagens do Sistema Rádio Educativo Nacional, assim se refere à docência:
É do domínio comum que, em vários estados, não somente as escolas
do Serviço de Educação de Adultos mas também do ensino
fundamental comum (curso primário) são entregues, tem de ser
entregues, à boa vontade de pessoas sem formação profissional, ou
seja, aos chamados docentes de emergência.
Percebe-se a antiguidade da opção pelo educador leigo, alvo de outras análises e
críticas já consolidadas no campo de estudos da Educação de Adultos (BEISIEGEL,
2003). Embora argumentos dos mais variados sejam levantados para justificar essa
opção, inclusive o fato real de que não havia profissionais suficientes para a magnitude
da tarefa, a ideia de atuar com “docentes de emergência” se institui e perdura nas
campanhas até o século XXI, quando, em anos recentes, apenas depois de 2003, passou
a existir a exigência de formação mínima no magistério, ou Curso Normal Médio, para
atuação nas campanhas contemporâneas. A docência na tecnologia do precário é mais
uma forma política que se desmaterializa, relativiza as condições materiais, e se inclui
entre os traços daquelas escolhas cujos determinantes desaparecem na poeira do tempo,
ficando assemelhados a fatos da natureza. E uma das características vantajosas do
dispositivo é justamente sua capacidade de oferecer aquilo que se espera, sem, no
entanto, garantir sua real aquisição.
O Movimento Brasileiro de Alfabetização ― cuja sigla "Mobral" foi
transformada pelo uso coloquial em adjetivo pejorativo relacionado à noção de
ignorância ― foi a campanha do período da Ditadura Militar. Num de seus tantos
194
enunciados legais, informa que a docência no processo de alfabetização de adultos
mantém, ao longo das décadas de 1960 e 1970, uma relação contínua com o improviso e
com a marginalidade:
Art. 1º A colaboração dos Professores, Monitores ou Alfabetizadores,
recrutados pelas Comissões Municipais da Fundação Movimento
Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL para o desempenho de
atividade de caráter não econômico e eventual, não acarretará
quaisquer ônus de natureza trabalhista ou previdenciária.
A condição voluntária do trabalho desenvolvido pelos alfabetizadores e
alfabetizadoras nas campanhas, desde uma enunciação ligada ao patriotismo, modifica-
se para uma enunciação em que apenas o vínculo voluntariado permanece, caracterizado
pela relação de escassez de recursos financeiros ligados a essa atividade. Logo, temos
um cenário em que o sujeito alfabetizando é produzido como alvo de uma metanoia,
vinculado a uma ação que deveria prezar pelo baixo custo e resposta rápida, auxiliado
em sua instrução básica por um professor sem formação específica, cuja relação de
trabalho é reduzida a um vínculo voluntário, mediado pelo pagamento de um tipo de
apoio ou, num linguajar mais contemporâneo, uma bolsa, cuja regra central são os
valores irrisórios de contrapartida pelo serviço de alfabetizar uma nação em
desenvolvimento.
Percebe-se a disparidade entre os enunciados dos objetivos, do assombro com a
“vergonha nacional” e os enunciados da contrapartida investida pelo Estado na
superação desta “condição vexatória”. Entre uns e outros, a política do precário reveste
as práticas, conferindo uma inteligibilidade que integra os diferentes enunciados numa
certa estratégia geral do poder, relativamente às populações não alfabetizadas. Na
campanha de 2003, chamada Programa Brasil Alfabetizado, já no século XXI, em plena
era conhecida como “sociedade da aprendizagem” e numa conjuntura política de
ascensão de um novo ciclo desenvolvimentista, o enunciado sobre remuneração dos
docentes envolvidos com a alfabetização é proposta como uma relação de troca e
controle de metas a partir da ação docente:
§ 1º Na hipótese de se verificar, em cada uma das turmas cadastradas,
evasão superior a 4 (quatro) alfabetizandos, o OEx deverá descontar
da bolsa do alfabetizador o valor correspondente a R$ 7,00 (sete reais)
195
por alfabetizando evadido. O desconto incidirá no mês subsequente ao
registro da evasão.43
Portanto, o comportamento do poder em relação às populações não alfabetizadas
parece guardar uma linha de regularidades que se tornam visíveis a partir desses
pequenos pontos de cruzamento. A condição da docência no âmbito da campanha de
2003 se modifica a partir de 2008, quando o professor alfabetizador passa a ser
declarado pelo documento reitor, a Resolução, como um dos beneficiários do Programa.
Especificamente, passa a ser “voluntário alfabetizador”. Ao incorporar na condição de
beneficiários aqueles que já detiveram a condição de benfeitores, a biopolítica passa a
incorporar a massa de alfabetizadores à mesma condição da massa de sujeitos não
alfabetizados. O quadro se completa com a ilação de que a esta altura o País já dispunha
de uma população de docentes de formação precária conduzida pelas escolas normais, à
altura, já extintas.
Agenciando uma formação vulnerável, com a precariedade da relação de
trabalho, caracterizada pela escassez financeira, o dispositivo da campanha estabelece
assim uma governamentalidade intrínseca ao campo da Educação de Adultos.
Conduzindo essa governamentalidade, uma racionalidade composta pelas relações de
visibilidade da população não alfabetizada no âmbito do Estado brasileiro se dá mediada
pela luz tremulante de uma vela iluminando um vão cheio de rostos indivisos,
ameaçados a serem outros continuando, no entanto, a serem eles mesmos.
Os enunciados da campanha configuram, assim, a política do abandono a partir
da precariedade expressa nas opções pelo baixo investimento financeiro, professores
com formação inadequada, objetivos direcionados claramente ao governo da população,
etc. Estar sob a lei, nessa perspectiva, ou seja, governamentalizado no espaço
biopolítico da campanha, permitiu que o Estado atuasse sobre as populações não
alfabetizadas ao longo do século XX. As práticas de postergação, mais visíveis no
espaço biopolítico da escola, serão tratadas a partir do delineamento das cronologias
escolares, em seu cruzamento com as possibilidades heterotópicas dos movimentos da
população estudados no próximo capítulo.
43
RESOLUÇÃO Nº 22, DE 20 DE ABRIL DE 2006: estabelece os critérios e os procedimentos para
transferência automática dos recursos financeiros do Programa Brasil Alfabetizado aos estados, ao
Distrito Federal e aos municípios.
196
CAPÍTULO 5.
TEMPOS E DESLOCAMENTOS DIVERGENTES NO ESPAÇO
BIOPOLÍTICO DA ESCOLARIZAÇÃO
Procurando analisar a presença do biopoder e alguns de seus efeitos no processo
mais amplo de escolarização de pessoas adultas, esta parte do nosso estudo se debruça
sobre o registro geral de arquivamento da informação sobre a população de pessoas não
alfabetizadas, quando inseridas no aparato biopolítico da escola. Esse material é
atravessado por racionalidades estatísticas, políticas e culturais que lhes dão condições
de existência. Essas racionalidades conformam uma grade de visibilidade sobre a
Educação de Jovens e Adultos, a face escolarizada e contemporânea no Brasil do
fenômeno mais abrangente da Educação de Adultos.
Quando vislumbramos os efeitos do dispositivo da escolarização em sua
atualidade, cremos poder falar de uma análise do que o dispositivo representa para as
relações sociais nas quais ele está implicado, no caso, como a população de adultos não
alfabetizados no Brasil chega ao aparato escolar e se configura como sujeito de uma
escolarização subalterna mantida pelo Estado. Nesse quadrante, estamos num outro
lugar que já não é apenas o flagrante da emergência de uma forma de poder, mas sua
efetividade na produção do Presente.
Os documentos aqui focalizados compõem o regime de visibilidade, ou
Tecnologia do Abandono, uma forma de exibição do sujeito não alfabetizado que entra
em atuação após sua chegada ao espaço normalizador da escolarização. São históricos
escolares de estudantes de EJA do Ensino Fundamental de uma rede pública de ensino
que resguardam um manancial das informações consideradas úteis, através das quais o
Estado produz a administração da população. Embora tal documentação desfrute de um
valor de verdade para essa organização, Raffestin (1993, p. 67) nos lembra que se trata
de “uma representação da população. Sem dúvida uma representação abstrata e
resumida, mas já satisfatória para permitir uma intervenção que busca a eficácia.”
Destes documentos muitas coisas podem ser ditas e escritas. Mas, nosso
exercício consistiu em “deixar falar” essa documentação, o que significa passar o
arquivo pela grade de análise que vem buscando compreender como a educação escolar
de jovens e adultos no Brasil se constitui como uma não ignorável face biopolítica. Essa
197
grade nos propõe observar os movimentos da população visíveis nesses documentos,
que representam as migrações de indivíduos e de parcelas da população por dentro do
território complexo da escolarização.
A leitura desses documentos nos permite ver o tipo de inscrição que demarca os
sujeitos da EJA em várias dimensões, desde a catalogação de sua identidade racial, de
gênero e etária, sua origem geográfica, sua ascendência, até a classificação geral dos
passos de sua caminhada individual no meio escolar, em enunciados como “retido”,
“aprovado”, “desistente”, utilizados para descrever um tipo de relação da escola com o
sujeito adulto, e das populações não alfabetizadas adultas com a escola.
Essa matriz de relações nos permite observar que, contrariamente à expectativa
geral de que a EJA se resolveria com fórmulas apressadas de tempo, com modos
intempestivos de atendimento, os sujeitos acabam inscrevendo, sobre a face biopolítica
dessa modalidade educacional, outros movimentos que terminam por demarcar tempos
e espaços outros.
Os deslocamentos dessa população pelo dispositivo de escolarização são
entendidos então como movimentação no espaço, mas também enquanto
problematização de racionalidades instaladas como crenças na feitura cotidiana daquilo
que vem sendo produzido como uma escola para pessoas adultas. Nesse sentido, as
racionalidades instaladas constituem regimes de verdade dotados de especial poder na
escolarização, seja a premissa de que o ensino pressupõe a presença diante do mestre,
seja a crença de que a frequência diária é um dispositivo pedagógico de garantia da
aprendizagem.
As populações não alfabetizadas provocam deslocamentos nessa racionalidade
que dá suporte à escola através de movimentações paradoxais, como longas
permanências, excessos de ausência, e a constituição de regimes de presença próprios
que desestabilizam as bases sobre as quais está organizada essa instituição. O exercício
do olhar analítico sobre a documentação enfocada nesta parte do trabalho nos permitiu
identificar que as movimentações dos estudantes pelo aparato escolar são formas
heterotópicas de ocupação do espaço regulador da escola.
Uma forma heterotópica é um “espaço absolutamente outro” (FOUCAULT,
2013b, p. 21), um espaço tocado pela diferença numa manifestação da resistência aos
códigos instituídos de movimentação e ocupação. Segundo Foucault, todas as
198
sociedades constituem heterotopias, que são justamente aqueles espaços ocupados de
forma desviante, heterodoxa, divergente. Por vezes, contingente, por vezes duráveis, as
heterotopias “têm como regra justapor em um mesmo lugar real vários espaços que,
normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis.” (2013b, p.24). Por isso, as
questões da vida doméstica, as questões da vida laboral, as questões da vida amorosa
intersectam o lugar da escola de adultos, cruzando as linhas de tempo e as demarcações
do espaço e provocando deslizamentos, derrisões, acúmulos, uma má distribuição da
população no dentro e fora da escola. Exemplos de lugares heterotópicos são as clínicas
de repouso ou psiquiátricas, as prisões, os cinemas, o cemitério, o teatro e os jardins.
Para Foucault (2013b, p. 25), “as heterotopias são frequentemente ligadas a
recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias”, e o
diagrama que formam tempo e espaço desenha a forma de resistências que se
multiplicam no mar sem fim das relações micropolíticas. Elas representam a suspensão
da própria norma, a deserção dos roteiros, a corrupção dos relógios e dos marcadores de
tempo. Representam o movimento possível dos corpos em deslocamentos divergentes
nas espacialidades da norma.
As heterocronias podem ser ligadas ao tempo da eternidade (cemitérios, museus,
bibliotecas e estâncias de férias) ou ao tempo das festas e ritos (as feiras, os festivais
religiosos, os períodos de jejum, as iniciações). Mas também há as heterocronias do
tempo regulado das instituições modernas, dos espaços do trabalho e da escolarização.
Para as populações que não dispõem da biblioteca como opção, ou das estâncias de
férias, ou dos museus, as relações de resistência se constituem por dentro do cotidiano
de atrito com a maquinaria da escola ou da empresa. As heterotopias, e as heterocronias
que as acompanham, são um tipo de relação polêmica com a norma. São espaços
produzidos quando a lei entra em cena, para sua atuação performativa enquanto
obrigação. Nos sistemas de abertura e fechamento que caracterizam as heterotopias
(FOUCAULT, 2013b, p.26), o espaço escolar apresenta as regras de frequência, de
horários de entrada, de saída, os tempos esperados de permanência. São aspectos
longamente incorporados à concepção de escola, regras contingentes essencializadas
num exercício de fixação contínua de um sistema de crenças que se perpetua como
expressão da racionalidade da instituição, que se manifesta como “razão de ser” daquele
espaço.
199
Como tempo-espaço do abandono à vigência pura da lei, heterocronias e
heterotopias produzem o significado de uma presença que não se desfaz em simples
obediência ou repetição. Porque os corpos são simultaneamente alvo e superfície de
resistência ao biopoder, as heterocronias são inscritas como trajetórias outras, outros
deslocamentos, formando mapas paradoxais que levam simultaneamente a algum lugar
no tempo e no espaço. Nas escolas de adultos, isso significa produzir tempos outros,
forçar os limites da regulação exercida pelos dispositivos de frequência e permanência,
problematizar a corrida pela certificação acelerada, desviar-se da norma enfim.
Essas heterotopias se produzem numa intrincada relação com o tempo, pois as
pessoas adultas não alfabetizadas, enquanto indivíduos, ao adentrar o espaço da
escolarização, não se desvencilham de sua liberdade de forma tão automática como os
dispositivos de governamentalidade gostariam. Antes, e pelo contrário, carregam essa
liberdade consigo e dela fazem uso. E no vislumbre do processo agônico que se
desenrola sob as normas e leis de funcionamento da educação escolar, a população
adulta, subescolarizada, estabelece uma guerra própria com a escola, revelada pela sua
resistência aos processos normalizadores de tempo, presença e permanência.
Os históricos escolares registram, portanto, não apenas a catalogação geral da
população, seu recenseamento, mas, sobretudo, os diversos aspectos dessa guerra
silenciosa, corrosiva, presente, que opõe a vontade de poder dos governos e a liberdade
das populações que dizem a todo o tempo que não se trata dessa escola, desse tempo,
desse tipo de presença, dessas exigências, desses saberes. Ao procurar tornar a
população visível e, assim, governável, as relações assimétricas de poder criaram
também as condições para que o próprio princípio da guerra como continuidade da
política pudesse ser lido no âmbito da escolarização de populações adultas não
alfabetizadas.
200
5.1. Racionalidade estatística e biopoder na gestão da população não
alfabetizada
A análise dos documentos expostos nessa seção trata de um exercício que exige
mais algumas considerações. Primeiramente, essa documentação é a planilha básica de
alimentação das estatísticas educacionais. Sua materialidade impressa44
é a versão
analógica dos dados individualizados que são inseridos no sistema nacional de
informações educacionais, mais conhecido como Censo Escolar. Uma vez inseridos na
rede de produção de conhecimento sobre a população, esses documentos naturalmente
ofereciam à análise uma série de dados estatísticos, de algum modo específicos, dotados
de cientificidade, mas não da cientificidade própria ao seu campo original de existência.
A estatística é um saber que se produz sobre a população com a finalidade de
governá-la, tal como Foucault (2008a) formulou. A estatística é um “sistema de razão”,
através do qual, informa Popkewitz (2001, p.115), “Os números definem trajetórias para
sinalizar progressos ou identificar locais potenciais de intervenção por meio de políticas
de Estado”. No entanto, os números indiciam também uma forma específica de relação
com a verdade, criando um modo de atuar sobre o real, a partir das categorias com as
quais o representam.
A população de pessoas não alfabetizadas é um caso sintomático de produção de
um problema social através da estatística. Conforme lembra Rosemberg (1996), é a
partir da década de 1940, com o aprimoramento das estatísticas nacionais, que o
problema do analfabetismo entra em cena como problema do Estado brasileiro. Assim,
como já vimos discutindo ao longo desta tese, o analfabetismo foi produzido no
momento em que processos de diferenciação se avolumavam na sociedade brasileira, a
partir dos quais, simultaneamente, os dispositivos de alfabetização e de escolarização
foram acionados de forma articulada à definição dessas populações como um problema
social que deveria ser “erradicado”.
Se, como sugere Popkewitz (2001, p. 123), “as categorias de números se
sobrepõem às ideias para formar um campo de práticas culturais”, a produção estatística
do analfabetismo dá conta não apenas do aspecto técnico da administração, mas também
da produção de subjetividades e lugares sociais. A estatística é um discurso poderoso no
44
Ver anexo 2.
201
campo das definições de objetivos e práticas educacionais, compondo uma longa cadeia
de sentidos que se forma entre a representação estatística sobre uma população
transformada em categoria (pardos analfabetos acima de 15 anos, por exemplo) e a
produção de subjetividades conformes a essa representação. No jogo das veridições que
definem quem é analfabeto na sociedade, a estatística produz um efeito dissimulador
dos mecanismos pelos quais não apenas uma população, mas, antes mesmo de serem
constituídos como população, determinados grupos humanos são escolhidos para serem
colocados sob o poder, abandonados à sua intervenção.
Portanto, os dados quantitativos apresentados nesta seção da tese não foram
construídos com uma função descritiva e intenção generalizadora, expositora de
tendências, que uma análise estatisticamente orientada se propõe a fazer. Estes dados
foram construídos a partir da leitura dos documentos entendidos como uma superfície
de inscrição da biopolítica. As variáveis levantadas, as correlações identificadas, as
situações em que eles evocam uma “realidade” fazem parte de um processo de leitura
que busca a compreensão das relações de poder posicionadas no território da
escolarização. Menos do que construir uma representação “verdadeira” do real,
buscamos, com a produção de alguns dados quantitativos, descrever as séries que
narram a história interna dos indivíduos adultos pelo sistema escolar e assim
compreender como a questão do analfabetismo se concretiza como uma “luta” no
campo escolar e quais os efeitos dessa luta no processo de escolarização atual de
adultos.
De tudo quanto se diz sobre educação escolar, temos que uma parte expressiva
dos enunciados é gerada numa profusão de documentos, afirmando a potência da escrita
como lugar da verdade sobre o sujeito, suas práticas, sua trajetória. Tanto a ciência
participa disso, quanto a própria maquinaria que dá forma às práticas de governamento.
A história do sujeito, no campo pedagógico, é um construto em que muitas vezes a
instituição vê, e sabe mais sobre o sujeito do que ele mesmo sobre essa história.
Compreender então a inscrição dos documentos de gestão burocrática da vida escolar
exige que nos desvencilhemos da “soberania do empírico”, e busquemos abandonar
ainda mais essa pretensa razão universal que garantiria a tal “soberano” a função de fiel
da verdade. O histórico escolar que emerge desses documentos é uma narrativa dentre
outras sobre a escolarização, uma narrativa produzida pelas práticas de documentação,
202
influenciada pela atualização da burocracia estatal e da estatística enquanto
racionalidades de governo.
A racionalidade burocrática está na base do exercício do poder de governo na
modernidade, constituindo-se numa das ferramentas através da qual um corpo
especializado exerce com legitimidade os mandatos dessa instituição.
A burocracia é uma forma de poder exercida por grupo social portador de
técnica específica e nomeado para o exercício legal da tarefa de administração do
Estado, na lógica do direito público (WEBER, 1999). É uma profissão, retroage sobre o
indivíduo através de compensações simbólicas altamente eficazes, mas, sobretudo, está
ligada à administração da multidão no âmbito de um território político. A burocracia é
fundada na legitimidade da norma (WEBER, 1999). E a norma, quando ultrapassa seu
sentido jurídico, conforme Foucault nos informa (2008a, p.79), cumpre uma função
normalizadora, ou seja, estabelece um modelo a partir do qual os sujeitos são
interpelados para se adequarem ao padrão a partir de aproximações sucessivas dentro de
uma linha de normalidade. A estatística, como ciência do Estado, tem por função
produzir as informações necessárias para conduzir esta movimentação das populações
em torno das linhas de normalidade.
A burocracia escolar faz uma combinação das duas lógicas do normal como
legalidade e como normalidade, pois articula o poder legal da burocracia na gestão da
vida escolar do estudante, com o poder legítimo da instituição em atestar sua condição
social de pessoa escolarizada, ou seja, inserida na normalidade da relação com a cultura
escrita. Isso se dá nos processos em que o controle sobre a população se exerce na
gestão da multiplicidade baseada no poder-saber técnico dos funcionários em produzir
as planilhas, que sistematizam a informação, o saber sobre os sujeitos, que por sua vez
retroage sobre a população como mecanismo de controle. A burocracia age sobre o
processo da escolarização, como uma ferramenta que a operacionaliza enquanto
biopolítica.
Mas na escola, no cotidiano, a escolarização é produzida nas relações entre os
sujeitos, a instituição, os saberes produzidos pela instituição sobre os sujeitos,
conformando diferentes linhas de força que ligam os pontos do dispositivo, ou seja,
fazem com que alguma relação de veridição opere entre o sujeito e as expectativas
sociais e políticas em torno de sua ação, como por exemplo, no discurso da
203
“profissionalização” dos adultos, pressupondo que toda pessoa adulta não escolarizada
deseja o trabalho, e o trabalho formal, e ainda assim nas posições desprestigiadas que
lhes são oferecidas.
As linhas de força conectam a instituição com o sujeito através de variados
conjuntos de crenças, algumas estabelecidas como leis, outras que operam como mitos,
mas todas com o papel fundamental de fazer funcionar a maquinaria escolar e as
performances que são esperadas por esta instituição. Nessa perspectiva, o anúncio
recente de que certo país escandinavo deixará em poucos anos de organizar suas escolas
com base em currículos disciplinares, ou o anúncio de uma “escola sem muros”, ou
ainda o crescente movimento conhecido como “home schooling” estremecem as crenças
estabelecidas em torno dessa instituição aparentemente confiável.
Essas experiências inovadoras (algumas baseadas em princípios muito antigos)
desestabilizam essencialmente os dispositivos disciplinares presentes no que se
consolidou como modelo escolar, e os substituem por outros dispositivos, de outras
disciplinas, que estabelecem outro regime de verdade na relação com a liberdade e os
corpos dos sujeitos. Portanto, esses outros regimes desestabilizam as relações de força
que estão desenhadas, provocam mutações na instituição, ameaçando suas bases e
dogmas.
Mas por dentro do modelo escolar também há outros movimentos que produzem
o questionamento e, de certo modo, o desabamento dessas categorias que atuam sobre
os sujeitos envolvidos na educação escolar. São movimentos que problematizam as
disciplinas de tempo, espaço e corpo porque evidenciam o fato de que “o poder se
exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em
posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais são o alvo inerte
ou consentido do poder, são sempre seus intermediários” (FOUCAULT, 2005, p.35).
Nas escolas, o mais antigo e profundo desses dispositivos é o tempo
(FOUCAULT, 2009, p.144). Antes mesmo de existir a escola, e o processo que lhe dá
configuração de prática de Estado, a escolarização, os regimes de tempo já se
encontravam constituídos, sendo sua tecnologia altamente sofisticada. A tecnologia do
tempo escolar pode atuar ao nível da anátomo-política do corpo, com os regimes de
controle rígido dos horários e dos movimentos, tal como a produção da norma social da
204
frequência; mas pode incidir também numa expectativa sobre os ritmos e pontos de
passagem de um ciclo a outro pelas populações.
No primeiro caso, as técnicas que produzem a relação disciplinar do corpo com
o espaço, instituindo na relação presença-ausência o regime de veridição pelo qual o
indivíduo passará para ser certificado pela instituição. São as regras sobre avaliação no
processo, em que a presença física do estudante é regulada em porções de tempo,
mensurada a partir dessa medida e, ao ser articulada com outras medições, estabelece
uma demarcação: aprovado, retido, abandono.
No segundo caso, as tecnologias que alegam haver uma “idade certa” para os
processos de escolarização ou para a alfabetização, o que exclui todos os adultos não
alfabetizados da possibilidade de serem considerados na temerária categoria daqueles
seres que estão na idade “certa”45
. Ao lado da definição de uma “idade certa”, a
presunção de que ciclos de três ou cinco anos, conforme cada modelo local, são os
tempos adequados ou suficientes, para que os sujeitos cumpram a etapa correspondente
de ensino.
Certamente, um considerável conjunto de conhecimentos baseados em pesquisas
das mais amplas possíveis é utilizado para definir e legitimar as opções sobre a
organização do tempo escolar. Esses saberes entram no campo das lutas e são da mesma
forma parte do cenário conflituoso que os próprios corpos andantes dos adultos
estabelecem com as crenças que sustentam as escolas.
Ao lado do tempo, o espaço foi fundamental para a administração dos sujeitos, e
das multidões transformadas em populações após serem atravessadas pelo crivo das
categorizações estatísticas. Segundo Foucault (2009, p. 138), “a disciplina organizou
um espaço analítico”, ocupado em “estabelecer as presenças e ausências, saber onde e
como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras.”
A disciplina, como técnica de localização, dispõe os corpos de sujeitos adultos em
classes numeradas, que indicam seu grau de avanço pela escolarização. Localizar as
populações não alfabetizadas no espaço escolar, ainda que ele se apresente como espaço
precário das campanhas, representa também a possibilidade de manter essas populações
sob um campo de visibilidade, permitindo a vigilância dos seus movimentos perigosos e
45
Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), Governo Federal, Ministério da
Educação.
205
permitindo que práticas de subjetivação encontrem um campo permanente de
intervenção.
As cronologias dos alunos da EJA evidenciam movimentos outros que entram
em polêmica relação com esses pressupostos. Modos de ocupar o tempo e o espaço
escolar com seus próprios ritmos, seus deslocamentos, seus esvaziamentos. O que surge
do olhar sobre as cronologias é que os sujeitos criam outros regimes de presença e
ausência no espaço escolar, confrontando todas aquelas expectativas sobre quanto
tempo eles deveriam passar ali. Esses novos regimes participam da economia geral de
poder da escolarização de adultos como movimentos resistentes, seja porque resistem
para manter-se no espaço que se considera de “direitos”, seja para ampliar as exceções
ao ponto de suprimir a regra, seja simplesmente porque esperam outras coisas da
instituição escolar. Mas eles estão ali, em rede, como formas de poder que existem nos
sujeitos e são amplificadas pelo seu movimento enquanto parte de uma população.
5.2. A documentação “Histórico Escolar” e as operações sobre o arquivo
Ao contar essa história específica dos documentos subterrâneos da
escolarização, disfarçada pelo conjunto polifônico de outras práticas pedagógicas,
estamos considerando o “histórico escolar” como um documento que registra o processo
agonístico no interior da instituição escolar, no qual há diferentes saberes em luta pela
verdade. Foucault lembra que foi a “irrupção dos saberes sujeitados” (FOUCAULT,
2005, p.11) o processo que destronou o pensamento científico de seu lugar de verdade e
fez a relativização da força política e explicativa do discurso científico da modernidade.
Os saberes sujeitados são justamente os “saberes históricos das lutas”,
representados pelos conteúdos históricos soterrados e pelos saberes das pessoas,
desqualificados como não científicos porque seriam destituídos de verdade ou de
certeza. Segundo o autor, foi o caráter local desses saberes, sua inscrição nas questões
da vida dos sujeitos, que propiciou a sua emergência como forma crítica e contundente
de conhecimento. Os históricos escolares não guardam os saberes sujeitados per se, mas
são uma superfície de inscrição das lutas em torno da “Educação de Jovens e Adultos
com qualidade social”, pois registram esse “day after” da racionalidade qualificadora
206
contra a racionalidade reparadora consignada pela passagem histórica do modelo de
atendimento educacional por campanhas para o modelo de atendimento por escolas.
A dispersão que caracteriza o dispositivo da escolarização envolve, como já
afirmamos, o convencimento do sujeito de que ele carrega um vazio que a escola vem
ocupar. Essa retórica é sustentada pela primazia da escrita instituída com o início da
modernidade e consolidada pelo desempenho, altamente eficaz para essa tarefa, da
instituição escolar ao longo dessa mesma era. O processo de diáspora africana, as
invasões coloniais e as formas de relação daí decorrentes reforçam, ampliam o escopo e
refinam os processos culturais que estabelecem a escrita como forma poderosa de uso
das línguas. Do ponto de vista de sua atuação, o dispositivo da alfabetização de adultos
tem uma ampla área de atuação dos seus argumentos estratégicos. A interpelação do
sujeito adulto para a alfabetização circula nos meios midiáticos, comunitários, políticos.
Não é preciso estar na escola para ser interpelado por essa racionalidade. A sociedade se
organizou em torno da escrita e todos deveriam adaptar-se a ela, e isso parece natural e
até necessário.
No diagrama que busca descrever o dispositivo escolar, tornando-o visível para a
finalidade de sua investigação, esses documentos participam da Tecnologia do
Abandono. Essa Tecnologia atua através de técnicas que descrevem, registram e
contribuem com o processo de produção do espaço de abandono à lei da Educação de
Jovens e Adultos.
Desse modo, como enunciados, os históricos escolares compõem o conjunto que
gera um regime de visibilidade específico sobre o sujeito da escolarização de adultos. A
sua presença massiva (um histórico para cada indivíduo) na materialidade da formação
discursiva sobre a EJA acompanha a curva de visibilidade e se relaciona intimamente
com a curva de enunciação que produz esse mesmo sujeito no interior de uma
população e “justifica” a biopolítica. O regime de visibilidade que constitui esse sujeito
estudante da modalidade educacional EJA utiliza como operadores de sua curva de
enunciação termos como “evadido”, “repetente” ou “retido”, “abandono”, “aprovado”,
“reclassificado” ou “nunca”.
Esses documentos explicitam não apenas movimentações de sujeitos pela
escolarização, mas compõem um quadro complexo com as racionalidades pedagógicas
sobre o tempo e o espaço escolar, e confrontam-se com a compreensão de um ethos da
207
potência do sujeito, ao registrar o fracasso da escola em lidar com a liberdade das
pessoas adultas irem e virem.
O lugar que esses documentos ocupam na maquinaria interna da instituição faz
parte de uma rede que conecta a chegada do sujeito à escola no ato de matrícula, a sala
de aula e seu cotidiano, e os controles ao nível macro da política educacional. Essa
documentação é parte do sistema de coleta nacional de informações escolares ― o
Censo Escolar ― e fornece os dados primários para as estatísticas de governo sobre a
população. Trata-se de documentação que testemunha as movimentações dos sujeitos
pela escolarização, que é tida, pelos enunciados emancipatórios em torno da escola de
adultos, como um aparato menos precário que as campanhas.
Rendimento, movimento e fluxo não são em geral assuntos tratados no campo da
escolarização de adultos, exceto pelo fato de que esta modalidade educacional é vista
como resultante de situações mal resolvidas na escolarização. Isso ocorre, em geral,
quando um enunciado situa a modalidade como um público de “distorção idade série”,
ou quando, no plano extradiscursivo, estudantes com 15 anos ou mais e histórico de
repetência são encaminhados para o turno da noite, nas turmas de EJA
(aproximadamente 20% da coleção analisada nesta pesquisa carrega esse tipo de
registro).
Os históricos escolares de alunos da EJA do Ensino Fundamental representam o
“registro do olhar” da instituição sobre a movimentação desses sujeitos. Mais do que
isso, na formação discursiva da Educação de Adultos no Brasil, frequentemente essa
modalidade escolar é problematizada a partir de sua produtividade estatística. No
entanto, o tipo de informação que serve a essa problematização é muito mais uma
visibilidade dos quantitativos de indivíduos que estão fora da escola, dos índices de
analfabetismo, dados sobre evasão e menos, bem menos os índices de retenção,
reprovação e repetência de estudantes adultos em processo de escolarização.
Isso ocorre provavelmente em virtude de três fatores: por um lado, o imaginário
social sobre a Educação de Adultos condiciona a visibilidade do estudante a partir da
sua ausência (“não sabe ler e escrever”, “está fora da escola”, “evadido”) e, segundo, a
nossa capacidade de pensar esta modalidade educacional está condicionada à hipertrofia
discursiva da alfabetização como grande tema em disputa com a ideia de escolarização;
208
o terceiro fator é a inadequação das categorias da escolarização regular para a
compreensão da Educação de Jovens e Adultos.
As categorias de rendimento e movimento, quando aplicadas à EJA, geram
dados estatísticos de natureza estranha, desestabilizam as linhas de normalidade que a
estatística tradicional ajuda a produzir, criam índices paradoxais. Portanto, essas
categorias, por serem também as mais abstratas e descritivas de uma noção do real, são
aquelas pelas quais mais se pode vislumbrar as inadequações do projeto de
escolarização.
Bastaria ao menos um, e não 141 dos estudantes longevos cujos históricos são
analisados mais detidamente nesta pesquisa, para justificar um debate sobre nossas
categorias de interpretação da escolarização de pessoas adultas, mas eles são 10% de um
conjunto de 1378 pessoas inseridas na escolarização de adultos em que cinco anos
(cinco séries anuais regulares exigidas como mínimo para o cumprimento do Ensino
Fundamental na rede da qual provêm os documentos) não foram suficientes para
garantir o acesso aos conhecimentos essenciais para sua inserção plena e autônoma na
vida cidadã de uma sociedade neoliberal.
Ao trazer à visibilidade tal documentação, nossa pesquisa problematiza esses
parâmetros e sua produtividade, observando os enunciados soterrados sobre as grandes
estatísticas, que evidenciam outras temporalidades, outras formas de relação com o
espaço escolar, e indiciam outras necessidades da população que é objeto da biopolítica,
produzindo hipóteses relativas à desestabilização do dispositivo, ao expor suas linhas de
fratura. Nesse sentido, tratamos mais das cronologias discutidas à frente no texto, do
que das categorias típicas do campo, como evasão e repetência. As cronologias nos
informam sobre longas permanências, retornos constantes mediados por abandonos
frequentes, movimentações em formas atípicas de convivência com a escolarização,
produzidas por sujeitos ao longo de sua vivência do tempo escolar e registradas
detalhadamente na documentação produzida pela instituição.
Os documentos foram selecionados numa rede de ensino46
que dispõe de um
aparato consolidado de atendimento educacional a jovens e adultos, professores
46
A não enunciação da identidade dessa rede, sua história específica, a manutenção de um campo de
generalidade para esse lugar de origem dos documentos trabalhados ocorre pela necessidade de não tratar
essa rede específica como um “caso” dentro de um estudo. A generalidade dessa origem marca a
possibilidade de pensar que essa situação ocorre em outros sistemas de ensino semelhantes. Observo que
209
dedicados a essa tarefa, sistemas de controle e acompanhamento escolar, produção de
dados e, portanto, geradora de documentos que registram a trajetória dos sujeitos e
possuem força certificadora no marco da oficialidade. Embora possua projetos didáticos
e ações específicas voltadas para o público jovem e adulto matriculado, o que a rede de
ensino escolhida oferece é escolarização no seu modo convencional, com todo o aparato
típico desse processo social.
Dessa forma, por mais amplo que seja o estudo da escola e as capacidades de
reinvenção permanente do que se faz no cotidiano, este trabalho não analisa
documentação proveniente de um projeto pedagógico com intencionalidades especiais
ou diferenciadas da escolarização, nem um horizonte que se apresente em disparidade
com o projeto de escolarização da modernidade, mas um espaço onde as prerrogativas
desse projeto aparecem em sua forma estabilizada e não de forma institucionalmente
problematizada.
Ainda sobre esse ponto, é importante esclarecer que essa caracterização não
resume nem encerra a prática pedagógica dos sujeitos envolvidos com a produção
cotidiana na rede de ensino que produziu estes documentos, pois temos amplo
conhecimento de que essa característica conservadora e estabilizada na concepção
tradicional de educação escolar encontra-se em permanente questionamento, sendo
interpelada pelos educadores e pelos educandos.
Os textos denominados "históricos escolares" fazem parte de um circuito que
incorpora diferentes sujeitos, temporalidades, modos de enunciação e visibilidades. A
maquinaria da administração da educação escolar, essa educação de massas ocupada
com as populações, portanto, a educação da multidão, sempre esteve articulada com a
preocupação sobre os fluxos de produção. O debate sobre tempo escolar, do ponto de
vista da gestão desse fluxo, representa uma preocupação antiga, que remete aos
primeiros momentos de organização dessa instituição e, logo, aos processos presididos
o modelo tradicional de escolarização, esse que segue os parâmetros gerais de oferta escolar, com 200
dias letivos, 800 horas anuais, regimes de avaliação e aprovação por aproveitamento e frequência não é
exclusividade dessa rede de ensino que produziu os documentos. Outro elemento da opção pela
generalidade desse campo de origem dos documentos é o fato de que esta pesquisa não adentra pelo
debate sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas, sobre os projetos didáticos de professoras
particulares, as especificidades pedagógicas que produzem a singularidade do trabalho desenvolvido. O
nosso trabalho, especificamente no que tange ao tratamento dos documentos aqui analisados, procura
compreender essa rede de ensino como parte de um dispositivo mais amplo, e não a partir de sua
singularidade, uma vez que o debate aqui é sobre escolarização e não sobre experiência pedagógica,
trajetória de escolarização ou história de vida escolar.
210
pela racionalidade disciplinar. No entanto, apresenta uma atualidade não desprezível,
preocupada com a eficácia das escolas e a eficiência do ensino. Essas noções de eficácia
e eficiência envolvendo metas e rendimentos quantificáveis representam a manifestação
da escolarização submetida ao pensamento da economia política, entendida aqui como
racionalidade estratégica da governamentalidade.
Nesse sentido, os cortes que constroem o arquivo, bem como a montagem desse
marco documental carregado pelo sentido de monumento representam uma criação do
pensamento interessado no fenômeno. Não há um fenômeno dado, mas uma construção
que gera o fenômeno e o legitima para a epistemologia do estudo.
No caso da nossa pesquisa, esses arranjos se deram da seguinte forma: os
arquivos da coleção “históricos escolares” foram postos diante de nossos olhos a partir
da iniciativa de uma educadora que atuava no interior dos processos de gestão da vida
escolar. Essa educadora nos apontou os documentos e perguntou: o que podemos fazer
com isso? O que esses documentos traziam era a história das interrupções, das
intermitências, das repetições, das reprovações e dos abandonos. Todas essas palavras
recheavam centenas de páginas cujo título era justamente: "histórico escolar". No
entanto, ao lado dos documentos, havia uma experiência nossa, que pode ser
considerada antiga, que nos dizia que aquela história, daqueles estudantes, não
começava ali, na relação com o aparato formal da escolarização.
Os documentos possuíam uma vida, estranha e subterrânea, eram eloquentes em
relação a muitos fatos e provocaram um olhar para as práticas a que se referiam. Ao
direcionar o olhar a essas práticas, percebemos que algo se passava, e ficava registrado
de maneira “rupestre” nos documentos; tais marcas sugeriam que os desenhos haviam
sido feitos com a intenção de idolatrar deuses ― a organização interna da “vida escolar”
como “garantia” do direito de aprender ― ou, talvez, e bem provavelmente, seu
contrário: os desenhos serviam para afastar os maus espíritos ― renegar aos
subterrâneos aquelas partes de nós mesmos que não queremos olhar no espelho.
Como recortar o fragmentário e percorrer sua inteligibilidade sem recorrer a
categorias como normas, tendências, regras transcendentes, verdade? Ao definirmos
uma postura em relação ao arquivo, concebemos a possibilidade de nossa narrativa se
constituir como mais uma, dentre as várias que cercam a Educação de Adultos em sua
história. Assim como fez Foucault (2010a, p. 7),
211
Eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada do discurso; não
queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo;
gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma,
profunda, indefinidamente aberta.
Porém, se quisermos compreender como o poder atua, temos de estudá-lo, observar suas
práticas, lançar luzes sobre aquilo que ele esconde, entender porque esconde, onde
esconde e como o faz.
Nesse sentido, o arquivo “histórico escolar” foi submetido a alguns cortes que
poderemos chamar de tradicionais: gênero, raça, faixa etária, ano de nascimento. Ao
atravessar esses cortes com indicadores produzidos na pesquisa, como “tempo de
permanência na EJA”, “quantidade de anos repetidos sequenciais”, “permanência na
mesma escola”, pretendíamos submeter o arquivo a outros regimes de visibilidade. E
disso foram surgindo outras narrativas, com toda uma carga de objetividade que mal
disfarça sua real inscrição enquanto fotogramas de vidas de pessoas concretas cuja
experiência escolar é atravessada por intermitências, descontinuidades, retomadas,
abandonos.
A própria imagem do precário assume então outro sentido. Mesmo que
estejamos argumentando a todo o tempo que há uma EJA que produz exclusão, nossos
dados não dão conta da riqueza da experiência e do significado do cotidiano. Mas, eles
nos dão o índice que a riqueza da experiência e o sentido da vida escolar cotidiana,
nunca presente nos documentos, porque sempre possuem algo de incapturável pelo
poder, são constantemente atravessados pela norma que efetivamente produz a exclusão.
Confirmamos que os indicadores construídos na pesquisa, ainda que localizados,
ainda que construídos sem a pretensão normativa de uma amostragem quantitativa
típica, revelam uma profusão de instabilidades quando vislumbramos que processos
avaliativos, processos didáticos, processos pedagógicos em geral, mantém, em relação
com a vida cotidiana inescapável dos sujeitos da EJA, uma relação no mínimo
polêmica. Nossos dados aparecem então como enunciados que são como narrativas
plausíveis a contar uma “história íntima” da EJA, que é uma prática pública em sua
inscrição como processo educativo.
212
Os documentos aqui analisados são uma produção da instituição escolar47
a
respeito do estudante jovem e adulto. Eles registram a trajetória desses sujeitos ao longo
de um processo de convivência com a EJA. Uma de suas funções é garantir que o
percurso do estudante esteja registrado para fins de certificação. Outra de suas funções é
garantir que a instituição conheça o fluxo dos estudantes pela modalidade. Nesse
momento em que o documento se torna uma informação sobre o sujeito para fins de
gestão dos processos, o que vemos emergir é uma visibilidade.
Esses são documentos poderosos, pois ao invés de apenas descrever ou registrar,
eles representam a legalidade para a concessão de certificados. Porém, ao descrever ou
registrar, eles também entram nas relações de força do dispositivo. Descrever e registrar
estão na ordem das visibilidades e produzem o saber da exposição do sujeito.
Nesse retrato, o estudante aparece como uma sequência de informações: dados
pessoais, dados documentais, e dados escolares: condição do aluno (promovido,
repetente, nunca estudou, etc). Há também dados sobre necessidades especiais, e o
histórico escolar propriamente dito. Há, ainda, lugar para foto de rosto. Das fichas que
recebemos da secretaria para esta pesquisa, após solicitação formal desses dados com
documento fornecido pelo Programa de Pós-Graduação, nenhuma veio com foto. Então
esses documentos falam do sujeito em sua relação com a escola, o local onde a relação
pedagógica ou com o saber é registrada como produto. Há outros lugares onde essa
inscrição pode ser feita, como o diário de classe, no qual há 6 linhas para a anotação da
avaliação docente de cada estudante, por folha de frequência anual. A relação do sujeito
com o saber é registrada em espaço bastante reduzido e o documento que registra a
trajetória do indivíduo pela instituição de ensino não dá conta dessa relação. Contudo,
dá conta de seus efeitos.
A ficha em si descreve a caminhada desses sujeitos pela escolarização. Com as
informações de ano de entrada na EJA, tempo de permanência na modalidade,
quantidade de anos de retenção, quantidade de anos de evasão, ao lado de idade e
cor/raça montamos uma matriz de análise que se inscreveu sobre os registros
preliminares, sobrepondo-lhes outra camada de informação. Com base nessas matrizes,
organizadas pela mesma relação escola/turma/sujeito que a instituição utiliza, pudemos
vislumbrar algumas movimentações mais específicas e problematizar sua existência.
47
Em sua abrangência, a rede de ensino é escola, pela dimensão da institucionalidade que abarca.
213
O corte cronológico é de um ano letivo, 40 semanas, embora essas fichas nos
deem informações sobre vários anos da trajetória dos sujeitos. São fichas de turmas
completas de pessoas adultas matriculadas em 14 escolas de EJA dos anos iniciais do
Ensino Fundamental, perfazendo um total de 52 turmas. Nessas turmas, no ano de 2012,
estavam matriculadas 1.378 pessoas; destas, 548 eram homens e 829 eram mulheres. Na
linguagem estatística, os homens corresponderam a 40% e as mulheres a 60% da
“amostra”. A escola com maior número de alunos tinha na época 245 matrículas em
turmas de EJA, e a que possuía menor matrícula 36. O total de matrículas da amostra foi
de aproximadamente 11,5% das matrículas da Rede Municipal naquele ano, conforme o
Censo Escolar 2012.
Esse material é extenso e, portanto, procedemos alguns cortes para
conseguirmos lidar, até fisicamente, com a coleção. Tais fichas são documentos
objetivos e descritivos. Por dentro desse arquivo, construímos algumas séries, baseadas
em classificações já consolidadas na pesquisa social. Mas, sob o objetivo de fazer falar
os documentos, era importante ver o funcionamento da biopolítica no que tange a
populações específicas dentro da grande massa de pessoas adultas não alfabetizadas.
Portanto, raça, gênero, faixa etária e tempo de permanência na instituição escolar
constituem os recortes principais que produzimos no interior da coleção.
Esse procedimento cruza experiências analíticas de base quantitativa com
análises de cunho qualitativo, mas está orientada a compreender o funcionamento desse
material no conjunto do qual ele faz parte, ou seja, compreender a função desse arquivo
como uma superfície de inscrição da biopolítica da Educação de Adultos.
Após uma primeira leitura do material geral, foi gerado um arquivo menor,
chamado “arquivo de longevos”, que resultou, por sua vez, em duas coleções mais
específicas. O Grupo 1 contém todos os estudantes que possuíam registros de mais de 3
anos de escolarização e no Grupo 2, destacado do primeiro, todos os estudantes que
possuíam mais de 5 anos registrados. Esse critério foi montado pensando na
produtividade da amostra para a discussão da tese e não tem intenção descritiva dotada
de uma cientificidade estatística.
Ao todo, foram separados do conjunto original da coleção os históricos de 382
estudantes que integraram o Grupo 1 e, desses, 141 documentos dos sujeitos que
possuíam mais de 5 anos de registro de trajetória escolar na modalidade Educação de
214
Jovens e Adultos, constituindo o Grupo 2. Esses históricos evidenciam uma
permanência no sistema. Mais do que uma permanência, uma insistência, uma
continuidade do vínculo que passa por várias cronologias específicas.
Como pode ser observado na tabela abaixo, 382 (27%) dos documentos
coletados, representam indivíduos que iniciaram sua a escolarização há mais de 3 anos
(considerando o ano de coleta dos documentos: 2012), e destes, 141 (10%) nasceram
para a escola há mais de 5 anos: são os longevos da amostra. Entre os 1.378
documentos da coleção original, é preciso contabilizar os jovens recém-matriculados, as
pessoas adultas em sua primeira ou segunda matrícula, estudantes cujas trajetórias
anteriores não foram inscritas no sistema do Censo Escolar, os estudantes recém-
matriculados oriundos de programas de alfabetização, entre outras situações que
produzem um registro inferior a três anos de escolarização naquela ocasião. A maioria
dos documentos do grupo geral informa sobre matrículas nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Em nenhum desses casos as histórias escolares podem ser presumidas
como restritas apenas aos anos registrados.
Os documentos não dão conta de todos os que não voltaram, daqueles que
tiveram alguma matrícula nos anos precedentes e desistiram, daqueles que tentaram por
longos períodos e depois não retornaram mais à escola. Esta é a série que fala dos que
persistiram, portanto, a série dos que se evadiram não está aqui registrada. Entretanto, a
evasão dos que persistiram está marcada. Suas ausências longas e seus retornos
aparecem aqui nas cronologias que evidenciam a cronologia dos ciclos relacionados às
vidas e indiciados pelo espaço escolar.
Tabela 1: dados gerais da coleção de Históricos Escolares
Grupo 1: documentos de sujeitos com mais de 3 anos de escolarização
Sujeitos Homens Mulheres Negros Pardos NI* Brancos
382 120 262 34 166 131 50
27% da
coleção
total
31%** 68% 9% 43% 34% 13%
Grupo 2: documentos de sujeitos com mais de 5 anos de escolarização
215
Sujeitos Homens Mulheres Negros Pardos NI Brancos
141 44 98 10 63 46 20
10% da
coleção
total
31%** 69% 7% 44% 32% 14%
*NI = raça/cor não informada.
** Percentuais nesta linha referem-se à coleção específica.
Caracterizar o tempo de permanência na escolarização como um indicador da
biopolítica, ou seja, como parte de uma prática de conduta de uma população, polemiza
frontalmente com o argumento pedagógico de que os sujeitos aprendem em ritmo
próprio, conforme seus interesses e necessidades. Essa concepção de tempo de
aprendizagem, no entanto, problematiza os sistemas racionais que sustentam a
maquinaria da escola, e fazem par com processos como a reprovação de estudantes
adultos por “ausência frequente” a uma escola que só consegue considerar
aprendizagem aquilo que se constrói no interior de si mesma.
Ao questionarmos esses tempos, parece que estamos a polemizar com a
perspectiva de liberdade e autonomia do sujeito em produzir sua experiência escolar em
conformidade com seus interesses e necessidades, mas, tendo em vista a demarcação
desses ritmos específicos como retenção, repetência, desistência e abandono, palavras
associadas à “anomalia” da caminhada e não à sua plena vivência do tempo escolar, o
que acaba polemizando com a liberdade e autonomia do sujeito adulto na produção de
sua caminhada escolar é, antes, o enunciado analisado e menos nossos pressupostos.
Portanto, o que importa desses documentos não é tanto o que eles expressam em
sua tarefa de registro funcional de dados para alimentar um sistema maior de gestão das
redes de ensino. O que os torna relevantes para a análise biopolítica é sua condição de
indícios das séries emaranhadas pela invisibilidade funcional e pela indizibilidade
estratégica do dispositivo.
Como exemplo dessas séries, a categoria "raça" nos mostra mulheres e homens
negros, cuja média de anos de permanência no sistema é de 9,6 anos, em comparação
com a média geral de 5,5 anos no grupo que tem mais de três anos de escolarização
registrada, e 8,1 anos de permanência no grupo com mais de 5 anos de tempo escolar
216
registrado. A materialidade mais premente da relação com o tempo abstrato da
escolarização é o quantitativo de pessoas que passam no sistema escolar mais tempo que
o máximo previsto para o cumprimento do ensino fundamental. Servindo aos processos
de regulação, a noção de permanência pode ser problematizada como um fator
biopolítico e não necessariamente um indicador do sucesso escolar em EJA.
Ao atuar sobre os documentos, poderíamos tê-los submetido a diversos estilos de
análises, incluindo estudos quantitativos que revelassem variáveis e levantassem dados
secundários sobre a questão do fluxo escolar. Contudo, a nossa opção foi olhar para os
documentos como parte de uma rede de enunciados sobre a escolarização de pessoas
adultas e pensar a partir daí sua participação no processo mais amplo do governo das
populações não alfabetizadas.
Diante desse caminho, optamos por abordar a documentação por grupos de
escolas, as turmas e os movimentos individuais de sujeitos anônimos e não
necessariamente biografias individuais. Ao fazer essa opção, ao que parece,
renunciamos a um objeto profundamente valorizado na tradição da pesquisa
educacional, e com especial valor para as pesquisas em Educação de Adultos. Porém,
reafirmamos que aqui o que investigamos não é a biografia do indivíduo, mas a história
do sujeito não alfabetizado na escolarização, no sentido que Foucault atribui a sujeito
como uma produção discursiva que demarca um lugar onde o poder incide através de
práticas disciplinares e normalizadoras.
Em busca da compreensão sobre como o constrangimento e o abandono se
constituem como técnicas de conduta da população não alfabetizada, o lugar desses
documentos e dos significados levantados pela sua análise é o de registrar as opções que
o poder tomou ao dedicar-se às populações em foco. Por essa razão, a análise
biopolítica, partindo de uma genealogia, pode abrir-se a outras ferramentas e
procedimentos de análise que, no entanto, mantenham um grau elevado de coerência em
relação aos princípios e finalidades do estudo, como algumas análises quantitativas que
produzimos minimamente e de forma cautelosa, a fim de evitar que se tornem um
“discurso da verdade” na tessitura da pesquisa.
Em relação aos níveis de análise, que denominaremos de população e indivíduo,
respectivamente, é importante salientar as finalidades de analisar cada um. Ao nível da
população, os dados coletados procuram submeter as noções convencionadas de sucesso
217
e fracasso escolar à grade de uma “estatística subalterna”, sem intenção descritiva, mas
problematizadora, porque geradora de dados controversos. No outro polo, o nível do
indivíduo nos informa sobre a multiplicação dos movimentos possíveis do “um” dentro
da escolarização das multidões e problematiza, não apenas o modelo de gestão, mas
também o próprio modelo de escolarização ofertado. Isso se faz com a montagem de
cronologias individuais que cruzam o tempo e a passagem dos indivíduos pelo espaço
da escola.
Ao produzir as categorias da nossa intervenção sobre os documentos e, com isso,
pretender problematizar as racionalidades instaladas na produção da escolarização, nós
não perdemos de vista o que afirma Popkewitz (2001, p. 125) a respeito dos sistemas de
classificação nas estatísticas:
O agrupamento de pessoas por meio do raciocínio populacional faz
tanto parte de nossa ‘razão’ contemporânea que costumamos não ter
consciência de que os sistemas de classificação que designam as
pessoas como pertencendo a uma população é uma invenção histórica
e um efeito de poder. Ao aplicar um cálculo de probabilidade, o
pensamento populacional constrói uma nova forma de
individualidade. O indivíduo é normalizado em relação a agregados
estatísticos a partir dos quais características específicas podem ser
atribuídas ao indivíduo e de acordo com as quais uma trajetória de
vida pode ser mapeada e seu desenvolvimento monitorado e
supervisionado.
Vem da natureza biopolítica do nosso estudo o fato de que os casos analisados
não serão tratados no horizonte heurístico do valor de verdade biográfica, mas no
espaço muitas vezes convulsionado do anônimo. O anônimo que compõe as multidões
vive ao mesmo tempo sob a proteção de não ser identificado e um risco permanente de
ser capturado. Se as práticas disciplinares são individualizadoras e atuam num espaço de
constituição de subjetividades, as práticas biopolíticas precisam articular diversas
técnicas para conseguir manter seu objetivo de controle sob condições eficazes. O
anonimato também é uma forma de existência, e já foi problematizada por muitos,
inclusive fartamente na literatura da modernidade.
Esses documentos propõem um debate a respeito do modelo escolar, e dos
dispositivos que governam a vida escolar dos estudantes, mas, sobretudo, contam uma
história “íntima” da EJA, falando daquilo que não se fala quando se trata de discutir
218
escolarização de adultos a partir de uma discussão simplificadora na qual o acesso é
uma categoria suficiente. Eles denotam a produtividade silenciosa da EJA e representam
um recorte numa realidade mais ampla, uma amostragem produzida sem a pretensão de
indicar uma tendência, nem de representar a totalidade, mas apenas de discuti-la e
problematizá-la a partir das heterotopias que emergem das escansões sobre o material,
da projeção de outro regime de classificações, desta vez interessado nas derrisões, nos
vazamentos, nas lutas cegas em torno da manutenção das pessoas não alfabetizadas nos
espaços do disciplinamento escolar.
Sobre o conjunto de documentos de longevos, fizemos algumas incisões como a
quantidade e o percentual por raça/cor/etnia, por gênero, por ano de ingresso, por
origem regional. As especificidades se multiplicam a ponto de não poderem gerar uma
lei de sua existência, como se cada história tivesse no âmbito da escolarização o direito
de ser única. Salientamos inicialmente que apenas um documento possuía atribuição
racial “amarela”, entre o grupo de longevos, bem como um que se autodenominou
indígena.
Nos próximos itens detalhamos uma seleção de componentes específicos que
analisam as condições de funcionamento da biopolítica: apresentaremos as médias
conforme as categorias trabalhadas na pesquisa; em seguida a tipologia dos estudantes
longevos; discutiremos os índices da aprovação, retenção, abandono na população
enfocada; traremos a reflexão sobre o tempo de permanência e os anos de escolarização
média dos indivíduos; e faremos a análise de algumas cronologias identificadas.
219
5.3. Deslocamentos divergentes problematizando os parâmetros da
escolarização
A população de pessoas não alfabetizadas ou com baixa escolaridade no Brasil
no ano de 2012 era de aproximadamente 56 milhões de pessoas, segundo o
PNAD/IBGE 2011. Esse quantitativo, chamado pelos técnicos em estatística de
“estoque”, representa uma demanda potencial para a Educação de Jovens e Adultos.
Naquele mesmo ano, a EJA teve uma queda nas matrículas da ordem de 3,4%48
, fato
que vinha ocorrendo há alguns anos, e atendia aproximadamente 3.906.877 estudantes,
principalmente inscritos em escolas públicas de Ensino Fundamental (65% das
matrículas). O atendimento não passava de 10% da demanda.
No Estado de Pernambuco, as matrículas da Educação de Jovens e Adultos para
o Ensino Fundamental foram de 126.562 e o número de concluintes para esse universo
foi de 17.325, o que gera uma taxa de conclusão de aproximadamente 14%. Os censos
escolares não informam os dados desagregados por município para as turmas de EJA.
Os dados fornecidos pelo INEP sobre rendimento escolar para o ano de 2012 trazem os
resultados apenas do ensino dito regular, o Ensino Fundamental de 8 ou 9 anos e o
Ensino Médio. A dificuldade com a elaboração de taxas de rendimento e movimento
para turmas de EJA é um desafio que supera o marco das técnicas estatísticas, pois está
intimamente relacionado com a concepção de escola que demarca o atendimento à
população.
Para o INEP, órgão responsável pela produção das principais estatísticas
educacionais no País, o conceito de rendimento escolar refere-se “aos resultados obtidos
pelo aluno ao término do ano letivo”. Esses resultados podem ser de três ordens:
"aprovado", quando o aluno obteve “frequência e notas satisfatórias”; "reprovado",
quando não obteve frequência e notas satisfatórias, e "concluinte", quando ele é
certificado pelo cumprimento de uma etapa da Educação Básica. O conceito de
movimento refere-se à mudança de vínculo escolar do aluno no interior do ano letivo,
referindo-se: 1) às situações em que ele foi transferido, quando no mesmo ano letivo
esse aluno solicita formalmente matrícula em outra escola ou em outra modalidade da
48
Todos os dados apresentados nesta seção são oriundos do INEP/MEC; as exceções são informadas no
corpo do texto.
220
mesma escola; 2) abandono, quando o aluno deixou de frequentar a escola, mas
permanece no sistema escolar; e 3) a condição de falecido (INEP, 2013).
A Educação de Jovens e Adultos enquanto modalidade escolar de oferta
obrigatória pelos sistemas também deve ser incluída no Censo, e o modo de anotação
dos resultados dessa modalidade, no qual são inseridos os dados de rendimento, podem
ser adequados aos modos de organização do currículo em cada rede de ensino.
A simples anotação de um resultado de aluno de EJA como aprovado ou
reprovado é suficiente para o processo de gestão da informação sobre o desempenho
dessa modalidade escolar, conferindo uma aparência de normalidade a um processo que
possui mais elementos distópicos do que se poderia esperar. Esse exercício contínuo do
registro sobre o sujeito produz marcas de identidade, ao lidar com os tempos e
demarcações, sobre quem fica retido e onde, ao longo do processo.
Esses dados referem-se ao saber disciplinar que demarca os sujeitos na condição
de “sucesso” ou “insucesso” escolar. Conviver com esses resultados, ser o corpo que os
carrega, representar socialmente o sujeito desse processo pode ser uma experiência em
que o constrangimento se constitui numa constante. A superfície de inscrição dessa
tecnologia do constrangimento articulada pela tecnologia do abandono é o campo sutil
em que atua o biopoder, em sua efetividade, em sua dispersão, e da forma mais
econômica possível.
5.3.1. A EJA de longa permanência: os ciclos dos adultos longevos
O grupo de estudantes cujos históricos indicavam mais de 3 anos de vida
escolar, ao lado dos estudantes com mais de 5 anos de vida escolar, recebeu a
denominação de “longevos” para indicar que a sua permanência no aparato escolar
indicava uma relação conflituosa que confronta a expectativa de uma formação
acelerada e a própria ideia de sucesso. Manter-se na escola, mas não avançar na
escolarização, representa um dos maiores desafios que a educação escolar no Brasil vem
enfrentando, seja em relação às populações infantis, seja em relação às populações
adultas. Para as primeiras, no entanto, essa problemática ganha visibilidade nos anos
1980. A ideia de sucesso escolar, da forma como é socialmente experimentada,
221
relaciona-se à consecução das etapas educacionais e obtenção dos diplomas
correspondentes. A sua não obtenção revela um dado que seria menos decisivo se fosse
mais excepcional.
O debate que se colocava na década de 1980 teve como marco a pesquisa de
Fletcher e Ribeiro (1988), intitulada “A educação na estatística educacional”,
apresentada no “Seminário de avaliação das PNADs da década de 80”, no qual os
autores apresentaram uma análise crítica seguida de uma proposta de intervenção no
tratamento dos dados sobre a educação. A principal contribuição desse trabalho foi a
apresentação do modelo Profluxo, uma metodologia de análise estatística mais próxima
dos processos escolares e atenta a questões como base de dados utilizada, coerência
entre as variáveis aplicadas e confiabilidade dos resultados, bem como o tratamento das
categorias analisadas, como indicadores socioeconômicos. A aplicação do novo modelo
gera um deslocamento nos termos dos debates, pois, à época, o campo educacional
estava ocupado com a questão do acesso à escola, e com a questão da evasão, que eram
apresentados como os dois mais importantes problemas da educação pública brasileira.
Como base em novo modelo estatístico, Ribeiro (1991) e Fletcher e Ribeiro
(1981) demonstram que o problema central da escolarização no Brasil não era a
propalada evasão, mas a repetência. A mudança de foco trazia para dentro da escola os
problemas do atendimento escolar. Em artigo polêmico intitulado “A pedagogia da
repetência”, o engenheiro e físico Sérgio Costa Ribeiro acende uma discussão sobre o
papel da repetência como mecanismo de seleção social da escola brasileira do final do
século XX. Segundo o autor:
Ao analisarmos a probabilidade de reprovação para populações
urbanas pobres do Nordeste, verificamos que a probabilidade de
promoção para os alunos novos na 1ª série é próxima de zero, sobe
para aqueles que já têm uma repetência e só volta a cair para quem foi
reprovado mais de duas vezes. Este dado indica claramente que nas
escolas das classes menos favorecidas de nossa população existe uma
determinação política (ainda que não-explícita) de reprovar
sistematicamente todos os alunos novos. Esta prática mostra
claramente a tragédia e perversidade de nosso sistema educacional.
(1991, p. 15)
Nesse período, segundo Brandão (1983), em obra intitulada A escola em
questão, a produção acadêmica brasileira sobre evasão e repetência fazia a crítica
222
interna do campo pedagógico, buscando interpretar os fenômenos em pauta a partir de
seis grandes enunciados: aspectos relativos ao aluno, aspectos relativos ao professor,
aspectos institucionais, aspectos das práticas pedagógicas desenvolvidas e aspectos
relativos à subnutrição e desempenho. Na década de 1980, o Brasil passava por
importante etapa de um processo de redemocratização que então avançava nas várias
esferas da vida social e adensava, pouco a pouco, o movimento em direção a uma
democratização mais efetiva e institucional. Os temas da educação eram também os
temas da democratização: educação para todos, busca da qualidade, superação das
desigualdades educacionais.
Nos anos 2000, considerando os primeiros 15 anos deste século, a situação para
a escolarização de adultos parece repetir o mesmo percurso problemático da educação
das crianças e adolescentes. As questões de movimento e rendimento das redes de
ensino no Brasil, que eram alvo da reflexão na década de 1980 em relação à educação
em geral, são as mesmas que aparecem na atualidade, se fizermos o exercício de pensar
a EJA como escolarização. O marco temporal dos temas que ora emergem no debate
sobre a escolarização na modalidade EJA data de aproximadamente 30 anos do
aparecimento desses mesmos temas em relação à educação “regular”.
Diante de um quadro onde a permanência é tanto um indicador de que a escola
está funcionando quanto do direito garantido para além do acesso, temos a problemática
histórica que nos informa sobre a permanência como um indicador ambíguo de que a
escola não faz exatamente aquilo que propaga.
Vejamos o que nos diz o arquivo de longevos desta pesquisa.
No Grupo 1 analisado, de todos os anos registrados de todos os sujeitos, a média
de anos de aprovação nos 382 documentos ficou em torno de 39%, a média de retenção
foi de 33% e os anos de abandono correspondem a 16% do total dos anos registrados
nos documentos. Os anos em que não há registro de resultado final, ou o aluno aparece
como transferido ou nunca frequentou, ficam em torno de 12% do tempo nesse grupo. O
tempo total em que o rendimento dos estudantes não atingiu os resultados tidos como
satisfatórios foi de 49% de todos os anos de escolaridade (quando somamos retenção e
abandono). Importante salientar que em todos os dados apresentados neste estudo, o ano
da coleta não foi contabilizado por não ter ainda registro do resultado, uma vez que o
material foi coletado no primeiro semestre.
223
O que sugerem esses números? Indicam que a retenção e o abandono são uma
regularidade da administração da população que adere à Educação de Adultos, uma
regularidade que surge em relação polêmica com enunciados como “o principal
problema da EJA é a evasão”. É importante observar que nesse elemento em específico
da biopolítica, uma regra de administração é um nó que envolve o discursivo e o não
discursivo numa estratégia de governamento. A materialidade que o sustenta é o
discurso de insucesso que emerge dos dados, remetendo à possibilidade de produção do
real que as estatísticas encerram.
O exercício das médias é útil para produzir comparações, observar a incidência
de algumas tendências já conhecidas na discursividade da Educação de Adultos, e
principalmente refletir de que modo o processo normalizador interpela diferentes
categorias no interior de uma população específica. Esse é o exercício mais estranho,
quando partimos do pressuposto de que os enunciados estatísticos cumprem uma função
estratégica na governamentalidade da Educação de Jovens e Adultos. As análises aqui
tomam uma direção dedutiva, indo dos dados mais gerais para o mais específico da
amostra analisada. O objetivo foi dar visibilidade ao quadro geral em que se colocam os
dados construídos na pesquisa. No entanto, as médias são enganadoras, e se elas servem
para indicar tendências, são ineficazes para a tomada de decisões, se o que estiver em
jogo for algo mais do que a mera administração de sujeitos.
O principal indicador que nos interessa são os coeficientes de tempo que um
sujeito participante desses grupos precisa para produzir sua escolarização. Produzimos
médias de anos de permanência na escola buscando problematizar por que pessoas
adultas passam tanto tempo para obter uma certificação, quando um enunciado muito
disseminado afirma que o adulto, pelo seu acúmulo de informações sobre a vida, precisa
de menos tempo para aprender ou é aquele sujeito que, devido às suas condições de
vida, “tem pressa”. Os documentos de nossa pesquisa dão conta de sujeitos que estão no
sistema escolar há 17 anos. Esse tempo seria suficiente para a consecução da Educação
Básica inteira e entrada e conclusão no Ensino Superior.
Além da longevidade escolar que esses documentos indicam, a permanência na
escola parece estar assegurada, e não a evasão, mas o abandono e, principalmente, o
regresso do sujeito à escolarização, mesmo após muitos anos de ausência, apontam que
essa relação não se dá de forma estável, sendo constituído por temporalidades
224
esdrúxulas à expectativa da racionalidade da urgência, por exemplo, que pressupõe a
opção por campanhas de alfabetização e a definição de ciclos de escolarização mais
curtos para as populações adultas.
Quando o problema do analfabetismo se tornou a bandeira pública da Educação
de Adultos no Brasil, por volta da década de 1940, e a questão da sua urgência surge
como enunciado central dessa discursividade, a premência de tempo era, sobretudo, do
país que ambicionava se adequar rapidamente ao processo de modernização. O adulto
não alfabetizado, ou alfabetizado sem escolarização, foi concebido como o sujeito que
iria rapidamente apreender os conteúdos básicos da leitura e escrita instrucionais e
rapidamente se tornar disponível como mão de obra para a industrialização nascente.
Nos dados que emergem dos históricos escolares, uma parte da população
escolarizada em processos de Educação de Adultos parece não aceitar ou não se
enquadrar de maneira adequada nessa lógica de tempo que lhe foi proposta. Pensando
em discutir essas ideias, fizemos um corte de idade dividida em três faixas: de 15 a 24
anos, de 25 a 59 e de 60 anos ou mais. Esses cortes seguem o mesmo padrão do IBGE
nas análises das Pesquisas Nacionais de Amostra Domiciliar, consideradas mais
confiáveis para microdados e análise de categorias específicas.
Recordando que estamos analisando sujeitos com ciclos longos na modalidade,
num recorte sobre uma amostra de documentos coletada com base em critérios bastante
amplos e com pouco caráter discriminatório, os dados que mais nos interessam são os
indicadores de raça, gênero e faixa etária em articulação com o tempo de permanência
na modalidade. Compreendemos que esse indicador nos permite observar essas
trajetórias longas como uma série que narra a história da escolarização de adultos a
partir de sua produtividade relativamente aos parâmetros de conclusão do Ensino
Fundamental.
No grupo em que os indivíduos estavam há mais de 3 anos na modalidade, a
média de idade era de 42 anos, considerando que o sujeito mais jovem possuía 1349
anos
e o mais idoso 81.
Quando analisamos os tempos médios no Grupo 2, no qual a longevidade é mais
pronunciada, a média de idade é de 45,6 anos e a média de anos aprovados desce para
49
É realmente espantoso que um adolescente de 13 anos esteja matriculado numa turma de EJA e já
cursando o seu terceiro ano na modalidade, principalmente quando sabemos que a totalidade das
matrículas analisadas era no turno da noite.
225
35% enquanto a média de aprovação sobe para 36% e os abandonos ficam em torno de
16%. Logo, o sujeito passa mais tempo na escolarização, ficando mais velho, sendo
menos aprovado e recebendo mais retenções. Esses adultos abandonaram a escola
menos do que os indivíduos do Grupo 1. Como um grupo está inserido no outro,
podemos dizer que estes são os “persistentes” da amostra.
Apesar de esses dados parecerem óbvios, quando olhamos as cronologias, ou
seja, a análise dos eventos que descrevem essas movimentações, observa-se que os
tempos fora da escola aumentam. Estamos falando de um grupo que tem acima de cinco
anos de experiência escolar registrada e, nesse grupo, a média de anos de escolarização
é de 8 anos, contra 5,5 anos do Grupo 1, ou seja, a média do Grupo 2 equivale ao tempo
necessário para cumprir todo o Ensino Fundamental regular, e do Grupo 1 a todo o
Fundamental de EJA, definido em cinco anos segundo o modelo adotado na rede de
origem dos documentos.
A média de anos de escolarização no grupo específico composto apenas por
pessoas negras, homens e mulheres, dentre os longevos do Grupo 1 é de 9,6 anos de
escolarização, embora o seu nível de escolaridade corresponda ao Ensino Fundamental
ainda incompleto. No grupo só de mulheres de todas as raças, no qual mulheres brancas
compõem apenas 14% do total, a média de anos de escolarização é de 6,3 anos e entre
os homens longevos de todas as raças, essa média desce para 4 anos de escolarização.
Porém, a média de idade desse grupo é bem menor, ficando em 35 anos. No grupo de
mulheres longevas, a idade média é de 50 anos. Os homens da amostra chegaram à
Educação de Jovens e Adultos mais cedo e as mulheres mais tarde.
Repetindo o modo de compreensão do histórico da escolarização das crianças, os
dados apresentados parecem indicar que o problema da EJA também não é apenas a
evasão, mas o processo de retenção, já denominado no passado de repetência, cuja
imagem símbolo, para uma análise biopolítica, é a escola como instituição disciplinar
em que as populações são inseridas para serem normalizadas. A natureza da
normalização ofertada pela Educação de Adultos parece supor que o importante é
manter o risco social do analfabetismo inscrito em programas e salas de aula, regulando
sua anormalidade e administrando socialmente essa população.
Temos um arranjo em que a escolarização de adultos promove um processo
social de retenção das populações adultas num espaço social de “inclusão perversa”
226
(SOUZA, 2004) agenciada pelo Estado. Os indicadores nacionais apoiam essa linha
argumentativa. Na análise da pesquisa amostral bianual realizada pelo IBGE, a PNAD
de 2014, o índice de analfabetismo estancou um ritmo de redução que se mantinha
constante desde a década de 1950. Estancar a redução num contexto institucional e
político de amplos investimentos em educação parece uma anomalia estatística.
No entanto, esse pode ser o indicador mais interessante para a consecução do
direito pleno à Educação de Adultos jamais surgido, justamente porque o problema, ao
nosso ver, não está na eficácia da escolarização, mas no seu modelo e finalidades
quando dirigidas a pessoas adultas, não alfabetizadas e de inscrição racial
principalmente negra. Diante dos vazamentos do modelo de oferta podemos refletir por
que pessoas deixam de frequentar ou não aderem ao processo de escolarização ofertado
com essas características.
As médias são enganadoras, mas sugestivas. Padrões sociais muito comuns se
revelam nesses dados simples. As questões de desigualdades de classe, raça e gênero de
nossa sociedade ressurgem na análise da longevidade escolar dos alunos da EJA. Em
outros suportes teóricos, o que estaria em discussão seria o aspecto reprodutivo desses
dados, meros espelhos de uma sociedade desigual. Podemos considerar que o biopoder
tem um aspecto de reprodução das desigualdades enquanto elas são funcionais para a
administração do poder.
A respeito desses padrões, no mesmo período histórico, a quantidade de pessoas
negras no Ensino Superior cresce em 230%, segundo dados do MEC. Incluir alguns e
excluir outros ou, antes, incluir alguns em alguns espaços e outros em outros espaços,
de modo a garantir a movimentação adequada e eficaz das populações não é outra coisa
senão a atuação do biopoder no campo educacional em pleno vigor (FOUCAULT,
2008). Não estamos mais no horizonte da proibição do século XVIII, em que homens
adultos negros só poderiam estudar as primeiras letras e em salas de aula noturnas.
Estamos na época da distribuição da regulação sobre as populações a fim de evitar o
“risco” que representam para as estruturas de poder quando acendem aos conhecimentos
de prestígio na sociedade. Desse modo, temos a escola básica para os mais idosos, mais
pobres e os negros inseridos no mercado informal ou empregados em funções que não
exigem qualificação, e o Ensino Superior para as massas jovens cuja força de trabalho
necessita ser mais bem qualificada.
227
Voltando ao tema do tempo de escolarização, a média de anos marcados como
aprovação no Grupo 2, de pessoas com mais de 5 anos de registro de trajetória, é de
35%, nesse grupo, a menor de todas as médias de aprovação encontra-se no grupo
formado por homens longevos. Nesse grupo, a média de aprovação é de 28% dos anos
registrados, com 35% de retenção e 16% de abandono. Como esse é o grupo com menor
tempo de escolarização registrado (média de 4 anos), observa-se o mecanismo de
retenção mais alto e a maior participação de negros e pardos que, unificados, formam
57% da amostra. Diante do risco das médias, informamos que esse grupo tem sujeitos
com no mínimo de 5 anos de escolarização e 29% dele é composto de históricos com
mais de 10 anos de escolarização. Pela análise das cronologias, 25 desses sujeitos, ou
seja, 54% do total, ainda cursava os anos iniciais do Ensino Fundamental.
A sequência de séries cursadas por estes 25 sujeitos aparece na tabela abaixo em
forma codificada. Os números indicam a série, indo da primeira à terceira, o que
corresponde aos três primeiros anos do Ensino Fundamental.
Tabela 2. Cronologias de homens longevos cursando os anos iniciais do Ensino
Fundamental
Nº Documento Sequência de séries cursadas
140 1 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1 3 3
204 1 1 2 3 4 3 3 3 3 3 3 3 3 3
64 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2
49 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2
186 2 2 2 2 3 3 3 2 3 3 3
57 3 3 3
185 2 3 3 5 3 3 2 2 2 2 3
90 1 2 1 2 2 2 1 2 3 3
232 1 2 2 2 2 2 3 3
19 1 2 3 3 2 3 1 2
54 1 2 2 2 2 2 2 2
132 1 2 2 2 3 3 2 3
218 1 1 2 3 3 3 1 2
26 1 2 2 3 1 2
46 1 2 3 2 2 2 3
69 2 2 2 2 2 2 2
93 1 2 1 1 1 3
234 2 2 2 2 2 3
9 1 2 3 3 2 3
23 1 2 2 3 1 2
91 2 2 3 3 3 3
92 2 2 2 2 2 3
105 2 3 3 4 3 3
228
Na formação discursiva, tais informações, codificadas por uma noção de verdade
científica atribuída à estatística, parecem não sustentar ou reproduzir, mas corroborar a
mensagem constantemente veiculada em torno da escolarização de adultos como uma
prática social permeada por narrativas excepcionais de sucesso, narrativas de um
cotidiano escolar esvaziado ou histórias de um fracasso generalizado dessa modalidade
educacional.
Nenhuma dessas narrativas é suficiente. Primeiro, porque elas acionam uma
forma da racionalidade pedagógica fundada sobre os processos burocráticos que
idealizam a escola para adultos a partir do modelo escolar infanto-juvenil. Segundo,
porque ela não oferece ferramentas de compreensão suficientes para todo o fenômeno
da educação escolar de jovens e adultos, que não se resume ao que dizem os dados.
Dessa forma, todos os percursos escolares possíveis, todas as temporalidades,
todas as possibilidades criadas a partir da prática concreta de professoras e estudantes
que recriam as condições para construir essa modalidade de educação fica invisibilizada
pelas formações discursivas sobre a evasão, pelos dados e pela assombrosa ideia do
“fracasso escolar”. O problema, advogamos, não se encontra exclusivamente nessas
práticas pedagógicas que constroem a EJA diariamente. O problema reside no advérbio
de modo temporal da última frase. É a racionalidade escolar da frequência, da presença
diária, da contagem dos tempos, da exigência de 200 dias letivos que cria um quadro em
que os tempos dos sujeitos não são percebidos, nem suas necessidades, assim como as
variadas possibilidades de vivenciá-las e saciá-las.
5.3.2. Excessos de ausência e os regimes de persistências de estudantes
adultos
O mecanismo que consolida o modelo escolar tradicional, baseado na
organização disciplinar e disciplinadora do tempo e dos corpos produz um “estado de
exceção” nas práticas em torno da EJA, colocando-a numa condição de instabilidade, de
adiamento, de permanente denegação do direito, como fica exposto em algumas
cronologias.
229
O ciclo escolar de um sujeito de 42 anos nos informa que ele passou 14 anos
frequentando o Ensino Fundamental, sendo, desses, 6 anos de retenção, 4 de aprovação
e 2 de desistência. A sequência de anos de escolarização marcada em seu histórico
informa “13413333333332”, o que significa que ele estudou o primeiro ano do
fundamental na modalidade EJA, que é equivalente à alfabetização, passou para o
módulo 3 no ano seguinte, módulo 4 (primeira série dos anos finais), retornando ao
módulo 1 de alfabetização no ano posterior, passando em seguida por uma sequência de
9 anos no módulo 3 que ele já havia cursado com aprovação anos atrás, para, no ano
final do recorte desta pesquisa, estar matriculado, pela primeira vez, no segundo ano das
séries iniciais, módulo 2. A ficha informa ainda que esse sujeito é do sexo masculino, de
cor parda, oriundo do sertão pernambucano e que entrou na modalidade EJA, pelos
registros, aos 28 anos.
Um homem de 39 anos está há 13 anos matriculado nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, sem nenhum registro de deficiência em seu histórico, que entrou na
modalidade no ano de 2000, portanto, aos 26 anos. A cor informada é negra, o que
significa que ele faz parte dos 9% do total de históricos analisados. A sequência de
anotações de resultados finais dos seus anos de escolarização informa que ele cursou
por dois anos o primeiro ano do fundamental (1 - 1), cursou o segundo ano, e em
seguida o terceiro e o quarto ano, passando para a etapa dos anos finais (3 - 4), ocasião
em que teve matrícula em duas escolas, retornando para uma longa sequência de estudos
no terceiro ano da primeira etapa do ensino fundamental (3-3-3-3-3-3-3-3-3), de modo
que esse estudante cursou o terceiro ano do Ensino Fundamental 10 vezes.
Uma mulher de 57 anos, cuja primeira matrícula em EJA consta nos registros em
1999, de cor parda, oriunda do sertão pernambucano, possui 12 anos de registro de
escolarização. Desses, foi aprovada em 4, retida em 5 e abandonou em 1 (o ano da
coleta dos dados ainda não dispunha dos resultados e há um ano sem resultado anotado).
Entre 1999 e 2012 ela não teve matrícula nos anos de 2002 e 2005. Apesar de tanto
tempo de permanência na escola, essa estudante só cursou a primeira etapa do Ensino
Fundamental. Sua sequência de séries cursadas foi a seguinte: 3-1-3-1-1-2-3-2-2-3-3-3-
2.
Movimentações como essas evidenciam tanto que o dispositivo atua de forma
eficiente para inserir os sujeitos na institucionalidade da educação, quanto que os
230
sujeitos inscrevem seu próprio movimento nas superfícies de visibilidade da biopolítica.
Tal cronologia é um índice de que o percurso do estudante foi inscrito pelas
idiossincrasias de sua existência, na qual flutuam desejos, aspirações, decisões e
incidentes, as quais são aspectos da vida invisíveis para a biopolítica.
É importante alertar que a racionalidade biolítica não é a única que funciona na
escolarização, nem a lógica central. Ela participa do processo mais amplo de
escolarização da população não alfabetizada, mas convive e é permanentemente
questionada por outras racionalidades ali vigentes, com as quais entra em disputa no
campo de agonismos pela verdade da educação. Portanto, não vamos alegar que a escola
de adultos serve apenas para conter a população, mas precisamos alertar que ela também
se presta a esse serviço. A principal questão em torno desse serviço é que essa é a
racionalidade incorporada pelo Estado e posta em ação pelos seus agentes. Além disso,
essa racionalidade opera situações no real, fazendo pessoas ocuparem lugares
associados aos enunciados do fracasso, da evasão, e do precário, pois para registrar
essas caminhadas, esses movimentos, os termos utilizados são aqueles, já repetidos
aqui: "retido", "abandonou", "aprovado".
Ao inscrever sobre a superfície biopolítica sua própria movimentação, e persistir
numa relação conflituosa com as regras da escolarização, confrontando as marcas e as
demarcações do seu modo de ocupar aquele espaço, os adultos longevos, com as
“trajetórias acidentadas” pela escolarização, parecem supor que nem só de normalidades
vive a escola. Eles trazem com seus corpos, seus tempos e seus ciclos a possibilidade de
produção de heterotopias incessantes que corrompem o padrão de normalidade e forçam
o espaço escolar a conviver com corpos outros, tempos outros, que por sua vez
configuram esse como um espaço outro, marcado pelo conflito entre essas diferentes
perspectivas.
231
5.3.3. 9,6 anos de estudos e nenhum diploma: o ciclo de escolarização das
pessoas negras
Em 2012, as pessoas negras, ou seja, o agrupamento estatístico e político dos
pardos e pretos das pesquisas censitárias, matriculados na modalidade Educação de
Jovens e Adultos, representavam 39% do total das matrículas na Educação de Jovens e
Adultos, num cenário em que 45% aparecem como raça não declarada; do total, 14% se
autodeclararam brancos, amarelos e indígenas somavam menos de 1%.
No conjunto de documentos analisados nesta pesquisa, a categoria "negros"
corresponde a 52% do grupo de pessoas cujos históricos informam mais de 3 anos de
escolarização (grupo 1 de longevos). Tais dados são úteis neste momento, porque nos
permitem chegar a informações como a quantidade média de anos de permanência na
escolarização para essa categoria.
Quando submetemos os documentos a essa contagem, com recorte conduzido
pelas nossas opções e compromissos ético-políticos, verificamos que no interior da
Educação de Jovens e Adultos, em que a população negra é maioria, o dado sobre
permanência de negros no sistema também se apresenta diferenciado em relação às
demais categorias sociológicas tradicionalmente utilizadas em estudos de população.
Para isso, nós temos dois subgrupos: o conjunto que agrega pretos e pardos e o
conjunto específico das pessoas registradas como negras nos documentos. Dos 382
documentos, elas foram apenas 10, ou 2% do total. Os pardos representavam 43% do
total. No entanto, essas dez pessoas que se autodeclararam com inscrição racial negra
estavam todas inseridas no Grupo 2, das pessoas com mais de 5 anos de escolarização
(141 sujeitos no total). Nesse grupo, pessoas negras tem uma idade média de 48 anos,
sendo o sujeito mais idoso uma mulher de 69 anos e o mais jovem um homem de 25
anos. Havia dois homens e oito mulheres nesse conjunto, mas esse grupo conseguiu
produzir a maior média de permanência na educação escolar de todas as categorias
trabalhadas nesta pesquisa: 9,6 anos de escolarização.
Dentre os dez, os históricos informam que 3 já cursavam a segunda etapa do
Ensino Fundamental. A pessoa mais idosa, uma senhora de 69 anos, passou 7 anos
cursando o segundo ano do Ensino Fundamental, repetidamente. Ela tinha 12 anos de
registro de escolarização no seu histórico. A segunda pessoa mais idosa, uma senhora
232
com 65 anos, cursou a terceira série da primeira etapa do Fundamental por 4 anos, antes
de seguir para os anos finais.
Esse grupo detém o maior percentual de anos anotados com resultado “retido”,
em torno de 40%, dentre todas as categorias analisadas nesta pesquisa. Não é excessivo
relembrar que os documentos que forneceram esses dados não foram coletados sob
critérios estatísticos que lhes garantissem uma noção de representatividade. Não era esse
o escopo da nossa pesquisa. Mas, o enunciado que refere as populações negras no
interior do dispositivo da escolarização, este dado incluído, remete frequentemente à
estratégia de poder que demarca posições, reforça certos traços de sentido, que parece se
desdobrar sobre a caracterização do sujeito de forma contínua, capilar e detalhada.
Mesmo diante de um indicador invertido, a permanência como índice da
biopolítica e não do “sucesso” escolar, no qual um regime disciplinador territorializa
sujeitos no processo da escolarização, a população negra surge confrontada com os
indicadores mais desafiadores. No jogo de veridições que o dispositivo da escolarização
instala, esses índices representam a eficácia da escolarização para manter no âmbito do
seu território os sujeitos negros que foram interpelados por esse mesmo dispositivo. Ele
convoca e agencia. O que significa passar 14 anos na escolarização, para um homem de
39 anos? Ou 12 para uma mulher de 69 anos?
Certamente, há um desafio de compreensão enorme no âmbito dessa população
que só se revela a partir da inversão de um indicador e de seus significados. Esses
corpos negros podem representar uma heterotopia na escolarização? Seus ritmos,
desejos e movimentos quando submetidos à veridição do tempo marcado, do
funcionamento do tempo escolar, do regime de presença/ausência, não se encaixam?
Produzem outras formas de circulação no âmbito da escolarização? O dado fundamental
que esse indicador expressa, no entanto, não é o fracasso, mas a persistência. É preciso
uma ampla dose de persistência, força de vontade, algum desejo forte por algo, para
garantir a permanência por 14 anos num espaço que lhe demarca como “retido” por 7
anos seguidos.
Essas permanências, e as insistências, as formas de mobilização, os modos como
os sujeitos cujas movimentações dentro e fora da escola produziram esses
deslocamentos podem ser consideradas marcas de movimentos inadaptados, mas
resistentes, que ao invés de se evadir definitivamente e produzirem outro tipo de
233
resistências à escola de adultos pela exterioridade, permanecem e estabelecem situações
constrangedoras, agora não mais para si, mas também para as redes de ensino, para os
responsáveis por essas escolas.
A presença persistente dos adultos na escolarização promove um
constrangimento sobre a EJA. “Nem vão embora, nem avançam”, e ainda produzem
movimentos longos num processo que deveria ser curto. Saem e retornam ano a ano ou
após intervalos de anos confrontando uma lógica de produção de resultados numéricos.
Seus corpos não atingem a certificação que a instituição tem por tarefa oferecer. Seus
corpos resistem às imprecações dos apelos constantes pela elevação da escolaridade da
população adulta. Sua movimentação, no entanto, informa de andares limítrofes.
Caminhos pelas linhas de resistência podem sempre levar às áreas mais inseguras dos
dispositivos.
Ser um estudante longevo pode certamente ser uma manifestação de uma prática
de resistência da qual a escola não consegue dar cabo (apenas registrar sua ocorrência).
Porém, a inversão da noção de permanência informa também que se está caminhando no
território do poder, estabelecido por ele, sob suas regras; que se está assumindo um
enfrentamento por dentro. Além disso, pode-se considerar que essa mesma condição de
longa permanência interpõe condições mais desvantajosas para o sujeito que a vivencia.
Todos esses jogos de poder são incapturáveis numa análise. O que podemos
dizer, por hora, é que as movimentações de estudantes no interior do dispositivo da
escolarização confrontam, apenas com seus movimentos e ciclos longos de
permanência, as regras instituídas pela norma escolar. Com esses modos de existência
no âmbito de um aparato tão sofisticado quanto é a escola, esses adultos longevos, e as
categorias que refinam essa mais ampla, como as pessoas negras, demonstram que
atuam por dentro do dispositivo, desmontando algumas de suas premissas através desses
movimentos, que são tempos outros andando sobre o espaço da modalidade Educação
de Jovens e Adultos.
No âmbito do dispositivo, esses documentos se relacionam com um arco em que
estão inscritas as linhas de força que falam da visibilidade do sujeito analfabeto. Na
curva de enunciados sobre a pessoa não alfabetizada, uma das regras é a ausência. O
sujeito é enunciado pela falta. O analfabetismo é enunciado como uma chaga, na qual
falta saúde ao corpo social. Então, o sujeito se torna visível para a instituição através de
234
registros como esse, em que sua trajetória é “objetivamente” descrita. O histórico não é
uma história, no sentido de uma narrativa sobre o que é a Educação de Adultos. Ele
entra, como ensina Foucault, no jogo das forças. E forma rede com outros enunciados,
como as normas legais cristalizadas sobre tempos formais de escolarização, currículos
oficiais, currículos nunca terminados para uma modalidade em que o tempo é o cerne
das significações, o elemento central de singularização das forças do dispositivo.
Com os históricos, podemos tomar a palavra para falar da guerra silenciosa
travada pela biopolítica do analfabetismo contra os sujeitos dessa população. O fato de
essas informações existirem e os processos de escolarização seguirem sem uma
interpelação a respeito do que evidenciam esses documentos é um elemento desafiador.
Não se trata de criar outro tipo de ficha, outro documento mais pertinente, no qual a
trajetória do sujeito esteja registrada em sua plenitude. Essa tarefa é ilusória. A valência
dos documentos para a nossa análise não se respalda naquilo que os documentos
poderiam ser, mas naquilo que efetivamente eles são, e de todas as funções que eles
desempenham no quadro geral dessa biopolítica. É com sua inscrição na atualidade que
ele se torna um monumento crítico da EJA, evidenciando tanto o que ela faz aos
sujeitos, quanto o que deixa de fazer.
Parecem notícias de uma guerra silenciosa, de um processo de eliminação que
não elimina no sentido físico, mas, ao que parece, sedimenta ano após ano o sentimento
de que nada sai do lugar, de que as coisas não mudam, o tempo não avança, não segue
uma rota. Os históricos escolares são a materialidade que fala de uma contenção ― a
palavra “retido” repete-se centenas de vezes, na mesma ficha, em fichas diversas, ao
longo de muitos anos.
A dispersão desse termo informa-nos que o processo de exclusão da EJA não se
constrói “para fora”, mas é na contenção que ela conta uma de suas histórias. No
processo de contenção estamos falando de sujeitos que não atingem o Ensino Médio,
não completam o Ensino Fundamental, quiçá se alfabetizam, mas permanecem na
escola por longos períodos, contradizendo um dos enunciados mais poderosos do campo
da Educação de Adultos: o de que os sujeitos têm pressa para obter certificação, que
eles não precisam passar o mesmo tempo na escola que as crianças em “idade escolar” e
que o tempo da EJA tem de ser um “tempo menor”. Aqui, a trajetória dos sujeitos está
nos informando que a linha de fratura exercida pelo seu movimento no interior da
235
modalidade representa um questionamento fundamental ao discurso da emergência que
funda a Educação de Adultos e a biopolítica do analfabetismo no Brasil. E eles dizem
isso ao tornarem-se visíveis não apenas conforme a norma, mas, sobretudo, nas
resistências que suas heterocronias expressam na relação com a norma.
Os históricos escolares formam uma rede com outros enunciados que compõem
o desenho geral da escola, através de suas normas, suas regras tácitas, sua cultura
pedagógica. As normas que prescrevem carga horária relacionam o enunciado do direito
(carga horária é a medida de tempo para a garantia do direito à escola) com o enunciado
da regulação, e as práticas de regulação são responsáveis pela produção de documentos
tais como os registros analisados. Todos são informados por uma cultura pedagógica
sobre o que deve ser a escola e quais suas tarefas.
As movimentações registradas pelos históricos escolares apresentam-se numa
regularidade entre diferentes contextos locais, em atuação na ordem das legalidades de
um processo de gestão da população analfabeta introduzida na escola, ou seja, são
narrativas autorizadas, com valor de verdade, que falam sobre o sujeito da EJA,
inscrevendo sua história, constituindo com essa inscrição um tipo peculiar de caminho,
ao sedimentar uma condição a partir da força narrativa de sua repetição e do lugar de
poder de onde falam esses documentos. Refletimos que eles compõem o dispositivo ao
reafirmar também as intermitências presentes na história da própria Educação de
Adultos como oferta escolar. O marco dos efeitos produzidos pelo dispositivo na linha
de força da qual os históricos são a visibilidade, reafirma a função disciplinar (sobre
cada sujeito) e biopolítica (sobre a população) das relações de poder que constituem a
Educação de Adultos.
O que quer nossa análise, interessada no dispositivo, em suas entranhas e suas
fissuras, nos sinais inscritos na silenciosa pilha de papéis, é justamente flagrar esses
movimentos derrisórios, essas tantas possibilidades que ali silenciavam a necessidade de
uma escola sem escolarização, uma escolarização sem normalização, uma possibilidade
de existência escolar que tivesse algo melhor para dizer sobre o sujeito que “retido”,
“abandonou” ou foi “aprovado”. As cronologias escolares dos estudantes da Educação
de Jovens e Adultos geram uma instabilidade em nossas categorias, como permanência,
sucesso, fluxo.
236
Os documentos atestam a densidade do dispositivo e um registro dos modos de
atuação da biopolítica, portanto, mais do que o resultado numérico em si, ou a pretensa
realidade que ele descreve, o fato de haver um documento para cada estudante
matriculado, o fato de os ritmos de escolarização refletirem uma variedade de
frequências, expressa o regime de visibilidade do sujeito adulto escolarizado. Na
espacialidade da escola, território de atuação privilegiada do dispositivo, a presença é
regulada por normas criadas para sujeitos em outros momentos da existência. A norma é
a população infantil.
Quando se faz presente no espaço escolar, o sujeito passa a ser regulado
conforme os parâmetros da regulação do corpo infantil, sendo sua presença medida por
unidades de tempo chamadas “aulas” e transformada num índice que determina sua
“aprovação”, “reprovação” ou “retenção” ou sua “evasão”. Ao analisar as frequências
anuais, ou seja, a cronologia dos eventos escolarizados que configuram o ciclo longo
das movimentações escolares de adultos no Ensino Fundamental, observamos que a
frequência dos sujeitos tomada em ciclos de anos, e não em ciclos de dias, reflete um
movimento intenso de tentativas, retomadas, permanências longas, ao contrário das
conhecidas problemáticas da EJA identificadas com o conceito abrangente e genérico de
evasão. As cronologias indicam que o principal problema da modalidade Educação de
Adultos não é a evasão isoladamente, mas a permanência longa, o fato de que os
sujeitos adultos vivenciam tempos alargados para obter os resultados de sua
escolarização.
237
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece evidente que o acesso ao conhecimento poderoso é uma possibilidade
concreta que o sujeito pode querer deter para acessar melhores condições de vida numa
sociedade que tem a escrita como norma. E este trabalho não se dedicou a provar o
contrário disso. Antes, dedicou-se a explicitar que nesse percurso pela obtenção do bem
simbólico da escrita uma série de dispositivos entra em ação para mediar o acesso ao
direito e ao conhecimento poderoso, fazendo dessa possibilidade emancipatória um
horizonte que se afasta do sujeito quanto mais ele tenta se aproximar.
Ratificamos aqui nossa crença de que o encontro de seres humanos em torno do
conhecimento e do afeto pode se configurar como um evento de produção de liberdades,
resistências e revoltas. E que isso pode ocorrer eventualmente nas escolas dos anos
iniciais para pessoas adultas, ainda que seja exatamente sobre esse lugar tão frágil que
os dispositivos de governamento atuam de forma mais presente, controlando o tempo, o
conteúdo, a avaliação, a frequência, a vestimenta, o mobiliário, o horário de entrada e
saída, a água que se bebe e o banheiro que se usa (ou não) no turno da noite.
Ao longo deste trabalho, apresentamos argumentos em torno da afirmativa de
que as políticas de alfabetização ― como políticas de escolarização ― se constituíram
na segunda metade do século XX no Brasil como biopolíticas, e indicamos algumas
problemáticas decorrentes desse modo de interpretar o fenômeno da Educação de
Adultos. Não debatemos práticas pedagógicas tomadas como formas de conhecimento
produzidas pela Pedagogia, nem investigamos as trajetórias dos sujeitos narradas a
partir da experiência. Não foram tomadas as escolas e o sistema que compõem como
eventos singulares. Os cenários aqui tratados foram abordados num foco que se
distanciava dessa singularização e, graças a esse afastamento e recolocação de foco,
pôde observar linhas de força que articulam diferentes objetos em atuação no
dispositivo.
O foco da análise biopolítica nos permitiu compreender que as populações
adultas não alfabetizadas foram assim definidas a partir da produção de uma
regularidade das relações de poder, assegurada pelas estratégias da interpelação,
governo e documentação da população. A principal consequência de uma análise que
parte desse tipo de assertiva é a desnaturalização do fenômeno. O analfabetismo, que já
238
foi visto como um problema individual de dificuldade de aprendizado, um problema
populacional de atraso cultural, ou um problema social de falta de escolas suficientes,
emerge como um efeito das práticas de poder, que articula Estado, indivíduo e
população numa economia estratégica das relações do sujeito com a verdade da
educação e da escola.
As tecnologias do constrangimento e do abandono são dois dos muitos aspectos
possíveis de realização da educação escolar de adultos. Certamente, há muitos outros,
mas estes também existem no campo de práticas dessa modalidade educacional. E pela
sua eficácia, durabilidade, pela dispersão ampla que esses discursos encontram, pela sua
influência nas práticas, consideramos não ser pertinente calar sobre eles. É justamente
sobre o silêncio e a complacência que se eternizam as violências. Em algum momento é
preciso tomar a palavra, e contribuir para fazer ver e, assim, partilhar da luta e fortalecer
os enfrentamentos.
Este trabalho esteve todo o tempo caminhando sobre a fronteira que demarca a
educação escolar como uma prática que implica o disciplinamento dos corpos e o
controle das almas. E, no âmbito da educação escolar, a escrita foi interpretada como
um dispositivo normativo a partir do qual se estabelecem as práticas de governamento
das populações. Ao debater a vinculação da educação escolar com a obrigatoriedade da
alfabetização, e sobrepor essa normativa à análise dos procedimentos do poder,
emergiram as tecnologias do constrangimento e do abandono.
As tecnologias da escolarização de jovens e adultos evidenciaram o mecanismo
através do qual a vergonha vem sendo usada para promover experiências subjetivantes e
dessubjetivantes em sujeitos interpelados pela discursividade escolar. O cenário
genealógico desse processo é o discurso longínquo da nação e o projeto racista de
segregação e eliminação das populações africanas e indígenas forçadamente integradas
ao território nacional. A educação escolar foi ofertada, o acesso à escrita foi ofertado,
mas acompanhado pela exigência contínua de um “deixar de ser a si mesmo”, de um
abandonar-se à força da lei, de um esvaziar-se de si para ser outro, numa relação
mediada pelos dispositivos escolares.
A tecnologia do abandono nos permitiu falar sobre o processo de inclusão
escolar como abertura para novas camadas de regulação, num processo que torna visível
a população no espaço da regulação. No entanto, ao incorporar a população, incorpora
239
também seus corpos e seus movimentos, e precisa lidar com suas liberdades. Por isso,
além de expressar o abandono à vigência sem significado da lei, a presença de adultos
em escolas, registrada em seus históricos escolares, nos permitiu ver, também, seus
deslocamentos divergentes, suas heterocronias expressas em ciclos longos e
permanências perturbadoras da estabilidade da norma.
Nas tecnologias do abandono e do constrangimento estão presentes as
racionalidades que promovem uma determinada forma de relação dos adultos com a
instituição escolar, o que faz da vergonha, da conversão, do precário e da postergação
modos de veridição dessa relação, ou seja, os pontos que conferem um sentido de
verdade às práticas.
A análise biopolítica se mostrou eficaz no estudo da economia das relações de
poder que envolvem um projeto de sociedade alfabetizada. Ela nos permite discutir a
formulação de subjetividades que emergem associadas ao subdesenvolvimento, ao
atraso, à ignorância. Além disso, evidenciou aspectos de uma maquinaria capaz de
conter as populações interpeladas de forma a mantê-las na espacialidade de uma escola
cuja precariedade a aproxima da experiência das prisões. No entanto, há luta.
Nem só de silêncio vive a população não alfabetizada nas línguas escritas de
matriz colonial. Ao movimentar-se com sua diferença no interior da biopolítica da
escolarização de adultos, esses sujeitos demarcados pela ausência rompem as
expectativas de uma escolarização rápida, de uma acelerada superação do analfabetismo
construído como problema social.
Constroem lógicas diferentes com seus tempos divergentes, com suas repetições,
suas permanências longas, seus volteios em torno do projeto de escolarização de
adultos, que acompanha o desejo não oculto das elites em civilizar, modernizar e
catequizar essas populações. Com seus tempos outros e movimentos divergentes os
adultos mostraram que todo edifício de poder possui suas rachaduras, suas fraturas.
É importante salientar, ainda, que a análise biopolítica não é uma reflexão sobre
o bem ou o mal da escolarização, mas sobre sua objetividade, no sentido com que
Foucault se refere à objetividade com aquilo em que o poder se faz visível, em que se
faz presente. Só podemos falar em subescolarização porque a escolarização se impõe
como norma social na modernidade e não se realizou de modo uniforme em todos os
locais onde seus enunciados chegaram.
240
Não precisaríamos nos perguntar sobre o dispositivo da escolarização se ele não
fosse problemático, no sentido de que levanta questões. Para problematizarmos essa
escolarização, temos que partir do pressuposto e de alguma mínima adesão a princípios
como igualdade de acesso à escola, escola como lugar de acesso ao conhecimento e do
conhecimento como acesso ao poder, numa sociedade organizada em torno da escrita.
Portanto, o que nos provoca a problematizar a escolarização é a própria norma
discursiva da modernidade, que criou os seus próprios mitos, ao lado do pensamento
crítico sobre educação, que foi gestado como linha de resistência a essa norma e, logo,
dela participa. Desenredarmo-nos dessa rede talvez não seja a questão primeira.
Delinear seus contornos, compreender seu funcionamento, aprender como opera,
certamente.
Essa “baixa ambição” prescritiva é ácida para uma reflexão no campo
educacional. A todo o momento, a pergunta de cariz pragmático ― para que isso serve?
― nos assalta e nos interpela. Porém, a que serve o exercício de pensar o
funcionamento das coisas normais? Em primeiro lugar, serve para desnormalizá-las. Em
virtude dessa possibilidade analítica, o penoso exercício de analisar 1.378 históricos
escolares, compreender suas regularidades, suas cronologias, suas intempéries, revela-se
como uma possibilidade de estranhar o normal da normalidade, e entender suas
regularidades, que não são regras, mas as expressam.
Seria possível falar de uma forma de educação que produz sete reprovações
seguidas na vida de um sujeito adulto com outra terminologia que não a de Estado de
Exceção ou vida nua? Seria possível agir de modo não passional diante de uma
escolarização que aprova anualmente menos de 20% de seus sujeitos? Seria possível
conviver com as normas jurídicas, mas culturais, sociais e pedagógicas que criam regras
inadequadas à realização de um projeto de escolarização digno para pessoas adultas? É
uma linguagem da tormenta que nos permite olhar para esses problemas e retirá-los de
sua naturalidade e de sua cotidianidade, inscrevê-los numa outra discursividade, passar
uma linha sobre seus traços violentos. Recordar que é possível pensar de outro modo é
um ato de revolta necessário para a produção de outro devir.
Decorre daí a importância de observarmos as linhas das nossas discursividades e
nos prontificarmos a alterar as práticas, discursivas e extradiscursivas, modificando as
racionalidades que as presidem. Compreender os mecanismos de controle e subjetivação
241
é um exercício que pode permitir a produção de discursos outros, modos outros de fazer
educação.
Analisar uma política pública que atende a um direito humano fundamental
como é a educação, no setor específico em que essa política dedica esforços na
administração da população adulta não alfabetizada significa, portanto, poder perguntar
em que medida, ou em qual momento, mas, sobretudo, por quais caminhos, aquilo que
entendemos por emancipação passa a representar, em dado contexto, um limite a esse
mesmo objetivo.
O que o olhar biopolítico acrescenta à reflexão? Que as formas de poder se
refinam e se desdobram no tempo indefinidamente; as práticas biopolíticas são versões
de modelos monoculturalistas de escola, formas uniformizadoras de relações sociais. No
entanto, a diversidade dos indivíduos, como elemento constitutivo, continua ali
presente, o que faz com que a população não seja um objeto estanque das políticas, mas
um número em movimento, alimentado pela necessidade e pelo desejo; o desencaixe
das práticas de escolarização advém dessa incapacidade de uma ação biopolítica dar
conta do movimento inteiro da vida que ela procura conduzir.
Efetivamente as palavras governam. Existe um governo da palavra. Porém, as
palavras governam não apenas um mundo simbólico (na hipótese de que algum mundo
humano não o fosse), elas governam uma materialidade. Quando um discurso é
direcionado a uma população, ele governa a conduta da multidão. Então suas
consequências sobre essa multidão são amplas e em grande medida incontroláveis. Isso
ocorre porque não podemos medir até que ponto a participação no dispositivo escolar
para sujeitos adultos realmente representa uma emancipação no sentido moderno da
palavra.
Nem mesmo os mais acurados estudos poderiam propor a generalização de uma
hipótese como esta, válida para toda a população interpelada. Exatamente pelo fato
inegável de que a experiência é incapturável e que não podemos, hoje, mensurar o que
foi perdido ao longo de todo trajeto em que a escolarização atravessou tempos,
referências culturais, políticas, formas organizativas e se impôs talvez com mais sucesso
que a própria ideia de moeda ou de deus (ou ambos).
A escolha por trabalhar com o enfoque biopolítico produziu aprendizados de
ordem epistemológica, com a perspectiva de leitura genealógica das linhas de força que
242
sustentam as práticas ― as epistemes e as políticas ― no campo da Educação de
Adultos; trouxe, também, aprendizados em relação ao próprio objeto epistêmico que
essa educação configura. As racionalidades instaladas no processo social de produção
da Educação de Adultos, que não se esgotam nas políticas discursivas aqui estudadas,
representam um campo de pesquisa instigante e mobilizador.
No marco do programa de investigações que emerge a partir deste estudo, o
aprofundamento da pesquisa em relação às racionalidades resistentes ao projeto de
escolarização hegemônica representa um dos objetos que de forma mais premente exige
nossa atenção. No plano daquilo que está no porvir, das questões que não foram
atendidas neste momento, esta pesquisa se alonga para uma investigação sobre os
percursos individuais, desta feita, biográficos, dos sujeitos resistentes à biopolítica da
alfabetização e escolarização de adultos. Trata-se de compreender de forma mais
aprofundada de que modo se constituem essas trajetórias, quais as intercorrências, por
quais caminhos os sujeitos interagem com as racionalidades escolares hegemônicas.
O processo pelo qual nos sentimos autorizadas por essa teoria a falar que a
alfabetização e a escolarização de adultos possuem uma face biopolítica é justamente o
fato reconhecível de que ela atende a certos princípios operacionais dessa forma de
poder, ou seja, dirige-se a uma população, considera seu aspecto biológico nessa
interpelação, produz uma saber “de Estado” sobre essa população, utiliza esse saber
para exercer a conduta. O encaixe entre as questões analíticas e os mecanismos
analisados ocorre quando observamos a validade desses mecanismos na descrição da
atuação do Estado para com pessoas não alfabetizadas. O desencaixe é produzido
porque observar a Educação de Adultos por este viés provoca uma desestabilização da
retórica hegemônica sobre essa modalidade de educação. A racionalidade qualificadora
é suplantada pela atualidade, vigência e poder explicativo da racionalidade reparadora.
A escolarização de pessoas adultas funciona como uma biopolítica, e certamente há
linhas de fuga, mas a sua função primordial parece ser esta.
243
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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v.
1. Brasília: UnB, 1999.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a" literatura" medieval. São Paulo: Companhia
das letras, 1993.
253
ANEXOS
LISTA DE PRÊMIOS RECEBIDOS PELO CURTA METRAGEM VIDA
MARIA50
10 Melhores Curtas Brasileiros do Público no Festival Internacional de Curtas de São Paulo em 2007
2º Lugar - Melhor Animação Brasileira no Anima Mundi em 2007
2º Lugar - Melhor Primeira Obra no Anima Mundi em 2007
Melhor Animação no FAM - Florianópolis em 2007
Melhor Animação no FestCine Amazônia em 2007
Melhor Animação no Festival de Cinema e Vídeo de Santa Cruz das Palmeiras em 2008
Melhor Animação no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano em 2007
Melhor Animação no Tudo sobre Mulheres em 2007
Melhor Animação Internacional no FeSanCor - Festival Chileno Internacional del Cortometraje de
Santiago em 2007
Melhor Curta Brasileiro - Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará em 2007
Melhor Curta Metragem Hispano-Brasileiro no Festival Premis Tirant em 2008
Melhor direção no Festival Guarnicê de Cinema do Maranhão em 2007
Melhor Filme no Amazonas Film Festival em 2007
Melhor Filme no Cine Ceará em 2007
Melhor Filme no Cine PE em 2007
Melhor Filme no Curta Canoa em 2007
Melhor Filme no ENTRETODOS - Festival de Curtas-Metragem de Direitos Humanos em 2007
Melhor Filme no Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual em 2008
Melhor Filme no Festival de Cinema na Floresta em 2008
Melhor Filme no Festival de Cuiabá em 2007
Melhor Filme no Festival do Paraná de Cinema Brasileiro e Latino em 2007
Melhor Filme no Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 2007
Melhor Filme - Júri Popular no Curta Lençóis - Festival Regional de Cine-Vídeo nos Lençóis
Maranhenses em 2008
Melhor Filme - Júri Popular no Festival de Cuiabá em 2007
Melhor Filme - Júri Popular no Mostra de Cinema de Tiradentes em 2007
Melhor Filme - Júri Popular no Primeiro Plano - Festival de Cinema de Juiz de Fora em 2007
Melhor Filme - Júri Popular no Vitória Cine Vídeo em 2007
Melhor Filme Animação no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2008
Melhor Filme Nordestino no Curta-se - Festival Luso-Brasileiro de Curtas Metragens de Sergipe em 2007
Melhor Roteiro no Cine PE em 2007
Melhor Roteiro no Granimado Festival Brasileiro de Animação em 2007
Melhor Trilha Sonora no Cine PE em 2007
Melhor Trilha Sonora no Granimado Festival Brasileiro de Animação em 2007
Menção Honrosa no Curta Lençóis - Festival Regional de Cine-Vídeo nos Lençóis Maranhenses em 2008
Menção Honrosa de Melhor Curta Internacional no Cleveland International Film Festival em 2007
Prêmio ABD e C no Curta Cinema em 2006
Prêmio aquisição Canal Brasil no Cine Ceará em 2007
Prêmio BNB de Cinema no Cine Ceará em 2007
Prêmio BNB de Cinema no Cine PE em 2007
Prêmio BNB de Cinema no Curta-se - Festival Luso-Brasileiro de Curtas Metragens de Sergipe em 2007
Prêmio da Crítica no Cine PE em 2007
Prêmio Especial no Anima Mundi em 2007
Prêmio Especial do Júri no FIC BRASILIA - Festival Internacional de Cinema de Brasília em 2007
Prêmio Unibanco de Cinema no Festival Internacional de Curtas de São Paulo em 2007
50
Obtido no sítio internet Porta Curtas, disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria
254
ANEXO A. Edito de Pedro Correia Manoel de Aboim proibindo abertura de
escolas de ler e escrever em Portugal - 1765
255
ANEXO B. Ficha de registro do Histórico Escolar de estudante da EJA
256
ANEXO C: Ficha de Histórico Escolar
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