A CULTURA DO CONCRETO ARMADO NO BRASIL: EDUCAO E
DESEDUCAO DOS PRODUTORES DO ESPAO CONSTRUDO1
Roberto Eustaquio dos Santos
PUC-MG
Eixo 3: Cultura e prticas escolares
Nas metrpoles brasileiras convivem dois tipos de cidade. De um lado a cidade
formal, regida por leis, atendida por infra-estrutura e servios urbanos. De outro lado,
rodeando a cidade formal, estendem-se largas faixas que, apesar de densamente povoadas,
no so regradas nem equipadas para a vida urbana. O conjunto formado por essas cidades,
somado s estradas que lhes do acesso, aos portos e aeroportos, s barragens, linhas de
transmisso de energia e telecomunicaes, campos cultivados e toda ordem de artefatos
humanos, compem o que chamamos espao construdo.
Entre as prticas sociais implicadas na produo do espao, este trabalho enfoca as
tcnicas e tecnologias utilizadas para erigir as construes e como tais tcnicas e
tecnologias foram inventadas, desenvolvidas, substitudas e incorporadas na cultura. De
modo especial, nos interessa uma histria scio-cultural do concreto armado. Tendo por
premissa de que nas mudanas de tecnologia construtiva esto implicadas disputas pelo
controle da produo do espao, o trabalho parte de uma breve reviso da historiografia do
concreto armado no Brasil, em busca do percurso histrico da difuso do concreto e,
principalmente, de suas lacunas. Em seguida, so apresentados alguns indcios para uma
reinterpretao desse percurso, tomando por fonte primria o material encontrado em
revistas especializadas de engenharia e arquitetura, publicadas no sculo XX,
principalmente entre os anos 1920 e 1970.
Concreto Armado
O concreto armado um processo construtivo inventado na Europa em meados do
sculo XIX. Ele consiste na combinao do concreto uma pasta feita de agregados
midos e grados, cimento, areia e gua, conhecida desde a Antigidade com uma
armadura de ao. A novidade est justamente na reunio da propriedade de resistncia
trao do ao com a resistncia compresso do concreto, que permite vencer grandes 1 Este artigo parte da pesquisa de doutorado do autor, em desenvolvimento junto ao Programa de Ps-Graduao em Educao Conhecimento e Incluso Social da Faculdade de Educao da UFMG, sob orientao do Prof. Dr. Bernardo Jefferson Oliveira.
vos e alcanar alturas extraordinrias, alm disso, o concreto um material plstico,
moldvel, ao qual possvel impor os mais variados formatos. Inicialmente empregado
apenas em embarcaes e tubulaes hidrulicas, a partir de fins do sculo XIX o concreto
armado passa a ser utilizado tambm nas edificaes. Junto com o ao e o vidro, ele
constitui o repertrio dos chamados novos materiais da arquitetura moderna
(BENEVOLO, 1976, p.42), que so produzidos em escala industrial e viabilizam arranha-
cus, pontes, silos, estaes ferrovirias ou, em suma, aqueles novos objetos arquitetnicos
caractersticos do cenrio do mundo modernizado do sculo XX.
Contudo, em nenhum pas desse mundo modernizado a tecnologia do concreto
armado foi to predominante quanto no Brasil. Ele o material estrutural absolutamente
hegemnico nas construes das cidades brasileiras, sejam elas formais ou informais.
Figura 1: a - Edifcio em construo (Fonte: Ruybentes Engenharia de Estruturas),
b - Aspecto do Aglomerado da Serra - Belo Horizonte (Fonte: foto de Margarete Maria de Arajo Silva)
O uso to amplo, diverso e por vezes indiscriminado do concreto armado em nossas
cidades parece resultar daquilo que se denomina tecnologia formal adaptada, isto , uma
tecnologia que importa materiais, procedimentos, normas e tipologias dos pases centrais,
porm aplica-os de modo apenas parcial e incompleto (Cf. PELLI, 1989). Segundo esse
modelo terico, trata-se de uma situao tpica de culturas perifricas, cujas opes
tecnolgicas estariam essencialmente determinadas por sua subordinao cultura dos
pases centrais. Mas, ainda que o modelo de Pelli possa soar plausvel para explicar a
difuso do concreto armado no Brasil, ele simplifica em demasia a relao entre cultura
central e cultura perifrica, anloga relao entre cidade formal e informal.
A sociologia da cincia considera que os artefatos so construes individuais e
coletivas, ligadas a grupos sociais e determinadas mais pelos interesses e recursos prprios
desses grupos do que por foras externas. Isso faz com que os pontos de vista acerca da
estrutura dos artefatos difiram mesma medida que tais recursos e interesses (Cf. BJKER,
HUGHES, PINCH, 1994). Suporte, cenrio, instrumento e produto das relaes humanas,
o espao construdo traz, portanto, a marca dessas relaes, expressas em suas
configuraes e seus processos construtivos. Ambos so produzidos socialmente e nunca
apenas subordinados a tecnologias alheias. Isso significa que, na difuso do concreto no
Brasil, estiveram em jogo relaes sociais mais complexas do que o modelo terico de
Pelli indica.
Lacuna
Alguns elementos desse jogo se deixam entrever na leitura dos autores que se
dedicaram historiografia da engenharia e do concreto armado no Brasil (Cf. MESQUITA,
1981; VASCONCELOS, 1985; TELLES, 1994, VARGAS, 1994 a e b; VASCONCELOS
e CARRIERI, 2005). A historiografia do concreto est centrada em grandes personagens,
obras de vulto e cronologias de eventos marcantes, principalmente os relacionados
regulao do exerccio profissional e normalizao de procedimentos tcnicos. De modo
geral, pouco ou nada crtica em relao aos aspectos scio-culturais envolvidos na
difuso do concreto. Ele tido por resultado natural de uma longa evoluo: o adobe do
perodo colonial teria sido substitudo pela alvenaria de tijolos do sculo XIX, para se
chegar finalmente ao concreto, signo de modernizao, progresso e desenvolvimento.
Imbricada na histria da profisso, a histria do concreto marcada por um esprito de
pioneirismo e por busca de legitimao social com base em originalidade e percia tcnica.
Os textos consultados informam que os anos 1930 so decisivos na instalao da
cultura do concreto. A reforma Francisco Campos, de 1931, inclui o concreto armado no
escopo de matrias do currculo de arquitetura e engenharia2. Nas escolas, s cadeiras de
Estabilidade e Resistncia associam-se laboratrios de testes e anlises dos materiais
utilizados na composio do concreto armado. Entra em cena a pesquisa tecnolgica3.
Surgem as primeiras normas, os primeiros manuais de resistncia dos materiais editados no
Brasil e cresce o nmero de revistas especializadas de engenharia. Aparecem, tambm, as
primeiras empresas construtoras especializadas em concreto e os primeiros escritrios de
prestao de servios de projeto e de fiscalizao de obras. O desenvolvimento do campo 2 A justificativa para o novo currculo de arquitetura e engenharia est na Exposio de Motivos do Ministro Francisco Campos sobre a Reforma do Ensino Superior, publicada no Dirio Oficial, de 15 de abril de 1931. 3 Em 1930 funda-se a Associao Brasileira de Concreto, com a finalidade estudo e propaganda do concreto e do concreto armado em suas diversas modalidades (Cf. TELLES, 1994), bem como, o Instituto Brasileiro do Concreto. Em 1934, o Laboratrio de Ensaios de Materiais, da Escola Politcnica de So Paulo LEM em Instituto Politcnico de Tecnologia IPT. A Associao Brasileira de Cimento Portland ABCP, de 1937, atua na discusso acerca da elaborao de normas tcnicas brasileira para o concreto armado.
profissional da engenharia e a multiplicao de firmas de projeto e construtoras aparecem
sempre imbricados com desenvolvimento da normalizao (relacionada com pesquisa
aplicada) e com regulamentao profissional4. Esse imbrglio tomado acriticamente
confundido com o que se chamou nacionalizao da engenharia estrutural e valorizao
da profisso de engenheiro (TELLES, 1994, p.483).
Infere-se da historiografia (VARGAS, 1994a), que, ao mesmo tempo em que h um
gradativo crescimento da importncia do projeto na organizao da produo do espao, h
tambm uma maior especializao de funes no canteiro de obras: aos engenheiros cabem
as tarefas de aplicao de conhecimentos cientficos elementares, tais como o clculo, a
topografia, os apontamentos e medies, bem como a soluo de problemas que impliquem
utilizao de mtodos e teorias cientficas; enquanto que aos mestres de obra cabem as
solues de problemas tcnicos de ordem prtica, diretamente relacionados realizao
dos servios de obra. A banalizao do uso do concreto compreendida na perspectiva de
uma abertura de campo de atuao para o engenheiro, antes bastante restrito prestao de
servios juntos a ferrovias e portos. No difcil perceber que a idia de percia tcnica5
(Cf. COELHO, 1999) e de especializao do conhecimento, est na base da distino entre
os que mandam e os que executam. Mais que centralizao de decises, a substituio da
alvenaria pelo concreto significou um rebaixamento das condies de trabalho no canteiro
de obras. A organizao das equipes de trabalho se altera radicalmente pelo fato de a
tecnologia do concreto prescindir de mo-de-obra qualificada. Telles constata essa disputa,
embora no o faa numa perspectiva crtica:
A relativa complexidade matemtica de qualquer clculo de concreto armado passou a exigir
obrigatoriamente a participao de um engenheiro, e
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