UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
MÁRCIO CARNEIRO DE LIMA
A atuação política da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira
(ADECAR) entre 1987 e 2008: o desenvolvimento comunitário nos trilhos do
clientelismo e do partidarismo.
Conceição do Coité – BA
Fevereiro 2010
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MÁRCIO CARNEIRO DE LIMA
A atuação política da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira
(ADECAR) entre 1987 e 2008: o desenvolvimento comunitário nos trilhos do
clientelismo e do partidarismo.
Monografia apresentada à Universidade do Estado
da Bahia como requisito parcial para conclusão do
curso em Licenciatura Plena em História, sob
orientação do Prof. Ms. Rogério Souza Silva
Conceição do Coité – BA
Fevereiro 2010
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À minha mãe, Rosalina, que me ensinou a andar.
Ao meu pai, Matias, que me ensinou a pensar.
A todos aqueles que têm coragem de falar.
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AGRADECIMENTOS
À Deus, por acompanhar-me pelos trilhos da Justiça e da Luta
constantes.
À UNEB e seus funcionários, pelo apoio irrestrito durante o Curso.
À família, Renata, Vivaldo, Laércia e sobrinhos, pelo apoio
entusiasmado ao longo da minha vida.
Aos professores, pela desconstrução das verdades e por inspirarem o
gosto pela reflexão.
Ao orientador Rogério, pelas sábias leituras e ponderações à pesquisa
e pelo apoio incondicional.
Ao companheiro Assis, pelas suas insubstituíveis considerações.
Aos entrevistados, pelas contribuições vitais à pesquisa e pelo
entusiasmo ao se pronunciarem.
Aos colegas de turma, pelos bons e inesquecíveis momentos de nossa
caminhada juntos.
À professora Edite Maria, pelo compreensivo apoio ao longo da
experiência escrita com a EJA.
À todos que compartilharam espaços e diálogos comigo durante o
Curso.
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RESUMO
Este trabalho apresenta a análise da experiência de associativismo comunitário e desenvolvimento local no Distrito de Aroeira, município de Conceição do Coité-BA. Destaca-se a atuação da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira (ADECAR) como instituição integrante de um controle político, de uma relação clientelística e como mecanismo estratégico na comunicação entre a sociedade civil organizada de Aroeira e a permanência da situação política em Conceição do Coité entre 1987 e 2008. A reflexão é parte de uma temática relativamente recente dentro das investigações historiográfica, já só o próprio movimento comunitário e a participação popular local ganharam força somente com a redemocratização dos anos 1980. A pesquisa defender a inexistência da neutralidade partidária no movimento comunitário da ADECAR, além da manipulação que o poder público municipal tem sobre a instituição, sobre suas diretrizes de atuação e sobre a propaganda partidária direcionada tanto para os sócios quanto para a comunidade de maneira geral. Palavras-chave: Associativismo; Clientelismo; Desenvolvimento; ADECAR; Cultura Política.
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SUMÁRIO
INRODUÇÃO ____________________________________________________________ 06
CAPÍTULO I – Coronel, Um Conceito _________________________________________ 11
CAPÍTULO II – A Política Recente de Coité e a Questão do Desenvolvimento _________ 27
A Questão do Desenvolvimento _______________________________________ 38
Os Anos 80 e o Novo Paradigma Nacional para o Desenvolvimento _________ 40
A intervenção federal no Nordeste: concentração de renda e problemas
regionais não esgotados. ______________________________________________ 43
O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Estadual _____________________ 49
O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Municipal ____________________ 50
CAPÍTULO III – O Distrito de Aroeira e a ADECAR _____________________________ 54
A questão do desenvolvimento comunitário _____________________________ 60
A ADECAR _______________________________________________________ 62
CAPÍTULO IV – O Comportamento e as Práticas Clientelistas da ADECAR __________ 67
CONCLUSÃO ____________________________________________________________ 81
REFERÊNCIAS __________________________________________________________ 85
ANEXOS ________________________________________________________________ 90
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INTRODUÇÃO
No começo só avistei a sua sombra. Afastei-me pra poder ver-lhe por inteiro. Muitos
falavam seu nome; alguns com intimidade, outros com repulsa. Eu não entendia muito bem,
mas percebia que ele era o centro das atenções. Vagarosamente fui vislumbrando seus traços,
seu comportamento, sua mentalidade. Pensei que era fantasia da minha mente, mas não, era
verdade. Ele estava vivo, mas era diferente. A fala era eloqüente e não mais arrastada; seu
rosto não era introspectivo, era simpático. Finalmente, pude encarar o metamorfoseado e
desprezível protagonista do meu formidável pesadelo: o coronel.
Falar em práticas coronelistas no comportamento político que vivenciamos, tanto do
ponto de vista espacial como temporal, é uma questão que suscita discussões marcadas por
interesses, análises e critérios de avaliação extremamente divergentes. Para muitos, os
Códigos Eleitorais do século XX, a criação da Justiça Eleitoral, o voto secreto, o voto
feminino e o direito de votar devolvido aos analfabetos em 1985 são exemplos de que as
mudanças têm transformado o eleitor no único dono do seu voto, de sua escolha autônoma. A
perspectiva desse trabalho é, contrariamente, defender que o comportamento eleitoral convive
com práticas que sobreviveram às mudanças listadas acima, comunicando-se com uma
política-eleitoral marcada pela pessoalidade, pelos interesses econômicos, pela identificação
grupal e pelas marcas do clientelismo e mandonismo.
Na visão de José Murilo de Carvalho, em Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo:
Uma Discussão Conceitual, o mandonismo seria uma das principais características da política
tradicional, nascida desde a colonização e resistente, sobretudo, em regiões isoladas do país.
O poder caberia ao mandão, ao chefe local que, por meio de estruturas oligárquicas e do
controle de recursos e estratégias, abriria espaço para sua influência e domínio. Não se trata
de um tipo de sistema (como o coronelismo), mas de um comportamento mantidos pelos
interesses dos mandões que tem decrescido – segundo o autor – ao longo do tempo. O
mandonismo seria combatido (até desaparecer) na medida em que os direitos políticos e civis
(a cidadania) fossem disseminados completamente.
O clientelismo é outro conceito que chega a ser confundido com o de coronelismo.
Para José Murilo, tanto o clientelismo quanto o mandonismo são mais amplos que o
coronelismo, que, como estrutura, foi superada no século XX. A relação clientelística envolve
uma troca de favores entre dois lados, podendo ser mudados tanto os objetos de barganha
como seus atores; também não seria um sistema, mas uma rede de práticas variável no tempo.
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As relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá entre o governo, ou políticos, e setores pobres da população. Deputados trocam votos por empregos e serviços públicos que conseguem graças à sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo. Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida que os chefes políticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os eleitores, transferindo para estes a relação clientelística. (CARVALHO, 1997, p. 4-5)
Acredito ser oportuno entendermos como a teoria política contemporânea tem sido
costurada pelas principais matrizes explicativas do voto: a psicológica, a sociológica e a
econômica. No livro A decisão do voto, Marcus Figueiredo analisa a decisão eleitoral a partir
dessas três correntes. Destaca também a existência de uma forte base racional nas escolhas
políticas, contrapondo-se ao que defende o Paradoxo da Participação1.
A teoria psicológica do comportamento eleitoral – chamada de Modelo Michigan, por
ter nascido na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos – defende que indivíduos com
afinidade social e de atitudes costumam desenvolver comportamentos políticos semelhantes e
votarem no mesmo sentido, independentemente das condições históricas. As atitudes políticas
seriam amadurecidas pela psicologia humana e, posteriormente, socializadas de forma mais
ampla. As ações e interações políticas e sociais do indivíduo seriam fundamentadas num
alicerce psicológico estável e normalizado, com reações e articulações iguais em todos os
contextos.
A alienação política segundo os teóricos da explicação psicológica significa o
desinteresse e a rejeição consciente e completa do sistema político, como uma apatia, já que
os indivíduos acreditam não ser possível mudá-lo através de seus esforços. A alienação
constitui um sentimento de impotência política e, portanto, desinteresse. Na teoria Michigan,
a identificação partidária é determinante e os partidos antecedem os candidatos nas escolhas
eleitorais.
A corrente sociológica se preocupa com o contexto, com as condições sociais onde as
instituições, as ideologias e as práticas políticas se formam. Compreender o voto, como ato
1 A teoria política chama de Paradoxo da Participação o dilema vivido nas urnas pelos eleitores: cada um sabe que, isoladamente, o valor do voto não é potencialmente insignificante, o que lhe incentiva a não participar das eleições; por outro lado, o valor do seu voto aumenta na medida em que os demais eleitores desistem de participar, o que é um incentivo à participação. O paradoxo questiona-se, então, se o ato de votar é somente uma ilusão ou existe um fundo racional que dá ao eleitor a possibilidade de decidir as eleições. A solução do paradoxo estaria na sobreposição da motivação racional para a participação eleitoral.
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final de um processo, exige consideração sobre onde e como vive o eleitor; um ato individual,
mas resultante da interação social. Ao acreditar que o voto não pode alterar o status quo, o
eleitor opta pela saída; ao contrário da explicação psicológica, a impotência para mudança não
reside nos indivíduos, mas sim no voto. Segundo a matriz sociológica, as atitudes políticas
não surgem do nada, e a manutenção da coesão de um grupo requer enorme esforço e até
mesmo penalidades contra os desvios de comportamentos. As campanhas políticas procuram
justamente interagir os indivíduos, instituições e idéias em torno das atitudes grupais.
Para explicar a decisão do voto, a sociologia política prevê a existência de identidades
culturais ou da consciência de classe entre os indivíduos. Estas identidades surgem da
interação social a partir do regionalismo, do bairrismo, das semelhanças étnicas ou da
convergência de interesses.
Aqui todo tipo de organização social tem um papel fundamental, pois seus porta-vozes são interlocutores privilegiados. No processo de formação de identidades sociais, os partidos políticos, as organizações religiosas, sindicais, de bairro ou de defesa de qualquer coisa, concorrem entre si ou fazem alianças e acordos, para representar e promover os interesses das comunidades ou de segmentos específicos delas. (FIGUEIREDO, 2008, p. 61)
Para a tradição marxista da linha sociológica, a identificação política entre os
indivíduos nasce do posicionamento de classe (voto classista), na medida em que eles
socializam interesses fundamentais comuns. Mas a classe social só existe se houver
consciência de classe, e seu peso político-eleitoral depende essencialmente da proporção de
seus membros.
A última teoria, a econômica, acredita que o comportamento eleitoral é condicionado
por considerável racionalidade e por interesses econômicos. O voto passa a ter uma
funcionalidade estratégica e os indivíduos votam ao saber que seu ato lhe garantirá algum
benefício econômico ou social (individual ou coletivo). Para essa interpretação – que nega a
tradição psicológica – os valores cívicos, as ideologias e identidades são substituídas por
sistemas de interesses, e a economia determina se os votos são pros governantes ou para
oposição.
A decisão do voto estaria, então, sustentada num comportamento político-racional, já
que o eleitor opta pela alternativa satisfatória aos seus objetivos. Os eleitores votam pelos seus
bolsos, mas dividem-se em grupos diferentes: os que pretendem atingir apenas seus interesses
e os que se preocupam com a vida social e econômica de toda sociedade. Há, finalmente, os
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que votam com base nos interesses de um simples grupo. Segundo os economistas, votar no
candidato é diferente de votar no partido. A relação entre eleitor e candidato (especialmente
para as camadas mais pobres) é mais direta e imediata, e ele vota naquele que pode trazer, por
exemplo, luz, calçamento ou água pra sua vizinhança, independentemente do partido. A
escolha do partido, ao contrário, privilegia as mudanças de longo prazo e menos
individualizadas.
A análise deste trabalho apropria-se em maior grau das explicações sociológicas e
economicistas, notadamente por identificarem-se como teorias históricos-contextuais em suas
considerações sobre o comportamento eleitoral. Uma não exclui, necessariamente, a outra,
mas admitem, até certo ponto, a complementação dialógica em muitos de seus fundamentos.
Cabe aqui justificar a escolha do meu tema, resultado de condicionantes vários que
tecem e acompanham nossa vontade de “fazer História”. Escolha solitária, de uma experiência
complexa, de uma inspiração moldada pelos anos, de uma consciência necessária. Acredito
não ser possível fazer, em política, algo melhor que a liberdade mental e aguçar o sentimento
de desconfiança e incompletude do aparente. Pensado na solidão, mas possibilitado por várias
mãos, o trabalho foi engrenado na contramão do visível, na desbanalização das aparências,
mas também pelo desejo do enfrentamento (o quanto mais) racional.
O capítulo I apresenta uma discussão conceitual de questões como o coronelismo, o
clientelismo e suas modificações e heranças históricas; destaca como as relações políticas,
econômicas e sociais do Brasil foram acompanhadas por uma hierarquização que é
personalista e patrimonialista. O capítulo II compreende, inicialmente, uma análise do
panorama político de Conceição do Coité nas últimas décadas (concentrada, sobretudo, na
figura Hamilton Rios). A seguir, o capítulo apresenta as várias propostas de desenvolvimento
nacional emergidas no século XX; analisa as formas, perspectivas e problemas de intervenção
federal no Nordeste, bem como as estratégias de desenvolvimento comunitário construídas na
Bahia e em Coité. O capítulo III procurou-se com a análise (especialmente política) do
Distrito de Aroeira, lócus maior da pesquisa aqui realizada. Coube ainda refletir a questão do
desenvolvimento comunitário e apresentar considerações sobre a ADECAR, seu processo de
organização e consolidação históricas. O Capítulo IV é dedicado ao exame do comportamento
partidário da instituição, suas formas de atuação, seus objetivos implícitos, seu
posicionamento conservador e os resultados afirmados ao longo de 20 anos de existência.
Estudar o posicionamento político-partidário da ADECAR é, para além da
obrigatoriedade, um esforço visceral para apresentar uma nova possibilidade interpretativa,
uma leitura reconstruída ceticamente. A crítica (e sem limitar-se à militância) é componente
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primordial da interpretação realizada, podendo haver – e sempre há – caminhos ainda abertos
para outras perspectivas de análises. São justamente as incertezas que nos movem nos trilhos
das leituras e das escritas, e devem estar latentes igualmente para com o comportamento da
ADECAR. As certezas são sempre acompanhadas pelo perigo.
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CAPÍTULO I
Coronel, Um Conceito
Certa vez, ao conversar com um senhor de Aroeira, ele me contava as dificuldades que
o acompanhava em sua vida de agricultor. Embora possuísse uma roça particular para cultivar
os alimentos básicos de sua mesa, ele resmungava que mesmo na época da plantação os
obstáculos não cessavam. Ele reclamou dos excessivos gastos adquiridos na plantação,
preservação, extração e armazenamento dos grãos obtidos em sua propriedade, desconfiando
inclusive se os malefícios não superavam os benefícios da agricultura. Então retruquei,
alertando-o de que a Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira (ADECAR) é
um mecanismo competente que poderia minimizar os seus gastos durante a colheita, por meio
das máquinas que beneficiam todos os seus sócios. O senhor reclamou irritado, proclamando
que, apesar de ser um sócio da ADECAR, não usufruía democraticamente dos seus serviços,
destinados preferencialmente para os associados que bajulam os representantes políticos
locais que dão apoio ao presidente da entidade. Ficava tarde da noite e o senhor despediu-se.
Ele partiu, mas suas palavras permaneceram.
Casualidade a parte, este relato suscita um emaranhado de reflexões acerca do
posicionamento da ADECAR. Compreendê-lo exige a identificação das suas origens
históricas, dos seus sentidos pragmáticos e do seu jogo de interesses. Perceber a relação de
poder entre ADECAR e seus sócios requer detalhada análise dos seus fatores constituintes.
Nesse sentido, é necessário remontar aos comportamentos de mando e controle que sempre
definiram no Brasil a regra dos contatos sociais, políticos e econômicos de ricos e pobres,
administradores e administrados. Metaforicamente, o papel da ADECAR no relato descrito
guarda similitudes e nos recorda as ações dos antigos coronéis, poderosos e prestigiosos
senhores que eventualmente encontramos em nossa literatura, na televisão e na historiografia.
Em resumo, o presente trabalho intenciona basicamente compreender e discutir a
atuação política mantida pela Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira entre
1987 e 2008, realçando sua relação com a sociedade de Aroeira mediante a conjunção de
práticas coronelistas em defesa do situacionismo municipal no mesmo período. O marco
temporal escolhido para pesquisa refere-se ao ano em que a ADECAR foi fundada (1987) e ao
ano em que finalizou o terceiro governo municipal de Éwerton Rios d’Araújo Filho (2008).
Visto isso, torna-se fundamental a apresentação do conceito de coronel/coronelismo,
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pontuando sua origem e características históricas, seus mecanismos de atuação e as diversas
representações e interpretações que o fenômeno gestou ao longo da História.
Nos estudos de muitos historiadores, a gênese do coronelismo remete-nos ao século
XIX e, mais precisamente, aos anos iniciais do Império do Brasil. Embora o país
experimentasse, no período, uma complexa rede de transformações em suas estruturas
políticas, econômicas, sociais e culturais, convivia igualmente com um cenário de
permanências impiedosas. As elites protagonizaram a Independência em 1822 e mantiveram-
se atentas para não entregar o poder às classes populares em 1831. O discurso liberal das
elites confortou-se em práticas conservadoras. Uma permanência que, ao lado do latifúndio e
da escravidão, pode explicar a eterna instabilidade característica do Período Regencial.
As agitações de julho de 1831 no Rio de Janeiro provaram a ineficácia da Guarda
Municipal. A Câmara aprovou em 18 de Agosto do mesmo ano a proposta referente à criação
da Guarda Nacional. Substituindo as Guardas Municipais, esta consistia numa força
paramilitar, subordinada ao Juiz de Paz na esfera local, ao Presidente da Província e ao
Ministério da Justiça em última instância, posto comandado na época pelo padre Diogo
Antonio Feijó. Era composta de acordo com critérios censitários entre os brasileiros de 21 a
60 anos.
A partir de então a figura do coronel ganhou popularidade, com título derivado da
busca por policiamento regional e local sob controle da Guarda Nacional. Como chefe
político local que possuía uma alta patente militar logo se tornou o grande líder promotor dos
melhoramentos. A sua intercessão com as esferas governamentais apresenta-se como esforço
heróico aos olhos da população local, que será beneficiária com a implantação da escola, do
hospital, da igreja ou da estrada, por exemplo.
Em sua obra Coronelismo, Enxada e Voto, Nunes Leal conclui que o coronelismo é
um fenômeno complexo, com particularidades temporais e espaciais, mas que se caracteriza
por um recíproco compromisso (iniciado ainda no Império e consolidado na Primeira
República) entre chefes municipais denominados de coronéis e a situação política em nível
estadual. Nesse acordo, os primeiros conseguem angariar eleitores para o situacionismo do
Estado em troca de erário, empregos, favores e força política. De acordo com Nunes Leal, o
coronel era comumente um possuidor de terras e a extensão do sufrágio aos trabalhadores
rurais (em 1891, desde que alfabetizados) entra como ingrediente substancial na ampliação do
poder dos coronéis. Visto como rico, é o grande referencial para seus dependentes,
concedendo-lhes pequenos benefícios ou empréstimos.
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Especialmente nos municípios do interior, com predominância do rural e do
isolamento, os coronéis encontraram terrenos propícios, auxiliados pela imensa pobreza que
acompanham os trabalhadores rurais. Aos aliados (ou simplesmente obedientes aos seus
mandos) concede favores como pagamento de um sistema de compromisso pelo voto de
cabresto. Aos inimigos sobrava a perseguição, o mandonismo, a hostil e humilhante recusa
em prestar-lhes favores. O coronelismo, no entanto, passou a perder expressão a partir da
década de 1930. De acordo Nunes Leal, a crise ocorrida no sistema coronelista deve-se a um
conjunto de mudanças que se conjugaram fortemente. Destaca-se o código eleitoral de 1932, o
aumento populacional, a urbanização, a incipiente industrialização, a expansão dos meios de
comunicação e transporte. Estas mudanças minimizaram o poder da estrutura agrária de então,
que significava segundo Leal, a base do coronelismo. Com relação a esta questão, Leal
destaca que:
Todos estes fatores vêm de longa data corroendo a estrutura econômica e social em que arrima o “coronelismo”, mas foi preciso uma Revolução para transpor para o plano político as modificações de base que surdamente se vinham processando. O quadro político da República Velha refreou, quanto pôde, esse ajustamento, e finalmente rompeu-se por falta de flexibilidade. Mas o ajustamento aludido foi incompleto e superficial, porque não atingiu a base de sustentação do “coronelismo”, que é a estrutura agrária. Essa estrutura continua em decadência pela ação corrosiva de fatores diversos, mas nenhuma providência política de maior envergadura procurou modificá-la profundamente, como se vê, de modo sintomático, na legislação trabalhista, que se detém, com cautela, na porteira das fazendas. O resultado é a subsistência do “coronelismo”, que se adapta, aqui e ali, para sobreviver, abandonando os anéis para conservar os dedos. (LEAL, 1997, p. 283-84.)
Segundo Leal, o coronelismo foi se metamorfoseando de acordo as mudanças
ocorridas no campo político, econômico e social. Cedeu lugar a novas lideranças, mas o
fenômeno prossegue avante com novas veias de controle, de organização e de liderança,
alimentado pela dependência de novas classes, que muito lembram a pobreza dos
trabalhadores rurais do início do século XX. Assim, Leal conclui:
Continua, pois, o “coronelismo”, sobre novas bases, numa evolução natural, condicionada pelos diversos fatores que determinam o seu poder ou a sua autoridade. (LEAL, 1997, p. 19)
Para o autor, somente com o arruinamento da estrutura agrária haverá ponto final no
coronelismo. Do mesmo modo, a expansão da indústria, a mobilização da mão-de-obra, a
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urbanização, o aumento das vias de comércio e de transporte e a legalização dos direitos
trabalhistas conseguiam estabelecer novas perspectivas e referências para nossa realidade
política e, conseqüentemente, social, econômica e cultural.
Maria Isaura Pereira de Queiroz destaca em O coronelismo numa interpretação
sociológica que os coronéis contavam com inúmeras formas de concentrar poder, havendo
tanto uma relação de dependência econômica dos eleitores (dominantes e dominados) como a
troca de benefícios e favores, a distribuição de presentes em período eleitoral. A violência e a
opressão também estavam em uso quando o objetivo era angariar votos.
Paralelamente, os eleitores não concebiam valiosos créditos à importância do seu voto,
apelando para a usual prática de pedir. Seu voto, nessas condições, passou a representar
unicamente um bem de troca, um favor em retribuição aos benefícios recebidos. Ambas as
partes mantinham um diálogo de dependência mútua, mesmo que o coronel mantivesse um
clássico paternalismo.
Assim como Leal, Maria Isaura defende que a extensão do voto feita pela Constituição
de 1891 a todos brasileiros alfabetizados somente fez aumentar o número de eleitores rurais e
o poder dos coronéis. Ao invés de possibilitar a escolha do candidato mais capacitado, os
eleitores permaneceram votando naquele indicado pelo líder local, o coronel. Uma célebre
obediência reitera o compromisso:
A exigência de um coronel para que seus apaniguados votem em determinado candidato – imposição muitas vezes sem apelo – tem como contrapartida o dever moral que o coronel assume de auxiliar e defender quem lhe deu o voto. (QUEIROZ, 2004, p. 163)
A autora também aponta fatores que danificaram o coronelismo. A urbanização e o
crescimento demográfico são fatores que, ao lado da posterior industrialização implicaram em
crise na ordem coronelista, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. A cidade foge ao seu
controle, com uma multiplicidade de novos grupos, sujeitos a novas formas de organização,
trabalhos e serviços que tiravam os coronéis do centro dos acontecimentos. Por isso, Isaura
relata que:
Quando o desenvolvimento do país propiciou o aparecimento de uma sociedade cujos caracteres foram opostos àqueles, e que se apresentava como cada vez mais complexa na interdependência dos ramos de atividades perfeitamente distintas, então o princípio mesmo que permitira o aparecimento e a existência dos coronéis estava comprometido, e seu
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desaparecimento, num futuro mais ou menos próximo, estava selado. (QUEIROZ, 2004, p. 184)
Assim, a especialização do trabalho e a forte exigência de instrução num contexto que
já experimentava a industrialização acabaram transformando a própria sociedade. Mas o
fenômeno coronelista, segundo ela, ainda conheceu prolongamentos, sobretudo porque a
parentela (grupo de indivíduos com laços familiares) dos coronéis investia não somente na
atividade agrária, mas em diversos setores econômicos. Daí que seu poder passou a repousar
em novas diretrizes:
Dominando em parte a grande indústria, o grande comércio, as grandes organizações de serviços públicos ou privados; com membros seus exercendo as profissões liberais, os coronéis e seus parentes, possuidores além do mais de grandes propriedades rurais, se mantiveram nas camadas superiores da estrutura sócio-econômica e política do país, numa continuidade de mando que persiste, em alguns casos, até os nossos dias. (QUEIROZ, 2004, p. 185)
Em Os donos do poder, Raimundo Faoro aponta que antes de ser líder político, o
coronel era um líder econômico. O poder político exercido traduz-se como a extensão do seu
poder privado. Mas a capacidade de mandar não está exclusivamente na sua riqueza, sendo
possível haver coronéis que não possuem terras. Para Faoro “o coronel não manda porque tem
riqueza, mas manda porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito”.
Empenhado nas atividades políticas e na administração local, os coronéis elaboram
uma enorme interação com o governador, e deste para o âmbito da União. Numa relação
vertical, são os intermediários entre eles e os grupos que mantém contato:
O coronelismo se manifesta num “compromisso”, uma troca de “proveitos” entre o chefe político e o governo estadual, com o atendimento, por parte daqueles, dos interesses e reivindicações do eleitorado rural. (FAORO, 2004, p. 631)
O autor também aborda o domínio pessoal executado pelo coronel sobre seus eleitores.
Segundo ele, o fato de os eleitores acreditarem que estão vivendo socialmente livres acaba
eliminando a possibilidade de uma autoconsciência, de uma reflexão elaborada. Também
porque os coronéis não deixam transparecer um domínio, um controle de suas vontades. Eles
buscam meios “brandos” e “equilibrados” de relacionar-se com os eleitores, camuflando
diferenças indesejáveis e fazendo o eleitor votar por causa de um dever, de uma tradição.
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Em estudo feito sobre a política baiana, o coreano Eul Soo Pang analisa questões
inéditas de como o comportamento coronelista protagonizou a história política da sociedade
brasileira. Sua obra Coronelismo e Oligarquias 1889-1943 defende, ao contrário de todos os
outros autores revistos, que o coronelismo brasileiro tem sua raiz fixada no período colonial,
apesar de sua culminância situar-se entre 1850-1950.
Para Pang, a origem do coronelismo brasileiro tem como base o poder patriarcal e
privado exercido pelos senhores de engenho e fazendeiros de gado do século XVI. A
inexistência de um poder formal e forte dos portugueses possibilitou que essas classes
monopolizassem a política no Brasil. O poder privado foi estendido à esfera pública.
Imediatamente abaixo dos donos de engenho e fazendeiros encontrava-se um grupo
incalculável de dependentes. Essa dependência, que variava desde os feitores aos escravos,
legalizava o poder do senhor.
A dependência de uma força de trabalho de tantas camadas promoveu a elevação do patriarca-plantador a uma proeminência sócio-econômica em seu domínio ou em sua região; surgiu, entre os ricos e os pobres, um relacionamento patrão-dependente baseado num relacionamento de um superior com um inferior. Esse laço reforçou o paternalismo social, que o fazendeiro explorava habitualmente com finalidades políticas, e usava rotineiramente para justificar o exercício de poder no domínio público. Esse sistema de supremacia política de um só homem, cujo poder se baseava num status social e econômico privilegiado, é o antecedente colonial do coronelismo dos séculos XIX e XX. (PANG, 1979, p. 22)
Por outro lado, a estrutura agrária e a monocultura reprimiam até a maior parte do
século XVIII as tentativas de ascensão empreendidas por setores não-agrários. A aristocracia
rural, ao contrário, era a única beneficiária, na medida em que os interesses de sua classe
habitualmente se confundiam com as preocupações dos municípios.
Durante a monarquia e a república, o município continuou a servir de reduto do coronel-fazendeiro, que usava e abusava da região como se fosse seu domínio privado. A ausência de um Estado forte e centralizado, de 1850 a 1930, favoreceu o florescimento do coronelismo como sendo a única instituição viável de poder. (PANG, 1979, p. 23)
Para Pang, o posto de coronel surge ainda no século XVIII a partir das milícias
coloniais e não através da Guarda Nacional. Normalmente, o coronel era um dono de terras,
mas não era inédito encontrar esse posto entre membros de outros grupos, como comerciantes,
médicos, burocratas, professores, advogados e até padres (o caso célebre é o do padre Cícero,
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supercoronel cearense na República Velha).
De forma sumária, o coronelismo é a monopolização do poder, cuja fundamentação e
legitimidade advêm da aceitação do seu status como senhor absoluto, e do papel dominante
que exerce nas instituições sociais, econômicas e políticas. O período áureo desse
comportamento é, na visão de Pang, entre 1850 e 1950, exatamente a época de transição da
nação rural e agrária para a nação industrial. O Brasil vivia mudanças fundamentais em sua
economia e sua política, e o coronelismo emerge precisamente nessa época de crise e
instabilidade, funcionando em muitos casos como um estado informal no sertão.
Entre os clãs (que no caso brasileiro representa família extensa com influência sobre
membros consanguíneos e não-consanguíneos, incorporando dependentes sócio-econômicos
ou por motivos políticos) era comum a manutenção de grupos armados. Conhecidos como
jagunços ou capangas, esses homens comumente eram recrutados entre os dependentes do clã
e tinha participações cruciais em disputas de terras, de águas ou embates eleitorais.
Como os exércitos coloniais e imperiais eram pequenos e litorâneos, os clãs obtinham
a legitimidade da violência, especialmente no interior. Grupos armados sob controle dos
fazendeiros preenchiam o vazio deixado pela ineficácia da justiça e das leis reais ou imperiais.
A violência do coronel tinha status de legitima; seu poder privado era transposto para a
dimensão pública com aspecto de legalidade.
Nas palavras de Pang, a origem do título de coronel não é concomitante ao da Guarda
Nacional. No início do século XIX, o título já era familiar de certas categorias de nobreza
(duque, marquês, conde, visconde e barão), embora em número inexpressivo. O que a
fundação da Guarda Nacional provocou, na verdade, foi sua proliferação e até vulgarização.
Organizada a partir do modelo francês, a nova instituição assumiu (dentro do contexto de
alterações de 1831) a responsabilidade da polícia local, supervisionada pelo ministro da
Justiça e o governo provincial, na missão de garantir o cumprimento da lei; em pouco tempo
tornou-se instituição de prestígio tanto no sertão quanto no litoral. Laços familiares ou de
negócio com elites políticas de outros estados exacerbava o poder dos clãs coronelistas,
grupos dominantes formavam “estados dentro do estado”.
Durante o Império, a Guarda Nacional foi, paulatinamente, experimentando um
processo de partidarização. A concessão de honras militares ou cargos tornou-se
procedimento estratégico entre os partidos. Distribuídas para os que haviam prestado alguma
forma de apoio, a permanência dos beneficiários nesses cargos requeria a manutenção do
partido no poder.
18
Não só a concessão de títulos tornou-se uma preocupação partidária, mas também a designação de um posto de comando tornou-se um importante trunfo políticos do partido dominante. Ao menos no papel, o controle das unidades da Guarda local assegurava ao partido o uso da força policial, um fator crucial nas eleições do império e da república. (PANG, 1979, p. 28-9)
Na sociedade da Primeira República, o título e o poder de comando do coronel
simbolizava uma invejável condição e potencialidade. Era preferível ser chamado pelo título
de coronel do que de “senhor”. Mais do que um delimitador de funções ou de suas atividades,
ele definia sua pessoa, sua influência e seu status num meio social onde se transformou em
referencial e centro.
Como artifícios, além da emblemática dependência eleitoral, os coronéis contavam
com a manipulação e as fraudes eleitorais no propósito de adquirir controle político local.
Funcionando como mais uma carta em suas mangas, as fraudes eleitorais talvez foram, ao
lado da violência dos capangas, a mais impressionante característica da República em suas
primeiras décadas. Não era estranho o coronel registrar na lista de votantes eleitores não-
qualificados; a exigência da alfabetização não era respeitada e muitos votos eram de
analfabetos, ou de pessoas de outros municípios. Distribuir roupas, sapatos, chapéus, dinheiro
e outros itens era costumeiro entre as oligarquias e seus eleitores.
Eleitores pagos e eleitores-fantasmas também “participavam” da eleição. A compra de votos era decididamente um subproduto do sistema capitalista, e daí derivou-se que o dinheiro tornou-se o principal instrumento para a permuta de bens e de serviços. […] Os fazendeiros e comerciantes precisavam de um relacionamento contratual para segurar os serviços de trabalhadores, e esse hábito de comprar serviços estendeu-se, sem dúvida alguma, à política eleitoral. (PANG, 1979, p. 35-36)
Encerada a votação, o resultado era analisado pelo legislativo estadual e federal.
Encontrar equívocos não representava ineditismo; por vezes o número de votos ultrapassava o
de eleitores. Desse modo, o resultado das eleições era o quociente entre as atividades dos que
controlavam o município (os coronéis) e as correções – normalmente tendenciosas – dos
mandatários do legislativo (presidentes e governadores).
A partir das fileiras de coronéis emergiam as oligarquias2. Embora haja larga
diversidade de definições sobre o termo (entendido, simplesmente, como o governo de
poucos), Pang considera que a maioria dos coronéis brasileiros pertencia ao que ele chama de
2 Ver os tipos de oligarquias da República Velha no Anexo 1.
19
oligarquia familiocrática. Nessa categoria enxergamos quase que um protótipo da estruturação
coronelista: o chefe de uma família ou clã exerce influência dentro do município, dispensa
favores aos dependentes e conquista legitimidade no âmbito social e político. O chefe
estabelecia relações e servia de arbitro entre governo e população municipal, num período em
que as funções de um Estado desorganizado eram atribuídas aos coronéis.
Ao contrário da interpretação de Leal, Pang discorda da intrínseca relação entre o
coronelismo e a estrutura agrária. Segundo ele, a composição de classe no Brasil conviveu
com marcante diversificação de 1850 a 1950, o que significou maior participação de
advogados, comerciantes, médicos, funcionários e outras classes auxiliares na vida política
em todo o país.
Em suma, a afirmação de que a propriedade da terra é condição sine qua non para aquisição e exercício de poder político constitui-se num exagero. Na realidade, durante a Primeira República, a posse de terras e os padrões de distribuição, ou títulos de posse, tiveram pouca influência no florescimento do coronelismo. (PANG, 1979, p. 47)
A força do coronel baseava-se, para Pang, em sua habilidade de fornecer favores
sociais, políticos ou econômicos em troca de votos. Seu poder no interior estava regido por
um sistema de relacionamento aberto, e com maior nível de participação política dos seus
dependentes. Nas regiões litorâneas, e especialmente no centro-sul, surgiu um sistema social
fechado e autocrático. No Norte, Nordeste e Centro-Oeste o coronelismo simbolizada a
rejeição da autoridade do Estado, sendo a lealdade das massas canalizadas para os coronéis.
No centro-sul, os coronéis foram incorporados ao poder público; houve, na verdade, a
institucionalização do coronelismo.
Analisando a organização e o funcionamento da burocracia do Império do Brasil, a
obra A Construção da Ordem de José Murilo de Carvalho mostra a existência de relações e
pessoalidade mesmo entre os mais altos cargos do funcionalismo do país. A seu ver, a
burocracia era, antes de tudo, uma elite política não estamental, cujo segredo do sucesso
residia na sua não rigidez organizacional e na ilusão de acessibilidade que aparentava, a ponto
de conseguir cooptar forças inimigas.
A acumulação de poder provocada pela construção do Estado nacional (entre a
independência e em torno de 1850) colocava em evidência a necessidade de expandir para a
periferia do sistema a atuação estatal, de dispersar o funcionalismo público concentrado na
administração central (somente 11,61% dos empregados públicos eram da esfera municipal)
20
Na ausência de suficiente capacidade controladora própria, os governos recorriam ao serviço gratuito de indivíduos ou grupos, em geral proprietários rurais, em troca da firmação de concessão de privilégios. (CARVALHO, 2003, p. 158)
Nesse intento, o Estado utilizava os serviços da Guarda Nacional, de delegados ou
subdelegados de polícias e inspetores de quarteirão. A burocracia imperial não transparecia,
segundo Carvalho, a implantação do modelo moderno pensado por Weber. Ao invés de buscar
a eficácia, a impessoalidade, a regularidade e a precisão, nossa burocracia sofria os males do
apadrinhamento, do patronato e da manipulação dentro do Estado.
A troca de favores não abrangia apenas nomeações e promoções. Os funcionários envolviam-se em práticas que hoje seriam consideradas corruptas, embora continuem freqüentes. Calógeras, por exemplo, comenta candidamente em suas cartas o fato de seus filho ter ganho alguns milhares de francos de comissão do governo por ter agenciado a compra de algumas canhoneiras para o Ministério da Marinha, cujo ministro era seu amigo. (CARVALHO, 2003, p. 160)
Logo, o funcionalismo também atendia as necessidades de natureza política e social.
Até o final do século XIX, o Brasil possuía, mesmo com uma burocracia menos instrumental
e complexa, um funcionalismo geral e federal maior do que os Estados Unidos.
A burocracia era importante para prover ocupações para os setores médios urbanos e mesmo para setores proletários; era também poderoso elemento de cooptação dos potenciais opositores, oriundos dos setores médios urbanos e das alas decadentes da grande propriedade rural. (CARVALHO, 2003, p. 164)
Era justamente essa inclinação para a dependência o sustentáculo do que Pang
denomina como coronéis burocratas. A política mantida por Juraci Magalhães após 1933,
como interventor na Bahia, é exemplo marcante. A centralização administrativa de Vargas
não apagou as marcas de uma ordem social que, inclusive, compactuava com o banditismo no
interior do Brasil e cooptava suas forças em vinganças pessoais ou apoio nas eleições.
Escrevendo num período bem posterior à Leal, Pang reitera que o coronelismo conseguiu
sobreviver após a década de 30, evoluindo para novas formas de administração oligárquica.
Portanto a modificação, e não o declínio do coronelismo, deveria ser o tema
21
da história política depois de 1930. O impacto da explosão demográfica, a industrialização substituindo a importação e a conseqüente urbanização, a ascensão de um sistema multipartidário em 1945, e as crescentes tendências centrípetas da presidência federal, contribuíram para a modificação do coronelismo. Os coronéis tornaram-se os intermediários do poder dos diversos partidos, nas décadas de 1960 e 1970, ressurgindo, assim, como uma “nova elite partidária modificada”. (PANG, 1979, p. 62)
Forças públicas estaduais e o exército nacional retiraram, de acordo com Pang, a
importância militar dos coronéis e dissolveu as possíveis contendas entre seu poder particular
e o estado. No entanto, a Revolução de 1930 integrou o coronelismo oligárquico à política
nacional. O coronel personalista prendeu-se ao partido de modo disciplinado.
Nos alicerces do sistema político, os coronéis não só sobreviveram à revolução de outubro de 1930, mas também mantiveram mais uma vez seu direito de dominar o sertão como oligarquias familiocráticas. O sistema de clientela política continuou, com clientes antigos e novos patrões. Os novos patrões eram Juraci Magalhães, Juarez Távora e Getúlio Vargas. A revolução não derrotou os coronéis: os coronéis venceram. (PANG, 1979, p. 231)
Dentre as mudanças substanciais de 1945, Pang apresenta fatores modificadores do
coronelismo. O sistema de voto secreto reduziu a intervenção dos mandatários nas eleições. O
desenvolvimento econômico, a industrialização e a urbanização oportunizaram mobilidade
social e relativa independência das massas. A expansão das redes de estrada ligando o interior
e o litoral colocava fim no isolamento geográfico do sertão. A proliferação dos partidos de
inúmeras tendências e ideologias dividiu as facções e tribos de coronéis. Os governos
estaduais e federal em expansão após 1945 minaram o poder dos coronéis, tornando-se árbitro
e gerenciador das questões no interior. O Estado e os partidos deixaram, segundo Pang, de
dever favores ao coronel, e este passa a perder prestígio entre os eleitores; os favores políticos
não eram mais viabilizados pelos mandos locais. Por fim, a morte dos principais coronéis da
República Velha minimizava a capacidade de sobrevivência da estrutura coronelista. Ou seja,
o coronelismo perdeu seu papel de protagonista frente a uma nova elite social, vinculada ao
desenvolvimento e à modernização.
Em suma, o coronelismo chegou ao ocaso. Não desapareceu de todo, mas parece caminhar para o fim. Em certa época a violência e os favores políticos serviam aos coronéis como meios complementares de expandirem seu poder e obterem votos. O Estado, e às vezes o governo federal, recorriam a táticas igualmente nefastas para controlar os coronéis, mas esse
22
tempo acabou. (PANG, 1979, p. 235)
Em estudo inédito acerca da região cafeeira do Vale da Paraíba no século XIX, Maria
Sylvia de Carvalho Franco analisa, em Homens Livres na Ordem Escravocrata, como eram
estabelecidas as relações entre os membros dirigentes da sociedade (normalmente os
fazendeiros) e os homens livres, como os sitiantes, os tropeiros, os pequenos proprietários e
os vendeiros.
Para a autora, tratava-se de uma sociedade onde a posição ocupada pelo indivíduo
dependia do seu grau de riqueza. E como havia a possibilidade do enriquecimento, estes
homens livres buscaram favores, serviços ou auxílio econômico dos fazendeiros. Dessa
relação nascia uma notável interdependência e uma fidelidade. O fazendeiro buscava não
demonstrar superioridade sobre o dependente, e este (num jogo harmônico e sem imposições)
garantia-lhe o apoio político em troca dos benefícios recebidos. Assim, a dominação pessoal
acabava eliminando a existência autônoma e o voto simbolizava a ratificação da lealdade, já
que:
Para aquele que se encontra submetido ao domínio pessoal, inexistem marcas objetivas do sistema de constrições a que sua existência está confinada: seu mundo é formalmente livre. Não é possível a descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem lugar como se fosse natural e espontâneo. Anulam-se as possibilidades de autoconsciência, visto como se dissolvem na vida social todas as referências a partir das quais ela poderia se constituir. Plenamente desenvolvida, a dominação pessoal transforma aquele que a sofre numa criatura domesticada: proteção e benevolência lhe são concedidas em troca de fidelidade e serviços reflexos. (FRANCO, 1997, p. 95)
Certamente, o comportamento político atual não demonstra as mesmas características
da República Velha. O coronelismo como sistema deve ter, como afirma Pang, cedido espaço
para novos paradigmas. Mas as práticas de mando e controle pessoal, social, político e
econômico estão tão vivas quanto antes. Basta observar como a nossa realidade política ainda
faz confusão entre o público e o privado. Basta analisar as práticas de hierarquias e
clientelismo com as quais convivemos.
Ao estudar o sistema social brasileiro, em Carnavais, Malandros e Heróis, Roberto
Damatta discute diversos temas, mas elege o rito “sabe com quem está falando?” como
alicerce para sua análise da conduta estabelecida no Brasil entre dominadores e dominados.
Defende a existência de uma estrutura social na qual a hierarquia dialoga com a intimidade.
23
Relações pessoais entre os diversos grupos sociais constroem uma mediação vertical entre si,
a ponto de encontrarmos casos em que um subalterno utiliza esse rito contra outra pessoa
tendo em vista a identificação social estabelecida com seu chefe ou patrão. Para Damatta, a
expressão constitui-se numa revelação da identidade social, já que a seu uso não é privilégio
de uma categoria, grupo, classe ou segmento. Assim, tanto o empresário pode empregá-la para
evidenciar sua identidade, como seu funcionário pode integrá-la ao seu vocabulário como
mecanismo de projeção social. Nesse sentido, ser “motorista do Ministro”, “esposa do
delegado” ou “afilhado do prefeito” permite utilizar o “sabe com quem está falando?” como
um reforço de sua posição de superioridade frente ao receptor da mensagem. Num cenário
onde as relações de trabalho fogem da dimensão estritamente econômica e impessoal, valores
como a intimidade, a consideração e os favores definem as relações hierárquicas entre as
pessoas. O empregado torna-se membro de um sistema que o iguala horizontalmente com o
patrão e o impõe uma hierarquia vertical para com este. O sentimento de identidade e
compensação escondem e substituem um eventual confronto ou violência entre dominante e
dominado.
Quem usa a expressão “sabe com quem está falando?” é geralmente aquele que se
sente agredido. Após revelar sua identidade, ele torna-se o agressor, aquele que impõe seu
status, que consegue impregnar hierarquia numa relação entre iguais, pelo menos em termos
legal e jurídico.
O ritual de reforço analisado por Damatta camufla outra dimensão elementar para se
compreender a hierarquização dos iguais: as diferentes formas de cumprir a lei. Não é tão
revelador que, no Brasil, o sistema oscila entre cumprir a lei ou respeitar a pessoa. O “sabe
com quem está falando?” é sempre prosseguido por uma identidade que pode – e
normalmente consegue – desrespeitar as leis; o emprego da lei é guiado pelo jogo de
conveniências e pela latente distinção entre os superiores e os inferiores.
Para os adversários, basta o tratamento generalizante e impessoal da lei, a eles aplicada sem nenhuma distinção e consideração, isto é, sem atenuantes. Mas, para os amigos, tudo, inclusive a possibilidade de tornar a lei irracional por não se aplicar evidentemente a eles. A lógica de uma sociedade formada de “panelinhas”, de “cabides” e de busca de projeção social jaz na possibilidade de se ter um código duplo relacionado aos valores da igualdade e da hierarquia. (DAMATTA, 1997, p. 217)
Diante das leis, e de todo o universo de impessoalidade que a marca, nasce um
tratamento diferenciado e pessoalizante. No Brasil é evidente a dicotomia entre o indivíduo e
24
a pessoa; dessa diferença decorre duas formas distintas de observar a sociedade e de fazer a
lei nela agir. Em frente às leis universalizantes, as pessoas voltam aos seus respectivos
lugares.
É como se tivéssemos duas bases por meio das quais pensássemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da repressão, seguimos sempre o código burocrático ou a vertente impessoal e universalizante, igualitária, do sistema. Mas, no caso das situações concretas, daquelas que a “vida” nos apresenta seguimos sempre o código das relações e da moralidade pessoal, tomando a vertente do “jeitinho” e da “malandragem” e da solidariedade como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a repressão foram feitas. (DAMATTA, 1997, p. 218)
Em um sistema pessoas que se conhecem, e que se complementam socialmente pela
bondade e pelos favores é mais interessante ser pessoa do que ser indivíduo. Nesse contexto
surgem as pessoas-instituições, reunindo aos seus pés uma clientela imensa. O mundo é
distribuído hierarquicamente, e nesse jogo repete-se a falácia de que o superior sabe o que é
bom para o inferior, para o povo. O inferior deve demonstrar generosidade, confiando
naquelas pessoas que o representa. Sempre manipulável, o povo (inferior) é englobado pelo
superior; o perigo de ser enganado ou ludibriado nos seus direitos é constante. A opinião e
ideologias do inferior não merece atenção, pois o povo é ingênuo e inocente.
Temos a caridade, nunca a filantropia (que é um sistema de ajuda ao próximo, voltado muito mais para a construção social), e assim reforçamos as “éticas verticais” que, ligando um superior a um inferior pelos sagrados laços da patronagem e da moralidade, permitem muito mais a perspectiva complementar das relações hierárquicas do que as antagônicas. O mundo é visto como composto de fortes e fracos, ricos e pobres, patrões e clientes, uns fornecendo aos outros aquilo de que eles não dispõem. (DAMATTA, 1997, p. 234)
Mas existe uma tendência dual até mesmo no nosso universo legal, pois as leis criadas
com a premissa da igualdade passam por reavaliações na sua prática, construindo uma
tendência individualizante e outra pessoal. As leis só devem ser aplicadas para os indivíduos
(aqueles que são indigentes e não possuem família, padrinho ou intermediário capaz de
conseguir um tratamento diferenciado) e nunca para as pessoas.
Desenvolvemos ao longo dos anos essa maneira de hierarquizar e manter as
25
hierarquias do mundo social, criamos os despachantes ou padrinhos para baixo, esses mediadores que fazem as intermediações entre a pessoa e o aparelho de Estado quando se deseja obter um documento como o passaporte ou a nova placa do automóvel. (DAMATTA, 1997, p. 236)
É por conta disso que a lei não é vista como regra imparcial. Legislar é mais fácil do
que cumprir o que está no papel. O sistema legal tem sua aparência de universalidade
desmascarada pela moralidade pessoal, por aplicações vazias e pela manipulação de valores e
ideologias.
O trabalho de Chacon é plausível para percebermos como as práticas coronelistas não
estão muito distantes no tempo. Segundo ela, quando a modernidade alcança as regiões
interioranas, e mais especificamente o Sertão, os coronéis são forçados a rever seus métodos
clientelistas, passando a defender agora um discurso modernizador. O movimento não foi
unânime em todas as regiões, mas os coronéis se adequaram ao próprio projeto de
urbanização e produção capitalista.
Ou seja, surge um novo tipo de coronel em diversas regiões do país, embasado em
novos discursos, novas formas e novos instrumentos de poder. Para Chacon, a urbanização, ao
invés do que pensa Leal, não significou o fim dos coronéis; eles se adaptaram às novas
conjunturas, mudaram-se para a cidade, organização novas dominações e tornaram-se os
coronéis urbanos (constituídos principalmente pelos empresários). Embora com uma
roupagem de modernidade, estes coronéis conservaram muitas práticas eleitoreiras e a idéia
de mediação com o poder público.
O surgimento de novos atores políticos e também de novos conflitos, vindos a reboque da modernidade, vai mudar esse quadro de forças políticas, e o velho coronel é substituído aos poucos por funcionários públicos, tecnocratas que passam a deter certo poder, que se baseia em um suposto saber que decide onde é empregado o recurso para o desenvolvimento. E o novo coronel é o administrador de conflitos gerados a partir dessa nova configuração de forças, que limita seu poder e exige um esforço político e intelectual muito maior para manter o poder. (CHACON, 2007, p. 94)
Com base nas diversas análises sobre o fenômeno coronelista (seus termos correlatos e
subprodutos), creio ser o trabalho de Roberto Damatta o mais adequado e oportuno para o
estudo sobre a atuação da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira
(ADECAR). As práticas do coronelismo da Primeira República sobreviveram ao tempo
(embora o sistema possa ter chegado ao fim) e construíram novas regras de relações sociais
hierárquicas e de mando, entre superiores e inferiores. Vemos, pois, comportamentos
26
clientelistas triunfarem na política de Conceição do Coité no limiar do século XXI tendo
como sustentáculo o mesmo combustível do Império ou da Primeira República: a
dependência.
O diálogo com outros autores será fundamental, mas insistirei na análise de práticas
políticas da ADECAR que apresentam sutileza e aparente casualidade em sua performance,
mas que são crias conscientes, objetivas e potenciais de um comportamento mandonista e
clientelista dos interesses políticos-partidários. O coronelismo enquanto estrutura política foi
carregado pelo crepúsculo, mas suas práticas, suas estratégias e suas fundamentações ganham
novo colorido para sobreviver aos novos ambientes de adaptação. Um exímio coronel do
passado reconheceria no comportamento mantido pela ADECAR um teatro bastante
equivalente ao qual ele atuava – do ponto de vista da estruturação e dos ensaios de bastidores.
27
CAPÍTULO II
A Política Recente de Coité e a Questão do Desenvolvimento
"História e poder são como irmãos siameses - separá-los é difícil; olhar para um sem
perceber a presença do outro é quase impossível". A frase de Francisco Falcon é cabalística
para o presente trabalho. A História da cidade de Conceição do Coité tem sido desenhada sob
a égide das ações políticas de "grandes" homens. Localizado na zona fisiográfica do Nordeste,
ao leste da Bahia, distante 210 km da capital baiana, Conceição do Coité possui uma área de
1.086,244 km² e uma população de aproximadamente 63 mil. Conhecida rotineiramente como
"A Capital do Sisal", a cidade produz e exporta admirável quantidade da referida fibra. A
agricultura e a pecuária do município são igualmente importantes para o seu dinamismo
econômico. Mas além dessas atividades, sua economia apresenta uma das maiores taxas de
crescimento dentro do Território do Sisal (seu PIB é inferior apenas ao de Serrinha3) por conta
da pujança comercial e dos crescentes investimentos industriais (notoriamente nos ramos de
calçados, de confecções, de beneficiamento do sisal e da produção de gêneros alimentícios).
Nesse capítulo farei uma breve análise da política recente de Conceição do Coité, entre
a década de 1970 e o início do século XXI, ressaltando, sobretudo, questões referentes ao
processo de construção das bases políticas, econômicas e sociais do período. Ainda neste
capítulo serão analisados os variados caminhos propostos pelo governo federal para o
desenvolvimento do Nordeste, além de propostas de intervenção realizadas pelo governo
estadual e o municipal no campo do desenvolvimento (principalmente comunitário).
No livro Conceição do Coité: a capital do sisal, Vanilson Lopes de Oliveira sinaliza
que sua obra representa o "primeiro livro histórico-cultural do nosso município", tendo em
vista a "autenticidade" e o "desprendimento" que julga caracterizar o seu discurso:
É como se fosse uma radiografia de uma localidade mostrando sua gente, seus usos e costumes, suas tradições e realizações. É uma radiografia em perfil de uma comunidade sertaneja pequena e simples, destemida e forte, por enfrentar as dificuldades do revés da natureza no sertão semi-árido. (OLIVEIRA, 1993, p.10)
Obviamente que não é possível esconder ou ignorar a importância dos trabalhos de
3 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas.
28
Vanilson de Oliveira acerca de Conceição do Coité, apesar de apresentar carências em suas
reflexões. Segundo o autor, a cidade foi sendo modelada a partir de memoráveis feitos. O
povoamento do sertão por meio das Entradas e Bandeiras provocara o domínio e a expulsão
dos "perigosos índios" da região; a posição geográfica estratégica de Conceição do Coité era
utilizada como ponto de apoio para atividades comerciais, criação de gado ou passagem de
viajantes no interior da Bahia; e a existência da cuitizeira ou cuité (árvore de pequena
dimensão que inspirou o nome da cidade), utilizada para descanso das boiadas que passavam
e para estocagem de água em seus frutos (cabaças) para o uso nas distantes caminhadas pelo
interior, são registrados com realce na obra de Vanilson de Oliveira.
Em sua dissertação de mestrado Nossa Senhora da Conceição do Coité: Poder e
Política no Século XIX, Iara Nancy Araújo Rios aponta que, desse modo, Conceição do Coité
foi, do ponto de vista historiográfico, construído como local de dinamismo comercial,
proteção divina, cosmopolitismo e progresso. Segundo a historiadora, a memória do
município consolidou-se sobre os pilares mitológicos de sua fundação, de um passado
harmônico e predestinado ao desenvolvimento; idéia reiterada pela própria literatura regional.
O processo de construção da memória da cidade de Conceição do Coité se fez pelo silêncio de elementos do passado e pelo não-dito. Não porque não fosse importante, nem tivesse significado, mas porque se precisava construir um passado que justificasse a idéia de modernização e desenvolvimento, sem informações que contradissessem o mito de fundação. (RIOS, 2003, p. 39)
A autora pontua que o passado, não somente de Conceição do Coité, mas de toda
trajetória dos Sertões dos Tocós, revela-se nos estudos históricos sem a presença de conflitos,
de problematizações. O progresso da cidade é justificado pela evolução linear dos
acontecimentos, reafirmando a intencional balela de que Coité surgiu sem desigualdades
sociais e sem contendas.
Esta imagem de harmonia esconde os conflitos e tensões existentes em todas as sociedades, afinal, as relações sociais são permeadas pelas relações de poder, e onde há lutas pelo poder, há conflitos. (RIOS, 2003, p. 45)
Ou ainda, no plano da memória, podemos concordar que:
Confeccionou-se uma memória apenas com grandes homens e grandes eventos políticos, sem índios, sem negros e sem a participação do povo nas
29
decisões e no processo social da cidade seguindo o caminho traçado pela história tradicional e, depois, positivista. (RIOS, 2003, p. 39)
Recupero essas idéias no desígnio de apontar a importância que elas podem
apresentar, numa perspectiva positivista, dentro da consolidação de uma mentalidade coletiva
positivada - e deturpada - a fim de reverenciar grandes líderes e de eleger determinadas
referências (políticas, sociais e culturais) a serem cultuados pelos vários grupos da sociedade
de Conceição do Coité. A construção de líderes, de discursos e de marcos norteadores dentro
do espaço social permite a massificação, a sobreposição dos interesses de um grupo sobre o
outro, e a consequente cooptação dos eventuais dissidentes.
No seu livro Conceição do Coité e os Sertões dos Tocós, Vanilson de Oliveira afirma
que o desenvolvimento sócio-político-administrativo do município compreende dois grandes
períodos. O primeiro deles foi liderado pelo líder político Wercelêncio Calixto da Mota,
construtor da “era de seu Mota” que:
Começou em 1928, quando foi intendente municipal, (cargo hoje correspondente a prefeito) e terminou em 1972, no governo de Dr. Manoel Antônio Pinheiro. Foram quarenta e quatro anos de administração, divididos em dezesseis prefeitos, tendo alguns exercito o poder por mais de uma vez, como é o caso do próprio Wercelêncio, e de Teócrito Calixto, seu sobrinho. Nesse período, o município cresceu, superando as cidades mais antigas da região: Riachão e Queimadas. (OLIVEIRA, 2002, p.88)
Nesse período, a autoridade política de Wercelêncio prevalecia como referência nas
sucessões de prefeitos, na ocupação de cargos públicos e na construção das regras
personalistas e carismáticas para a política oligárquica municipal. Como destaca Vanilson,
sob o controle de Wercelêncio assistiu-se um processo de modernização da cidade, com o
calçamento de ruas, a construção de estradas, tanques, açudes e imprimindo “à administração
um caráter de honestidade ilibada, digna de exemplo”. Todavia, apesar de modernizadora, a
política de Wercelêncio camuflava tendências coronelistas e conservadoras. A expressão
“Coité de seu Mota” ratifica uma mentalidade que vincula o município aos mandos e
desmandos de um administrador, de um chefe e seus correligionários, uma vez que “o poder
político de Mota era tanto que bastava indicar qualquer candidato postulante ao cargo de
vereador, ou a prefeito, independente do partido, ou do índice de rejeição, para que a pessoa
30
fosse eleita”4.
O segundo período de desenvolvimento sócio-político-administrativo de Conceição do
Coité compreende-se entre os anos de 1973 até os dias atuais. Nessa nova etapa, o teatro
político de Coité também ganhou um novo dono, Hamilton Rios de Araújo (Mitinho). Mesmo
com raízes familiares vinculadas à posse da grande propriedade, Mitinho nunca se prendeu às
atividades agrárias; sua relação com a política, no entanto, certamente tenha decorrido de uma
herança familiar.
O seu avô, Antonio Felix de Araújo, por parte do pai, possuía uma patente de coronel da Guarda Nacional e, para ser adquirida uma patente daquela, tinha que ter recursos financeiros e prestígio político na Província da Bahia. Talvez tivesse sido do seu avô que lhe veio no sangue o gosto pela política. (OLIVEIRA, 2003, p. 75)
Uma análise atenta da política recente de Conceição do Coité pode, nessa finalidade,
demonstrar a permanência da mentalidade coronelista. A vitória de Hamilton Rios de Araújo
para prefeito permite uma leitura ambígua. Por um lado, assinala o término do período
político liderado por Wercelêncio Calixto da Mota e das vitórias conquistadas pela sua
equipe. Por outro, inaugura uma nova página na história política do município, marcada por
uma conjunção de práticas e tendências que relembram e ressuscitam o comportamento
coronelista do início do século passado.
Dessa vez, não mais a estrutura agrária servirá como esteio para seu poder. Hamilton
Rios já não usava o longo bigode dos coronéis da Primeira República, como o que José
Candido de Carvalho apresenta em O Coronel e o Lobisomem5. Era um homem de negócios,
bem-sucedido no comércio do sisal, mas que soube habilmente utilizar os favores e benefícios
em troca apoio político, poder e votos.
Para conseguir seus objetivos, montou um carro pipa e, interessado em votos, aproveitando o flagelo da seca de 1970, saiu distribuindo água nas roças e povoados, pregando que o prefeito, juntamente com seus aliados, não dava assistência ao povo. Durante dois anos, fez isso e muito mais: doou cestas básicas, materiais de construção: (cimento, tijolos, blocos, telhas…), passagem de ônibus e outros benefícios, a ponto das pessoas denominá-lo de “pai da pobreza”. (OLIVEIRA, 2002, p. 79)
4 OLIVEIRA, Vanilson Lopes de. Conceição do Coité e os Sertões dos Tocos. Conceição do Coité: Clip Serviços Gráficos, 2002. p. 76 5 Romance brasileiro da década de 60, que inspirou filmes e minisséries com o mesmo nome desde os anos 1980.
31
De modo irônico, poderíamos dizer que, caso não existisse o voto, estas seriam ações
dignas da glória eterna. No entanto, esse comportamento é um remanescente óbvio da
Primeira República, um dos inumeráveis meios pelos quais um autêntico coronel procuraria
concentrar poder. Como bem pontua Pereira de Queiroz, a sutileza presente na relação de
dependência econômica dos eleitores (dominantes e dominados), na troca de benefícios e
favores e na distribuição de presentes em período eleitoral fazia do voto um bem de troca;
uma permuta em retribuição aos benefícios recebidos. Uma informação que chama atenção é
que as práticas clientelistas de Hamilton Rios já ocorriam entes mesmo de 1973; o
clientelismo é posto como um facilitador para cativar os eleitores.
A expressão “pai da pobreza” atribuída a Hamilton Rios alude fielmente a este
paternalismo coronelista. Um exímio coronel que busca aproximar-se dos seus subordinados,
a fim de eliminar os traços divisórios e contrastantes entre os dois. Sua postura objetiva
demonstrar identificação com o eleitor, como alguém que conhece suas dificuldades
cotidianas e que, inclusive, encara o pobre como um filho a ser cuidado.
A chegada de Hamilton Rios ao executivo de Coité ocorreu em pleno governo do
general Médice. Os Anos de Chumbo instituíram no pós-64 as novas diretrizes para as regras
políticas em todo o país. Em tempos de centralização político-administrativa, de Atos
Institucionais, de perseguições políticas, de censura e controle das oposições, o Estado
brasileiro mantinha grandes interesses nas esferas municipais de poder. Por conta da
importância de garantir legitimidade no âmbito municipal, o Estado procurou dialogar e
formular laços de intimidade com as elites locais. Tendo em vista a nova atmosfera política,
coube aos coronéis locais se adequarem, como nos lembra Chacon6, ao discurso de
modernização, de crescimento capitalista e de urbanização.
Em Conceição do Coité, no entanto, os bastidores políticos não estavam totalmente
delimitados pelos mandamentos do Regime Militar. As posturas racionalistas e moralizantes
emanadas verticalmente estiveram presentes (entenda-se esquecidas) mais em gabinetes que
nas práticas político-eleitorais, e Hamilton Rios abraçou o carisma, o populismo, as práticas
coronelistas e a dependência econômica como artifícios principais para ascensão.
Burocratização do poder e personalidade não se contradiziam localmente, completavam-se e
geraram uma coexistência estabilizada e profícua. Os juízos ditatoriais não tiveram
reprodução ipsis litteris pelas políticas municipais, o que não desfazia o vínculo servil.
Parecia, bem mais, uma harmonização vantajosa do que parecia incompatível; as lideranças
6 Ver Suely Salgueiro Chacon, O sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido, pp. 87-105.
32
políticas de Coité vincularam-se à ARENA enquanto sobreviviam de práticas políticas como a
intimidade, a manipulação e o apadrinhamento.
A consideração anterior é análoga à visão de Roberto Schwarz sobre a presença de
idéias européias incorporadas impropriamente no Brasil. Para o autor, a ideologia liberal que
ancorou as lutas nacionais de independência permaneceu sendo contemporânea da escravidão.
Dessa forma, as idéias liberais inspiradas pelas revoluções francesa, inglesas e americana
estiveram, em nosso país, fora do seu ambiente previsível, se comparadas às experiências
precedentes. A escravidão deveria desmentir e tornar impróprio o liberalismo, mas nada disso
aconteceu. O Brasil burocrático, que queria se modernizar e se moralizar era o mesmo que,
especialmente no campo municipal, não desprendia sua política dos veículos clientelistas e
individualistas.
A política nacional posterior ao golpe militar estava repartida por duas facções, a
Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – reduto dos militares – e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), que conjugava as oposições, e cada um com a possibilidade
de originar sublegendas. No município de Coité, tanto a situação como a oposição abraçou a
facção dos militares, definindo-se como Arena 1 a coligação do situacionismo e Arena 2 o
grupo da oposição. As investidas da Arena 2 contra os remanescentes do grupo de
Wercelêncio Calixto (Arena 1) era, no período, comandado por Evódio Ducas Resedá. Ainda
pelo Partido Republicano, Evódio perdeu as eleições de 1963 para Antonio Ferreira de
Oliveira, do Partido Social Democrático (PSD). Segundo Vanilson de Oliveira, em 1967, após
um pacto com a situação, Evódio apóia Teógenes Antônio Calixto como candidato único para
prefeito, a fim de receber semelhante apoio nas eleições seguintes. O acordo acaba em
desafeto e na eleição posterior (1970), Evódio perde novamente para o último herdeiro do
trono de seu Mota, Dr. Manoel Antonio Pinheiro.
A partir daquele ano, Hamilton Rios passa a contestar a permanência dos discípulos de
Wercelêncio Calixto na direção da prefeitura por mais de quatro décadas. Os sucessivos
insucessos de Evódio contribuíram também para facilitar a adesão a uma liderança da
“esquerda” (que também era ARENA). De qualquer modo, Hamilton transformou-se
paulatinamente no mais cogitado nome à candidatura pela oposição, “apoiado pelo grupo de
Evódio e por alguns dissidentes da situação, como foi o caso de Antonio Nunes, seu cunhado,
ex-vereador e ex-prefeito interino de Coité”7. O interessante é que o discurso de aversão à
longa continuação do grupo de Wercelêncio no poder feito por Hamilton foi imediatamente
7 OLIVEIRA, Vanilson Lopes de. Sisal, Suor e Poder: crônica de uma região. Conceição do Coité: Editora Clip. 2003. p. 76
33
esquecido a partir de 1973. Antes da vitória, o discurso era conveniente e inspirava mudança;
depois dela, tornou-se obsoleto e a era Mitinho só precisa contar os dias para poder
comemorar o 40º aniversário de controle sobre a máquina pública de Conceição do Coité.
Nas eleições, Hamilton tinha do lado oposto Misael Ferreira Oliveira, apoiado por Dr.
Pinheiro, vinculado igualmente ao comércio do sisal, vereador e um expoente representante
do distrito de Salgadália. Com perfis político-ideológicos e bases econômicas parecidas,
ambos lançaram-se numa campanha eleitoral desenfreada. Segundo Vanilson Oliveira, a partir
dos anos 70 surgiram os estrondosos comícios, com passeatas de carros e multidões pela
cidade. Mas um grande diferencial do período foi, irrefutavelmente, o emprego desinibido das
práticas clientelistas. Os dois adversários passaram a escancarar a premissa de que “é dando
que se recebe” como estratégia política clientelista do imediatismo.
Foi a partir dessa campanha, que se deliberou em definito o clientelismo e o assistencialismo: “o toma-lá-dá-cá”. Muito antes, esse clientelismo era feito disfarçadamente pela política dos “coronéis”: João Amâncio, Wercelêncio, Eustórgio Resedá e muitos outros, e, também pelo comerciante Teócrito Calixto que doava uma gravata, um sapato, ou uma meia, para quem votasse nele. (OLIVEIRA, 2002, p. 78)
Visto assim, não podemos dizer que Hamilton Rios e Misael Ferreira montaram em
1972 uma nova rede de relações eleitoreiras; houve apenas um aprimoramento, uma
adaptação às demandas da urgência. Assim como na Velha República, é perceptível a pouca
importância que o voto, quase um século depois, representa para muitos eleitores. Seja pela
inconsciência política, por um compromisso tradicional ou pela apaixonante sedução que a
representatividade simbólica de um candidato ou facção constrói, muitos ainda acreditavam
que trocar seu voto não implicaria no resultado das eleições (isso relembra o paradoxo da
participação eleitoral discutido por Marcus Figueiredo).
Na monografia de especialização, Francisco de Assis Alves dos Santos (Assis da
Caixa ou Assis do PT) sinaliza que na história política de Coité os homens sobrepõem o
campo das idéias, onde os discursos são arquitetados para a personalidade e a desmoralização
das regras. No que tange à disputa entre Hamilton e Misael (1972), Assis é lacônico ao
defender que:
Desde 1972 os empresários do ramo do sisal Hamilton Rios de Araújo e Misael Ferreira de Oliveira, cada um de seu lado, têm tocado seus projetos políticos pessoais, desprovidos de quaisquer propostas de interesse público, e, em torno deles, reunido muitos defensores fiéis, alguns fanáticos. Ambos
34
se notabilizaram pela prática do clientelismo e fisiologismo políticos (compram eleitores e aliados, distribuem e/ou prometem empregos públicos etc.). (SANTOS, 2000, p. 34)
A estes defensores fiéis mencionados por Assis foi direcionada uma sistemática
sedução simbólica. Doravante, uma visão maniqueísta foi estabelecida para o campo político
de Coité, buscando construir simbologias onde cada grupo procurava direcionar seus
interesses para o eleitorado em sua totalidade. A utilização de músicas em carros de som tinha
– para além da função conotativa da linguagem – o desígnio de apontar que um grupo era
melhor do que o outro. Pelos exemplos encontrados no livro de Vanilson Oliveira8, podemos
dizer que o sucesso simbólico de um grupo era definido mais pela difamação do adversário do
que pela apresentação de propostas, medidas e tendências necessárias à solução dos
problemas que afligiam a população coiteense. Nas últimas décadas, a política municipal tem
reservado enorme espaço à divergência entre a simbologia dos Azuis (representando todas e
quaisquer oposições) e dos Vermelhos (deturpação da coloração comunista que, em Coité,
passou a identificar os grupos da direita), independentemente dos problemas, significados,
inutilidades ou objetivos que essa cisão possa ter.9
Em entrevista de 06 de janeiro 2010, Assis destaca que, ideologicamente, a chegada de
Hamilton Rios ao poder em Conceição do Coité não representa uma mudança. Sua
singularidade política foi o comportamento personalista e mandonista adotado a partir da
década de 1970.
A personalidade de Hamilton Rios, essa sim fez diferença, porque ele era populista, mais do que seu antecessor, por exemplo, que era um médico, um cidadão muito calmo, com estilo assim muito pacato, Dr. Pinheiro, e o Hamilton Rios um sujeito mais populista de comer farofa nos motores de sisal, de ir pra aquelas farras dançar com as mulheres dos compadres ou aquelas pessoas simples. Então ele era mais populista, mais perseguidor, você pode olhar que médicos, professores e demais servidores públicos estaduais que não comungavam com as idéias de Hamilton Rios, que não obedeciam politicamente Hamilton Rios eram expulsos de Conceição do Coité, eram transferidos pra municípios distantes, o mais distante possível e tinham uma alternativa de ou se submeter a isso ou sair do serviço público. (…) esse estilo pessoal de Hamilton Rios fez toda diferença, porque ideologicamente eles não tinham muita diferença não, uma vez que todos seguiam os poderosos de plantão, que eram os militares e o governador biônico indicado pelos militares, de maneira que o que houve de diferença
8 Ver o livro Conceição do Coité e os Sertões do Tocós. 9 Para maiores informações sobre prováveis possibilidades de origem, os problemas e imperfeições construídos pela divisão Vermelhos x Azuis, consultar Francisco de Assis Alves dos Santos, Na mira dos coronéis: Cartas a um Professor Coiteense, p. 39-45.
35
foi a personalidade de Hamilton Rios, populista, mandão, perseguidor. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)
Hamilton venceu Misael Ferreira para o mandato de 1973-1976 e de 1983-1988,
embora ambos apoiassem a ARENA dos militares. Nesse intervalo o executivo foi governado
por Walter Ramos Guimarães (1977-1982), apoiado inicialmente pela facção de Hamilton
(seu sobrinho, Éwerton Rios, casara-se com a filha daquele) e beneficiado pela emenda do
deputado Anísio de Souza que a Câmara aprovou em setembro de 1980, adiando as eleições
municipais daquele ano pra 1982. Walter era, do mesmo modo, comerciante do sisal e no seu
governo de 6 anos privilegiou reforma de estradas e construção de represas na zona rural
(apesar de muitas serem ofertadas como propriedades privadas em todo município). Seu
governo destacou-se também pela pavimentação de ruas em Coité e em povoados, a
construção do Hospital Nossa Senhora da Conceição (hoje Almir Passos) na Sede e postos
médicos em alguns povoados, a implantação de uma torre repetidora de TV e a construção do
Centro de Abastecimento em Coité.
O apoio de Walter ao governador Antonio Carlos Magalhães era incondicional, até
porque sua administração dependia da bajulação ao coronel estadual. Hamilton, por outro
lado, não desejava perder o gosto pela política, e cobiçava manter-se como autoridade na
política municipal ainda na Gestão Walter. Sua interferência política causou um período de
embate entre os dois, e o prefeito passou a apoiar Misael Ferreira, candidato rival de
Hamilton, para sua sucessão em 1983.
A revista Estados e Municípios10 publicou o evento de 10 de junho 1982, na
Associação Cultural Castro Alves, no qual Walter Ramos foi premiado com o título de
“Prefeito Expressão Nacional 81/82” pelo jornal Correio de Recife (cuja tendência, expressa
pelo seu representante Viriato Rodrigues, sinaliza uma completa afinidade com a Ditadura).
Todas as autoridades presentes (municipais, estaduais e federais) reafirmaram a necessidade
de eleger Misael Ferreira como sucessor para o executivo, e o próprio Walter encerra seu
pronunciamento com um apelo aos fiéis eleitores: “A única retribuição que quero de todos
vocês é a escolha de Misael Ferreira, em 15 de novembro para prefeito da cidade. Assim
procedendo, vocês terão a minha eterna gratidão”. Como História não é Ciência Exata,
Hamilton venceu nas urnas e ficou no Executivo até 1988.
Nas eleições seguintes, Hamilton passou o trono para seu sobrinho, Éwerton Rios
D’Araújo Filho (Vertinho), que é o campeão de mandatos, 1989-1992, 1997-2000 e 2005-
10 Revista da Associação Brasileira de Municípios, Ano VII – Nº. 58 - 1982
36
2008. Eleito nas duas primeiras pelo Partido da Frente Liberal (PFL) e na última pelo Partido
Progressista (PP), Vertinho migrou em 2009 para o Partido da República, liderado no Estado
por César Borges. Hamilton também treinou seu filho, Wellington Passos de Araújo (PFL), o
Tom, para uma gestão (2001-2004) que se misturou a escândalos, como o financiamento da
COTESE, fábrica do seu pai e do irmão Marcelo Passos, com recursos públicos do município
e do Estado (irregularidade constatada pelo Ministério Público) ou o fato do prefeito se
ausentar com freqüência da cidade. O fato é que Tom terminou seu governo com baixa
popularidade (problema indissolúvel até hoje) e a sucessão foi ocupada pelo terceiro mandato
de Éwerton Rios. Para o interstício entre 1993-1996, Coité elegeu Diovando Carneiro Cunha
como prefeito, um dissidente do grupo de Hamilton Rios que, mesmo vencendo “o grande
chefe”, sua gestão não pode ser entendida como uma ruptura feita pela esquerda, afinal sua
orientação política era uma reprodução da dos seus antecessores, e a relação de favores entre
sociedade e poder público se repetia – como se repete até hoje – de modo intacto.
Após 40 anos de Era Mitinho, podemos constatar, entretanto, que o município está
longe de solucionar problemas graves administrativos. Além da enorme concentração de
renda (a cidade tem o segundo maior PIB do Território do Sisal e, ao mesmo tempo, 10 mil
famílias cadastradas no Programa Bolsa Família) há déficits em áreas fundamentais de uma
administração, como a educação básica, que ocupa a 357º posição dentre os 417 municípios
baianos11. Sobre os problemas municipais, Assis afirma que:
Se você for analisar um município com 63 mil habitantes que não tem um único hospital público, (…) os estudantes tem uma nota média 2.6 nos exames sérios que são realizados pelo Estado e pelo Governo Federal pra aferir a capacidades dos alunos, se você for olhar um município que detém uma Escola Agrícola há vinte e tantos anos e que nunca formou um técnico agrícola, que possui um CAIC que seria uma escola em tempo integral, em tese, que tem toda uma estrutura física, que tá depredada e que nunca funcionou como escola em tempo integral, enfim, se você for olhar como andam as estradas, como andam as aguadas do município, se você olhar como são estabelecidas, como são realizadas, como se dão as relações da sociedade civil organizada, da população em geral com o poder público, aí você vai concluir que é um desastre administrativo. Agora, o grupo teve competência, entre aspas, pra se manter no poder por quatro décadas porque trafica influência nos órgãos públicos, manipula empregos públicos, adotou um esquema administrativo patrimonialista, enriqueceu-se, fortaleceu suas empresas, conquistou empresas à custa do erário e com isso tem muitos empregos, muito dinheiro, usa… usa arbitrariamente os órgãos e o dinheiro
11 Disponível em http://www.inep.gov.br/download/Ideb/Resultado/republicacao/Divulgacao_4serie_Municipios.xls, acesso em 8 de janeiro 2009.
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público, públicos no caso, e com isso se perpetua no poder, comprando votos, comprando apoiamentos e fidelizando os eleitores mais carentes através duma ambulância, da oferta de um emprego público. Enfim, é dessa maneira, com o desastre coletivo, mas com o sucesso grupal daqueles que detém o poder que eles tem se mantido durante quarenta anos. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)
Segundo Assis, até o final da década de 1990, a oposição ao grupo de Hamilton Rios,
feita pelo grupo dos Azuis (especialmente por Misael Ferreira), não fazia oposição
sistemática, fiscalizando abusos de poder, do dinheiro público e desvios de recursos pelos
Vermelhos, nem mesmo uma oposição efetiva na Câmara. Ao invés de uma regularidade, a
esquerda só se organizava às vésperas das eleições, favorecendo novas vitórias da facção de
Hamilton. A histórica oposição de Misael caiu por terra nas eleições 2000, quando apoiou
Tom, filho do seu principal adversário, Hamilton Rios. Por um lado, esse fato recrudesceu o
poder da direita (PFL e o Partido Progressista Brasileiro), mas por outro foi o momento em
que o PT aproveitou para delimitar o espaço de uma nova – e diferente – esquerda.
Foi um vácuo muito bem aproveitado pelo PT, foi ali que o PT teve candidato próprio, e a partir dali o PT, em 2004, veio como vice e em 2008 já veio com candidatura própria obtendo mais de 42%, de maneira que eu acredito que pela primeira vez os Vermelhos estão tendo uma oposição que faz política o tempo inteiro, os quatro anos, que faz oposição, que vai à Justiça, que denuncia abusos e que visita a população. Enfim, uma oposição que de fato e de direito atua. Isso tem deixado os Vermelhos preocupados, olha que eles estão começando a se dividir. A gente vai assistir essa divisão nas próximas eleições agora em 2010, (…) uma característica, talvez a principal, do grupo dos Vermelhos é que eles são monolíticos, eles nunca se dividiram numa eleição municipal, a gente não sabe se eles vão conseguir levar adiante isso na eleição de 2012. Mas que eles estão tendo, pela primeira vez, uma oposição atuante, que é o PT, isso estão, eles estão tendo o PT nos calcanhares deles e eles temem o PT em 2012. Agora não pense o PT que vai ser fácil derrubar alguém que tá há 40 anos no poder com todo no round, não vai ser fácil, mas vai ser uma campanha boa em 2012. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)
Historicamente, as grandes dificuldades das oposições têm sido justamente a
inexistência de uma liderança forte – excetua-se aí a organizada oposição pensada pelo Dr.
Yêdo, mas que veio a falecer antes das eleições de 1988 –, o enfrentamento da máquina
pública e do poder econômico, utilizados descabidamente pelo grupo de Hamilton Rios, e,
finalmente, o fato de que a oposição nunca repetiu seu candidato em duas corridas eleitorais
consecutivas. Segundo Assis, o PT de Conceição do Coité tem encontrado no passado as
lições para a construção de sua luta e de uma nova administração.
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A Questão do Desenvolvimento
As reorientações ocorridas nas esferas políticas e econômicas do Brasil a partir da
chegada de Getúlio Dornelles Vargas à presidência devem ser observadas, necessariamente,
como uma decorrência de influências internacionais. O recuo da estrutura agrário-exportadora
e a incentivo à proeminência urbano-industrial para o país a partir de 1930 explanava as
intenções de viabilizar um desenvolvimento autônomo e nacional, onde a industrialização
fosse capaz de substituir as importações e dinamizar a própria economia brasileira.
A crise de 29 obrigou os Estados cuja economia assentava-se fundamentalmente na
exportação de produtos primários (como o caso do Brasil) a tomar medidas de proteção de
suas economias. Mas além de uma política de valorização do café, o Estado brasileiro tornou-
se um participante altamente ativo na economia do país. Segundo Gil Célio de Castro
Cardoso, no livro A Atuação do Estado no Desenvolvimento Recente do Nordeste, fatores
como a fragilidade da nascente burguesia, a fragmentação cultural e a baixa coesão da
sociedade, a forte tradição paternalista/cartorial e a restringida consciência histórica dos
segmentos sociais foram fundamentais para a sobreposição do Estado nos rumos da economia
do Brasil.
O golpe de 1930 tinha colocado no poder um grupo bastante heterogêneo e com fortes
antagonismos de interesses, já que Vargas tivera que angariar apoio entre diversos setores da
política nacional, entre grupos de latifundiários e oligarquias regionais. Como solução para as
intranqüilidades e as pressões desse panorama, o Estado optou por uma intervenção
econômica centralizadora, autoritária e técnico-burocrática, como vemos no dizer de Gil
Célio:
Assim, sob a bandeira da defesa dos interesses das massas populares, mas efetivamente representando os interesses da burguesia, o Estado assume a condução do processo de industrialização nacional, pois a burguesia brasileira não dispunha de recursos suficientes para conduzi-lo de forma autônoma, dada sua baixa capacidade de investimento. Esse fato fará com que essa industrialização se torne dependente da ação do Estado, que naquele momento era o único que possuía meios de promover a captação e distribuição dos recursos necessários à dinamização do setor industrial, reforçando o caráter centralizador vivenciado na experiência brasileira. (CARDOSO, 2007, p. 86)
39
Montar as bases para o desenvolvimento industrial não era tarefa fácil; requeria-se
aumento de capital, tecnologia sofisticada e comprometimento empresarial. O modelo de
industrialização proposto pelo Brasil foi até mesmo defendido, posteriormente, pela Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) e serviu como referência para quase todos
os países latino-americanos, bem como para experiências em muitos países subdesenvolvidos
em todo o mundo.
Com o fim da Segunda Guerra ocorreu um recrudescimento da intervenção feita pelas
economias mundiais, tanto as desenvolvidas como as emergentes. A demanda por
rejuvenescimento fez com que o “estado mínimo” cedesse espaço para a progressiva
intervenção do Estado. A propósito, esta intervenção era também reflexo imediato do mundo
bipolar existente no segundo pós-guerra.
Durante esse período o Estado deixa de ser apenas um agente regulador do sistema econômico, conforme os ditames da teoria liberal, assumindo também os papéis de planejador, financiador e empresário no processo de desenvolvimento, situação que se manteve praticamente inalterada até a década de 1980. (CARDOSO, 2007, p. 23)
No entanto, Gil Célio destaca que o intervencionismo estatal sustentado no
planejamento, como veículo para promover a industrialização, só ocorreu no Brasil com o
Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. O país não possuía as condições industriais para
sustentar-se como Estado de Bem Estar Social e, portanto, optou pela intervenção
desenvolvimentista. Com JK, o governo gerenciava a entrada de capitais externos privados,
orientando as prioridades de investimento e a associação deste com o capital privado nacional.
Segundo o autor, o tempo determinou as regras para a intervenção estatal; ou seja, quanto
mais tardio foi o desenvolvimento de um país maior foi a presença do Estado atuando como
financiador, empresário e planejador.
Ao longo das décadas de 40 e 50 a industrialização planejada pelo Estado recebeu
novos incentivos. Os empreendimentos centralizadores eram tidos como requisito para o
crescimento econômico do Brasil e para garantir à sociedade melhores taxas de qualidade de
vida.
O Brasil da década de 60, no entanto, foi incapaz de sustentar o acelerado retornou das
políticas econômicas de até então. Muito pelo contrário, o que caracterizou esta década foi o
declínio dos crescimentos do produto interno e a incômoda pressão inflacionária, provocando
40
redução da atuação do Estado e sua fraqueza perante às reivindicações dos diversos grupos
econômicos da sociedade.
Sob o comando dos militares, a política econômica do Brasil objetivou basicamente
reduzir os níveis de inflação, conter os déficits públicos e incentivar novos investimentos
estatais. Como resultado, podemos concordar que o chamado milagre econômico dos anos 70
consolidou um processo de industrialização iniciado nos anos 30 que, apesar de tardio e
priorizando a ordem quantitativa de crescimento, conquistou relativo êxito.
Entretanto, o desenvolvimento substitutivo das importações feito pelo Brasil provocou
uma série de problemas sem solução até hoje. Em primeiro lugar, privilegiou-se o crescimento
econômico na região Sudeste, ocasionando retardamento e estagnação dos campos
econômicos e políticos nas outras regiões (especialmente nas Regiões Norte e Nordeste). Os
lucros do desenvolvimento sob as ordens do Estado e como plano de integração nacional
foram repartidos basicamente por uma parcela minoritária da sociedade: as elites tradicionais
do agro-negócio e os industriais concentraram as riquezas do país à custa da pobreza da
maioria dos brasileiros.
Além disso, o Estado não permitiu que a participação social se fizesse presente nos
destinos do desenvolvimento. Era como se a participação da sociedade fosse nociva aos
propósitos tecnocráticos e quantitativos advogados pelo governo. Esse juízo favoreceu a um
crescimento com alarmantes desigualdades dentro de uma mesma Região e comprometeu o
próprio dinamismo econômico. Dentro do país, só uma reduzida parcela da sociedade possuía
condições de demandar os produtos oriundos da fabricação industrial em série. Com relação
às desigualdades provocadas por este desenvolvimento, Gil Célio aponta que:
Este crescimento não se mostrou capaz de alterar a realidade de desigualdades vivenciadas no País, que continuou a ser marcado pela injustiça social, sobretudo quando se trata de variáveis como distribuição de renda e desigualdade regional. (CARDOSO, 2007, p. 96)
Os Anos 80 e o Novo Paradigma Nacional para o Desenvolvimento
Os anos de 1980 foram marcados tanto pela redemocratização política do Brasil como
pela crítica ao modelo de intervenção tecnocrática cultivada pelo Estado. O
desenvolvimentismo estava condenado pela crise do autoritarismo, pela incapacidade de
manter o ritmo de expansão econômica, pelo endividamento do Estado, pela insuficiência do
41
aparelho fiscal, pelo quase imobilismo dos recursos externos e pela incapacidade de abastecer
os interesses dos vários grupos sociais descontentes com a política econômica nacional.
Na perspectiva de solucionar os problemas, as promessas do neoliberalismo
(encabeçado pelos Estados Unidos e por organismos internacionais como o Banco Mundial e
o FMI) nortearam a retirada do Estado da economia e a adesão aos princípios do mercado
livre. A sociedade civil, por outro lado, também é convocada a protagonizar escolhas feitas na
economia e na política.
Nesse novo contexto, cabe à sociedade civil, um papel de destaque, cumprindo-lhe, entre outras coisas, a tarefa de macro-regular as estruturas do poder econômico e do poder político, acompanhando e interagindo com estes, num flagrante processo de complementariedade às ações do Estado e do mercado, ainda não observadas na história, materializadas a partir das seguintes ações: co-regulação, apresentação de propostas e soluções no nível local e, fundamentalmente, o desenvolvimento da cidadania com a criação de espaços éticos e políticos nas comunidades. (CARDOSO, 2007, p. 24)
A descentralização das políticas públicas estabelecida pela Constituição de 1988
favorecia esse cenário, já que os municípios passariam a desempenhar na esfera local funções
que até o momento era de responsabilidade exclusiva dos órgãos de planejamento do Estado.
A década de 1990 foi palco da materialização de inumeráveis canais de participação social,
substanciada na democratização do poder, no fortalecimento e na autonomia dos grupos
sociais, autorizados a opinar acerca dos deveres, dos limites, das prioridades do Estado. Nessa
nova conjuntura, as premissas democráticas garantiam que a sociedade teria o direito de:
Estabelecer as formas da ação do Estado em áreas essenciais para a estabilidade societária e o desenvolvimento; requerer eficiência na administração e prestação de serviços públicos; exigindo representatividade e participação no processo político, legitimado pela escolha democrática dos agentes dos poderes públicos, por sua submissão ao interesse coletivo e pelo controle sóciopolítico de suas decisões. (CARDOSO, 2007, p. 103)
A partir da redemocratização, os espaços de decisões políticas no Brasil integraram,
quase que como regra, as idéias de participação social e sustentabilidade às suas pautas de
discussões. Emergia, assim, uma nova página política na qual o Estado buscava dialogar com
os atores sociais (organizados), cujo intento maior seria proporcionar alternativas para
prosperidade, participação, transparência e imparcialidade (CARDOSO, 2007, p. 104).
42
Assim, a estratégia de desenvolvimento local aparece como uma alternativa de se criar um entorno favorável à autogestão das comunidades, fortalecendo o movimento comunitário através da delegação de poderes, que ganham força e credibilidade na fiscalização do poder público, ao mesmo tempo em que contribuem para: a sustentabilidade (entendida nas suas mais diversas dimensões) do local definido; a construção de um novo padrão de gestão pública; e o surgimento de uma nova relação entre Estado e Sociedade. (CARDOSO, 2007, p. 24)
Como vimos, o movimento comunitário, como espaço para a participação democrática
da sociedade, ganha ênfase no novo paradigma de desenvolvimento. Certamente, as
influências dessa nova tendência política e social contribuíram para a experiência de
descentralização política e administrativa ocorrida no governo na Frente Popular, na gestão de
Jarbas Vasconcellos como prefeito da cidade de Recife, entre 1986 e 1988.
No livro Poder Local e Participação Popular, José Arlindo Soares e Salvador Soler
Lostao destacam que a experiência de Recife, com a proposta de Prefeitura nos Bairros, era
decorrência da necessidade de ruptura com o passado autoritário, tecnocrático e impopular
dos militares. Criaram-se canais institucionais de participação da sociedade, nos quais os
movimentos sociais organizados pudessem dialogar com os órgãos da Prefeitura de Recife,
interferindo nas decisões, na descentralização e na democratização da gestão municipal. A
cada região da cidade cabia definir as prioridades do governo e fiscalizar as ações municipais,
sem distinções de ordem política, como nos mostrar Arlindo Soares:
O poder municipal considerava necessário a criação de canais institucionais capazes de incorporar todos os segmentos organizados da população, respeitando a diversidade de interesses e a pluralidade política. (SOARES, 1992, p. 29)
Segundo Salvador Soler, o Brasil redemocratizado era resultado de uma “transição
hegemônica”, uma vez que as instituições provenientes das mudanças ainda espelhavam a
cobiça pelo status quo aspirado pelos grupos sociais hegemônicos ao longo da Ditadura.
Apesar disso fazia-se necessário mudar o olhar sobre o Estado após 1985. Ao contrário da
visão difundida nos anos anteriores, era preciso, nesse novo momento político, não perceber o
Estado como inimigo, insensível ao diálogo e adverso às propostas democráticas de
participação popular. Pelo contrário, a participação social prometia retribuir os seus agentes
com novos espaços políticos de confrontação, de diálogo e de ganhos concretos.
Assim como Recife, todo o Nordeste passou a incorporar, principalmente ao longo da
década de 1990, a estratégia da participação como condição necessária para edificar a
43
sustentabilidade, para minorar os impactos excludentes da globalização, para gerar o
desenvolvimento local, a inclusão social, novos empregos ou mesmo melhorar a qualidade de
vida da população engajada nesse projeto que atrelava sociedade e poderes públicos.
Esta nova institucionalidade é construída pela formatação de parcerias entre os diversos atores sociais envolvidos no processo de desenvolvimento local, com destaque para o Estado, sobretudo o poder público local, que deve exercitar uma municipalidade aglutinadora, animando o desenvolvimento local no nível de atividades produtivas que visem a geração de emprego e renda, e não simplesmente atuar como um mero repassador de escassos recursos percebidos do poder central. A experiência demonstra que o engajamento do elemento público, legal e legítimo, na formatação de alianças concretas para problemas concretos, pode fazer a diferença no processo de desenvolvimento local. (CARDOSO, 2007, p. 115)
Desse modo, podemos dizer que o cidadão-participante desse processo não é um
simples coadjuvante. Mesmo com a presença do Estado, ou do poder público municipal, as
relações traçadas pelo desenvolvimento local garantiriam aos sujeitos o papel de protagonista
dentro de seu ambiente local, dentro das decisões relativas às demandas locais. A
institucionalização do desenvolvimento não deveria excluir o poder de expressão,
participação, decisão e usufruto democrático daquilo que pertencia aos sujeitos envolvidos.
As políticas governamentais têm incorporado, desde então, o tema da participação
popular. Contribui para isso não somente as pressões sociais, mas especialmente pela sua
compreensão enquanto uma facilitadora dos planos de desenvolvimento e da gestão
governamental (notadamente no nível local de poder). Entretanto, a larga participação em
canais institucionais acabou neutralizando a própria capacidade de enfrentamento e
reivindicação mais intensa dos segmentos sociais. As muitas promessas de incentivo à
participação acabaram colocando as inumeráveis exigências populares embaixo do tapete
político.
O entusiasmo inicial da participação, hoje, tem diminuído. Em parte porque, na compreensão do Estado como “ente” inimigo, a participação tem sido entendida como alternativa de luta que substitui as mobilizações de rua. Nesse sentido, revelam-se como ineficientes para obter melhores resultados concretos as reivindicações formuladas pelas associações de bairro. É como ter entrado na boca do leão e ter sido engolido por ele (SOLER, 1992, p. 78)
A intervenção federal no Nordeste: concentração de renda e problemas regionais não
esgotados.
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Segundo Gil Clécio, a intervenção do Estado no Nordeste do Brasil ocorreu a partir de
duas problemáticas: a seca e a carência de infra-estrutura econômica. Entre o último quarto do
século XIX e a primeira metade do século XX, a seca foi preocupação central (fase
hidráulica), cabendo à Inspetoria de Obras contra as Secas (IOCS) – transformada no
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas em 1945 – e à Companhia Hidrelétrica do
São Francisco (CHESF) solucionar os problemas das secas e do abastecimento de energia,
respectivamente. A partir da década de 1950 privilegiou-se as tentativas de impulsão para a
economia da região (fase econômica), sob comando das ações da Superintendência para o
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Banco do Nordeste do Brasil (BNB).
Mesmo sendo uma região historicamente importante na economia brasileira, o
Nordeste ainda é marcado por uma estrutura sócio-econômica de extrema concentração de
renda, consequente da monocultura, de grandes latifúndios e da produção vinculada à
exportação. Ao mesmo tempo a sua concentração de pobreza e de injustiças sociais é
assombrosa. As tentativas proclamadas pela fase hidráulica foram ineficiente de sanar o brutal
quadro dos problemas sociais e econômicos. O contexto sócio-político alimentava a
dependência, o trabalho exploratório e as desigualdades, e os senhores rurais, ou seja, os
coronéis, mantinham-se como modernos capitães donatários na defesa dos seus eleitores com
o apoio dos industriais da seca (oligarcas algodoeiros e pecuaristas nordestinos).
No Nordeste do segundo pós-guerra, o governo brasileiro estabeleceu novas diretrizes
para o desenvolvimento regional, devido especialmente ao reconhecimento de que os
problemas não solucionados pela fase hidráulica tinham razões bem mais profundas. A
experiência havia ensinado que a preocupação com as secas nordestinas não tinha sido capaz
de solucionar os amplos problemas econômicos e estruturais da Região. A seca, assim, era tão
somente um elemento agravante do atraso nordestino, fruto do próprio modelo de
desenvolvimento econômico instituído nacionalmente.
O surgimento do BNB (1952) e da SUDENE (1959) como organismos responsáveis
pelo desenvolvimento regional atendia, teoricamente, à preocupação com a geração de renda,
emprego, financiamentos e produção econômica no Nordeste. As duas instituições acabaram
dialogando seus objetivos e suas atuações, apesar de especificidades históricas que as
acompanharam. O BNB atravessou cinco períodos inteiramente distintos em sua organização
e desempenho desde sua fundação, mas conseguiu manter ou mesmo elevar as taxas de
financiamentos e investimentos até em momentos difíceis. Na década de 60, porém, a
extinção do Fundo das Secas (única fonte estável do BNB) e a negligencia para com o
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problema regional confirmada na Constituição de 1967 empurrou o BNB para sua fase mais
embaraçosa. A SUDENE, por outro lado, tinha a missão de planejar o desenvolvimento
regional, coordenar e acompanhar a realização desse planejamento, que era executado por
vários órgãos públicos da Região (como o Banco do Nordeste). A SUDENE privilegiou
inicialmente a realização de pesquisas sobre os recursos naturais do Nordeste e os
investimentos em áreas de infra-estrutura econômica, como energia elétrica e transporte. O
dinamismo proveniente dos investimentos do Estado incentivou inclusive o aumento das
atividades privadas, e o Nordeste apresentou nas décadas de 70 e 80 as mais elevadas taxas de
crescimento no PIB do Brasil, passando de 13,2% em 1960 para 17,1% em 1990 (salto de
US$ 8,6 bilhões para US$ 50 bilhões).
Apesar do avanço econômico e industrial do Nordeste, as mudanças daí decorrentes
foram quase que insensíveis aos problemas da maior parcela dos nordestinos. A própria
intervenção foi incapaz de esconder suas intenções heterogêneas para o desenvolvimento da
Região: nas áreas não-dinâmicas prevaleceu as relações assistencialistas, como a distribuição
de cestas básicas e as frentes de trabalho, enquanto que a política de financiamento, incentivos
fiscais e de créditos alimentavam os projetos industriais e a implantação de empresas nas
capitais litorâneas. Como resultado, o Nordeste aumentou sua participação industrial no país à
custa de um desenvolvimento para poucos. As desigualdades sociais aumentavam ao lado da
ampliação do setor industrial, já que as grandes empresas, além de sediadas basicamente nas
metrópoles, utilizam tecnologias modernas que dispensavam a abundante mão-de-obra da
Região. Assim, as elites nordestinas seguiram trocando benefícios com o Estado, enquanto
que o discurso do regionalismo realimentava a concentração de riqueza pelas escolhas
políticas, sociais e econômicas de uma minoria12, enquanto as medidas distributivas seguiam
com o caráter assistencialista.
Como cúmplice das elites e dos projetos industriais, a intervenção da SUDENE foi
criticada, em resumo, pela pouca atenção à agricultura, pelos incentivos fiscais sem geração
de empregos e pelos investimentos excessivos no litoral (especialmente em Recife, Salvador e
Fortaleza). Desde a década de 1970 a SUDENE começa a perder sua força de agência federal
para o desenvolvimento do Nordeste e, após longo período de marginalização, chega à
extinção em 2001. O BNB, após quatro décadas de mudanças em sua organização torna-se,
com a reestruturação de meados de 1990, a instituição financeira referencial para o
desenvolvimento do Nordeste, atuando como maior intermediário do governo federal na
12 Sobre os discursos regionalistas que contrapõe Nordeste e Sul-Sudeste, ver Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A invenção do nordeste e outras artes, especialmente a parte “Espaços da Saudade”.
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Região e preocupando-se – pelo menos no nível do discurso – mais com desenvolvimento
sócio-econômico do que com as atividades de banco.
O livro de Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista – O ornitorrinco13, traz
importantes contribuições para compreensão de questões como o dualismo entre
desenvolvimento e subdesenvolvimento e a relação dialética entre a concentração de renda e o
trabalho informal, perceptível em praticamente todos os espaços de convivência social. No
campo econômico, sua obra critica o dualismo da Cepal, que considerava os setores modernos
e tradicionais de uma sociedade como campos separados. A instituição entendia o
subdesenvolvimento das nações latino-americanas como resultado da dependência financeira
externa, do limitado mercado interno e da concentração fundiária. Como o desenvolvimento
econômico passaria por uma evolução, o planejamento e os investimentos industriais do
Estado permitiriam pular etapas rumo à condição de desenvolvido.
Francisco de Oliveira rompe radicalmente com essa interpretação e defende a tese da
simbiose, da coexistência de condições adversas, onde o que é considerado “moderno”
dialoga – ou mesmo se alimenta – do que é tido como “atrasado”. Para o autor, o conceito de
subdesenvolvimento não pode ser explicado somente pela incompatibilidade com um pólo
“moderno”, uma vez que ambos são fatores presentes em todos os sistemas. Opõe-se à noção
de que o subdesenvolvimento latino-americano (e a conseqüente dependência econômica) é
um estágio evolutivo para as condições mais avançadas do capitalismo, especialmente porque
essa visão reducionista esconde os conflitos, as desigualdades e os problemas internos desses
países ao apregoar o subdesenvolvimento como questão internacional.
Ao enfatizar o aspecto da dependência – a conhecida relação centro-periferia –, os teóricos do “modo de produção subdesenvolvido” quase deixaram de tratar os aspectos internos das estruturas de dominação que conformam as estruturas de acumulação próprias de países como o Brasil: toda a questão do desenvolvimento foi vista pelo ângulo das relações externas, e o problema transformou-se assim em uma oposição entre nações, passando despercebido o fato de que, antes de oposição entre
13 A obra é composta de duas produções. A primeira, Crítica a razão dualista, foi escrita em 1972, e Francisco analisa a economia brasileira, seu processo de industrialização e a luta contra o subdesenvolvimento. Em O Ornitorrinco, publicado em 2003, o autor, ex-petista ativo, condena a configuração herdada da sociedade brasileira e aquilo que o Partido dos Trabalhadores veio a ser ao chegar ao poder. Francisco critica a formação de uma nova classe social no país, comandada, de um lado, por trabalhadores petistas como operadores previdenciários, e, de outro, pelo núcleo duro do PSDB nas funções técnicas e econômicas do setor bancário. Decepcionando os socialistas (e derrotando as apostas da sociedade), o governo de PT é comparado ao ornitorrinco, bicho disforme e de difícil descrição, que alimenta uma truncada acumulação de capital financeiro, o controle dos fundos públicos e não desfez as amarras do subdesenvolvimento. Francisco de Oliveira tem publicações recentes sobre o Governo Lula, mas seu pensamento tornou-se porta-voz das dissidências do PT, acreditando que deveria haver um Governo revolucionário. Recentemente contribuiu para fundação do Partido Socialismo e Liberal (PSOL) e é criticado pelo radicalismo que previa em Lula e pela sua oposição ao Governo.
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nações, o desenvolvimento ou o crescimento é um problema que diz respeito à oposição entre classes sociais internas. (OLIVEIRA, 2003, p. 33)
Francisco destaca a importância que os discursos de “integridade nacional”, “interesse
nacional”, “planejamento” e outros tiveram para reduzirem a ação política da luta de classes,
na medida em que marginalizava interrogações sobre as intenções reais do desenvolvimento.
Cabe aí lembrar que a intervenção do Estado na dimensão econômica sempre elegeu a
empresa industrial como centro dos investimentos, do sistema, e a concentração como
conseqüência inevitável.
A desigualdade oriunda da expansão industrial pós-30 encontrou uma originalidade
interessante no caso brasileiro, já que as novas relações produzidas a partir de então não
modificam integralmente a estrutura arcaica, e as relações de exclusão social e econômica são
assentadas como um plano de fundo imutável. Priorizando seu quinhão e seus interesses, o
governo – e a expansão capitalista – nunca cedeu às classes sociais mais pobres muitas
condições de compartilhamento da produção. Logo, a exclusão foi sendo naturalizada pelo
dinamismo capitalista.
O sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração de renda, da propriedade e do poder, em que as próprias medidas de intenção corretiva ou redistributivista – como querem alguns – transformaram-se no pesadelo prometeico da recriação ampliada das tendências que se queria corrigir. (OLIVEIRA, 2003, p. 60)
No entanto, o fosso abismal que separava economicamente as diferentes classes
sociais não delimitava as regras de contato e convivência entre elas. Ou seja, a chegada da
expansão capitalista e de uma nova estrutura econômica conviveu harmoniosamente com
relações não-capitalistas de reprodução do sistema e concentração de renda, incentivando, por
exemplo, a existência de uma excedente mão-de-obra não-especializada dedicada aos
trabalhos informais.
A “especificidade particular” de um tal modelo consistiria em reproduzir e criar um larga “periferia” onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma de meio de sustentação e alimentação do crescimento dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema. (OLIVEIRA, 2003, p. 69)
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O problema, portanto, não pode ser explicado pelo discurso do subdesenvolvimento;
as desigualdade socioeconômicas não são, obviamente, questões inerentes a um espaço de
adaptações darwinistas. Por outro lado, a pobreza não é somente herança colonial, longínqua,
mas componente irreversível do desenvolvimento moderno do país, que produziu, não por
ação, mas por intenções políticas, a dominação de elites que estavam atentas para forjar
explicações moralistas sobre as discrepâncias entre as classes. Não por acaso, há quem
acredite que a concentração de renda é premio daqueles que trabalham muito e honestamente.
Na balança capitalista não existe engano, nem mágica, nem misericórdia; há riqueza nas mãos
de poucos e carências nas mãos de muitos.
Assim, os meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforo não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização. Algo análogo vale para as escleroses regionais, cuja explicação não está no imobilismo dos tradicionalistas, mas na incapacidade paulista para forjar uma hegemonia modernizadora aceitável em âmbito nacional. (OLIVEIRA, 2003, p. 23)
Assim, segundo Francisco de Oliveira, o subdesenvolvimento representa “a forma de
exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia”; ou seja, eliminando as visões
dicotômicas, a condição subdesenvolvida são os espaços não-centrais do capitalismo
desenvolvido, isso tanto no plano internacional, nacional ou local. Para ser mais radical, pode-
se afirmar que o subdesenvolvimento não deve ser utilizado enquanto dimensão social,
geopolítica e histórica de interpretação e reflexão, mas como discurso legitimador para as
diferenças, como explicação ludibriosa a serviço dos dominadores ou como justificativa
deturpada, porém estratégica, para indicar às classe pobres as condições de exclusão
previamente definidas. Para o discurso das elites, o subdesenvolvimento serviu como óculos;
para as classes pobres, serviu como viseira.
Finalmente, não precisamos ir muito longe para entendermos que padrões de vida
desenvolvidos sempre dividem espaço com exclusões e privações tipicamente
subdesenvolvidas. No jogo dos interesses econômicos e políticos, a concentração de renda de
uma cúpula minoritária provoca proporcional pobreza aos outros setores sociais. Nesse
sentido, a riqueza dos grandes chefões de Conceição do Coité, como Alex da Piatã, Tom,
Hamilton Rios ou os demais membros do topo piramidal da economia, é resultado de uma
construção econômica e política desigual. Nessa mesma teia, mas no extremo oposto,
encontramos outros segmentos que são negligenciados ou ignorados; só como exemplo
podemos nos lembrar – embora sem desmerecer nenhum deles – os serventes de motores de
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sisal, os catadores de materiais recicláveis ou os vendedores de picolé de Coité. A diferença
entre ambos os grupos é que a concentração de renda os colocou em pólos antagônicos,
díspares e, por vezes, conflituosos. De um lado encontramos mansões luxuosas, Hillux e
renda excessiva, numa lógica excludente que camufla uma intencionalidade política e
econômica que procura justificativa numa espécie seleção natural vencida pelos ricos. O
outro lado da moeda é a dependência, a mendicância, o trabalho informal, a subserviência
política e a conseqüente escassez de perspectivas provocada pela igual carência de políticas
públicas abrangentes.
O resultado imediato dessa concentração de renda é, como já frisei, a impossibilidade
da comunicação entre os interesses das elites (do Brasil, do Nordeste ou de Coité) com os
grupos sociais historicamente segregados. Enquanto as intenções das elites normalmente têm
a cumplicidade dos interesses políticos, e vise-versa, as classes baixas não têm escolha senão
pegar carona no bonde das privações e das exclusões, ao mesmo tempo em que procura – ou
deveria procurar – caminhos que tragam mudanças favoráveis. Sobre esse ponto, Francisco de
Oliveira conclui que:
A luta pelo acesso aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas transforma-se necessariamente em contestação ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva da acumulação transforma-se necessariamente em repressão. Essa dialética penetra hoje os mais recônditos lugares da vida nacional, em todas as suas dimensões, em todos os seus níveis: qualquer lugar, qualquer atividade, é hoje um campo de batalha (…). (OLIVEIRA, 2003, p. 119)
O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Estadual
O Programa Produzir é uma proposta executada pelo governo da Bahia, desde a
década de 1990, com ações destinadas prioritariamente ao combate da pobreza rural. Iniciada
durante o primeiro governo de Paulo Ganem Souto, ele faz parte de uma política mais ampla,
desenvolvida pelos Estados do Nordeste, chamada de Programa de Combate à Pobreza Rural
(PCPR). O financiamento – sem reembolso – das atividades advém do Tesouro do Estado e de
empréstimos do Banco Mundial, enquanto que a parte técnica é desenvolvida pela Companhia
de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), uma empresa ligada à Secretaria do
Desenvolvimento e Integração Regional do Estado (Sedir).
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O Produzir desenvolveu três linhas de atuação. A primeira foi o Programa de Ação
Comunitária (PAC), que financiou, a partir de 1993, projetos comunitários pensados e
coordenados pelas associações de moradores, inicialmente no semi-árido. Esses projetos
enfatizam as áreas de infra-estrutura, produção e serviços sociais, e eram avaliados e
aprovados pela CAR. A segunda linha é o Programa Municipal de Apoio Comunitário
(FUMAC), que, desde 1996, analisa e financia projetos comunitários nas mesmas áreas, só
que, dessa vez, encaminhados e administrados pelos Conselhos Municipais espalhados pela
Bahia. Finalmente, o Programa Municipal de Apoio Comunitário Piloto (FUMAC-P),
implantado em 2002, trouxe basicamente a modernização das propostas do FUMAC. Nessa
nova etapa, chamada também de Produzir II, os Conselhos permaneceram responsáveis pelo
controle e administração dos recursos financiados.
Como objetivo, o Projeto pretendeu, teoricamente, construir melhores oportunidades
econômicas e sociais entre as famílias com baixa renda nas áreas rurais da Bahia. Atuando em
407 municípios, destaca-se a atenção reservada à infra-estrutura social (construção de pontes,
casa de farinha, cisternas, sistema de abastecimentos de água), equipamentos (energia,
telefonia), pequenas indústrias, apoio ao processo produtivo agrícola (como irrigação e
tratores, por exemplo) e, mais recentemente, a projetos de saneamento, saúde, educação e
cultura. A intenção primeira seria, então, gerar condições de sustentabilidade, melhoria da
qualidade de vida, emprego e renda para os pequenos produtores a partir de interesses comuns
declarados em cada projeto comunitário.
Atualmente, o Produzir III continua apoiando projetos de inclusão socioeconômica em
comunidades rurais, somando-se, nessa nova etapa, medidas integradas com outros programas
do governo estadual destinados ao desenvolvimento rural.
O Banco Mundial considera que o Produzir é referência para outros países com
problema no combate à pobreza, principalmente pela descentralização e participação
comunitária como medidas centrais para o desenvolvimento. Para a instituição, uma das
premissas é que os recursos aplicados pela CAR beneficiem diretamente (através de
convênios) às comunidades na solução das dificuldades.
O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Municipal
Como mencionado acima, os projetos financiados pelo Programa Produzir
(especialmente o FUMAC e o FUMAC-P) são efetivados – a nível municipal – pelos
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conselhos municipais, que administram os recursos recebidos e encaminham-nos mediante os
projetos apresentados pelas associações comunitárias.
Em Conceição do Coité, o Conselho Municipal do Fundo Municipal de Apoio as
Comunidades nasceu em 199814, composto por lideranças do município (o Prefeito e um
representante da Câmara Municipal), representante das associações comunitárias, dos
segmentos sociais organizados, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e ONGs atuantes
no município, além de representante, caso possível, do Ministério Público15. Caberia ao
Conselho, entre outras coisas, difundir as ações do Programa Produzir/FUMAC, analisar,
aprovar e acompanhar projetos comunitários, contratar serviços especializados para a
implantação de projetos e realizar o pagamento com os recursos do próprio Programa. O
Conselho reuniu várias associações já existentes em Coité, animadas com o desenvolvimento
comunitário especialmente a partir dos anos 80.
Na criação do Conselho Municipal, o prefeito Éwerton Rios D’Araújo Filho
(PPB/PFL/PAN) foi escolhido (certamente pelo critério de fidelidade política entre os
participantes) como presidente do Conselho. Não permaneceu no cargo, mas indicou seu
Secretario de Agricultura, Renato Souza dos Santos, para a direção de uma instituição
extremamente estratégica para a manutenção da estrutura política de Coité. Além da
presidência, a Câmara Municipal – sempre governista – compactuava com o Conselho através
do seu representante, o vereador Francisco Apolônio Ferreira, também do PFL.
Segundo o Regimento Interno, o prefeito seria membro do Conselho durante seu
mandato, enquanto os demais membros terão mandato fixo de 02 (dois) anos, podendo
permanecer pôr igual período, se assim decidirem os órgãos e/ou entidades que
representam16. Todavia, tanto o presidente, Renato Souza, como significativa parcela dos
representantes comunitários ignorou o que previa o documento, permanecendo
ininterruptamente no Conselho até 2008. Após mandar por dez anos nas decisões do
Conselho, Renato Souza só abriu mão da presidência em maio de 2008 em virtude da sua
candidatura à prefeito.
Em 2002, a instituição foi renomeada como Conselho Municipal do Fundo de Apoio
Comunitário de Conceição do Coité, mas preservou sua organização, estratégias e pretensões
políticas. Nessa nova etapa, o Conselho reestruturou-se a fim de receber recursos do Governo
14 Há documentos oficiais, como a Ata de Criação do Conselho e o Regimento Interno que apresentam a data de 04 de junho de 1998; já na Ata da Assembléia Geral de Reforma Regimental do Conselho (junho de 2009) aponta-se o dia 03 de julho de 1998 como data da fundação. 15 Informações contidas no Regimento Interno do Conselho Municipal do Fundo Municipal de Apoio as Comunidades – FUMAC, de 04 de junho 1998. 16 Parágrafo Quarto, Art. 2º, Da Composição.
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do Estado e do Banco Mundial para atividades do Programa Produzir II – FUMAC e
FUMAC-P. Uma das especificidades do Produzir II era o atendimento prioritário às
comunidades carentes em infra-estrutura básica (abastecimento de água, energia, saneamento)
e nos serviços de educação e saúde que não tinham sido atendidas pelo Produzir I.
Novas modificações ocorreram no Conselho em 2003, que teve seu regimento
alterado, especialmente na atenção reservada aos critérios de aplicação de recursos, no
acompanhamento e orientação de subprojetos comunitários, na difusão de programas de
créditos. Foi renomeado como Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do
Coité (CDM), mas a Diretoria Executiva e muitos representantes dos segmentos conservaram
suas cadeiras na instituição.
Renato Souza continuou como presidente e representante da prefeitura de Coité, até
mesmo enquanto vice-prefeito na gestão 2005-2008, numa óbvia exclusão ao autocontrole do
associativismo; seu afastamento do Conselho só ocorreu nos três meses reservado às
campanhas eleitorais. Mas não era o único a segurar a bandeira do situacionismo político da
cidade. A prefeitura sempre esteve preocupada com os rumos do associativismo no município,
pelo menos com os rumos do controle político no entorno das experiências comunitárias. A
intromissão da prefeitura ocorria (e ocorre) na escolha de presidentes de associações (urbanas
e rurais) e na indicação de membros da sociedade organizada que tenham no Conselho um
posicionamento politicamente conveniente à máquina governista. Normalmente, muitos
investimentos do Governo Estadual nas comunidades (casa de farinha, moinho, aquisição de
máquinas etc.) são inaugurados pelos mandatários locais como se fossem investimentos da
Prefeitura.
Em entrevista, Francisco de Assis destacou o quanto a FUMAC tem desenvolvido uma
teoria e uma prática completamente díspares no associativismo de Conceição do Coité.
O FUMAC em tese… é você reunir grupo de associações e você, democraticamente, com pessoas que tem representatividade em suas comunidades é… poder interferir na destinação de recursos públicos. Em tese uma coisa interessantíssima, mas na prática funcionou o que? Uma manipulação brutal do dinheiro público a serviço de um grupo personificado pelo atual prefeito. Todas as reuniões do FUMAC são dirigidas, existe um grupo de dirigentes de associação inteiramente vinculados, manipulados pelos chamados Vermelhos politicamente, principalmente pelo atual prefeito, e essas pessoas dão uma áurea de legitimidade, de democracia, que não tem de democracia nada, diria democratismo, a um órgão que na prática é um instrumento que se presta, primeiro, a ter inserção social ou pelo menos um arremedo de inserção social; segundo, é uma fonte brutal, uma fonte gigantesca de corrupção, porque ali tem tesoureiros e presidentes de associação, ali tem comissões
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que assinam cheques em branco, que não sabem explicar quanto de recurso veio, como foi aplicado. (…) Então o FUMAC é uma fonte de corrupção brutal e é um engodo extraordinário, nunca funcionou democraticamente. O FUMAC é um aparelho do PFL, do DEM, do PP, dos Vermelhos pra usar dinheiro público, pra aumentar o patrimônio dos seus dirigentes, ganhar votos e deixar os bobos dirigentes de associação correndo altos riscos se houver uma denúncia formal e uma investigação séria. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)
Teoricamente, o CDM/FUMAC reunia as diversas experiências de desenvolvimento
de comunidade presentes no município de Coité, viabilizando o investimento de recursos
públicos e propondo diretrizes para soluções de problemas da população (rural e urbana) em
torno das perspectivas do associativismo. Mas a experiência analisada possibilita outro quadro
interpretativo, uma vez que a instituição foi, desde sempre, transformada em órgão da
administração municipal, seja como porta-voz dos interesses do PFL, PPB e, posteriormente,
PP, como reprodução da estrutura clientelista do executivo municipal ou como instrumento de
promoção da própria imagem de Renato Souza. Não é mera casualidade do destino vê-lo
concorrendo e vencendo as eleições de 2008. A presidência do CDM/FUMAC oportunizou-
lhe tornar visível e audível seu discurso, suas influências e sua imagem no cenário político.
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CAPÍTULO III
O Distrito de Aroeira17 e a ADECAR
HINO DE SÃO JOAQUIM
Uma aroeira na beira da estrada, Foi o descanso de um povo sofredor,
Que só partiu depois da invernada, Deixando uma alma, uma cruz e o clamor.
Daí nasceu uma Aroeira venerada, Purificada que Deus abençoou
E os teus filhos têm por ti, terra sagrada, Um grande orgulho, carinho e muito amor. Fostes a grandeza que os céus nos revelou,
És uma estrela que no peito encravou. Ô Aroeira, tua Bandeira, cobre o meu corpo feito o manto do Senhor.
Ô Aroeira, tuas fronteiras, Estão no meu sangue e no meu canto de Louvor. Mesmo morando a algumas léguas de distância,
Mesmo dormindo n’outro berço resplendor, A tua gente já não sai mais da lembrança,
A esperança tá na pedra que ficou São Joaquim, avô-nosso-Padroeiro,
Tens o remanso no braço protetor Que faz do vento o mais forte mensageiro, Ao mundo inteiro que esta terra tem amor. Fortes a proeza que o tempo nos reservou.
És uma princesa dos mil sonhos do candor. Ô Aroeira, tua Bandeira,
Cobre o meu corpo feito o manto do Senhor. Ô Aroeira, tuas fronteiras,
Estão no meu sangue e no meu canto de Louvor.
É com enorme entusiasmo e ufanismo que muitos aroeirenses guardam na memória e
reproduzem o hino em homenagem ao padroeiro da comunidade, São Joaquim. As bênçãos
divinas sobre Aroeira são, segundo o texto, responsável pela proteção e amor dos seus
habitantes; mas para além do conteúdo religioso, o passado apontado é louvável, predestinado
à veneração, à grandeza, à proeza e à esperança.
17 O Distrito de Aroeira foi criado em 28 de Dezembro de 2003, Lei Nº. 352, sancionada pelo prefeito interino Deraldo Ramos Guimarães. Está localizado 17 km a sudoeste do distrito sede.
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Até o momento, não existe nenhum trabalho de pesquisa histórica – com análise e
metodologia crítica – sobre o Distrito de Aroeira. A única produção encontrada trata-se de um
texto-resumo de três páginas que tenta esboçar a sucessão de alguns episódios do passado da
localidade, e que recebe o errôneo título de História de Aroeira18.
Este registro também inclui problemas de interpretação metodológica e histórica; o
passado é narrado a partir de grandes fatos e de grandes personagens, com uma linearidade
sem conflitos, sem contextualizações, sem discussões. As fontes de pesquisa escrita
praticamente inexistem e os relatos sobre as primeiras décadas, os moradores, as atividades e
as transformações da localidade foram adquiridos mais por conversas informais do que por
entrevistas metodologicamente corretas. Além do mais, é difícil acreditar que em apenas três
páginas seja possível discutir mais de cem anos do processo de organização social,
econômica, política, cultural e histórica da comunidade de Aroeira (a primeira data citada no
texto é 1880, ano da provável chegada de retirantes denominados Povo de Pernambuco; a
última data é o ano de 2007, ano do 13º Forró-Jegue19).
As fontes existentes sobre a História política de Conceição do Coité mostram-nos que
significativas mudanças aconteceram em Aroeira a partir do governo de Walter Ramos
Guimarães. Mesmo tendo ido morar no distrito sede do município há muitos anos, Walter
freqüentava sempre o povoado de Aroeira (normalmente aos domingos, dia da feira local).
Nos anos em que Walter esteve no Executivo, o então povoado de Aroeira (seu local de
origem) recebeu tratamento atencioso do prefeito. É do seu tempo as restaurações realizadas
em 4 salas de aula de Aroeira, a eletrificação via o Governo do Estado (antes disso, Aroeira só
possuía a luz gerada por um motor diesel trazido pelo vereador Enéas Araújo Ramos, ainda no
governo de Dr. Pinheiro), a pavimentação completa, a instalação de um matadouro público e
da completa recuperação do açougue público, a construção de um posto médico, de 3 prédios
escolares na região de Aroeira (Morro, Martins e Tapororo)20 e de aguadas em toda a região
de Aroeira para amenizar o problema de abastecimento de água da zona rural durante a
estiagem.
Por receber um tratamento privilegiado, chegando até a despertar críticas de outras
localidades, Aroeira e região passaram a ver na política do seu prefeito e conterrâneo a
materialização do desenvolvimento local. O grupo de Walter Ramos, em contrapartida,
18 Anexo 2. 19 Manifestação cultural local iniciada no ano de 1994 e apresentada anualmente no período dos festejos juninos. 20 Informação extraída da Revista da Associação Brasileira de Municípios, Ano VII – Nº. 58 – 1982. p. 29.
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logicamente não deixou de utilizar-se dos meios políticos para aproximar às paixões políticas
da comunidade de Aroeira aos planos de controle e disputa pelo apoio eleitoral.
Mais recentemente, a presença de representantes aroeirenses nos palcos da política de
Conceição do Coité está resumida às figuras de Deraldo Ramos Guimarães e Edevaldo
Santiago Ramos (irmão e sobrinho de Walter Ramos, respectivamente). O primeiro tornou-se
Vice-Prefeito no mandato de Wellington Passos de Araújo (2001-2004), Secretário de
Esportes no terceiro mandato de Éwerton Rios D’Araújo Filho (2005 – 2008), e novamente
Vice-Prefeito na atual administração de Renato Souza Santos (de 2009 até 2012). Edevaldo
Santiago como um bom discípulo da escola política familiar, chegou à vereança de Coité em
1992, e completará, em 2012, seu 5º mandato.
O distrito de Aroeira amadureceu um tipo de mito da representatividade política. A
figura de líderes como Walter Ramos, Deraldo Ramos e Edevaldo Santiago Ramos construiu
um imaginário e uma cultura política de fidelidade e temor. Comumente conhecido como
reduto do situacionismo municipal, Aroeira – ou melhor, uma significante parcela dos
aroeirenses – construiu laços de dependência sutis com as práticas do apadrinhamento, do
favorecimento político imediato e individualizante. Na imensa maioria dos contatos prevalece
um pacto político, ideológico, psicológico e social entre eleitores e o poder político de
Conceição do Coité por meio da representatividade dos seus conterrâneos.
Mas essa representatividade não tem um fim em si mesma. Ao longo das décadas
reiterou-se a positividade do executivo municipal (sob domínio do grupo liderado por
Hamilton Rios), contrastando-o com um conjunto de estereótipos atribuídos aos adversários.
A partir de 1988, quando o PT disputou as primeiras eleições municipais em Coité, coube ao
executivo municipal (e toda sua clientela e operários) difundir uma imagem pejorativa do seu
novo rival. A presença de uma oposição política era combatida com a mesma tenacidade
empregada em defesa da bandeira da direita. Partindo dessa premissa, torna-se possível
analisar os meandros do posicionamento conversador e dependente entre o eleitorado de
Aroeira e o poder político de Coité. Transpondo a atmosfera política do Brasil
redemocratizado para o nosso município podemos entender um dos aspectos que influenciam
na relutância do eleitorado coiteense com relação a uma mudança política. A imagem do PT,
por exemplo, era associada à desestruturação, à desordem, à intranqüilidade tanto para a vida
nacional (talvez por isso a resistência contra Luis Inácio Lula da Silva em 1989, 1994 e 1998),
quanto para a política de Coité. Obviamente que os interesses no jogo político não limitou seu
discurso a está idéia, mas esta foi também pertinente para a aversão à mudança.
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O que quero apontar com isso é que para além dos seus interesses particulares, muitos
eleitores aroeirenses encontraram segurança e entusiasmo nos discursos moralizante pró-
situação, em defesa da “ordem”, da permanência da facção de Hamilton Rios no poder nas
últimas quatro décadas. E são inumeráveis os casos em que a inconsciência ou paixões
políticas desses eleitores germina o estímulo à defesa do grupo da situação; no entanto,
quando questionados, a esmagadora maioria é incapaz de apontar justificativas aceitáveis
sobre o seu posicionamento político de simpatia aos interesses do grupo hegemônico.
A histórica relação dos representantes políticos aroeirenses com seu eleitorado
também foi caracterizada pelo desrespeito ao princípio da isonomia. Na verdade, ainda
subsiste a confusão entre o público e o privado. É como um círculo vicioso, onde eleitores e
representantes compartilham de uma mesma mentalidade paternalista, com relações de
dependência mútua; a pouca indistinção entre público e privado foi sendo naturalizada pelos
eleitores e respaldada pelas práticas dos representantes. Como as idéias são menos
importantes do que os homens, as ações e as mudanças são atribuídas à competência
particular; os benefícios adquiridos pela comunidade são mais entendidos como uma bondade
e um favor da administração municipal do que uma decisão coerente amparada em códigos
políticos legais. Visto assim, os representantes não são entendidos como funcionários
públicos (com direitos e deveres relativos à vida pública), e sim como super-homens, que
gastam o tempo lutando pelos seus eleitores porque são filantrópicos, e não por obrigação.
A enorme legião de defensores do situacionismo presente no Distrito de Aroeira
favorece essas idéias. Pelo medo de sofrerem punições políticas ou por deverem favores
particulares (como, por exemplo, entrar no serviço público municipal sem concurso); por
obediência à tradição familiar e por simples paixões, muitos aroeirenses, funcionários
públicos municipais ou não, transformam as disputas políticas em um campo de conflitos,
onde o anti-situacionismo é uma afronta das mais inaceitáveis. E o voto, nesse sentido, é
compreendido como uma obrigação, e nunca como um direito (facultativo à escolha exclusiva
de cada eleitor). Segundo Figueiredo, quando agimos pela tradição, e não pela eficácia dos
procedimentos, nosso comportamento torna-se tradicionalista, e perde sua racionalidade.
Pela fidelidade ao situacionismo, a grande maioria (ou talvez a totalidade) dos
aroeirenses convivem com e sob uma espécie de Lei do Silêncio, que restringe – ou proíbe – a
livre manifestação das intencionalidades políticas. A cultura política local enraizou na
mentalidade da comunidade que fazer política é apoiar o situacionismo dos “vermelhos”; caso
contrário, não é política. Um exemplo evidente disso foi o comportamento retraído de muitos
dos entrevistados quando o assunto envolvia questões políticas. Manter-se calado é cumprir o
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figurino político, é demonstrar que, mesmo sendo personagem de uma experiência
mandonista, existem vantagens em silenciar sua opinião particular em troca da conformidade
e/ou do apoio à estrutura política local.
Na verdade, a apologia à oposição é episódio digno de perseguição política
(normalmente implícita), de restrição das oportunidades para acesso aos serviços públicos, de
constrangimentos públicos e de indiferença irrestrita como ato punitivo à falha de não haver
votado na situação municipal. Simpatizar-se com a oposição é quase que um crime político,
cujas repercussões e conseqüências marcam a vida do eleitor também na sua dimensão social,
moral, econômica, psicológica e cultural.
Um outro episódio curioso que ratifica o enlace entre a cultura política aroeirense e o
situacionismo municipal é o comportamento do principal meio de comunicação local: era
comum encontrar a Aroeira Publicidade (antiga Rádio Comunitária Flor de Aroeira)
veiculando músicas da campanha de Renato Souza Santos logo após a sua chegada ao
Executivo municipal, em outubro de 2008. Assim como quase tudo em Aroeira, a Rádio
também nasceu e permaneceu com a proteção e a participação de pessoas subservientes à
prefeitura. Dessa forma, é forçoso concordar que, mesmo sendo um veículo de comunicação
comunitário, ele não conseguiu abandonar o manto das práticas coronelistas e dos interesses
políticos favoráveis ao Partido Progressista.
Cabe aqui relembrar como a relação mídia/política é extremamente perigosa no campo
político. O império midiático criado e difundido por Antonio Carlos Magalhães (ACM),
ministro das Comunicações do Governo Sarney, é célebre exemplo das relações clientelistas
mantidas pela política baiana recente. Em retribuição por apoiar o presidente – e Sarney
utilizou sabiamente a concessão de emissoras aos que apoiavam seu governo –, ACM montou
uma espécie de partido eletrônico na Bahia, distribuindo cerca de 90 emissoras de rádio e TV
(cobrindo 80% do território) entre seus aliados e familiares. Uma política mercadológica,
onde o controle das informações tornou-se munição estratégica.
Em seu trabalho Rádio e TV na Bahia: o partido eletrônico de ACM, Jane Márcia
Lemos Luz destaca que a “rede ACM” de comunicação estava composta pelo jornal Correio
da Bahia, de 1978, por uma coleção de rádios na capital e no interior e pela TV Bahia, filiada
à Rede Globo e principal arma do PFL (e de ACM) no Estado. No Ministério da
Comunicação, ACM destinou à Bahia cerca de 30% do total de rádios e canais de TV vindos
para o Nordeste.
Precisamente sobre as rádios interioranas, Lemos concorda que a ingerência e controle
de políticos locais é determinante:
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Quanto às rádios, essas têm desempenhado um papel fundamental no interior da Bahia, por constituírem a principal mídia de políticos locais, isto é, dos políticos donos das rádios. Disso emerge uma questão importante para se compreender o fenômeno no interior da Bahia: a questão da propriedade do rádio como forma de manutenção/ sobrevivência de elites dominantes tradicionais. (LUZ, 1997, p. 17-18)
Em Conceição do Coité, a rede de ACM também alcançou sucesso, com a concessão
da Rádio Sisal ao prefeito Hamilton Rios de Araújo (PFL) em 1986. Chefiada pelo ex-prefeito
Éwerton Rios d’Araújo Filho, sobrinho de Hamilton, a Rádio Sisal sempre foi palanque
incondicional a serviço dos lideres políticos de Coité, e defende tenazmente seu desejo – não
neutro – de permanecer como referência na comunicação local. A materialização do
comportamento mandonista presentes na Sisal FM é denunciado por Assis, haja vista que o
então prefeito Éwerton Rios assumiu ter autorizado o “arrombamento das instalações e roubo
dos transmissores da TV Cultura do Sertão (…) ocorridos no dia 29 de maio de 1998.”. A TV
Cultura tem posicionamento político de oposição e, por isso, sofreu uma medida repressiva
que, embora inaceitável legalmente, é reflexo de que na nossa cultura política as pessoas
podem subjugar as leis com naturalidade. A memória do eleitorado está relativamente treinada
para não estranhar episódios de evidente desrespeito à democracia dentro dos bastidores
políticos e do universo das comunicações.
Em pesquisa sobre as eleições de 1996, Lemos nos apresenta o seguinte retrato do
interior infestado pela mídia coronelista:
Dos 415 municípios do estado, já foi demonstrado que cerca de 90 possuem rádios sob influência de ACM (a maioria em cidades onde a coligação ganhou). Dessas 90 emissoras já foram checadas 31, em municípios governistas, verificando-se que os prefeitos eleitos tiveram espaço aberto para campanha, sendo alguns deles sócios ou parentes dos donos. Isso aponta para a máxima de que, hoje, político que tem mídia já está a meio caminho da eleição. (LUZ, 1997, p. 51)
Sabemos que o império das comunicações na Bahia não explica todo o carlismo, assim
como o controle da Radio Sisal em Coité não “fabricaram” o Hamilton Rios ou o Éwerton
Rios. Mas como a ação política contemporânea tem desenvolvido importantes ramificações e
relações com a mídia, não devemos menosprezar seus resultados. A construção do carlismo
foi viabilizada, entre outras coisas, pela pulverização midiática no interior do Estado. A mídia
construiu e ratificou imagens, sentimentos e marcas políticas. Tanto na Bahia como em Coité,
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aquilo que é denominado como coronelismo eletrônico cria novas formas de práticas políticas
rumo à elegibilidade; de um lado os interesses políticos das minorias, do outro a recepção
tendenciosa de informações a favor da continuidade. Na Bahia ou em Coité, o papel da mídia
foi o de transformar o continuísmo numa questão bem mais de desejo ou necessidade do que
numa política oriunda do clientelismo. O sucesso do PFL foi viabilizado, do mesmo modo,
pela sua predisposição em formar coligações e negociações longes das câmaras, nos
bastidores, e pela personificação autocrática de ACM dentro do partido e de seus acordos.
A questão do desenvolvimento comunitário
A preocupação com o desenvolvimento de comunidade (DC) é questão marcante no
Brasil e na América Latina desde o final da década de 50 e início da de 60. A partir dos
movimentos sociais ou da política social, as áreas de moradia foram historicamente instigando
a mobilização e cooperação dos diversos campos interessados com a superação das
dificuldades – via de regra – das populações carentes. Originariamente pensado para o rural
(pelas suas características e objetivos), o DC tornou-se também urbano; no Brasil a
especificidade histórica de cada região determinou a roupagem predominante para sua
experiência de DC. No Nordeste, por exemplo, o desenvolvimento de comunidade está
relacionado especialmente aos problemas do meio rural.
A noção de desenvolvimento é polissêmica, mas no caso analisado pressupõe
fundamentalmente a superação das dificuldades existentes na comunidade, dos problemas que
afetam coletivamente seus moradores, viabilizado pelo crescimento econômico, pelo
aperfeiçoamento tecnológico e/ou pelo apoio político.
Com relação ao desenvolvimento, em sua obra Desenvolvimento de Comunidade e
Participação, Maria Luiza de Souza menciona:
No desenvolvimento comunitário, desenvolvimento é crescimento econômico e progresso tecnológico, no entanto, controlado e dirigido pela população e em função dessa comunidade. Nesse sentido, o desenvolvimento é, sobretudo, ideal a ser alcançado. O nível de realidade em que ele se encontra é definido a partir de condições históricas próprias às populações de cada país, região ou localidade e é a partir daí que ele se amplia. À medida que o crescimento econômico e o desenvolvimento tecnológico são pensados, e geridos por grupos sociais cada vez mais numerosos e abrangentes, o processo do desenvolvimento avança e se aproxima do ideal. (SOUZA, 2000, p. 76)
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Não é possível identificar uma situação onde o desenvolvimento esteja prontamente
alcançado, já que ele é processo contínuo e dinamizado pelas condições vivenciadas ao longo
do tempo. É uma busca pela dissolução dos problemas sociais, econômicos e humanos
característicos de cada momento particular da comunidade.
Cada país, cada região, cada área específica encontra-se numa situação própria de desenvolvimento. É a partir desta situação que o processo precisa avançar. Compreender a situação própria de desenvolvimento em que se encontra um determinado contexto supõe compreendê-lo historicamente, dialeticamente e estruturalmente. Não existem modelos prefixados para o avançar do processo de desenvolvimento, uma vez que as condições próprias de cada contexto supõem também condições próprias para o seu avançar. Em toda e qualquer situação, entretanto, o desenvolvimento supõe que todo e qualquer cidadão se encontra em condições de pensar, decidir e agir sobre a sua realidade social, sobre o seu destino. (SOUZA, 2000, p. 77)
Mas para que haja esse desenvolvimento, faz-se essencial a participação da
comunidade interessada, por meio da conscientização, organização e capacitação a fim de
melhorar sua realidade social, suas condições materiais de existência e sociabilidade. Esta
participação deve ser acompanhada pela ampliação das condições de decisão e enfrentamento
dos atores do desenvolvimento comunitário.
Exigindo que a sociedade elabore uma postura socialmente organizada e com eficiente
representatividade no intento de buscar soluções para as suas dificuldades, surgem as
associações de moradores (ou associações comunitárias) em todo o município (urbano e
rural). Grupos sociais com interesses e preocupações comuns, vizinhos do ponto de vista das
suas moradias, com condições de vida semelhantes, passam a organizar-se para o
enfrentamento conjunto de problemas que são de interesses coletivos.
A ação comunitária é uma forma de cooperação que tem como objeto e objetivo a superação das barreiras que, a nível da comunidade, impedem o desenvolvimento do homem enquanto ser coletivo. Ela se revela um instrumental que se caracteriza pela identificação de problemas, interesses ou preocupações de ordem comum, pela organização para pensar em comum as decisões sobre os mesmos e pelo desempenho das ações decididas. (SOUZA, 2000, p. 22)
A identificação dos moradores com sua comunidade significa componente básico no
desenvolvimento comunitário, uma vez que, segundo a autora, caso isso não ocorra, pode
haver mais de uma comunidade num mesmo ambiente de moradia. Assim, no processo do
desenvolvimento comunitário deve existir tanto um acordo de interesses como um acordo de
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identidade. A comunidade não é limitada por questões unicamente físicas ou administrativas,
mas igualmente pela presença de interesses e preocupações comuns aos grupos ou sub-grupos
em suas inter-relações cotidianas dentro da sociedade. Parafraseando Teresa Porzecanski, o
desenvolvimento comunitário tem o papel de ampliar as fronteiras da comunidade,
favorecendo a construção de lutas e elementos que traduzam os objetivos comuns dos
moradores envolvidos e estabeleça ferramentas amplas de identificação e participação.
Outro ponto importante do desenvolvimento comunitário é a cooperação entre seus
agentes. As hierarquias são extremamente nocivas ao destino de qualquer associação. Aos
participantes deve ser reservado o direito individual de defender, participar e pensar dentro da
associação. Nenhuma individualidade pode anular as demais individualidades, e menos ainda
se sobrepor aos projetos coletivos; a cooperação é requisito para conservar os interesses e
enfrentamentos comuns. Não é raridade, no entanto, haver divergências internas, e os
interesses da associação serem apropriados pelo grupo mais forte internamente.
A ADECAR
A ADECAR surgiu como uma vitória imensurável. Fruto da coletividade e do desejo
pelo bem comum (pelo menos no papel), a nova instituição deveria ser o divisor de águas
para o desenvolvimento local, afinal de contas era consensual que a participação popular e a
descentralização seriam os grandes pilares do Brasil democrático. O Art. 1º do seu estatuto
afirma, com nitidez, que se tratava de uma “associação de desenvolvimento comunitário de
Aroeira, originário de movimento expontâneo entre os habitantes da comunidade”.
Escrito anteriormente, seu Estatuto foi lido, explicado e aprovado por unanimidade na
Assembléia Geral de Constituição da ADECAR, reunida na Escola Duque de Caxias, em 03
de Maio de 1987, data da fundação da instituição. E os objetivos trazidos pelo mesmo estatuto
não são menos sensatos e plausíveis. Pelo Art. 3º a Associação, enquanto “uma entidade civil,
sem fins lucrativos, de duração indeterminada, com sede e foro em Conceição do Coité,
Estado da Bahia”, seria regida pelos seguintes objetivos: I – promover o desenvolvimento
comunitário através de obras de melhoramentos, com recursos próprios ou obtidos por doação
ou empréstimo; II – proporcionar a melhora do convívio entre os habitantes do lugar e de
localidades circunvizinhas, através de integração de seus moradores; III – proporcionar aos
associados e seus dependentes, atividades econômicas, culturais e desportivas; IV – promover
atividades assistenciais, diretamente ou através de instituições filantrópicas; V – promover
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atividades assistenciais e proporcionar melhoria do convívio através de atividades
econômicas, culturais e desportivas aos trabalhadores rurais e aos pequenos agricultores e
seus dependentes.
Assim, a ADECAR passaria a atuar como instituição que congregaria não somente as
demandas, as reivindicações e as necessidades dos seus sócios e da comunidade, como
também apresentar propostas para o melhoramento do convívio, das condições de vida e da
organização comunitária. No entanto, além desses elementos, talvez a maior justificativa para
sua fundação e existência é a idéia de que o desenvolvimento de uma comunidade é facilitado
pela presença de uma Associação. Ou seja, os benefícios chegariam mais rapidamente à
Aroeira se a “cobrança” partisse de uma agremiação social democrática e organizada.
Apesar da fundação ocorrer em meados de 1987, a ADECAR teve que esperar até o
ano de 1994 para começar as suas atividades. O seu primeiro Presidente – e talvez seu maior
idealizador –, Deraldo Ramos Guimarães, permaneceu pouco tempo em exercício. Nos meses
imediatamente após a fundação, a única ação do Presidente que merece destaque foi o
encaminhamento ao Cartório de Títulos e Documentos de Conceição do Coité, em 30 de
setembro de 1987, dos documentos necessários para fazer da ADECAR uma pessoa jurídica.
No mais, a maior parcela dos sócios e dos dirigentes parece ter sido vencida pela inércia,
deixando de realizar as atividades, as reuniões e os propósitos da Associação por um longo
período.
Segundo entrevistas realizadas, a inatividade da ADECAR nos anos posteriores à sua
fundação suscitou na comunidade um novo movimento, notadamente liderado por mulheres,
com objetivo de organizar uma Associação de Mulheres, especialmente entre 1989 e 1992.
Houve uma forte mobilização interna, esperançosa pelas contribuições que o associativismo
poderia apresentar frente às demandas da própria comunidade. Participante ativa do
movimento das mulheres, uma das entrevistadas nos diz o seguinte:
(…) A gente vendo a coisa assim sem andamento, a gente procurou umas mulheres, um grupo de mulheres para fazer uma associação de mulheres. Nesse período que a gente tava mesmo empenhada pra fazer outra associação… como é que diz?… a associação a andar que tava parada eu fui lá em Coité pegar a ata na mão de Maisa, Maisa Santiago Ramos21, lá na Prefeitura e no momento que eu fui pegar essa ata ela me negou a ata, que diz que ia reviver esse, reviver no caso a associação… (GONÇALVES. Entrevista concedida em 28 jun. 2009)
21 Sobrinha de Deraldo Ramos Guimarães e irmã de Edevaldo Santiago Ramos.
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O ano de 1994 foi recheado de alterações para os novos rumos da ADECAR. Logo no
dia 2 de Janeiro, a sua Assembléia Geral reuniu-se, conforme Ata, para reativação da
instituição. Como consta no mesmo documento, a última Ata anterior àquela que teria sido
lavrada na data de 02 de agosto de 1988, uma vez que as páginas 5, 6 e 7 desapareceram do
Livro de Atas nº. 01. Incumbido de dirigir a reunião, o senhor Raimundo Carneiro Cedraz
(representante da Igreja Católica) fez a leitura do Estatuto e os associados acordaram novas
eleições para os membros da Diretoria. A eleição ocorreu no dia 15 de janeiro de 1994, e o já
vereador Edevaldo Santiago Ramos foi “aclamado (…) para coordenar os trabalhos”, que
resultou na eleição de Antonio Carlos Gordiano Lima para presidência da ADECAR. Como
havia somente uma chapa inscrita o resultado foi previsível.
O Banco do Nordeste do Brasil também marcou presença neste ano da ADECAR. A
Assembléia Geral de 30 de agosto tinha como pauta a discussão da importância que o BNB
poderia representar na abertura de crédito e empréstimos aos pequenos agricultores e
pecuaristas de Aroeira. Estreitados os laços com a ADECAR, o Banco do Nordeste conseguiu
realizar uma política de crédito com parcela significante dos associados, embora,
posteriormente, muitos sócios tenham adquirido problemas com as altas taxas de juros
decorrentes da inadimplência aos prazos acordados.
Em 11 de novembro de 1994, a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional
(CAR), empresa pública ligada à Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia, a
Prefeitura Municipal de Conceição do Coité e ADECAR firmaram um Convênio entre si com
o objetivo de realizar a “instalação de 01 (um) projeto produtivo, compreendendo obras civis,
aquisição e instalação de equipamentos para 01 (uma) unidade de fabrico de farinha de
mandioca (trifásica), na comunidade de Aroeira, no município de Conceição do Coité, através
do PAC/PRODUZIR, no âmbito do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural – PAPP,
beneficiando diretamente 60 famílias”22. O Convênio contaria com a participação da
Prefeitura de Coité em 5% de um total de R$ 10.064,00 e os demais recursos partiriam do
PAPP, tendo como fonte o BIRD e/ou Tesouro do Estado.
Logo em seguida, em 02 de Dezembro de 1994, a ADECAR conseguiu por meio de
Termo de Doação um terreno de Carlos Ferreira Lima e Estelita Gordiano Lima para
construção de um moinho de milho (fábrica de fubá), através do Programa Produzir em
Convênio firmado novamente entre a CAR, a Prefeitura de Conceição do Coité e a ADECAR.
Na Assembléia de 31 de dezembro o presidente Antonio Carlos informa que o recurso do
22 Trecho relativo ao item Do Objeto do CV Nº. 525/94 – Assessoria Jurídica – CAR.
65
referido Convênio, um montante de R$ 4.336,00, já havia sido depositado Banco do Estado da
Bahia (BANEB). As obras do moinho de milho começaram a seguir.
No início de 1996 a presidência da ADECAR experimentou uma urgente substituição
de ocupante. A ausência do presidente em atuação, Antônio Carlos Gordiano Lima, foi
emergencialmente substituída por eleição provisória, ocorrida em 21 de janeiro. Igualmente
previsível, o resultado dessa eleição com chapa única culminou na escolha de José Aldo
Gordiano Lima para presidência provisória, numa reunião que registrou em Ata a presença de
94 pessoas.
Mas o posto que era provisório logo se tornou efetivo, e na eleição – de chapa única –
para a Diretoria Executiva e o Conselho Fiscal, em 16 de Abril de 1996, José Aldo foi
aclamado como presidente da ADECAR. Doravante, não haverá mais surpresas em termos de
direção; a permanente presidência de José Aldo iniciada em 21 de janeiro de 1996 resistirá
firme até, pelo menos, 30 de maio de 2010.
No ano de 1997 deve-se destacar o Convênio Nº. 219/1997 estabelecido entre a CAR e
a ADECAR que resultou na perfuração de um poço tubular em Aroeira. O financiamento das
obras (R$ 7.897,05) estaria sob responsabilidade do Programa de Apoio às Comunidades
Rurais – PRODUZIR, com recursos provenientes do BIRD ou do Tesouro do Estado.
Em 2008 foram inaugurados pela ADECAR o Clube Social de Aroeira e o Estádio
Manoel Lourenço de Santana, obras que contaram, mais uma vez, com a participação da
Prefeitura Municipal de Conceição do Coité. No caso do Clube Social, sede da ADECAR, a
Prefeitura Municipal firmou com esta o Convênio Nº 11/2008, em 16 de junho, concedendo-
lhe apoio financeiro no valor de R$ 25.557,60 para a construção da cobertura.
Um dado importante que as atas evidenciam é que, mesmo com a cobrança da
Direção, os sócios pouco auxiliavam nas lutas coletivas e nas tentativas de encontrar soluções
para os problemas da comunidade aroeirense. Tal comportamento nos remete ao que Souza
aponta como sendo as principais características dos moradores dentro do associativismo.
Geralmente os sócios não são envolvidos – ou se envolvem – nas decisões da associação,
interpretando-a como simples reprodução das instituições públicas fornecedoras de
benefícios; outras vezes os sócios associam política à politicagem e se afastam das
associações que, em muitos casos, são transformadas em bandeira político-partidária; ou
então, por fim, os sócios podem enxergar a associação mais como espaço de assistência, de
lazer e de recreação do que como campo de luta e enfrentamento organizado, crítico e com
autonomia em suas pretensões de intervenção na comunidade.
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Para pesquisa foram realizadas entrevistas com membros da Diretoria Executiva (de
diferentes períodos), com sócios participantes e com ex-sócios da ADECAR. Além dessas,
analisamos, também por meio da fonte oral, outras experiências de associativismo
desenvolvidas na sede do município de Conceição do Coité. Para a análise dos depoimentos
foram identificados os pontos convergentes, sem ignorar, no entanto, as contribuições das
experiências individuais sobre o associativismo da ADECAR.
Questionados sobre a idéia do associativismo e sobre a importância que a ADECAR
tem na vida da comunidade, os entrevistados apresentaram respostas bem similares. No geral,
o associativismo é visto como aquilo que separa, com grande distinção, os que devem ou não
receber os benefícios imediatos e individuais da associação. Visto desse modo, fazer parte da
ADECAR é importante, em primeiro plano, pela possibilidade de usufruir, como todo sócio,
dos lucros conquistados e repartidos pela associação.
Ao lado dos benefícios individuais existem os coletivos. Os entrevistados destacaram a
importância que o Moinho Comunitário, a Casa de Farinha, a água encanada, o Clube Social,
o Estádio Manoel Lourenço e o Trator representam para o desenvolvimento local, facilitando
as condições de trabalho de muitos sócios e problemas vivenciados pela coletividade dos
moradores. Foi sinalizado o quanto importante foi o empréstimo financiado pelo Banco do
Nordeste para as atividades do campo de alguns sócios (plantações, manutenção da
propriedade e aquisição de rebanhos). Ainda no plano coletivo, alguns entrevistados
pontuaram que a associação, apesar da extrema dependência aos subsídios externos, é espaço
de debate coletivo sobre os problemas internos que requerem simples soluções.
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CAPÍTULO IV
O Comportamento e as Práticas Clientelistas da ADECAR
Enquanto instituição referencial no que diz respeito à problematização das demandas
do distrito de Aroeira, a ADECAR cultivou historicamente uma organização e um
funcionamento que são, no mínimo, maquiavélicos. Para ela, os fins podem indubitavelmente
justificar os meios. E são justamente esses meios que, por sua marca sutil, implícita e
mascarada, pouco permite que sejam notados e contestados.
Como objetivo elementar deste trabalho, a análise das práticas e comportamento
clientelistas e coronelistas existentes na ADECAR ultrapassa os limites da mera especulação,
mas serve, sobretudo, como perspectiva para leituras e reflexões acerca de uma experiência
local e particular, mas que é reflexo de posturas políticas parciais e instrumento para o próprio
prolongamento do status quo no âmago da cultura política do Distrito de Aroeira e, por
extensão, do município de Conceição do Coité.
Como prolongamento óbvio do poder da máquina pública e do situacionismo de
Conceição do Coité, a Associação de Desenvolvimento Comunitário de Aroeira cumpriu entre
1987 e 2008 uma tarefa não exposta em seu Regimento Interno ou no seu Estatuto. Suas
práticas clientelistas constituíram-se num ingrediente capaz de ditar as ordens entre os seus
sócios.
A ADECAR nasceu sob o signo da situação, materializando uma relação de fidelidade
e sociabilidade que atravessava também os campos do favorecimento político municipal.
Enquanto movimento comunitário que exigia mobilização popular, a instituição só possuía
duas opções: desenvolver na Aroeira um trabalho livre das trocas de favores políticos ou optar
pela conivência com os interesses político-partidários. Entre a cruz e a espada, a ADECAR
escolheu o que julgo ser mais fácil: sobreviver à custa da clientela, da generosidade e da
pessoalidade com os mandatários da política.
Na opinião de Souza, a política social abre condições de participação às populações
para lutar em suas áreas de moradia. Mas este trabalho discute como política empreendida
pela ADECAR (e sua ampliada rede de controle social) criou bases para atuação de agentes
políticos camuflados em discursos, concessões e favorecimentos que, à primeira vista, são
imperceptíveis. Assim, o povo cria a ilusão de que está ampliando suas condições de
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cidadania onde, na verdade, sempre esteve submisso à propagandas e interesses estranhos ao
grupo. Desta forma:
Cada vez mais a política social do Estado e os mandatários das políticas partidárias chegam às áreas de moradia. O Estado realiza os seus objetivos de controle nessas áreas não só através de ações definidas a partir da política social, mas sobretudo através dos objetivos personalistas dos seus agentes políticos. Muitas vezes a população se organiza para reivindicar, apenas obedecendo às orientações de mando de um ou outro político, sem atentar para a significação de sua força social. (SOUZA, 2000, p. 17)
Pensada também para o enfrentamento de dificuldades no Distrito de Aroeira, a
ADECAR – e o fardo discursivo da impossibilidade de executar mudanças com autonomia –
corroborava com a manutenção de uma estrutura social e econômica dependente, cativa e
limitada aos eventuais benefícios de doações. A dependência realimentava a imagem da
ADECAR como centro, como referência, enquanto os sócios esperavam com ansiedade e
passividade receber seu quinhão, ou a comunidade “ganhar” algum benefício. A postura
assumida pela ADECAR – de direita com clientelismo explícito – limitava as possibilidades
de luta e enfrentamento da organização social, restringindo o horizonte da mobilização e
politização dos sócios.
O conservadorismo da ADECAR restringiu igualmente as chances da própria prática
democrática e do exercício da cidadania, do questionamento propriamente dito. A política era
necessariamente acompanhada pela marca partidária (do PFL, PPB e, depois, PP). Com a
ADECAR, a estrada política só possuía uma via, a de apoio à situação. Os direitos populares
adquiridos pela participação direta e institucionalizada foram sendo reproduzidos como
concessões caridosas do poder público. Não é desconsiderar o caráter político, mas entendê-lo
como campo de direito, de responsabilidade e de impessoalidade.
Os espaços institucionais de participação têm em si mesmos um significado político. Pois na medida em que são normatizados expressam tanto o nível da força da organização popular quanto a força política dos movimentos sociais em relação com outras forças sociais. Contudo, não é suficiente ter garantidos em lei determinados instrumentos; é necessário verificar até que ponto eles possibilitam uma intervenção efetiva na esfera do real. (SOLER, 1992, p. 79)
Essa idéia nos mostra a necessidade da constante reavaliação dos objetivos, práticas e
da participação popular institucional, já que a lei nem sempre é exercida. Cabe lembrar que as
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atividades da ADECAR – e do Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do
Coité (CDM) – qualifica-a como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, por
conta da atenção ao desenvolvimento econômico e social e pelo combate à pobreza previsto
em lei23. O próprio estatuto do CDM, reformado e aprovado em junho de 2009, reproduziu
normas consonantes com a referida lei, como o destaque à legalidade, impessoalidade e
moralidade de suas atividades, sem haver discriminação de raça, cor, gênero ou religião,
estando a entidade desobrigada de distribuir quaisquer excedentes ou bonificações aos seus
sócios, membros ou parceiros.
A lei Nº. 9.790 também dispõe sobre as prováveis relações entre as Organizações da
Sociedade Civil e os interesses político-partidários. O texto é compreensível ao estabelecer
que Art. 16. É vedada às entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público a participação em campanhas de interesse político-partidário ou eleitorais,
sob quaisquer meios ou formas. Podem ser feitas parcerias com o poder público, mas não
significa trilhar um caminho de trocas partidárias, eleitoreiras e clientelistas.
Entre 1987 e 2008 a ADECAR manteve com o poder público de Conceição do Coité
uma afinidade que além de política, é partidária, tem lado. Esta relação não é resultante de
uma pressão externa, mas uma construção realizada pelo interesse duplo. De um lado, o
governo municipal conseguiu, na aliança com a ADECAR, difundir sua face política e
desenvolver controle e/ou influência sobre um grupo organizado. Por outro lado, a instituição
reconheceu que era necessário estabelecer alianças, encontrar um terreno político firme,
mesmo que isso custasse a sua pretensa autonomia e espontaneidade.
O desenvolvimento pode – e deve – ser político, mas nunca partidário. A organização,
a participação, o questionamento e a cobrança populares passa necessariamente pelo viés
político, pelo reconhecimento de direitos e deveres. No entanto, prender o desenvolvimento
comunitário de Aroeira ao controle do executivo municipal (PFL, PP e sublegendas) excluiu
seu conteúdo espontâneo e o próprio papel de protagonista de seus atores, já que o
desenvolvimento ficou a cargo essencialmente nas mãos da Direção e dos políticos que ela
apoiava. Os sócios, sempre pedintes, pouco faziam, além de assinarem abaixo-assinados
solicitando obras, benefícios ou participarem de reuniões.
Mas a aliança com partidos políticos não é exclusividade do desenvolvimento
comunitário de Coité, conforme Soler em análise da relação entre agentes do governo de
Recife e os mecanismos de participação popular:
23 Maiores detalhes consultar o Artigo 3º da lei federal Nº. 9.790, acessada em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9790.htm em 6 de dezembro de 2009.
70
O tema da realização de alianças com partidos políticos é posto para os movimentos populares. Na verdade, escolher um ou outro prefeito pode significar um reforço ou uma retaliação aos interesses populares. Essa situação sugere às entidades populares a conveniência de estabelecer algum tipo de aliança com determinados partidos políticos, pelo menos em época de campanhas eleitorais. (SOLER, 1992, p. 82)
A Presidência ou Direção da ADECAR é um dos principais elementos que evidenciam
a subserviência dos objetivos da instituição aos interesses da manutenção política de Coité. O
principal fundador da ADECAR, Deraldo Ramos Guimarães, tornou-se, anos mais tarde,
membro destacado na política de Conceição do Coité, sendo vice-prefeito em dois mandatos
(2001-2004 e 2009-2012) e Secretario de Esportes (2005–2008), sempre com apoio irrestrito
ao PFL, PPB e ao segundo PP (da Convenção Nacional de 2003).
Com a reativação de 1994, a ADECAR continuou com sua marca e composição
conservadora, presidida por Antônio Carlos Gordiano Lima. Este presidente não se
transformou em ícone político, mas sempre compactuou com a direita de Coité. Tornou-se,
posteriormente, beneficiário do funcionalismo municipal e dono da Aroeira Publicidade, a
mesma que veiculava músicas da campanha de Renato Souza.
Apesar das experiências pró-direita dos anos anteriores, a Direção de José Aldo
Gordiano Lima, irmão de Antonio Carlos, foi a que mais claramente serviu aos mandatários
da política de Coité. O seu mandato, consolidado no início de 1996, defendeu as mesmas
preocupações e perspectivas das direções anteriores, mas trouxe singularidades que merecem
análise minuciosa. O primeiro ponto que devemos destacar é que José Aldo é também
funcionário municipal (professor) e há anos é Diretor da rede municipal de educação nas
escolas da região de Aroeira e, portanto, cargo de confiança nos governos de Éwerton Rios
D’Araújo Filho, Wellington Passos de Araújo e, atualmente, de Renato Souza Santos.
Outro aspecto é de como a presidência da ADECAR tem se prolongado de forma
intencional, sem grandes mudanças nos discursos e na estratégica composição de seus
membros. Embora o estatuto estabeleça que a Diretoria Executiva tenha mandato de dois
anos, com a possibilidade de reeleição, José Aldo já está há 14 anos a frente das decisões da
ADECAR, numa clara demonstração de que o controle da instituição é politicamente
importante dentro do Distrito de Aroeira.
A extensão da presidência de José Aldo faz parte, nesse sentido, de um apoio político
implícito, naturalizado pelo não dito, pelo silêncio, por justificativas incoerentes e ludibriosas
como “é assim mesmo…”. Mas a parceria ADECAR–Prefeitura não ocorre apenas nos jogos
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de bastidores; nas últimas eleições municipais, o apoio da presidência de José Aldo ao
candidato Renato Souza foi escancarado em alto-falantes por toda Aroeira e região. Na tarde
de 23 de setembro de 2008, por exemplo, o presidente da ADECAR anunciava a realização de
reuniões nos povoados de Açude e Boa Vista de Aroeira, além do comício na sede do Distrito
“com toda a família do 11”. Segundo ele, no dia 5 de outubro, todos deveriam votar no 1124,
sinal de continuidade no progresso de aroeira. Frases como “O 11 é o continuísmo do
progresso de Coité.” e “Nunca vi o 11 trabalhar tanto” foram reiteradas continuamente na
mesma ocasião. Os períodos de eleições são, por excelência, os momentos de mais
agressividade partidária da ADECAR, seja internamente ou pela propaganda noticiada
abertamente em Aroeira e adjacências.
É impossível menosprezar a dimensão política das associações comunitárias, já que
seu enfrentamento também exige diálogo com mecanismos de poder em busca de êxito para
suas opções de luta. A ação comunitária, como esforço coletivo e consciente, precisa
igualmente de ajuda externa, ao passo que a comunidade estar ligada aos níveis de poder
centralizados e não consegue resolver isoladamente os problemas nas suas diversas áreas e
setores. No entanto, o desenvolvimento comunitário, seja com apoio público ou privado,
nunca deve abdicar de sua autonomia, de seu poder democrático de participação, protesto e
luta.
As estruturas de apoio ao DC não devem ser confundidas com as estruturas técnico-burocráticas das instituições públicas e privadas que interferem nas comunidades por força da política social e mesmo daquelas que interferem por força de alianças conscientes com as camadas populares. (SOUZA, 2000, p. 207)
Precisamente sobre a questão política, Souza continua afirmando que:
A associação é órgão basicamente político embora não deva ser partidário. Nesse sentido, precisa ter clareza quanto aos princípios políticos que devem orientar suas ações, a fim de poder confrontá-los e avaliá-los. (SOUZA, 2000, p. 218)
Na medida em que o desenvolvimento comunitário veste a camisa partidária
transforma-se não somente numa estrutura técnico-burocrática de cooptação partidária, como
também desrespeita e afasta-se dos reais interesses da população que representa. Ao aliar-se
24 Número referente à coligação formada pelo PP, PTN, PRB, DEM, PHS, PSDB.
72
partidariamente, a associação reformula seus objetivos, suas estratégias de mobilização e
força, sua função e seus resultados sociais, políticos e econômicos. Seus líderes e membros
aderem, então, a novos caminhos de arregimentação e de atuação. Com a partidarização da
associação, as premissas da autonomia, democracia e espontaneidade são substituídas pela
cooptação partidária, alimentada pelos objetivos individuais e a curto prazo, pela rede de
dependência e pelas relações de clientelismo e de mando.
Além do mais – e não é um traço exclusivo da ADECAR – a participação na política
social se caracteriza muito normalmente pela aceitação de programas-pacotes anteriormente
estabelecidos. Participar não mais é do que executar ações padronizadas e engolir
instintivamente os valores e os planos que lhes acompanham. Nessa relação automática, as
decisões são basicamente hierarquizadas, e o público-alvo não participa do planejamento, das
decisões e nem consegue realizar o protagonismo inerente à participação popular.
Muito embora Souza defenda que “a participação social é processo contrário à
dominação, à concentração do poder”, nem sempre a participação está desprendida de um
exercício de poder:
O jogo das forças de cooptação dos grupos dominantes atua nos mais diversos níveis. As próprias instituições sociais muitas vezes atuam nesse sentido. Além dessa ação, há ainda níveis mais simples de cooptação, como o apadrinhamento pessoal e a troca de favores, que resultam em compromissos e alianças estranhas aos interesses e preocupações fundamentais de muitos agentes sociais, que passam a agir contrariamente ao seu próprio grupo social. (SOUZA, 2000, p. 128-29)
Os discursos políticos têm utilizado com freqüência a questão do desenvolvimento
local e a participação popular como estratégia para uma nova proposta de crescimento e
sustentabilidade, aproveitando-se das condições territoriais, econômicas e sociais do próprio
local. No caso da ADECAR, entretanto, o setor público transformou a associação em órgão
formal, burocrático, responsável por formalidades e interesses político-partidários em troca de
recursos assistenciais que são distribuídos como forma de intermediação. Sua ação
transformou-se em fiel canal de comunicação e trocas entre a agremiação social e o poder
público municipal. Trazendo mais um exemplo, o presidente em exercício declarou, segundo
Ata de 24/01/1997, que “foi procurado pelo prefeito para unir associação a Prefeitura para
fornecer empregos para os sócios para chegar com mais facilidade o desenvolvimento, de
cada povoado e o melhoramento da população e do nosso município”. Através da ADECAR
os mecanismos de controle social são praticados sem grandes dificuldades, facilitados pela
73
compreensão de que ela é referência comunitária no desenvolvimento e resolução de
dificuldades.
Há também episódios interessantes sobre a ADECAR que merecem registro.
Lembremos que o antigo clube social (usado como sede da Associação por mais de uma
década), construído com mão-de-obra de muitos dos sócios, foi vendida para prefeitura e
transformada na sede da escola municipal. A Prefeitura, em contrapartida, presenteou a
ADECAR com a área pública onde funcionava anteriormente a referida escola; a instituição e
o vereador local lotearam o terreno e transferiram os recursos para construção de uma nova
sede. Na mesma época, entre 2007 e 2008, o Açougue Municipal foi anexado como
patrimônio da ADECAR, que comandou a venda do imóvel (tornando-se propriedade
privada) e a utilização dos recursos adquirido na construção de obras como o Estádio e o
Clube Social, ambos inaugurados pelo próprio prefeito Éwerton Rios d’Araújo Filho. Ou seja,
a prefeitura entende a ADECAR como um órgão administrativo, sempre disposto a
negociação.
Por meio das entrevistas com sócios e ex-sócios é possível analisar a teia de relações
compartilhadas dentro da ADECAR. Uma das questões-chave dos depoimentos referia-se ao
tratamento que a instituição oferece individualmente aos sócios. Há, nesse ponto, diversos
problemas que exigem análises pontuais. O primeiro problema exposto pelos entrevistados é
de que, em muitos casos, a ADECAR beneficia individualmente não-sócios ao invés de seus
sócios. Ou seja, muitos sócios (particularmente os que mantinham posicionamento político
adverso ao do Diretor) acabavam sendo “esquecidos”, e alguns benefícios recebidos e
distribuídos pela Associação eram desviados para satisfação de pessoas que não a
freqüentavam em sacrifício daqueles. Questionada se haveria tratamentos diferenciados para
com os sócios, em entrevista de 27 de junho 2009, uma das sócias destacou que:
Às vezes vinha pros sócios e os sócios às vezes ficava lá esquecido; escolhia assim aqueles lá, não sei nem como e a gente só ficava sabendo, “olha, veio coisa, pra associação”. Mentira, a gente nunca participou de nada. Como mesmo, às vezes vinha na Semana Santa, vinha peixe, outra hora teve uma vez também num sei se foi, teve uns bujões aí que veio, a gente não, não participou. Numa comparação, a gente só teve direito de pegar dois, como eu e meu esposo era sócio, a gente cada um pegou um, pegou um assim, de uma parte, pagando uma parte. E aqueles que não era sócio comprava os bujões todinho, podia querer 4, 5 tinha direito mais que a gente, aí fiquei chateada. Sempre existia, sempre se chateava desse por esse entendimento, esse modo de ver assim a associação. Eu achava que o sócio tinha mais direito de que o não-sócio e a gente não tinha, não tinha o direito que os outros tinham. Ou achava que o dinheiro dos outros era maior do que
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a gente que pagava só a metade. (GUIMARÃES. Entrevista concedida em 27 jun. 2009)
Outra entrevistada respondeu a mesma questão, em 14 de agosto 2009, apontando
novamente o desrespeito que a ADECAR comete para com alguns de seus sócios ao tratá-los
distintamente, ou ignorando-os em benefícios de não-sócios:
É, naquele existia, porque vinha, vinha, vinha cisterna; eu como uma sócia nunca fui beneficiada quando eu morava na roça. Veio, disviava as cisternas dos sócios pra dar a quem não era sócios. Tinha os problemas dos peixes na Semana Santa também; a gente, alguns que era beneficiado não era… pertencia a Associação, e nós como sócios, nós não tinha direito nisso aí, não era beneficiado nessas coisas aí. E a diferença é nessas coisas, porque as cisternas que vinha pra dar aos sócios era dos sócios, não tinha nada que desviar pra outras pessoas que não era sócio. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)
Embora os depoimentos coletados, resultantes da História Oral, não possam ser
encarados, como qualquer fonte, como retrato absoluto e objetivo ou como reveladores do que
realmente aconteceu, é impossível ignorá-los ao se analisar os comportamentos e a relação
entre ADECAR e seus sócios. As experiências dos entrevistados reafirmaram muitas das
hipóteses e problemáticas suscitadas pelo projeto, ao mesmo tempo em que trouxeram
contribuições inúmeras de novas leituras e releituras acerca da referida instituição. Os relatos
acima apontam o quando deficiente é a concepção de associativismo cultivada pela Direção,
já que além de desrespeitar todas as regras consensuais de relacionamento com os sócios, a
ADECAR não os privilegia em suas atividades. Bem mais importante é notar que, desse
modo, a instituição adere a uma medida suicida e coopera para sua própria crise, já que a
adesão ao associativismo não constitui beneficiamento real ou critério de prioridade.
O segundo problema confirmado pelas entrevistas é o comportamento clientelista
promovido internamente pela ADECAR através de formas diferenciadas de tratamentos para
com seus sócios. Seu comportamento pode ser representado com a célebre frase “para os
amigos pão, para os inimigos pau”, sendo a subserviência política (pró-situação) o principal
pré-requisito para tornar-se amigo da Direção. Postos lado a lado, a lealdade partidária dos
sócios foi muitas vezes fator definidor do acesso aos benefícios individuais repartidos pela
Associação. Surgida para coletividade e para defesa genérica de seus sócios, a ADECAR
petrificou-se como órgão de pressão político-partidária e protagonista na relação eleitor-voto-
candidato. Seu comportamento de incentivo à bajulação e à subserviência pretende definir o
75
situacionismo como único caminho favorável, classificando as oposições como desvios
condenáveis e improdutivos. Uma entrevistada que acompanha a ADECAR desde sua
fundação e não simpatiza com os candidatos políticos da atual direção declarou que sempre
sofreu sansões da instituição, já que os tratamentos diferenciados recebidos pelos sócios são
definidos politicamente:
Eu acho é porque… um jogo político. Porque uns vota pro lado deles era bem tratado, os outros que não votava eles tinham uma diferença terrível. Até as coisas que vinha mesmo, através da Associação, quem não votava com eles não achava, e quem votava eles levava até na porta, é. Eu mesmo nunca ganhei nada através da Associação. Nada, nada, nada, nada. Nunca fui beneficiada com nada da Associação. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)
Só podemos entender esse comportamento se lembrarmos das adaptações que as
práticas clientelistas e coronelistas passaram ao longo do século XX para sobreviver. Como já
destaquei no primeiro capítulo, os coronéis remanescentes foram obrigados a utilizar novas
bandeiras, novas formas de concentração de poder e de controle eleitoral. O desenvolvimento
comunitário da ADECAR expressa como o clientelismo foi institucionalizado e apropriado
como tática de manutenção de uma elite política em Conceição do Coité. Em outra entrevista
de 28 de junho 2009, o depoimento de um sócio que foi inclusive membro do Conselho Fiscal
da ADECAR falou da relação política entre a instituição e a situação municipal (PFL, PPB e o
atual PP). Questionado se haveria algum tido de propaganda política em defesa de grupo,
candidato ou partido de forma específica, declarou que:
Continua com o grupo do atual prefeito que é Renato. Sempre continua com o mesmo grupo. Eles ajudam e eles apóiam também, com certeza. Não é nada escondido, é tudo claro, às claras, entendeu?… Geralmente a ADECAR tem muito o apoio deles lá e eles também… e a associação que apóia eles também. (GONÇALVES. Entrevista concedida em 28 jun. 2009)
As duas faixas a seguir são exemplos da identificação entre a ADECAR e a prefeitura
de Coité. Além da relação de intimidade, a instituição faz propaganda e apologia do poder
público.
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Em outra entrevista de 20 de outubro, o depoimento de uma participante da fundação
respondia à questão: seria a ADECAR é uma entidade autônoma e independente ou sua
existência ligava-se a algum tipo de controle ou de certa manipulação política? Sua responda
mostra como a Associação tem se sustentado nos braços da política dependente.
Na verdade, a ADECAR ou uma associação ela é uma instituição autônoma, mas funciona mesmo é ligado ao controle político, e também pela manipulação política, porque sem a… o político como… meio de comunicação com o poder público você não consegue nada com essas associações. (ALMEIDA. Entrevista concedida em 20 out. 2009)
O terceiro grande problema apontado pelos entrevistados diz respeito ao mandato de
Direção da ADECAR, notavelmente o comando de 14 anos de José Aldo Gordiano Lima.
Sempre governista, ela nunca conseguiu esconder sua intencionalidade mais profunda, seu
prolongamento politicamente influenciado, independente dos meios necessários para tal. Ao
ignorar o Estatuto de forma escancarada, a Direção ratificou um controle sobre a possibilidade
de pressão política na comunidade. A participação popular esteve, assim, condicionada pelo
que Bottomore denomina como controle social do republicanismo:
Todo grupo social, na realidade pode ser estudado do ponto de vista do controle social que exerce sobre seus membros, e a contribuição que faz à regularização do comportamento na sociedade em geral. (BOTTOMORE, 1987, p. 199)
Segundo Azambuja, em comunidades muito pequenas comumente a regulação
comportamental dos indivíduos é empreendida pelos valores e normas de condutas
compartilhadas pelo grupo. O contato entre membros é sempre notável, ao mesmo tempo em
Figuras 1 e 2 - Faixas utilizadas na inauguração do Estádio Manoel Lourenço de Santana, em Agosto 2008.
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que eles podem ter aproximação com os seus próprios representantes políticos. Mas a opinião
pública também sofre interferências e habitualmente é consolidada por meios poderosos e
sutis de propaganda. Com relação à este ponto, Azambuja menciona:
A propaganda utiliza todos os modos de comunicação do pensamento e de sugestão, e é modernamente um formidável instrumento usado pelos governos, partidos políticos e corporações de toda espécie para criar correntes de opinião, suscitar desejos coletivos, distrair, captar e dirigir a atenção do povo. (AZAMBUJA, 1989, p. 266)
E continua destacando que:
A propaganda política visa valorizar e exaltar um candidato, um partido, um regime de governo, e quase sempre menosprezar, criticar e ridicularizar o adversário. Exagera ou inventa as qualidades daqueles e silencia ou nega as qualidades deste, se porventura as tem. (AZAMBUJA, 1989, p. 340)
No entanto, se o controle da Direção pelos interesses políticos é naturalizado por
alguns, outros sócios apontam insatisfação não apenas sobre o prolongamento, como também
suas formas de escolha. Numa outra entrevista, de 29 de junho 2009, o depoimento de um ex-
integrante da Diretoria concorda que é preciso mudar:
Ele (José Aldo) pode dar vaga pra outro, se não vai virar o que, Monarquia, vai virar ditadura. Não pode… tem gente mais capacitado do que outro. Não tô acusando o senhor presidente, mas ele pode ceder a vaga. Como o próprio vereador está dizendo que ele está deixando o cargo de vereador aqui em Aroeira. Se não vira monarquia, vira dinastia, vira tudo. (CEDRAZ. Entrevista concedida em 29 jun. 2009)
O problema não seria mudar somente o presidente, mas o comportamento
historicamente cultuado e a rede de relações esdrúxulas, as trocas de favores rasteiros e o jogo
de pressão clientelista e partidária de incentivo ao situacionismo municipal. Outra
entrevistada, participante desde 1987, apontou como costuma ocorrer o preenchimento da
Diretoria Executiva da ADECAR.
Quando quer fazer eleição não tem eleição; é… o candidato é nomeado de boca. Isso não existe, tem que ter eleição, de urna, de chapa, de tudo, porque tem que ter dois concorrentes, né… dois concorrentes numa eleição, um Chapa 1 e Chapa 2 que nem faz os candidatos, os candidatos é assim. Agora não, muitas vezes é só de boca, é por isso que tem gente aqui que diz
78
que se ele sair de ser presidente que sai também da Associação. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)
Não estamos falando da Primeira República, mas a escolha da Diretoria nos lembra as
fraudes cometidas pelos velhos coronéis. Para conservar o raio de ingerência na ADECAR foi
preciso controlar seus passos, sua diretoria e seus discursos; a Direção criou laços fortes de
fidelidade com seus sócios e destes com seus representantes políticos. Uma ilusão
democrática que camufla a propaganda partidária disfarçada pelo tempo e pelas ações sutis
dos presidentes entre 1987 e 2008.
Em 2008, a Associação conquistou uma vitória dupla: a chegada de Renato Souza ao
executivo e a nova manutenção de José Aldo em sua presidência. Em Aroeira, o apoio ao PP
foi, mais uma vez, maciço, como expresso na tabela abaixo, e a comunidade-eleitoral
participou com raras chances de escolhas. O próprio Figueiredo afirma que nos currais
eleitorais, as decisões eleitorais são profundamente desprovidas de opções.
Nos chamados “currais eleitorais”, os eleitores estão na situação de falsa oportunidade de escolha. Os benefícios ou retaliações a que estão sujeitos não dependem de suas opções, mas das chances de vitória do candidato, as quais não são definidas dentro das “cercas” desse “curral”. Se o candidato ganhar, tudo bem; se ele perder, de nada adianta dizer que votou nele; neste caso, a única opção é votar, independente das vontades individuais, na “esperança vazia” de que ele seja eleito. (FIGUEIREDO, 2008, p. 135)
No caso de Aroeira, mesmo não havendo proeminência da racionalidade nas escolhas,
segundo a definição supra mencionada, o apoio ao PP também foi direcionado pelos desejos
da utilidade do voto e pelos incentivos (e compromissos) econômicos compensatórios, como
os ganhos individuais ou coletivos. Com isso, não podemos dizer que a racionalidade foi
completamente negada, mas somente minimizada e trocada pelas relações de clientelismo,
onde eleitores justificaram o apoio à situação pela utilidade do voto. Esta racionalidade
econômica, por outro lado, foi geralmente limitada pela inexistência de uma justificativa
coletiva, havendo especificamente incentivos individuais (distribuição de objetos, recursos,
viagens ou dinheiro).
Mas o ato de votar apresenta uma dimensão bilateral, e se o voto adquire um valor
(uma chuteira, um emprego, um contato com o governo) nascido das condições sociais do
próprio eleitor, os políticos fazem suas ofertas com base nessas mesmas condições. Ou seja,
as demandas de curto prazo dos eleitores são utilizadas pelos políticos como plataformas
79
eleitorais, como estratégia de manutenção da dependência e apoio enquanto existirem. Os
incentivos econômicos devem estar contextualizados para seu entendimento.
Na entrevista concedida por Edvando Santos de Oliveira, presidente da Associação
Comunitária do Bairro da Jaqueira (ACOMAN), em 14 de novembro 2009, pode-se inferir
que o associativismo pode ser executado conforme uma nova acepção e funcionalidade, mais
democrática, consciente e sem os mecanismos da troca de favores, da submissão partidária e
clientelista. O entrevistado afirma que a Associação está disposta a dialogar com todas as
perspectivas políticas, tanto a situação (Executivo e Legislativo municipal) quanto a oposição,
“desde que não venha usar a comunidade pra nada, venha com a verdade”. Os trabalhos
realizados pela ACOMAN demonstram a disposição para acordos livres de partidarismos,
livre dos interesses de manipular a Associação em favor de promoção política de sua
Diretoria, de alguma liderança local ou dos seus eventuais parceiros que ela adquire. Na
relação que pode haver com o poder público da cidade, Edvaldo pontua que “a Diretoria tá aí
pra isso, não pra puxar pra um nem pra outro, eu falo isso como Presidente. A entidade ta aí
pra abraçar uma causa, mas que venha de uma forma limpa, transparente e justa, é essa a
finalidade da gente em relação ao Executivo e ao Legislativo aqui de Coité”. Isso significa
que a Associação não deseja ser submissa à Prefeitura, mas sim comunicar-se para o
atendimento das dificuldades comunitárias. Enfim, em uma estrutura política que sempre
penetrou nos ambientes das experiências comunitárias, é essencial não trocar o enfrentamento
e a cobrança como direito pela paralisia benevolente, dependente e perseguidora da política
partidária.
Hoje em dia o que se vê aí é grupos e mais grupos brigando pelas associações pra em meio delas ganhar o poder, implantar várias alienação na mente do povo, entendeu?… quando na verdade, que a gente vê muito isso no… no… no município da gente, é associações, associados sendo maltratados porque vota no grupo tal, no grupo tal, e não é do meu grupo, entendeu… não é do grupo do presidente, então por isso não merece um tratamento, não merece receber alguns projetos, não merece participar de algumas coisas. Então no momento que isso começa a acontecer, que a política entra dentro do associativismo ele deixa de ser associativismo e passa pra ser político. (OLIVEIRA. Entrevista concedida em 14 nov. 2009)
80
Dados das seções do Distrito de Aroeira nas Eleições municipais de 200825.
Cargo – Prefeito Quantidade de votos nominais26 % em relação ao total de votos
nominais (aproximadamente).
Renato (PP) 752 68,73%
Assis (PT) 304 27,78%
Alex (PMDB) 38 3,47%
25 Informações extraídas do Boletim de Urna das eleições 2008, acessado em http://www.eleicoeslimpas.tv.br/bu.pdf, em 03 de dezembro 2009. 26 Exclui-se, portanto, os votos brancos ou nulos. 27 Não contabilizados os votos de legenda.
Cargo – Vereador Quantidade de votos nominais27 % em relação ao total de
eleitores com votos nominais.
Edevaldo da Aroeira (PP) 780 66,66%
Demais candidatos 390 33,33%
81
CONCLUSÃO
A liberdade é a capacidade do homem de assumir seu próprio desenvolvimento. É nossa capacidade de moldar a nós mesmos. (Rollo May)
As desigualdades sociais herdadas do desenvolvimento nacional do Brasil exigiram
das elites um processo estratégico de dominação dos excluídos. A participação política de
imensa parcela dos brasileiros vincula-se normalmente às necessidades mais elementares da
existência humana, como a luta pelo direito de comer, beber, vestir e ter uma moradia. A
preocupação com os problemas das camadas populares foi sendo acompanhada pelo discurso
da benevolência e compreensão, mas escondendo a intenção real de reproduzi-los. Os grupos
favorecidos mantêm-se fortemente instrumentalizados, e vigilantes, captando as dificuldades
da maioria da população de utilizando-as como justificativa para sua dominação.
Pelos mecanismos políticos e econômicos, as elites coletivizaram seus interesses e
tentaram converter suas preocupações em interesse nacional. As disparidades sociais e as
explorações, contudo, evidenciaram a necessidade da reação dos não-privilegiados e a
participação nos espaços públicos de reivindicação e enfrentamento político. Mas a
participação não deve ser observada como exclusividade dos pobres e miseráveis;
participação é ação frente aos desafios e é processo de todos os segmentos sociais impedidos
de decidir as questões referentes às suas condições.
Essa mesma participação entusiasma interesses de agentes externos pelo controle da
população e é indispensável entender que, ao invés de reprodução da ordem, a participação é,
como nos lembra Souza, questão social. É possível que os ambientes de moradia sejam
espaços de transformação social, de ampliação democrática das condições de luta dos não-
privilegiados.
Em Desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen versa sobre a imprescindibilidade
das várias formas de liberdade no processo de desenvolvimento e superação dos problemas,
privações e mazelas que ainda afligem o mundo. Nessa luta, a liberdade é entendida como
“um comprometimento social”, e não seria somente o fim, mas o principal meio pelo qual se
busca o desenvolvimento. Liberdade é não somente independência para as ações, mas a
existência de oportunidades reais para as pessoas atenderem às suas demandas.
82
O desenvolvimento seria a possibilidade de as pessoas usufruírem de oportunidades
que efetivem sua condição de agente. A eliminação das privações é fator constituinte do
desenvolvimento, e isso depende fundamentalmente da condição de agente dos indivíduos
que, por sua vez, pode ser podada pela baixa oportunidade em termos sociais, econômicos,
políticos que acompanham milhões de pessoas. Muitas vezes a pobreza econômica limita a
liberdade, já que as pessoas não possuem liberdade para ter boa alimentação, adquirir
remédios, ter acesso à moradia, roupas e água tratada de qualidade. No entanto,
desenvolvimento não se resume ao crescimento econômico, tecnológico e do capital privado,
mas compreende também fatores como as disponibilidades sociais e econômicas (saúde,
educação, por exemplo) e civis (como a permissão para participar de discussões públicas).
Segundo a autora, as liberdades de diferentes tipos (políticas, facilidades econômicas,
sociais, segurança protetora e a garantia de transparência) podem vincular-se mutuamente,
reforçando-se. Se uma liberdade pode ajudar na promoção das demais, as privações podem
ter, do mesmo modo, um efeito dominó; as exclusões ou falta de liberdades econômicas,
sociais e políticas podem interligar-se densamente.
Como o desenvolvimento pressupõe a liberdade, as pessoas envolvidas devem ter
funções ativas nesse processo, o que significa que não cabe ao poder público (e os possíveis
agentes externos) fazer simplesmente o serviço de entrega de encomenda, mas o de
fortalecimento e proteção das capacidades e liberdades humanas. Ao invés de beneficiários
passivos dos programas de desenvolvimento, os indivíduos devem almejar a condição de
agente livre e sustentável.
Comparando o desenvolvimento apregoado por Amartya Sen ao que tem sido
experimentado pela ADECAR percebe-se discrepâncias importantes entre as duas
perspectivas. Creio que temos dois desenvolvimentos: um ideal e um real. O primeiro é o de
liberdades e autonomias individuais, como campo de direito, de conscientização e
protagonismo de seus agentes. O segundo, presente na experiência da ADECAR, é um
desenvolvimento de dependência extrema, como campo de mendicância (e não de direito) e
de subserviência aos interesses partidários do governo municipal de Coité. Um espaço de
clientelismos, propagandas e pressões em favor de uma estrutura de privilégios e à custa dos
sócios (e toda comunidade).
O desenvolvimento real da ADECAR não é menos repugnante que os interesses
políticos que ele serve. Ambos compartilham das curtas práticas, dos objetivos
individualizados e da lógica clientelista de dependência. Isto certamente prejudica a própria
83
instituição, já que não havendo objetivos longos inexistem perspectivas de conquistas,
desenvolvimento e, portanto, liberdade.
Uma associação, para ter vida longa, precisa ter claros objetivos que pretende atingir. Quanto mais esses objetivos têm uma perspectiva a longo prazo, mais a associação tem condições de crescer e se desenvolver. Os objetivos imediatos devem ser uma maneira de realização dos objetivos a longo prazo. (SOUZA, 2000, p. 219)
É importante lembrar esse ponto porque a ADECAR convive atualmente com a evasão
e desinteresse de muitos sócios. A instituição já não exprime atração, motivação ou consegue
atender às aspirações de muitos deles, que resolvem simplesmente sair. A medida mais
coerente não deveria ser a evasão, mas a resolução das insatisfações convivida pelos sócios. O
problema é que, em contrapartida, há um jogo interessado na reprodução das práticas, do
controle, do discurso e da conveniência partidária impregnada na ADECAR.
A institucionalização de mecanismos de participação direta somente pode ser considerada uma conquista na medida em que se torne espaço de decisão e não só espaço de confronto de idéias. Pois, no último caso, o espaço institucional configura-se como uma concessão das classes hegemônicas. Resulta ser apenas um espaço formal e inócuo, sem poder real. Pelo contrário, um espaço institucional de participação é uma conquista quando não se torna o final de uma luta, mas expressão real da relação de forças existentes na sociedade, quando a negociação configura um método e um meio das classes não hegemônicas para fazer valerem seus interesses específicos. (SOLER, 1992, p. 88)
A ADECAR buscou vestir nos seus sócios o “véu da ignorância” ou a “camisa-de-
força”, trocando os possíveis ganhos pela lealdade partidária e pelo apresso à situação política
municipal (PFL, PPB e, finalmente, PP). A instituição pretendeu – e de certo modo conseguiu
– direcionar a participação eleitoral dos sócios, fazendo com que muitos acreditem que sua
honra contraiu uma dívida com o pacto partidário. Aos que resistem (tidos como desvios de
comportamento) sobra a indiferença e o descaso diante dos benefícios coletivos. Aos sócios
relutantes, opositores à situação – que estão munidos somente com a possibilidade
democrática da escolha – só restam duas opções: permanecer na ADECAR recebendo
tratamento especialmente rebaixado ou optarem pela saída. Há, enfim, a esperança (e sempre
existe uma) de que as coisas um dia mudem, e que não seja necessário haver tanta confusão e
promiscuidade entre o desejo desses sócios de participar, reivindicar e melhorar as condições
de uma vida já calejada pelas exclusões e os rigorosos interesses partidários de uma elite
84
política, social e econômica. A esperança dos sócios rechaçados é que, na democracia
eleitoral, nenhuma derrota ou vitória é definitiva; sempre haverá uma nova chance.
85
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Termo de Doação de 02 de Dezembro 1994.
Convênio Nº. 525/94 – Assessoria Jurídica – CAR.
Convênio Nº. 219/1997 entre a CAR e a ADECAR.
Estatuto da ADECAR – 03/05/1987
Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 22/05/1998
Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 05/06/2005
Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 30/09/1987
DVD de Inauguração do Estádio Manoel Lourenço de Santana – 09 de Agosto 2008.
Sobre o FUMAC/CDM
Ata de Reunião Ordinária do Conselho do FUMAC-P – 05/02/2002
Relação dos Membros do Conselho do FUMAC-P – 05/02/2002
Regimento Interno do FUMAC – 04/06/1998
Ata de Criação do Conselho Municipal do FUMAC – 04/06/1998
Regimento Interno do Conselho Municipal do FUMAC-P – 05/02/2002
Regimento Interno do Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do Coité –
14/10/2003
Ata de Reunião Extraordinária do CDM-FUMAC – 23/05/2008
Estatuto Social do CDM-FUMAC de Conceição do Coité – 01/06/2009
Ata de Reforma Regimental do CDM-FUMAC – 02/06/2009
ENTREVISTAS
89
ALMEIDA, D. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 20 out.
2009.
CEDRAZ, V. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 29 jun. 2009.
GONÇALVES, D. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 28 jun.
2009.
GUIMARÃES, V. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 27 jun.
2009.
OLIVEIRA, E. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 14 nov.
2009.
RODRIGUES, L. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 15 ago.
2009.
SANTOS, F. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 06 jan. 2010.
SILVA, M. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 14 ago. 2009.
90
ANEXOS
91
ANEXO 1
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS QUATRO TIPOS DE OLIGARQUIAS BRASILEIRAS, 1889-1930
Familiocrática Tribal Colegiada Personalista
Forma de
Associação
Membros consanguíneos
Membros não-
consanguíneos
Dependentes sócio-
econômicos confinados
numa região menor, uma
comarca ou um
município rigorosamente
organizado/centralizado.
Grupos de famílias
relacionadas, vindas
do setor rural do
estado, organizado
por aliança ou
quadro compacto e
descentralizado.
Famílias e clãs,
grupos de interesse
econômico
seguidores
individuais vindos
das áreas urbanas e
rurais
descentralizadas com
chefes definidos dos
subgrupos.
Grupos de famílias
relacionadas ou não,
clãs, seguidores
individuais de um líder
carismático, vindos de
todos os setores urbanos
do estado, altamente
centralizada organizada
e mantida pelo carisma
do líder.
Objetivos
Preservação dos
interesses econômicos
familiares, monopólio
do poder político, desejo
de dominar o respeito
social.
Perpetuação do
status quo ou do
grupo dominante,
monopólio dos
cargos políticos:
municipais,
estaduais e federais.
Expansão dos
interesses
econômicos dos
membros colegiados,
preservação pelo
grupo do monopólio
da política estadual e
federal, controle da
presidência federal.
Preservação do status
quo dos membros,
controle pessoal da
política estadual ou
federal pelo líder, uso
arbitrário dos recursos
públicos pelo líder, para
o grupo.
Meios de
Controle
Supremacia econômica,
laços de dependência,
capacidade de dispersar
favores, uso de forças
armadas privadas.
Promoção do
nepotismo/favores
políticos, usurpação
dos recursos
públicos para os
interesses tribais,
uso das forças
armadas tribais e
milícias do estado.
Exercícios pessoais,
estaduais, federais,
organização de
partido ou colegiado
de interesses do
grupo, divisão
eqüitativa dos
“favores” dos
governos estadual e
federal.
Promoção do nepotismo
e dos favores políticos,
uso da milícia do
estado, partido de
membros pessoalmente
leais, alianças eleitorais,
acordos.
92
Lealdade
Dirigida ao chefe da
família, permanente,
inalienável.
Dirigida ao chefe
tribal eleito ou
reconhecido,
temporária ou por
toda a vida do
chefe.
Dirigida ao líder da
facção (tribal) do PR.
Dirigida ao líder
carismático por toda a
vida do líder.
93
ANEXO 2
HISTÓRIA DE AROEIRA
Segundo depoimentos de antigos moradores do povoado de Aroeira, existiam algumas
famílias que exploravam terras em algumas regiões e que, depois de um determinado tempo,
se retiravam a procura de outros lugares com terras mais férteis, para que pudessem
continuar seus trabalhos.
Por volta de 1880, uma família que fazia esse tipo de retirada, conhecida como “o
Povo de Pernambuco”, provavelmente tendo sua origem no estado de Pernambuco, fugindo
de um surto de febre amarela e em busca de novas terras, dentro de seu percurso acabaram
se alojando embaixo de uma árvore chamada aroeira, que ficava situada na Fazenda Lagoa
da Pedra, próxima à estrada que ligava o então povoado de Ichu à freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Coité.
O patriarca que não vinha bem de saúde sofreu uma recaída da doença conhecida
como febre amarela, ainda em com muitas dificuldades e em virtude da mesma, passaram a
residir nessa região por mais de uma década, onde o qual veio a falecer por volta de 1900.
Seus familiares o enterraram próximo ao pé de aroeira; em seguida, colocaram uma
cruz no local e permaneceram por mais alguns dias. No final da década de 1901 partiram
rumo à região da Fazenda Porção, esta bem próxima à freguesia de Nossa Senhora da
Conceição do Coité. Daí por diante alguns missionários começaram a pregar cultos
religiosos junto à cruz, local este onde foi enterrado o patriarca do povo conhecido como
“Povo de Pernambuco”. Mais tarde, um certo padre chamado Marculino começou a
freqüentar o local, celebrando missas e o mesmo era recepcionado pela família de Francisco
do morro, que chegaram a construir a casa do padre (hoje o comércio do jovem José
Ronaldo).
Surgiram grandes movimentos comerciais, a exemplo de barracas e outros,
principalmente nos dias em que aconteciam as missas, atraindo novos povos, se tornando
moradores. Um novo povo ia surgindo de maneira gradativa, próximo ao pé de aroeira; eram
formadas grandes missões, onde os fiéis louvavam com ofertas materiais para a construção
da primeira e atual capela, que foi construída toda de pedra bruta, tendo como primeiro
padre Marculino e em seguida Magalhães e tantos outros. Atuaram também nessa construção
as famílias dos senhores Joaquim do Morro, Francisco do Morro e outros, isto aconteceu
entre 1924 e 1930.
Moradores ilustres como Argemiro Ramos, Aureliano Sampaio, Gustavo Pinto,
Durval Nunes, Ermínio Braga, seu Justino, Daniel Ramos, seu Zé Grande, Gildágio Lopes
94
(primeiro comerciante), dona Leopoldina (primeira professora), João Ramos, contribuíram
para o desenvolvimento do então povoado de Aroeira.
Hoje, já distrito do município de Conceição do Coité – Bahia, conta com uma grande
área territorial, contendo em sua sede 348 casas, com 410 famílias, 812 habitantes, com uma
população geral do distrito de 2.773 habitantes. Tendo como eleitores 1.876, tem como
pertencente em seus territórios quatros povoados: Lagoa do Meio, Açude de Aroeira, Novo
Horizonte e Cruzeiro.
Um distrito que vem a cada dia se desenvolvendo, conta hoje em sua sede distrital
com: praças (uma matriz e outra para eventos culturais e públicos), várias ruas
pavimentadas, há paralelepípedos, quatro igrejas, farmácia, posto de correio, centro de
saúde (totalmente equipado com consultório médico, sala de curativo, sala de circulação,
gabinete ginecológico, gabinete odontológico, sala de espera e com atendimento médico e
odontológico três dias na semana), duas padarias, quatro oficinas mecânicas, uma
mercearia, dois mercadinhos, duas oficinas para bicicleta, duas casas de materiais de
construção, um cyber, livraria, comércio de peças para motocicletas com serviços
especializado, vários pontos comerciais, uma associação de moradores (Associação do
Desenvolvimento Comunitário de Aroeira) com mais de vinte anos de existência, que também
vem contribuindo para o crescimento local e região, bem como a luta e conquista da
implantação do sistema simplificado da água do povoado de Novo Horizonte e sede do
distrito (31 de dezembro 2000), uma patrulha agrícola mecanizada para o desenvolvimento e
crescimento do trabalhador rural. Há uma fábrica comunitária de fubá de milho, unidade
produtora de farinha de mandioca, serviço de telefonia residência e pública contendo 8
orelhões.
Um distrito que tem sua festas locais e culturais bem como: festejo juninos, lavagens,
padroeiro, reveillon com uma queima de fogos considerada como uma das melhores da
região, atraindo milhares de pessoas. Uma festa que também se tornou cultural em nosso
distrito há mais de 13 anos é conhecida como Forró-Jegue, que acontece aos dias 24 de
Junho de cada ano. Festa esta que surgiu a partir da visita de um empresário chamado
Valmir Del Rio, filho da cidade de Osasco – São Paulo, que veio conhecer o então povoado
de Aroeira época de São João, a convite dos moradores José Aldo Gordiano Lima e Antonio
Dias.
Logo de cara se apaixonou por essa terra e pelo seu povo alegre e acolhedor que
botava “fogo” nas festas juninas.
Durante o dia, o povo não fazia nada a não ser tomar umas e outras e bater aquele
gostoso papo, onde outros dormiam a fim de se manterem preparados para a noitada que
95
vinha pela frente. Inconformado com aquela monotonia, este ilustre visitante teve uma
brilhante idéia de formar uma festa de forma que ficasse tradicional dos tempos juninos.
Preparou de forma simples, com o apoio da comunidade um jegue com uma cangalha,
um toca fitas e duas caixas de som tocando músicas juninas e os foliões acompanhando,
soltando tiros ao ar, bebendo licor, batidas, cervejas em copos, garrafas e até penicos.
A essa maravilhosa criação deram o nome de Forró-Jegue, que pela sua primeira vez
aconteceu nos dias 23 e 24 de Junho de 1995, tornando-se uma das maiores e melhores festas
juninas da região sisaleira, hoje atraindo milhares de foliões em nossa comunidade.
A Lavagem do Beijo e a Lavagem do Beco são atrações que também já se tornaram
tradicionais no nosso distrito. Elas atraem milhares de pessoas a todo final de ano e
contribuem para o crescimento do comércio local.
Ainda na área de lazer, contamos com uma quadra poliesportiva, um estádio de
futebol em fase de construção, um time de futebol amador chamado “Botafogo de Aroeira”, o
qual tem suas tradições desde o ano de 1984, onde o mesmo tem alcançado alguns títulos em
competições como: vários torneios, campeonatos rurais e coiteenses, sendo campeão rural de
1995/1996, campeão coiteense em 2003/2004, contando com mais de vinte troféus entre
campeão e vice em sua galeria. E para melhor desenvolvimento e o crescimento desta
comunidade “aroeirense” contamos com a existência de quatro escolas: Escola Municipal
Duque de Caxias (com ensino infantil e fundamental de 1ª e 4ª série), Escolinha Tio Patinhas,
Centro Educacional Argemiro Ramos (ambos de ensino infantil e fundamental de 1ª a 4ª
série), Colégio Estadual Duque de Caxias com fundamental de 5ª a 8ª série e Ensino Médio
em formação geral. Conta também com um clube social, o qual tem sido muito útil para a
comunidade, não só para festas dançantes e sim como outros eventos, bem como religiosos,
cerimoniais de casamentos, aniversários, reuniões políticas, colação de grau e outros.
Diante de tudo isso, pode-se chagar a uma conclusão: Aroeira é um dos maiores
distritos do município de Conceição do Coité e que sempre se destacou com sua beleza e
desde tempos remotos tem acolhido pessoas com seu jeito humilde de ser. É por esta razão
que hoje recebe por mérito o título de distrito do município de Conceição do Coité-BA.
“Aroeira sempre Aroeira, que nome certo lhe deram, representa a natureza e tudo de belo que nela há. Terra de gente bonita e de bom coração, que sabe fazer caridade, acolhendo o irmão. Fazes das nossas crianças os frutos cidadãos, que juntos lutarão por uma justa nação.”.
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