1. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 15Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia1 Carlos Roberto Drawin A Angstia Resumo
Pretendemos neste artigo pensar a inter-relao entre Psicanlise e
Filosofia luz de uma interpre- tao radical da modernidade, isto ,
um modo de pensar que concebe a modernidade ao menos em algumas de
suas correntes dominantes como um projeto de encobrimento da
finitude huma- na. Nessa perspectiva o confronto entre a Psicanlise
e a Filosofia possibilita resgatar um saber que no s no dissimula a
angstia mas nela se sustenta. Palavras-chave Psicanlise, Filosofia,
Modernidade, Ontologia, Saber, Angstia. gico como um esforo em
situar as con- vergncias e divergncias entre dois dife- rentes
regimes discursivos mas num sen- tidoonto-antropolgico. A expresso
onto- antropolgico remete idia de que o Ho- mem no um ente dentre
outros entes, mas por seu saber, isto , por sua insero na cultura,
um ente que no seu prprio ser interroga o ser e pe em questo toda
realidade (Heidegger, 2001, 15-19). E j se pode antecipar que esta
idia que apa- rece cifrada na conjugao tensa entre an-
gstiaesaber,ouseja,comoa hincia(ban- ce, dhiscence) que torna o ser
humano se- parado da natureza e lanado nas possibi- O ttulo deste
artigo pressupe uma forte convico: a de afirmar a irremissvel e
necessria pluralidade terica que atra- vessa o campo psicanaltico,
o que o torna um campo problemtico que no pode prescindir de um
trabalho de auto-refle- xo para o qual a filosofia oferece subs-
dios preciosos. Creio, por conseguinte, que a inter-relao ou,
mesmo, a polarizao entre Psicanlise e Filosofia no tangen- cial ao
que seria o ncleo terico da psica- nlise, mas o atravessa
constitutivamente em decorrncia de sua prpria abertura conceptual.
Neste artigo esta inter-relao abordada no num sentido epistemol- 1.
Este texto foi apresentado livremente como Aula Inaugural do Crculo
Psicanaltico de Minas Gerais no dia 07 de maro de 2008. A
informalidade da comunicao oral justifica o uso da primeira pessoa
do singular em substituio do plural de modstia. No entanto, os
temas aqui abordados fazem parte de uma investigao mais ampla que
tem sido parcialmente apresentada em diversas ocasies. Estou me
referindo, sobretudo, exposio feita no VI Frum Mineiro de
Psicanlise, realizado em So Joo del-Rei em 2006, intitulada O
declnio do Outro: tica e mal-estar na ps-modernidade e a no VII
Frum Mineiro de Psicanlise, realizado em Lavras em 2008, intitulada
A pulso na histria. Freud e o enigma da cultura. Duas outras
palestras, que no se inserem to imediatamente na problemtica
psicanaltica, fazem parte desse conjunto de textos
inter-relacionados: uma palestra proferida no Instituto de Estudos
Avanados Transdisciplinares (IEAT) da UFMG, em 2006, e publicada
com o ttulo A razo ensombrecida e uma palestra proferida no XXI
Congresso Nacional da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio,
em 2008, com o ttulo A modernidade e o paradoxo da negao racional
da vida.
2. Carlos Roberto Drawin 16 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56
p. 15 - 26 Out. 2008 lidades da ordem simblica e que o separa tambm
de si mesmo, de sua prpria ima- gem, uma vez que na ordem simblica
os vazios so to significativos quanto os cheios (Lacan, 1966, 392;
Idem, 1985, 402-403). Somos uma ek-sistencia, estamos sempre fora
do que pensamos que somos e do que pretendemos determinar como
nossa es- sncia, o que nos torna um tipo de ente lanado num para
alm de si mesmo, exilado das crenas e certezas absolutas. Ns somos
um ente no coincidente con- sigo mesmo, repousando em sua prpria
essncia pr-determinada, mas um ente que fala e o fazendo tece o seu
mundo, dentro do qual nos descobrimos em nossa diferena especfica
como animal portador da razo (zon lgon chon), segundo a cls- sica
formulao de Aristteles2 . Ao falar, ao ser portador de um logos,
esse animal que morre responde hincia que o de- vora e d um sentido
sua mortalidade. Num ensaio instigante sobre a negativida- de do
humano, Giorgio Agamben fil- sofo italiano, professor na
Universidade de Verona inicia a sua exposio com uma citao de
Heidegger colhida em A essn- cia da linguagem: Os mortais so
aqueles que podem ter a experincia da morte como morte. O ani- mal
no o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relao essencial
entre mor- te e linguagem surge como um relmpa- go, mas permanece
impensada3 . O que designamos como angstia no outra coisa seno esse
relampear que nos surpreende ao cortar o cu simblico em que nos
abrigamos, revelando a profundi- dade de sua escurido. Na angstia o
saber se abisma. E ns, beira do precipcio, nos agarramos s verdades
inabalveis do co- nhecimento j possudo. No h o que las- timar, pois
o que ns somos como ani- mais mortais e falantes. Por outro lado,
no entanto, no po- demos escamotear a significao tica des- sa nossa
condio. Quando o saber no quer saber de si, quando ele recusa o mo-
vimento reflexivo que traz tona as suas condies de possibilidade,
ento o estrei- to vnculo entre a linguagem e a morte encoberto e
mistificado. O saber que re- conhece o seu enraizamento na finitude
nos coloca diante da angstia e do nada, mas essa experincia de
desamparo dif- cil de ser suportada e o seu esquecimento converge
facilmente com a clausura nar- csica da auto-suficincia. Tais
considera- es so completamente estranhas para uma cincia
comprometida com a domi- nao tcnica da natureza e a organizao
funcional da sociedade. Por isso, em sua clebre conferncia sobre a
metafsica Hei- degger disse que a cincia no quer saber do nada e o
relega com um gesto de supe- rioridade (Heidegger, 1978, 119). Essa
ne- gao da morte, esse esquecimento quase arrogante da finitude no
se restringe ao prazer ldico desse modo ps-moderno de viver, que
celebra o estilo light e exalta a liberao do fardo da velha
metafsica. Essa , sem dvida, uma das faces do niilismo contemporneo
aquele que Nietzsche, no Prlogo de Assim falou Zaratustra, atribuiu
ao ltimo homem e que ocul- ta uma terrvel gravidade sob sua aparn-
cia de leviana leveza. (Nietzsche,1970, 349-351). Tudo estaria
correndo s mil maravi- lhas para o indivduo liberado do passado e
da tradio se a histria recente de nossa civilizao no fosse to
carregada de do- res e de horrores e no nosso futuro no se
desenhasse um horizonte to pouco pro- missor. No fcil, portanto,
calar as ad- moestaes dos pensadores radicais e, den- tre eles, a
terrvel hiptese aventada por 2. Cf. ARISTTELES. Poltica. I, 2,
1253-9. 3. Cf. HEIDEGGER, Martin. Pfullingen: Verlag Gn- ther
Neske, 1967, p. 03. Apud AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte.
Um seminrio sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006, p.09.
3. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 17Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 Dostoiwiski: como no possvel aos homens criar o ser,
criar a vida a partir do nada, a sua atividade criadora inverte-se
em destruio, como uma forma de criar s avessas (Possenti, 2004,
325-357). A vontade auto-suficiente e ilimitada exer- ce o seu
poder criador como nadificao, como rejeio do ser. Talvez aqui
possa- mos vislumbrar o fundo obscuro que tra- gou a expectativa
ilustrada de uma racio- nalidade cujo poder seria sempre favor- vel
ao progresso e emancipao do ser humano. A experincia histrica do
scu- lo passado demonstrou que a violncia no provm da natureza
ainda no suficiente- mente domesticada, mas habita o corao da razo
(Drawin, 2007). Essa maneira de pensar que pode- mos designar como
radical, porque preten- de expor as razes do mal-estar que corri o
avano triunfante da racionalidade tec- nocientfica constitui o
referencial te- rico de nossa abordagem da inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia. Embora exis- tam mltiplos pontos de vista a
partir dos quais podemos analisar a inter-relao dos dois saberes, o
que pretendemos aqui res- saltar o seu tenso entrecruzamento na
mesma inteno da radicalidade. Pois, se por um lado, a filosofia
herdeira e guar- di da longa histria da razo ocidental, por outro,
o trabalho do filosofar consiste em escavar sempre mais
profundamente o solo de onde brota essa mesma razo. Do mesmo modo,
se por um lado, a psicanli- se nasce, como quis o seu fundador, sob
o signo da cientificidade, por outro, a expe- rincia analtica no
cessa de subverter todo esforo de estabilizao conceptual da teoria
psicanaltica. Psicanlise e Filo- sofia podem se encontrar nessa
ambivaln- cia em relao razo uma vez que se movem entre os parmetros
da angstia e do saber, da cincia e da existncia ou, em termos
metapsicolgicos, entre pulso e representao (Ricoeur, 1965,
120-153). Como compreender a tenso interna desses dois saberes que
o que acaba por alimentarasuaentrecortada,pormjamais emudecida,
interlocuo? No h como responder a uma questo to difcil e in-
trincada, mas podemos arriscar alguns ele- mentos que possam
subsidiar a reflexo sobre o tema. Vamos faz-lo em trs tpi- cos,
desenvolvendo-os de modo muito breve e superficial. No primeiro,
ser feita uma rpida incurso na histria da filoso- fia moderna, de
modo a indicar alguns ele- mentos que a distinguem do pensamento
grego e medieval. No segundo, ser pro- posto um diagnstico bem
esquemtico do que pode ser designado como crise da ra- zo moderna.
No terceiro, o entrecruza- mentoentrePsicanliseeFilosofiaserilus-
trado a partir da questo da angstia. I A razo clssica entendendo
por essa expresso a tradio filosfica procedente de Plato e
Aristteles e sua recepo pela escolstica medieval latina pode ser
de- finida como aquela que se orienta por meio de um paradigma
metafsico e do modo de pensar cosmocntrico4 . Definimos o para-
digma metafsico como aquele que pressu- pe a existncia de uma
realidade inde- pendente da conscincia humana e que cognoscvel
dentro de certos limites, pois se pressupe a homologia entre o ser
e o pensar. A razo possui um alcance verda- deiramente ontolgico,
uma vez que o ser concebido como possuindo uma inteli- gibilidade
intrnseca capaz de ser apreen- dida pelo intelecto humano. O modo
de pensar cosmocntrico aquele em que o homem e a sociedade no se
encontram separados, mas inseridos no cosmos, isto , na totalidade
das coisas que o que cons- titui a realidade inteligvel 4. Os
termos filosficos so altamente polissmicos. Um dos mais complexos ,
sem dvida, metafsica. Po- der-se-ia questionar se, por exemplo, os
pensamentos platnico,aristotlicooutomsicopartilhariamdealgo como um
carter metafsico. Mas este problema no pode ser aqui discutido, por
isso vamos apenas esque- matizar o que entendemos por
metafsica.
4. Carlos Roberto Drawin 18 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56
p. 15 - 26 Out. 2008 Ora, o advento do Cristianismo intro- duziu
uma forte tenso estrutural nesta concepo da razo clssica. Em
sntese, pode-se dizer que a doutrina da criao do mundo a partir do
nada implica no aban- dono da idia de que o cosmos a fonte ltima da
inteligibilidade. Ou seja, impli- ca no abandono do modo de pensar
cos- mocntrico. A questo fundamental do pensamento cristo ser,
ento, a seguin- te: possvel desvincular o paradigma me- tafsico do
modo de pensar cosmocntri- co? Ou, possvel reconstruir o paradig-
ma metafsico a partir da idia bblica de um Deus criador e
transcendente? Ou seja, a partir do modo de pensar teocntri- co?
Duas observaes so aqui importan- tes. Em primeiro lugar, a
correspondncia, qualquer que seja a sua forma, entre a in-
teligibilidade do ser e a inteligncia huma- na implica que a
demanda humana de sen- tido, assim como as idias de virtude e bem,
tem um fundamento objetivo. Isso signifi- ca que h uma ntima
vinculao entre a ontologia, a antropologia e a tica. Assim, a
pergunta pela essncia do humano (ei- dos) no pode estar dissociada
da pergun- ta pelo fim ou sentido da vida humana (t- los). Por
conseguinte, embora possamos falar de uma psicologia ou de uma
antro- pologia enquanto cincia acerca do ho- mem, esta no tem a
pretenso de alcan- ar uma objetividade neutra, mas de mos- trar por
que o homem essencialmente um ser moral. A cincia no poder ser,
portan- to, desvinculada da sabedoria prtica. Por isso, podemos
dizer que o sbio, o que age com prudncia e segue a lei csmica, o
verdadeiro psiclogo do mundo antigo, assim como o mestre
espiritual, o que ori- enta o discernimento entre a carne (bsar,
srx) e o esprito (rah, pneuma) na inti- midade do corao humano
(leb, karda) e na perspectiva da abertura para a transcen- dncia, o
verdadeiro psiclogo do mun- do medieval. Com esta observao assina-
lamos que, apesar de marcantes diferenas, haveria certa
continuidade na histria da razo clssica. Em segundo lugar, a
dificuldade em conciliar a teologia crist com o modo de pensar
cosmocntrico acabou levando a uma profunda transformao do paradig-
ma metafsico. Se a verdade no provm do cosmos, pois a sua fonte
ltima Deus transcendente, e se o homem enquanto imagem de Deus
(imago Dei) o nico ser intra-mundano vocacionado para a
transcendncia, ento a descoberta da ver- dade s possvel pelo
caminho da interi- orizao, do refluxo para si mesmo, num movimento
que seria ao mesmo tempo o da maior intimidade e o da mxima aber-
tura para o Deus transcendente. No foi outra a intuio de Agostinho
que pode ser resumida na clebre frase: a verdade reside no interior
do homem. Isso significa que no podemos nem nos identificar com a
ordem csmica em relao qual Deus absolutamente transcendente e nem
nela encontrar uma verdadeira resposta para nossa demanda de
sentido. Ora, a face negativa da vocao para a transcendn- cia o
pecado, que o excesso que incli- na o homem para si mesmo e que
pode ser chamado, como Kant o fez, como o mal radical (das radikale
Bse). Desse modo, a nossa cura, inclusive a libertao da razo para a
verdade, s pode provir do encami- nhamento do mundo ilusrio das
sensa- es para interioridade, esta conversio ao mais profundo de ns
mesmos que simul- taneamente intimidade e transcendncia (interior
intimo meo et superior summo meo). H nessas concepes de origem
teolgica um ntido distanciamento do modo de pensar cosmocntrico que
caracterizava a filosofia grega. Com esta observao que- remos
enfatizar que, para alm das conver- gncias, h certa descontinuidade
na his- tria da razo clssica. No difcil perceber como esse dis-
tanciamento teologicamente motivado ir desaguar na revoluo
cartesiana, evento amplamente celebrado como sendo o mar-
5. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 19Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 co inaugural do pensamento moderno. Aceitando o
veredicto condenatrio pro- nunciado pela nova cincia emergente, a
fsica-matemtica galileana, contra a fsica aristotlica, Descartes
dissolve o mundo da experincia concreta na dvida para re- encontrar
apenas no cogito a fonte primei- ra de uma certeza inabalvel. Ou
seja, ns devemos nos curar de uma ateno polari- zada para fora,
para o mundo dos sentidos e, para isso, devemos nos submeter ao m-
todo da razo pura, o mtodo desta cin- cia universal (mathesis
universalis) que se pode vislumbrar na matematizao da na- tureza
proposta pela cincia moderna. Assim, a inteligibilidade no provm da
estrutura ontolgica do cosmos inteli- gvel e sim do cogito, da
inteligncia hu- mana que, ao se submeter ascese do m- todo,
apreende a verdade em sua interio- ridade. No entanto, a verdade s
pode ser apreendida pelo sujeito pensante, pela res cogitans,
porque o acesso ao real assegu- rado por Deus, pela Res Infinita.
Essa a funo essencial do argumento ontolgi- co: assegurar a
passagem da certeza do su- jeito verdade do real pela superao da
diferena entre a ordem do conhecimen- to na qual o sujeito goza de
primazia (ordo cognoscendi) e a ordem dos seres presidida por Deus
(ordo essendi). Temos, ento, um novo modo de pensar no interior do
para- digma metafsico, o modo de pensar onto- antropolgico, que
pode ser designado, em contraposio metafsica do ser, como
metafsicadosujeito(Vaz,1997,153-190)5 . II
Essaapresentaosumriaemuitosim- plificada do sistema cartesiano tem
apenas o objetivo de delinear dois impasses do pensamento moderno:
Em primeiro lugar a questo acerca da verdade da realidade. A
realidade verda- deira no pode ser aquela apreendida pela
experincia sensvel, pois esta s pode ser fonte de erro e iluso. No
mundo vazio da dvida metdica, a realidade verdadeira s
podeseraquelareconstrudapelarazo,que satisfaa as exigncias da
compreenso ra- cional e esta a realidade teoricamente reconstruda
pela cincia, mas que deve ser efetivada pela atividade da
inteligncia tcnica. Esta radical objetivao do mun- do, a incluindo
o corpo humano, enquan- to objeto da anatomia e da fisiologia, sig-
nifica que o homem, na ausncia de uma ordem prvia exigncia crtica
do cogito, deve construir a sua prpria ordem e, por isso, a
medicina e a mecnica so os frutos maduros do sistema cartesiano. Se
h uma cincia do homem, ela deve se inscrever no campo da
objetividade do qual o sujei- to se acha previamente excludo
(Drawin, 1995, 489-511). Em segundo lugar a questo acerca da
instncia normativa que orienta a cons- truo da ordem do mundo. Se o
homem encontra o sentido de sua vida numa or- dem reconstruda por
ele mesmo, ento esse sentido deve ser produzido no tempo, deve ser
projetado no futuro. A mecnica e a medicina esto racionalmente
ordena- das, mas como estabelecer uma tica tam- bm racionalmente
ordenada? Ou seja, se o mtodo matemtico (more geomtrico)
possibilita a ordenao cientfica do mun- do exatamente porque o
mundo recons- trudo como uma estrita objetividade, como poderia
possibilitar a orientao ti- ca da ao humana que deveria fundar-se
na liberdade e na histria? Essa grave difi- culdade que levou
Descartes proposi- o de uma moral provisria (morale par provision)
e concepo de uma sabedo- ria espiritual seria genialmente enfrenta-
da pela tica kantiana. O que queremos mostrar, porm, o terrvel
desafio de um mundo que vai se encaminhando para a objetivao total,
para se configurar como 5. Fizemos nessa interpretao da passagem do
pensa- mento medieval para o moderno uma sntese muito esquemtica e
superficial de diversas leituras que no poderiam ser aqui
mencionadas. Privilegiamos, porm, os dois captulos do livro de
Henrique Vaz indicado entre parnteses e citado na
bibliografia.
6. Carlos Roberto Drawin 20 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56
p. 15 - 26 Out. 2008 um imenso sistema funcional, sem que o seu
rumo possa ser orientado por uma re- ferncia normativa forte (Vaz ,
1995, 53- 85). Essesdoisimpassesconvergemnoideal programtico de um
mundo inteiramente administrado, transparente, limpo e feliz. Um
mundo geometrizado no qual tudo estaria previsto e controlado. Qual
seria o lugar de uma psicologia nessa perspectiva? Ora, a incluso
da psicologia no domnio da racionalidade implica numa exigncia de
objetivao que apenas uma cincia positiva como a fisiologia ou uma
estrita cincia do comportamento podem respon- der sendo que o corpo
inteiramente ex- teriorizado em relao ao sujeito. Da a tendncia
assimilao da psicologia pela fisiologia, como ocorrer atualmente no
mbitodapolmicaanticartesianadasneu- rocincias (Drawin, 2004,
28-42). No obstante, o que causa perplexidade que a modernidade
tambm a poca da sub- jetividade. Como compreender este para- doxo?
Denominamos como modernidade no apenas um perodo cronolgico mas uma
poca na qual o presente goza de pri- mazia axiolgica em relao ao
passado e tradio. Ora, ao refluir para o presente a modernidade
desconstri a solidez do mundo e impe a problemtica da subjeti-
vidade, isto , impe a diferenciao entre o ser humano e a totalidade
das coisas e justamente essa diferenciao da consci- ncia de si em
relao ao mundo que po- demos definir como subjetividade. Da a relao
intrnseca entre subjetividade e modernidade (Drawin, 2003, 55-72).
Como, no entanto, podemos restabelecer a relao entre o sujeito e a
realidade? No pensamento grego e em sua apropriao medieval havia a
pressuposio de uma pertinncia intrnseca do homem ao cos- mos. Era o
que definia o modo de pensar cosmocntrico. No pensamento moder- no
essa relao do homem com a realida- de torna-se, pelas razes antes
assinaladas, cada vez mais problemtica e, por isso, exacerba-se a
solido csmica do homem e o seu sentimento de estar lanado na
vacuidade infinita do tempo e do espao,
comofoiformuladonoclebrepensamento pascaliano: O silncio eterno
desses espaos infinitos me apavora (Pascal, 2005, 86). Por isso, ao
lado da mxima objetivao e do avano triunfante da racionalidade tec-
nocientfica no empenho de dominao da natureza, torna-se tambm mais
dram- tica a condio humana do desamparo e ainda mais cruciante a
demanda de senti- do e a necessidade da cura. Desse modo, a
psicologia aqui entendida como um sa- ber que leva em considerao a
subjetivi- dade uma imposio da prpria con- tradio que atravessa a
modernidade. Po- deramos dizer que expulsa pela porta de frente da
vigilncia epistemolgica, ela re- torna pela porta de trs da
experincia antropolgica do mal-estar e da angstia. As duas
vertentes do pensamento moderno, a epistemolgica e a antropol-
gica, se interpenetram e se desdobram numa dialtica de grande
complexidade e muito difcil de ser analisada em seus di- versos
elementos. Limitamo-nos a propor a idia de que a fundao da
psicanlise e o seu destino histrico devem ser compre- endidos luz
desse movimento das con- tradies modernas. Se assim for, ento
podemos dizer que a psicanlise oscila en- tre os parmetros da
cincia e da existn- cia, entre o modelo transcendental da
metapsicologia e a inesgotvel subverso da clnica, entre a
objetividade da teoria e a irredutibilidade do sujeito. E justamen-
te essa oscilao que nos permite compre- ender o conflito de
ambivalncia de Freud em relao filosofia. A sua rejeio da filosofia
se baseava na suposio de que toda filosofia possua um contedo cons-
ciencialista e uma forma totalizante, pois ao identificar filosofia
e viso de mundo (Weltanschauung) ele denunciava o com- promisso
entre o esprito lgico dos siste- mas filosficos e a pretenso da
transpa-
7. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 21Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 rncia total da conscincia. Ou seja, foi em nome da
radicalidade da psicanlise que Freud assimilando os preconceitos
cientificistas de sua poca rejeitou a filo- sofia ainda que a
colocando algumas vezes a servio de sua estratgia retrica (Cf.
Assoun, 1978, 10-11). No entanto, o compromisso denunci- ado por
Freud passa tambm por outros caminhos. Num mundo presidido pela l-
gica sistmica, pela maximizao do de- sempenho e da produtividade,
pelo avan- o cego e global da racionalidade tecnoci- entfica,
imprescindvel sustentar o lugar de um saber da angstia. E aqui o
genitivo engloba tanto o saber que intenciona a angstia quanto o
que provm da experi- ncia incontornvel da angstia. Nesse sentido a
psicanlise no s uma cincia sui generis mas tambm presta um inesti-
mvel servio epistemolgico: o de denun- ciar que o gosto pela
linguagem formal, a desmedida ambio terica, a insistncia no rigor
metodolgico so freqentemen- te expedientes defensivos, meios de
esca- motear a angstia (Devereux, 1987, 15- 21; 82-125; 147-153).
Mas a prpria psi- canlise no est imunizada desses proce- dimentos e
dentre eles no difcil encon- trar a inclinao dogmtica, a sectarizao
das instituies psicanalticas, a sacraliza- o da palavra dos
mestres. Pois, afinal de contas, seria mesmo um absurdo preten- der
que os psicanalistas possam se autono- mear como donos incontestes
do saber da angstia. Por isso, a psicanlise no deve isolar-se e
pode reencontrar a si mesma, a sua vocao de radicalidade, ao se
lanar num dilogo arriscado, crtico e fecundo com outras formas de
conhecimento. Den- tre elas encontra-se, sem dvida, a filoso- fia
que nasceu no solo grego da insurgn- cia do pensamento e do esprito
de liber- dade.Noprximotpicoconcluiremoseste artigo com algumas
consideraes acerca de um fragmento desse dilogo aqui tra- vado
entre a psicanlise e a filosofia exis- tencial, Lacan e Kierkegaard
que se d entre saberes que no se conformam em silenciar a angstia.
III Certamente pode-se dizer, como o faz Jacques-Alain Miller numa
exposio fei- ta em novembro de 2001, que da mesma forma que Lacan
teve a audcia de negar a existncia Da mulher ... A mulher no exis-
te ... (tambm) no seguro que haja existi- do para ele A filosofia.
E comenta: Lacan teria podido enunciar que A filosofia no exis- te
e que s existem filsofos no plural? Poder- se-ia, com efeito,
defender-se a tese de que a A filosofia uma iluso universitria, o
dissi- mularumacomodidadedeclassificao .No obstante, logo em
seguida ele assinala que A filosofia no existiria, ento, seno em
ra- zo de uma aproximao, de um mal-enten- dido o que , por outro
lado, uma maneira muito digna de existir. Em Meu corao des- nudo,
Charles Baudelaire o enuncia de ma- neira muito lacaniana: o mundo
s anda por meio do mal-entendido; o menor debate, a menor conversao
o atestam. Que pelo mal- entendido universal todo mundo se ponha de
acordo tambm, de alguma maneira, uma promessa. verdade, observa
Miller, que Ele,Freud, no queria tocar na filosofia. Para Freud,
tudo isso [referindo-se, especialmente, a efervescncia filosfica
vienense] parecia desenvolver-se em outro planeta. Em seus tex-
tos, contrariamente aos de Lacan, as refern- cias filosficas so
raras: algumas menes dispersas, uma delas ao Banquete, enquanto que
Lacan, como sabemos, as teve muito em conta... ( Miller, 2005,
141-142). Seja como for, podemos dizer, no h como no levar em conta
a filosofia, pois se no h A filosofia, tambm no h, certamente, A
cincia ou A psicanli- se e nem por isso podemos nos esquivar de sua
presena ou de sua ausncia inter- rogantes. Mesmo porque se verdade
que vivemos no tempo do fim da filosofia como assinala Heidegger,
essa ausncia ou esse fim nada tm a ver com uma morte j anunciada
pelo progresso tecnocientfico,
8. Carlos Roberto Drawin 22 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56
p. 15 - 26 Out. 2008 no se trata de um cadver j enterrado pela
histria e do qual ns podemos nos esquecer rapidamente para
festejar, com alegria leviana, as formas de conhecimen- to que se
tornaram efetivas por sobrevive- rem prova do tempo e presso
seletiva da sociedade. Numa poca em que o bio- poder
simultaneamente realidade socio- poltica e ideologia, pode nos
parecer ten- tador recorrer a esse darwinismo epistemo- lgico
segundo o qual a racionalidade apenas o modo como nomeamos os
conhe- cimentos que resistem aos critrios da uti- lidade e do
consenso. Ao contrrio, se h algo como um fim da filosofia este no
se confunde com a sua superao positivista e nem com a sua realizao
histrica. A tradio filosfica, cujo ncleo encontra- se na metafsica,
certamente intil, mas tambm necessria e, portanto, no pode se
dissolver numa simples superao (berwindung) como gostariam os
arautos do cientificismo. No mundo da tcnica uma ausncia carregada
de presena, uma evocao, um luto, uma exigncia de tra- balho que
efetua uma verdadeira toro do pensamento (Verwindung). Desse modo,
a filosofia est viva aps o seu fim, talvez em sua pluralidade e em
sua perplexidade metafilosfica, mas tambm, com certeza, em sua fora
de questionamento e em sua capacidade de produzir o efeito de
colocar tudo s avessas (Heidegger, 1976, 112-139 e Idem, 1994, 14).
O fim da filosofia uma evocao no simplesmente no sentido de uma re-
miniscncia, essa palavra essencial da me- tafsica platnica
(Anamnse) ou to cara fenomenologia hegeliana (Erinnerung), mas
tambm se pe como uma abertura ao que ainda no est dado e
determinado (Erschlossenheit). Vamos agora ilustrar essa outra
interpretao por meio de uma nova citao. Desta vez retirada do
Seminrio II de Lacan quando, na sesso de 19 de ja- neiro de 1955,
ele contrape a teoria pla- tnica do conhecimento, marcada pela
reminiscncia, pelo voltar-se para o passa- do e para o encontro
daquilo que j est l, com a ironia de Kierkegaard que justamente um
no estar l, um distancia- mento do dado, uma irrupo do sujeito
quando faz a experincia da repetio. Diz, ento, Lacan: Mas, por
determinadas ra- zes operou-se uma reviravolta. H, de ora em
diante, o pecado como terceiro termo, e no mais na vida da
reminiscncia, mas na da repetio, que o homem encontra seu ca-
minho. Eis o que pe, justamente, Kierkega- ard na pista de nossas
intuies freudianas, num livrinho que se denomina a Repetio.
Aconselho sua leitura s pessoas j um pouco adiantadas. Aqueles que
no tiverem muito tempo leiam ao menos a primeira parte (La- can,
1885, 116). Pode parecer enigmtica a referncia ao pecado como
terceiro termo, mas pode- mos deixar o esclarecimento pormenori-
zado desse ponto de lado nos restringindo apenas a uma indicao: a
experincia do pecado tem um papel central num peque- no livro, a
que Lacan j aludiu rapidamen- te, desde 1948, no final de A
agressividade em psicanlise e que o acompanha por um bom tempo,
trata-se de O conceito de an- gstia de Kierkegaard. Essa breve
indica- o nos ajuda a compreender um aspecto da citao anterior.
Lacan se apropria iro- nicamente da ironia kierkegaardiana e
convida os seus ouvintes a ler o ensaio A repetio do pensador
dinamarqus, nem que seja apenas a primeira parte, pois a sua
leitura nos coloca na via de nossas intuies freudianas. Bem, a
obra, A repetio, de Constantin Constantius, um dos pseu- dnimos de
Kierkegaard, uma de suas ms- caras, um de seus eus dentre muitos
outros tais como Victor Eremita, Johannes de Si- lentio (autor de
Temor e tremor), Vigilius Haufniensis (autor de O conceito de an-
gstia), Frater Taciturnus, Hilarius, Johan- nes Climacus,
Anti-Climacus (autor do Ps-escrito escrito s Migalhas Filosfi-
cas), Nicolaus Notabene, dentre outros. Ora, sabemos, com a ajuda
dos preci- osos comentrios de Yves Depelsenaire,
9. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 23Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 que justamente nessa primeira parte da obra aquela
que Lacan recomenda que, ao menos esta parte, seja lida que Cons-
tantin Constantius, fazendo jus ao seu nome, faz a experincia da
repetio im- possvel, ou seja, a repetio no registro do imaginrio.
No obstante, a insistncia no mesmo no esgota as possibilidades da
re- petio. Pois, pode-se vislumbrar no fra- casso da experincia de
Constantius a ir- rupo da diferena no tempo, no acon- tecimento, no
instante. Uma repetio que produz o novo, que impulsiona para o no
sabido (Depelsenaire, 2005, 35-60). Ora, alguns anos mais tarde,
Lacan retoma o texto kierkegaardiano ao discutir, no Se- minrio XI,
na sesso de 12 de fevereiro de 1964, o tema crucial da relao da
pulso (Trieb) com a representao (Vorstellung) e nos diz o seguinte:
Assim Freud consegue dar soluo ao problema que, para o mais agudo
dos questionadores da alma antes dele Kierkegaard j estava centrado
na repeti- o( ...) No mais que em Kierkegaard, no se trata em Freud
de nenhuma repetio que se assente no natural, de nenhum retorno da
necessidade. O retorno da necessidade visa o consumo posto a servio
do apetite. A repeti- o demanda o novo. Ela se volta para o l- dico
que faz, desse novo, sua dimenso... (Lacan, 1990, 62). A repetio
produz um saber, mas esse saber j no est l, como na reminiscn- cia,
mas o que eclode como no sabido, a testemunhar um alm que logo
asso- ciamos introduo da pulso de morte
umalm,umalgoquebrotaemnscomo um excesso, como uma irrupo inovado-
ra no tempo (kairs) e no mera sucesso linear dos acontecimentos
(kronos). Mas no se trata da instaurao de um inteira- mente outro,
como na criao a partir do nada a que antes aludimos. Atravessado
pelo excesso, pelo que rompe com o con- trole metodolgico, o saber
que se produz est atravessado pela angstia. E a est o ponto de
contato, a que antes nos referi- mos, entre os textos A repetio e O
con- ceito de angstia. A repetio produz ao mesmo tempo, na
ambigidade do instan- te, o saber e a angstia, um saber que s advm
com a angstia e na angstia. Tra- ta-se mesmo de ambigidade, pois o
ins- tante da irrupo est no tempo e fora do tempo, pois marca a
quebra do tempo li- near que o fio condutor da narrao his- trica do
indivduo e faz advir o que esca- pa, o que no se integra
consistncia da narrao. Portanto, combater a angstia por todos os
meios, submet-la ao imprio da sedao, tambm perder esse saber,
anul-lo na reiterao do j sabido. O que seria, ento, a angstia para
Kierkegaard? Todos sabemos de sua raiz etimolgi- ca latina, o
angere, o que aperta, o que estreito e estrangula, o que nos possui
e nos corta a respirao. Sabemos tambm da clebre definio da angstia
como um afeto sem objeto, ao contrrio do medo. Mas bom insistir que
Kierkegaard no se atm a definies simples, embora no possamos
acompanhar o enovelamento de suas sutis distines. A experincia
para- digmtica da angstia a do pecado origi- nal. Ado no paraso
podia tudo, uma vez que tinha todas as coisas sua disposio, mas
sobre isso ele nada sabia. A interdio de Deus o No comers os frutos
da rvo- re do bem e do mal o coloca diante do seu poder, desse
poder ser que antes da lei, da interdio divina, no existia. A lei
ins- taura a possibilidade, a sua condio de li- berdade e,
portanto, de transgresso da prpria lei e, assim, faz dele um ser
huma- no. Mas se, por um lado, a liberdade ins- taurada pela lei o
arranca da necessidade, da naturalidade feliz do no saber, por ou-
tro, tambm no absoluta uma vez que a liberdade absoluta seria a
outra face da necessidade, seria a criao do mundo, da totalidade
dos entes o que apenas um atributo de Deus. A lei instaura, por
con- seguinte, o instante no qual Ado decide por se submeter ou por
transgredir a lei, mas agora a inocncia j est perdida, pois
10. Carlos Roberto Drawin 24 Reverso Belo Horizonte ano 30 n.
56 p. 15 - 26 Out. 2008 ele sabe algo acerca do saber e mergulha na
angstia, pois a angstia a vertigem da liberdade. mesmo uma vertigem
pois a liberdade no sendo absoluta o poder ser na contingncia, no
risco, no salto so- bre o vazio. Compreende-se, ento, o an- gere, o
caminho estreito da deciso que contrasta com a amplido do paraso
onde todas as coisas esto disponveis. Essa a experincia crucial de
Ado: ao saber ele se descobre separado das coisas, ele torna- se
sujeito como estas tornam-se objetos. Nesse sentido, a angstia sem
objeto por- que essa ciso de sujeito e objeto irrepa- rvel e no
pode ser cimentada pelo co- nhecimento. Ou diramos, no h rem- dio
epistemolgico ou tecnolgico para a angstia, pois na separao de
sujeito e objeto que a condio de todo conhe- cimento cientfico
insinua-se o nada. Talvez possamos aqui com todos esses ma- tizes
reformular a frase num sentido mais autenticamente kierkegaardiano
do se- guinte modo: A angstia no sem objeto. Por qu? Porque de um
lado ela consiste em estar mergulhado no mundo dos obje- tos,
reconhecendo, porm, a sua contin- gncia, por outro lado, ela remete
a um poder-ser absoluto, tentao de cruzar a linha da interdio
divina e retornar ou regredir ao paraso anobjetal das coisas in-
teiramente disponveis. No h angstia sem objeto, mas ela no possui
um objeto, ela prefigura um absoluto impossvel para o homem e que
estaria para alm da lei, da interdio divina (Hohlenberg, 1960, 48-
115). Visivelmente influenciado por Kierke- gaard, mas
interpretando o seu pensamen- to luz da questo do sentido do ser
(Seins- frage), Heidegger, no 40 de Ser e tempo, toma a angstia no
como um afeto vin- culado s perturbaes do corpo, mas como uma
afeco/disposio fundamen- tal (Grundbefinflichkeit), como um exis-
tencial, como uma disposio estrutural do existente humano (Dasein).
Enquanto tal a angstia no pode ser eliminada e, mais do que isso,
ela possui nela mesma, en- quanto afeco, um saber, um poder de
revelao. Por um lado, ela revela a insufi- cincia de nossa relao
instrumental ou utilitria com o mundo. Por outro lado, a angstia
nos revela como cuidado, como cura (Sorge), ou seja, que a relao do
homem com a realidade no primordial-
mentetericae,portanto,searazoiden- tificada com a cincia, ento a
ela escapa a prpria essncia da verdade (Altheia) como desvelamento
e encontro com um real que no dominamos e que reluz na fugacidade
de nossas idias e dores, de nos- sos sentimentos e atos. Nesse
sentido, no podemos e no devemos curar a angstia, porque a an-
gstia que abre a possibilidade da cura. Um mundo medicalizado e
sedado, no esforo absurdo de suprimir a angstia tratando-a como um
distrbio afetivo, s poderia ser um mundo de horror dominado pela
mais terrvel violncia, aquela que nem mais conseguimos perceber e
combater. Elimi- nar a angstia seria como querer coisificar o vazio
que nos constitui como humanos, negar a contingncia do sujeito no
mun- do dos objetos. Desse modo, uma raciona- lidade que
pretendesse tudo prever e con- trolar, inclusive eliminando a
imprevisibi- lidade angustiante da vida, teria como efei- to
destruir o seu prprio sentido antropo- lgico e, como aludimos no
incio dessa exposio, produziria, como resultado, um mundo imaginrio
de animais calados e felizes, privados da pujana metafrica da
linguagem. O filsofo, dizia Husserl com lucidez, sempre um
iniciante. Tambm o analista sempre um iniciante, pois cada anlise
Unheimliche, repetio e estranheza e, portanto, um convite para a
criao con- ceitual que justamente a repetio dife- rencial dos
conceitos j concebidos. Con- frontar o destino. Talvez seja esta a
tarefa sempre retomada do analista. Se verda- de, como disse Hegel,
que o destino foi a tragdia do homem grego e que a poltica
11. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre
Psicanlise e Filosofia 25Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15
- 26 Out. 2008 havia se transformado na tragdia do ho- mem moderno,
ento podemos dizer que a despolitizao da sociedade, na esteira do
desencanto ps-moderno, a fora do destino que reaparece sob a mscara
de nossa impotncia diante do curso das coi- sas. Mas hoje a
indiferena e o niilismo substituram a conscincia trgica. Na au-
sncia do antigo heri trgico, a consci- ncia cnica convive com o
horror, o que nos leva a pensar que a inatualidade da psicanlise, a
sua vocao extempornea, o seu maior elogio, pois como Walter
Benjamin soube expressar com dura con- ciso: Que as coisas sigam o
seu curso, eis a catstrofe6 . j ANXIETY AND KNOWLEGE: REFLECTIONS
ON THE INTER-RELATION BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND PHILOSOPHY
Abstract In this article, we intend to analyze the inter-
relationship between Psychoanalysis and Phi- losophy considering
the radical interpretation of modernity , or, in other words, a
form of thought that conceives modernity at least some of its
dominating tendencies as a pro- ject of camouflaging human
finitude. In this perspective, a confrontation between Psycho-
analysis and Philosphy pemits one to salvage knowlege that not only
dissimulates anxiety, but that can also be sustained by it.
Keywords Psychoanalysis, Philosophy, Modernity, On- tology,
Knowlege, Anxiety. Bibliografia AGAMBEN,Giorgio. A linguagem e a
morte. Um se- minrio sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte:
EditoraUFMG,2006. ASSOUN, Paul-Laurent. Freud, a filosofia e os
fil- sofos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. DEPELSENAIRE,
Yves. Ls migajas antifilosficas de Kierkegaard. In: MILLER, J.A. et
alii. Filosofia ? Psicoanlisis. Buenos Aires: Trs Haches, 2005.
DEVEREUX,Georges.Delangoissealamthodedans
lessciencesducomportement.Paris:Flammarion,1987. DRAWIN, Carlos R..
O destino do sujeito na dial- tica da modernidade. Sntese. V. XXII,
n.71, 1995, 489-511. DRAWIN, Carlos R.. O futuro da psicologia:
com- promissoticonopluralismoterico.In:BOCK,Ana M. Bahia (org.).
Psicologia e o compromisso social. So Paulo: Cortez, 2003. DRAWIN,
Carlos R.. A recusa da subjetividade: idias preliminares para uma
crtica do naturalismo. Psicologia em Revista, v. X, n. 15, 2004,
28-42. DRAWIN, Carlos R..Arazoensombrecida(IEAT. Noprelo.)
HEIDEGGER, Martin. La fin de la philosophie et la tche de la pense.
In: IDEM. Questions IV. Paris: Gallimard,1976. HEIDEGGER, Martin.
Was ist Metaphysik? In: IDEM. Wegmarken. Frankfurt AM Main:
Vittorio Klostermann,1978. HEIDEGGER, Martin. Beitrge zur
Philosophie (vom Ereignis).FrankfurtamMain:VittorioKlostermann,
1994. HEIDEGGER,Martin.SeinundZeit.(AchzehnteAu- flage). Tbingen:
Max Niemeyer Verlag, 2001. HOHLENBERG,Johannes.LoeuvredeSrenKierke-
gaard.Lechemindusolitaire.Paris:AlbinMichel,1960. LACAN, Jacques.
La chose freudienne ou sens du retour Freud en psychanalyse. In:
IDEM. crits. Paris: du Seuil, 1966. LACAN, Jacques. O seminrio,
livro 2: o eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise. Rio de
Janeiro: JorgeZahar,1985. LACAN, Jacques. O seminrio, livro 11: os
quatro conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de Janeiro:
JorgeZahar,1990. MILLER,J.A..Filosofia?Psicanlise.MILLER,J.A.. et
alii.. Filosofia ? psicoanlisis. Buenos Aires: Trs Haches,2005. 6.
A frase de Benjamin citada como epgrafe do primei- ro captulo do
ensaio de Paul Valadier citado na bibli- ografia.
12. Carlos Roberto Drawin 26 Reverso Belo Horizonte ano 30 n.
56 p. 15 - 26 Out. 2008 NIETZSCHE, Friedrich. Asi habl Zaratustra.
In: IDEM. Obras completas. Buenos Aires: Ediciones Prestigio,1970.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. So Paulo: Martins Fontes,2005.
POSSENTI, Vittorio. Essere e libert. Catanzaro:
RubbettinoEditore,2004. RICOEUR, Paul. De linterprtation. Essai sur
Freud. Paris, du Seuil, 1965. VALADIER, Paul. Moral em desordem. Um
discurso em defesa do ser humano. So Paulo: Loyola, 2003. VAZ,
Henrique C. de Lima. tica e razo moderna.
Sntese.V.XXII,n.68,1995,53-85. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos
de filosofia III: Filosofia e cultura. So Paulo: Loyola, 1997.
RECEBIDO EM: 04/08/2008 APROVADO EM: 11/08/2008 SOBRE O AUTOR
Carlos Roberto Drawin Psiclogo.Psicanalista.Professor do
Departamento de Filosofia da UFMG. Professor do Curso de
especializao em Teoria Psicanaltica do Departamento de Psicologia
da UFMG. Endereo para correspondncia: Av. Antnio Carlos, 6627 -
Pampulha 31270-901-BELOHORIZONTE/MG E-mail:
[email protected]