UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega Nasser
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE A
PARTIR DE ESTUDOS DA TEORIA FREUDIANA E DA
TEORIA JUNGUIANA
Rio de Janeiro
2008
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Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega Nasser
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE A
PARTIR DE ESTUDOS DA TEORIA FREUDIANA E DA
TEORIA JUNGUIANA
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Psicanálise e Sociedade
Orientador: Professor Doutor Luiz José Veríssimo
Rio de Janeiro
2008
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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA SISTEMA DE BIBLIOTECAS Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8845 Fax.: (21) 2574-8891
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Setorial Tijucal/UVA
N267c Nasser, Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega
Considerações sobre a relação corpo-psique a partir de estudos da teoria freudiana e da teoria junguiana / Yone Buonaparte d’Arcanchy Nóbrega Nasser, 2008. 102p. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Psicanálise e Sociedade, Rio de Janeiro, 2008.
Orientação: Luiz José Veríssimo
1. Psicanálise. 2. Psicologia junguiana. 3. Freud, Sigmund.
4. Corpo e mente. I. Veríssimo, Luiz José (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Psicanálise e Sociedade. III. Título.
CDD – 150.195
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Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega Nasser
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE A PARTIR DE ESTUDOS DA TEORIA FREUDIANA E DA TEORIA JUNGUIANA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Sociedade e Práticas Sociais.
Aprovada em 03 de outubro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Professor Luiz José Veríssimo - Doutor Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
___________________________________________________________________ Professora Sônia Xavier de Almeida Borges - Doutora
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC / SP
___________________________________________________________________ Professor Walter Fonseca Boechat - Doutor
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ / Instituto de Medicina Social
Suplente:
___________________________________________________________________ Professora Maria da Glória Schwab Sadala - Doutora Universidade Federal do Rio de Janeiro - ECO / UFRJ
___________________________________________________________________ Professora Maria das Graças Vasconcelos Paiva - Doutora
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ / Universidade Livre de Bruxelas
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Para Mauricio Do começo ao fim e do fim ao começo...
Se é que há algum começo ou fim. Meu querido e eterno amor
A você dedico esta pequena parte de mim que não existiria sem você.
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Ao Professor Luiz José Veríssimo, grande orientador, que cumpre sua missão com dedicação, esmero e competência;
Ao Professor Walter Boechat, sempre disposto a dividir sua sabedoria, ato somente assistido em grandes mestres;
À Professora Sônia Borges, que demonstrou respeitar a diversidade de pensamento, reafirmando uma das características fundamentais a um mestrado interdisciplinar;
À Professora Fátima Cavalcante, exemplo ímpar que dignifica a profissão, pelo empenho em possibilitar o crescimento de todos aqueles com quem trabalha;
À Professora Gloria Sadala, pela coragem e competência incomensuráveis na tarefa de tornar seu projeto uma realidade e, sobretudo, pelo apoio e incentivo recebidos;
À Thereza Christina Pegado Ribeiro, verdadeira professora em psicanálise, que repassa com clareza e afeto seu amplo saber;
À Professora Maria das Graças Vasconcelos de Paiva, a quem admiro tanto, por toda a presteza em guiar-me através de suas fundamentais e indispensáveis colaborações;
À Marina Novaes Tavares, minha querida prima, por sua essencial cooperação e pelo aporte de conteúdo em Freud de tamanha significação;
À Sara Kislanov, pelo apoio - em amizade e profundo conhecimento - oferecido desde os primeiros passos;
Às minhas muito especiais novas “velhas amigas” deste mestrado, sem as quais seria absolutamente impossível cumprir esse trajeto.
In memoriam
À Maria e ao Antônio - meus padrinhos - e à Tereza, que me trouxeram a confiança para o cumprimento de tarefas difíceis;
Ao Miguel, que sempre me presenteou com uma proteção especial; Às amadas Tias Dahyl e Nadir - exemplos de vida e de professorado ímpares; Ao meu querido e especial Dom José Carlos Lima Vaz - mestre e amigo - que
me permitiu o encontro comigo mesma através do amor à profissão; À Luciana e à Lucy que, pela simples presença e amizade, inspiraram-me ao
longo da vida.
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Não digais: ‘ Encontrei a verdade’.
Dizei de preferência: ‘ Encontrei uma verdade’.
Não digais: ‘Encontrei a senda da alma’.
Dizei de preferência: ‘Encontrei uma alma andando e m meu caminho’.
Porque a alma anda por todos os caminhos.
A alma não caminha como uma linha reta nem cresce c omo um caniço.
A alma desabrocha tal como um lótus de inúmeras pét alas.
Khalil Gibran
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RESUMO
O presente trabalho disserta sobre a relação corpo-psique - em um recorte histórico - através das contribuições que a teoria psicanalítica e a teoria junguiana trazem para a compreensão do tema. Foi produzido com a intenção de se tornar um material de cunho didático para aqueles que desejarem uma iniciação sobre este. O caminho a respeito do assunto - da Grécia Antiga aos dias atuais - foi percorrido de modo sucinto. Porém, apresenta-se suficiente - em uma iniciação - para atestar a importância do mesmo. Providencia, também, a compreensão da participação das práxis de Freud e de Jung no entendimento contemporâneo da relação corpo-psique quanto ao desenvolvimento de linhas da psicossomática. Versa sobre a atualidade dessas teorias, um século após suas fundações, procurando demonstrar que ambas - cada qual em seus referenciais próprios - traçaram seus caminhos de acordo com a mudança paradigmática que começava a ser exposta na passagem do século XIX para o XX. Na verdade, entre outros saberes, mostraram-se expoentes dessa mudança através dos métodos de investigação pelos quais produziram seus conteúdos. A passagem do paradigma da modernidade para o da complexidade - assistido desde então - e o conceito de transdisciplinaridade, apontado por Edgar Morin, foram aqui sublinhados no enredamento atual das ciências e é postulado, nesta dissertação, inexoravelmente, como modelo ideal de aplicabilidade das mesmas. Palavras-chave: relação corpo-psique; teoria freudiana; teoria junguiana; psicossomática; paradigma da complexidade.
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ABSTRACT
The present paper examines the body-psyche relation - in a historical perspective - through the contribution brought to the theme by the psychoanalytical and jungian theories. It was produced with the intention of becoming a material with didactical characteristics for those who wish an initiation on the subject.
The historical path of this matter - from Ancient Greece to present days - was followed briefly. However, it has shown to be sufficient - in an initiation - to demonstrate the importance of this relation. It also provides an understanding on the participation of Freud’s and Jung’s praxis in the contemporary comprehension of the body-psyche relation related to the development of lines in the psychosomatic.
The paper ponders on the actuality of these theories, one century after their foundations, looking to demonstrate that both – each based in their own references - have delineated their paths accordingly to the change in paradigms that was beginning to be projected in the passage of the XIX century to the XX century. As a matter of fact, among other fields of knowledge, they came to be exponents of these changes through the investigation methods with witch they came to create their contents.
The passage of the modern paradigm to the complexity one – seen since then - and the concept of transdisciplinarity, pointed by Edgar Morin, were here underlined on the contemporary entangled state of sciences, and is placed in this dissertation, inexorably, as the ideal model of their applicability. Key-words: body-psyche relation; psychoanalytical theory; jungian theory; psychosomatic; complexity paradigm.
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SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT 1 INTRODUÇÃO, p. 09 2 A PASSAGEM DO SÉCULO XIX AO SÉCULO XX: A MUDANÇA DE PARADIGMAS, p. 15 2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS ACONTECIMENTOS: DA MODERNIDADE À COMPLEXIDADE, p. 15 2.2 O NASCIMENTO E A CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE, p. 24 2.3 A PSICOLOGIA ANALÍTICA E SEU ENREDO, p. 32 3 A COMPREENSÃO DA RELAÇÃO CORPO-PSIQUE, p. 36 3.1 BREVE ABORDAGEM DO CONCEITO CORPO-PSIQUE ATRAVÉS DA HISTÓRIA, p. 36 3.2 A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE NA TEORIA FREUDIANA, p. 52 3.3 A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE NA TEORIA JUNGUIANA, p. 68 4 IMPORTÂNCIA DA PESQUISA SOBRE A RELAÇÃO CORPO-PSI QUE NA ATUALIDADE, p. 84 4.1 OBSERVAÇÕES SOBRE A PESQUISA DA RELAÇÃO CORPO-PSIQUE E SUAS APLICAÇÕES, p. 84 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 88 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, p. 93 7 APÊNDICE, p. 98
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1 INTRODUÇÃO
A relação corpo-psique constitui o centro deste trabalho. Ela será abordada
através das contribuições que as teorias de Freud e de Jung trazem para o tema. A
importância de elucidar os caminhos da psicologia analítica junto à psicanálise se dá
porque ambas participaram da mudança paradigmática nos campos sócio-cultural e
científico do início do século XX sendo expoentes, entre outras, dessa ocorrência.
O desejo de desenvolver o tema proposto surgiu por ser um assunto que é
estudado desde a Grécia Antiga - como será demonstrado - e continua suscitando
interesse até os dias atuais. Faz parte de uma interrogação profunda e sistemática
que o sujeito realiza sobre ele próprio. É um caminho que permite um olhar mais
amplo sobre a natureza e constituição do sujeito em relação a ele mesmo e a tudo
que o rodeia.
A modernidade apresenta, em sua compreensão do mundo, parâmetros
dualistas e de sentido separatista entre seus componentes - homem/natureza,
corpo/psique, sujeito/ objeto etc. Além de se constituir como base para a apreensão
do foco em questão - que é a relação corpo-psique - a mudança paradigmática que
começa a ser desenhada na passagem do século XIX para o XX, isto é, da
modernidade à contemporaneidade, traduz o desabrochar de uma nova era.
O processo de mudança de paradigmas é, por si só, uma manifestação do
movimento inerente aos períodos de grandes transformações que costumam ser
ilustrados através das ciências, das artes e da sociedade. Assim, o retorno a um
entendimento da relação corpo-psique como uma identidade somato-psíquica só é
possível a partir da crise da modernidade e das novas construções de pensamento
daí oriundas. O capítulo 2 oferece, em seus tópicos, a visualização da eclosão da
ciência e de que maneira - mais especificamente - a psicanálise e a psicologia
11
analítica começaram a fazer parte desse cenário.
A física relativística é considerada o marco da emergência de um novo
paradigma, modificando toda uma maneira de se entender e observar o universo e o
ser humano. Em algum sentido, é importante pontuar sua colaboração para a idéia
de uma identidade corpo-psique dentro de padrões psicanalíticos e junguianos. A
evolução dos estudos para a construção deste conceito foi outra das nossas
preocupações, já que é parte fundamental desta dissertação demonstrar a
possibilidade de uma desconstrução de princípios dualistas cartesianos apontados
desde a transição dos séculos XIX para o XX.
O problema aqui delineado, a partir da mudança paradigmática, é adquirir
uma compreensão da identidade somato-psíquica do sujeito nascida dos estudos da
teoria freudiana e da teoria junguiana, como já sublinhado. Será embasada em
conceitos fundamentais, tais como o inconsciente, a pulsão, o recalque (Freud), o
instinto psiquificado, o complexo, o arquétipo psicóide (Jung) etc. Esse é o cerne
principal de toda a dissertação e está desenvolvido no capítulo 3, junto a um
pequeno histórico do pensamento humano a respeito da relação corpo-psique
através dos tempos.
O objetivo primeiro, assim, é demonstrar que ambas as teorias contêm, em
suas bases estruturais, os fundamentos necessários para uma compreensão da
relação corpo-psique por se acreditar que o soma e a psique podem configurar uma
identidade tanto na teoria psicanalítica quanto na junguiana - como será explicado
no decorrer do trabalho. Poder-se-á vislumbrar essa identidade como dualidade ou
unidade, de acordo com o entendimento de processos de interação ou de integração
- entre corpo e psique - que serão apreciados através de cada uma das teorias
eleitas.
12
Procurou-se promover a idéia de uma reestruturação epistemológica no
sentido de uma apreensão interdisciplinar do ser humano.
Uma idéia fundamental é mostrar que não se deve trabalhar o sujeito sob
óticas restritivas. Formas clássicas dessa ocorrência são exemplificadas pelo
psicologismo e pelo geneticismo1 por apresentarem visões simplificadoras e
excludentes de se pensar o sujeito: na base de ambas estão presentes estudos que,
se compreendidos superficialmente, levam a crer que constituem - em si - respostas
únicas à existência de patologias de quaisquer espécies, sempre as considerando
como de gênese psíquica ou orgânica, respectivamente. Como exemplo de um
equívoco de interpretação, costuma-se classificar a psicanálise como um método
psicologizante na explicação e tratamento dos sintomas em geral por ter partido, em
sua construção, do entendimento das questões que envolvem corpo e psique pela
conversão histérica, como será estudado posteriormente. Isso se estende a outros
saberes - tais como a psicologia analítica. Grande parcela da medicina vigente
procura se apoiar sobre o que se mostra mais tangível, isto é, a genética e seus
desdobramentos. O “ideal do palpável” tem permitido, por vezes, uma
subvalorização das metodologias analíticas, o que acaba por trazer uma resposta
única que apresenta o corpo físico como detentor dos males por si só. Por
conseqüência, produz intervenções que contam apenas com o que é estabelecido
por esta afirmação das necessidades orgânicas da doença e não do sujeito e suas
vicissitudes.
A fim de contextualizar os acontecimentos da virada do século XIX para o XX
foi valorizado o paradigma da complexidade, desenvolvido por Edgar Morin em seus
livros O pensamento complexo (1996) e Ciência com consciência (2005), na medida
1 Correntes onde se acentuam ou o motivo psíquico ou o motivo genético como responsáveis únicos e excludentes entre si das patologias, de ordem física ou psíquica, apresentadas pelo sujeito.
13
em que ele propõe um enredamento entre os saberes, ao contrário do que ocorria
na ciência clássica - que promovia o distanciamento. Segundo o autor, a
comunicação entre os saberes não elimina suas naturais especificidades e
diferenças.
Desse modo, no presente trabalho, compreende-se a psicanálise, a psicologia
analítica e outros saberes envolvidos como vasos comunicantes através do
paradigma da complexidade acima apresentado.
Em Freud, as referências abrangem muitas passagens de sua obra e o
desenvolvimento de conceitos que permeiam a compreensão do que somos e o
modo pelo qual somos constituídos como sujeito na conjunção dos fatores internos e
externos. Foram iniciadas pelo estudo do Projeto para uma psicologia científica
(1895), onde Freud busca respaldar os fenômenos psíquicos como pertencentes ao
universo das ciências quantificáveis. Foram também utilizados textos relacionados
às tópicas freudianas, à teoria das pulsões, ao conceito de recalque, ao
entendimento das neuroses e outros conceitos. Entre esses se encontram:
Introdução ao narcisismo (1914), Além do princípio de prazer (1920), O eu e o id
(1923), Dois verbetes de enciclopédia (1923) etc.
Um importante diferencial quanto ao entendimento somato-psíquico do sujeito
é transmitido em Pulsões e destinos da pulsão (1915), O Inconsciente (1915) e O
recalque (1915). São fontes para a ótica psicanalítica no interesse aqui especificado.
Em alguns desses textos, Freud aborda o conceito de pulsão - absolutamente
essencial à psicanálise - como um conceito-limite entre o somático e o psíquico.
Na obra de Jung foram priorizados - da mesma forma - os textos que versam
sobre alguns dos conceitos envolvidos, direta ou indiretamente, na compreensão da
relação corpo-psique, isto é, o complexo psicofísico, o instinto psiquificado e o
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arquétipo psicóide. Entretanto, tornou-se imprescindível oferecer uma visão sobre
outros conceitos que fundamentam seu pensamento.
Entre os textos de Jung encontram-se: Psicologia do inconsciente
(1917/1943); Instinto e inconsciente (1919); O eu e o inconsciente (1928); Os
conceitos fundamentais da teoria da libido (1928); Considerações gerais sobre a
teoria dos complexos (1934) etc.
Pretende-se também, resumidamente, mostrar a colaboração dessas teorias
para o desenvolvimento do campo da psicossomática - estudo que, por si só,
determina a necessidade de outras apreensões.
Um dos autores que aborda a psicossomática atual através da psicanálise é
Cristophe Dejours (1998). Em Psicologia, psicanálise e somatização, texto que
compõe Psicossoma II, esse autor considera indevida a continuidade de um
entendimento dualístico entre a psique e o soma partindo - como base - dos
importantes estudos de Pierre Marty (1998) que o nortearam, mas diferenciando-se
adiante. Suas idéias a respeito do tema são também apresentadas em Repressão e
Subversão em Psicossomática - pesquisas psicanalíticas sobre o corpo (1991).
Em Teatros do Corpo - O Psicossoma em Psicanálise, Joyce Mc Dougall
(1997) trabalha com a idéia que as somatizações são oriundas de falhas no
relacionamento do bebê com a figura materna. Considera que esse tipo de resposta
constitui uma regressão defensiva quando não se distingue um sentido afetivo ao
acontecimento.
Michael Fordham (2006), autor junguiano, em A criança como indivíduo
colabora para o entendimento da relação corpo-psique por considerar o bebê uma
unidade psicofísica. Demonstra a importância do símbolo como fator crucial no
processo energético entre o corpo e a psique - tornando-os um todo integrado.
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Mara Sidoli (2000), autora junguiana, segue o pensamento de Fordham e de
alguns importantes psicanalistas. Apresenta em seu livro When the body speaks a
compreensão dos distúrbios psicossomáticos como ligados a um período precoce do
desenvolvimento e em decorrência da relação com o outro, principalmente nas
relações materna e paterna. Além dos fatores familiares, leva em consideração os
culturais na construção do sujeito e suas defesas.
Por ser este um trabalho de cunho teórico, procurou-se, por outro lado,
resgatar no capítulo 4 a importância da vinculação entre teoria e prática pelo
caminho da pesquisa acadêmica - onde se busca contemplar a questão desse tipo
de pesquisa sobre a relação corpo-psique e suas possíveis aplicações.
A averiguação da relação corpo-psique no campo do saber acadêmico
pretende a promoção de mudanças nas atitudes terapêuticas vigentes através do
alargamento de nossa compreensão sobre o ser humano. Acredita-se que o meio é
propício para a abertura e debate sobre o tema em questão e a fomentação da troca
entre diferentes áreas vinculadas aos estudos da saúde e da sociedade.
Entendendo-se que o conteúdo desta dissertação trabalha com estruturas
teóricas complexas, procurou-se apresentá-la - didaticamente - da forma mais
simples que se tornou possível realizar. A finalidade de uma dissertação, nos dias
atuais, é servir àqueles que estão iniciando seus estudos sobre o tema - em geral,
estudantes da graduação. Por isso houve cuidado em separar a apresentação das
teorias nesse sentido, facilitando o estudo desse público.
Por ser um tema que não permite conclusão, será finalizado com algumas
considerações e o oferecimento de um curso voltado para profissionais da área de
saúde com a intenção de possibilitar a aplicabilidade das idéias aqui apresentadas.
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2 A PASSAGEM DO SÉCULO XIX AO SÉCULO XX: A MUDANÇA DE
PARADIGMAS
2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS ACONTECIMENTOS CIENTÍFICOS:
DA MODERNIDADE À COMPLEXIDADE
Este capítulo procura apresentar, sucintamente, de que maneira o término do
século XIX e a transição para o século XX foram marcados por reformulações em
inúmeras áreas do conhecimento. Movimentos revolucionários em âmbitos variados -
política, economia, ciências e artes - começavam a constituir uma nova forma de se
perceber e vivenciar a sociedade vigente. A partir dessa contextualização, tornam-se
viáveis os estudos aqui propostos sobre a relação corpo-psique em Freud e em
Jung.
A palavra de ordem é transformação por se entender que os paradigmas que
regem períodos determinados de tempo não são estáticos, pois contêm as sementes
que irão permitir as mudanças assistidas. Assim deve ser percebido o caminho da
modernidade à contemporaneidade. Para compreendê-lo, é necessário o relato de
alguns fatos históricos e científicos ocorridos ao fim do século XIX e que
atravessaram o início do século XX.
A efervescência científica deu-se na biologia através da redescoberta dos
trabalhos de Mendel (1822-1884) - em meados do século XIX - por Hugo de Vries
(1848-1935), estabelecendo as leis das mutações gênicas. Vries publicou esse
estudo entre 1901 e 1903. O século XIX já era regido pela teoria da evolução de
Charles Darwin, grande divisor nos estudos biológicos.
A matemática já havia sofrido várias evoluções desde as primeiras décadas
de 1800, saindo da esfera da geometria de Euclides de Alexandria (360 a.C. -295
a.C.). Ao final do século - em 1874 - o matemático alemão Georg Cantor (1845-1918)
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apresentou a álgebra de números infinitos. A teoria dos conjuntos foi revista até
poder ser revalidada novamente através de reformulações no âmago da própria
matemática. Isso demonstra a fase de ebulição pela qual passavam as ciências.
A física, por suas transformações, será considerada o marco para a entrada
em um novo paradigma que questiona a organização do conhecimento científico
montada na modernidade. Os conceitos fundamentais pelos quais o mundo era
compreendido - espaço, tempo, matéria, energia, causalidade - receberam outro
tratamento depois da realização de determinadas experiências. Essas levaram à
descoberta dos raios-X (1895), da radioatividade (1896) e do elétron (1897). Assim,
foi certificado que o átomo não era uma unidade indivisível, e sim, formado por
partículas (prótons, elétrons e nêutrons).
Resumidamente, várias teorias surgiram colocando-se contra os princípios da
física clássica ou newtoniana que havia tido como precursor Galileu Galilei (1564-
1642), astrônomo que revolucionou a percepção dos astros a partir da descoberta
dos satélites de Marte. Max Planck (1858-1947) supôs, em 1900, que a luz era
emitida por quanta - ínfimos “pacotes” de energia - de forma não contínua. Seus
experimentos levaram, mais tarde, à formulação da teoria quântica por físicos como
Werner Heisenberg (1901-1976), Max Born (1882-1970) e outros.
Em 1905, Albert Einstein (1879-1955) estabeleceu uma nova mecânica
através da teoria da relatividade especial e, logo após, desenvolveu a teoria da
relatividade geral (1916). Suas idéias a respeito da natureza e estrutura do espaço e
do tempo produziram uma verdadeira revolução na compreensão, até então
dominante, da física de Isaac Newton (1643-1727) sem, contudo, eliminá-la como
referência de outros entendimentos que ancoram a vivência humana em sua relação
com o ambiente tal qual, por exemplo, a teoria gravitacional.
18
Einstein (1879-1955) trouxe a noção de uma dinâmica única a qual o Universo
e o ser humano pertencem. Sua teoria colocou o sistema de pensamento vigente em
cheque: o espaço e o tempo passaram a ser considerados não lineares, podendo até
se pensar em uma circularidade do tempo e em um espaço relativo. Em 1928 já
havia nascido a primeira teoria quântico-relativística.
Outros campos, como a medicina, também passavam por mudanças em sua
forma de lidar com o ser humano e suas doenças. No século XIX, a neurologia
começou a se destacar como uma vertente importante da medicina. Aqui
encontramos o neurologista francês Jean Charcot (1825-1893) como um de seus
expoentes, com quem Freud sentiu-se honrado em trabalhar.
A psiquiatria contava, em 1883, com o Compendium de Kraepelin (1856-1926)
que mais tarde foi ampliado (1927) tornando-se um exemplo da ênfase diagnóstica
em rígidas categorizações voltada para casos graves de doença mental. A visão era
bastante organicista. Nesse ponto, sabemos que a psicanálise terá acarretado
mudanças significativas na forma de se pensar o sujeito.
A psicologia de meados do século XIX incorporava-se à fisiologia
experimental. Um grande nome deste período é Wilhelm Wundt (1832-1920), que
enfatizava os métodos fisiológicos para a investigação psicológica. É considerado o
fundador da psicologia moderna. Um representante de peso da corrente contra o
experimentalismo foi William James (1842-1910), que buscava ampliar sua
compreensão sobre o fenômeno humano através de interesses variados como o
hábito, os sentimentos, a vontade, a religião etc.
A antropologia desenvolveu-se em busca de compreender as diferenças entre
os povos e seus percursos evolutivos, tanto dos pré-letrados quanto dos
considerados civilizados. Elaborou o relativismo cultural contra a teoria evolucionista,
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que destacava uma ordenação do processo evolutivo partindo dos povos pré-
letrados em direção aos civilizados, tendo por conseqüência o menosprezo aos
primeiros.
O primeiro trabalho antropológico sistemático foi realizado por Franz Boas
(1858-1942) com os índios americanos. Teve seu início em 1888 e estendeu-se por
muitos anos. Boas tem sido considerado o pai da antropologia moderna por suas
observações cuidadosas. Mais tarde, a barbárie provocada pela Iª Grande Guerra
causou o início da desestruturação da noção do evoluir para o civilizado - antes
concebida. A 2ª Guerra Mundial transformou de vez os pontos de vista dos estudos
antropológicos acerca das civilizações.
É pertinente um estudo que dê conta dos acontecimentos desse período para
proporcionar uma compreensão do cenário onde a psicanálise e a psicologia
analítica florescem como percepções diferenciadas sobre o sujeito e suas relações
com aquilo que o cerca.
A questão principal da presente dissertação estará voltada para a concepção
da relação corpo-psique, vislumbrada através das teorias freudiana e junguiana.
Portanto, a atenção se coloca, inicialmente, em uma avaliação crítica conseqüente
do dualismo matricial - homem/natureza - pelo qual o paradigma da modernidade é
regido. Outros dualismos são encontrados em destaque: a separação corpo/psique e
a separação sujeito/objeto.
O psicanalista Carlos Alberto Plastino (2003), que apresenta importantes
reflexões a respeito da mudança paradigmática instaurada pela crise da
modernidade e sobre o percurso da psicanálise aí inserida, traz uma profunda e
interessante análise - em suas publicações2 - pautada nos pensamentos de
2 O Primado da Afetividade. A crítica freudiana ao paradigma moderno (2001); O Quinto Rombo (2003).
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Boaventura Sousa Santos (1989; 2000), Thomas Kuhn (1998) e Edgar Morin (1996),
entre outros. O autor compreende e coloca a psicanálise e a psicologia analítica
como mais um dos rombos ocorridos nos pilares do paradigma moderno em relação
à construção do conhecimento. As outras rupturas epistemológicas, já citadas
anteriormente, estão alocadas nas mudanças paradigmáticas contempladas na
física, na antropologia, na biologia, na matemática etc.
Plastino (2003) demonstra a impropriedade dos dualismos que compuseram a
modernidade, dualismos esses que expressavam a supremacia de um dos pares
sobre o outro. Sublinha “a concepção do corpo como máquina determinada e do
psiquismo reduzido à consciência” (Plastino, 2003, p.6).
A partir daí, pode-se entender como o paradigma da modernidade, apoiado
sobre as bases deterministas e racionalistas, “amarrava”, de certa forma, a
apreensão e reconhecimento dos saberes que não estavam dimensionados sob as
suas regras. Entretanto, esses não deixavam de prosseguir na edificação de um
saber que trazia novas possibilidades de entendimento sobre o humano. A
psicanálise e a psicologia analítica encontram-se nesta situação epistemológica.
A construção da teorização das observações advindas da prática clínica exige
um referencial instrumental que sustente essa teorização. Nota-se que a teoria
psicanalítica arregimentava-se, primordialmente, pelas categorias ditas científicas
que respaldavam esse tipo de conhecimento na época.
Assim, foram as categorias elaboradas por este paradigma [da modernidade] que Freud utiliza inicialmente para construir o registro metapsicológico de sua teoria. Todavia, a própria necessidade de criar esta ferramenta teórica - a metapsicologia - constitui em si mesma uma evidência da inadequação do paradigma moderno para pensar o novo campo: a realidade psíquica inconsciente. (PLASTINO, 2003, p.11).
O paradigma científico de filiação positivista e empirista promovia a
21
materialidade como mote principal para a acepção científica dos fenômenos. Isso
reduzia a esfera psíquica a uma fundamentação empírica. Aqui se traça o Projeto
para uma psicologia científica (1895) cujo empenho de Freud foi quantificar os
processos psíquicos. Era uma tentativa de responder aos parâmetros cientificistas
daquele momento.
A insuficiência da elucubração do Projeto (1895) como construção teórica
transpareceu no decorrer das experiências clínicas. Não foi mais possível quantificar
afetos, sensações etc. em detrimento de qualificá-las. Havia a urgência de se criar
outra compreensão.
A partir daí, foi fundado, dentro da estreante psicanálise, um entendimento
fundamental a ela: a criação da metapsicologia como substitutiva do enlace material,
outrora já desacreditado pelas experiências clínicas desse saber.
Freud mostra a importância da ordenação teórica para o aparato clínico
experimental:
Freud (...), após afirmar que o começo de toda atividade científica consiste na descrição e ordenamento dos fenômenos observados, acrescenta imediatamente que, já para a própria descrição, é inevitável aplicar ao material observado idéias abstratas (...) [Essas idéias] transformam-se (...) em conceitos básicos da ciência. Elas não perdem, entretanto, sua provisioriedade, na medida em que novas observações podem indicar a necessidade de modificá-las ou substituí-las.(...). (PLASTINO, 2003, p.12)
A psicanálise é um exemplo típico dessa fase de transformação e
conseqüente necessidade de se promover novas relações entre os postulados
teóricos e a prática oriunda dos fenômenos observados, inseridos em uma
subjetividade inerente aos mesmos.
Outra questão levantada é a importância de não se pensar o homem sem uma
relação com a natureza. Segundo Plastino, isso representaria uma disjunção. Por
outro lado, também não se deve pensá-lo determinado pela mesma. Nesse caso,
22
acarretaria em uma redução. A afirmação vincula-se ao conceito de pensamento
complexo de Edgar Morin (1996), isto é, de se adquirir a perspectiva de que os
saberes dependem uns dos outros - em uma ótica de entrelace dos mesmos. Isso
deve nos levar a questionar a possibilidade de refazer esse enredo.
Mergulhado na racionalidade e no empirismo, o paradigma mecanicista da
modernidade parece não ter dado conta de compreender a subjetividade em amplo
sentido. Eclodem novas formas de se pensar o mundo. Em seu bojo, o ser humano
começa a receber um outro olhar:
A “descoberta” do inconsciente, realizada através da prática clínica e da análise dos sonhos e atos falhos, caracterizou uma reviravolta que, produzida na virada do século XIX para o XX, marcou profundamente a cultura ocidental. Na verdade, a existência de aspectos inconscientes do psiquismo era sustentada antes de Freud, tanto pelo pensamento filosófico quanto no terreno da ficção literária. (PLASTINO, 2003, p.10).
De várias formas, a psicanálise e a psicologia analítica demonstraram
sobrepujar o paradigma da modernidade rumo ao que é perfeitamente entendido sob
a perspectiva da complexidade - segundo a compreensão de Morin (2005) - por não
lhes caber tanto a redução como a disjunção, já apontadas anteriormente:
homem/natureza, corpo/psique e sujeito/objeto.
Sabemos cada vez mais que as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras. Os fenômenos são cada vez mais fragmentados, e não se consegue conceber a sua unidade. É por isso que se diz cada vez mais: ’Façamos interdisciplinaridade.’(...) é preciso ir além, e aqui aparece o termo ‘transdisciplinaridade’. (MORIN, 2005, p.136)
Pode-se considerar que a complexidade traz a noção de implicação do
conhecimento no âmbito interdisciplinar e no transdisciplinar. Os parâmetros
científicos ainda encontram-se, de certa forma, presos à abordagem criada no século
XVIII até o fim do século XIX e são esses que devem ser transformados.
A desconexão entre sujeito e objeto visando maior cientificidade tornou turvo o
23
olhar sobre os mesmos:
Precisamos, portanto, para promover uma nova transdisciplinaridade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor, e, portanto, dividir relativamente esses domínios científicos, mas que possa fazê-los se comunicar sem operar a redução. (...) É preciso um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais. (MORIN, 2005, p.138)
O que é proposto por Morin (2005) é que se considere a comunicação em
circuito, introduzindo um domínio do saber em outro sem reducionismos. Para isso,
se elegem três grandes áreas: física, biologia e antropossociologia . O autor
demonstra também como deve suceder essa comunicação:
(...) há que enraizar a esfera antropossocial na esfera biológica, porque não é sem problema nem conseqüência que somos seres vivos, animais sexuados, vertebrados, mamíferos, primatas. De igual modo, há que enraizar a esfera viva na physis, porque, se a organização viva é original em relação a toda organização físico-química, é uma organização físico-química, saída do mundo físico e dele dependente. (MORIN, 2005, p.138)
Morin complementa seu raciocínio apontando a necessidade de se inserir as
produções culturais, intelectuais etc - por exemplo - na ciência física, pois que esta é
o retrato também da criação social e dependente de seus desdobramentos. Suas
técnicas de experimentação e observação são, afinal, produzidas pela sociedade:
A energia não é um objeto visível: é um conceito produzido para dar conta de transformações e de invariâncias físicas, desconhecidas antes do século XIX. Portanto, devemos ir do físico ao social e também ao antropológico, porque todo conhecimento depende das condições, possibilidades e limites de nosso entendimento, isto é, de nosso espírito-cérebro de homo sapiens. É, portanto, necessário enraizar o conhecimento físico, e igualmente biológico, numa cultura, numa sociedade, numa história, numa humanidade. A partir daí, cria-se a possibilidade de comunicação entre as ciências, e a ciência transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações, dado que o antropossocial remete ao biológico, que remete ao físico, que remete ao antropossocial. (MORIN, 2005, p. 139).
Pode-se aventar, então, que os métodos clássicos procuravam a simplificação
24
em busca de verdades para que fossem criadas leis gerais e estáticas que tudo
pudessem organizar. Porém, é pela consideração da existência das incertezas ou
das certezas temporárias que podemos elucidar o mundo.
O paradigma da complexidade se apresenta como uma resposta às
necessidades vigentes de nosso tempo. Co-habitando com o antigo paradigma,
fundamenta a transdisciplinaridade. É a sinergia dos conhecimentos e o arranjo
desta que permite o desenrolar da ciência como um todo.
Walter Boechat (2004) esclarece a dinâmica regente:
O aspecto dinâmico da transformação contido no próprio paradigma científico, por mais estático que pareça ser, foge a sua aparência de ser apenas um molde, ou fôrma, pois o paradigma científico modifica-se com o transcorrer da história. Em certo momento, um conjunto de leis que têm eficiência aparentemente absoluta para uma abordagem explicativa do real, deixa de operar em termos absolutos, e sofre transformação pelo aparecimento de uma ciência revolucionária. Eficiência ou transformação, ciência normal eficiente ou ciência revolucionária de transformação. A ciência normal eficiente do paradigma da modernidade é regida pela Física Newtoniana, (...). Também no novo paradigma que Morin cunhou como paradigma da complexidade (Morin, 1999) é a Física que dita o ritmo de sua transformação com o aparecimento da Teoria da Relatividade de Einstein, e logo após ela, a Mecânica Quântica de Bohr e Heisenberg. (BOECHAT, 2004, p.56)
No entender aqui proferido, a psicanálise e a psicologia analítica habitam esse
novo paradigma que está se estruturando. Nascidas na modernidade são, todavia,
genuínas representantes da transformação grifada ao iniciar este capítulo, pois
nasceram sob os auspícios de se tornarem ciência no momento de afirmação das
ciências no modelo clássico. Contudo, acabaram por traçar a urgência de se formar
um novo espaço para alocar esses saberes que não estão configurados nos
domínios anteriores do conhecimento. Além disso, suas trajetórias ocorreram no
delineamento e circulação de outras ciências constituintes de uma época e, sem
dúvida, referidas a essas - tais como a sociologia, a antropologia, a filosofia, a
25
psicologia, a medicina, a biologia, a física etc. Em síntese, psicanálise e psicologia
analítica são representações de um novo paradigma que permite a
transdisciplinaridade como participante do entendimento humano.
2.2 O NASCIMENTO E A CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE
A vertente aqui utilizada para apresentar o desenrolar da psicanálise enquanto
saber procura apresentar um recorte sobre sua evolução em relação ao momento
histórico de seu surgimento e, oportunamente, mostrar como ela foi se diferenciando
do paradigma regente desse período, já descrito anteriormente.
A psicanálise, portanto, deve ser entendida através de seu fundador. Não se
pode separar Freud (1856-1939) - e a fundação da psicanálise - do contexto pessoal
e social vivenciado por ele. Como utilizou o particular de suas experiências pessoais
para chegar ao universal? Em linguagem psicanalítica: de que forma agenciou seus
movimentos pulsionais em prol da compreensão da humanidade?
Entretanto, será importante marcar o caráter ímpar da modernidade vienense
considerada, em geral, datada no período entre 1890 e 1910.
Ela se distingue das demais pelo reconhecimento da autoridade dos antigos, um sentimento extremamente forte de uma perda, (...)– de um mundo que está ruindo e de um futuro vago. A psicanálise é um exemplo disso. (...) A modernidade vienense procurou resgatar a figura simbólica do pai. A psicanálise lida com este pai como valor moral e, fundamentalmente, com a falta dele e suas conseqüências. (FUKS, 2007)
O fato de Freud ter sido um pensador da modernidade - e estar em Viena -
permitiu a criação da psicanálise que é, em síntese, resultado da assimilação desse
momento histórico, fazendo parte de uma consciência nascente, de novas narrativas,
de novas linguagens e imagens, de novas criações. A psicanálise é crítica da cultura
e percebe, de seu lugar, como o sujeito se insere nessa cultura.
Outro ponto de importância inegável é o fato de Freud ser judeu. O sentimento
26
de afastamento, de fazer parte de uma minoria socialmente isolada, atravessa a
psicanálise. A marca das experiências do êxodo e do exílio se refaz quando se sente
obrigado a deixar Viena.
Betty Fuks (2000) trata desse assunto ao estudar a relação entre o judaísmo e
a psicanálise:
É comumente admitido que a psicanálise trouxe uma contribuição decisiva, ainda que tão contestada, para o desenvolvimento de uma crítica contra toda a forma de preconceito, bem como se reconhece que a marginalidade social, cultural e pessoalmente sentida por Freud, enquanto judeu vienense da diáspora - que viveu e produziu nas circunstâncias especiais de tempo e espaço da virada do século em Viena – mostrou-se fundamental para a constituição da prática e da teoria analíticas. (FUKS, 2000, p. 10)
A autora continua sua explanação a respeito desta comunhão entre a
psicanálise e o judaísmo e demonstra a participação do sujeito diante de sua herança
familiar, social e cultural:
(...) Mas a experiência cultural inscrita no percurso da vida e da produção do descobridor do método psicanalítico não foi apenas uma marca histórica que ele tenha recebido passivamente. Contam muito a repercussão íntima e a resposta transformadora que lhe facultaram resolver progressivamente a constituição da própria judeidade e traçar as estratégias de combate e tolerância às resistências à Psicanálise. (FUKS, 2000, p. 10 e p.11)
A psicanálise, então, destaca-se por reverberar o pensamento de seu criador
de forma a ampliá-lo para além de sua própria origem sem, obstante, negá-la.
A invenção de um modo próprio de exercer o judaísmo, que traduz uma novidade até mesmo para os próprios judeus, e de resistir às resistências do Ocidente ao judeu exigiu de Freud as mesmas forças que precisava mobilizar contra a resistência da cultura iluminista e da ciência positivista, que recusavam suas descobertas. (FUKS, 2000, p. 11)
A conclusão mais imediata é que Freud transformou suas dificuldades em
vantagens. Deve-se aferir que a resistência é um conceito implicado na construção
do inconsciente e que este está inserido na cultura. A resistência nasce das múltiplas
27
resistências que enfrentou - enquanto judeu e, portanto, excluído - em relação à
entrada e valorização na vida acadêmica e enquanto sujeito social.
O entendimento da psicanálise como elemento significativo de transformação
demonstra que sua apreensão sobre seu objeto de estudo - o inconsciente - a
diferencia da maioria dos outros saberes e a aloca em um patamar de transição dos
princípios científicos da modernidade para aqueles pertencentes à
contemporaneidade. Porém, não em função apenas de seu próprio objeto, mas pelo
modo de operá-lo:
A psicanálise se constitui, então, não apenas como um saber sobre um “objeto” novo, mas também como uma “nova” forma de saber, colocando assim questões ontológicas e epistemológicas centrais. (PLASTINO, 2003, p.10).
É bastante perceptível que o paradigma da modernidade, do qual a
psicanálise emerge, trouxe algumas dificuldades para seu desenrolar em função da
inadequação da teoria aos parâmetros exigidos para sua inclusão na indumentária
de grande parte da psicologia científica da ocasião (estruturalismo, funcionalismo,
behaviorismo). Esta concebia a construção do conhecimento e a própria constituição
fundamental do sujeito apenas através da consciência e da racionalidade conforme o
paradigma vigente.
A teoria psicanalítica surge da apreensão de experiências pessoais de Freud
e de suas experiências na clínica. Mostra ser, dessa forma, uma relação onde a
intersubjetividade organiza o saber. Esses campos experimentais por ela
apresentados em nada se assemelham aos que compõem as experiências que
respaldam as construções teóricas dos conhecimentos considerados científicos
pautados sobre a distinção rígida entre sujeito e objeto, objetivação do
conhecimento, quantificação, experimentação laboratorial etc.
Freud, em seu Projeto para uma psicologia científica (1895), procura
28
quantificar e materializar os processos psíquicos, ainda de acordo com os
pressupostos científicos da época.
O tratamento da histeria, como será visto mais detalhadamente em capítulo
posterior, permite a Freud uma nova compreensão acerca dos sintomas que se
apresentavam nos quadros psicopatológicos.
O entendimento da ocorrência do recalque remonta aos primórdios da
psicanálise e vai imprimir uma mudança em seu direcionamento a respeito dos
pressupostos científicos - que utilizava em suas construções teóricas - por entender
que esse mecanismo encontrado na clínica psicanalítica só poderia receber uma
avaliação qualitativa e não quantitativa. Historicamente, há aqui o abandono da
hipnose como método de tratamento da histeria, o que parece ter permitido a
apreciação da resistência e, assim, a compreensão da existência do recalque. A
psicanálise funciona no contexto das relações intersubjetivas e, por isso, o
paradigma da modernidade começava a mostrar-se inadequado para lidar com a
idéia de um psiquismo inconsciente. Em 1915, é publicado um texto somente
dedicado ao recalque.
Outro estudo que merece destaque dentro da psicanálise é a escuta dos
sonhos, agora também livre das restrições da hipnose e da sugestão. O texto A
Interpretação dos Sonhos é datado de 1900 e pode ser considerado um dos textos
inaugurais da psicanálise. Entre outras tantas idéias, como a importância do
simbolismo nos sonhos e o mecanismo de formação dos mesmos, Freud expõe
nessa obra as instâncias de sua primeira tópica.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud expande seus
construtos sobre a sexualidade oriundos de sua clínica cotidiana. Procura
desenvolver um trabalho sobre as descobertas da pesquisa psicanalítica a respeito
29
do tema que permita um aprofundamento científico. Atribui grande importância à
ontogênese. Ainda nesse trabalho, Freud introduz pela primeira vez o termo pulsão,
que receberá em 1910 uma definição geral que não mais se altera e a coloca sempre
como uma demarcação entre o psíquico e o somático.
Nesse texto, Freud aborda a sexualidade infantil. A partir de seus estudos
anteriores, constata que a sexualidade nem sempre se mostra nos sonhos e nas
fantasias de maneira explícita. Percebe que ela pode desenvolver disfarces e, por
isso, resolve se aprofundar nos temas ligados à origem da sexualidade e, portanto,
de como esta se dá na infância. Estuda, também, as aberrações e as perversões.
Muito foi desenvolvido conceitualmente nesse período. Há textos
fundamentais como Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranóia (1911), referente ao “caso Schreber” - composto pelo relato de sua
história clínica, tentativas de interpretação e observações sobre o mecanismo da
paranóia. Além disso, os textos que tratam do caso oferecem um esboço de vários
temas que serão desenvolvidos mais tarde, tais como o narcisismo, em Sobre o
narcisismo: uma introdução (1914), e o recalque em O recalque (1915). Outros
textos relevantes sobre técnica são apresentados nesse período. Entre eles
encontram-se: Dinâmica da transferência (1912), que versa sobre esta ocorrência na
relação analista - paciente; Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise
(1912), que aborda - principalmente - o procedimento durante as sessões; Recordar,
repetir e elaborar (1914), que mostra, entre outros fatores, o manejo da transferência
no controle da compulsão à repetição; Observações sobre o amor transferencial
(1915), que trabalha a questão da relação médico-paciente sob o aspecto do amor
transferencial e como deve ser o procedimento diante desse quadro esperado.
É considerado que, principalmente, os textos publicados entre 1915 e 1917
30
agrupam aqueles que representam a metapsicologia - o quadro teórico da
psicanálise. Esse quadro é descrito como um arcabouço epistemológico que objetiva
dar conta de expressar a experiência direta através de hipóteses que abrangem
também aquilo que não é diretamente observável.
Entre esses textos, em Pulsões e destinos da pulsão (1915), Freud percebe a
necessidade de aplicar idéias abstratas à descrição e à ordenação dos fenômenos
observados - parte fundamental da atividade científica. Daí surgem os conceitos
embasados na própria experiência sem, contudo, perderem seu caráter provisório,
dado o fato que as observações continuarão a ser efetuadas e podem exigir
modificações nos conceitos. Para Freud esse é um processo que todos os campos
da ciência devem enfrentar. Exatamente nessa época, a física passava por grandes
transformações como descrito anteriormente.
A circularidade constitutiva da teoria metapsicológica é indissociável de sua provisoriedade. Com efeito, a permanente referência à experiência clínica constitui uma interrogação também permanente dos conceitos constitutivos da metapsicologia, organizando um processo crítico em virtude do qual a metapsicologia só pode ser concebida como provisória. (...) A passagem das primeiras elaborações para as segundas caracteriza (...) a ruptura com os pressupostos paradigmáticos da modernidade – e os dualismos constitutivos desta – (...). (PLASTINO, 2003, p. 14).
Os textos escritos a partir de 1920 são denominados textos “da virada”, pois
neles são constituídas as transformações teóricas que retiram a construção
psicanalítica da “formatação” aos moldes do paradigma da modernidade. Dentre
esses, destacam-se: Além do princípio do prazer (1920), que modifica a teoria das
pulsões; Psicologia de grupo e análise do ego (1921), que trata das identificações; O
eu e o id (1923), que desenvolve a segunda tópica; Inibições, sintoma e angústia
(1926), no qual a segunda teoria sobre a angústia é elaborada e, por último, O Mal-
estar na cultura (1930) - que se preocupa, em linhas gerais, com a relação
31
antagônica entre as exigências pulsionais e as restrições que a cultura impõe para
que o sujeito seja constituído como tal, isto é, sujeito civilizado.
Freud inscreve a psicanálise sob três registros: tópico, econômico e dinâmico.
Através deles, é possível perceber com clareza as modificações sofridas que, aos
poucos, vai afastando a psicanálise do paradigma da modernidade.
O primeiro registro - denominado tópico - organiza as instâncias psíquicas e
foi, inicialmente, concebido considerando as instâncias psíquicas - inconsciente, pré-
consciente e consciente - como pertencentes a um “aparelho psíquico”. O termo
aparelho psíquico denota a conformidade em conceber as inferências psicanalíticas
de acordo com uma racionalização obrigatória no campo das ciências naquele
momento histórico. Isso condiz com a idéia de um determinismo para o ser humano,
como se ele funcionasse do mesmo modo que uma máquina.
Mais tarde, em O eu e o id (1923), Freud desenvolve a segunda tópica, como
já dito. As mudanças são operadas através da consideração que o inconsciente
precede a consciência e participa ativamente em toda a vida do sujeito, inclusive
sobre a consciência. Portanto, há um psiquismo originário enraizado no corpo - o id
(isso) - de onde se diferenciam, como instâncias, o ego (eu) e o superego (supereu).
O registro econômico lida com as forças que atuam sobre o psiquismo. Nas
primeiras concepções foram feitas tentativas de quantificação das pulsões que, por
conseqüência, mantiveram o dualismo separatista corpo/psique, onde o corpo
continuava inserido no entendimento científico como uma máquina determinada. O
problema é que na clínica as pulsões apareciam em forma de afetos, isto é, na
qualidade de amor, ódio, inveja, culpa, vergonha, medo, angústia etc.
Retornando ao texto Pulsões e destinos da pulsão (1915), Freud traz a noção
de uma afetividade originária responsável pela intersubjetividade mais profunda e
32
precoce do sujeito. Continua trabalhando com o dualismo, mas substitui o anterior -
pulsões de ego e pulsões sexuais - por pulsões de ego e pulsões de objeto. Neste
momento, reafirma o caráter limítrofe da pulsão, que se encontra entre o psíquico e o
somático, foco principal do presente trabalho. Posteriormente, em Mais além do
princípio de prazer (1920), Freud instaura um novo e último dualismo pulsional:
pulsões de vida e pulsões de morte. Essa concepção nasceu de suas observações
da compulsão à repetição, mecanismo inconsciente pelo qual o sujeito se coloca -
repetidamente - em situações que se referem a antigas experiências.
Partindo para o último registro - o dinâmico, que trata dos conflitos psíquicos -
pode ser percebido que, a princípio, sua concepção foi limitada “a uma relação de
externalidade entre o sujeito e a sociedade, representada pelas exigências do ego”.
(PLASTINO, 2003, p.16).
Posteriormente, esquivando-se dos princípios sustentados no paradigma da
modernidade, o registro dinâmico passa a privilegiar a afetividade originária e
ambivalente que também é vista pelo registro econômico.
A psicanálise, então, nasce e se desenvolve como marca deste rompimento
paradigmático. A qualidade passa a ser mais valorizada que a quantidade3 quando
esta aparece com a função de restringir a primeira.
Uma das importantes colaborações de Freud ao entendimento do ser humano
foi sua capacidade reflexiva e intuitiva ao elaborar sua teoria e adotar uma prática
que demandava um constante revisitar a esta. Foi capaz de rever e modificar
construtos por ele montados ou criados da mesma maneira que foi capaz de utilizar,
relativizar ou, quando necessário, desprender-se de antigas convicções através de
uma análise das mesmas em prol do enriquecimento da nascedoura psicanálise.
3 Os termos qualidade e quantidade já foram citados com a idéia que aqui está sendo desenvolvida na página 29, parágrafos 2º e 3º.
33
2.3 A PSICOLOGIA ANALÍTICA E SEU ENREDO
A abordagem sobre o nascimento da psicologia analítica passa pela história
pessoal de seu criador - Carl Gustav Jung (1875-1961). Da mesma forma, deve ser
assinalado um movimento do particular ao universal como ocorreu no
desenvolvimento da psicanálise através de seu fundador - Sigmund Freud (1856-
1939).
Jung estende, ou melhor, aplica o contexto de suas experiências para a
compreensão dos fenômenos da humanidade. Os sonhos, como em Freud, se
tornam uma dessas fontes entre tantas outras.
O arranjo familiar e social lhe ofereceu inúmeras vantagens e desvantagens
diante da formação de uma personalidade introvertida com a qual Jung se
caracteriza. A figura do pai - pastor protestante, mas em crise de fé - e da mãe, que
considerava dúbia em sua constituição de personalidade, colaboraram para sua
apreciação sobre o mundo de forma ímpar: estudos profundos sobre o inconsciente,
sobre o comportamento, sobre a antropologia e cultura, sobre a religiosidade. Um
mundo amplo, vasto e coerente com seu desejo íntimo de compreender o sujeito e
suas inter-relações.
Desde jovem, Jung mostra valorizar seus sonhos, suas experiências e
sensações. Está sempre à procura de entendê-los. Optando pela psiquiatria, Jung
define seu campo de atuação futuro.
O desenvolvimento intelectual de Jung e sua prática experimental quanto à
mensuração das emoções através de aparelhos tornam-se suficientes para atrair os
interesses científicos de Sigmund Freud, que estava, já nessa época, envolvido em
sua luta pelo reconhecimento de um inconsciente não palpável, porém fundamental
ao entendimento humano. Seu livro A interpretação dos sonhos (1900) representou
34
uma revolução nos parâmetros da neurologia, considerada - até então - a palavra
final em termos de medicina.
Freud e Jung interessam-se mutuamente porque, em um dado momento, o
encontro de ambos permite o enriquecimento de seus trabalhos. Essa relação tem
início em 1907. Resumidamente, Jung é atraído pelo conteúdo apresentado em A
interpretação dos sonhos (1900) e Freud pela possibilidade de comprovar
cientificamente que determinados distúrbios são ligados antes ao psiquismo, isto é,
não se originam em distúrbios neurológicos - como se poderia diagnosticar.
Jung já havia produzido interessantes trabalhos como O tempo de reação no
experimento de associações (1905) e A importância psicopatológica do experimento
de associações (1905), entre tantos outros.
Jung desenvolve suas idéias através de suas experiências profissionais e de
seu conhecimento em vários campos. Trabalha com Eugen Bleuler (1857-1939) a
partir de 1902, sendo essa ligação muito importante para sua prática junto a
esquizofrênicos. A atividade clínica com esses pacientes leva Jung a construir o
conceito de inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos. Estas
concepções partiram da observação de Jung a respeito dos processos delirantes -
que caracterizam os esquizofrênicos - coincidentes com os motivos religiosos e
mitológicos encontrados em culturas diversificadas quanto ao lugar como ao tempo
e, também, representantes de variadas identidades civilizatórias. O interesse de Jung
por filosofia, mitologia, religiosidade etc., mostra seu grande desejo em descobrir
como esses temas se desenvolvem no inconsciente da humanidade e como se
manifestam simbolicamente. Jung não se submete a convenções, mas procura,
assim como Freud, tratar desses assuntos de um ponto de vista do interesse
científico - como fenômenos relacionados ao sujeito e à cultura.
35
Embora compondo sua linha de pensamento de forma diversa, Freud
também encontra os símbolos universais nos elementos oníricos apresentados por
seus pacientes, abordando este assunto em sua importante Conferência X, proferida
em 1916.
Pode-se, por este aspecto, ter a apreciação da clínica como delimitadora e
estruturante da formação teórica. A clínica, sendo soberana, implica em uma
maleabilidade da teoria que acompanhe as observações de seu desenrolar e que lhe
seja pertinente.
Jung entra em contato com a nova física através da aproximação com
Wolfgang Pauli (1900 -1958) e Einstein (1879 -1955) de formas distintas. Bem mais
tarde, torna-se clara a influência exercida pelos novos conceitos da física expostos a
ele décadas antes. A partir dessa apreensão, o conceito de arquétipo e o conceito
de sincronicidade receberam, inclusive, um melhor enquadramento científico.
O enredo da psicologia analítica é também marcado por diversos eventos:
A psicologia analítica de C. G. Jung está inserida no novo paradigma emergente devido a várias características de suas formulações teóricas. (...). (...) nasceu em 1875 (...) vindo a falecer somente em 1961 (...) tendo presenciado, portanto, as duas grandes guerras e mesmo as questões políticas da guerra fria e a chamada “corrida espacial”. Todos estes eventos sociais e tecnológicos, como aconteceu com Freud e outros gênios criadores, tiveram marcada influência em sua obra. (BOECHAT, 2004, p.6)
Jung e Freud trabalham em conjunto de 1907 até o rompimento em 1913 por
diferenças nas construções teóricas, iniciadas com a discussão sobre o conceito de
pulsão - como será abordado posteriormente.
Jung apresenta Transformações e Símbolos da libido (1912), obra que marca
a separação eminente entre eles. Essa separação é um acontecimento único na vida
de ambos.
A convivência do antigo paradigma durante a emergência de um novo faz
36
parte do processo de transição e permite que se visualize essa passagem na própria
elaboração dos saberes recentes. O inconsciente, conceito que inaugura a
psicanálise - igualmente essencial à psicologia analítica - é também representante da
entrada em um tempo de possibilidades para novas compreensões acerca do sujeito
e seu universo.
Freud, primeiramente, tenta oferecer um trato quantitativo ao inconsciente -
preso aos princípios científicos deterministas - e só mais tarde aceita a
impossibilidade dessa realização. Jung, por sua vez, utiliza instrumentos de medição
para compor seus estudos comprobatórios dos complexos inconscientes -
inteiramente dentro dos princípios cientificistas vigentes. Mais tarde, sua teoria
acerca da visão de mundo, suas intercorrências e a construção do conceito de
sincronicidade sofrerão a influência dos princípios relativísticos como apontado
anteriormente.
É fundamental que se sublinhe que a psicanálise e a psicologia analítica,
dentro de suas práxis, demonstram que sujeito e objeto não constituem pólos
opostos. A primeira traz a transferência como técnica e a última afirma que a psique
é sujeito e objeto - observador e observado - ao mesmo tempo quando participante
da relação analítica. Sem dúvida, as proposições trazidas por esses saberes os
colocam no patamar das mudanças pertencentes à transição paradigmática que se
apresenta.
Na abordagem aqui exposta, que tem o foco na relação corpo-psique, mostra-
se de extrema relevância a via que ambas - psicanálise e psicologia analítica -
oferecem para a possível dissolução da separação que se assiste a essa identidade.
37
3 A COMPREENSÃO DA RELAÇÃO CORPO-PSIQUE
3.1 BREVE ABORDAGEM DO CONCEITO CORPO-PSIQUE ATRAVÉS
DA HISTÓRIA
Esse tópico oferece, resumidamente, a idéia que a relação corpo-psique
perpassa um longo caminho pela história do pensamento humano e se mostra, até
hoje, atual. Encontra-se, também, a demonstração da participação da psicanálise e
da psicologia analítica para o entendimento de questões, de alguma forma, atreladas
ao tema da relação corpo-psique como, por exemplo, os quadros patológicos
considerados psicossomáticos - que são estudados, através dessas teorias, pelo
campo instituído como psicossomática.
O interesse pela relação corpo-psique no decorrer da história e das
construções do pensamento é tema constantemente presente. É parcela essencial
nas interrogações que se fazem a respeito da constituição do ser humano.
Na mitologia grega, várias divindades relacionavam-se à saúde, tais como
Apolo, Esculápio e Panacéia, entre outros. Para o povo, aos deuses era atribuída a
responsabilidade pelas doenças. Contudo, a separação corpo e psique não era
estabelecida como pressuposto.
No pensamento de Platão (428-347 a.C.), resumidamente, a alma pode ser
descrita como pré-existente ao corpo e a ele sobrevivente. Como parte imaterial do
homem, aparece dividida em três categorias - superior, média e inferior. Essas
categorias se referem ao abdômen, ao tórax e ao cérebro e são relacionadas,
respectivamente, às funções nutritivas, das paixões e da inteligência / conhecimento.
Apesar de dualistas, suas idéias postulam sobre o que seria necessário para a
harmonia do corpo e psique (alma), indispensável ao equilíbrio geral e,
conseqüentemente, ao desenvolvimento da polis.
38
A perturbação, a loucura, apareceria quando a alma superior não mais conseguisse controlar as outras duas. Essa visão, dualista, reconhecia, também, que a loucura não seria apenas de origem corporal, mas divina [psíquica]. (VOLICH, 2000, p.23)
Em Aristóteles (384-322 a.C.) a alma também é considerada em três
categorias. Grosso modo, pode-se descrever o seguinte quadro: a alma vegetativa é
comum a todos os seres vivos e tem as funções nutritiva e reprodutiva; a alma
sensitiva intera o conjunto dos animais e dá início ao conhecimento através da
sensação (aísthesis), possuindo as funções de locomoção, da sensação do prazer e
da dor e, no homem, é responsável pela imaginação (a que o desejo também se
refere, além da sensação); por último, a alma racional - exclusiva do homem - é
responsável pelo conhecimento intelectual (CHAUÍ, 2002, p. 419-420). Sua filosofia
propõe que todo organismo representa a síntese dos princípios da matéria e da
forma, e coloca como fundamental ao homem a sua relação com a natureza. Esse
pensamento reafirma que a quebra desse par primevo - homem/natureza -
possivelmente, levaria à separação assistida, posteriormente, entre corpo e psique.
A alma estaria ligada ao corpo físico, e toda a doença física teria também uma expressão anímica. (...) A cólera ou o desejo de vingança, por exemplo, provocariam a ebulição do sangue. O restabelecimento do doente ocorreria por meio da catarse, visando tanto à purgação do corpo como à purificação da alma. (VOLICH, 2000, p. 23)
O trabalho de Hipócrates de Cós (460 a.C.) é marcado pela idéia de que há
quatro humores - fluidos - atuantes no corpo: bile negra, bile amarela, fleuma e
sangue. O equilíbrio da saúde depende desses fatores. Assim, a doença é
considerada um desequilíbrio do estado organizado da unidade. Para esse pensador
e médico, a observação clínica e a anamnese são fundamentais para a
compreensão do sujeito, entendendo que só a partir dessa apreensão se faz
possível a realização do diagnóstico e de um prognóstico. Hipócrates postula a
39
noção de unidade funcional do corpo. A alma, psyché, apresenta uma função de
regulagem nesse contexto.
O corpo humano é um todo cujas partes se interpenetram. Ele possui um elemento interior de coesão, a alma; ela cresce e diminui, renasce a cada instante até a morte. É uma grande parte orgânica do ser. (HIPÓCRATES em VOLICH, 2000, p. 24)
Galeno (129-199 d.C.), revendo a teoria de Hipócrates, considera a causa da
doença como endógena - relacionada a sua constituição e a hábitos de vida que
pudessem propiciar o desequilíbrio.
Paracelso (1493-1541) vê a relação entre o externo e o interno, propondo o
tratamento através de substâncias - minerais e metais - que são encontradas tanto
na natureza como no ser humano: a cura pelos semelhantes.
Durante a Idade Média, a carne tornou-se depositária dos pecados e das
imperfeições, enquanto que a alma passou a figurar como o lugar onde habitam os
valores supremos - tais como a sua filiação divina e a racionalidade. Essa é uma
tendência, nessa época, de promover a distinção hierárquica entre corpo e psique.
(...) Ainda no período medieval, Santo Agostinho referia que o homem era constituído por substâncias racionais, resultantes de alma e corpo, ambos criados por Deus. São Tomás de Aquino, um dos representantes desse período, escreveu sobre a unidade do composto humano. (MULLER & COLABORADORES, 2006, p.40)
Descartes (1596-1650) é quem influencia todo o pensamento ocidental na
construção de uma filosofia do conhecimento que será um dos pilares do modelo
científico que perdura até nossos dias. Passa a ser considerado, mais tarde, o
símbolo da idéia dualista de separação entre psique e corpo. Este, visto como
máquina, era então estudado. Todavia, o desenvolvimento da obra de Descartes
(1649), através de seu Tratado das paixões mostra que ele mesmo começava a
compreender que as concepções mecanicistas não eram suficientes para a
construção de uma teoria da medicina e que ele não tinha certeza da própria visão
40
dualista que havia trazido à tona.
Não me parece que o espírito humano seja capaz de conceber distinta e simultaneamente a diferença entre alma e corpo, bem como sua união. Isto porque para isso seria necessário concebê-las ao mesmo tempo como uma única coisa e como duas o que é contraditório...(...). (DESCARTES em VOLICH, 2000, p.39)
Porém, o que se estabelece, historicamente, como modelo cartesiano é
aquele que promove a cisão psique-corpo.
O século XVII foi um período onde a formulação da Lei Gravitacional
Universal de Newton (1643-1727), ocorrida em 1687, pareceu mostrar ao mundo
científico que os fenômenos da natureza se caracterizavam por sua capacidade
mensurável e equacionável. Muito foi desenvolvido em vários campos da medicina,
como as concepções do sistema fisiológico, da circulação e tantas outras
descobertas.
Ainda nesse mesmo século, Espinosa (1632-1677) trata de questões
epistemológicas e, inclusive, da questão divina de forma diversa de Descartes.
Em seu tratado sobre a Ética, Espinosa (1677) utiliza a expressão “Deus ou
Natureza” que demonstra sua compreensão de que:
(...) o homem não é criado por Deus, sendo uma modificação (modus) dos atributos divinos [infinitos] – pensamento e extensão. (...).Com esta tese, Espinosa afirma que Deus é matéria, e não puro espírito como sempre afirmado pela teologia e filosofia. E, além disso, fica também abolido o dualismo cartesiano das substâncias. (BOECHAT, 2004, p.46).
O século XVIII empregou a metodologia utilizada pelas ciências naturais para
os estudos epistemológicos. Exercia, dessa forma, a defesa da relação entre o
homem e a natureza, recebendo a influência dos ideais iluministas - oriundos, em
grande parte, das concepções de Rousseau (1712-1778).
Kant (1724-1804) traz o sujeito para o centro da teoria do conhecimento,
afirmando que o conhecimento do homem é constituído por uma parte pragmática,
41
isto é, daquilo que o indivíduo faz dele mesmo, e outra - fisiológica - formada pela
natureza. De alguma forma, Kant (1724-1804) procura integrar esses princípios
constituintes do ser humano, como pode ser entendido na passagem abaixo:
Corpo e alma compartilham o bem e o mal que lhes acontece. O espírito é incapaz de funcionar quando o corpo está cansado, e uma dedicação exclusiva ao espírito destrói o corpo, incapaz de regenerar e de fazer o trabalho de reparação. (KANT em VOLICH, 2000, p. 42)
Heinroth (1773-1842), importante psiquiatra alemão, tem sua obra relacionada
com questões da insônia onde aborda a idéia de uma influência das “paixões
sexuais” sobre patologias como o câncer, a tuberculose etc. É o inventor do termo
psicossomática para expressar a integração que encontra, em suas observações
clínicas, dos aspectos físicos e psíquicos quando o ser humano adoece. Mais tarde,
apresenta outro termo - somatopsíquico - para realçar que fatores corporais também
podem afetar estados psíquicos.
É interessante perceber que o ser humano, em sua busca pela compreensão
da relação corpo-psique, realiza períodos de alternância entre as posturas de
unidade, de pensamento dualista e de mesclagem entre ambas.
No século XIX, as ciências naturais continuaram muito valorizadas junto a sua
metodologia de comprovação científica. A tendência ao reducionismo - buscar uma
causa específica para uma doença - apropriou-se do entendimento vigente através
das descobertas de Pasteur (1822-1895), que introduz o conhecimento da existência
da vida microscópica (germes) relacionada à hidrofobia, entre outras doenças. Cria a
vacina anti-rábica. Todas as descobertas científicas, como o desenvolvimento do
próprio microscópio, trouxeram um desvendamento do corpo humano e do universo
que o cercava nunca antes visto. Por outro lado, apesar de o ambiente ter sido
incluído como participante ativo das questões relacionadas à doença e à saúde, o
corpo e a psique pareciam ser compreendidos e estudados em separado, onde esse
42
corpo físico responderia por quase tudo.
Por volta de duas décadas antecedentes ao alvorecer do século XX, Pierre
Janet (1859-1947) apresenta uma idéia psicodinâmica para um processo que
acreditava ser psicossomático. Afirma que o quadro dissociativo provinha de uma
energia psicológica deficiente.
Esse é o momento de se apontar um promissor desenvolvimento das teorias
e suas respectivas experiências práticas - já que umas dependem das outras -
relativas ao retorno a uma apreciação quanto ao corpo e psique como identidade.
Era um mundo renovado que se apresentava, buscando princípios básicos para
novos dizeres e, embora partindo do referencial determinista, já apontava para a
emergência de novas aferições acerca do ser humano e conjecturas do mesmo.
Finalmente, ao eclodir do século XX, Freud (1856-1939) inaugura a
psicanálise embasada no conceito de um inconsciente substantivo e reinstaura a
importância de uma relação entre as manifestações psíquicas e variâncias
patológicas corporais, apreensão adquirida a partir do estudo clínico da histeria.
(...). Sua grande importância reside na explicação dos sintomas somáticos em termos econômicos, isto é, em termos da distribuição de energia/excitação/estimulação dentro do aparelho psíquico (primeira tópica), considerando os sintomas de ordem funcional (fisiológica) como “a manifestação somática das angústias não representadas” (não simbolizadas, sem significação emocional). (LOPES, 2007, p.1)
Nesse mesmo período, Jung (1875-1961) também caminha em direção a um
esclarecimento sobre as relações profundas entre o corpo e suas determinantes
psíquicas através de conceitos imprescindíveis para os pilares de sua teoria, tais
como arquétipo, complexo e instinto - que serão mais tarde elaborados na intenção
de demonstrar como ocorre essa compreensão.
O médico alemão Georg Groddeck (1866-1934) participa, em 1917, do
movimento psicanalítico, porém desenvolve conceitos próprios quanto à noção de
43
que o mecanismo da conversão histérica “poderia ser generalizado para outras
doenças somáticas como uma expressão simbólica de desejos inconscientes
manifestados no corpo do paciente.” (MULLER & COLABORADORES, 2006, p.40).
Groddeck (1866-1934) considera que sempre há um sentido na doença que não
depende de um acaso. Ela representaria uma solução problemática - isto é, uma
solução que não esgota a causa - para os conflitos que pontuam cada ser humano.
A riqueza e a contribuição da psicanálise, acerca do tema proposto, são
demonstradas pela variedade de colaboradores e seguidores que se propuseram a
seguir os caminhos traçados por Freud (1856-1939) e a aplicá-los, à luz de seus
entendimentos e experiências clínicas, para a compreensão da composição corpo-
psique. Como pode ser atestado, as décadas de 10 e de 20 foram palco da
expansão do movimento psicanalítico. Muitos psicanalistas já se interessavam, a
partir da elaboração da metapsicologia freudiana e da teoria pulsional, pelas
relações entre o psíquico e o biológico.
Sandor Ferenczi (1873-1933) era psicanalista e amigo de Groddeck (1866-
1934). Contudo, mesmo antes de conhecê-lo, interessava-se pelas relações da libido
com o somático.
Em 1917, publica As patoneuroses. Esse trabalho descreve algumas
perturbações de caráter neurótico desencadeadas por doenças do corpo ou mesmo
ferimentos. Ferenczi (1873-1933) serve-se de um hospital militar durante a Primeira
Grande Guerra para suas investigações a respeito. O centro de suas conclusões
baseia-se em uma compreensão de que a libido, nos casos citados - de doença ou
ferimento - levaria à sexualização da parte do corpo afetada e, assim, seria passível
de uma obtenção de prazer. Esse sistema favorece a continuidade e a permanência
dos sintomas. O corpo estaria em foco, ao contrário do que ocorre na conversão
44
histérica.
Ferenczi (1873-1933) trabalha, em 1926, com a idéia de uma neurose de
órgão, procurando o entendimento de uma possível origem psíquica para
determinadas disfunções orgânicas. Estas estariam situadas entre a histeria e outras
doenças somáticas. Entre elas, considera como pertencentes a essa categoria as
neuroses atuais, a asma nervosa, as neuroses cardíacas, as de estômago, a
enxaqueca e outras tantas. Pondera, em seus estudos, que as perturbações da
sexualidade oriundas de razões psíquicas promovem o desacerto somático.
O húngaro Franz Alexander (1891-1964) conduz importantes pesquisas sobre
bacteriologia. Torna-se, mais tarde, pesquisador do cérebro, o que o leva a um
encontro com o trabalho de Freud (1856-1939). Em 1919, forma-se primeiro
estudante do Instituto Psicanalítico de Berlim. Em 1930, abraça a carreira de
professor na Universidade de Chicago e lá acaba por criar o Instituto de Chicago.
Interessa-se por doenças psicossomáticas e monta uma base para estudar a
articulação entre corpo e psique em um momento em que a psiquiatria americana -
da qual é um membro - estrutura seus estudos nas questões puramente
psicológicas.
Liderando o grupo de Chicago, Alexander (1891-1964) procura a gênese
inconsciente das enfermidades e nela, a razão do desenvolvimento de doenças tais
como a úlcera péptica, artrite reumatóide, hipertensão arterial e outras.
Constrói uma hipótese de especificidade onde propõe que determinadas
doenças sejam resultados de interações entre predisposições constitucionais,
conflitos inconscientes e tipos de situações cotidianas estressoras - causadoras de
estresse - que, por sua vez, ativariam esses conflitos, todos de ordem específica.
Alexander, assim, identifica algumas doenças que, em seu entendimento, possuem
45
origem em um conflito central - o qual acabaria por ativar um quadro doentio quando
em interação com predisposições constitucionais e estressores particulares.
Muller (2006) apresenta um levantamento histórico, sublinhando a noção de
unidade psicofísica nesse decorrer.
A concepção holística foi reforçada com uma base fisiológica a partir do conceito de homeostase - desenvolvido por Cannon - o qual afirmava que qualquer estímulo, inclusive o psicossocial, que perturba o organismo, o perturba em sua totalidade. (CALDER, 1970, em MULLER & COLABORADORES, 2006, p. 41)
As noções da relação corpo-psique são desenvolvidas a partir da idéia de
uma identidade4, seja no sentido de uma interação, seja no sentido de uma
identidade entendida como uma integração. Algumas vertentes percebem o
psicossoma como uma totalidade5.
Felix Deutsch (1894-1963) é o psicanalista que resgata, historicamente, o
termo psicossomática de Heinroth (1773-1843) em um congresso do qual participa,
em 1920, como também participa Groddeck (1866-1934). De modo sucinto, pode-se
afirmar que Deutsch (1894-1963) aplica ao termo em questão à idéia de um homem
integrado em seu funcionamento corpo-psique e de uma medicina psicossomática a
partir dessa percepção. Ao emigrar para os Estados Unidos, torna-se um importante
colaborador de Franz Alexander e, mais adiante, funda a Associação Psicanalítica de
Boston.
A dificuldade de alguns pacientes em descrever sentimentos - conjugada com
4 A identidade corpo-psique aqui apresentada oferece a idéia de uma interação ou de uma integração entre o psíquico e o somático. Dessa forma - como duas faces de uma mesma moeda - por um lado, pode ser considerada como dualidade - na noção de interação. Por outro lado, a identidade corpo-psique pode ser admitida como unidade pela integração. Nessa concepção, não se distingue o corpo da psique: um não se constitui sem o outro. 5 A totalidade corpo-psique é um conceito defendido por Dejours e por Boechat, entre outros psicanalistas e analistas junguianos. Nesta dissertação, como o cerne é a teoria de Freud e a teoria de Jung a respeito da relação corpo-psique na passagem do século XIX ao XX, priorizou-se a abordagem conforme a apreensão que cada uma das teorias de origem permite em seus fundamentos.
46
sintomas considerados psicossomáticos - é denominada de alexitimia por Sifneos
(2000) da Escola de Boston, fundada por Deutsch (1894-1963), citado acima. O
estudo desse conceito foi reforçado na década de 50 por Pierre Marty (1918-1993) e
Michel de M’Uzan (1963) - da Escola de Paris. Mais tarde, em 1962, propõem o
conceito de pensamento operatório.
(...) os dois conceitos [alexitimia e pensamento operatório] entendem as doenças psicossomáticas como relacionadas com uma psicopatologia negativa ou branca, ou seja, a ausência de representação mental dos aspectos emocionais como fator gerador do sintoma somático, ausência de palavras para expressar o emocional. O indivíduo “psicossomático” não tem palavras para designar seus estados afetivos (a=negação; lexis=palavra; thymos=coração ou afetividade) ou não consegue distinguir um estado do outro. (LOPES, 2007, p. 1 e p.2)
Pierre Marty (1998) considera que a psique é aquilo que pode defender o
corpo das doenças. Em 1962, conclui que o próprio sujeito está envolvido e
participante de forma ativa na aparição de suas doenças e que os mecanismos de
defesa atuam na forma de expressão dessas doenças. É ele quem funda um centro
que acaba por se tornar, em 1972, o Instituto de Psicossomática de Paris, onde a
psicanálise é tida como instrumento de entendimento do fenômeno psicossomático
na estrutura individual.
Para Marty (1998), resumidamente, quando faltam representações - por
insuficiência ou indisponibilidade - os estímulos internos e/ou externos e suas
sobrecargas não podem ser elaborados, simbolizados e, assim, não conseguem ser
integrados à atividade psíquica e daí a somatização pode ocorrer por regressão ou
por desorganização progressiva, sendo a última caracterizada por doenças
evolutivas e graves.
Em situações extremas ocorre a depressão essencial, que é um estado onde
parece não haver sintomas depressivos. Há uma baixa no tônus libidinal geral, não
47
havendo demonstração de tristeza, culpa etc. Há perda do investimento libidinal
tanto narcísico como objetal. Essa depressão é conseqüência última da
desorganização progressiva ou desfusão pulsional - processo semelhante ao que já
havia sido estudado por Freud - e é considerada por alguns como a
autodestrutividade da pulsão de morte.
Joyce Mc Dougall (1996), psicanalista francesa, segue uma trilha similar a de
Marty (1998). Contudo, considera que as somatizações são uma das respostas
psíquicas mais comuns à dor mental que o sujeito pode agüentar. Assim, constituem-
se por regressões defensivas contra vivências aniquiladoras, ocorrendo sempre que
eventos - de ordem interna ou externa - acabam por fugir à capacidade de tolerância
habitual de processamento, isto é, de fornecer um sentido afetivo a esses
acontecimentos.
(...) os processos de pensamento dos somatizantes procuram esvaziar a palavra de sua significação afetiva. (...) À medida que eu perscrutava as expressões somáticas de meus analisandos, cheguei à conclusão de que os fenômenos psicossomáticos não poderiam, do ponto de vista psicanalítico, ser limitados a doenças do soma e que deveriam incluir teoricamente, se for levada em conta a economia psíquica, tudo aquilo que atinge o corpo real (diferente do corpo imaginário que atinge a conversão histérica), inclusive suas funções autônomas. (MC DOUGALL, 1996, p.22)
Mc Dougall (1996) aponta para a idéia de que esses processos regressivos
remetem à primeira infância, onde não é existente a distinção entre o sujeito e o
objeto em termos afetivos. Estima que o bebê, ao nascer, é delimitado por uma
matriz psicossoma indiferenciada. Para atingir a necessária diferenciação do outro, o
bebê passa a depender da função materna primária, isto é, de um reconhecimento
diferenciado de suas necessidades, de seus apelos e de toda sua forma de se
comunicar através do que seu corpo é capaz de produzir. A essa função materna
primária - nomeada assim por Winnicott (1896-1971/1988) - Mc Dougall (1996) batiza
48
de função de pára-excitação e fantasia de um corpo para dois.
A observação, através do histórico individual, de que pacientes que
apresentavam quadros de somatização tinham falhas nas relações primordiais com
suas mães - enquanto bebês - leva Mc Dougall (1996) a entender essas falhas como
o fator diferenciador entre o psiquismo e o soma, “ainda que permanecendo ligados
para sempre”. (Mc Dougall, 1996, p.37). Essa compreensão se faz importante em
nossa apreciação sobre o tema.
Qualquer fracasso nesse processo fundamental [relação mãe-bebê] vai comprometer a capacidade da criança de integrar e reconhecer como seus o corpo, os seus pensamentos, os seus afetos (...). (MC DOUGALL, 1996, p.36)
Mc Dougall considerou que há um sentido da doença:
Quanto ao sentido da doença, supõe tratar-se do sinal de que há ali um drama não representado, e que precisaria sê-lo por meio da análise, para que advenha ao âmbito da linguagem. (...) Podemos perceber que as manifestações psicossomáticas situam-se no contexto de uma história que é preciso reconstituir, ou de uma mitologia que é preciso construir. (MC DOUGALL, 1996, p.46)
Christophe Dejours (1998), psicanalista que também acompanhou o
pensamento de Pierre Marty (1998), distinguindo-se deste posteriormente, alicerça a
compreensão da identidade corpo-psique como uma totalidade (vide nota p.44).
(...) a relação entre biologia e psicanálise é um problema teórico que é quase ontológico ou epistemológico (...). Não acredito na somatização, se nós compreendermos por este termo a doença somática como efeito de um acontecimento psíquico funcionando como causa. Aceitar o termo somatização seria dar uma resposta sobre as relações entre (...) corpo e psique, a qual, justamente, eu não adiro. Quer dizer, [não adiro] a um dualismo entre corpo e psique. (DEJOURS, 1998, p.40)
Dejours (1998) procura resgatar a dimensão do sintoma, considerando-o
diferente do que aparece na conversão histérica, no recalcado, ou qualquer outro
sintoma neurótico. Para esse autor, a crise somática acontece no âmbito de uma
relação com o outro.
(...) o sintoma somático é endereçado a um outro; eu adoeço por
49
alguém. A crise somática acontece no âmbito de uma relação com o outro, quando esta relação me coloca num impasse psíquico que, evidentemente, é devido a mim, mas que também é um pouco devido ao outro. (DEJOURS, 1998, p.41)
Assim, poder-se-ia encontrar um significado, ligado à dinâmica subjetiva,
para o sintoma psicossomático. A diferença é que não se poderia voltar atrás, como
na conversão histérica, e lhe atribuir um sentido. Todavia, o sintoma teria uma
intencionalidade expressiva. Essa intencionalidade só poderia ser compreendida na
relação com o outro. Afinal, durante a vida, o corpo é convocado para produzir
efeitos no outro. Na concepção de Dejours (1998), isso dependeria do que denomina
corpo erógeno, onde o corpo orgânico é “colonizado” pelo psíquico - que é
constituído na relação do bebê com os pais. Esse corpo não é mais um corpo
fisiológico e é com esse outro corpo que é feita a relação.
(...) Devagarzinho, a criança pode solicitar a sua mãe brincar com diferentes partes do corpo, brincadeiras durante as quais, não somente ela brinca, mas também adquire um controle com relação às exigências de autoconservação, a urgência de satisfazer suas necessidades. Devagarzinho, todo o corpo pode ser colonizado, até que se constitua o que se chama o segundo corpo, ao qual damos o nome de corpo erógeno. É este corpo que servirá, em seguida, à vida erótica. (...) Este segundo corpo é o corpo que habitamos; (...), é um corpo que foi arrancado ao corpo biológico, mas é um corpo que nos faz verdadeiramente humanos (...). (DEJOURS, 1998, p. 44)
Para Dejours, o adoecimento somático está marcado por falhas na
constituição do corpo erógeno - o interlocutor desse adoecimento. Esse corpo
diferenciado - nascido das relações entre o bebê e os pais, junto a suas funções
fisiológicas e necessidades primeiras - representa uma subversão do corpo
biológico. Como a impossibilidade de se cumprir todas as necessidades da criança
está presente no cumprimento das funções materna e paterna, são criadas zonas de
fragilidade nesse corpo erógeno - onde as pulsões e excitações se tornam incapazes
de se representar. Nesse modelo, as doenças somáticas se apresentam como um
padrão inscrito nas falhas do corpo erógeno.
50
No campo da psicologia analítica, encontram-se autores que apresentam
obras auxiliares e colaboradoras à compreensão da relação corpo-psique, como
Michael Fordham (2006), que há mais de cinqüenta anos estende seu trabalho
também sobre o desenvolvimento infantil nas bases junguianas. Leva em
consideração a totalidade de psique e soma através da concepção de um self
individual, como já marcado na obra de Jung (1875-1961). Concebe o bebê como
uma unidade psicossomática. Desenvolve, então, o conceito de self primário - que
precede o ego na infância - e que revela um potencial de energia que contribui tanto
para a formação dos arquétipos como para a própria formação do ego. Constitui-se,
dessa maneira, como um sistema dinâmico e estrutural. Os arquétipos, que são
inconscientes, só podem ser conhecidos por suas representações. Fordham (2006)
tece sobre os mesmos a seguinte apreciação.
Embora mais estudados em suas complexas formas simbólicas - ou seja, em sonhos, fantasias, mitologia (...) - o núcleo essencial que emerge da obra de Jung é o de que um arquétipo é uma entidade psicossomática que possui dois aspectos: um está estreitamente ligado a órgãos físicos; o outro, a estruturas psíquicas inconscientes. O componente físico é fonte de “pulsões” libidinais e agressivas; o psíquico é a origem das formas de fantasia por meio das quais o arquétipo atinge representação na consciência. (...). (FORDHAM, 2006, p.84)
Fordham (2006) sublinha a importância do símbolo como agente
transformador de energia, operante no corpo e na psique - integrando-os em um
todo.
Utiliza os conceitos de processo de deintegração - por onde aparecem
expressões do self antes das verdadeiras relações objetais - e de reintegração para
explicar o modo pelo qual o self age em sua formação e durante todo o processo de
individuação.
Não cabe, no presente trabalho, aprofundar mais sobre a obra de Fordham
(2006). Todavia, cabe sublinhar que é mais um autor que corrobora a noção de uma
51
unidade psicossomática dentro do pensamento junguiano.
Mara Sidoli (2000), autora também junguiana, partindo de observações
realizadas através de sua rica experiência clínica, procura mostrar como os
distúrbios psicossomáticos podem ser originados em estágios muito precoces do
desenvolvimento infantil em razão de afetos irregulares oferecidos por aqueles que
desempenham as funções materna e paterna.
Seu pensamento é concernente com o de Fordham (2006) e é baseado nas
idéias deste a respeito do self primário - a totalidade da psique e do soma em um
estado germinal, de integração - participante de um processo dinâmico durante o
crescimento e individuação.
Sidoli recebe, também, a influência do pensamento de psicanalistas, tais
como Melanie Klein (1882-1960) - autora da teoria das relações objetais - e de
Winnicott (1896-1971), que apresenta os conceitos de objeto transicional e mãe
suficientemente boa, interligados a tudo que envolve a relação com o bebê e o papel
materno e paterno em sua formação.
A mãe, na visão de Sidoli (2000), é quem exerce a mediação entre seu bebê
e os conteúdos arquetípicos inatos, constelados originalmente no nascimento,
mitigando os aspectos absolutos - que são bons e ruins ao mesmo tempo.
Sidoli (2000) deu importância aos fatores culturais e familiares na
determinação de distúrbios psicossomáticos precoces, principalmente pelo atual
“estilo de vida” - o qual priva a relação entre pais e filhos de um ambiente nutrido de
proteção que propicie o suporte saudável para outros estágios vivenciais.
A referência aos trabalhos de alguns dos autores que seguem as obras de
Freud (1856-1939) ou de Jung (1875-1961) se torna útil para demonstrar a
veemência das teorias freudiana e junguiana na composição do pensamento
52
humano acerca da constituição do sujeito e reafirmar a atualidade das mesmas.
Como é visível, o histórico da relação corpo-psique, ao adentrar o século XX,
cumpre uma abordagem, a nosso ver, pautada mais pela observação das patologias
que se apresentam, isto é, por aquilo que retrata o desequilíbrio do conjunto
psicofísico. Tem sido por esse viés, mais em evidência, que se procurou o retorno à
compreensão da relação corpo-psique. Não obstante, é fundamental que se imprima
a esse recorte a concepção de uma identidade psicossomática - como já referido - e
a possibilidade de, por esse caminho, facultar um dimensionamento mais eficaz da
significação do sujeito.
A psicanálise e a psicologia analítica parecem oferecer o escopo teórico
necessário às evoluções dessa apreciação, resguardadas em suas origens de
ciências renovadoras de saberes. Para esse entendimento, na medida em que o
soma e a psique revelam uma relação de composição, as teorias apontadas vêem o
sujeito como um todo, não priorizando apenas a doença. Partem, então, de seu
dinamismo psíquico e de toda a extensão envolvida naquilo que o constitui como
sujeito, inclusive seu corpo - este através de suas relações de interação/integração
com a psique e, em decorrência, com o enredo de significações pessoais, familiares
e culturais.
O breve histórico aqui apresentado implanta uma base introdutória para o
desenvolvimento desta dissertação. Os esforços serão concentrados nas
possibilidades oferecidas pelas teorias originais de Freud (1856-1939) e Jung (1875-
1961) com o intuito de vislumbrar a compreensão da relação corpo-psique como
uma identidade somatopsíquica - tanto no molde de uma dualidade interacional
como compondo uma unidade psicofísica - de acordo com que cada teoria possa
expressar.
53
3.2 A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE NA TEORIA FREUDIANA
Este tópico aborda o foco central deste trabalho que nasce da questão sobre
de que forma a psicanálise, enquanto teoria e prática, oferece um caminho para o
entendimento da relação corpo-psique nos moldes de um interagir contínuo.
A perspectiva de abordagem da relação corpo-psique em psicanálise pode
ser estendida aos estudos a respeito dos fenômenos psicossomáticos. Apesar da
distinção já impressa nesta dissertação entre um tema e outro - ambos de riqueza
infinita - está clara a impossibilidade de desmembrá-los totalmente. A psicanálise
nasce da percepção de Freud (1856-1939) de um corpo singular ao corpo físico por
entender que este estava “relacionado” a algo pertencente ao funcionamento
psíquico através da observação clínica da conversão histérica. Por esta via, a
psicanálise apresenta-se em um lugar relevante para a compreensão da relação
entre o psíquico e o somático.
(...) os sintomas corporais manifestos nas conversões histéricas são uma transposição do conflito psíquico para o campo somático. Por meio dessa operação, o sintoma corporal torna-se uma expressão simbólica, camuflada e substitutiva do conflito recalcado. (VOLICH, 2000, p. 69)
Em companhia de Charcot (1825 -1893), Freud aprende que a clínica e sua
observação são soberanas em relação a qualquer teoria: “A teoria é importante, mas
não impede que o fenômeno exista.”(CHARCOT em FREUD, 1925, p. 24). A
observação das histéricas leva-o à hipótese de que o lugar corporal onde a paralisia
se instala nas histéricas é demarcado pela idéia popular dos limites das partes
envolvidas, não se encontrando em conformidade com a própria anatomia corporal.
Aí se encontra o marco para o entendimento da função da sexualidade na
estruturação do psiquismo - fator propulsor que dá ordem a todo desenvolvimento da
psicanálise. Freud percebe a necessidade de aprofundar o entendimento das
54
neuroses e de traçar um caminho diferenciado daquele desenhado por Charcot
(1825-1893).
Freud depara-se com a insuficiência do modelo médico - até então utilizado
para a investigação das doenças nervosas - e procura, a partir dessa apreensão,
estudar os fenômenos da vida psíquica: escutando as histéricas, adota o método da
associação livre e concebe o conceito de fantasia. Até então, Freud acreditava que
suas pacientes tivessem sofrido uma sedução real por parte dos pais. Contudo,
apesar dos episódios relatados não terem ocorrido de fato, Freud percebe que estes
possuem o mesmo valor que se tivessem ocorrido. É o nascimento da clínica da
escuta do inconsciente.
Pode-se afirmar que o interesse de Freud em aprofundar os meandros da
histeria trouxe a ampliação do entendimento das variadas manifestações do
adoecimento - concebido como o desequilíbrio entre o psíquico e o somático - e
infinitos modos do conseqüente sofrimento humano se apresentar.
Questionando as vias que levam o conflito psíquico a manifestar-se na esfera somática, aceitando acolher aquilo que a ciência de sua época rejeitava - os sonhos, os lapsos, a histeria e, inclusive, uma outra anatomia, imaginária - Freud funda a psicanálise desenvolvendo uma clínica e um aparelho teórico que buscam permitir a compreensão das diferentes passagens e relações entre as manifestações psíquicas e corporais. De ponta a ponta - nas suas descobertas sobre os sonhos e sobre a sexualidade, nos modelos do aparelho psíquico e das pulsões - a obra freudiana apresenta uma reflexão permanente sobre as relações entre tais manifestações. (VOLICH, 2000, p. 64)
Freud acaba por elucidar o papel da psicanálise neste âmbito através de uma
retrospectiva de suas experiências, enquanto médico neurologista e já psicanalista
com reconhecida práxis:
A psicanálise nunca pretendeu ser uma panacéia ou produzir milagres. Para além de seus efeitos de cura, ela pode recompensar os médicos através de uma compreensão insuspeitada sobre as relações entre o psíquico e o somático. (FREUD, 1923, p.234)
É importante, para traçar a relação proposta entre psique e corpo, estar
55
atento ao papel do conflito e, fundamentalmente, como a psicanálise se constitui
através dele.
A teoria freudiana ressalta o papel do conflito na existência humana. Nosso organismo e nossa existência, bem como as relações do Homem e da Natureza e com seus semelhantes, são permanentemente marcados pela contraposição de forças, de interesses, de necessidades, de processos fisiológicos. É no âmbito de tais conflitos que somos concebidos, gestados, paridos. É a partir deles que passamos a existir, (...).Para cada indivíduo, as diferentes soluções encontradas em face dos conflitos experimentados ao longo de sua vida (...) determinam o bem-estar ou o adoecer. (VOLICH, 2000, p. 64 e p.65)
Entre os mais importantes conflitos encontram-se: a contraposição entre o
inconsciente e o consciente; a censura e as defesas contra as representações que
se mostram inaceitáveis; a oposição entre o ego e o superego e destes contra o id; a
oposição entre libido de ego e libido objetal etc.
(...) A investigação da natureza dos conflitos aos quais fomos e somos submetidos, bem como a análise de suas repercussões, constitui um dos pilares da psicanálise. É a partir dessa compreensão [que se pode entender] o sofrimento do sujeito em uma manifestação psíquica ou somática. (VOLICH, 2000, p.65)
Freud mostra que o sintoma na neurose pode exercer uma função de
simbolismo6 por nascer de um conflito que não consegue ser desfeito ou, mesmo,
apresentar outro tipo de manifestação. A formação de sintomas nas neuroses, no
desenvolvimento da obra freudiana, está ligada a um retorno do recalcado.
Freud lida com a pesquisa sobre a origem sexual das neuroses, como pode
ser atestado em seus artigos, desde muito cedo. Entre eles encontram-se: As
psiconeuroses de defesa (1894); Estudos sobre a histeria (1895), junto a Breuer
(1842-1925); A etiologia da histeria (1896) e A sexualidade na etiologia das neuroses
6 O termo simbolismo é aqui utilizado no sentido de ser uma representação indireta e figurada de uma idéia, de um conflito ou desejo inconsciente. Neste sentido, em psicanálise, qualquer formação substitutiva - sintomas e seus equivalentes, como atos falhos, chistes etc. - pode ser considerada simbólica.
56
(1898). Essa percepção propiciou uma forma diferente de se pesquisar o
desenvolvimento humano, apontando para uma nova apreciação das experiências
infantis na vida do adulto.
No primeiro texto citado, a denominação psiconeurose de defesa designa
algumas das psiconeuroses que são caracterizadas por sintomas que expressam os
conflitos infantis - diferentemente das neuroses atuais - tais como a histeria, a fobia,
a obsessão e certas psicoses. Desde que adquire a idéia de que a defesa (mais
tarde denominada de recalque) está sempre presente, essa nomenclatura perde seu
valor para Freud - como se pode perceber através de seu artigo Novas observações
sobre as psiconeuroses de defesa (1896). No mesmo ano, em A etiologia da histeria
(1896), Freud procura reafirmar que os sintomas histéricos não são provenientes
apenas de experiências reais, porém - em todos os casos - estarão ligados a
questões da sexualidade.
Sublinha-se, retornando um ano, a importância do texto Estudos sobre a
histeria (1895), fundamentalmente, pelos estudos de caso - onde Freud constata que
a vida sexual de seus pacientes estava envolvida e tinha responsabilidade sobre os
sintomas que se manifestavam. Além disso, há toda uma teoria do funcionamento
orgânico junto ao psíquico para explicar a conversão histérica. Freud faz analogia
com o sistema elétrico, mas tem consciência da complexidade do sistema nervoso:
“Estou ansioso por não levar a extremos a analogia com um sistema elétrico. Em
vista das condições totalmente dessemelhantes, mal pode ele ilustrar os processos
do sistema nervoso, e por certo não pode explicá-los (...)”. (FREUD, 1895, p.261,
nota de rodapé). Mesmo assim, não deixa de expressar seu pensamento por este
viés:
Mas posso mais uma vez recordar o caso em que, devido à tensão excessivamente elevada, o isolamento dos fios num sistema de
57
iluminação sofre um desarranjo e ocorre um curto-circuito em algum ponto dele. Se os fenômenos elétricos (...) ocorrerem neste ponto, a lâmpada à qual chega o fio deixa de acender. Da mesma maneira, a emoção deixa de surgir se a excitação desaparecer através de um reflexo anormal e se converter numa manifestação somática. (FREUD, 1895, p. 261)
É o que se concebe na conversão histérica. Pode ser entendido mais
especificamente:
(...) A excitação intracerebral que originalmente pertence à emoção, foi transformada em processo excitatório nas vias periféricas. O que era originalmente uma idéia emotiva, agora não mais provoca a emoção, mas apenas o reflexo anormal. (FREUD, 1895, p.261).
Para além da construção de uma ciência nos moldes estabelecidos à época
do desenvolvimento da psicanálise, Freud apresenta verdadeiro interesse, desde o
princípio, pela relação entre o somático e o psíquico como se pode acompanhar em
vários textos durante toda sua obra.
Em A sexualidade na etiologia da histeria (1898), Freud trata do quadro da
neurastenia - até então caracterizado junto às neuroses atuais e, mais tarde,
absorvido por outras entidades clínicas - reforçando que a etiologia sexual é o que
oferece ao médico uma base para seu trabalho terapêutico. É o que importa para
caracterizar o desenrolar das bases do pensamento psicanalítico.
Mais adiante, em Três ensaios para a teoria da sexualidade (1905), Freud
aborda o funcionamento da pulsão e, em um acréscimo realizado em 1915 a esse
texto, atribui um caráter mais qualitativo à libido - sinônimo de pulsão sexual - que,
como energia psíquica, torna-se essencial na estruturação do próprio psiquismo
humano em suas dimensões econômica e dinâmica, isto é, relativas às forças que
agem sobre o psiquismo e à abordagem dos conflitos existentes, respectivamente.
Serão relatados outros detalhes desse texto mais adiante. Em Dois verbetes de
enciclopédia (1922), a libido é definida como: “(...) a manifestação dinâmica na vida
58
psíquica da pulsão sexual”.(FREUD, 1922, p.305)
O desenvolvimento humano, através dos estudos psicanalíticos, exige que se
sublinhe as relações do sujeito com um outro humano em decorrência do desamparo
original a que está submetida a espécie humana por sua incapacidade para
sobreviver sem o auxílio e o olhar do outro. É através das primeiras experiências de
satisfação e de frustração vinculadas às necessidades básicas, tais como fome,
sede, frio, calor etc, que serão demarcadas as experiências de prazer e desprazer
nessa relação com o outro. Nesse ponto, atravessa-se a ordem do biológico e do
instintivo em direção ao psíquico, “à organização erógena e subjetiva do
sujeito”.(VOLICH, 2000, p. 66)
Pode-se afirmar que, além das experiências citadas, os destinos da pulsão
são marcados também pela experiência auto-erógena do bebê.
Será demonstrado que as questões relativas ao funcionamento pulsional,
como também o desenvolvimento da própria metapsicologia, estão intrinsecamente
ligados à compreensão do fenômeno psíquico e suas relações com o corpo.
Se abordarmos agora a vida psíquica do ponto de vista biológico, a pulsão nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico em conseqüência de sua relação com o corpo. (FREUD, 1915, p.148)
É fundamental que se aborde, resumidamente, o desenvolvimento do
conceito de pulsão e dos integrantes do circuito pulsional para que seja possível
vislumbrar as interações estabelecidas entre psique e soma através desta
apreensão.
O conceito de pulsão é um conceito construído a partir de uma necessidade
sustentacular da própria teoria psicanalítica. Em Ansiedade e vida instintual,
Conferência XXXII, já em 1932, Freud continua a afirmar:
59
A teoria dos instintos7 [pulsões] é, por assim dizer, nossa mitologia. (...) são entidades míticas, magníficos [as] em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los [las], nem por um só momento (...). (FREUD, 1932, p.119)
Sabe-se que é negado o acesso direto à pulsão. Ela se faz presente pelos
seus representantes para acessar a subjetividade humana. A seguir, uma bela
imagem para uma melhor compreensão do conceito, que acorda com a própria
observação que Freud apresenta a respeito:
À pulsão em si mesma, fica reservado o lugar do silêncio (...), tal como os dragões mitológicos, foi condenada a viver reclusa numa caverna à entrada da qual ouvimos apenas o seu rugido e sentimos o cheiro de enxofre que exala de suas narinas. Cada um de nós vive a ameaça da virgem que lhe tem de ser oferecida em sacrifício. (GARCIA-ROZA, 2003, p. 17)
Com relação aos representantes da pulsão citados, em seus textos
metapsicológicos8 - no sentido em que estes textos são aqueles que priorizam as
relações entre a dinâmica, a tópica e a economia - Freud distingue a representação
da coisa da representação da palavra. A primeira consiste em um investimento que,
se não baseado diretamente nas imagens mnésicas da coisa, se produz por traços
mnésicos derivados das mesmas. Ao inconsciente cabe só essa representação da
coisa, pois ele não alcança a representação da palavra, que ocorre com o advento
desta na vida do sujeito e o leva, mais adiante, à tomada de consciência. Desde o
Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud considera que a imagem mnésica
adquire qualidade através de sua associação com a imagem verbal e, assim, pode se
7 Trieb e Instinkt são sinônimos ocasionais em alemão e as traduções em muitas línguas variam na utilização dos mesmos para significar o que é entendido como pulsão. Optou-se, neste trabalho, pela manutenção de ambas as traduções em português realizadas pela Imago - tanto da E.S.B. que utiliza instinto no sentido de pulsão, como da nova edição das Obras Psicológicas de Sigmund Freud que já utiliza o termo pulsão, que é mais aceito. Apenas foi realizada, entre colchetes, a observação do significado do conceito sempre que se tornou conveniente para a compreensão do mesmo. 8 Projeto para uma psicologia científica (1895); A interpretação dos sonhos (1900); Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911); Além do princípio de prazer (1920); O eu e o id (1923); Resumo da psicanálise (1938).
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tornar consciente. Essa passagem demonstra o fluxo entre o processo primário -
regido pelo princípio de prazer e ligado à representação da coisa - e o secundário -
regido pelo princípio da realidade, relacionado à representação da palavra. Mais do
que isso, toda essa idéia reflete que o sujeito, desde os primórdios, tem sua relação
entre a psique e o corpo estabelecida por seu funcionamento interativo com os
mundos interno e externo. O sujeito só se constitui como tal, diferenciado do que o
cerca e a partir dessa diferenciação, porque constrói representações internas daquilo
que a ele se apresenta em suas experiências vivenciais. Para isso, é necessário um
corpo biológico que permita suas primeiras experimentações e manifestações das
citadas representações. Neste sentido, desde sempre, o corpo da psicanálise é
aquele que tem uma expressão psíquica.
Como já abordado, logo nos primeiros anos, em Três ensaios sobre a
sexualidade (1905), a pulsão fez sua estréia entre o psíquico e o físico.
Por instinto [pulsão] deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação em contraste com um ‘estímulo’, que é estabelecido por excitações simples vindas de fora. O conceito de instinto [pulsão] é assim um dos que se situam na fronteira entre o psíquico e o físico. (FREUD, 1905, ESB Vol. VII p. 171)
A partir de 1913, em conseqüência da compreensão pessoal da natureza
sexual do inconsciente e, assim, da origem sexual de todas as pulsões, houve o
rompimento entre Freud e Jung, que não concordava com essa observância.
Após a crítica de Jung, Freud remodela o dualismo das pulsões - pulsão
sexual e pulsão de autoconservação (de ego) - partindo, então, do investimento da
libido, e passa a contrapor as pulsões do ego às pulsões de objeto.
Em 1915, acrescenta uma nota de rodapé bastante significativa das
dificuldades operacionais para a delimitação do conceito de pulsão:
Não é fácil no presente ponto justificar estas suposições, extraídas que foram do estudo de uma classe particular de doença neurótica.
61
Mas, por outro lado, se eu omitisse toda menção a elas, seria impossível dizer qualquer coisa de substância sobre os instintos [pulsões]. (FREUD, 1915, p. 171)
É um anúncio da dificuldade em alocar suas apreciações clínicas aos
estatutos da cientificidade determinista. Na verdade, Freud realiza a delimitação das
zonas erógenas como não necessariamente correspondentes aos órgãos sexuais ou
apenas às zonas reconhecidamente óbvias de significância sexual, tais como os
orifícios oral e anal. Por essa compreensão, o caráter pulsional é tido como dotado
de uma característica tangencial ao somático e ao psíquico. Essa nota auxilia na
fundamentação dessa relação interacional que se apresenta entre os mesmos.
Em Pulsões e destinos da pulsão (1915), Freud procura dimensionar a
importância do termo para sua construção teórica e oferece um dualismo partindo da
libido, como já visto: compõe o par pulsão de ego e pulsão de objeto. Em Além do
princípio de prazer (1920), formula a existência das pulsões de morte pela sua
observação dos fenômenos de repetição e as inscreve em dualismo complementar
com as pulsões de vida. Essa é sua concepção teórica final a respeito do conceito.
As de morte tendem para a redução completa das tensões, enquanto que as de vida
tendem a construir unidades cada vez maiores e a mantê-las. Sua suposição é de
que a pulsão procura - sempre - uma satisfação obtida no passado. A partir do
interdito, foi inibida quanto ao seu objetivo - sua meta - e obrigada a procurar
caminhos variados. Essa conceituação deve ser elucidada de modo breve para que
se possa entender a significativa mudança sofrida na concepção da dimensão
econômica da metapsicologia - como será sublinhado mais adiante.
Quanto ao circuito da pulsão, em primeiro plano, tem-se a pressão (Drang),
que pode ser entendida como impulso, como “seu fator motor” – como assinala
Freud em Pulsões e destinos da pulsão (1915): “(...) A característica de exercer
62
pressão é comum a todas as pulsões; é, de fato, sua própria essência”. (FREUD,
1915 b, p.148)
A meta (Ziel), a finalidade ou objetivo - como também é nomeada - é sempre
encontrar a satisfação, que só poderá ocorrer na medida em que a estimulação na
fonte (Quelle) seja eliminada.
Embora a meta final de toda pulsão seja sempre a mesma, são diversos os caminhos que podem conduzir a essa meta. Portanto, uma pulsão pode ter numerosas outras metas intermediárias, que se combinam ou até se permutam entre si antes de chegarem à meta final. (FREUD, 1915 b, p.148)
A fonte (Quelle) de uma pulsão é descrita por Freud como:
(...) o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão. (...) muito embora o elemento mais decisivo para a pulsão seja sua origem na fonte somática, a pulsão só se faz conhecer na vida psíquica por suas metas. (FREUD, 1915 b, p. 149)
Quanto ao objeto (Objekt), Freud coloca que este é o possibilitador da
satisfação, podendo ser transformado, conforme seja preciso, pelos trânsitos
pulsionais que ocorrem durante a existência.
O objeto de um instinto [pulsão] é a coisa em relação a qual ou através da qual o instinto [pulsão] é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável (...), só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. (...) não é necessariamente algo estranho: poderá ser igualmente uma parte do próprio corpo do indivíduo.(...) (FREUD, 1915 a, p.143)
Como é percebido, Freud está atento ao substrato somático da fonte
pulsional, entretanto aponta para a possibilidade de haver satisfação tanto pela
experiência corporal como pela experiência psíquica, característica essa - de inter-
relação - que permite uma gama de expressões variadas e também a compreensão,
aqui abordada, de um sentido interacional entre psique e corpo.
O que distingue os instintos [as pulsões] um do outro e os dota de qualidades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e com seus objetivos. (FREUD, 1905, p. 171)
63
Retornando ao par pulsão de morte e pulsão de vida, instaurado em 1920 em
um dos principais textos entre aqueles que representam uma grande reformulação
na psicanálise, Freud parte da questão que se coloca a respeito dos limites da
dominação do princípio de prazer:
A rigor, entretanto, devemos dizer que é inexato falar de uma dominação do princípio de prazer sobre o curso dos processos psíquicos. Se tal dominação existisse, a imensa maioria de nossos processos psíquicos seria acompanhada de prazer ou conduziria ao prazer; ora, a experiência mais genérica contradiz flagrantemente essa conclusão. Por isso, deve-se admitir o seguinte: existe no psiquismo uma forte tendência para o princípio de prazer, mas algumas outras forças ou condições se opõem a ela, de modo que o desfecho nem sempre pode corresponder à tendência para o prazer. (FREUD in: Roudinesco & Plon, 1998, p. 487 e p.485)
Desde muito antes, Freud já concebia limitações ao principio de prazer, tais
como o princípio de realidade9 - que o substituía pela influência das pulsões de
autoconservação (do ego) - e o recalque, importante mecanismo inconsciente.
Contudo, Freud passa a considerar as reações psíquicas decorrentes de perigos
externos ao psiquismo. Assim, procura observar as circunstâncias, e principalmente
as reações, a partir de eventos como a guerra, acidentes graves e outros capazes de
provocar neuroses traumáticas: os sonhos repetem, nesses casos, as situações
traumáticas vividas. Além disso, Freud percebe que, em certos jogos infantis10, a
criança era capaz de repetir, indefinidamente, uma situação substituta da vivida - a
ausência da mãe - a fim de suportar o desagrado da separação. Entretanto, para
isso, era necessário que suportasse o desprazer causado pela repetição da
separação no próprio jogo. Para Freud, há um ganho de prazer, de outra natureza,
ligado a essa repetição. O desprazer não contradiz, necessariamente, o princípio de
9 Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911), Freud distribui esses grupos pulsionais conforme o modo funcional do aparelho psíquico: as pulsões sexuais estão sob os auspícios do princípio de prazer e as de autoconservação sob a ordem do princípio da realidade. 10 Jogo do “fort-da”: conhecido assim pela observação de Freud a seu neto, que brincava, na ausência da mãe, jogando um carretel e o puxando pelo barbante de volta. Nesse ato repetitivo, emitia sons infantis que remetiam aos significados das palavras, em alemão, fort (fora) e da (aqui).
64
prazer - onde a hostilidade, muitas vezes, o compensa. Percebe, também, que a
compulsão à repetição se dá no processo analítico.
Resumidamente, a partir desse novo par, é possível aferir que Freud o
concebe assim por ter compreendido uma nova dimensão do antigo par de pulsões.
Ele passa a reconhecer tendências desintegradoras e regressivas nas
pulsões de ego - que buscariam um estado anterior sem vida - caracterizando a
pulsão de morte.
Nas pulsões sexuais, reconhece que estas reproduziriam estados primitivos
do ser vivo e, por meio de sua tendência à fusão e à integração, procurariam
reproduzir e manter a vida, o que passa a caracterizar a pulsão de vida.
A tendência integradora e progressiva de Eros, das pulsões de vida, é condição essencial para o desenvolvimento humano, e, em particular, para a constituição das estruturas, dinâmicas e funções psíquicas cada vez mais complexas. Da mesma forma, é por intermédio da mescla, da intrincação com as pulsões de vida que as pulsões de morte, de destruição, são impedidas de alcançar seu alvo, a redução completa das tensões, a aniquilação do ser vivo reconduzindo-o ao estado anorgânico. (...) (VOLICH, 2000, p.75)
Já exposto anteriormente, o modelo metapsicológico amplia a compreensão
das origens do fenômeno psíquico, normal ou patológico, através da percepção do
mesmo desde suas fontes corporais e também através de suas dimensões tópica -
referida à localização das instâncias do aparelho psíquico, dinâmica - que aborda as
questões conflitivas dentro do aparelho e, finalmente, econômica - ligada aos
investimentos libidinais que agem sobre o psiquismo, isto é, sobre representações e
objetos.
Segundo Volich (2000), a dimensão econômica deve ser valorizada para o
entendimento dos mecanismos de formação dos sintomas. Salienta a importância de
se averiguar os destinos pulsionais, da energia libidinal. Para onde esta se
encaminha demonstra ser uma questão fundamental para a compreensão da
65
relação corpo-psique e sua interação.
Freud destaca quatro destinos para a pulsão em seu texto Pulsões e destinos
da pulsão (1915), a saber: inversão, isto é, reversão ao seu oposto; retorno em
direção ao próprio sujeito; recalque e, por último, sublimação.
Freud distingue dois processos diferentes quanto à inversão: uma reversão
efetuada quanto ao alvo e uma reversão de seu conteúdo. Exemplifica o primeiro
processo pela mudança da atividade para a passividade na oposição
sadismo/masoquismo e voyerismo/exibicionismo. O segundo, referido à inversão de
conteúdo, é demonstrado pela transformação do amor em ódio. Deve-se observar
que o ódio, entretanto, não pode ser reduzido apenas à idéia de imagem invertida do
amor: “(...) há que se postular, a esse respeito, a existência de uma configuração
mais antiga do que o amor, arquétipo do que viria a ser, na pena de Freud, alguns
anos depois, a pulsão de morte.” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 631)
O retorno em direção ao próprio sujeito é um destino da pulsão inteiramente
reformulado por Freud em O problema econômico do masoquismo (1924). Passa a
postular a existência de um masoquismo, originário e erógeno, em referência à
pulsão de morte. Anteriormente, em 1915, esse destino da pulsão era visto por ele
como decorrente da reversão de um sadismo originário.
A sublimação não foi largamente estudada por Freud, mas ele a conceitua
para dar conta das atividades humanas que, em sua compreensão, não demonstram
relação direta com a sexualidade, porém se constituem como uma outra via de
expressão da mesma. Isso pode ser entendido porque essas atividades têm seu
elemento propulsor na pulsão - que é sempre de caráter sexual na construção
psicanalítica. Entre elas encontram-se as criações no âmbito artístico, literário e
intelectual - de uma forma geral. Não obstante, para Freud, a pulsão sexual jamais é
66
totalmente sublimada.
O recalque, processo valorizado na concepção psicanalítica, deve ser
sublinhado como aquele que visa à manutenção, no inconsciente, de todas as idéias
e representações vinculadas, obviamente, às pulsões. A realização dessas idéias e
representações seria produtora de prazer e, ao mesmo tempo, afetaria o equilíbrio
do funcionamento psíquico do sujeito e, dessa forma, se transformaria em desprazer.
É fundamental que se avalie o investimento pulsional da libido. De modo
objetivo:
Estão eles [os destinos da energia libidinal] investidos de forma narcísica (no próprio sujeito) ou orientados para outros sujeitos, objetos, para o mundo? A excitação consegue encontrar vias simbólicas ou mentais de manifestação, ou apenas descargas automáticas por meio de comportamentos ou reações corporais? (...) essas questões são essenciais para a compreensão do funcionamento psicossomático. (VOLICH, 2000, p.73)
Freud considera o aparelho psíquico como capaz de oferecer proteção contra
aquilo que chama de excessos da excitação, que podem ser provenientes tanto do
meio ambiente exterior como do interior do organismo. Como já explicado, é através
das representações que a pulsão se inscreve no aparelho psíquico. Pelas ligações
entre as idéias e os afetos, garante-se um certo equilíbrio. Por outro lado, se ocorre
uma impossibilidade de ligação entre eles, pronunciando grandes quantidades de
excitação circulando no interior do organismo, o funcionamento deste pode ser
afetado e apresentar uma desorganização. Se tais quantidades de excitação são
muito intensas, pode-se caracterizar uma experiência traumática. Essa experiência,
antes de tudo, é um excesso.
Freud ressalta a natureza relativa do trauma psíquico. O efeito traumático
sempre se colocará dependente de um jogo combinatório entre a reação à
experiência e os recursos que o sujeito apresenta para lidar com tal acontecimento.
Aprofunda sua compreensão do traumatismo psíquico a partir de seus estudos sobre
67
as neuroses de guerra em decorrência de sua observação dos distúrbios funcionais
que os ex-combatentes da Primeira Grande Guerra apresentavam.
(...) as neuroses de guerra (até onde essa expressão implica em algo mais do que uma referência às circunstâncias do desencadeamento da doença) podem muito bem ser neuroses traumáticas que foram facilitadas por um conflito no ego.(...) (FREUD, 1920, p. 49)
Pode-se entender que, segundo Freud, as neuroses traumáticas
correspondem a uma reação muito forte frente a uma situação de pavor que o ego
do sujeito não se encontra preparado para enfrentar.
Quando Freud fala de neurose traumática, insiste no caráter simultaneamente somático (...) e psíquico (...) do traumatismo. É neste pavor (...) que Freud vê o fator determinante da neurose traumática. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1985, p. 403)
Dentro da economia psíquica, esse traumatismo produz efeitos do mesmo
porte daqueles produzidos pela sexualidade reprimida. Deve-se destacar a fixação
ao acontecimento traumático, que acaba por inibir a atividade geral do sujeito.
Recapitulando, a conversão histérica é caracterizada como uma “conversão
somática da energia psíquica” (VOLICH, 2000, p. 70). Dessa forma, o sintoma
corporal possui, em seu entendimento etiológico, uma ligação direta com os conflitos
sexuais infantis - edípicos - e aparece como uma resultante desse conflito. Constitui-
se, assim, como uma formação de compromisso simbólica, que permite a apreciação
psicanalítica.
Freud, em 1898, distingue uma categoria de neuroses que denominou de
neuroses atuais, citadas anteriormente. Elas se caracterizam por sua eclosão ser
relativa ao momento presente existencial do sujeito. Decerto, porém, há sempre um
vínculo, mesmo que não aparente, com os conflitos infantis recalcados.
(...) seja qual for o fator precipitante dos fatores atuais, encontramos sempre nos sintomas a expressão simbólica de conflitos mais antigos. (...). (LAPLANCHE & PONTALIS, 1985, p. 383)
Os sintomas constituem-se, no caso das neuroses atuais descritas por Freud,
68
como falta de representações da palavra. A representação da coisa existe porque se
sabe ser ela regida pelo processo primário, sendo assim uma energia livre, sem
censura - que diz respeito ao sistema inconsciente. É um caminho que aponta para a
noção de que as manifestações psicossomáticas são estabelecidas, enquanto
possibilidades posteriores de expressão, em um momento anterior à representação
da palavra.
Freud inclui, inicialmente, as neuroses de angústia e a neurastenia entre as
neuroses atuais. Ulteriormente, propõe a inclusão da hipocondria nessa categoria
nosográfica, onde se versa sobre a descarga corporal, um mecanismo somático, não
havendo a proposição de mecanismos simbólicos - como a conversão, o
deslocamento etc. Os sintomas são de ordem funcional, nas neuroses atuais, como -
por exemplo - a taquicardia, a cefaléia, a vertigem, o enjôo etc, o que não permitiria,
a princípio, uma sujeição ao olhar psicanalítico como tratamento. Deve ser grifado,
porém, que dentro da psicanálise, não há ocorrência vivencial que não esteja - de
algum modo - relacionada aos conflitos recalcados ou ao retorno destes.
Freud mantém, até 1924, o grupo de neuroses atuais e é deste grupo, mais
tarde, que deriva o que se entende por manifestações psicossomáticas.
(...) note-se que, nas concepções de Freud, os sintomas “atuais” são principalmente de ordem somática e que a antiga noção de neurose atual leva às concepções modernas sobre as afecções psicossomáticas. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1985, p. 383 e p.384)
A teoria freudiana oferece uma luz sobre a noção do corpo libidinal investido
psiquicamente e, por decorrência, ao corpo não investido e, por isso, não
representado - pela palavra - na psique. Em síntese, Freud propicia um novo olhar
sobre o sujeito e permite, através dessa abertura, o desenvolvimento de um quadro
nosográfico, estudos etiológicos e de uma sintomatologia sobre as neuroses, as
psicoses e as perversões, oferecendo, inclusive, uma grande contribuição para a
69
compreensão das afecções psicossomáticas através de sua apreciação da relação
entre o corpo e a psique, onde se opera - nos moldes da identidade proposta - uma
interação contínua, como se procurou demonstrar conceitualmente neste trabalho.
3.3 A RELAÇÃO CORPO-PSIQUE NA PSICOLOGIA ANALÍTICA
Esta divisão aborda a relação corpo-psique a partir da teoria junguiana. O
enfoque será realizado através de alguns conceitos fundamentais à própria teoria,
tais como: o complexo psicofísico, o instinto psiquificado e o arquétipo psicóide.
Estes conceitos também são essenciais à prática clínica. Há outros, porém, que
precisam ser desenvolvidos anteriormente para a compreensão do tema. A
apresentação será realizada por essa vertente, como será demonstrado a seguir.
O conceito de psique na psicologia analítica abrange todos os pensamentos,
sentimentos e comportamentos, tanto conscientes como inconscientes. É a
personalidade do sujeito que se apresenta através de sua psique. “Este conceito
sustenta a idéia primordial de Jung de que uma pessoa, em primeiro lugar, é um
todo. Não uma reunião de partes.” (HALL & NORDBY, 1993, p. 25)
Esta apreensão colabora para a concepção da identidade corpo-psique, ponto
principal deste trabalho.
A psique é composta por vários sistemas e níveis interatuantes. A
consciência, um dos níveis, é a única parte que se conhece por sua expressão
direta. De modo simplificado, a consciência é orientada por quatro funções básicas:
pensamento, sentimento, sensação e intuição. Junto à atitude introvertida ou
extrovertida - conceitos relacionados ao movimento de energia psíquica que
possibilita o modo de orientação psicológica - será a combinação de proporções na
utilização das funções que fará com que a personalidade básica se diferencie de
70
uma pessoa para outra. É uma atividade funcional cuja dinâmica é sempre
constituída pelos opostos complementares, idéia com a qual Jung (1875-1961)
trabalha durante toda sua obra.
Energeticamente, a oposição significa um potencial, e onde há um potencial, há a possibilidade de um fluxo e de um acontecimento, pois a tensão dos opostos busca o equilíbrio. (JUNG, 2000, § 426) Nenhuma energia é produzida onde não houver tensão entre os contrários. (JUNG, 1917/1981, § 78)
Torna-se importante relembrar os primórdios dos trabalhos de Jung com o
teste de associação de palavras, onde demonstra a natureza psicofísica de alguns
complexos que puderam ser mensurados pelo emprego de instrumentos de
medição, tais como o galvanômetro, o voltímetro e o pneumógrafo.
(...) Os reflexos corporais provocados pelos complexos apontam para a natureza psicofísica desses complexos detectados, isto é, são psíquicos, mas também pertencem - sem dúvida - ao domínio do corpo fisiológico. (BOECHAT, 2008, p. 19) O conteúdo eminentemente afetivo do complexo faz dele uma entidade psicofísica, e suas manifestações corporais foram meticulosamente mensuradas por Jung. (...) Fica assim evidenciado, de forma eminentemente experimental, o caráter psicofísico do complexo, sua natureza psíquica e ao mesmo tempo corporal. (BOECHAT, 2004, p.48)
Essas experiências denotam a idéia de uma identidade corpo-psique, tal
como é defendida neste trabalho.
Todas estas manifestações somáticas do complexo psicológico fazem dele uma entidade pertencente à unidade corpo-mente, e sua presença é demonstrada, experimentalmente, por estas medições. (BOECHAT, 2004, p.69)
Para esclarecer o conceito de complexo e dar continuidade ao entendimento
da relação corpo-psique na esfera da teoria junguiana, será necessário -
primeiramente - uma breve apreciação sobre alguns outros conceitos, como já foi
determinado anteriormente.
Para Jung, o ego é o organizador da esfera consciente da psique e é o
responsável pelo sentimento de identidade, continuidade e coerência. Constitui com
71
o self - arquétipo que contempla a ordem, a organização e a unificação assim como o
caos, o informe e o virtual - o eixo ego-self. As manifestações do inconsciente, o
contato com sua linguagem riquíssima, variada e suas significações, são
intermediadas pelo ego, propiciando a dialética através do contato com os símbolos -
eminentes colaboradores para a compreensão da psique humana.
Toda a expressão psicológica é um símbolo se pressupormos que declara ou significa algo mais e diferente dela própria, e que escapa ao nosso conhecimento atual. (...). Enquanto um símbolo se mantém vivo, é porque constitui a melhor expressão de uma coisa. O símbolo só se conserva vivo enquanto estiver repleto de significado. Mas logo que seu sentido se esclarece, (...), pode-se, então, afirmar que o símbolo morre. (JUNG, 1920/1967, p. 543, referente aos § 817 e § 818)
Já o inconsciente pessoal é a instância psíquica para onde são enviadas as
experiências não cabíveis ao ego - em algum momento - por não se compatibilizarem
com a consciência. Entre essas experiências encontram-se conflitos pessoais,
morais, situações dolorosas e informações não necessárias no dia-a-dia do sujeito.
(...) Os materiais contidos nesta camada são de natureza pessoal porque se caracterizam, em parte, por aquisições derivadas da vida individual e em parte por fatores psicológicos, que também poderiam ser conscientes. É fácil compreender que elementos psicológicos incompatíveis são submetidos à repressão11, tornando-se por isso inconscientes; (...) há sempre a possibilidade de tornar conscientes os conteúdos reprimidos e mantê-los na consciência, uma vez que tenham sido reconhecidos (...). (JUNG, 1934/1981, §218)
Jung completa seu pensamento acerca do inconsciente pessoal sublinhando
que o inconsciente, além do material recalcado, contém todos aqueles componentes
psíquicos subliminais, inclusive as percepções provenientes dos sentidos.
(...) o inconsciente contém todo o material que ainda não alcançou o limiar da consciência. São as sementes de futuros conteúdos conscientes. Temos razões para supor que o inconsciente jamais se acha em repouso, sempre empenhado em agrupar e reagrupar as chamadas fantasias inconscientes. (JUNG, 1928/1981, § 256)
11 Os termos repressão e reprimido devem, aqui, ser traduzidos com os mesmos significados que os termos recalque e recalcado, pertencentes à psicanálise. Assim, estão relacionados ao processo inconsciente que exclui da consciência as representações (pensamentos, idéias e imagens) ligadas a uma pulsão cuja satisfação contrasta com outras exigências psíquicas.
72
Pode-se ter acesso aos seus conteúdos do inconsciente pessoal - de uma
maneira geral - pela formação de constelações, que são reações emocionais
associadas.
A descoberta dos complexos e dos fenômenos provocados por eles mostrou claramente a fragilidade das bases em que se apoiava a velha concepção segundo a qual era possível pesquisar processos psíquicos isolados. Não há processos psíquicos isolados, como não existem processos vitais isolados. (JUNG, 1934/1991, § 197)
Jung parece trazer a idéia de um enredamento corpo-psique através da
compreensão de que os processos vitais - os fisiológicos e os psíquicos - fazem
parte de uma mesma configuração em suas complexidades operacionais.
Assim, elucidando o conceito de complexo, é importante grifar que este
possui energia própria e pode atuar no controle da conduta, sentimentos e
pensamentos do sujeito. Segundo Jung, “uma pessoa não tem um complexo: o
complexo que a tem”. (JUNG, 1934/1991, § 200) Na medida em que os complexos
agem inconscientemente, o sujeito tende a ser “levado” por eles.
Dessa forma, um dos objetivos do tratamento analítico é auxiliar o sujeito a
lidar com seus complexos e propiciar condições para que possa elaborar a
autoconsciência e o desenvolvimento de suas potencialidades no intuito de realizar a
individuação ao longo de sua vida. Jung afirma que este é “o meio pelo qual uma
pessoa se torna um in-divíduo psicológico, isto é, uma unidade, ou um todo
separado e indivisível”.(JUNG, 1940/2000, § 490)
A psicologia analítica parece proporcionar o suporte teórico, e
conseqüentemente em sua práxis, para o entendimento da relação corpo-psique no
molde aqui proposto - de uma identidade - e, concomitantemente, oferece a
fundamentação necessária à compreensão de uma totalidade corpo-psique.
A importância dos complexos quanto à totalidade corpo-mente liga-se ao fato que o conceito de complexo psicossomático é
73
indissociável da noção de energia psíquica. O complexo (...) irá interferir no todo corpo-mente, seja no aspecto matéria (corpo), seja no aspecto mental do indivíduo, (...). (BOECHAT, 2004, p.71)
Jung sublinha que os complexos, em si mesmos, não são nem “negativos”
nem “positivos”. São, na verdade, constituintes da psique humana e fonte das
emoções. Os complexos, dessa forma, indicam que a estrutura psíquica é dotada de
uma carga afetiva muito forte, ligando entre si representações, pensamentos e
lembranças.
(...) Os complexos, com efeito, constituem as verdadeiras unidades vivas da psique inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir através deles. O inconsciente, de fato, nada mais seria do que uma sobrevivência de representações esmaecidas e obscuras (...) se não existissem complexos. (...) (JUNG, 1934/1991, § 210)
O efeito negativo de um ou mais complexos, sentido como uma distorção em
uma ou mais funções psicológicas - sentimento, pensamento, intuição e sensação - é
o que irá caracterizar os sintomas neuróticos, psicóticos e psicossomáticos conforme,
entre outros fatores, a relação inconsciente do sujeito com seus complexos.
Jung demonstra que os complexos funcionam como ponte entre o soma e a
psique quando observados seus efeitos também sobre o corpo.
(...) necessitamos reportar aos inícios do trabalho teórico de Jung com o teste de associação de palavras. Ao detectar e definir os complexos, Jung os denominou complexos de tonalidade afetiva, e viu neles o caminho real de chegada ao inconsciente. Àquela época, inícios do século passado, havia uma preocupação em psicologia com a fronteira consciente/inconsciente, (...). Passado um século, outra fronteira se me parece de real importância, a fronteira psique/corpo. (...) a teoria dos complexos é um referencial teórico importante, pois certos complexos são psicofísicos, isto é, têm importantes enraizamentos corporais. (BOECHAT, 2008, p.19)
Em Considerações gerais sobre a teoria dos complexos (1934), Jung une a
teoria dos complexos - da primeira fase de sua obra que foi até 1912 - com a teoria
dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Assim, ver-se-á que os complexos são
sempre vinculados aos arquétipos. Para que seja esclarecida a importância destes
74
conceitos para a presente dissertação, é fundamental que sejam apresentados em
consonância com o próprio desenvolvimento da psicologia analítica e,
posteriormente, demonstrar a vinculação dos mesmos na apreciação da relação
corpo-psique.
Boechat sublinha que Jung relaciona os conceitos de arquétipo e de
complexo demonstrando ser o primeiro “o núcleo fundamental do complexo, isto é,
as imagens arquetípicas coletivas se manifestam na experiência individual pelo
complexo psicofísico”. (Boechat, 2004, p. 50)
Posteriormente Jung iria focalizar suas pesquisas dentro de seu referencial teórico-operacional na demonstração da importância clínica do inconsciente coletivo (1912) e de seus conteúdos essenciais, os arquétipos (1919). (BOECHAT, 2004, p. 48)
Jung concebe um nível mais profundo do inconsciente e o denomina de
inconsciente coletivo. Esse conceito é construído a partir de seus estudos dos
fenômenos psicológicos que não conseguem ser esclarecidos somente a partir da
experiência pessoal:
O inconsciente coletivo é a parte inconsciente da psique coletiva.(...) [compondo-se]: primeiro, de percepções, pensamentos e sentimentos subliminais que não são reprimidos [recalcados] devido a sua incompatibilidade pessoal, mas que devido à intensidade insuficiente do seu estímulo ou pela falta do exercício da libido ficam desde o início aquém do limiar da consciência; segundo, de restos subliminais de funções arcaicas, que existem a priori e que podem ser acionados a qualquer momento através de um certo represamento da libido (...); terceiro, de combinações subliminais sob forma simbólica, que ainda não estão aptas para serem conscientizadas. (JUNG, 1916/1981, apêndice, p. 293)
O desenvolvimento desse conceito e suas conseqüências é bem
representado em Introdução à psicologia junguiana:
O conceito de inconsciente coletivo rompe com o determinismo da mente em um sentido estritamente ambiental12 e demonstra que a evolução e a hereditariedade dão as linhas de ação para a psique, exatamente como o fazem para o corpo. (HALL & NORDBY, 1993, p. 31)
12 O termo ambiental, no sentido aqui utilizado, tem o significado de empírico.
75
Essa observação compõe a idéia de uma relação corpo-psique baseada em
uma identidade - em termos de uma unidade psicofísica.
O inconsciente coletivo é, em síntese, um reservatório de predisposição à
formação de imagens latentes - imagens primordiais - que dizem respeito ao nível
mais arcaico da psique e se originam na história e no devir da experiência humana.
Quanto mais profunda for a vivência da individuação, maior será o conhecimento dos
conteúdos do inconsciente coletivo.
Jung denomina esses conteúdos de arquétipos - que vem de arché, origem
primeira - significando, então, o modelo original, a imagem primordial.
(...) o inconsciente é o receptáculo de todas as lembranças perdidas e de todos aqueles conteúdos que ainda são débeis para se tornarem conscientes.(...) À soma de todos estes conteúdos dou o nome de inconsciente pessoal. (...) também são determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos. (...). Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo. (...) Chamo-o coletivo, porque [é constituído] de conteúdos universais e uniformes onde quer que ocorram. (JUNG, 1919/1991, §.270)
Jung dedica-se intensamente, em sua obra, à compreensão dos arquétipos.
Suas investigações e observações levam-no a descrever inúmeros deles referentes a
essas vivências coletivas da humanidade. Há alguns arquétipos que se tornam mais
conhecidos através dos mitos do nascimento, do herói, da morte, de Deus, etc. Os
arquétipos são pertencentes a todas as civilizações e se manifestam nas vivências
fundamentais da humanidade enquanto tal.
(...) poderíamos sintetizar como sendo as principais [idéias representativas das vivências humanas]: nascimento, [ligado ao] arquétipo da mãe e da criança; transições diversas da puberdade, [através] do arquétipo do herói, seus rituais e desafios; casamento e “conjunção de opostos”, [pelo] arquétipo do coniunctio; maturidade [pelo] senex e velho sábio; realidade identitária profunda ou arquétipo do Self (JUNG, 1952/1975 por BOECHAT, 2004, p.48 e p. 49)
Há outros considerados indispensáveis na formação da personalidade
humana, tais como: a persona, o anima e o animus, a sombra e o self.
76
A título de esclarecer alguns preceitos que fundamentam a teoria junguiana,
mostra-se necessário uma síntese a respeito dos arquétipos acima citados.
A persona, termo latino que significa máscara, é - basicamente - o arquétipo
da conformidade, aquele utilizado na vida social. Em contraposição a este, isto é,
como oposto complementar a esta “face externa”, Jung destaca os arquétipos
referentes à “face interna” do homem e da mulher: anima e animus,
respectivamente.
A anima é a representante psíquica do feminino no homem e é composta
pelas experiências fundamentais que o homem teve com a mulher ao longo dos
séculos, montada a partir da ancestralidade residual inerente em todas as suas
relações com aquelas que foram traçando a imago feminina.
A anima (...) [é] um arquétipo natural que representa, satisfatoriamente, todas as afirmações do inconsciente, da mente primitiva, da história da linguagem (...)... Ela é sempre o elemento a priori [de um homem quanto às] suas reações, seus impulsos e tudo que é espontâneo na vida psíquica. (JUNG, 1934/2000, § 57).
Em contrapartida, o animus vem da condensação de todas as experiências da
mulher com o homem e é, a partir daí, que a mulher procura montar a imagem do
homem para si.
Animus e anima, quando bem integrados, são excelentes mediadores entre o
consciente e inconsciente, auxiliando na capacidade de reflexão e
autoconhecimento.
A sombra pode significar o bem e o mal no ser humano. É, positivamente,
responsável pela criatividade, pelas intuições profundas e pela espontaneidade. No
lado negativo, estará caracterizada pelas coisas que não são aceitas como
pertencentes a si mesmo pelo sujeito e se tornam objetos de projeção sobre o outro -
77
seja este um demônio, um rival, um inimigo ou qualquer outra figura simbólica ou real
que possa causar medo, asco etc.
(...) Se formos capazes de ver nossa própria sombra e suportá-la, sabendo que existe, só teríamos resolvido uma pequena parte do problema. Teríamos, pelo menos, trazido à tona o inconsciente pessoal. A sombra, porém, é uma parte viva da personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la (...) através da racionalização. Este problema é extremamente difícil, pois (...) também adverte [o homem] acerca de seu desamparo e impotência. (...). (JUNG, 1934/2000, § 44)
O self , como já exposto, é o arquétipo central. É aquele que harmoniza os
demais e se refere à totalidade da psique. Participa da função transcendente, que
significa - via de regra - a possibilidade de unir os conteúdos inconscientes e
conscientes.
Ao tema central, sobre a relação corpo-psique, importa demonstrar que os
arquétipos são todos - a priori - psicóides. Este conceito - psicóide - expressa a
conexão essencialmente desconhecida entre o soma e a psique.
Hans Driesch (1867-1941) era biólogo e seus estudos experimentais nessa
área acabaram por trazer o interesse pela psicologia e, principalmente, pela filosofia,
tornando-se professor dessa disciplina. Criou o termo psicóide para designar “o
determinante das reações, o agente elementar descoberto na ação”. Bleuler (1857-
1939) evoluiu o sentido do termo psicóide definindo-o como:
O psicóide é a soma de todas as funções mnésicas do corpo e do sistema nervoso, orientadas para um fim (...) A psique corporal do indivíduo e a filopsique juntas formam uma unidade (...) que podemos empregar designando-a pelo termo de psicóide. (BLEULER em JUNG, 1946/1991, § 368)
Jung vai além e descreve psicóide como um adjetivo que “é aplicável a
qualquer tipo de arquétipo, expressando a conexão essencialmente desconhecida,
mas passível de experiência, entre a psique e a matéria”.(JUNG em Sharp, 1997,
p.129). Isso significa que todos os arquétipos são, em sua natureza, psicóides -
78
cunhados entre o psíquico e o orgânico, em uma construção de unidade.
Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em última análise, se assentam em fatores irrepresentáveis, há, não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa.(...) (JUNG, 1937 / 1991, § 418)
Essa construção reafirma a noção de uma identidade psicofísica que se
procura promover nesta dissertação. Jung busca, em sua obra, as relações entre os
arquétipos e instintos demonstrada em seus textos a partir de 1919. O arquétipo,
dessa forma, faria parte dos mundos psíquico e material.
O arquétipo, como correspondente aos instintos (Jung, 1919/1972) expressa um modelo de continuidade psicofísica. Essa continuidade é manifesta no modelo do complexo afetivo como fenômeno de expressão corporal (...).(BOECHAT, 2004, p. 51)
Para o esclarecimento da idéia de uma identidade corpo-psique, é importante
a confirmação da noção de arquétipo psicóide:
(...) O adjetivo psicóide quer significar que o arquétipo ocupa em seus aspectos mais profundos uma posição quase-psíquica e - ao mesmo tempo - quase-material, uma posição entre psique e matéria. (BOECHAT, 2004, p.9)
Mostra-se imprescindível abordar o conceito de instinto em sua apreensão
comparativa ao entendimento psicanalítico, já que esse conceito - junto ao de pulsão
- constituem aparatos teóricos à compreensão da identidade corpo-psique
desenvolvida nesta dissertação.
Na psicanálise, o termo instinto indica o esquema quase imutável de conduta
herdada por todo sujeito, de forma semelhante ao que ocorre com os animais. Seria
uma resposta automática do mesmo nível dos reflexos.
A forma de resposta organizada e relativamente complexa que é típica de cada espécie e filogeneticamente adaptada a uma situação específica, motivo pelo qual é um guia não adquirido nem escolhido e, portanto, pouco modificável, da conduta de cada indivíduo enquanto pertencente a uma determinada espécie. (PIERI, 2002, p. 270)
79
Assim, o instinto, para a psicanálise, difere do conceito de pulsão, sendo este
último concebido como:
(...) a força propulsora constituída por impulsos, tendências e necessidades, (...), modificáveis pela experiência, que têm caráter relativamente indeterminado e indeterminável em relação ao comportamento que induzem e ao objeto ao qual se aplicam. (PIERI, 2002, p. 415)
Jung afirma em Psicoterapia e visão de mundo (1942) contido em A prática da
psicoterapia (2004):
O instinto não é uma coisa isolada e nem pode ser, na prática, isolado. Sempre traz, em sua esteira, conteúdos arquetípicos (...). Em outras palavras, um instinto está sempre e inevitavelmente acoplado a algo semelhante a uma filosofia de vida, não importa o quanto ela seja arcaica, indistinta e nebulosa. O instinto estimula o pensamento, e se o homem não pensa com seu livre-arbítrio, então ocorre o pensamento compulsivo, pois os dois pólos da psique, o fisiológico e o mental, estão indissoluvelmente ligados. (JUNG, 1942/2004, § 185)
Há uma clara demonstração de que corpo e psique estão absolutamente
interligados na teoria junguiana, permitindo a idéia de identidade psicofísica, já
conceituada anteriormente como a noção que permite dois caminhos: o
entendimento de corpo e psique como unidade integrada ou como uma dualidade
interacional.
Jung considera o instinto passível de psiquificação - tornando-se, em parte,
uma representação psíquica - e, assim, predisposto a responder de maneira
especificamente humana a determinadas situações. Neste sentido, o conceito de
arquétipo e o conceito de individuação auxiliam na compreensão de que o aparato
psíquico lida com os “impulsos”, sejam eles instintos ou pulsões, e que estes
apresentam, além de uma base biológica, possibilidades dentro de sua
singularidade, onde participam o psíquico e o sócio-cultural.
Na concepção da psicologia analítica, não há uma teoria das pulsões,
entretanto os conceitos de instinto e instinto psiquificado - este último considerado
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como um processo humano - são fundamentais à compreensão do funcionamento
corpo-psique: “O instinto como fenômeno psíquico seria (...) uma assimilação do
estímulo a uma estrutura psíquica complexa que eu chamo de psiquificação”.
(JUNG, 1937/1991, § 234).
Jung trabalha o conceito de instinto e de que forma este apresenta uma
variação quando relacionado ao ser humano. Por isso, cria o conceito de instinto
psiquificado.
(...) O instinto psiquificado perde sua inequivocidade até certo ponto, e ocasionalmente chega a ficar sem sua característica mais essencial que é a compulsividade, por que já não é mais um fato extrapsíquico inequívoco, mas uma modificação ocasionada pelo encontro com o dado psíquico. (...) (JUNG, 1937 / 1991, § 235)
Para Jung, resumidamente, o instinto é variável e passível de diferentes
aplicações. Isto significa que a psique se caracteriza por ter a capacidade de
transformar-se ou de sofrer variações que causam interferências nos instintos.
Jung identificou cinco principais grupos de fatores instintivos com os quais a
humanidade se caracteriza.
O primeiro deles é o instinto de autoconservação, relacionado à alimentação.
(...) as conseqüências psíquicas resultantes [do estado físico de excitação chamado fome] podem ser múltiplas e variadas. (...) [a fome] pode aparecer como algo metafórico, (...) pode assumir os mais diversos aspectos, em combinação com outros fatores. (...) A fome como expressão característica do instinto de autoconservação é, sem dúvida, um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que influenciam o comportamento humano.(...) (JUNG, 1936/1991, § 236 e § 237)
Torna-se claro que Jung está se remetendo a possível psiquificação do
instinto da fome e, deste modo, reafirmando a relação corpo-psique.
Boechat (2008) promove um retorno e uma elaboração do conceito de instinto
psiquificado. O autor procura elucidar os contornos da questão corpo-psique
exemplificando-os, entre outros, pelo instinto de autoconservação - em sua vertente
81
da fome - e como ela pode ser psiquificada.
É importante comentar com um exemplo simples dessa passagem psique-corpo dentro da visão junguiana. O instinto da fome é um dos instintos mais básicos do ser humano e guarda as características de todo instinto extrapsíquico, com sua compulsividade e repetição: visa eliminar a fome e possibilitar a sobrevivência da espécie. As primeiras sensações de fome estão no bebê (...) a boca tem uma função primordial na amamentação e a saciedade da fome passa a ter outros símbolos: proximidade da mãe, proteção e segurança. O alimento passa a ter toda uma função simbólica. (BOECHAT, 2008, p.21)
A sexualidade é o segundo instinto que, seguindo de perto o de
autoconservação, mostra-se fundamental à continuidade da espécie humana. É um
instinto extremamente inclinado à psiquificação, característica que torna possível
desviar sua energia biológica para outros canais fornecendo, assim, outras funções
e significados peculiares a ele. Um desses canais é tornar a relação sexual
prazerosa e proveitosa no escopo do relacionamento humano sem relação direta
com a procriação.
(...) As restrições de natureza moral e social que se multiplicam à medida que a cultura se desenvolve fizeram com que a sexualidade se transformasse, pelo menos temporariamente, em supravalor, (...). O prêmio de o intenso prazer sensual que a natureza faz acompanhar o negócio da reprodução se manifesta no homem [ser humano] - já não mais condicionado por uma época de acasalamento - quase como um instinto em separado. Este instinto aparece associado a diversos sentimentos e afetos. (...) (JUNG, 1936/1991, § 238)
Jung denuncia que a sexualidade, tal qual a fome, passa por um processo
de psiquificação. Por esse caminho, a energia - de origem instintiva - é utilizada para
outros fins que, a principio, lhe são estranhos. Essas observações corroboram a
idéia de - no mínimo - uma interação corpo-psique, já que demonstram que as
funções humanas, mesmo a princípio consideradas instintivas, denotam um caráter
psíquico como algo complementar ao fisiológico. Adiante, poder-se-á - também -
traçar a noção de unidade psicofísica - como será abordado.
O terceiro instinto é a atividade, isto é, impulso à ação. Este é ligado,
82
inicialmente, às lutas necessárias à sobrevivência. Manifesta-se em mudanças,
atividades de ímpeto mobilizante etc., incluindo certa dose de agressividade quando
necessária.
Já o quarto, a reflexão, representa o impulso religioso e a busca de
significado. Deve-se sublinhar que reflexão tem origem em reflexio, que denota o
sentido de inclinação para trás e fuga. É possível compreendê-lo através da
necessidade do ser humano de refugiar-se em si mesmo para encontrar respostas
ou mesmo proteger-se da agressividade vigente. Deve haver uma base instintiva
que foi transformada pela psiquificação para a vivência humana.
(...) [este outro instinto], usado psicologicamente, indicaria o fato de o processo reflexivo que canaliza o estímulo para dentro da corrente instintiva ser interrompido pela psiquificação. (...) Assim, a compulsividade é substituída por uma certa liberdade, e a previsibilidade por uma relativa imprevisibilidade. (JUNG, 1936/1991, § 241)
O último instinto delimitado é a criatividade e é considerado pertencente a
uma classe à parte entre os instintos.
(...) Não sei se a palavra instinto seria a palavra correta para este fenômeno. Usamos a expressão instinto criativo, porque este fator se comporta dinamicamente, pelo menos à semelhança de um instinto. (...). (JUNG, 1937/1991, § 245)
Jung estima que a criatividade se diferencia das outras categorias de instintos
- apesar do dinamismo semelhante - por não se apresentar como um sistema cuja
organização costuma ser estável e por não ser comum a todos.
(...) o homem é distintivamente dotado de capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra, justamente da mesma forma como a natureza, no decurso de longos períodos de tempo, consegue produzir novas formas. (JUNG, 1937/1991, § 245)
Jung avalia que o impulso criativo está vinculado a outros instintos -
sexualidade, impulso para a atividade e para a reflexão - podendo apresentar um
caráter construtivo ou destrutivo em suas conexões com estes.
Na psicologia analítica, os instintos - em sua característica de psiquificação -
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demonstram ser um aparato teórico suficiente para proporcionar, junto a outros
conceitos, o caminho para a compreensão de uma identidade corpo-psique baseada
em uma interação entre psique e soma. “(...) Tudo o que se pode afirmar com
alguma certeza é que os instintos possuem um aspecto fisiológico e um aspecto
psicológico.” (JUNG, 1946/1991, § 374)
Torna-se prioritária a noção de que o instinto psiquificado responde à idéia de
um corpo-psique que funciona de modo contínuo. Jung faz crer que a psique é
fortemente relacionada ao corpo sem, contudo, derivar exclusivamente dele. É
apontada uma relação de interação na identidade proposta. É também proposta uma
noção de integração entre corpo e psique que pode ser tratada como unidade.
O fato de que todos os processos psíquicos acessíveis à observação e à experiência estão de algum modo ligados a um substrato orgânico mostra-nos que eles se acham incorporados à vida do organismo como um todo e, conseqüentemente, participam de seu dinamismo, ou seja, dos instintos ou são em certo sentido o resultado da ação destes instintos.(...). (JUNG, 1946/1991, § 375)
A idéia fundamental de que corpo e psique possam ser representações
distintas de uma mesma identidade, como já citado anteriormente, é oportuna, na
medida em que promove - em primeiro plano - a condição de que não há uma
interrupção significante de dois planos de abordagem, isto é, uma psíquica e outra
corporal.
Procurou-se observar que a psicologia analítica permite uma compreensão
onde o soma e a psique podem ser entendidos como ambos os aspectos - sob o
ponto de vista da observação - de uma mesma matriz.
A teoria junguiana consente que se caminhe adiante no viés da compreensão
corpo-psique, oferecendo a possibilidade do entendimento de uma totalidade nesta
relação - tal como aponta Boechat em vinculação a sua prática clínica:
Partindo desses pressupostos teóricos [complexo psicofísico, instinto psiquificado, arquétipo psicóide] estudam-se o campo transferencial,
84
sonhos e evolução do caso clínico, tomando-se em consideração o psicossoma [do sujeito] em sua totalidade. (BOECHAT, 2008, p.19)
Procurou-se, nesta seção, apresentar os argumentos prioritários ao
entendimento de que, tal qual a psicanálise, a psicologia analítica oferece um largo
espectro em seus pilares teóricos para abarcar a relação da psique e do soma nos
moldes de uma identidade corpo-psique - dentro de cada uma das proposições
acerca do conceito - principal idéia defendida neste trabalho.
4 IMPORTÂNCIA DA PESQUISA SOBRE A RELAÇÃO
85
CORPO-PSIQUE NA ATUALIDADE
4.1 OBSERVAÇÕES SOBRE A PESQUISA DA RELAÇÃO CORPO-
PSIQUE E SUAS APLICAÇÕES
O trabalho desenvolvido disserta sobre a questão corpo-psique nos
parâmetros da teoria freudiana e da teoria junguiana na passagem do século XIX
para o XX. Mostrou-se importante manifestar o enlace do tema central com a
pesquisa acadêmica e, por desdobramento, com a formação do profissional.
As reflexões de Freud em seu texto Sobre o ensino da psicanálise nas
universidades (1919) revelam - indiscutivelmente - o desejo de que sua ciência fosse
uma precursora da importância do conhecimento da relação corpo-psique através da
psicanálise na formação dos médicos.
Essa formação [médica] tem sido muito criticada nas últimas décadas pela maneira parcial pela qual dirige o estudante para os campos da anatomia, da física e da química, enquanto falha, por outro lado, no esclarecimento do significado dos fatores mentais nas diferentes funções vitais,(...). Essa deficiência na educação médica faz-se sentir mais tarde numa flagrante falha no conhecimento médico. (...) não se manifestará apenas na sua falta de interesse pelos problemas mais absorventes da vida humana, na saúde ou na doença, mas também o tornará inábil no tratamento dos pacientes, (...). (FREUD, 1919, p. 187)
Para a pesquisa em psicanálise, Freud propõe que deve haver contato dos
professores com a prática clínica psicanalítica. Todavia, o enfoque da universidade
não é tornar os alunos psicanalistas, mas permitir que eles possam absorver aquilo
que os auxilie - através da psicanálise - na compreensão do ser humano. Isso
conduz, novamente, à questão corpo-psique. Freud entende que, dentro da
universidade, um curso sobre psicanálise deveria apresentar uma introdução “que
trataria detalhadamente das relações entre a vida mental e a vida física - a base de
todos os tipos de psicoterapia”. (FREUD, 1919, p.188).
Acredita-se que os relatos da experiência clínica criam um material que
86
fundamenta a continuidade da pesquisa, inclusive no campo da identidade corpo-
psique. O levantamento, a partir destes, auxilia na elucidação das sintomatologias à
luz da relação observada, que pode ser entendida através da psicanálise e da
psicologia analítica - entre outros saberes - e na interlocução possível entre aqueles
envolvidos nesse campo.
Na universidade, os objetivos do ensino sobre psicanálise se mostram
suficientes, segundo Freud, para que o estudante “aprenda algo sobre psicanálise e
que aprenda algo a partir da psicanálise.”(FREUD, 1919, p.187). De forma
semelhante, o estudante de outras áreas do saber, ligadas ao tratamento do sujeito e
que necessitam um entendimento da relação corpo-psique, também estariam bem
preparados - no meio universitário - através do ensino da psicanálise. A idéia é
voltada para a apresentação de aulas teóricas que permitam demonstrações das
experiências através de relatos - como ocorre nos seminários - “(...) [como nos]
encontros científicos das sociedades psicanalíticas (...) (FREUD, 1919, p.187)”.
Na universidade, os objetivos do ensino sobre psicanálise se mostram
suficientes, segundo Freud, para que o estudante “aprenda algo sobre psicanálise e
que aprenda algo a partir da psicanálise.”(FREUD, 1919, p.187). De forma
semelhante, o estudante de outras áreas do saber, ligadas ao tratamento do sujeito e
que necessitam um entendimento da relação corpo-psique, também estariam bem
preparados - no meio universitário - através do ensino da psicanálise. A idéia é
voltada para a apresentação de aulas teóricas que permitam demonstrações das
experiências através de relatos - como ocorre nos seminários - “(...) [como nos]
encontros científicos das sociedades psicanalíticas (...) (FREUD, 1919, p.187)”.
Os efeitos fecundadores do pensamento psicanalítico sobre essas outras disciplinas certamente contribuiriam muito para moldar uma ligação mais estreita, no sentido de uma universitas literarum, entre a ciência médica e os ramos do saber que se encontram dentro da esfera da filosofia e das artes. (FREUD, 1919, p.188/189)
87
No caminho aqui percorrido, cabe sublinhar que a psicologia analítica de Jung
também é pautada por se prestar a prover outros saberes de uma apreciação que se
sirva de seus métodos de investigação dos processos psíquicos - tais como a
mitologia, as artes em geral e a filosofia. Isso ocorre da mesma forma que é imbuída
pela utilização das mesmas na concepção de seus conceitos e no trato com a
clínica.
O conceito de transdisciplinaridade abordado por Edgar Morin (2005) - já
apresentado anteriormente (tópico 2.1) - torna-se essencial para um entendimento
mais profícuo das relações entre os conhecimentos e permite que se aborde a
pesquisa da relação corpo-psique nos referenciais aqui elaborados, sem reduzi-la a
uma apreensão única na universidade. Essa pesquisa deve se apresentar através e
a partir de disciplinas que comportem esse tipo de interesse. Seria um passo, nesse
campo, para a interlocução transdisciplinar. Na realidade, o tema em questão -
relação corpo-psique - mostra poder colaborar em inúmeras áreas do saber que se
distingam por sua vinculação à saúde e à formação social do ser humano. Pode,
assim, ser representativa da complexidade apresentada por Morin (2005).
Chamo paradigma da complexidade ao conjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo (...). (MORIN, 2005, p. 330) O paradigma da complexidade (...) pode somente incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada. Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer os traços singulares, originais, históricos do fenômeno em vez de ligá-los pura e simplesmente a determinações ou leis gerais, (...). Incita a dar conta dos caracteres multidimensionais de toda a realidade estudada. (MORIN, 2005, p. 334)
Pronuncia-se a noção que a universidade é um dos locais que permite a
expansão do pensamento humano a respeito dele mesmo e do mundo que o
88
delimita como tal. Quanto mais próximas estiverem as áreas de pesquisa sobre o
sujeito e aquilo que o cerca, mais possivelmente será viabilizada essa concepção de
complexidade, marcando a mudança paradigmática.
Da mesma maneira que Freud procura oferecer uma contribuição para o
campo da formação profissional, o que ocorre atualmente é que a reflexão sobre
esse tema tem se tornado um foco para discussões sobre os currículos
universitários, principalmente na medicina e na psicologia.
A medicina do século XXI não vai ser só a medicina da biologia molecular: ela será a medicina da multicausalidade e do diálogo entre todas as áreas. Ela vai ser a medicina em que a pesquisa básica, a epidemiologia, a psicologia, a antropologia vão começar a conversar. É dessa conversa que poderá surgir um entendimento mais claro da doença e da saúde. (...) O modelo que acho importante para a formação médica é aquele em que a fragmentação do ser humano seja superada, e a divisão das diversas áreas de investigação seguida da busca de uma integração cada vez maior. (MARTINS em VOLICH, 1998, p. 204)
Na formação clínica do psicólogo - assim como do psicanalista e do analista
junguiano - volta-se à necessidade de articular a pesquisa com a fundação dos
questionamentos que ampliam o entendimento sobre a relação corpo-psique através
da múltipla troca de conhecimentos e experiências. Mostra-se fundamental, porém,
que haja uma extensão a outras áreas, propiciando a continuidade do diálogo entre
saberes. Além disso, é importante que a aplicabilidade desse entendimento possa se
expandir em direção às instituições de saúde, clínicas psiquiátricas, aos hospitais
gerais etc. Faz-se imprescindível que se incentive a pesquisa sobre a relação corpo-
psique como uma abordagem capaz de fomentar uma nova compreensão
possibilitadora do trabalho transdisciplinar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema sobre o qual foi versada esta dissertação - a relação corpo-psique nas
89
teorias de Freud e de Jung ao despertar do século XX - permitiu que pudéssemos
perceber a importância, em primeiro lugar, da contextualização histórica dos
acontecimentos para a compreensão do mesmo. Mais do que esse fato, entendemos
a impossibilidade de se tratar qualquer tema fora do recorte do qual é integrante.
Assim, no intuito de respaldar a nossa questão, procuramos descrever as
mudanças ocorridas nos campos científicos na virada do século XIX para o século
XX. Somente na presença dessas informações tornou-se possível vislumbrar o
ambiente onde a psicanálise e a psicologia analítica foram fundadas. E como, a partir
daí, novas abordagens surgiram a respeito da relação corpo-psique.
Nesse quadro, foi preferível traçar uma pequena análise das questões
relacionadas aos dualismos representativos do determinismo clássico - homem-
natureza, sujeito-objeto, corpo-psique entre outros - com os quais foi sendo edificada
a cientificidade moderna. Esses dualismos primavam pela separação e supremacia
de um dos pares.
Nesse sentido, acreditamos que não se deve eleger formas de compreender a
relação corpo-psique que possibilitem o engendramento de escolas pertencentes ao
psicologismo ou ao geneticismo - promotoras de uma exclusão da essência do
entendimento que aqui propusemos e que são representantes do separatismo
assistido entre as áreas do saber. Acreditamos que são caminhos que levam ao
empobrecimento da ordem da própria cientificidade, baseando-se em uma leitura da
doença como apenas psíquica ou como somente biológica, respectivamente. Deve
ser ressaltado que, nesses casos, a doença parece prevalecer sobre a noção de
sujeito.
Podemos entender que as construções da psicanálise e da psicologia
analítica estavam sob os auspícios da travessia do paradigma da modernidade para
90
o da contemporaneidade. Tornaram-se claros exemplos da necessidade de mudança
de referenciais teóricos para o alicerçamento dos saberes.
No processo de transição paradigmática, em sua extrema complexidade,
sabe-se que o movimento em direção a novas posturas e compreensões é lento. A
idéia separatista entre o soma e a psique ainda é prevalecente no ocidente, embora
já possam ser vistos sinais de transformação. O interesse renovado de se pesquisar
o assunto promove novos olhares acerca do tema e propicia a aproximação de
variados campos do saber.
A psicanálise e a psicologia analítica, como dissemos, já não mais se
remetiam aos moldes científicos do paradigma da modernidade - enquanto
preponderância do determinismo clássico - por vários aspectos, inclusive pela
relação sujeito/objeto já apontada anteriormente.
Relatamos o interesse permanente, no decorrer dos tempos, sobre o ponto
principal em questão, isto é, a relação corpo-psique e de que modo ela poderia ser
compreendida como uma identidade psicofísica - tanto como unidade integrada
quanto como dualidade interacional. Trabalhou-se no sentido de fornecer um relato
sucinto acerca de alguns dos principais pensadores que se propuseram a refletir
sobre o tema e contribuir através de suas experiências e de seus interesses na
questão. Posições variadas e intercambiantes emergiram ao longo da história. Foram
apresentadas as inserções de Freud e de Jung como cientistas que trouxeram nova
luz, direta ou indiretamente, sobre o assunto. Demonstrou-se, também, a abertura
que os manejos teórico e clínico de suas teorias ofereceram para o tratamento, para
o estudo e para a pesquisa do homem como sujeito formador de uma cultura e, não
obstante, imbuído dela - lugar este onde foi inscrita sua constituição como tal.
Na elaboração de nossa dissertação, procuramos eleger alguns conceitos,
91
nas teorias de Freud e de Jung, que fundamentassem a identidade corpo-psique.
Em Freud, resumidamente, a teoria das pulsões foi proeminente - até sua
última apreensão, inclusive - junto ao entendimento primeiro do mecanismo da
conversão histérica e da concepção de recalque. Apesar de não ter elegido a
questão corpo-psique como foco, propiciou o desenvolvimento da mesma quando se
interessou pelo quadro apresentado pelas histéricas. Seus estudos acabaram por
formular a idéia de que corpo e psique possuem uma relação que pode ser entendida
como uma identidade, funcionando como dualidade interacional. É necessário frisar
que o conceito de corpo, em psicanálise, nasceu dessa percepção de Freud quanto à
histeria. Isto significa, como já esclarecido, que o corpo em psicanálise é um corpo
que tem uma expressão psíquica, quaisquer que sejam os âmbitos de análise sobre
o mesmo.
Na psicologia analítica - a partir dos conceitos de complexo psicofísico, de
instinto psiquificado e de arquétipo psicóide, entre outros - constatou-se que a
relação corpo-psique poderia também ser entendida, no mínimo, como uma
dualidade interacional. Entretanto, mostrou-se mais fortemente direcionada para o
entendimento de uma unidade integrada. Permitiu - inclusive - que se pudesse,
também, entender a relação corpo-psique segundo uma noção de totalidade.
Destacamos a impossibilidade e a inadequação de pretender esgotar o
assunto ou mesmo estender o material desenvolvido por autores freudianos e
junguianos que deram seguimento ao pensamento dos fundadores no decorrer
dessa dissertação. Caso contrário, correríamos o risco de perder o foco em questão
que foi, estritamente, privilegiar o caráter de inovação científica das teorias originais
naquele período estipulado. Entendemos que o tema central - por si só, fora desse
recorte - poderá vir a ser desdobrado e oferecer inúmeras vias para trabalhos a
92
posteriori.
As teorias de Freud e de Jung permitem a reflexão da relação corpo-psique
em um escopo de opções traçadas nesta dissertação, priorizando a formação de
uma identidade. Além disso, consentem que o caráter dessa identidade possa vir a
ser compreendido por outros olhares do pensamento humano. Portanto, não deve
ser ditado como uma apreensão que pertença apenas aos campos da psicanálise e
da psicologia analítica e suas ramificações. Mostra-se, novamente, a importância do
intercâmbio de conhecimentos que dê início ao processo de transdisciplinaridade.
Por esse rumo, a identidade corpo-psique deverá ser inserida no contexto do
novo paradigma - ainda em andamento - como constituinte de um singular patamar
do conhecimento.
Se houvesse algo a configurar a título de conclusão, isto se apresentaria no
nível do exercício humano em seu esforço contínuo para se conhecer e entender os
meandros de suas vicissitudes decorrentes de seus desejos. E, obviamente, como
isso acabaria por esbarrar no sentido da identidade corpo-psique. Esta, por sinal,
estará sempre a reafirmar que a relação com o outro é uma grande intercessora em
sua formação, qualquer que seja a vertente de apreensão sobre a mesma.
No último capítulo foi apresentada a preocupação com a promoção da
pesquisa e com a formação do profissional que lida com questões voltadas à saúde e
à sociedade. Como construir uma ponte entre essas formações e a noção de uma
identidade corpo-psique? Uma das possibilidades aventadas foi iniciar esse processo
com cursos básicos e específicos para profissionais de variados campos, tais como a
fisioterapia, a enfermagem, a terapia ocupacional etc. Passariam a tecer novas
articulações a respeito da relação corpo-psique que viriam a os auxiliar a obter uma
melhor apreensão dos processos que envolvem o sujeito em sua dinâmica de saúde
93
e doença.
Esses cursos seriam providos de apresentações de relatos clínicos que
servissem para material de estudo e de pesquisa na atualidade e - também - para a
formação de um acervo futuro. Poderiam ser realizados no ambiente acadêmico,
antes talvez como disciplina ofertada, em uma espécie de estratégia momentânea
para dar-lhe visibilidade. A idéia é que, futuramente, a abordagem da relação corpo-
psique esteja inserida em outras disciplinas como um modelo para se vislumbrar o
sujeito.
Os cursos deveriam também ser ministrados em clínicas, instituições,
organizações não governamentais etc., facilitando o acesso a profissionais que já
atuam em suas áreas há mais tempo e que gostariam de incrementar suas práticas
com a abordagem oferecida.
Encontra-se, no apêndice, o prospecto de um curso que será implantado - em
2009 - com o objetivo de preparar profissionais que lidam com idosos, envolvendo
questões da saúde e do social calcadas nos princípios aqui estabelecidos.
Espera-se, assim, contribuir para o entendimento da identidade corpo-psique
e para a importância de que se continue a pesquisa sobre o tema por ser essa a
relação que norteia as ponderações humanas na esfera do desejo de conhecer-se a
si mesmo e por ser norteada por saberes que participam do vislumbre de se alcançar
o conhecimento sobre o humano. É o verdadeiro aparato da interdisciplinaridade e da
transdisciplinaridade, onde as diferenças podem e devem ser respeitadas sem,
contudo, desprezar a comunicação e o entrelace entre os saberes que ancoram a
rede complexa do conhecimento.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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7 APÊNDICE
99
A RELAÇÃO CORPO- PSIQUE E O IDOSO
CURSO BÁSICO INTRODUTÓRIO
APRESENTAÇÃO
O Curso básico introdutório sobre a relação corpo-psique e o idoso nasceu do
desejo de implementar o trabalho interdisciplinar referente ao campo da saúde
através de uma abordagem diferenciada que se respalda em conhecimentos
oriundos da teoria freudiana e da teoria junguiana. A interlocução com outras áreas
do saber será realizada pela própria presença de alunos de formações distintas e de
profissionais convidados, representantes destas, que já trabalham com a perspectiva
que será introduzida. Ela é fruto de pesquisas que apontam queixas de alguns
grupos profissionais da saúde quanto à falta de um aparato teórico que permita a
compreensão das relações que envolvem o soma e a psique de forma mais ampla.
OBJETIVOS
� Introduzir o estudo da relação corpo-psique através das teorias apresentadas;
� Construir um saber que possa ser útil nas relações entre profissionais e
pacientes;
� Fomentar a prática da interdisciplinaridade no campo da saúde;
� Auxiliar a prática do trabalho em equipe multidisciplinar;
� Promover estudos de caso como fonte contínua de pesquisa.
PÚBLICO-ALVO
� Profissionais da saúde e áreas
afins.
NÚMERO DE VAGAS
� 15 vagas.
PERÍODO
� Em definição (1º sem/2009)
CARGA HORÁRIA TOTAL
� 48 horas.
HORÁRIO DAS AULAS
� Em definição.
INVESTIMENTO
� Em definição.
ENTIDADE RESPONSÁVEL
� GATII - Grupo de Apoio à Terceira Idade e à Infância.
CNPJ: 05.040.116/0001-78
CORPO DOCENTE
� Kátia Martins Almeida Psicanalista pela SPCRJ; Especialização em Saúde Pública, em Justiça Criminal e em Violência Doméstica em Massachutsets; Licenciatura em Terapia de Família; Perita forense e participante do Grupo de Pesquisa em Psiquiatria e Direito da Escola de Medicina de Harvard. � Maria Fernanda Sanchez Bassères Médica psiquiatra; Especialização em Psiquiatria da infância, da adolescência e da maturidade; Mestranda em Neurociências pela Universidade de Barcelona. � Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega Nasser Psicóloga clínica, professora e analista vocacional; Especialização em Psicossomática pelo Instituto de Medicina Psicossomática do Rio de Janeiro, em Saúde Mental Infanto-juvenil pela PUC-RJ e em Psicologia Junguiana pelo IBMR; Mestranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida.
2100
PROGRAMA
Módulo 1
1.1. Breve histórico sobre abordagens da relação corpo-psique através da história: Da Grécia à contemporaneidade
� 6 h 1.2. Os sintomas na atualidade:
Nosografia básica � 3 h 1.3. Discussão de casos clínicos a partir da formação dos alunos:
Preparação de relatos � 6 h
Módulo 2 2.1. A identidade corpo-psique:
Conceituação e aplicabilidade � 3 h 2.2. A relação corpo-psique na teoria freudiana: Da conversão histérica à pulsão � 3 h 2.3. Apresentação de casos clínicos:
Discussão dos relatos anteriores à luz da teoria freudiana � 6 h
Módulo 3 3.1 A relação corpo-psique na teoria junguiana:
Do complexo psicofísico ao instinto psiquificado � 3 h 3.2. Apresentação de casos clínicos: Discussão de relatos à luz da teoria junguiana � 6 h 3.3 Outras abordagens de cunho psicossomático:
Palestra dos professores convidados � 6 h
Módulo 4
4.1 Avaliações � 3h 4.2 Fechamento � 3h