Luciano Carvalho Cardoso
Fenomenologia do Esprito de Hegel
Anlise da Estrutura da Relao entre o Senhor e o Servo (Cap. IV)
A Dialtica do Senhor e do Servo (em algumas tradues consta como
escravo) denota uma das importantes figuras da formao (bildung) da conscincia.
O caminho da dvida, que se revelaria como um caminho de desespero, conforme
apontado por Hegel em sua Introduo marcado pela angstia da conscincia que,
ao tomar a verdade como essencial do objeto, perde j o objeto e perde tambm sua
verdade. Diz-nos Hegel: ... esse caminho pode ser considerado o caminho da dvida
[Zweifel] ou, com mais propriedade, caminho de desespero [Verzweilflung]; pois
nele no ocorre o que se costuma entender por dvida: um vacilar nessa ou naquela
pretensa verdade, seguido de um conveniente desvanecer-de-novo da dvida e um
regresso quela verdade, de forma que, no fim, a Coisa seja tomada como antes1.
Diferentemente, essa dvida nos leva sempre realidade de um conceito irrealizado,
1 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 74. [ 78].
o que remete a conscincia sempre adiante, em sua dvida e desespero constante,
prxima figura.
A grande diferena da figura atual da conscincia (a conscincia-de-si) para
as figuras anteriores (o entendimento, a percepo e a certeza sensvel) que agora a
conscincia tem para si um objeto que no mais se projeta para fora dela: Surgiu
porm agora o que no emergia nas relaes anteriores, a saber: uma certeza igual
sua verdade, j que a certeza para si mesma seu objeto, e a conscincia para si
mesma o verdadeiro2. O objeto da certeza sensvel, o imediato, bem como o objeto da
percepo, o universal em oposio com o singular, e a fora no entendimento eram,
a seu modo, exteriores conscincia. Mesmo no entendimento, quando a conscincia
adquire o conhecimento da fora como conceito, ainda ali esse conceito est para fora
da prpria conscincia: para a conscincia, o objeto retornou a si mesmo a partir da
relao para com um outro, e com isso tornou-se em si conceito. Porm a
conscincia no ainda, para si mesma, o conceito; e por causa disso no se
reconhece naquele objeto refletido3. No entanto, nesse ponto em que nos
encontramos, esse movimento importante j foi realizado pela conscincia no
processo do entendimento, e agora o objeto da conscincia-de-si no outro que ela
mesma. O Outro, que nas trs figuras anteriores encontrava-se fora da conscincia,
ainda distinguido no interior da conscincia-de-si, mas esse Outro na realidade no
coisa alguma que a prpria conscincia-de-si. Segundo Hegel: Sem dvida, a
conscincia tambm nisso um ser-outro, isto : a conscincia distingue, mas
distingue algo tal que para ela ao mesmo tempo um no-diferente4. Esse ser outro
no , na verdade, coisa alguma porque um outro posto pela prpria conscincia-de-
si, e sua oposio igualmente uma oposio no real, dada a sua dependncia
absoluta imposta pelo eu, igualmente absoluto da conscincia-de-si.
Essa situao resultaria, certamente, em um eu solipsista, que converge todas
as coisas para si, sendo to somente ele prprio o fundamento e o prprio contedo
da relao entre ele e o ser-outro. A alteridade existente nessa relao no mais que
uma alteridade formal abstrata e interna. O Eu - diz Hegel - o contedo da relao
2 Idem, p. 135. [166].3 Idem, p. 108. [132].4 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 135. [ 166].
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e a relao mesma; defronta um Outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro,
para ele, apenas ele prprio5.
Essa condio de relao digamos, artificial, acaba por encerrar-se devido
constituio da conscincia-de-si, frente ao vir-a-ser de sua unidade como essencial.
O vir-a-ser da unidade como essncia da conscincia-de-si determina a conscincia
como desejo. A essncia da conscincia-de-si est calcada na reflexo que realiza a
partir do ser-Outro no mundo sensvel. Sua essncia oscila entre a diferena e a
suprassuno da mesma. diferena como movimento, mas cessa seu movimento
quando suprassume a diferena por meio de seu ser-para-si: quando diferencia de si
apenas a si mesma enquanto si mesma, ento para ela a diferena imediatamente
suprassumida, como um ser-outro. A diferena no ; e a conscincia de si apenas
a tautologia sem movimento do Eu sou eu6.
Assim, para recuperar sua essncia e completar seu movimento, a existncia
meramente solipsista no basta para a conscincia-de-si. Ela necessita de um ser-
Outro que seja, de fato, como um ser, isto , um ser-Outro que possua uma existncia
efetiva e fora da prpria conscincia-de-si. Porm, com a existncia desse outro e
com a diferena efetiva entre eles, voltamos novamente conscincia-de-si como
condio anterior de conscincia, tal como tomada na percepo. A unidade da
conscincia-de-si com esse diferente um segundo momento da conscincia, e o seu
vir-a-ser como unidade essencial a ela existe como desejo. E esse movimento em seu
conjunto o que impele a conscincia-de-si a sair de sua realidade solipsista e
colocar-se frente a esse ser-Outro como um ser efetivo e externo a ela, fenomnico e,
portanto, um ser vivo.
A presena desse ser-Outro coloca a conscincia-de-si diante do que Hegel
denomina um objeto duplo: como ser-Outro efetivo fora da conscincia este objeto
assume as caractersticas do objeto tomado como o imediato da certeza sensvel e da
percepo. Mas h tambm um outro objeto que a prpria conscincia-de-si que,
segundo Hegel, a essncia verdadeira e que de incio s est presente na oposio
ao primeiro objeto7.
5 Idem.6 Idem, p. 136 [167].7 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 75. [ 167].
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Entretanto, esse ser-Outro um ser refletido sobre si tanto quanto a
conscincia-de-si que o deseja. Tambm ele j percorreu o longo caminho que a
conscincia percorreu por meio de suas figuras. Essa conscincia-de-si, refletida
sobre si mesma vida, ou melhor, um ser vivo, um no-Eu efetivo e independente da
conscincia-de-si, independncia essa da qual a conscincia-de-si ter a experincia.
Todavia, qual a estrutura dessa relao? E qual o caminho que fundamenta o
itinerrio da conscincia-de-si que culmina no reconhecimento dessa outra
conscincia-de-si, no embate entre ambas e na resultante relao de Senhor e servo?
E, por fim, de que modo Hegel articula os dois momentos de liberdade, ora como
essncia do senhor, ora como essncia do escravo?
Para tal, no ainda no encontro de duas conscincias-de-si que inicia a
trajetria de Hegel, e sim em sua anlise da vida em geral.
Segundo Hyppolite, essa vida que Hegel nos apresenta inquietude,
inquietude do Si que se perdeu e que se reencontra em sua alteridade; entretanto,
nunca coincidente consigo, pois sempre outro para ser si mesmo; pe-se sempre
em uma determinao e sempre se nega para ser si mesmo, porque essa
determinao, enquanto tal, j sua primeira negao8. Como tal, a vida possui dois
momentos contraditrios entre si: como universal simples das diferenas, ela como
substncia infinita, pois essa o que faz com que as diferenas sejam subsistentes.
Mas, para que a substncia infinita faa com que as diferenas subsistam, ela tem de
ser determinada. Assim, no 1o. momento, a substncia infinita em sua determinidade
assegura a figura subsistente, como para-si-essente: No primeiro momento est a
figura subsistente: como para-si-essente - ou a substncia infinita em sua
determinidade...9. Esse primeiro o que Hegel denomina de a vida como ser vivo. O
segundo momento, entretanto, a vida como fluidez universal e inorgnica, como um
processo em que as figuras se desdobram sobre ela em movimento.
Esse momento da vida o Em-si, enquanto que o primeiro momento o
Outro, que se expressa na diferena efetiva das figuras.
Porm aqui ocorre uma inverso no movimento dialtico, pois a figura
subsistente, como diferena para-si-essente, recusa-se a ser suprimida pela fluidez 8 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.1649 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 138. [ 171].
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universal, conservando-se da natureza inorgnica por meio do consumo desta. Assim,
afirma Hegel: surgindo em contraste com a substncia universal nega essa fluidez e
continuidade com ela, e se afirma como no dissolvida nesse universal: ao contrrio,
se conserva por sua separao dessa sua natureza inorgnica e pelo consumo da
mesma10.
Como conseqncia essa fluidez universal e meio tranqilo da vida como
unidade converte-se para movimento infinito da diferena que a consome, uma vez
que ela prpria torna-se o Outro pela inverso apontada que a faz para a diferena. A
vida como universal converte-se, nesse movimento, na vida como ser vivo.
Em contrapartida, essa figura individual para-si-essente, ao consumir a fluidez
universal consome, inevitavelmente, aquilo que faz dela um diferente subsistente, a
saber: o Outro representado pela fluidez universal. Essa unidade que para-si-mesma
consome sua prpria essncia como individualidade, na medida em que suprassume
assim diretamente sua oposio com o outro, por meio da qual para-si. Hegel
prossegue: A unidade consigo mesma, que ela se outorga, justamente a fluidez
das diferenas ou a dissoluo universal11. Em contrapartida, esse suprassumir a
fluidez apenas assegura novamente a figura individual como para-si-essente pois, ao
ser suprassumida ela (a vida como fluidez) se fraciona e esse fracionar justamente o
pr da individualidade.
Temos ento todo um circuito, e a esse todo Hegel redefine a vida: no mais
em seus momentos evanescentes tomados isoladamente, mas como o movimento e
alternncia deles: ...nem a figura subsistente e o Discreto para-si-essente; nem o
puro processo deles; nem ainda o simples enfeixamento desses momentos; mas, sim,
o todo que se desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva
simples nesse movimento12.
Mudamos tambm de instncia, no que concerne unidade, pois a unidade
imediata que antes correspondia substncia infinita em sua determinidade agora foi
elevada ao todo dessa relao, e aquela se tornou apenas um de seus momentos.
10 Idem.11 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 139. [ 171]12 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 140. [ 171]
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E isso nos remete a um Outro que a conscincia para a qual a vida se
apresenta como essa unidade.
Trata-se de uma outra vida, na verdade uma outra conscincia-de-si, que tem
por objeto a si mesma como puro Eu. Essa conscincia-de-si um puro Eu no qual
todas as diferenas esto suprassumidas. Entretanto, assim como o ser (ou a
diferena) individual s na medida em que suprassume a vida como fluidez
universal, tambm esse Eu simples e universal s na medida em que suprassume o
outro. De acordo com o autor, a conscincia-de-si certa de si mesma, somente
atravs do suprassumir desse Outro, que se lhe apresenta como vida independente: a
conscincia-de-si desejo13.
Para Hyppolite, o desejo a manifestao da conscincia como desejante de
si mesma, utilizando para isso o objeto (outro) como meio. , para tanto, o
movimento da conscincia de negao do ser e apropriao do mesmo. Diz
Hyppolite: O desejo esse movimento da conscincia que no respeita o ser, mas o
nega, isto , dele se apropria concretamente e o faz seu14. Nesse fazer seu da
conscincia-de-si, esta adquire a certeza de seu ser, ou a certeza de si.
A conscincia-de-si impelida pelo desejo de certeza de si a suprassumir o
Outro, como satisfao de seu desejo. Quando diante de um Outro, efetivo e
independente, a conscincia-de-si o suprassume, ela v saciado seu desejo, pois nesse
suprassumir a conscincia-de-si tem a experincia da independncia do Outro, e a
certeza de si que veio a ser verdade.
A conscincia-de-si s pode se encontrar por meio do outro. Ela deseja, mas
seu desejo desejo de si, que se conclui na posse de si por meio de outra conscincia-
de-si. Conclui Hyppolite: A conscincia de si desejo; porm, o que deseja, sem
que ainda o saiba explicitamente, ela mesma; seu prprio desejo e, precisamente
por isso, s poder alcanar a si mesma ao encontrar um outro desejo, uma outra
conscincia de si15
E, nesse sentido, ressalta-se a importncia do reconhecimento de si no outro.
De acordo com Hegel: A conscincia-de-si em si e para si quando e por que em 13 Idem, p. 140. [ 174].14 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.173.15 Idem, p 175.
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si e para si para uma Outra; quer dizer, s como algo reconhecido16. O
reconhecimento vem a ser um desdobramento da conscincia-de-si sobre o ser-Outro.
Quando a conscincia-de-si depara-se com um Outro (que tambm conscincia-de-
si), ela no v essa conscincia-de-si como algo outro, mas a v como um
desdobramento de si mesma que sai para fora de si. Hyppolite ressalta o aspecto
bipolar desse reconhecimento: ...cada uma das conscincias de si tambm uma
coisa vivente para o outro e uma certeza de si para si mesma; ademais, cada uma s
pode encontrar sua verdade ao se fazer reconhecer pelo outro tal como para si,
manifestando-se no exterior tal como no interior. Na manifestao de si, porm,
deve descobrir uma igual manifestao, no outro17.
Esse reconhecimento de si mesmo no outro traz dois pontos importantes
apontados por Hegel: primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha numa outra
essncia. Segundo, com isso ela suprassumiu o Outro, pois no v o outro como
essncia, mas a si mesma que v no Outro18. Portanto, a conscincia-de-si precisa
suprassumir esse ser-Outro para que o desdobramento de si volte para ela prpria, a
fim de que volte a ter a certeza de si como essncia.
Mas, ao fazer isso, na verdade, a conscincia-de-si est tornando-se o Outro
que suprassumiu e dever, a seguir, suprassumir-se a si mesma.
No entanto, Hegel afirma que nesse duplo suprassumir, o Outro acaba sendo
libertado da relao, uma vez que a conscincia-de-si, ao reconhecer-se a si mesma
no Outro, reconhece o seu ser-Outro. E, por meio da suprassuno, faz com que a
conscincia que estava fora volte para si e seja a ela restituda, e o outro , enfim,
deixado livre.
Atravs desse embate, podemos dizer que a conscincia-de-si se defronta com
a conscincia-de-si no Outro e, ao suprassumi-la e pr para si a certeza essencial de si
que reconheceu no Outro, reconhece agora o Outro e o liberta.
O termo embate apropriado porque, na verdade, esse movimento que
vimos da conscincia-de-si diante de outra conscincia-de-si repetido
simultaneamente por esta. O ser-Outro independente, e tambm ele uma
16 Hegel, p. 142. [ 178].17 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.180.18 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 143. [ 179]
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conscincia-de-si que se encontra nas mesmas condies. Tambm ele um Eu puro
que, ao ver essa conscincia-de-si, desdobra-se a si mesmo e se v fora de si no
outro. E tambm ele desejo de suprassumir essa conscincia-de-si e retomar a
certeza de si em verdade.
O agir da conscincia-de-si um agir de duplo sentido, no s enquanto
agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas tambm enquanto indivisamente
o agir tanto de um quanto de Outro.19
Como se d, pois esse embate entre duas conscincias-de-si? A princpio cada
uma das conscincias-de-si v a outra como um eu em negativo, isto um no Eu e,
como tal, como um inessencial. Nesse confronto imediato so ambas inessenciais, e o
essencial a prpria vida em geral. Ainda nesse ponto nenhuma das conscincias-de-
si ps fim ao ser imediato, nenhuma delas se apresentou uma para outra, como ser-
para-si, portanto nenhuma delas se apresentou como conscincia-de-si. Esse modo de
agir por meio de si mesmo implicaria, entretanto, mostrar-se como pura negao de
sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que no est vinculado a nenhum ser-a
determinado, nem singularidade universal do ser-a em geral, nem vida20. O
modo do embate entre as duas se d, entretanto, pelo agir por meio do Outro que,
segundo Hegel, faz com que as duas conscincias-de-si tendam para a morte do
Outro. Hyppolite corrobora esse momento: ...a conscincia de si , decerto, aquilo
que ao recusar-se a ser, e no entanto essa recusa essencial deve aparecer no ser,
manifestar-se de algum modo. Tal ser o sentido da luta pelo reconhecimento
mtuo21. Ocorre que, nesse modo de agir por meio do Outro, tambm interpenetra-
se o agir por meio de si, uma vez que esse agir por meio do outro implica no risco
prpria vida e, portanto, quela negao de si mesmo, nulificao frente vida e ao
Outro, em prol de seu ser-para-si.
Portanto, por meio desse confronto entre as duas conscincias-de-si que elas
pem prova tanto a si mesmas quanto uma a outra, confronto esse que assume as
vias de uma luta de vida ou morte. Devem travar essa luta porque precisam elevar
19 Idem, p. 144. [ 183].20 Idem, p. 145. [ 187].21 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.182.
8
verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si22. Pois por meio
dessa luta que deixaro suas condies inessenciais e imediatas, uma vez que por
esse agir por meio do Outro que passaro ao agir por meio de si mesmas. Enquanto
meros imediatos em uma relao onde ambos so inessenciais, nenhuma verdade h,
pois nessa condio, o seu ser-para-si no se apresenta ainda como independente, j
que ambas esto certas de si mesmas, mas no uma da outra.
Todavia, na luta de morte emerge a verdadeira essncia da conscincia-de-si.
E essa essncia no nada que possa existir que no seja ela prpria. Para tomar de
volta a conscincia-de-si que se projetou no Outro, nada mais importa. O ser da
conscincia-de-si, seu modo imediato tal qual ela surge e mesmo sua submerso na
expanso da vida nada so alm de meros momentos evanescentes para a
conscincia-de-si, e nenhum deles constitui-se como essncia. Descobre-se ento
como puro ser-para-si, e o ser-Outro ou ser intudo pela conscincia-de-si como ser-
para-si ou como negao absoluta.
Mas Hegel apresenta um problema nessa condio em que a conscincia-de-si
se descobre. A morte, na verdade, no representa exatamente a verdade que se
pretendia mas, ao contrrio, a suprassume pois, uma vez que a vida constitui-se como
o natural da conscincia e sua independncia sem a negao absoluta, a morte
consistiria exatamente em seu contrrio, isto , a morte seria a negao natural da
mesma conscincia. Ambas as conscincias, como extremos que querem ser para-si,
consomem-se uma a outra; ambas se suprassumem. Porm, justamente no momento
em que ambos deveriam deixar suas posies extremas e imediatas para emergirem
no meio-termo como seres-para-si, ambos na verdade perecem como dois extremos
mortos. Conforme o autor: Suprassumem sua conscincia posta nessa essencialidade
alheia, que o ser a natural, ou [seja], suprassumem a si mesmos, e vm-a-ser
suprassumidos como os extremos que querem ser para si. Desvanece porm com isso
igualmente o momento essencial nesse jogo de trocas: o momento de se decompor em
extremos de determinidades opostas; e o meio-termo desmorona em uma unidade
morta, que se decompe em extremos mortos, no opostos, e apenas essentes23.
Emerge assim nessa relao a importncia da vida sobre a conscincia-de-si. O ser-22 Hegel, p. 145. [187].23 Hegel, G.W.F., Fenomenologia do Esprito, p. 146. [ 188].
9
para-si perde a importncia de sua essencialidade para a vida, na experincia da
conscincia-de-si.
Hyppolite afirma: Se a conscincia de si aparece como pura negatividade e,
portanto, manifesta-se como pura negao da vida, a positividade vital lhe tambm
essencial: decerto, ao oferecer sua vida, o eu se pe como elevado acima da vida, mas
ao mesmo tempo desaparece de cena; a morte aparece somente como fato da
natureza, e no como negao espiritual; preciso, portanto, uma outra experincia
na qual a negao seja espiritual, quer dizer, seja uma aufhebung que conserva ao
mesmo tempo que nega24.
Essa , pois, a passagem que resulta na separao em dois momentos que,
como no foram refletidos nem suprassumidos pela conscincia-de-si, configuram-se
como duas instncias opostas na qual, em uma delas, a conscincia-de-si
independente e seu ser-para-si a essncia, e a outra onde a conscincia-de-si
dependente e sua essencialidade fica depositada na vida. Esses dois momentos
distintos configuram-se, por sua vez, no embate entre as duas conscincia-de-si, nas
figuras do senhor e do servo (ou escravo).
Nessa relao entretanto, a conscincia que, considerando a essencialidade da
vida maior que o ser-para-si, assume a condio de servo; deixa, na realidade, de ser
o Outro (pois no mais independente) e torna-se um mediador. O Outro, objeto do
desejo da conscincia-de-si, deslocado para a vida em geral que o servo considerou
como essencial. Esse deslocamento do Outro independente para a vida em geral
remete-nos quele primeiro momento de oposio quando Hegel fazia a exposio
filosfica da vida em geral, frente uma conscincia-de-si que a ela se defrontava,
com a diferena que, agora, entre o senhor e a vida em geral, h um mediador: o
servo. A vida em geral assume, para o Senhor (a quem o ser-para-si ainda mais
essencial) o papel de Coisa independente, objeto de desejo do Senhor, que busca
suprassum-la. Para o servo, assume o papel da coisidade que lhe essencial. O
Senhor se relaciona com o servo tendo este como um mediador para obter seu objeto
de desejo.
24 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.185.
10
O Senhor relaciona-se com o servo por meio do ser independente. A
independncia do servo tornou-se dependncia ao no conseguir desvencilhar-se da
coisidade como essncia, pois essa coisidade mostrou-se-lhe, na luta, como sendo sua
independncia no lugar do ser-para-si. Assumindo-a, tornou-se sua cadeia, e
originou-se sua dependncia para com o Senhor, que agora sua potncia, j que
mostrou para ele que este s lhe vale como um negativo, e este o aceitou, por no
poder continuar sua luta at a morte.
Nesse ponto, Hegel apresenta o silogismo da dominao. Assim diz o autor:
O Senhor a potncia que est por cima desse ser (o servo); ora, esse ser a
potncia que est sobre o Outro; logo, o senhor tem esse Outro por baixo de si: este
o silogismo [da dominao]25. Nesse silogismo a vida, que a independncia do
servo, est submissa a este. o Outro, que est sob a potncia do servo. Mas no
encontra-se submissa ao Senhor. Porm, o servo submisso ao Senhor e, como
domina o servo que, por sua vez, domina o Outro; o Senhor ganha tambm, mediante
o servo, a potncia sobre o Outro.
O servo, por sua vez tambm possui a vida como algo independente dele. a
vida como Coisa independente que, a despeito de no poder aniquil-la (pois como
coisidade sua independncia e sua essncia), to somente a trabalha. Mas, para o
Senhor, em sua mediao pelo servo, no apenas trabalha a Coisa, como na verdade a
suprassume e a aniquila. Pela mediao do servo, desvanece diante dele a
independncia da Coisa. Devido a essa relao, o senhor no s aniquila a coisa, que
j no lhe independente, como tambm se aquieta no gozo, que a satisfao
permanente de seu desejo. O desejo no podia faz-lo pela independncia da Coisa
para com ele mas, pela relao com o escravo, conseguiu o que o desejo no
conseguira. O desejo no o conseguia por causa da independncia da coisa; mas o
senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se concluiu somente com a
dependncia da coisa, e puramente a goza; enquanto o lado da independncia deixa-o
ao escravo, que a trabalha26. Para o servo, a independncia da coisa nunca cessa,
pois est preso a ela em sua relao com a coisidade, e no pode aniquil-la, mas to
somente trabalh-la. 25 Hegel, p. 148. [ 190].26 Idem.
11
Essa realizao do senhor, entretanto, nada tem de independente. A
conscincia do senhor, a despeito de sua realizao, mantm-se em dependncia para
com a ao do servo, em seu agir inessencial. Em suma, a essncia do Senhor nessa
relao no seu ser-para-si, mas sim a figura do escravo, e seu agir inessencial:
Assim, o senhor no est certo do ser-para-si como verdade; mas sua verdade de
fato a conscincia inessencial e o agir inessencial dessa conscincia27.
O servo, por sua vez, relaciona-se em dois momentos: em sua relao com o
senhor e em sua relao com a coisa. E a ao do servo, nas duas relaes constitui-
se como inessencial. inessencial em sua relao com o senhor porque dele tornou-
se dependente devido ao medo absoluto da morte, que o fez ceder na luta pelo ser-
para-si. Nesse aspecto, tanto foi suprassumido pelo senhor como ele prprio
suprassumiu-se a si mesmo ao considerar a vida como mais essencial que o ser-para-
si. E inessencial em sua relao para com a coisa. Como vimos acima, o servo
relaciona-se com a coisa por meio do trabalho, e nesse trabalho a coisa tambm
mostra-se independente. Seu agir inessencial porque jamais aniquila o objeto. Alm
do mais, o momento em que o escravo se relaciona com a coisa, em seu agir
inessencial, corresponde ao momento do desejo do Senhor pois, ao desejar, mobiliza
sua potncia sobre o servo para que esse trabalhe a coisa, a fim de que para o Senhor
reste apenas o aquietar-se no gozo. Nesses dois momentos da ao do servo, tal ao
inessencial, pois nessa ao o servo nem se assenhoreia do ser, e nem alcana a
negao absoluta.
Consequentemente a essa condio, Hegel afirma que o reconhecimento
ocorre de modo unilateral e desigual, pois, nessa relao do servo para com o senhor,
aquele vem a reconhecer este ao fazer o mesmo que o senhor faz em relao a ele:
Portanto, est presente o momento do reconhecimento no qual a outra conscincia (a
do servo) se suprassume como ser-para-si, e assim faz o mesmo que a primeira faz
em relao a ela28. Entretanto, o reconhecimento no mtuo, pois o senhor no
realiza tal reconhecimento para com o servo, e nem poderia, pois no pode
reconhecer no outro um Outro que no independente a ele.
27 Idem, p. 149. [192].28 Idem, p. 148. [ 191].
12
No obstante a isso, precisamente no trabalho que o servo adquire seu ser-
para-si. No desejo, o servo assume a pura negao do objeto e, com tal, reconhece o
sentimento-de-si-mesmo. No trabalho, entretanto, esse desejo moderado ou
refreado. Torna-se ento um meio-termo, onde o objeto no aniquilado, mas seu
desvanecer contido, e o trabalho torna-se a forma do objeto, que permanece
constantemente. Mas, como meio-termo, o trabalho tambm no dissolve por
completo o ser-para-si. De fato, por meio desse permanecer do objeto, o servo toma
conhecimento de que esse momento reserva-lhe a singularidade de seu prprio ser-
para-si, atravs de seu agir formativo. Seu ser-para-si, no entanto, intudo fora de si
por meio do elemento do permanecer.
Hegel afirma que esse movimento do servo, porm, s efetivo porque, ao
faz-lo teve de suprassumir para si a figura do senhor, como forma essente oposta.
No o fez, certamente, em um embate com o senhor, mas o fez com sua forma, no
trabalho com a coisa. Com efeito: no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo
sua prpria negatividade, seu ser-para-si somente porque ele suprassume a forma
essente oposta. Mas esse negativo objetivo justamente a essncia alheia ante a qual
ele tinha tremido. Agora, porm, o escravo destri esse negativo alheio, e se pe,
como tal negativo, no elemento do permanecer: e assim se torna, para si mesmo, um
para-si-essente29. O sentido do trabalho, que parecia ser um sentido alheio, ditado
pelo senhor, torna-se um sentido prprio, onde o servo torna-se para si mesmo um
para-si-essente. Inverte-se, portanto, as condies: o senhor que, a princpio assumira
a liberdade em sua essncia como ser-para-si , na verdade, o escravo, pois s
conscincia de si mediante a conscincia inessencial do servo. Este, ao contrrio, em
sua origem inessencial, atado pelo medo da morte essncia da vida encontra, no
trabalho e no mago de sua servido, as vias de sua liberdade, onde atinge
reflexivamente seu ser-para-si. Afirma Hyppolite: A verdade da conscincia do
senhor , portanto, a conscincia inessencial, a do escravo. Mas como essa
conscincia pode ser a verdade da conscincia de si enquanto estranha a si mesma,
enquanto tem seu ser fora de si? No entanto, essa conscincia servil que, em seu
29 Idem, p. 150. [ 196].
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desenvolvimento, em sua mediao consciente, realiza verdadeiramente a
independncia30.
Por fim, segundo o autor, essa reflexo feita pelo servo, que culminou em seu
ser-para-si, no pode ser levada a cabo sem os dois momentos: o momento do medo e
o momento do formar. Pelo momento do medo, em sua absolutez, engendra-se a
disciplina reguladora do servio e da obedincia, e o medo assim se estende sobre
toda a efetividade consciente do ser-a. E, pelo momento do formar, a conscincia
vem a ser-para-si-mesma. Esses dois momentos, porm, devem ocorrer ao mesmo
tempo e de maneira universal. Ademais, para que o servo seja libertado, em si, do ser
determinado (a coisidade), e lanado na liberdade do sentido prprio da obstinao,
convm que esse medo seja absoluto e abale todos os contedos da conscincia:
Enquanto todos os contedos de sua conscincia natural no forem abalados, essa
conscincia pertence ainda, em si, ao ser determinado. O sentido prprio
obstinao, uma liberdade que ainda permanece no interior da escravido31.
Essa , pois a fundamentao da estrutura na qual se alicera a dialtica do
senhor e do escravo, movimento esse que principia por uma filosofia geral da Vida,
que em si o que a conscincia de si vai ser para si32. Essa formulao da vida em
geral resulta na presena de uma conscincia-de-si que se pe diante dela, e da qual
converge para o relacionamento entre duas conscincias-de-si que, para encontrarem
o seu ser-para-si, tero de colocar-se em um embate de morte, a fim de que, nesse
embate todas as coisas tornem-se apenas como momentos evanescentes para a
prpria conscincia-de-si, restando para ela a nica essncia que ela prpria, ou seu
ser-para-si. E vimos que, nessa estrutura, as duas conscincias-de-si acabam, em suas
posies como extremos, movendo-se para as configuraes de Senhor e servo, sendo
Senhor o que manteve-se desejoso unicamente de seu ser-para-si, e servo o que,
diante da possibilidade da morte e de sua total aniquilao, considera a vida em geral
como mais essencial do que seu ser-para-si, e recua no combate. Nessa articulao
entre senhor e escravo, vimos tambm como ocorre o reconhecimento desigual entre
as duas figuras, e de que modo o servo, pelo trabalho, encontra uma espcie de
30 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.188.31 Hegel, p. 151. [ 196].32 Hyppolite, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel, p.162.
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liberdade por meio do sentido prprio que se mostra como obstinao e contempla,
ainda que de modo formal e interno, seu ser-para-si, invertendo, assim, as condies
que antes haviam se estabelecido entre Senhor e escravo: o senhor revela-se, em sua
verdade, escravo do escravo e o escravo como senhor do senhor33.
Bibliografia
33 Idem, p. 187.
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HEGEL. George Wilhelm Friedrich, Fenomenologia do Esprito; Trad. Paulo Meneses. 7 Ed. Petrpolis, RJ: Ed. Vozes, 2002.
HYPPOLITE, Jean, Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel. 2 Ed. So Paulo, SP: Ed. Discurso Editorial, 1999.
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Bibliografia
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