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| SALVADOR |4 SALVADOR, DOMINGO, 28/9/2008

s a l v a d o r @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Cartazes nasruas comprovama poucaintimidade comas letras

EDUCAÇÃO ❚ O Estado tem quase o dobro da média nacional de analfabetos que já viveram pelo menos meio século, que é de 22%

42% dos baianos com maisde 50 anos não sabem ler

VITOR PAMPLONAv p a m p l o n a @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Em um cubículo de menos de dezmetros quadrados, no subúrbioferroviário de Salvador, cincomulheres de 50 a 70 anos se es-premem entre carteiras improvi-sadas em frente a um quadro ne-gro, do tamanho de uma bande-ja. Pescoços esticados para afrente, olhos esbugalhados na di-reção da lousa, elas soletram:Ca-sa. Da-do. Mo-e-da.

São palavras, mas, ao mesmotempo, investidas contra as esta-tísticas. Dez anos depois do iní-cio dos maiores projetos de com-bate ao analfabetismo do Brasil –os programas Alfabetização Soli-dária, do governo FHC, e BrasilAlfabetizado, do governo Lula –,42,1% da população baiana commais de 50 anos ainda não sabe

ler e escrever.O percentual, revelado sema-

na passada pela Pnad 2007 (Pes-quisa Nacional por Amostras deDomicílio), do IBGE (InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatís-tica), é quase o dobro da médianacional na faixa etária (22%).São mais de 1 milhão de pessoasque chegaram a meio século devida sem conhecer o significadodas letras, o equivalente a 42,2%dos analfabetos de toda a Bahia.

No quarto transformado emsala de aula, Eliene Pereira mos-tra os cadernos das alunas, comas lições de caligrafia. Há 20 anos,ela foi morar em Paripe e encon-trou uma legião de vizinhos anal-fabetos: “Fiquei impressionada”.A vocação para ensinar, diz, veiodesde cedo. E não foi limitada pe-los poucos anos de estudo, só atéo fim da 8ª série. As carteiras na

casa de Eliene não são ocupadasapenas por senhoras. Há alunosjovens, mas eles não costumamaparecer mais do que uma vezpor semana. “Tem gente que pre-cisa trabalhar mais de dois tur-nos e abandona as aulas”.

Se considerada a populaçãocom mais de 5 anos, a taxa deanalfabetismo na Bahia é de19,7% – em 2005, era de 20,3%. Opatamar ainda é alto em compa-ração à média nacional, masconfirma a tendência de queda.Desde 2002, o País diminuiu o ín-dice de 14,1% para 11,7% – 10%caso o corte seja acima dos 15anos. No Nordeste, onde estão asmais altas taxas, a Bahia mantéma sétima pior colocação. Um títu-lo histórico também permanece:o de campeão nacional em nú-mero de pessoas que não sabemler e escrever: 2,55 milhões.

Após vencer as eleições de2006, o governador Jaques Wag-ner (PT) elegeu o combate aoanalfabetismo como uma dasprioridades, definindo a meta dealfabetizar 1 milhão de pessoas –100 mil em 2007 e 300 mil nos trêsanos seguintes. Para isso, criou oTopa (Todos pela Alfabetização),versão baiana do Brasil Alfabeti-zado. No primeiro balanço feitopelo IBGE no governo Wagner,contudo, aparecem só 4 mil anal-fabetos a menos no Estado. A co-ordenadora do Topa, Elenir Al-ves, diz que o resultado da pes-quisa não a surpreendeu. “A eta-pa 2007 do Topa terminou em ju-nho de 2008. O IBGE não consi-derou os alunos formados peloprojeto”, justifica. Segundo o go-verno do Estado, 171 mil baianosforam alfabetizados no primeiroano do programa, mais do que a

meta inicial.Na capital, o combate ao anal-

fabetismo mostra resultadosmodestos. Dos 135 mil analfabe-tos segundo o IBGE/2005 – aPnad 2007 traz dados apenas so-bre a RMS –, só 10,6 mil foram al-fabetizados desde então. “Mui-tos não têm tempo, precisam tra-balhar”, diz Verônica Santana,coordenadora do Salvador Cida-de das Letras, versão municipaldo Brasil Alfabetizado. Em 2006,apenas um terço dos inscritosnão abandonou o projeto, quepretende alfabetizar 40 mil naetapa iniciada em 2007. As alu-nas da sala improvisada no su-búrbio ferroviário estão entreelas. Até dezembro, se as previ-sões forem confirmadas, deixa-rão de soletrar as palavras e po-derão ler sem percalços: Casa.Dado. Moeda.

ABC de dona Lucinha

No estigmatizado Vale das Pedri-nhas, região do Rio Vermelho,quase sempre associado à vio-lência e ao tráfico de drogas, umaplaca fixada na frente de uma ca-sa anuncia: “Alfabetiza-se e dá-sebanca”. Do outro lado do portão,Marta Lúcia Santana Santos, 50anos, aguarda a chegada da tur-ma da tarde. Nas duas décadas emeia em que cumpre essa rotinaquase diária, dona Lucinha ensi-nou a cerca de 600 crianças a ler ee s c re ve r.

A contribuição da ex-manicu-re para diminuir as taxas de anal-fabetismo em Salvador não foiexatamente proposital. “Eu sem-pre dei reforço. O problema é que

os meninos chegam sem saberler e escrever nada. Aí tenho queensinar”, diz a professora, que sóestudou até a 8ª série.

JUÍZ A – A primeira aluna foi umasobrinha, rebaixada para a classeda alfabetização. “Hoje, ela éuma juíza”, informa a tia. Depois,vieram outros colegas com difi-culdades na escola. Lucinha foitomando gosto pelo ofício, cons-truiu uma sala de aula sobre a lajede casa e praticamente abriu suaprópria escolinha, com turmaspela manhã e à tarde, e mensali-dade de R$ 30. Os alunos, geral-mente, têm de 7 a 11 anos. Todosestão na escola de verdade. “Mas

a maioria não sabe nem o alfabe-to, nem interpretar nada”, ela re-vela. O que Lucinha observa nascrianças, a Pnad 2007 mostra emnúmeros: 1,1 milhão de brasilei-ros de 8 a 14 anos freqüentam es-tabelecimentos de ensino, masnão sabem ler e escrever.

Contra a má qualidade do en-sino, a alfabetizadora do Vale dasPedrinhas diz que o segredo é seratenciosa e cobrar da criançada.“Quando vejo um menino che-gar sem saber nada e, em meioano, estar lendo tudo, sinto umarecompensa”. Sorte também dosquatro filhos e quatro netos queaprenderam a ler em casa, com oABC de dona Lucinha.

Para economista, políticasdevem priorizar a infância

O coordenador de Disseminaçãode Informações do IBGE na Ba-hia, Joilson Rodrigues, destacaque a maioria dos analfabetos noEstado tem mais de 30 anos e viveno meio rural. Na Bahia, esse gru-po representa quase 1,7 milhãode pessoas, ou dois em cada trêsanalfabetos. Para melhorar a po-sição do Estado no ranking na-cional, Rodrigues afirma ser ne-cessário levar os programas deerradicação aos grotões do inte-rior e beneficiar sobretudo aspessoas maduras.

Não é o que pensa Wilson Me-nezes, coordenador da Pesquisade Emprego e Desemprego(PED) na RMS pela UniversidadeFederal da Bahia. Para ele, as po-líticas públicas voltadas para aeliminação do analfabetismo de-vem priorizar a infância. “A res-posta para a sociedade é maior”,explica. Ao privilegiar as faixas deidade menos elevadas, Menezesmira o futuro, com base no pre-sente. De acordo com o econo-mista, apenas 2,1% dos postos detrabalho em Salvador eram ocu-pados por analfabetos em levan-tamento de agosto deste ano.

A relação entre formação es-

colar e renda, no entanto, não ésempre equivalente. Um estudoda Fundação Getúlio Vargas(FGV) realizado a partir dos da-dos da Pnad mostra que, entre1992 e 2006, o tempo dos jovensde 15 a 29 anos na sala de aula au-mentou 2,63% ao ano. Paralela-mente, a renda dessa faixa etáriasubiu apenas 1,21% a cada ano. Oaumento proporcional dos ga-nhos só cresceu a partir de 2004,com o aquecimento da econo-mia nacional.

Julieta Estrela, 56 anos, umadas alunas do projeto Cidade dasLetras no subúrbio, experimen-tou no bolso, na juventude, asconseqüências do analfabetis-mo. Um amigo a indicou parauma vaga de telefonista mas,sem saber ler e escrever, ela nãofoi contratada. Virou doméstica.

Em busca do tempo perdido,Julieta repete o bordão: “Para es-tudar nunca é tarde”. Avessa àsfrases feitas, a colega Enedina daSilva, 61 anos, explica por que de-cidiu sair das estatísticas do anal-fabetismo: “É feio ter que assinarum documento e colocar o de-do”. Borrão, para Enedina, nuncamais. | Continua nas páginas 8 e 9

*A Bahia, com 19,7%, é o 20ºpior Estado emanalfabetismo.AL (25,4%), MA (24,5%), PI(24,4%), PB (24,1%), RN(20,9%) e CE (20,2%) vêmem seguida.

São Paulo, com 2,46milhões, e Minas Gerais, com1,82 milhão, ocupam osegundo e terceiro lugaresem número de analfabetos.

❛“Quando vejoum meninochegar sem sabernada e, em meioano, estar lendotudo, sinto umarecompensa!”

Marta Lúcia Santana Santos,alfabetizadora, que atua nobairro do Vale das Pedrinhas, emSalvador ❚

“É feio ter queassinar umdocumento ecolocar o dedo.”

Enedina da Silva, 61 anos,alunas do projeto Cidade dasLetras, que funciona nosubúrbio ferroviário deS a l v a d o r. ” ❚

Alunas de curso montado no bairro de Paripe, no subúrbio ferroviário de Salvador, levam para a sala de aula improvisada a possibilidade de reverter os números e reduzir o analfabetismo

Marta Lúcia só estudou até a 8ª série, mas participou da formação de uma juíza, sua ex-aluna

FOTOS | MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE

& região metropolitana

SALVADOR E BAHIAEDITORA-COORDENADORA

Marlene LopesEDITOR DE SALVADOR

Edson Rodrigues