OTRABALHOANLOGOAODEESCRAVOPORJORNADAEXAUSTIVA FRENTE AO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO. WORKFROMANALOGTOSLAVEFORJOURNEYEXHAUSTIVEFRONTOF CONSENT OF THE OFFENDED. Thais Caroline Anyzewski Marcondes1 Fbio Andr Guaragni2 Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho sua vida E vida trabalho... E sem o seu trabalho O homem no tem honra Se morre, se mata...(Gonzaguinha) RESUMO: Analisa-se o trabalho anlogo ao de escravo, especialmente em relao hiptese dajornadaexaustiva,frenteaoconsentimentodavtima.Assim,procurardelimitaro contedo do termo jornada exaustiva atravs do contido na Constituio Federal de 1988 e da Consolidao das Leis Trabalho ao que se refere jornada laboral. Na esfera penal far-se- a anlisedoartigo149doCdigoPenaledobemjurdicopenalmentetutelado,verificandoa suadisponibilidadeouindisponibilidade.Porfim,far-se-oexamedoinstitutodo consentimentodoofendido,demodoaverificarseuteor,alcance,requisitoevalidade,para entodeterminarapossibilidadejurdicaouno,dequeesteafasteoinjustopenaldodelito em comento. 1MestrandaemDireitoEmpresarialeCidadaniapeloUNICURITIBA.GraduadaemDireitopelo UNICURITIBAeemAdministraodeEmpresascomHabilitaoemComrcioExteriorpelaFundaode Estudos Sociais do Paran. Advogada.Email: [email protected]: http://lattes.cnpq.br/4101555819509313. 2PromotordeJustianoEstadodoParan.DoutoreMestreemDireitodasRelaesSociais(UFPR). Professor de Direito Penal Econmico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitrio Curitiba - UNICURITIBA. Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG. ABSTRACT:Analyzesthelaboranalogoustoslavery,especiallyinrelationtothe hypothesis of the exhausting journey, against the consent of the victim. So seek to define the termcontentsexhaustingjourneythroughcontainedintheFederalConstitutionof1988and theConsolidationofLaborLawstorespecttheworkday.Incriminalfarwilltheanalysisof Article 149 of the Penal Code and the criminal and legal ward, checking their availability or unavailability. Finally, far-will is the examination of the Institute of consent of the victim, in ordertoverifyitscontent,scope,andvalidityrequirementandthendeterminethelegal possibility or not, that it departs from the unjust criminal offense in comment.
PALAVRA-CHAVE:EscravidoContempornea;JornadaExaustiva;Consentimentodo Ofendido; Injusto Penal. KEYWORDS: Contemporary Slavery; Journey Exhaustive; Consent of the Offended; Unjust Criminal. INTRODUO Otrabalhoanlogoaodeescravoumarealidadepresenteemarcantenasociedade brasileira,masaestanoserestringe.Infelizmente,resquciosdeumpassadoescravocrata persistemempasesqueaindapossuemaculturadaexploraodesmedidadotrabalho humano. Nestecontexto,soinmerososcasosemqueseconstataaescravido contempornea, que se revela em uma situao de fato, baseada de forma geral na submisso desereshumanosatrabalhosforados,jornadasexaustivas,condiesdegradantesde trabalho ou restries de liberdade. ExatamenteaestassituaesqueoCdigoPenalBrasileirosereportaaoeleg-las comoelementoscaracterizadoresdocrimeprevistonoartigo149.Existindoquaisquer daquelas hipteses juntas ou alternativamente h a conformao ao tipo penal. NoBrasil,otrabalhoanlogoaodeescravoatingeostrabalhadoresdocampoeda cidade.Apesardamaioriadoscasosaindaseencontrarnomeiorural,jperceptvelo aumentodasuaincidncianomeiourbano,principalmentenoqueserefereindstriada confeco, onde no param de surgir novos casos, ligados ainda utilizao de trabalhadores estrangeiros que se encontram muitas vezes em situao de permanncia ilegal. Asformasdegestoassumemtambmpapelrelevantedentrodocontextosocial contemporneoedasnovasrelaesdetrabalho,jquesodirecionadasaoaumentoda produoedolucro,ignorandomuitasvezesapessoadotrabalhadorcomautilizaodo trabalho anlogo ao de escravo.Aglobalizaoquepossibilitouomaiorfluxodemercadoriasepessoas,tambm possibilitou as empresas maior mobilidade, permitindo a mudana da localizao da produo conformeadiminuiodecustos.Logo,cabeaosacionistasmoveracompanhiaparaonde querquepercebamouprevejamumachancededividendosmaiselevados,deixandoatodos os demais presos como so localidade a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano [...] (BAUMAN, 1999, p.15). Dentro deste contexto, o custo com a mo-de-obra torna-se fator determinante.Todavia,ospasesapresentamdiferentesformasdelidarcomanovarealidadeda rpidamudanadasempresasedocapitaldentrodoglobo.Haquelesqueafrouxamasua legislao trabalhista, outros que mantm uma legislao precria e ainda aqueles que embora tenhamumaparatolegaladequadodeproteoepreservaodedireitostrabalhistas,no conseguem prevenir a ocorrncia do trabalho anlogo ao de escravo.OBrasilencontra-senoterceirogrupo,ouseja,apresentaumroldeleistrabalhistas adequadas defesa dos direitos e interesses do trabalhador. No entanto, no consegue muitas vezes coibir e evitar a ocorrncia de situaes em que o trabalhador colocado em condies anlogasdeescravo.Nestaperspectiva,ecomoformaderepudiarumpassadohistrico escravocrata, o Cdigo Penal Brasileiro atravs do artigo 149 conferiu proteo ao trabalhador frenteaotrabalhoanlogoaodeescravo,comomeiocontundentedeprevenireevitartal prtica.Entreashiptesesprevistasnoartigo149doCdigoPenal,d-sedestaqueajornada exaustiva. Realidade de muitos trabalhadores no pas, que, contudo, muitas vezes nem tomam conhecimentodeestaremsendosubmetidosaumacondioanlogadeescravo,ouque mesmoadquirindocincianopossuempossibilidadedeescolha,poisprecisamdotrabalho para sua sobrevivncia e de sua famlia.Destemodo,muitostrabalhadoresconsentememtrabalharemtalcircunstncia.No entanto, preciso analisar a validade desse consentimento. Diante do exposto, percebe-se a relevncia e atualidade do tema proposto, levando-se em considerao que muitos fecham os olhos para a jornada exaustiva, prtica cada vez mais presente no mundo capitalista.Dentro desta perspectiva, o artigo analisa a relao do trabalho anlogo ao de escravo por jornada exaustiva e a categoria dogmtica do consentimento do ofendido.Paratanto,primariamentefar-se-umabreveanlisedoartigo149doCdigoPenal brasileiro, verificando seu contedo e abrangncia.Emseguida,pretende-seidentificaroquecompreendeotermojornadaexaustivae qual seu alcance. Nesta medida far-se- a anlise da legislao ptria, de forma a delimitar os contornos legais da jornada de trabalho no Brasil.Posteriormente, far-se- a anlise do bem jurdico diretamente tutelado pelo artigo 149 doCdigoPenal,demodoaauferirasuadisponibilidade,dadocentralparaoexameda categoria dogmtica do consentimento do ofendido, examinado ainda nas suas demais linhas gerais. Finalmente verifica-se em que medida o consentimento da vtima de trabalho anlogo ao de escravo por jornada exaustiva pode afastar o injusto penal. 1 O TRABALHO ANLOGO AO DE ESCRAVO POR JORNADA EXAUSTIVA Otrabalhoconsideradoanlogoaodeescravoquandopresentesascondies previstas no artigo 149 do Cdigo Penal Brasileiro. Com a nova redao dada ao art. 149 do CP pela Lei n.10.803/2003, ficou delimitado queparaqueexistaaconfiguraodotrabalhoanlogoaodeescravo,apessoadeveser submetidasseguintescondies:trabalhosforadosouajornadaexaustiva;condies degradantesdetrabalho;ousersubmetidarestriodesualocomooemrazodedvida contrada com o empregador ou preposto. So estas as formas vinculadas pelo legislador para a prtica do injusto penal. Ashipteseselencadassoproposiesalternativas,bastandoconfigurar-seapenas umadelasparaaconformaoaotipopenalexpressonocaputdoart.149doCP.Todasas alternativasrepresentamformasdeabusoedesrespeitoaotrabalhohumano,afrontaao princpio e fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, como expresso no art. 1, incisos III e IV da Constituio Federal, afinal: ACFinstituiuumanovaconcepodeEstado oEstado DemocrticoeSocialde Direito e o adotou como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Dignidadepersonificadanosobjetivosperseguidospelanovaordemimplantada, comoosdaconstruodeumasociedadelivre,justaesolidria,daerradicaoda pobrezaemarginalizao,dareduodasdesigualdadessociaiseregionais,assim como nos princpios da inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, seguranaenosdireitossociaiseconmicosaliprevistos.(ROCHA;SANTIAGO, 2012, p. 209). Deve-selevaremconsideraoqueadenominadaescravidocontempornea 3no se configura nos moldes daquela vigente outrora, ligada ideia de navios negreiros, senzalas e escravosacorrentados.Talcomparaoacabadificultandoocombatenovaformade explorao do trabalho humano, levando at mesmo a uma falta de sensibilizao ao contexto das novas maneiras de abuso sobre o labor do homem (SILVA, 2009). Assim, preciso compreender o problema do trabalho anlogo ao de escravo dentro do contexto social atual e das novas relaes de trabalho.Ressalte-sequeaescravidocontemporneamaissutil,nosentidodequea restrio liberdade no se configura apenas na ideia literal de impedimento de ir e vir, mas tambmemummbitomaisamplo,queserefereexatamenteaosdiversosaspectos econmicosqueenvolvemaquelequeestsubmetidoatalcondio,caracterizadapela impossibilidade de escolha. Apenas livre aquele que pode escolher. A privao da liberdade pode decorrer de restrio de meios, impossibilitando que algumas pessoas consigam alcanar ummnimodoquedesejariampelaausnciadeoportunidadesprimrias,sujeitando-sea situaesdetrabalhodegradanteseextenuantescomoformadesobrevivncia(SEN,2000). Logo,aquelequetemasualiberdadeedignidadevioladastratadocomocoisa,havendo, portanto, a desmedida explorao do ser humano, que usado como meio e no como um fim em si. Afirmava Kant (2008, p.276): Masumserhumanoconsideradocomoumapessoa,isto,comoosujeitodeuma razomoralmenteprtica,guindadoacimadequalquerpreo,poiscomopessoa (hommonoumenon)noparaservaloradomeramentecomoummeioparaofim de outros ou mesmo para seus prprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto , ele possui uma dignidade (um valor interno absoluto) atravs do qual cobra respeito por si mesmo de todos os outros seres racionais do mundo. [...]. 3 A expresso escravido contempornea utilizada para denominar o trabalho anlogo ao de escravo. Refere-se explorao do trabalho do homem no contexto social atual e das novas relaes de trabalho. Odesrespeitoliberdadeedignidadehumana,ultrapassandooslimitesque diferenciam as pessoas dos objetos em si, no se d apenas por meio da coao, mas tambm atravsdaviolaodosdireitosfundamentaisexpressosnaConstituioFederal,comoo direito ao trabalho digno. Esta conjuntura acaba impedindo o indivduo de se autodeterminar, estabelecendoigualmenteumasituaodereduoacondioanlogadeescravo.Afinal, quem por livre opo - e com outras possibilidades - continuaria, mesmosem impedimentos fsicosoucoao,atrabalharemcondiesdegradantesouexaustivas?Assim,paraa configuraododelitodoart.149doCP,precisoqueosujeitopassivoestejasubmetido quelas situaes especficas elencadas, e que no tenha domnio sobre si mesmo. 4
O tipo penal doart. 149do CP encontra-se presente no Captulo Dos Crimes contra liberdadeindividualnaSeoDoscrimescontraaliberdadepessoal.Suapresenanesta regiotopogrficadoCdigoexplica-seporumapreocupaodecorrentedaprpriahistria noqueserefereliberdadedohomem.Pormuitotempomuitoshomensforamreduzidosa objeto e privados de sua liberdade, eis que se admitia socialmente a escravido5.No entanto, com as modificaes no tipo penal, trazidas pela Lei 10.803/2003, a tutela penal inclinou-se mais para as relaes de trabalho do que para a liberdade, buscando amparar eprotegerotrabalhadordosdesmandosqueaatividadeeconmicapodeproporcionar. Avultou a preocupao com a dignidade da pessoa humana in genere.6 Antes da modificao trazidapelaleide2003,oartigo149tinharedaoimprecisaaoapenasexpressaremseu texto: reduzir algum a condio anloga de escravo. No especificava as hipteses de sua configurao,tutelandoaliberdadeindividual.Comaalterao,deu-seaespecificaodas condutas que configuram o delito em questo. Mais: alterou-se o mbito de proteo. Feitas tais consideraes relevantes e necessrias sobre o tema, ressalte-se que no se pretende esgotar o contedo de todas as hipteses previstas no art. 149 do CP. Analisa-se to-saquelaquesereferejornadaexaustiva,emseusaspectosquantitativosequalitativos. Aqueles concernem essencialmente ideia de tempo da jornada de trabalho; estes, forma e 4 Como exposto pela Ministra Rosa Webber em seu voto no INQ. 3.412/AL, a privao da liberdade e a afronta dignidadedapessoaocorremtambmquandoestatratadacomocoisaenocomopessoahumana,gerandoa violao de seus direitos bsicos, inclusive direito ao trabalho digno, colocando-a em uma situao em que no tem escolha, no pode se autodeterminar, j que no tem domnio sobre si mesma.5Ahistriatrazemdiversospontosaescravidodohomem.AescravidoeracomumnaGrciaantigaeno Imprio Romano. Ainda no perodo na colonizao da Amrica a mo de obra escrava foi vastamente utilizada. 6NestesentidosoosvotosdosMinistrosCezarPelusoeCarlosAyresBrittonoINQ.3.412/AL.Oprimeiro entendequeatuteladoartigo149 doCPfoideslocadaparaaproteoda dignidadedapessoanacondiode trabalhador, e o segundo expressa que independentemente de se apegar a uma interpretao baseada no indivduo ou no trabalhador, ou seja, mais ampla ou mais restritiva, a dignidade da pessoa humana encontra-se presente e penalmente tutelada. condies(constncia,magnitude,desgaste)emqueestetrabalhorealizado.7Portudo, preciso estabelecer e delimitar o que permitido em relao jornada laboral pela legislao brasileira. AConstituioFederalde1988estabeleceemseuart.7,XIII,ajornadanormalde trabalhoemoitohorasdiriasequarentaequatrosemanais.Contudo,noincisoXVIdo mesmo artigo, determina a remunerao do servio realizado aps as oito horas dirias, com adicionaldenomnimo50%sobreahoranormal,ouseja,possibilitando,portanto,horas extraordinrias de trabalho.O artigo 59 da CLT estabelece ainda, que a durao normal de trabalho de oito horas, poderserestendidapornomximoduashorassuplementares,desdequeexistaacordo escrito entre o empregador e empregado ou por meio de acordo coletivo de trabalho. AConstituioFederalaindaprevajornadadeseishorasparaotrabalhorealizado emturnosininterruptosderevezamento(art.7,XIV),orepousosemanalremunerado,de preferncia aos domingos (art. 7, XV), frias anuais remuneradas (art.7, XVII), dentre outras disposieselencadasnosdemaisdispositivosenoprprioartigoemcomento,coma finalidade de proteo e preservao da sade dos trabalhadores. Almdisso,aCLTpossuivriosartigoscomointuitodeproteoaotrabalhador. Entreestesimportantemencionaralgunsreferentesjornadadetrabalhoeaodireitode descanso do obreiro.Assim o art. 66 da CLT estabelece que haja um perodo mnimo de descanso de onze horas entre duas jornadas trabalhadas; o art. 71 da CLT elenca os intervalos intrajornadas que devem ser observados e o art. 129 da CLT dispe sobre as frias que devem ser concedidas ao trabalhador.Percebe-se que h a preocupao com o bem-estar do trabalhador, essencialmente com a sua sade, sejafsica ou mental, tanto na Constituio Federalcomo naCLT e nas demais legislaesinfraconstitucionais.Emparticular,talpreocupaorevelaqueashoras extraordinrias devem assumir o seu papel eventual e excepcional. importante,porm,quehajaumefetivocontroledajornadadetrabalhoedos descansoslegais,comafinalidadedeevitarirregularidadeseresguardarobem-estardo trabalhador. Comodemonstrado,possvelaotrabalhadorumajornadadeatdezhorasdirias, considerandosoitohorasnormaiseasduasextraordinriasadmissveis.Assim,otrabalho 7AsformasquantitativasequalitativassobemdemonstradasnoManualdeCombateaoTrabalhoem Condies Anlogas de Escravo do Ministrio do Trabalho e Emprego. emhorassuplementarespermitidodentrodoslimiteslegais,tendocomocontraprestao umaprestaopecuniria.Contudo,odescumprimentodasnormastrabalhistasgerara devidaresponsabilizaoeopagamentodaindenizaodevida,oqueporsis,no representa trabalho anlogo ao de escravo, mas descumprimento da legislao do trabalho. Ashorasextrasdesempenhadasnosoautomticosinnimodejornadaexaustiva. Nem sempre que ultrapassarmos o critrio quantitativo do tempo legal de oito horas dirias de jornada se configurar o trabalho anlogo ao de escravo, eis que admissvel a realizao de duashorasextrasdiriasnosparmetroselimitesestabelecidospelaCLT,bemcomoem casos de necessidade imperiosa por motivo de fora maior ou para atender a concretizao ou conclusodeserviosinadiveis,emcasosemqueasuanorealizaopossaocasionar manifesto prejuzo, como expresso no art. 61, caput da CLT. Entretanto,quandoajornadaexigiresforosalmdoqueacapacidadedohomem comumcapazdetolerar,ultrapassandoseuslimites,levando-seemcontaafrequncia,a intensidadeeodesgastegerado,oquepodeocorrer,mesmodentrodajornadalegaldeoito horas, haver a configurao de jornada exaustiva. Como dito, a anlise tambm qualitativa, no apenas quantitativa. exemplar a rea laboral atinente ao corte de cana: Aprodutividadeumdesafiodirio.Ocortedacanaumtrabalhosolitrio.O ganhodeterminadopelametragempelopesoepelotipodacanacortada.um clculo complexo, difcil deser entendido pelos trabalhadores que estohabituados lgica econmica do roado e do trabalho na terra. Na cana tudo diferente. No ar semprepairaasuspeitaderoubonasmedies,pormareclamaopodeimplicar advertncias,ganchosedemisses.Diantedesseriscosecalam.Nocorteos movimentosrequeremdestrezaehabilidade,osriscosdeacidentessograndes.O padro mnimo de produtividade das usinas para cada trabalhador de 10 toneladas decanapordia.Paracumpriressameta,ocorpoprecisaderesistnciafsica,daa necessidade de trabalhadores jovens nos canaviais.O ritmo de trabalho alucinante, os trabalhadores ficam no limite da sua capacidade fsica. (NOVAES, 2009, p.121). Omesmoseverificaemcasosdetrabalhadoresqueatuamnaextraodecarvo vegetal e so submetidos jornada extenuante devido intensidade do trabalho empreendido (VERAS;CASARA,2004),nosendonecessariamenteextrapoladoocritriotemporal, conquanto possa incidir concomitantemente ao critrio qualitativo. Ajornadaexaustivacaracterizaumacondiodegradantedetrabalho(RAMOS FILHO, 2008), atingindo a dignidade do trabalhador, no sentido de violar as suas limitaes fsicas e psquicas, que devem ser observadas dentro do contexto do trabalho digno. Afinal, o trabalho encontra sua base na Constituio Federal, e, portanto, deve ser lido sobre o prisma dadignidadedapessoahumana.Otrabalhohqueserdigno,poisdocontrriopromovea mitigao do valor fundamental do Estado Democrtico de Direito, ou seja, a prpria pessoa humana (MIRAGLIA, 2010). A jornada exaustiva se caracteriza pelo excesso de horas trabalhadas, bem como pelo esforoempreendido,quandolevaotrabalhadorexausto,aumesgotamentoqueo impossibilitademanterumavidaforadombitolaboral,prejudicandoasuasadeesuas relaessociais.Emtaissituaes,osujeitopassivododelitosubjuga-seaodomniodo sujeito ativo, de forma a no ter escolha, de no se autodeterminar.Logo, a coao para que este realize o trabalho em jornadasexaustivas, extenuantes, vem da falta de possibilidade de opo, como meio de manuteno de sua sobrevivncia. Em tal contexto, caso determinado ao trabalhadorqueobreporquinzehorassemintervalos,ataexaustototal,otrabalhadoro far.Noprecisoestarimpedidodesairdolocaldotrabalho,pormeiodeforafsica.A foraqueimperaeconmica:opta-seentrenoternadaouteropoucoquepermitaa sobrevivncia.Exemplares,paraalmdajornadaexaustiva,soaquelassituaesemqueo trabalhadorobrigadoacomprarsuacestabsicadealimentaodeseuprprio empregador, quase sempre por preos superiores aos praticados no mercado (GRECO, 2009, p.544),circunstnciaemqueacabaporsetransformaremumrefmdasuaprpriadvida, passando a trabalhar to somente para pag-la [...] (GRECO, 2009, p.544). Apreocupaoprotetivalaboralultrapassaarbitadodireitonacional.Atuam,no planointernacional,dasconvenesn.29en.105daOIT(OrganizaoInternacionaldo Trabalho), que tratam da erradicao e abolio do trabalho forado e obrigatrio, as quais o Brasilratificou.Resguardamotrabalhadordasflexibilizaescontratuaislaborais promovidas pelo capitalismo, com o intuito, atravs das formas de gesto, de atingir a mxima produtividade e o maior lucro, sacrificando a sade fsica e mental do trabalhador. Evitam-se tambm acidentes de trabalho, que levam morte ou a incapacidades fsicas.Feitas tais ponderaes, analisam-se os bens jurdicos tutelados pelo artigo 149 do CP no que refere jornada exaustiva. 2OSBENSJURDICOSTUTELADOSPELOART.149,CPQUANDOCOBE SUBMISSO JORNADA EXAUSTIVA Osbensjurdicosrepresentamdadosmateriaiseimateriais,quepossuemproteo legal,devidovaloraoquerecebemdosindivduosedasociedade.Muitosbensjurdicos possuemcarterpatrimonial,suscetveisdevaloraoeconmica.Outros,conquantode relevnciaparaoshomens,nosopassveisdeaferiopecuniria(PIERANGELI,2001, p.107-108). Noart.149doCP,aproteojurdica,noquesereferescondiesaque submetido o trabalhador por jornada exaustiva, dirige-se dignidade do trabalhador no mbito daorganizaodotrabalho,comomeiodetutelaracoletividadedetrabalhadores.A dignidadedapessoahumanarepresentaqualidadeinerenteaoserhumano,queofaz merecedor de respeito por toda coletividade e pelo Estado. Respeito sua integridade fsica e moral,atravsdeumaparatocompostopordireitosfundamentaisquelhepreserveme resguardem de qualquer ato degradante e desumano (SARLET, 2001, p.60). Ao indivduo, deve ser garantida uma vida digna, em que este possa se autodeterminar, participando ativamente do seu destino e do futuro da sociedade. Todosossereshumanos possuemamesmadignidade,nopodendoumsersubjugadoposiodemeroobjetode disposiodeoutro,pararealizaodeseusfins.Nestaperspectiva,abre-seaconcepoda dignidade da pessoa do trabalhador.Arealidadeeconmicabrasileiraestpermeadadaincidnciadestahiptesede violao.Nombitodotrabalhadorrurcola,jaludimosaosquecolhemcana-de-acar, carregadoscomogadoemcaminhesabertos,semnenhumasegurana,esubmetidosauma jornadaextenuante,quegeradoenaseatmesmoamorte(LOPES,2007).Noambiente laboralurbano,cite-seoexemplodaempresaZara,emSoPaulo,queseutilizoude bolivianoseperuanoscomomo-de-obraanlogaescravaemconfeces.Talcasoteve grande repercusso. Alm de se enquadrar nas demais hipteses previstas no art. 149 do CP, a jornada exaustiva era constante e flagrante, eis que os operrios da costura trabalhavam at 16 horas dirias (PYL; HASHIZUME, 2011). Ofatoqueasformasdegestoempresarial(desdeasmaisantigasproposiesda administrao de empresas, como o fordismo ou o taylorismo) em busca do lucro desmedido ultrapassamsempudoresolimitepondervel,suportvelelegaldajornadadetrabalho, afrontandoadignidadedapessoahumananasuacondioexistencialdetrabalhador. Ceifando da sua vida a sade, a convivncia familiar e social.No h dvida da importncia do trabalho na vida do homem, mas do trabalho digno. Aquele que lhe garante as condies mnimas de uma vida digna, eis que o prprio trabalho fundamental para tal finalidade. AprpriaConstituioFederalestabelecenoart.1,incisosIIIeIV,adignidadeda pessoahumanaeovalorsocialdotrabalhocomofundamentosdaRepblica.Proclamano art.170,comofundamentodaordemeconmica,avalorizaodotrabalhohumano,coma finalidadedeasseguraratodosaexistnciadigna.Logo,nohexistnciadigna,sem valorizao do trabalho, que, portanto, h que ser digno tambm. Adeclaraodosdireitoshumanosde1948estabeleceodireitoaotrabalho,a condies justas e favorveis de trabalho, bem como, de livre escolha de emprego. E vai alm, aodeterminardireitoarepousoelazer,limitesrazoveisdejornadadetrabalhoedefrias peridicas remuneradas. Nestaconjuntura,acoletividadedetrabalhadoresdestinatriodatuteladobem jurdicoorganizaodotrabalho(GUARAGNI,2010).Defende-seadignidadedos trabalhadoresenquantoconjunto,vezqueconstituemapartemaisfracanarelaolaboral. Dentrodestaperspectiva,pode-sefazerumacomparao,edizerqueadignidadepossui mbito individual e coletivo: cada ser humano nico e, portanto, titular de direitos prprios, mas a dignidade humana transcendea pessoa considerada particularmente, abarcando todo o corpodecidadosobreirosempotncia.Logo,entende-sequeohomemtrabalhador, submetido condio anloga de escravo, um todo parte, eis que a parte de um todo, fazendoumasingelaanalogiaaopensamentodeCarlosAyresBrittonoqueconcernea dignidade da pessoa humana (BRITTO, 2007). Desse modo, a conduta que reduz o trabalhador a condio anloga de escravo atinge direitosconstitucionaisfundamentais.Assim,conformeentendimentodoSupremoTribunal Federal,acondutaqueviolaasinstituiesquegarantemosdireitosdostrabalhadoresde formacoletiva,lesionaaorganizaodotrabalhonocomponenteaoqualsedestinaa proteo,ouseja,ohomemtrabalhador,quandopraticadanombitodasrelaeslaborais, indo de encontro ao princpio da dignidade da pessoa humana.8 8ComodemonstradonoVotodoMinistroJoaquimBarbosanoRE398041/PA,aorganizaodotrabalho deveabarcartambmoelementohomem,entendidodeformaampla,noqueserefereprincipalmentesua liberdade, autodeterminao e dignidade. Nasuma:ocrimedereduocondioanlogadeescravoumcrime pluriofensivo,vezqueabrangemaisdeumbemjurdico.Primordialmentetutelaa organizaodotrabalho,protegendoaindaaliberdadeeaprpriadignidadedapessoa humana. 3 O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO Emrelaoaoconsentimentodoofendidodistingueadoutrinatradicionalmente, entreumconsentimentoexcludentedatipicidadeeoutrojustificante(excludentede antijuridicidade)(ZAFFARONI,etal.,2010,p.237).Dentrodesteentendimento,o consentimentoexcluiriaaantijuridicidadequandoaoposiodavontadedavtimano constitui elemento do tipo legal e excluiria a tipicidade quando a conduta tpica est expressa no delito e exercida contra a vontade do titular do bem jurdico9 (ZAFARONI, et al, 2010).Nestaperspectiva,oconsentimento,comocausadeexclusodetipicidade,podese configurardeduasformas:quandootipopressupeodissensodavtima;paraintegr-la, quandooassentimentodavtimaconstituielementoestruturaldafiguratpica. (BITENCOURT,2013,p.407).ExistemalgunscasosdentrodaparteespecialdoCdigo Penalquepodemexemplificaredemonstrartalsituao.Naprimeirahiptese,tem-seo dissenso da vtima, como o caso do art. 150 do Cdigo Penal, que corresponde ao delito de invasodedomiclio.Estetipoprevacondutadeentraroupermanecerdentrodacasado titular do bem, contra a sua vontade expressa ou tcita. Na segunda hiptese, o consentimento davtimaconstituiverdadeiraelementardocrimecomoocorria,porexemplo,norapto consensual (art. 220, tambm j revogado) e no aborto consentido (art. 126). Nesses casos, o consentimento da vtima elemento essencial do tipo penal (BITENCOURT, 2013, p.407) e, naturalmente, integra-o, ao invs de exclui-lo. Paraalmdeeventualatipicidadelegal,oinstitutoemquestoconstituiriasempre segundo a orientao tradicional em destaque - causa supralegal de excluso da ilicitude penal (logo,noreferidanalei),porafastaralesividadeenquantocontedomaterialdeinjusto 9 Atravs da categoria da tipicidade conglobante, Zafaroni d peculiar tratamento questo do consentimento do ofendido,excludentedaconflitividadeentreopragmacomportamentoconcretonomundoeobemde proteo, ipso facto, excludente da prpria tipicidade. (SANTOS, 2004).De fato, atravs do consentimento do titular, h renncia proteo penal sobre o bem, desde que no defeso o espao de disponibilidade (SANTOS, 2004).Todavia,opensamentotradicionalesbarranaideiadequeaverificaodalesoao bemjurdico,provocadapelocomportamentodelituoso,realizadanotipo,segundoo sistema analtico de crime atual. nele que se revela a conflitividade entre o comportamento concretamenterealizadoeobemdeproteo.Nestestermos,sendovlidooconsentimento doofendido,nohestaconflitividade.Daresultaatipicidadematerial,paraalmdas situaesemqueoconsentimentoexclua,porventura,atipicidadeformalobjetiva.Bempor isso,ClausRoxinapresentaocorretoentendimentodequeoconsentimentorealtemefeito somentedeexcludentedetipicidade,eisquerepresentariaexerccioconstitucionalda liberdadedeaodotitulardobemjurdico(ROXIN,1997).Nestassituaes,otitularda proteopenalrenuncia,porautocolocaoemperigoouaceitaodaheterocolocaoem perigo, ao campo de proteo que o tipo lhe confere. Isto exonera de tipicidade as condutas de quem participa na autocolocao em perigo alheia ou daquele que coloca sob risco o titular do bem jurdico. Deumououtromodoeistoquesedevefrisar-,oconsentimentodoofendido afasta o injusto penal, por falta de contedo material.Paravalidadedoconsentimentodoofendidoprecisoauferiracapacidadedotitular do bem jurdico, seu discernimento e compreenso em relao ao significado e da amplitude do ato consentido, bem como das consequncias que dele decorrem.Quantocapacidadeinabstracto,admissveloconsentimentodoofendidoapartir da maioridade civil, ou seja, a partir dos 18 anos de idade. Afirma Jakobs (2008, p.352): [...] noquedizrespeitoaoreconhecimentodacapacidadededisposio,oDireitoPenal permanecevinculadoaoDireitoCivil,porquecasocontrrio,seriafaticamentepossvel,por meiodeumconsentimento,atingirjustamenteumresultadoquenopodeseratingidopelas regras jurdico-negociais. Tal orientao deve ser firmada como regra geral.Entretanto,noserejeitaaideiaqueoindivduoaquiescente,antesdecompletar18 anos, adquira a plena capacidade de compreenso dos fatos e, portanto, de consentir. Compete aomagistradonestacircunstnciaanalisaravalidadedoconsentimentodentrodecadacaso concreto(PIERANGELI,2001).Istosedemreasdavidanasquaisnoseobtmuma espcie de burla validade das regras jurdico-civis negociais. Pari passu, existem mbitos de consentimentoprpriosdeincapazes,mesmonombitocivil:nosenega,socialmente,que adolescentesmenoresde18anosdisponhamdesuasliberdadesambulatriasparausarem transportes coletivos. No respectivo uso, d-se uma relao de consumo (lato sensu, jurdico-civil). Quantoaoincapaz,aprerrogativaparaconsentirdospaisouresponsveis, excluindo-seasquestesrelativasadecisesexistenciaisouligadasapersonalidade (SANTOS 2004). De outra parte, requer-se tambm uma capacidade em concreto: no basta o indivduo termaturidadeetriaesanidadementalparaqueseuconsentimentosejavlido.Afinal, possvel que seja capaz em geral para expressar consentimentos, mas, na situao em que est concretamenteenvolvido,notenhacompreensooualcancedoobjetosobreoqualrecair seuconsentimento.Assim,porexemplo,podeserquepessoa,capazdeconsentimentoem geral, se submeta a testes laboratoriais no compreendendo os previamente anunciados efeitos nocivos neurofuncionais que seriam porventura produzidos no seu organismo. Tal situao pode derivar de circunstncias comuns, como a pura e simples ignorncia, falta de domnio de vocabulrio,analfabetismo,etc.E,nohavendocompreensoadequada,peloconsenciente, acerca do objeto consentido, a categoria dogmtica do consentimento do ofendido no produz efeitos. Alm disso, deve-se verificar se a vontade do aquiescente se manifesta de forma livre, afastando-se de eventuais defeitos de vontade, por meio de erro, fraude ou coao. Assim: O consentimento deve, ademais, achar-se livre de vcios de vontade (engano, erro e coao) de sorte que, por exemplo, o consentimento de um recluso de um campo de concentrao nazista em sua castrao resultar ineficaz [...] (JESCHECK, 1981, p.522). A liberdade de vontade, comopressupostodevalidadedoconsentimento,adquirepapelrelevantenotemadas jornadas exaustivas. Este papel ser adiante abordado. Verifica-seainda,queoconsentimentodeveserpreferencialmenteexpresso, perceptvel e claro. O consentimento expresso pode-se dar das seguintes formas: por meio de comunicaooral,realizadadeformadiretaentreoaquiescenteeoagente,oupormeiode terceiros;podesermanifestadopormeioescritoeporqualqueratoqueotorneclaroe perceptvel(PIERANGELI,2001).Logo,oconsentimentodeveserclaro,eidentificado externamentedealgumaforma,poisquehojeserequerqueoconsentimentotenhasido reconhecvelexternamentedealgummodo,semque,todavia,seapeleaosparmetrosdo direito civil sobre a declarao de vontade [...] (JESCHECK, 1981, p. 521).Ainda, deve-se observar que o agente s estar amparado e isento de responsabilidade penalnaformaelimitesestabelecidospeloconsentimento.Trata-sedorequisitoda correspondnciaentreoconsentidoeorealizado.Ressalte-setambmqueseexistirmaisde umtitulardobemjurdico,todosestesdeveroconsentir,paraqueoconsentimentoseja vlido. O consentimento deve ainda ser anterior conduta do agente, pois quando se d aps a prticadacondutatornar-sesemimportncia,nombitododireitopenal.Arazode ordemlgica.Nosepodeconsentircomalgoquejfoirealizado,simplesmenteanuir.O consentimento presume uma tomada de deciso prvia ao fato. [...] (BUSATO, 2013, p.515-516). Resumidamente,tem-sequeparavalidadedoconsentimento,otitularouostitulares do bem jurdico, que manifestam o consentimento, devem possuir pleno entendimento do seu atoedasconsequnciasdomesmo,possuindo,portanto,plenacapacidadeinabstractoetin concreto. Alm disso, o bem jurdico deve estar no mbito de disponibilidade do seu titular aspectoquesermelhorexploradoadiante-,acondutatpicaconcretizadadevesera consentida e tal manifestao deve ser livre de vcios de vontade (TOLEDO, 1994). Nota-seaindaapossibilidadedoconsentimentopresumido,dentrodocontextode determinadascircunstncias(OLIVEIRA,2008,p.1587).Acondutadoagente,baseadano consentimento presumido do titular do bem jurdico de forma geral, uma ao fundamentada nointeressealheio,masadmite-setambmaideiadeaonointeresseprprio(SANTOS, 2004). Logo, pode se basear na ideia de que o titular do bem jurdico consentiria se indagado, ouainda,queoconsentimentopodeserconseguido,masnosefaznecessrio10(SANTOS, 2004). Quanto ao requisito da disponibilidade do bem jurdico, central para o texto, far-se-o consideraes a seguir. 10 Tal como demonstrado por Juarez Cirino dos Santos, utilizando como exemplo no primeiro caso uma cirurgia urgenteemvtimainconscientedeacidente,enosegundo,oexemplodaentradaemcasaalheiaparaapagar incndio. 4ADISPONIBILIDADEDOBEMJURDICOCOMOCRITRIODEVALIDADE DOCONSENTIMENTODOOFENDIDOESUAAUSNCIAEMRELAO JORNADAEXAUSTIVACOMOFORMAVINCULADADEREALIZAODO ARTIGO 149, CP Paraqueexistaapossibilidadevlidaeeficazdedisposiodeumbemjurdico atravs do consentimento do ofendido, de forma a afastar a responsabilizao penal, preciso estabelecer um parmetro que o autorize.Nestesentido,construiu-seoentendimentodanecessidadedeumcritriopara determinar a disponibilidade ou indisponibilidade do bem jurdico. O primeiro critrio que se deve mencionar o critrio do balanceamento dos interesses ouequivalnciadosinteresses.EstateoriasurgiunocomeodosculonaAlemanha (PIERANGELI,2001).Contudo,apresenta-semaisadequadaquandomaisdeumbem jurdico tutelado pela norma incriminadora (crimes complexos), v.g., oroubo e aextorso. Isto se deve porque o tipo no traduz dois interesses, um disponvel e outro indisponvel, mas simumquepreponderanasituaocomaqualsedefronta.(GONTIJO,2000).Logo,a validadedocritrioconsideradarelativa,poisapesarderevestidoderelevncia,estese apresenta insuficiente. Almdisso,constata-sequeparaaanlisedoaludidocritrio,existeautilizao significativadecritriossubjetivosdevalorao.Entretanto,estaponderaodeveocorrer sobre determinados limites, porque o juzo individual deve ser ponderado frente ao interesse coletivo no que se refere defesa dos bens jurdicos. (JESCHECK, 1981, p.516): Outrocritrioutilizadoparaseauferirdisponibilidadeaquelequeserefere utilidadesocialdobem.Obemjurdicoconsideradodisponvelquandoestenoapresenta imediatautilidadesocial,reconhecendooEstadoexclusividadedeseuusoegozoao indivduo. Todavia, quando o bem de imediato demonstrar a sua utilidadesocial, este bem indisponvel (PIERANGELI, 2001). Verifica-se que h neste sentido, um modo mais comum de expressar tal diferenciao, levando-se em conta se o bem de interesse individual ou coletivo. Dentro desta perspectiva, aquelesbensconsideradosdeinteresseindividualrevelamumcartereminentementedeum bemdisponvel,enquantoosbensconsideradoscoletivosapresentamafeioda indisponibilidade. Logo,precisodelimitaroqueseriabemjurdicodeinteresseindividualede interesse coletivo. Obemjurdicodeinteressecoletivocorresponderiaquelesbensqueso determinantes e relevantes para coletividade. Apresentando-se, portanto, como imprescindvel paraaconformaosocial,sendoquesualesocomprometeriatodoosistemasocial,pois estes so essenciais para a vida em sociedade. Os bens de interesse particular seriam os demais bens, que estariam a princpio, no rol dosbensdisponveis,podendoserdispostosporseutitular,dentrodoslimitesdaadequao social estabelecida pela sociedade11. Ainda, tal disposio do bem, no poderia comprometer ocontidonaordemconstitucional,taiscomoseusprincpiosedireitosfundamentais. Todavia,talcritriosemostrafalho,namedidaemque,dentrodestaperspectiva,existem bensjurdicosindividuaisquesoconsideradospeloordenamentojurdicobrasileirocomo indisponveis, como o caso da vida. A vida um bem jurdico do qual o sujeito submetido legislaobrasileiranopodelivrementedispor.Basta,paraademonstraodisso,a incriminao das hipteses de ortotansia sob a forma de homicdio privilegiado e de auxlio, instigaoeinduzimentoaosuicdio,aindaqueestenoseconsume.(BUSATO,2013,p. 515).Ainda h a forma de distinguir os bens disponveis dos bens indisponveis baseada no direitoprocessual.Assim,quandoodelitoemquestoforsubmetidoaopenalpblica incondicionada,haveriaasuposiodequeestebemindisponvel.Emcontrapartida,no casodeumcrimeserapuradoporaopenaldeiniciativaprivada,obemofendidoseria presumidamenteumbemdisponvel.Entretanto,talmeiosemostrafalho,eisqueomodo utilizado para determinar se a ao ser pblica incondicionada, condicionada a representao ou privada, um critrio de oportunidade (PIERANGELI, 2001).Logo,verifica-sequenohcomoelegerentreoscritriosestabelecidos,umquese mostre suficientemente seguro para se determinar a disponibilidade de um bem jurdico.Por outro lado, a partir do conceito do bem jurdico tutelado penalmente sustentando, porexemplo,porZaffaroni,pode-seconcluirquenoexistembensjurdicosindisponveis. Talvez seja a melhor sada para o problema. O professor platino esclarece que bem jurdico penalmente tutelado a relao de disponibilidade de um individuo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificao penal de condutas que o afetam (ZAFFARONIePIERANGELI,2007,p.399).Assim,oautorentendequenohbem 11 Pelo princpio da adequao social possvel as mes colocarem brincos em seus bebs, ou as pessoas fazerem tatuagens, apesar de constiturem leso corporal, a conduta adequada socialmente, admitida pelo corpo social. indisponvel,sendotodososbensjurdicosemcertamedidadisponveis.Afinal,oquese protege em todo e cada bem jurdico, a prpria relao de disponibilidade entre um sujeito e umobjeto.Hqueseafastaraconfusoestabelecidaentreadisposiodeumbemporseu titular com a faculdade de destruio. Diz Zaffaroni (2007, p. 400): Uma crtica muito freqente afirma que h bens jurdicos que no so disponveis, o que se pretende demonstrar nos casos dos bens jurdicos vida e Estado. Antes de mais nada, esta objeo parte da crena de que s se pode dispor ilimitadamente, porqueconfundedisposiocomfaculdadededestruio.Ansparecebvio que a destruio um limite da disposio e, alm do mais, muito estranho e pouco usado.Identificaratodedisposiocomatodedestruioprpriodeuma concepojurdicaquecorrespondeaodireitocivilquiritrioouaoEstadoliberal entendidocomoEstadogendarme.NoEstadosocialdedireitocontemporneo, esta identificao no tem cabimento. Sendoobemjurdicoumarelaodedisponibilidade,parececlaroquenohbem indisponvel.Todavia,existemformasdedisposiovedadasemlei.OEstadocircunscreve um campo de disponibilidade mais ou menos elstico para que o titular faa uso de umente oucoisa.Assim,sedeumladonohbemindisponvel,poroutroarelaode disponibilidade tampouco sempre assegurada em plenitude pelo ordenamento jurdico. DaquiderivaadiscussodosmotivospelosquaisoEstadopodelimitarcamposde disponibilidade do indivduo, sobretudo no marco da equao liberal, em que o Estado existe para o indivduo, e no o avesso. Sem esgot-los, pode-se afigurar, de partida, dois grupos de casos: a) situaes em que a limitao da disponibilidade diz com a preservao de interesses supraindividuais,semqueistoseconfundacomointeressedoEstadoenquantopessoa jurdica (serve, aqui, distinguir entre interesses pblicos primrios, que permitem a limitao darelaodedisponibilidade,esecundrios,aprincpioimprpriosparafundamentarema limitao,salvoquesecoloqueemxequeaprpriaexistnciadapessoajurdicadedireito pblico);b)situaesemqueaagnciaestatalemiteordenamentojurdicolimitadordo mbitodedisponibilidadeindividualtendoemcontafragilidadesdoprprioindivduo. certo que, aqui, um Estado paternalista pode sofrer crticas e sua interveno no se mostrar legtima.Inclusive,umpaternalismoexacerbadoconduzquebradaequaoliberale, portanto,amodelosautoritriosdeEstado.Porm,inadequadaarecusadetodaa interveno estatal limitadora da disponibilidade do titular em relao ao ente, desde que haja efetiva necessidade de proteger o indivduo de si mesmo, por exemplo, quando portadores de psicopatologiasqueosconduzamaexporem-sediantedeperigos,ouparacompensar situaes em que a posio do indivduo desinformada (faltando-lhe adequada compreenso doobjetodeaquiescncia)ouseucampodedisponibilidadeestejatoconstritoquea liberdade de vontade esteja diante de gargalos intransponveis (ausncia de vontade livre). Neste segundo grupo de casos, inserem-se os limites relao de disponibilidade entre osbensjurdicostuteladosnoart.149doCPeseustitulares.Defato,arelaode disponibilidadedobemjurdicoorganizaodotrabalho,quetemcomodestinatrioa coletividade dos trabalhadores, limitada. As proibies contidas no art. 149, CP, no recuam diantedaaceitao,porpartedotrabalhador,gruposdetrabalhadoresourgosde representaonosentidodeaceitaremtrabalhoforado,submissojornadaexaustiva, condiesdegradantesdetrabalhoourestriodelocomoo.Tudoderivadoordenamento jurdico trabalhista assegurar direitos sociais vista: a) da eventual ignorncia do trabalhador emrelaoscondieslegaisdelaborsquaissesubmete;b)danecessriaposiode hipossuficinciadoobreiroanteoempregador,premidopelarealidadeeconmicaque condiciona seu acesso ao consumo de bens e servios efetiva entrega das energias do corpo ao detentor dos meios de produo, mediante salrio. Portanto,nohquesefalaremvalidadedoconsentimentodavtimanashipteses mencionadas,porseultrapassaroslimitesdedisponibilidadeimpostospelocorposocial atravsdoseuordenamentojurdicoaosbensjurdicospenalmenteprotegidospresentesno art. 149 do CP. Quando a Constituio, no art. 7, incisos XIII e XIV, ressalva a possibilidade deacordoscoletivosdisciplinaremasmatriasrespectivasjornadadiriaeturnosde trabalho,f-lodentrodolimitedehorassemanais,apenasconcedendocampode disponibilidadeemrelaosmecnicasdecompensaodejornadas.Veja-seoprecedente judicial do TRT da 15 Regio: Minutosqueantecedemousucedemjornada.Previsocoletivadetolernciade20 minutos.Inexistnciadevantagememcompensao.Nulidade.Nadaobstantea negociaocoletivaencontreseupermissivolegalnosincisosXIVeXXVIdoart. 7 da Constituio Federal, aautonomia conferida aos sindicatos tem limites nalei, especificamentenoart.58,1queestipuloucincominutoscomotolernciapara anteceder e suceder a jornada, pois a entidade profissional no conserva soberania a pontodevulnerardireitosmnimos,asseguradosconstitucionalmente,excetose apresentarumbenefcioouvantagemcomocompensao.Inexistindonosacordos coletivos qualquer benefcio ou vantagem para adoo de 20 minutos como limite de tolernciaparaantecederousucederajornadadetrabalho,nosepodeconsiderar vlidaareferidaclusula.Recursoordinrioprovidonesteaspecto.(TRT,15 Regio;3Turma,Proc.n.01120-2003-012-15-00-3,Rel.juizLorivalFerreirados Santos. DJSP 19/8/2005.) (BARROS, 2007, p. 241). ReportadoprecedentedestacadoporAlexandreReisPereiradeBarros,queaps afirma, quanto aos acordos coletivos de trabalho, que no so renncias consentidas: [...] alm da verificao da existncia de transao e no mera renncia a direitos, motivadapelaconstanteameaadedemissesemmassaporpartedascategorias econmicas , preciso verificar se a conveno ou o acordo coletivo expressam, de fato,avontadedacategoriaprofissional,manifestadaatravsdasrespectivas assemblias, pois esse esprito do princpio da autonomiada vontade coletiva, to valorizado pelo texto constitucional (arts. 7, inciso XXVI, 8, incisos III e VI e 114, 1 e 2). (BARROS, 2007, p. 241). Portodooexposto,restaclaroquetalfatonodependedanaturezaindividualou coletivadobem.Caracterizadaajornadaexaustivadentrodosparmetrosquantitativose qualitativospropostos,nohquesefalaremconsentimentodoofendidocomocausade excluso do injusto penal, eis que presente a conformao da figura tpica expressa no art. 149 doCPeailicitudedaconduta,poisquehaultrapassagemdoslimitesimpostosa disponibilidade do bem jurdico organizao do trabalho. Poder-se-iapensarnapossibilidadedequeoconsentimentodavtimaemrealizar horasextrascomadevidacontraprestaopecuniriaresultassenoafastamentodoinjusto penal. Contudo, s possvel a realizao de horas extras mediante a devida remunerao na formaestabelecidaemleieapenasnestamedida.Ultrapassando-seolimiteconsiderado legalmenteaceitvel,entra-senombitodajornadaexaustivae,portanto,configura-seo delito e a conduta ilcita. Assim, a realizao de horas suplementares alm daquelas previstas na legislao com oconsentimentodotrabalhador,mesmocomcontraprestaopecuniria,caracterizao trabalho em condio anloga ao de escravo. Tal consentimento, no tem a fora de afastar o injustopenal,poissepretendeaquitutelaraorganizaodotrabalhoquetemcomo destinatrio da proteo a coletividade dos trabalhadores, resguardando ainda a sua dignidade e liberdade. Consequentemente protege-se o obreiro em seu bem-estar, sade fsica e mental. Possibilita-seaostrabalhadoresoconvviofamiliaresocial.Ajornadaexaustivaretiratal possibilidade, afrontando a dignidade do trabalhador e lesionando a organizao do trabalho. 5 CONSIDERAES FINAIS Otrabalhoemcondiesanlogasaodeescravorealidadepresentenasociedade brasileira, constatando-se sua presena no campo e nos centros urbanos. Com o intuito de prevenir e evitar a submisso dos trabalhadores a condies anlogas de escravo, o direito penal chamado a intervir.Assim se encontra presente no corpo do Cdigo Penal, especificamente no art. 149, o tipopenalquedisciplinaenomeiaassituaesouhiptesesquecaracterizamotrabalhoem condio anloga de escravo. O artigo de lei em questo sofreu modificaes significativas comaLein.10.803/2003,queestabeleceuasquatrohiptesesdeconfiguraodotrabalho anlogoaodeescravo,quaissejam:trabalhosforados,jornadaexaustiva,condies degradantes e restrio de locomoo. Dentrodestevastocampodeanlise,opresentetrabalhodedicou-seaopontoda jornada exaustiva, observando-se que:a)ajornadadetrabalholegaldeoitohorasdiriasequarentaequatrosemanais, havendoapossibilidadedarealizaodeduashorasextrasdirias,desdequehajaadevida contraprestao pecuniria, com adicional de no mnimo 50% superior ao da hora normal;b)vriosdispositivoslegaisvoltadosaassegurarodescansoeconsequentementea sade do trabalhador;c)adelimitaodajornadaexaustivadevetercomobasecritriosquantitativose qualitativos;d)ocritrioquantitativorefere-sequantidadedehorastrabalhadas,tendocomo limite, a jornada diria legal permitida composta com as horas suplementaresadmitidas pela legislao;e)ocritrioqualitativovolta-seintensidade,frequnciaedesgastegeradopelo trabalho desenvolvido dentro da jornada laboral.Resumidamente, quando se ultrapassar os limites e condies legais e suportveis pelo homem, levando-o ao total esgotamento fsico e mental, restar presente a jornada exaustiva e consequentementeotrabalhoemcondioanlogadeescravo.Nestasituao,atinge-sea dignidade do trabalhador. A restrio do convvio social e familiar, lado a lado com as ofensas dasadefsicaepsquica,retiram-lheoautopertencimento.Otrabalhadorreduzidopelo agente agressor a um simples meio de obtenode seus fins. Ambientescom tais contornos, porfim,transcendemoobreiroatingidodemodoaalcanaraprpriaorganizaodo trabalho, lesando-a. Aseuturno,oconsentimentodoofendidopodelevarexclusodoinjustopenal, desdequeoconsentimentoestejadentrodeummbitodedisponibilidadejuridicamente admitido, vez que esta no ilimitada. Porm,obemjurdicopresentenoart.149doCPquecompreendeaorganizaodo trabalho, tem como destinatrio da proteo a coletividade dos trabalhadores, o resguardo de seus direitos sociais, no havendo possibilidade de validar o consentimento do trabalhador em submeter-seajornadasexaustivas.Oordenamentolaboraldelineiaoslimitesdajornadade trabalho para:a) evitar a explorao do obreiro que ignora seus direitos sociais (falta de compreenso do objeto da aquiescncia);b) compensar a circunstncia de liberdade constrita que obriga o trabalhador a curvar-se s condies constantes de sua relao de emprego como forma nica de acesso imediato, mediante salrio, ao consumo de produtos e servios (vontade no livre). 6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BARROS,AlexandreReisPereirade.Oslimitesnegociaocoletivaeadenominada flexibilizaodosdireitostrabalhistas.InMeritum.BeloHorizonte,v.2,n.1,jan./jun. 2007. BAUMAN, Zygmunt. Globalizao: as consequncias humanas. Traduo: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 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