A CONSTITUIO DO LUGAR DA MORADA
EM TERRA DE REFORMA AGRRIA1
Viviane Santi Martins2
Renata Menasche3
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo sistematizar e apresentar alguns dos resultados da
investigao realizada enquanto dissertao de mestrado, que se props a analisar a
constituio do lugar da morada de famlias rurais em contexto de assentamento da
Reforma Agrria. O lugar da morada apreendido como locus em que se desenvolve a
dinmica familiar, incluindo a casa e o entorno prximo, com o ptio, o jardim, a horta e
o arvoredo. O trabalho mostra que os colonos assentados passam pelo processo de
constituio do lugar da morada no novo espao, trajetria que permeada pela
reconstruo da prpria vida em um novo contexto. A constituio do lugar da morada
desenha-se a partir do estabelecimento de laos afetivos com a nova terra, em que o
espao, percebido como estranho, torna-se, no curso da vida, o lugar de viver. As
construes e seu entorno revelam um sistema de valores que reflete a organizao da
existncia desses agricultores, por meio da atualizao dos modos de morar, entendidos
como textos da cultura, que falam sobre a famlia e a moral camponesa. Este estudo foi
desenvolvido por meio de pesquisa qualitativa, de cunho etnogrfico, realizada em
2008, no assentamento So Virglio, situado no municpio de Herval, Rio Grande do
Sul.
Palavras-chave: habitao rural; campesinato; espao/lugar; assentamento da Reforma
Agrria.
1 Trabalho submetido discusso no IV Simpsio sobre Reforma Agrria e Assentamentos Rurais,
realizado em Araraquara (SP), de 9 a 11 de junho de 2010.
2 Arquiteta e Urbanista. Mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (PGDR/UFRGS). E-mail: [email protected]
3 Doutora em Antropologia Social. Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), vinculada ao
Bacharelado em Antropologia e ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS),
professora do Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PGDR/UFRGS). E-mail: [email protected]
Introduo
Neste trabalho, busca-se apreender os modos de morar de famlias rurais no
contexto dos assentamentos da Reforma Agrria, por meio de uma perspectiva
multidisciplinar que compreende espao e lugar para alm de sua materialidade,
imergindo em suas significaes simblicas, permeadas pelo mundus campons. A
perspectiva adotada neste estudo compreende as famlias rurais por meio de sua
campesinidade (WOORTMANN, K., 1990), condio adjetiva que se manifesta na
dinmica dos modos de vida, evidenciada por uma teia complexa, em que terra, famlia
e trabalho so elementos centrais e esto imbricados entre si, de acordo com a
abordagem de Woortmann, E. e Woortmann, K. (1997).
Ao analisar a trajetria do lugar da morada com o objetivo de responder aos
questionamentos construdos na problematizao desta pesquisa, buscou-se
compreender como se deu sua constituio para o grupo pesquisado, o que informam os
ambientes que o compem e de que forma se atualizam os modos de morar ante a nova
realidade, representada pelo assentamento rural.
O campo emprico escolhido para tal investigao foi o Assentamento So
Virglio, localizado no municpio de Herval, na regio Sul do Estado do Rio Grande do
Sul, na fronteira com o Uruguai, onde foi possvel conviver com as famlias assentadas,
buscando apreender como percebem o processo de construo de seu lugar, a partir da
memria de sua trajetria, dos sonhos expressos e do universo lgico e simblico que os
orienta.
O municpio de Herval, situado na zona Sul do Estado, destaca-se por concentrar
o maior nmero de famlias assentadas na Regio Sul. De acordo com Soares e
Salamoni (2007), a zona Sul caracteriza-se por predominncia de latifndios,
tradicionalmente de pecuria extensiva, com fraca dinamicidade econmica nas ltimas
dcadas. Essa condio resultou em presses por parte do MST, vindo a regio a tornar-
se uma das mais importantes para a implementao da Reforma Agrria no Rio Grande
do Sul, especialmente a partir do final da dcada de 1980.
As famlias que passaram a habitar os assentamentos da zona Sul deslocaram-se
do Noroeste do Estado, especialmente da regio do Alto Uruguai, caracterizada por
prticas da agricultura familiar (SOARES; SALAMONI, 2007). Entre os colonos4
assentados em So Virglio, h uma diversidade tnica, sendo que em sua maioria so
descendentes de imigrantes alemes, italianos e poloneses. Seus municpios de origem
distam entre quinhentos a setecentos quilmetros do municpio de Herval, como
podemos observar na Figura 1.
Figura 1 Mapa ilustrativo do deslocamento dos assentados dos locais de origem para o Assentamento
So Virglio.
Fonte: Adaptado por Martins, V. (2009). Modificado de Abreu (2006).
No caso do assentamento So Virglio, as famlias dividiam-se, em sua maioria,
em dois grupos principais. Uma parte dos assentados era composta por pequenos
agricultores que viviam nas terras dos pais, cujas reas no permitiam a sobrevivncia
de todos, tornando necessria a migrao. Outro grupo formado por trabalhadores
4 Segundo Seyferth (1992, p.80), o termo colono tem sua origem na administrao colonial: para o
Estado, eram colonos todos aqueles que recebiam um lote de terras em reas destinadas colonizao.
Assim que, no sul do Brasil, reconhecem-se e so conhecidos como colonos os agricultores
descendentes de imigrantes europeus que vivem e trabalham na terra em unidade de produo familiar.
Para Woortmann (1995, p.16), O termo colnia designa tanto a parcela onde se realiza o trabalho
familiar quanto a regio ocupada por imigrantes e seus descendentes. Em qualquer de seus sentidos, o
termo se associa famlia e ao trabalho.
rurais que viviam sob o regime de agregao/parceria, ou seja, que residiam e
trabalhavam em terras de terceiros, sendo-lhes destinadas, para cultivo, reas em que
no era possvel o trabalho mecanizado.
A trajetria por que passam os agricultores sem-terra at a conquista do
assentamento inclui perodos de moradia em acampamentos, a maioria das famlias
relata a passagem por mais de um acampamento antes de conquistar a terra.
O assentamento foi dividido em cinquenta e um lotes, com rea mdia de vinte e
quatro hectares. Tambm foram demarcadas as estradas, a reserva legal em lote nico e
a rea da Sede do assentamento, incorporando as benfeitorias existentes para uso
coletivo, inscritas em quatro hectares. As estradas e a energia eltrica s chegaram
quatro anos depois da mudana para o assentamento. Supostamente por orientao das
lideranas locais do MST, a localizao das casas foi condicionada proximidade das
estradas, com o objetivo de reduzir custos no momento da instalao da rede de energia
eltrica.
No acampamento, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST
orientara os agricultores a organizarem-se em ncleos, em que reuniam-se, em sua
grande maioria, a partir de afinidades de vizinhana e parentesco. J no assentamento,
os agricultores dividir-se-iam em grupos para a distribuio dos lotes, respeitando o
sistema de ncleos utilizado nos acampamentos. Cabe ressaltar que, embora a
organizao espacial tenha sido orientada pelo sorteio dos grupos, os assentados que
hoje vivem em So Virglio identificam as divises espaciais pela teia de relaes
formada pelos laos de parentesco e compadrio.
Desde que o assentamento foi criado, no final do ano de 1998, algumas famlias
realizaram trocas de lotes entre assentamentos diferentes ou, ainda, dentro do prprio
assentamento, como estratgia para a recriao das redes sociais. Nesse processo, alguns
agricultores conseguiram reconstruir no assentamento parte de suas redes de parentesco.
O tecido social volta a ser tramado, e os casamentos entre filhos de assentados unem as
famlias, assim como os compromissos de compadrio, como ilustra a Figura 25.
5 As teias de parentesco aqui apreendidas traduzem apenas os laos parentais informados
espontaneamente pelos assentados, portanto no representam a totalidade da teia de relaes em So
Virglio.
Figura 2 Mapa ilustrativo dos laos de parentesco apreendidos em pesquisa no assentamento So
Virglio.
Fonte: Adaptado por Martins, V. (2009). Modificado de: Brasil, [2006?].
Entre as dificuldades relatadas pelos assentados, a distncia do local de origem,
especialmente dos familiares e amigos que no os puderam acompanhar, est impressa
em suas memrias, por vezes fragmentadas, e a distncia tem ecos de saudades de suas
experincias de vida. A Reforma Agrria representa, para os agricultores sem-terra, a
possibilidade de reespacializar a teia de relaes parentais (MARTINS, J., 2003) a partir
de diversas estratgias. No entanto, esse processo de reunir a famlia, quando possvel,
pode levar anos e, mesmo nos casos em que as famlias conseguem se reunir em uma
mesma regio, a natureza complexa das teias de relaes parentais resultar em uma
espacializao incompleta, em que sempre faltar algum importante.
Os assentados de So Virglio enfrentaram, ainda, a difcil adaptao s
diferenas regionais, que incluiu desde o aprender novos labores da terra at a insero
no novo universo simblico e cultural. A exemplo de outros assentamentos, sua histria
atravessada pela resistncia complexa trama de tenses (FERRANTE; BARONE;
BERGAMASCO, 2005, p. 38) da poltica de Reforma Agrria no Brasil, que expressa
as contradies e possibilidades da agricultura familiar diante do poder do grande
capital agropecurio e agroindustrial, no que se refere ao desenvolvimento social.
Sob esse contexto e por meio de investigao etnogrfica deu-se a anlise da
trajetria da constituio da morada, cujas complexidades perpassam a recriao dos
modos de vida sobre a terra conquistada. Nessa abordagem, destaca-se a percepo em
que espao e tempo so tramados. Assim que os eventos percebidos como relevantes
pelos agricultores compem uma cadncia de marcos espao-temporais que conformam
a constituio do lugar da morada.
Acampamento: Tempo de espera, espao de passagem.
O acampamento percebido, simultaneamente, como tempo de espera e espao
de passagem para a nova condio de vida, marcada por um porvir representado pelo
sonho de ter terra. A condio provisria faz que o acampamento represente um espao
ambguo, liminar, em que os colonos no esto nem no lugar de origem, nem no novo
lugar.
As dificuldades e sofrimentos vividos nesse tempo levam muitos a desistir, e
aqueles que resistem guardam as lembranas na memria, ainda que estejam presentes
no prprio silncio referente quele tempo.
O acampamento percebido como um marco temporal. Segundo Costa (2004),
ao acampar, o colono passa a ser identificado como sem-terra, aquele que requer a terra
como direito social. De acordo com Martins, J. (2003), os acampados representam uma
comunidade espera de um territrio, constituda virtualmente a partir de sua teia de
relaes parentais e de vizinhana. Dessa forma, o acampamento, embora se localize no
espao, percebido como tempo: um tempo localizado no espao, demarcando a
diviso entre um passado sem perspectivas e um futuro de possibilidades a partir da
conquista da terra. Assim, temos que o acampamento representa um tempo de espera.
Dessa forma, o acampamento caracteriza-se como um dos processos mais fortes de
desterritorializao por que passam os colonos em busca de terra.
Por meio dos depoimentos dos assentados ao se referirem deciso de enfrentar
o acampamento, foi possvel apreender que o acampamento percebido como espao:
precrio, provisrio e inadequado. Como espao, o acampamento identificado com a
categoria mundo. Woortmann E. e Woortmann K. (1997) destacam os significados da
expresso mundo para os camponeses de Sergipe: designa um universo desconhecido,
onde reside o perigo, e engloba desde a natureza desconhecida at os grandes centros
urbanos. (WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K., 1997, p. 39). Aqui
compreendemos as categorias espao, mundo e natureza com significaes que se
correspondem entre si, podendo ser atribudas ao acampamento. Segundo Tuan (1983),
o espao indiferenciado, desconhecido, ameaador, ao mesmo tempo em que um
smbolo de amplido, possibilidade de movimento e liberdade. Assim, temos que o
acampamento, ao ser percebido como espao, a partir dos contrastes que lhe so
prprios, apresenta ambiguidades nos sentimentos que desencadeia em diversos nveis
de significado e experincia.
Enquanto tempo-espao, os camponeses sem-terra vivem uma busca constante
em tornar o espao de acampar em lugar de viver, de forma a fortalecer a necessidade
de resistir. Segundo Tuan (1983), espao e lugar remetem a relaes espaciais
complementares e antagnicas, relacionadas entre si: para falar de um, necessrio falar
do outro, pois espao mais abstrato do que lugar (TUAN, 1983, p. 6). O espao
representa o movimento, o desconhecido, o indiferenciado, enquanto o lugar representa
a pausa ao movimento, o que permite localiz-lo, transformar o espao em lugar. Na
expresso de Tuan (1980), o lugar como o lar, permeado de valores familiares
imbricados entre si, referindo-se ao mundo vivido. Assim que o acampamento ora
vivido como espao, ora como lugar.
Na busca em torn-lo lugar, os agricultores compem os arranjos espaciais,
remetendo aos modos de morar, em que esto representadas as esferas do social e do
privado em meio aos barracos de lona. Nesse sentido, o local das refeies marcado
pelo jipe, uma espcie de fogo a lenha improvisado, em torno do qual se renem, no
s a famlia, mas os membros do grupo formado no acampamento, a partir das
afinidades de parentesco e vizinhana. J a rea destinada aos cmodos de dormir
reservada aos membros do grupo domstico. As mulheres juntam-se aos maridos no
acampamento, assim que esse esteja com o lugar estruturado ou, ainda, somente
depois da mudana para a nova terra.
O sorteio o instrumento usado para decidir seus destinos: de um copo, por
exemplo, foram sorteadas as famlias que formaram a comunidade de So Virglio. O
sorteio um dos momentos mais importantes do acampamento, representa a
possibilidade do fim da espera pela terra sonhada, configurando-se, ele prprio, como
um marco temporal, pois delimita o fim do acampamento para aqueles sorteados.
Nesse momento, a organizao em ncleos tambm representa a delimitao do
grupo de famlias que est concorrendo ao sorteio, significando a definio dos futuros
vizinhos no assentamento, o que expressa a imprescindibilidade da formao dos
ncleos a partir das redes de relaes parentais e de vizinhana, pois quem sorteado
o ncleo e no a famlia. Mas os ncleos no so entes organizacionais fixos, como
pode parecer em uma primeira leitura; sua composio pode mudar de acordo com as
necessidades do momento, da negociao constante entre interesses divergentes,
conflitos de convivncia e rearranjos de novas afinidades.
A terra conquistada: primeiros tempos
A mudana para a terra conquistada representa a possibilidade de incio de uma
nova vida, o que se d a partir daquilo que os colonos carregam do acampamento e/ou
do lugar de origem. Aps um longo tempo de espera nos acampamentos, que durou
meses para alguns acampados e anos para outros, chegou o dia da mudana para o novo
assentamento. Nesse sentido, a mudana significou efetivamente o deslocamento
daqueles que estavam morando no acampamento para o local do assentamento. De
forma similar que ocorrera com a instalao no acampamento, alguns agricultores
foram frente, sem as famlias, buscando estruturar condies mnimas de
habitabilidade para trazer as mulheres e os filhos; outros j se mudaram com a famlia e,
juntos, improvisaram os locais de moradia.
Muitos agricultores foram buscar sua mudana somente depois de conhecer o
novo espao, de iniciar uma pequena roa e improvisar suas moradias. Assim, temos
que a mudana tambm significava o deslocamento dos pertences da famlia que, em
muitos casos, era acompanhado pelo deslocamento dos membros da famlia que at
ento permaneciam no local de origem. Esse momento era considerado importante, pois
a tinha incio a constituio do lugar, a partir daquilo que se tinha. Na mudana,
carregava-se o que era mais significativo para a famlia, pois o volume do que se podia
transportar era limitado pelo frete que se podia pagar.
Cabe ressaltar que as famlias rurais, ao aderirem ao acampamento, apresentam
diferenas no que se refere ao acesso a recursos econmicos e a relaes sociais que
poderiam lhes dar suporte nesse tempo difcil, marcado pela precariedade
(QUINTEIRO, 2003, P. 168). No caso aqui estudado, o mesmo tambm ocorreu ao
chegarem ao assentamento, sendo que a distino entre as famlias se refletiu - e segue
se manifestando - nas condies de vida da famlia ao longo dos anos.
As diferenas de acesso a recursos econmicos e sociais entre as famlias, que j
se apresentavam no tempo de acampamento, refletem, assim, tambm no processo de
constituio do lugar da morada. Entre outros fatores da decorrentes e importantes
nesse processo, vale destacar a capacidade de ressocializao ao novo modo de vida.
Ao chegar a sua terra, os colonos a percebem como um espao estranho e hostil.
Eles dizem que na terra no tinha nada. Esse nada revela o sentimento de no
identificao com o espao, que, medida que se torna vivido, passa a ser percebido
tambm como o lugar em que os agricultores construiriam tudo.
A expresso nada representa mais do que supresses no plano material:
carrega tambm significados de ordem simblica, pois remete falta de uma paisagem
que lhes permita o sentido de pertencimento, uma paisagem construda
ideologicamente, que lhes informa que elementos definem um lugar de viver. Para
Claval (2001), a paisagem construda pela sociedade, no est situada no exterior, mas
faz parte da realidade social. Segundo esse autor, as paisagens existem no esprito
daqueles que a vivem, modelam e que por ela so modelados, carregadas de imagens e
smbolos. A paisagem idealizada pelo assentado remete a seu local de origem, estando
associada a uma ordem camponesa, em que a relao entre humano e natureza
perpassada pelas categorias terra, famlia e trabalho (WOORTMANN, E.;
WOORTMANN, K., 1997).
Na paisagem do nada, os agricultores se instalaram de forma similar que fora
empregada no acampamento, coletivamente e de maneira provisria. Na precariedade
dos primeiros tempos de assentamento, em que as expectativas j eram diferentes
daquelas do acampamento, a convivncia coletiva gerou as condies para a
manifestao de conflitos, alguns dos quais remanescentes dos tempos de
acampamento. Mas as dificuldades e sofrimentos tambm fizeram germinar
solidariedades6: em tempo de apropriao do espao, marcado pelos primeiros anos, as
relaes sociais se (re)construram, em paralelo construo do lugar.
A constituio do lugar
A partir da demarcao dos lotes, os colonos assentados assumem suas parcelas
de terra e passam a trabalhar o espao de forma a transform-lo no lugar de viver da
famlia a morada da vida, como disse Heredia (1979), referindo-se a camponeses de
outra poca e contexto. Dessa forma, a teia de relaes sociais passa a estender-se sobre
o territrio do assentamento e o lote passa a representar a esfera privada da famlia.
A constituio do lugar da morada parte do planejamento do lote, informado
pelo saber-fazer campons. O planejamento o trabalho cognitivo, que antecede o
trabalho fsico e inicia mesmo antes da mudana da famlia para cima do lote. por
meio do planejamento que tem incio o processo de apropriao do espao. Para
Haesbaert (2004), o processo de apropriao do territrio relaciona-se a dimenses
simblicas, carregado de marcas do vivido, do valor de uso. (HAESBAERT, 2004,
p. 2).
Sob a perspectiva da apropriao do espao, temos que a demarcao, o
planejamento do lote e a construo do locus familiar forjam e so forjados pelos
assentados ao longo do tempo. Nesse sentido, o processo de apropriao ocorre em um
movimento constante, oscilando entre o sentimento de espao e lugar em relao ao
lote. A apropriao da parcela familiar dentro do assentamento inicia por meio da
delimitao de suas fronteiras, sendo o lote percebido como territrio na esfera fsico-
geogrfica. Mas o processo de apropriao tambm perpassa a efetiva ocupao e
organizao do espao, assim como as significaes associadas a esses usos.
Woortmann, E. (1983), bem como em Woortmann, E. e Woortmann, K. (1997)
demonstram que o sistema espacial do stio campons obedece a dimenses prticas e
6 s dificuldades dos primeiros tempos, somar-se-ia a passagem de um tornado pelo assentamento,
causando grandes perdas materiais, assim como marcas profundas na memria daqueles que o
vivenciaram. Com o fenmeno do tufo de vento, os barracos de lona ou madeira foram danificados ou
completamente destrudos, deixando muitas famlias desabrigadas. A solidariedade dos parentes e
vizinhos foi fundamental para a resistncia dos atingidos, que recomearam do nada.
simblicas, em que a casa o ponto de partida para a distribuio das reas que
compem o stio. Assim que no planejamento do lugar da morada, a casa um marco
espacial a partir de onde se projetam os ambientes externos, imbricados entre si.
No croqui a seguir (Figura 3), reproduzido a partir dos registros no dirio de
campo, pode-se observar, a partir do desenho de parte do lote de uma das famlias
assentadas, a organizao espacial que tem na casa um centro gerador. Localizada
prximo ao corpo dgua, junto com esse, demarca uma diviso espacial entre as
atividades da lavoura e aquelas de domnio domstico de autoconsumo.
Figura 3 Croqui da rea frontal do lote de uma das famlias assentadas, onde se localiza o lugar de sua
morada.
Fonte: Adaptado por Martins, V. (2009). Modificada de: Dirio de Campo, 2008.
Por meio do planejamento, iniciam-se as etapas de organizao do lote e, a partir
da construo de um local de moradia, torna-se possvel a mudana da famlia para
cima do lote, ainda que em um abrigo provisrio. Assim que as famlias, em seus
primeiros anos sobre o lote, moram em barracos de lona, ou ocupam a edificao que
futuramente ser o galpo. Em cima do lote, o barraco, quando construdo com lona,
em alguns casos era incrementado com o uso de recursos naturais disponveis no local,
como a terra para as paredes e a palha para coberturas improvisadas. Tambm o galpo
um lugar importante para o cotidiano campons, j que abarca funes mltiplas. A
localizao do galpo d-se em relao da casa e ambos so marcos fixos implantados
no terreno, em oposio s demais reas externas, como a horta e o jardim, que tendem
a rotacionar suas posies.
No assentamento So Virglio, foi observado que a famlia constitui a casa em
processo que segue a trajetria de constituio do lote. A qualificao do lugar da
morada est imbricada organizao e ao planejamento sistmicos da parcela destinada
a cada famlia. Foi observado que as famlias, em geral, vivem em moradias
improvisadas nos primeiros anos, na forma de barracos de lona, madeira ou de materiais
mistos. Com o tempo, constroem suas casas a partir de recursos prprios e/ou recursos
oriundos de polticas habitacionais.
Cabe ressaltar que essas etapas ocorrem em tempos diferentes, e no
correspondem a uma ordem cronolgica vivenciada por todas as famlias da mesma
forma. As diferenas quanto s condies materiais de cada famlia ao chegar ao
assentamento repercutem em diferenas na constituio de seu lugar ao longo do tempo.
A capacidade de adaptao, articulao e ressocializao nova vida tambm so
fatores que interferem na diferenciao entre famlias, diferenciao que, por sua vez,
tem reflexo na paisagem.
O lugar da morada
De acordo com Godoi (1999), o muro e o quintal so dois espaos sempre
contguos casa de morada e podem ser pensados [...] como um desdobramento
projetivo da casa. (GODOI, 1999, p.37). Tambm Garcia Jr. (1983), em estudo com
pequenos produtores rurais em Pernambuco, destaca que a casa no apenas a rea
coberta e com paredes: de acordo com esse autor, para aquele grupo, o entorno fechado,
naquele caso denominado terreiro, tambm faz parte do corpo da casa. No caso do
assentamento So Virglio, essa rea fechada em torno da casa o ptio, tambm
percebido como extenso da casa.
As reas do entorno da casa ptio, horta, jardim e arvoredo compem,
junto com a prpria casa, o lugar da morada e, por consequncia, tambm seguem a
lgica e a simblica camponesa. As reas que compem o lugar da morada so
articuladas entre si e carregam significaes permeadas pela moral camponesa, a
exemplo do que foi observado no stio campons por Woortmann, E. e Woortmann, K.
(1997), em estudo com camponeses de Sergipe.
A Figura 4 mostra o arranjo espacial inicial do lugar da morada da famlia nos
primeiros anos de assentamento. Observam-se posicionados a casa, o galpo, a estrada
de acesso ao lote, os postes da rede de energia eltrica e o incio da construo da casa
atual.
Figura 4 Fotografia do lugar da morada de uma famlia de So Virglio nos primeiros anos no
assentamento.
Fonte: registrada por Alceu nos primeiros anos no assentamento e reproduzida por Martins (2008).
Ao comparar Figura 4 com a Figura 5, possvel ver o ptio e a horta cercados.
A casa definitiva foi construda um pouco abaixo de onde se localizava a casa de
madeira e encontra-se protegida dos ventos pelos matos de accia plantados nas duas
direes dos ventos predominantes na regio ventos sudoeste e nordeste. Assim,
temos que, da mesma forma que o lote constitudo ao longo do tempo, tambm o so
as reas de entorno da casa.
Figura 5 Fotografia atual do lugar da morada de uma famlia de So Virglio.
Fonte: Registrada por Martins, V. (2008).
O entorno da casa , em geral, destinado produo de alimentos para o
autoconsumo da famlia, como tambm foi observado por Zanetti e Menasche (2007),
em estudo realizado em comunidade camponesa no Vale do Taquari. Como destacam as
autoras, nessa parcela de terra, embora pequena se comparada ao restante da rea de que
o grupo familiar dispe, produzida uma grande variedade e quantidade de alimentos.
O excedente dessa produo comercializado na cidade de Herval, gerando resultado
importante para a composio da renda familiar.
O ptio uma rea importante no entorno da casa e seu fechamento um evento
significativo: como elemento visvel na paisagem do locus familiar, seu fechamento
evidencia o resultado do trabalho da famlia e representa uma conquista na constituio
do lugar da morada, sendo percebido como prestgio do grupo domstico. Geralmente,
no interior do ptio que se localizam a horta e o jardim, assim como o arvoredo de
fruta, e esses tambm carregam significaes que remetem ao resultado do trabalho e
ao capricho do grupo familiar, notadamente da me de famlia.
As mudas e sementes de hortalias e flores fazem parte do circuito de trocas
femininas, no apenas no plano material, como tambm no simblico, representado, por
exemplo, pelo contedo das conversas femininas, em que se constituem enquanto
veculos para a troca de informaes e atualizao das notcias locais. As crianas,
especialmente as meninas, tambm participam das trocas de mudas.
O arvoredo refere-se tanto s rvores frutferas, de menor porte, quanto aos
quebra-ventos, formados por agrupamentos de rvores de maior porte, geralmente
accia. O arvoredo, quando constitudo por capes para quebra-vento, percebido
como delimitador do lugar da morada, ainda que estes sejam permeveis. Essas
rvores, alm de servir como quebra-vento, fornecem sombra para os animais, madeira
para o consumo domstico e plen para o mel, quando esto em florao.
Morada: lugar da famlia
Diversos estudos sobre campesinato apontam a casa como o lugar da famlia.
Dentre eles, destaco os trabalhos de Heredia (1979), Garcia Jr. (1983) e Woortmann, E.
e Woortmann, K. (1997), que evidenciam a casa como ncleo simblico da famlia. A
esfera das percepes simblicas da casa, as relaes hierrquicas associadas aos
ambientes internos e externos, as diferenciaes de gnero e a associao entre a casa e
a famlia so aspectos transversais nesses estudos.
O lugar da morada, composto pela casa e seus arredores, comporta percepes
diferenciadas referentes aos ambientes que o constituem. As reas externas casa,
compostas tambm por reas no construdas, assim como a organizao interna dos
ambientes da moradia, revelam significaes importantes para o mundus campons.
A casa percebida como ncleo simblico da famlia e seus arranjos espaciais
internos evidenciam relaes simblicas no interior do grupo domstico
particularmente as relaes de gnero. A casa e seu entorno, enquanto unidade no
interior do lote, conformam locais predominantemente femininos, embora no
exclusivamente. Heredia (1979) apreendeu, no grupo de camponeses estudado em
Pernambuco, a oposio feminino-masculino, que tambm se expressa na oposio
casa-roado, a primeira ligada mulher e o segundo, ao homem. Dessa forma, essa
autora observou que havia espaos diferenciados tambm dentro da casa,
correspondentes a tarefas diferenciadas de acordo com gnero e gerao, evidenciando
diferentes posies na hierarquia familiar. Assim, temos que a casa percebida como
local de domnio feminino. A casa concebida como lugar da mulher por excelncia.
(HEREDIA, 1979, p. 79). Nas palavras da agricultora Dona Morena, Acho que a casa,
para a mulher, tudo. Significa o bem-estar da gente, o sossego, isso.
As reas externas casa, o entorno, tambm so percebidas como de domnio
predominantemente feminino, embora no exclusivamente. Aos estudar uma
comunidade camponesa no Vale do Taquari, Zanetti e Menasche (2007) destacam a
importncia do trabalho feminino nas estratgias de reproduo familiar, especialmente
ao atender as demandas de autoconsumo da famlia. Segundo as autoras, a produo
voltada ao autoconsumo proveniente das hortas, pomares, criaes e pequenas
lavouras. Ramos (2007), em estudo com camponeses de Maquin, observou que s
mulheres, em geral, cabem as tarefas da casa e do quintal, onde criam galinhas e porcos,
trabalham com vacas de leite e mantm uma horta. (RAMOS, 2007, p. 72). Como
destacado nesses estudos, o trabalho realizado predominantemente pelas mulheres, o
que tambm foi observado no estudo junto aos colonos assentados em So Virglio.
Os arranjos internos da casa, por meio dos repartimentos dos cmodos, tambm
traduzem relaes simblicas. Assim que a sala, na escala domstica, de domnio
predominantemente masculino, enquanto a cozinha de domnio feminino.
Na cozinha, o fogo a lenha no s o lugar da transformao da comida, como
tambm carrega significaes que remetem unio da famlia, representada pelo fogo,
aqui no lugar da mulher. Em oposio e complementaridade , a lareira, na sala,
representa o fogo no lugar do homem, no interior da casa, e remete a significaes do
sagrado, geralmente representado pela presena da Bblia, de imagens e/ou dizeres
religiosos.
Os quartos so ambientes de privacidade dos membros do grupo familiar,
representam nichos de proteo, no interior da casa. O acesso a eles exclusivo ao
grupo domstico, exceo feita nos momentos em que se recebe visita, quando essa
absorvida como membro da famlia, o que legitima o acesso a um quarto, porm no a
torna igual a um familiar, condio que lhe impe limites e faz que seja percebida como
um ser ambguo. Assim que o quarto de visitas um ambiente requerido pelas
famlias, e sua materialidade, alm de representar mais uma concretizao na
constituio do lugar da morada, ainda parece minimizar tal ambiguidade.
Outro ambiente que percebido de forma ambgua o banheiro, cuja
proximidade da casa , por um lado, indesejada, devido s representaes sobre a
contiguidade da casa com o local de descarte de sujeiras e dejetos do corpo e, por outro
lado, necessria, devido proteo do prprio corpo das condies climticas. Assim
que o banheiro merece um lugar intermedirio, que no se configura nem dentro da
casa, nem fora dela.
Quando as casas possuem uma varanda externa que os agricultores denominam
de rea , formada comumente pelo prolongamento de um dos telhados, esse o local
onde recebem os estranhos ou os conhecidos, que no tm acesso ao interior da casa.
Mas a rea tambm atende a outras funes, podendo eventualmente tornar-se o lugar
das festas, em que so recebidos parentes, vizinhos e compadres. Demais ambientes,
como a garagem e a rea de servio, so pouco encontrados nas casas das famlias
assentadas, percebendo-se que vm sendo, aos poucos, adicionadas por aqueles que
esto em processo de melhorar de vida.
Por fim, os colonos assentados preocupam-se com o futuro dos filhos, que, ao
crescer, formam novas famlias ou partem do assentamento, comumente para estudar.
Na percepo dos assentados, a constituio de uma nova famlia exige a constituio
de um novo lugar para sua morada, que o lote familiar deveria dar condies de
acomodar. Mas, em geral, os agricultores consideram que seus lotes so pequenos para
comportar as futuras famlias dos filhos. Assim, sofrem com a possibilidade de uma
nova disperso familiar, agora do prprio grupo domstico. A sada dos filhos para
estudar percebida, por um lado, como difcil, pois representa uma separao e, por
outro lado, como benfica, pois remete possibilidade de melhores condies de vida
para os filhos. No entanto, os assentados apostam no retorno dos filhos para as
proximidades do lugar da comunidade, representada pelo prprio assentamento, seja
esperando que os filhos da comunidade retornem para exercer suas profisses no
assentamento, ou buscando morar em seu entorno, por meio do enfrentamento a novos
acampamentos, ou mesmo, do acesso ao crdito-fundirio.
Ao concluir, cabe lembrar que este estudo deve ser percebido como apenas um
recorte do universo, imensamente rico e complexo, do campesinato que hoje vive nos
assentamentos da Reforma Agrria, espalhados pelo Brasil.
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