2 Democracia, poder constituinte e política
2.1 A teoria política maquiaveliana: da necessidade de novos conceitos
sobre política e poder constituinte
Nenhum conceito um dia criado pela inteligência humana pode ser tido
como imutável. A utilidade de um conceito não reside na possibilidade de captar e
apreender a essência de um fenômeno ou fato, atribuindo-lhe caráter definitivo, e
sim pela condição que ele oferece de resolver problemas aos quais está associado.
Os conceitos, portanto, jamais podem ser considerados como dados já postos na
natureza, por mais que a tradição de seus efeitos assim possa fazer parecer.2
Deleuze e Guattari demonstram que a história e as questões que nela emergem se
relacionam necessariamente com a criação de novos conceitos. Isto implica,
ainda, em admitir que a pertinência de um novo conceito deva ser mensurada pela
possibilidade que ele apresenta para identificar novas nuances e variações sobre
os problemas e fatos que perpassam nossa existência.3 Os conceitos, portanto, não
são eternos, muito embora isso não implique em afirmar que têm sobrevida
temporalmente definida. A incapacidade de se apresentar como instrumento de
análise e de proposição de rumos marca o termo final da sua utilidade.
Partindo destas considerações, não se constitui temerário afirmar a
necessidade de se construir novos conceitos de política e de poder constituinte.
Suas formas tradicionais não dão conta de oferecer respostas aos problemas que se
apresentam nesta seara, ao menos se subsiste pretensão de considerá-los como
conceitos necessariamente vinculados à democracia. O conceito tradicional de
poder constituinte apresentado pelo constitucionalismo nos lança em um deserto
2Deleuze e Guattari identificam a filosofia como disciplina que consiste em criar conceitos, justamente pelo fato de que os mesmos não se encontram completamente feitos. Os filósofos - acrescentam os autores - não podem se contentar com os conceitos que lhes são apresentados, sendo imperioso que os criem e persuada os homens a utilizá-los. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 13-14. 3Como explicitam os autores, “se um conceito é ‘melhor’ que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um acontecimento que nos sobrevoa” Ibidem, pp. 40-41.
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de possibilidades. De fato, um poder constituinte limitado no tempo e no espaço,
que submerge em latência indefinida após fundar uma nova ordem jurídica não
guarda qualquer correspondência com a perene ebulição social da qual decorrem
inúmeras manifestações democráticas. E mais: um conceito que associa o poder
constituinte a uma finalidade específica – elaborar a lei maior -, tal qual o faz o
constitucionalismo, se presta apenas a estigmatizá-lo como produtor de efeitos
jurídicos, dissociando-o do campo social e político. Relegado ao ostracismo após
cumprir seu papel de inaugurar a ordem jurídica, o poder constituinte é
sumariamente ignorado pelo direito constitucional como categoria jurídica.4 O
conceito tradicional de política, por sua vez, tampouco nos auxilia a compreender
a lógica com a qual opera a democracia e os sujeitos nela implicados. Se a política
decorre da atuação dos poderes constituídos e opera pela lógica do consenso – ou
pela necessidade de evitar o conflito – o plano social é conduzido, mais uma vez,
a um estado de hipostasia que em nada se harmoniza com o ideal democrático.
Como afirma Gilberto Bercovici, o constitucionalismo não apenas restringiu
o poder constituinte à mera atividade de revisão constitucional, como reduziu a
defesa da constituição ao instituto do controle de constitucionalidade5,
circunscrevendo este controle ao plano do direito. No entanto, a interpretação da
constituição, entendida esta como texto em que se expressa de forma mais
evidente a interligação entre o político e o jurídico, não prescinde da análise de
ambos os planos. Não há mal para o qual o constitucionalismo não aponte pronto
reparo: habilmente tratou de encobrir a política com um verniz jurídico, ocultando
seu caráter sob o manto do tecnicismo.6 Ao imputar caráter estritamente jurídico
ao que continua - ainda que oculto - a ser também político, confere-se um poder
exuberante às cortes de justiça: decidir sobre matéria política, dissimulando que
não o faz, escudando-se no fundamento técnico-jurídico contra o qual não se
admite interpelação dos leigos. O resultado que se obtém deste artifício é
4BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 14. 5Ibidem, p. 16. 6Como destaca Bercovici, “o direito constitucional não é meramente técnico, mas é político, pois deve tratar da difícil relação da constituição com a política. A constituição não pode ser compreendida de forma isolada da realidade, pois é direito político, isto é, a constituição está situada no processo político”. Ibidem, pp. 14-15.
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conhecido: transfere-se àquelas cortes a última palavra sobre questões políticas
afetas ao coletivo.7
O sistema político, assim concebido, confere fortes cores aristocráticas a
um modelo que se pretende democrático. A ocultação da política sempre foi
extremamente cara ao pensamento liberal – e ao constitucionalismo dele derivado
– por um simples, mas fundamental motivo: na democracia os conceitos de
política e de poder constituinte se imbricam indissoluvelmente8; é justamente
contra a emergência do poder constituinte que o liberalismo digladia desde que
impôs o Termidor9 à Revolução Francesa.10 Reconduzir o debate da atuação dos
tribunais ao campo democrático exige, portanto, a criação de outros conceitos de
poder constituinte e política que se afastem do tradicionalmente posto pelo
constitucionalismo.
Nesta seara, a relação entre poder constituinte, política e atuação
democrática do Supremo Tribunal Federal revela-se especialmente sensível, tendo
em vista o crescente afluxo de demandas de teor político que deságuam no
referido tribunal. Em torno do que se costumou denominar judicialização da
política, travam-se calorosos debates sobre a legitimidade de o Supremo
pronunciar-se, em franco ativismo judicial, sobre matérias tradicionalmente
atribuídas como próprias aos poderes executivo e legislativo. Contudo, a tentativa
de impedir que a mais alta corte de justiça conheça de matéria impregnada com
teor político revela-se inócua, ao menos nos sistemas em que se prevê controle de
constitucionalidade. O processo de interpretação da constituição pelas cortes de
justiça é, assim, necessariamente permeado pelo político. Os problemas que
derivam desta competência revelam, em verdade, o desencantamento da teoria
liberal que endossara a neutralidade do ordenamento jurídico como mecanismo
7Trata-se de uma distorção que consiste em tornar o constitucionalismo o árbitro último de um conflito do qual ele é parte. Ibidem, p.17. 8NEGRI, Antonio. Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 7. 9Por Termidor se compreende o momento que pôs fim à revolução democrática francesa, inaugurando a fase em que predominaram ideais contra-revolucionários burgueses. Em decorrência disso, o termo é também utilizado para se referir aos movimentos reacionários de interrupção da atuação do poder constituinte. 10A respeito da contraposição entre democracia e liberalismo, Domenico Losurdo afirma que as conquistas democráticas se deram a despeito, e não, em decorrência do modelo liberal. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Unesp, 2004, p. 51.
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eficaz para afastar contingências políticas dos julgamentos dos tribunais.
Apresenta-se necessário, portanto, deixar de ocultar a realidade sob o manto de
uma neutralidade jamais observada.11 A impossibilidade da existência de um
poder neutro revela-se na contradição de se supor possível a existência de um
poder constituído que prescinda de limites em decorrência de uma suposta
essência apolítica. A questão central sofre, assim, um deslocamento: da estéril
exigência que o Supremo se atenha a atuar de forma técnica e neutra, para a
discussão sobre os limites a que ele deve estar adstrito, justamente por manejar
com questões de teor político.
Neste debate, a maior causa de perplexidade se revela por uma ausência. A
falta de qualquer referência ao poder constituinte e ao sujeito da política reduz a
discussão a uma mera definição de qual poder constituído apresenta legitimidade
para definir os rumos da sociedade. Os espaços da política oscilam, neste cenário,
entre assembléias e tribunais; os seus sujeitos, entre parlamentares e magistrados.
Ao longo deste primeiro capítulo o poder constituinte será reconduzido ao centro
da discussão, no intuito de compreender a dinâmica própria da política. Este
movimento se ancora em uma premissa que não se concilia com o reducionismo
próprio do constitucionalismo: a democracia deve ser compreendida – e
efetivamente vivenciada – como o governo de todos, por todos, em que o coletivo
governa e não se deixa submeter à regulação por nenhum grupo qualificado por
qualquer espécie de título distintivo de nobreza, sapiência ou riqueza. Trata-se de
uma premissa que extrai validade da teoria política desenvolvida por Nicolau
Maquiavel em sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.12 Neste
estudo Maquiavel apresenta uma teoria política revolucionária, permeada por
idéias originais e provocadoras, que inspiraram Antonio Negri e Jacques Rancière
em seus estudos sobre poder constituinte e política, e que contribuirão para a
compreensão do tema ora tratado. As pesquisas de Negri e Rancière,
contemporâneas dos efeitos atuais das questões ora postas, configuram-se como 11“A neutralidade das constituições é ilusória”. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p.17. Se assim o é, menos neutra ainda, qualquer interpretação que delas se pode extrair. 12Adota-se, portanto, concepção de matriz britânica sobre o pensamento maquiaveliano, identificando nele o compromisso com a liberdade. Esta concepção encontra-se bem retratada por Quentin Skinner - SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. Trad. Maria Lúcia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1998 -, e por Pocock - POCOCK, J.G.A. The machiavelian moment: florentine political thought and the atlantic republican tradicion. New Jersey: Princeton University Press, 1975. Nesta mesma vertente inclui-se Negri, ao tratar da teoria política de Maquiavel em sua obra O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade.
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indispensáveis fontes de conceitos, úteis para compreender as relações entre
política e poder constituinte. No entanto, é a teoria política legada por Maquiavel
que serve de matriz para deflagrar o debate. A partir dela abrem-se caminhos para
definição de um sistema materialmente democrático, jornada a qual se somam as
teorias de Negri e Rancière.
O primeiro relevante aspecto do pensamento maquiaveliano, refere-se ao
método de leitura dos fenômenos políticos. Maquiavel é averso ao modo
transcendente de compreender o mundo; as formas imaginadas de governo,
portanto, não se prestam como modelo para explicar a realidade.13 Esta
característica revela-se de suma importância para os desdobramentos deste
trabalho. Com efeito, a discussão sobre imanência e transcendência apresenta-se
vital para entender as distorções que desfiguram a democracia.14 Os conceitos de
soberania, representação e poder neutro, sobre os quais se estruturaram os
sistemas políticos ocidentais na modernidade, foram paridos do modelo
transcendental de compreender a política. A tal fato se atrelam, conforme será
adiante analisado, os modos distorcidos pelos quais tradicionalmente se
identificam os sujeitos do atuar político, os espaços nos quais se manifesta esta
atuação e os modos de emergência do poder constituinte.
A segunda característica que confere originalidade à teoria política
maquiaveliana revela-se na importância que ele confere ao tempo e à mutação.15
As ascensões e degenerações dos regimes políticos imprimiram em Maquiavel a
certeza da importância da mutação para a edificação de governos fortes e estáveis;
mutação - registre-se - decorrente da intervenção humana nos processos políticos.
Trata-se de pensamento inovador para uma época em que, pelo senso comum,
estabilidade associava-se à imutabilidade das coisas. Igualmente revolucionária a
13MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Antonio D`Elia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 101. 14Esta discussão será tratada mais detidamente no item seguinte. No entanto, uma breve introdução sobre imanência e transcendência faz-se necessário: a transcendência está associada à existência de um principio superior, posto acima das relações concretas do plano material, que, no entanto, influência a regência destas relações de forma determinista. Ela se expressa como um comando superior, divino, contra o qual não cabe discussão, apenas obediência. Pela imanência, em sentido diverso, as inscrições no real são influenciadas pela intervenção e participação dos seres humanos, livres do julgo de qualquer poder transcendente que não possa ser contestado por fundar-se em argumento de autoridade soberana. O tema será aprofundado no item que se segue. 15Esta vinculação, conforme se verá, é traduzida pela análise que Negri realiza sobre os escritos maquiavelianos, resultado de um olhar sobre a obra do pensador florentino - principalmente os Discurso -, livre dos preconceitos do senso comum que o associam ao elogio à cavilosidade política para preservação do poder.
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(re)condução do ser humano ao centro das decisões políticas. Não se trata de
negar o influxo de eventos externos, naturais ou cuja ocorrência não dependa da
vontade dos governantes. Maquiavel se insurge contra o sentimento de fatalidade
perante o destino, contra a completa dependência de uma intervenção de fatores
exógenos que determinem o futuro da república. A ação humana deve ser dirigida
para evitar que imprevisíveis – e inevitáveis - eventos levem o bom governo à
ruína.16 A praxis humana convive com o imponderável, mas por ele não se deixar
arrastar, retirando-lhe a condição de destino inexorável. O tempo, sob esta original
perspectiva, adquire caráter dinâmico, afastando-se da concepção estática que o
medievo lhe imprimiu ao fazer o futuro dependente da vontade transcendente de
Deus. Nele se desenrolam as práticas humanas, as relações sociais e políticas, que
determinam a constituição incessante de novas instituições, novos modos de ser,
pensar e produzir.17 Em Maquiavel a política é deslocada para o campo imanente
da atuação histórica dos homens. O poder de constituir o novo apresenta-se como
processo aberto no tempo, que não cessa de demandar pela virtù coletiva e
individual dos homens, no intuito de que não se tornem reféns da fortuna.18 Por
meio da atuação criativa e produtiva de seus membros como sujeitos políticos
singulares abre-se para a comunidade a possibilidade de conferir força e
estabilidade à república.
No entanto, se este engenhoso pensamento reconduz à política a prática
humana, ele não é capaz, por si só, de garantir que a política não seja apropriada
como prática afetada a um grupo restrito de cidadãos. A leitura do qüinquagésimo
16 Conforme ressalta Newton Bignotto: “O realismo de Maquiavel exige a crença na mutabilidade das coisas e na presença da fortuna como parte da cena pública, o que não significa que não seja possível constituir um saber sobre política.” BIGNOTTO, Newton. Introdução a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXVI. 17Negri demonstra a genialidade de Maquiavel ao vincular tempo e poder: “O tempo é, portanto, a matéria de que são constituídas as relações sociais. O tempo é a substância do poder. O tempo é o ritmo no qual se encadeiam e ordenam todas as ações constitutivas.” E prossegue, mais adiante: “[...] Maquiavel constrói uma função científica que arranca a mutação ao destino e faz dela um elemento da história.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 61-62. 18Na teoria maquiaveliana, virtù e fortuna não mantêm uma relação de negação, sendo compreendidas em conjunto. A fortuna representa o fluxo dos acontecimentos que não se colocam sob o domínio humano, as alterações das circunstâncias que perturbam as ações políticas, mudam os rumos dos acontecimentos e impedem a perfeita previsão do futuro. A virtù é a força de que o homem é dotado para agir e não se deixar tornar refém dos caprichos da fortuna, evitando, assim, a corrupção do governo. A virtù não se traduz na previsão dos acontecimentos, muito menos na obediência a um modo específico de agir diante do que poderia ter sido previsto. Em sentido diverso, trata-se das qualidades humanas de agir na direção do fortalecimento da república, diante das ocasiões postas pela fortuna. Desta forma, uma sociedade sem virtù está fadada à corrupção por restar entregue às instabilidades da fortuna.
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quinto capítulo dos Discursos confere pistas para evitar esta corrupção. Maquiavel
relata que as repúblicas que não se corromperam, mantiveram-se fortes por manter
a igualdade entre seus cidadãos. E assim o fizeram ao impedir que os senhores e
os gentis-homens19 possuíssem, além da riqueza, poder político extraído da
propriedade de castelos e de súditos obedientes.20 Nas palavras de Maquiavel:
[...] as repúblicas nas quais se manteve a vida política e incorrupta não suportam que nenhum de seus cidadãos se apresente nem viva como gentil-homem; aliás, mantêm a igualdade entre seus cidadãos […] E o que dizemos é provado pelo exemplo da Toscana […] naquela província não há nenhum senhor de castelo e nenhum gentil-homem – ou, se os há, são pouquíssimos -, mas há tanta igualdade, que um homem prudente, que tivesse conhecimento das antigas cidades [civiltá], facilmente introduziria lá algum tipo de vida civil.21
Se a igualdade aparece na teoria maquiaveliana como caráter distintivo das
repúblicas não corrompidas, a liberdade figura como condição para que as cidades
prosperem e mantenham-se fortes.22 Observa-se que a liberdade e igualdade
imbricam-se no pensamento de Maquiavel, conferindo à sua teoria política um
caráter materialmente democrático. A tal constatação se alcança com a análise que
o autor realiza sobre a forma mais adequada para se promover a guarda da
liberdade. Ao final do quarto capítulo do primeiro livro dos Discursos e ao longo
de todo o seu quinto capítulo, Maquiavel expõe que nas repúblicas convém que se
deposite a guarda da liberdade nas mãos da plebe: deve-se conceder a guarda de
alguma coisa àqueles que possuem menos interesses em usurpá-la.23 Há, portanto,
dois humores diferentes, duas formas inconciliáveis de enxergar o poder: os
humores do “povo” e os humores dos “grandes”.24 Comparados os interesses dos
plebeus e dos nobres, Maquiavel expõe que estes atuam imbuídos em grande
desejo de dominar, ao passo que aqueles nutrem apenas o desejo de não ser
dominados. A plebe, ciente da impossibilidade de dominar, preserva com maior
cuidado a liberdade para não ser objeto de dominação pelos nobres, estes sim 19Maquiavel esclarece o que denomina por gentis-homens: são aqueles que “vivem ociosos das rendas de suas grandes posses, sem cuidado algum com o cultivo ou com qualquer outro trabalho necessário para a subsistência”. Estes homens, arremata o pensador florentino, “são perniciosos em todas as repúblicas e todas as províncias”. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 161. 20Ibidem, p. 161 21Ibidem, pp. 161-162. 22Assim o demonstra Quentin Skinner: “Segundo Maquiavel, um estudo da história clássica revela que a chave para se entender as realizações de Roma reside em algo que pode ser resumido numa única frase. 'A experiência demonstra que as cidades não se expandiram em termos de domínio ou de riqueza exceto enquanto estiveram em liberdade'.” SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. Trad. Maria Lucia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 83. 23MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 24. 24Ibidem, p. 22.
24
detentores dos meios para oprimir.25 Daí a preservação da liberdade depender do
povo em armas.26 Neste sentido, Maquiavel defende não apenas que as repúblicas
não possam depender de armas que não lhes são próprias, como afirma que se
deve delegar o ofício da defesa armada aos cidadãos. Assim concebida, a
liberdade encontra-se necessariamente associada à concepção democrática de
autogoverno. Neste sentido, destaca Skinner:
Ao dar tanta ênfase à liberdade, o que Maquiavel tem em mente é, antes de mais nada, o fato de que uma cidade que se decida a alcançar a grandeza deve permanecer livre de qualquer forma de servidão política […] Isto, por sua vez, significa que dizer de uma cidade que ela tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade. Assim, a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno […] o mesmo compromisso para com a liberdade é reiterado, quando Maquiavel elogia as leis de Sólon por terem estabelecido “uma forma de governo baseado no povo”, para, em seguida, mostrar que essa organização é equivalente a viver “em liberdade”.27
Há, no entanto, outra questão a ser dirimida pela teoria maquiaveliana. A
dimensão heraclitiana que Maquiavel confere à política ao constatar seu caráter
mutável, aberto no tempo e associada à necessidade da ação criativa da virtù, não
explica a mecânica pela qual a política se desenvolve. Neste ponto a teoria de
Maquiavel demonstra toda sua originalidade ao apresentar a desunião como
elemento propulsor da política. Esta concepção apresenta-se contraposta às teorias
contratualistas que convergem ao atribuir à ausência de conflito condição sem a
qual não se pode instituir um governo pacífico e estável. Em Maquiavel, a lógica
que rege a política é inversa: ela se traduz pela desunião entre classes que
compõem a comunidade. Foram os conflitos entre nobres e a plebe, pontua
Maquiavel, a causa da garantia da liberdade em Roma, pois deles decorreram
instituições que permitiram ao povo tomar parte na administração da cidade28, a
comprovar que da desunião nascem leis e ordenações mais justas.
25Ibidem, p. 24. 26Idem. O príncipe, pp. 88 e 95-96. A conveniência em tornar o povo guardião da liberdade corrobora a afirmação de que as armas próprias que devem garantir a república são para o povo, e não para o príncipe. 27SKINNER, Quentin. Maquiavel, pp. 83-84. 28MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 23. Nesta passagem Maquiavel faz referência à criação dos tribunos da plebe. Sua formação decorreu da resistência da plebe ao modo cruel pelo qual eram tratados pela nobreza. Após confusões e tumultos, à nobreza foi imposta aceitar a criação dos tribunos da plebe que tinham como função garantir segurança a estes, contendo a “insolência dos nobres”. Ibidem, pp. 20-21. A criação dos tribunos será tema de análise mais aprofundada quando do estudo da política na concepção de Jacques Rancière.
25
O ideal de unidade do corpo político exposto pelo contrato social é, assim,
desmistificado. A plebe e os nobres não dividem harmoniosamente o poder
político; o corpo político encontra-se cindido. Os sujeitos constituintes que por
sua força criativa e produtiva (virtù) defendem a liberdade, se contrapõem a todo
o momento àqueles para quem a ordem vigente deve ser cristalizada como
garantia da submissão à sua vontade. A desunião, imbricada ao caráter
democrático que adquire a teoria política maquiaveliana, revela as trincas que a
teoria do governo misto, idealizada por Políbio, apresenta ao advogar um suposto
equilíbrio na partilha harmônica do poder, representado pela mescla entre
democracia, monarquia e aristocracia.
Uma digressão a respeito do modelo polibiano de governo se faz necessária
para abrir passagem à emergência do caráter democrático na teoria política
maquiaveliana. No Livro VI de História, Políbio narra a existência de seis formas
de governos: três virtuosas e três degeneradas. Às três primeiras correspondem à
monarquia (governo de um), aristocracia (governo de poucos) e democracia
(governo de muitos) e suas respectivas formas degeneradas: tirania, oligarquia e
oclocracia.29 Estas formas de governos se sucederiam em ciclos em que alternam
formas boas e ruins. Assim, a monarquia inexoravelmente degeneraria para
tirania. Esta, por sua vez, suscitaria a reação de um grupo de homens nobres e
corajosos que deporiam o tirano e seriam, por tal glória, elevados a governantes,
fazendo nascer a aristocracia. Tal forma de governo naturalmente se corrompe em
oligarquia, implicando na revolta de muitos contra os poucos que governam. Disto
emerge a democracia que, por sua vez, degenera em oclocracia, o governo da
desordem das massas. Por esta concepção a transformação de uma forma de
governo à outra é inexorável e decorre da própria natureza de cada uma.
29POLÍBIO. História. Trad. Mário Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 327. Válido transcrever a descrição que Políbio faz dos ciclos de governos, no intuito de demonstrar que o autor entende a anaciclose como uma sucessão natural: “A primeira de todas essas espécies a aparecer foi a autocracia, cujo surgimento é espontâneo e natural; em seguida nasceu a monarquia, derivada da autocracia por evolução e pela correlação de defeitos. Esta se transmuda em sua forma afim degenerada, quero dizer a tirania, e em seguida à dissolução de ambas é gerada a aristocracia. Esta degenera por sua própria natureza em oligarquia, e quando maioria, inflamada pelo ressentimento, vinga-se desse governo por causa das injustiças cometidas pelos detentores do poder, é gerada a democracia; finalmente, da violência e do desprezo à lei inerentes a esta, resulta no devido tempo a oclocracia.” Ibidem, p. 327.
26
A idéia de anaciclose (anakyklosis), acima exposta, deriva, por sua vez, da
teoria política de Aristóteles.30A originalidade de Políbio não decorre deste
regresso à concepção aristotélica e sim ao meio que propõe para estabilizar o
governo e pôr fim às causas que promovem a corrupção das suas boas formas.
Políbio propõe que monarquia, aristocracia e democracia sejam mescladas em um
modelo misto de governo, de forma que “o rei”, “os aristocratas” e “o povo”,
tenham representados seus poderes de forma equilibrada, possibilitando a
estabilidade do governo e impedindo sua degeneração. A constituição mista,
composta pelas boas formas de governo reunidas, evitaria, assim, os conflitos que
impedem a ordem e a harmonia política.31
A análise do modelo polibiano de constituição mista apresenta-se primordial
por dois aspectos. Em primeiro plano, o ideal de equilíbrio de poderes entre
monarquia, aristocracia e democracia, influenciou decisivamente a teoria de
Montesquieu sobre separação de poderes, teoria esta que se apresenta como um
dos pilares do constitucionalismo e fonte da idealização do poder neutro como
mecanismo de estabilidade do Estado liberal. A análise desta influência será
retomada adiante.
Impõe-se analisar, neste momento, o segundo aspecto referente à
constituição mista, e que se apresenta de suma importância para compreender o
teor democrático da teoria maquiaveliana sobre a política. Maquiavel recorre à
idéia de constituição mista no início do primeiro livro dos Discursos e, não
obstante, apresenta a desunião como mecanismo que, ao permitir o equilíbrio
entre a plebe e os ricos, conduziu Roma à prosperidade.32 De que forma conciliar
o teor democrático que se afirma extrair da teoria de Maquiavel, com o elogio que
o pensador florentino faz ao equilíbrio de forças entre os cônsules (poder régio),
30No quinto capítulo do terceiro livro de sua obra Política, Aristóteles desenvolve a teoria das seis formas de governos – monarquia, aristocracia e democracia (bons governos) e tirania, oligarquia e anarquia (governos corrompidos) - que se alternam em ciclos, da qual Políbio retirou inspiração. ARISTÓTELES. Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 89-94. 31Este seria o motivo do sucesso da legislação de Licurgo: “prevendo esta inexorabilidade [da anakyklosis], então, Licurgo não elaborou uma constituição simples e uniforme, mas uniu nela todas as características boas e peculiares às melhores formas de governo, de tal maneira que nenhum dos seus componentes pudesse crescer indevidamente e degenerar nos males a eles inerentes, e que, sendo a força de cada um contrabalançada pela dos outros, nenhum deles prevalece por longo tempo em estado de equilíbrio [...].” POLÍBIO. História, p.332. 32MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, pp. 18-19.
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senado (aristocracia) e o povo (democracia)? É preciso destrinchar este feixe de
aparentes incongruências.
Afirmar que Maquiavel segue a tradição polibiana em seu conteúdo
implicaria reconhecer que a sua teoria preserva a lógica de funcionamento do
governo misto. No entanto, ao estabelecer a desunião como núcleo da dinâmica do
governo livre, Maquiavel afasta-se completamente da idéia de harmonia
explicitada no modelo polibiano, negando-o, portanto, em seu cerne. A desunião,
entretanto, não deve ser compreendida como caos; ela está associada a duas
dimensões complementares do pensamento maquiaveliano: a dimensão dinâmica
(movimento) e a dimensão mecânica (corpo). A dimensão dinâmica é
representada pela mutatio, conforme visto; a dimensão mecânica, por sua vez,
decorre da necessidade da comunidade conferir-se instituições que possibilitem a
emergência da virtù coletiva. As instituições, nesta perspectiva, não devem ser
desenhadas com o objetivo de impedir mudanças, de conservar o estado das
coisas; devem ser erigidas de forma a se apresentar como ambiente que se abre à
desunião e possibilita a mutatio.33
Em sentido diverso do que propõe Políbio, portanto, Maquiavel apresenta a
desunião como o motor do devir político, dinâmica que faz a república retornar
aos seus princípios fundadores.34 Ao idealizar o governo misto, Políbio pretende
33Bignotto destaca a revolução que Maquiavel provocou no campo das instituições políticas ao demonstrar que os conflitos são saudáveis para o estabelecimento de boas leis, advertindo, no entanto, sobre o importante papel que as instituições desempenhavam nessa dinâmica: “Para serem positivos é necessário que os conflitos sejam travados dentro de um quadro institucional reconhecido por todos como legítimo. A simples luta entre as partes componentes do corpo político ou a disputa violenta pelo poder não são suficientes para garantir a grandeza da cidade. Maquiavel acredita que boas instituições são aquelas que trazem para dentre da cidade os conflitos, mas estabelecem regras e limites para que eles ocorram.” BIGNOTTO, Newton. “Introdução aos discursos sobre a primeira década de Tito Lívio de Nicolau Maquiavel”. In: Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXV. 34Em sua obra O poder constituinte, Negri critica a proposição maquiaveliana sobre a necessidade das repúblicas retornarem, de tempos em tempos, aos seus princípios. Negri enxerga nessa assertiva um índice jusnaturalista, pois predeterminaria o conteúdo das mutações, a impor restrições à criatividade do poder constituinte. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 429. A crítica, contudo, desmerece todo o esforço teórico de Maquiavel no sentido de demonstrar o quão imponderável o futuro e o quanto estéril tentar controlar todos os seus eventos. Desta forma, o retorno aos princípios não parece se apresentar como fórmula predefinida a ser eternamente revisitada. Basta, para demonstrá-lo, que se analise o princípio da igualdade como aquele que informa a democrática: o retorno a este princípio não implica em determinismo jusnaturalista por não prever, necessariamente, os conteúdos das novas estruturas de sua realização; ele apenas aponta que as mutações, caso se pretendam democráticas, devem ter por norte a atualização do princípio da igualdade. Quanto a este ponto, o estudo da teoria de Rancière apresenta importante contribuição, conforme se verá. A crítica negriana, no entanto, alerta para os riscos do poder
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justamente retirar o conflito do cenário político por entender a ordem como maior
garantia de estabilidade de um governo. Os mecanismos de funcionamento da
política em ambos são tão distintos que se poderia dar por encerrado o paradoxo.
Mas, o que dá vida a esta mecânica revela ainda mais a disparidade entre as
formas polibiana e maquiaveliana de compreender a política.
Políbio elabora um modelo formal e estático de constituição que, apenas por
sua estrutura, se pretende ideal para evitar conflitos e a degeneração do governo.
A constituição formal mista, por si, garante a estabilidade do bom governo. A
atuação do ser humano no plano social, portanto, não se apresenta como variável a
ser considerada pela teoria política polibiana. Aqui a política encontra-se
completamente desraigada do social, operando por meio de uma fórmula
preconcebida e imutável, que reparte os poderes entre o rei, a aristocracia e a
plebe, a despeito do que se materializa na sociedade. Políbio propõe que a mera
forma da constituição do governo é capaz de esvaziar a possibilidade de se
deflagrarem conflitos. Em resumo, o modelo polibiano é formal, estático e
fundado na cisão entre o político e o social.
Maquiavel, ao seu turno, aparta-se de Políbio em cada aspecto acima
tratado. Sua teoria tem por base entender a política como processo mutável e
plasmado pelo social. A constituição que Maquiavel enuncia é constituição
material decorrente da virtù coletiva. Materialidade que se expressa no povo em
armas como poder constituinte.35 Interessante observar que a narrativa da qual o
próprio Políbio se vale para demonstrar a degeneração das boas formas de
governo confirma a distinção aqui posta. Analisando os relatos contados por
Políbio, conclui-se que o ponto de convergência entre todos os processos que
levaram à ruína aqueles bons governos é, justamente, a ausência de conflito, e não
o inverso. A monarquia degenera pelo fato de o rei, diante da consolidação de sua
condição de superioridade, exigir submissão aos seus caprichos e suas veleidades,
a ponto de se tornar tirano. A certeza de que nada lhe pode ser negado permite ao
constituinte ser identificado por fórmulas estáticas e preconcebidas como naturais, pois, como expressa o autor, o poder constituinte se manifestou, ao longo da história, “como oposição radical e contínua ao jusnaturalismo, encarnando a dinâmica contra a estática, a criação contra o contrato, a vitalidade e a inovação contra a ordem e a hierarquia.” Ibidem, p. 428. 35Nas palavras de Negri: “A capacidade de agir sobre o tempo a partir do próprio tempo, de constituí-lo ou sobredeterminá-lo deve ser armada – a virtù faz-se poder constituinte neste momento, uma vez que, em sua relação com as armas, ela constitui a ordem social”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 92.
29
rei exercer a tirania. A inexistência de desunião entre o monarca e outras classes
lhe confere esta condição, degenerando a monarquia.36 A aristocracia, boa forma
de governo que substitui a tirania, também degenera pela ausência de desunião: os
filhos dos primeiros aristocratas, ilustres e magnânimos homens que se insurgiram
contra a tirania, herdam suas prerrogativas, mas não se comportam com a
dignidade dos seus pais. Criados sob a doce proteção dos privilégios paternos têm
por legítimos a cupidez e o ganho desenfreado de dinheiro. E assim se passa,
afirma Políbio, pois tais privilegiados nunca viveram tempos de infortúnio e
desconhecem a igualdade política.37 Vivem em tempos sem conflitos, em que se
enxergam como naturais detentores daqueles privilégios. Não há grupo que lhes
apresente a desunião. Em sentido oposto, o restabelecimento dos governos
virtuosos se dá, na narrativa polibiana - sem que o próprio Políbio disso se dê
conta - apenas através do conflito, mediante o qual a comunidade, ou parte dela,
reage contra um governo degenerado, plasmando uma nova ordem política mais
justa. Assim, a tirania só é arrostada pelo movimento de parte da sociedade que se
insubordina contra o tirano, dando origem a aristocracia. A desunião como
restabelecimento de uma boa forma de governo se apresenta clara, nesta
passagem. Não é diverso o processo que leva a oligarquia a ruir. O povo se opõe
frontalmente aos abusos oligárquicos. Desta desunião nasce a democracia.38
O que se deixa entrever é que as boas formas de governo nascem do
conflito, e sua ruína do fato de instaurar-se a inércia social. Políbio recusa-se a
realizar esta leitura e adere ao automatismo de associar necessariamente ordem à
idéia de bom absoluto e conflito à noção de originariamente mau. A narrativa que
Políbio desenvolve para explicar a anaciclose poderia levá-lo a caminho diverso:
compreender, como fez Maquiavel, que o conflito permite manter a virtude do
governo e que, a tentativa de construir mecanismos para sufocar a desunião – ou
relegá-la ao desprezo e indiferença – é o primeiro passo para a sua ruína.39
Ademais, como última nota sobre o desacerto de considerar a teoria política
36 POLÍBIO. História, pp. 329-330. 37POLÍBIO. História, p. 330. 38Ibidem, pp. 330-331. 39Este tema será retomado, pela relevância que guarda para a pesquisa, ao se analisar a proposta de separação de poderes de Montesquieu. Nele o temor à desunião é evidente. Montesquieu sabe que através do dissenso se articula o social ao político. A constituição mista, entretanto, não é suficiente para Montesquieu. Ela não evita o último traço de conflito: o dos poderes entre si. Daí a necessidade de se instituir um poder neutro, que amorteça qualquer conflito.
30
maquiaveliana inscrita na tradição do elogio ao modelo de constituição mista,
convém ressaltar o caráter natural que Políbio confere à anaciclose. A
degeneração dos governos, sua origem e transformações ocorrem em sucessão
natural40, inexoravelmente. Seja qual for a atuação dos homens, a fatalidade se
abate sobre os mesmos, levando à ruína seu sistema político. Daí a necessidade de
reunir todas as formas de bom governo em uma única constituição. No seio do
governo misto, o modo como o sistema político encontra-se formalmente
estruturado, torna despicienda qualquer intervenção da virtù humana na tarefa de
mantê-lo estável e próspero. Nada mais antimaquiaveliano que esvaziar de virtù o
conceito de política.41
Ultrapassada esta questão - decisiva para ratificar a eleição da teoria de
Maquiavel como norteadora de uma compreensão sobre democracia diversa da
que explicita o constitucionalismo liberal – impõe-se retornar à discussão sobre a
necessidade da adoção de novos conceitos de poder constituinte e política. Neste
desiderato, as teorias de Antonio Negri e Jacques Rancière apresentam-se como
convites a percorrer caminhos mais acidentados, que obrigam a (re)ver os modos
40POLÍBIO. História, p. 327. 41Os caminhos opostos que traçam as teorias políticas de Maquiavel e Políbio comprovam apenas esse distanciamento, e nos permite avançar no estudo tendo por fundamento a concepção de política maquiaveliana, sem o risco de reproduzir o modelo de constituição mista, tão caro ao constitucionalismo liberal produtor de inúmeros diques contra a democracia. No entanto, resta pendente o questionamento sobre os motivos que levaram Maquiavel a se valer do modelo polibiano. Newton Bignotto, recorrendo a Claude Lefort, nos alerta para o fato de que a compreensão dos Discursos depende do leitor ter em mente “seu caráter sinuoso, sua referência constante a fatos e teorias conhecidas, seu uso da linguagem forjada pelos humanistas para abandonar os paradigmas medievais e, sobretudo, seu caráter inovador”. BIGNOTTO, Newton. Introdução a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. XXVI. Bignotto afirma, ainda, que não se pode esquecer que este signo novo sob o qual deve ser pensada a obra de Maquiavel decorre de um estudo em que a novidade é tramada no convívio com o passado, em confronto com crenças fortemente arraigadas sobre a política, relembrando os riscos implicados em contrariar dogmas estabelecidos pela tradição. Ibidem, pp. XXV-XXVI. A interpretação de Antonio Negri sobre a referência à teoria polibiana em Maquiavel capta a sinuosidade do discurso maquiaveliano a que se refere Bignotto. Negri recorda que a idéia de constituição mista integra a ideologia do humanismo florentino, o que explica a referência do modelo por Maquiavel. NEGRI, Antônio. O poder constituinte, p. 99. No entanto, afirma Negri, a inserção do princípio democrático e sua associação ao princípio da desunião na teoria de Maquiavel revelam os caminhos que o levaram a ultrapassar a influência polibiana. Ibidem, p.96. Esta influência polibiana, conclui o autor, observada no início dos Discursos e abandonada ao longo deles, trata-se de “uma influência que é muito mais relativa à erudição e ao método classificatório do que à filosofia. Com efeito, quanto mais levamos em consideração a retomada insistente e contínua do modelo polibiano de governo misto, mais constatamos a profunda repulsa de Maquiavel à possibilidade de deixar-se encerrar e deter na teoria da recorrência dos ciclos políticos (anakyklosis)”. Ibidem, pp. 98 e 99. Em sentido diverso, compreendendo que a teoria de Maquiavel se afina com o conteúdo do modelo proposto por Políbio ver BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Ed. da Univ. de Brasília, 1992.
31
como a democracia se propõe a avançar a despeito – e não por graça – do modelo
liberal.
A força transformadora da teoria política de Maquiavel é retomada por
Negri e Rancière. Sobre o que nos interpelam os ensaios maquiavelianos a
conduzir ao estudo das teorias de Rancière e Negri? Em primeiro lugar, sobre a
necessidade de um conceito de poder constituinte que não se identifica com o
modo pelo qual o constitucionalismo rotineiramente define o seu papel. Um poder
constituinte ilimitado no tempo e no espaço, força que, uma vez organizadora de
uma nova ordem, não se encerra com a elaboração de um texto constitucional e se
propaga para além dos escaninhos da ciência jurídica. O poder constituinte que
corresponde ao povo em armas - que tendem a ser de diversas naturezas em
contexto diferentes42-, e que tem na desunião a força motriz para garantir à
coletividade a posse destas armas. Em um segundo momento, a teoria de
Maquiavel promove interpelações sobre o papel das instituições criadas por este
poder constituinte. Instituições que não se tornam sujeitos condutores da política,
e sim instrumentos para atuação dos verdadeiros sujeitos políticos que resistem
contra a submissão à vontade de um grupo detentor de títulos de nobreza,
sapiência ou riqueza.
Partiu-se, portanto, do conceito de democracia como experiência efetiva,
material, que define e redefine o conteúdo da constituição pela força produtiva
coletiva; poder que age sobre o real transformando-o, constituindo um novo real,
poder constituinte que não encontra limites espaciais ou temporais. Nesta
concepção, os sujeitos constituintes jamais se encerram na figura de um
parlamentar ou de um magistrado. Os espaços da política jamais se limitam às
assembléias ou tribunais. Os sujeitos que podem conduzir a política são inúmeros
42As armas devem ser de naturezas diversas, como afirma Negri: “[...] a forma adequada de resistência muda historicamente e deve ser inventada a cada nova situação [...] um revolver já não é mais uma arma adequada de defesa [...] Com toda a evidência são necessárias novas armas para defender a multidão.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 430. Neste mesmo sentido, Francisco de Guimaraens anota que não se trata de transpor para os dias atuais a criação de milícias armadas. Trata-se apenas, explicita o autor, “de um exemplo muito interessante onde se definem mecanismos populares de contenção do poder”. GUIMARAENS, Francisco de. Direito de resistência e a receptividade de doutrinas jurídicas. Direito, Estado e Sociedade, n° 30, janeiro-junho 2007; Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica – Departamento de Direito, 2007, p. 172.
32
e nunca predeterminados, derivam de incontáveis associações entre múltiplas
singularidades. O processo constituinte apresenta-se aberto e ilimitado, e o poder
constituinte já não pode se identificar como ator que abandona o palco da política
após a promulgação da Constituição.
As considerações acima apresentadas requerem que se ponha sob discussão
conceitos que se encontram diretamente vinculados ao tema e que, não obstante,
são solenemente desconsiderados pela doutrina jurídica brasileira ou, ainda,
esterilizados como mera retórica para legitimar a atuação do Supremo Tribunal
Federal. Aprofundar a pesquisa sobre os conceitos de poder constituinte, política e
revolução apresenta-se, assim, essencial para o enfrentamento do tema proposto.
E mais: para além de debater se o Supremo deve ter um posicionamento mais
ativo ou mais tímido frente às questões impregnadas de teor político, convém
questionar se aquela corte, na qualidade de poder constituído, tem se comportado
como instituição permeável às demandas por atualização do principio democrático
ou se atua no sentido de conter o poder constituinte, apresentando-se como órgão
primordial e naturalmente talhado para exercê-lo. Isto porque, ambos os
movimentos – atuação e abstenção da corte perante demandas políticas – podem
ser conduzidos, a depender do caso, de forma a alargar ou restringir a democracia.
Em outros termos: não é a simples existência de maior ou menor grau de ativismo
judicial que, por si só, reflete a atuação democrática do Supremo Tribunal
Federal.
Assim, alguns conceitos que pareciam já sedimentados para a ciência
jurídica revelam a atualidade e necessidade de serem postos à prova diante de uma
teoria democrática que proponha ultrapassar o modo transcendente de entender o
poder constituinte. A imbricação entre os conceitos de poder constituinte, política
e revolução; o tempo, espaço e sujeitos a elas associados, tudo isso que parecia
remeter a um passado já encerrado, sempre esteve constantemente presente, certa
e propositadamente sob uma alcunha mistificadora e, não raro, pejorativa:
sedição, arruaça, vandalismo, histeria. As manifestações de Seattle e Gênova, a
organização do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, a revolução
feminista, dentre inúmeros outros processos de subjetivação que emergiram como
luta política, se inserem nesse contexto.
33
Necessário, portanto, retornar à gramática da democracia, entendida naquela
concepção do governo de todos por todos. Esta tarefa nada fácil requer um
instrumental teórico que possibilite a efetiva conexão entre democracia, poder
constituinte e política. O uso de teorias que operam no plano da transcendência
revela-se inapropriado para esse desafio. Com efeito, o contratualismo, sob o qual
se edificou o conceito hegemônico de política na modernidade, revelou sua
insuficiência em compreender a realidade, com suas nuances, complexidades e
paradoxos. Conforme alertara Maquiavel, a busca pela verdade das coisas
constitui-se o primeiro pilar sobre o qual deve se sustentar uma teoria política. Da
transcendência, em sentido oposto a este enunciado maquiaveliano, decorre o
reducionismo do real em um modelo ideal e, portanto, monolítico e imutável, de
todo impróprio para compreender a realidade errática, difusa e em constante
transformação.
As teorias de Antonio Negri sobre poder constituinte e de Jacques Rancière
a respeito da política se afiguram como potente manancial teórico para enfrentar
as questões aqui suscitadas. Não apenas pelo caráter imanente, ressalte-se, como
pelo profundo comprometimento com o ideal democrático de suas teorias, tais
autores possuem concepções de poder constituinte e política que se entrelaçam,
permitindo compreender como a força criativa e liberadora do poder constituinte
pode emergir pela atuação de diversos sujeitos políticos. As antagônicas formas
de se entender o poder constituinte e a política, acima enunciadas, decorrem de
uma questão mais profunda a que a ciência jurídica se esforça para fazer parecer
já resolvida: a tensão entre transcendência e imanência. Necessário, portanto,
compreender as implicações desta tensão.
2.2 Transcendência versus imanência
O estudo sobre as formas transcendente e imanente de compreender a
política é indispensável para compreensão dos mecanismos de aprisionamento do
poder constituinte. Os conceitos de soberania, representação e poder neutro,
essenciais para identificar a tensão entre poder constituinte e poder constituído,
foram extraídos, historicamente, de uma concepção transcendente de compreender
34
a realidade. Necessário, portanto, tecer breves considerações a respeito destes
modelos. Conforme expresso por Francisco de Guimaraens:
[...] transcendência é registro do real que supera a capacidade humana de intervenção neste mesmo real, e imanência é o plano ou registro da realidade no qual se inserem o ser humano e as demais coisas existentes e do qual os mesmos participam, sendo capazes de realizar intervenções ativas ou serem afetados pelo que é imanente. ”43 A causa que opera no plano de imanência, afirma o autor, produz ali seus
efeitos e rejeita qualquer idéia que, originada de um plano exterior, lhe venha ditar
efeitos. Trata-se do plano onde os eventos ocorrem e os conceitos não estão prévia
e exteriormente dados; são construídos no âmbito de um processo aberto no qual a
atuação do homem e seu poder criativo edifica a história.
A transcendência, em sentido oposto, supõe a intervenção de um princípio
superior que determina a dinâmica de processos cuja nossa impossibilidade de
conhecer ou alterar nos conduz à mera obediência ou negação. A criatividade
humana, na concepção transcendente, não rege a contínua construção do real; este
já existe por uma ordem natural externa, cabendo ao homem apenas compreender
e atuar conforme os ditames desta ordem. Se assim o é, resta inócua a intervenção
humana na direção de modificar esta ordem natural que rege o real. A atuação
criativa – individual ou coletiva – não é a matéria com a qual se possa construir
uma nova ordem, interferindo na sua condução.
Conforme ressaltado por Espinosa, a transcendência é a lógica própria com
a qual operam as religiões, com seus dogmas e desígnios divinos aos quais cabe
apenas resignação, por ato de fé, ou refutação, por ausência dela. Eis por que,
conforme pontuado pelo pensador, a teologia se destina ao ensino da obediência.44
Ela não se propõe a explicar as ciências e debelar a ignorância, e sim impor
aceitação incontestável aos comandos divinos decifrados pelos escritos
sagrados45. Não há necessidade de compreensão destes comandos, exige-se
apenas subordinação. A relação entre teologia e filosofia é, portanto, de total
43GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito além da modernidade hegemônica. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 34. 44ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 291. Como explicita Espinosa nesta mesma passagem: “a doutrina evangélica, por seu lado, não contém senão a simples fé: crer em Deus e adorá-lo ou, o que vem a dar no mesmo, obedecer-lhe.” Ibidem, p. 34. 45Ibidem, p. 285.
35
oposição. Esta se encontra a serviço do saber, da construção de novos conceitos
decorrentes das relações e atuações humanas. No plano religioso, plano de
transcendência, passa-se o oposto: não há ação humana possível que altere o
princípio superior, divino, que ordenada o mundo real. A teologia opera, assim,
através de uma lógica de servidão.46
Se a teologia se opõe em tudo à filosofia, em relação à política ela guarda,
ao menos, um ponto de contato. Ambas - teologia e política - lidam com a
pretensão de legitimação de poder.47 Ao longo da Idade Média os teólogos
lograram reunir poder divino e poder secular sob uma única rubrica ao
transplantar para a política o ideal de transcendência através do qual explicavam a
criação e organização do mundo por Deus. Como demonstra Marilena Chauí, a
teologia cristã erigiu um sistema jurídico-político voluntário e teocrático48 com
base na idéia da transcendência da divindade; sistema no qual o governante
terreno é ungido por Deus, e por sua graça detém o poder de político de mando.
Chauí destaca a conseqüência imediata de assentar o poder político sobre a
transcendência da pessoa divina:
Deus é o imperator mundi porque teve o poder absoluto de tirar o mundo do nada e tem o poder para conservá-lo ou aniquilá-lo, mas sobretudo porque ocupa o lugar onde estão inscritas as marcas do verdadeiro poder, quais sejam a separação e a transcendência. O governante terreno é imperator porque recebeu de Deus o poder para fundar o Estado, criando as leis, e porque, como Deus, seu poder o separa e o destaca da sociedade, pairando acima dela [...]49
A sacralização do poder político origina, assim, um sistema que impõe
submissão inquestionável ao representante divino autorizado pelos céus a exercer
46CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.84. 47A respeito deste ponto de contato Marilena Chauí pontua que a contraposição entre filosofia e teologia corresponde à oposição entre liberdade e servidão, e ressalta que “a teologia ocupa um campo muito próximo ao da política que, como ela, também se refere à obediência e à autoridade”. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa, p. 84. Autoridade aqui é utilizada como termo necessariamente vinculado à idéia de servidão, numa relação de mando e obediência que legitimou o exercício do poder político na Idade Média, bem como, na modernidade. Ressalte-se que a política, na perspectiva adotada no presente trabalho, afasta-se da idéia de obediência e autoridade classicamente apontadas como fundamentos da teoria política erigida no medievo e continuada pela modernidade hegemônica. A política, na forma aqui apresentada, inscreve-se na tradição maquiaveliana de possibilidade de liberação pela atuação dos homens dotados de virtù. Política como liberação, nunca como servidão; abolição da noção de autoridade como sujeito que determina, de um patamar superior, o destino político da comunidade. 48O caráter voluntário se expressa na máxima “O que apraz ao rei tem força de lei”, ao passo que o elemento teocrático deste poder político é revelado pelo quanto dito nos Provérbios: “Por mim [Deus] reinam os reis e governam os príncipes”. Ibidem, pp. 86-87. 49 Ibidem, p. 87.
36
seu comando sobre os homens na Terra. Ao fazê-lo, destituiu das relações
humanas qualquer fundamento de legitimidade de exercício do poder, atribuindo-a
a um comando superior, inquestionável e imutável.
A transição do medievo à modernidade vincula-se diretamente às
modificações observadas nos mecanismo de legitimação do exercício do poder.
Na aurora desta passagem irão se confrontar projetos diversos de organização da
sociedade. Interessante observar como a transcendência é novamente inserida no
pensamento político da modernidade, certamente de modo dessemelhante à forma
como foi engendrada na Idade Média, mas com o mesmo intuito de conter a
liberação do poder constituinte, erigindo estruturas de manutenção da servidão,
disciplina e conservação do poder. A modernidade foi marcada pela disputa entre
dois modos de se conceber o mundo: o imanente e o transcendente. Deste embate,
do qual a modernidade da transcendência se sagraria vitoriosa como modelo a
substituir a estrutura de regulação medieval, derivaram, ao menos, dois modos
distintos de conceber a política e o poder constituinte.
Impõe-se, portanto, analisar a tensão entre imanência e transcendência que
marcou a transição do medievo à modernidade. O esgotamento do modelo político
que vigeu ao longo da Idade Média acompanha as fissuras impostas, durante
séculos, ao modo transcendental de compreender o real. Antonio Negri e Michael
Hardt demonstram como, entre os séculos XIII e XVI, evidenciou-se
paulatinamente para os homens a dimensão libertadora da sua capacidade criativa
e produtiva. Apesar de continuarem sob o julgo da transcendência, a mutabilidade
do mundo se fazia evidente e estes mesmos seres humanos se davam conta de que
eram atores constituintes destas mudanças. Deixaram como legado, afirmam
Negri e Hardt, a idéia de produção da ciência derivada do experimento humano,
além de se perceberem como edificadores de cidades, produtores de história e de
seu próprio destino.50
Este longínquo percurso foi conseqüentemente acompanhado do processo
de secularização do poder político e culminou com a negação da legitimação
divina do poder terreno dos monarcas. O plano da transcendência, sobre o qual os
teólogos edificaram a relação de dominação e submissão medieval, parecia
50HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. São Paulo: Record, 2006, p. 89.
37
fraturado, fadado ao passado que jamais retornaria. O mundo vivenciava a
descoberta do plano da imanência, terreno fértil do qual brotam a potência do ser
humano e sobre o qual as relações sociais se desenvolvem pela atuação criativa
dos homens. O conhecimento não mais provinha dos céus; é agora fruto da
intervenção humana, de sua possibilidade de transformar a realidade, construindo
novos saberes. Este processo, a que Negri e Hardt atribuem a passagem do
conhecimento do plano de transcendência para o plano de imanência51, espraiou
seus efeitos por todos os campos do conhecimento. Da filosofia às artes, das
ciências duras à economia, nada escapou ao impacto da descoberta do plano da
imanência. Iniciava-se a revolução humanista contra sacralização do poder que
atribuía à fortuna a condução dos destinos humanos.
Diverso não se passaria com a política e as formas de compreender os meios
pelos quais se legitimava o exercício do poder. Não se torna difícil imaginar que a
alteração radical de concepção de mundo instaurou uma crise no campo político,
opondo uma nova realidade - divorciada da necessidade de mediação teológica
para compreender os desígnios divinos que constituíam o real - às carcomidas
instituições que anteviam a ruína de seu poderio político. A modernidade se inicia,
portanto, como processo revolucionário, no qual se compreende o poder como
possibilidade de liberação, não de submissão; um processo em que se abre para
todos os homens a possibilidade anteriormente atribuída apenas a Deus: construir,
modificar e predeterminar a realidade.52
A esta concepção imanente, liberadora e criativa, que emerge nos princípios
da modernidade, irá se opor uma antiga opção pela relação de dominação e
submissão. À revolução operada pela descoberta do campo da imanência, tão bem
captada por Maquiavel ao apresentar a política como sistema dinâmico
impulsionado pela virtù, se observou uma reação dos núcleos de poder que viram
sepultados os fundamentos que lhes propiciavam o controle da sociedade. O que a
revolução humanista havia inaugurado anunciava um brusco deslocamento do
centro de gravidade das relações de poder: se o homem conquista a liberdade ao
se compreender artífice dos próprios caminhos, ruem as engrenagens que
51HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p.91. 52Ibidem, pp. 90-91.
38
dependiam de sua servidão voluntária53 para perpetuar a mecânica da dominação.
Os poderes régio e eclesiástico entendem exatamente os riscos aos quais se
encontram submetidos. A desnecessidade de mediação do poder por um soberano
que representa Deus na Terra abre perspectivas de dimensão igualitária para os
homens. Já não é possível conter a imanência do humanismo renascentista pela
transcendência medieval. Impõe-se edificar um novo arcabouço teórico que possa
efetivamente conter a onda revolucionária. Eis por que, contra a revolução
humanista se instaura uma contra-revolução com intuito de restabelecer ideologias
de comando e autoridade54 e os mecanismos dos quais ela se vale remete, mais
uma vez, à transcendência. Não mais a que se observava no medievo, e sim uma
transcendência própria da modernidade que guarda relação com aquela apenas
pelos efeitos pretendidos. O conflito entre imanência transcendência é, assim, a
crise que define a modernidade.55
O campo da teoria política é profundamente influenciado por esta crise. Já
restou anotado como Maquiavel conseguiu captar magistralmente a potência
liberadora da imanência. Em sentido oposto, Thomas Hobbes desenvolve seu
pensamento político tendo por pedra angular a necessidade de se instituir um
mecanismo de mediação do exercício da potência humana.56 A idéia de um
53A manutenção da servidão por meio da força sempre produz mais custos e riscos. A criação de um de sistema que dociliza os corpos e entorpece as mentes de forma a introjetar nas pessoas o sentido de naturalização de um modelo opressor, garante a estabilidade de uma classe no poder. Este projeto não se inaugura com o tipo de modernidade que reage ao humanismo. A Idade Média foi regida por um modelo de dominação que se impôs, por séculos, como natural. A ruptura deste modelo, e a possibilidade de liberação da sociedade no início da modernidade, obrigou à idealização de uma nova estrutura, uma outra máquina que, conquanto tenha que ser erigida com diferentes engrenagens, tem objetivos semelhantes à anterior: naturalizar um modelo de dominação e obter servidão voluntária, ainda que as classes que se beneficiem desta mecânica possam alterar ao longo da história – do que a ascensão da burguesia e a vitória de seu projeto de modernidade são provas. 54HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 93. 55Ibidem, p. 93. As guerras e revoltas que se espalharam pela Europa na Idade Moderna têm por raiz o embate entre as duas formas de modernidade acima referidas. 56A necessidade de mediação é apontada por Negri e Hardt como característica do aparelho transcendental criado para conter a revolução humanista que revelou a potência constituinte dos homens. Conforme os autores, a mediação foi imposta como meio de compreender a complexidade das relações humanas e considerada inevitável condição de “toda ação, arte e associação humana”. Ao pensamento revolucionário do humanismo, pontuam os autores, “opôs-se uma tríade por intermédio do filtro dos fenômenos; o conhecimento humano não pode ser adquirido exceto por meio da reflexão do intelecto; e o mundo ético é incomunicável a não ser pelo esquematismo da razão. O que se está em jogo é uma forma de mediação, ou, mais exatamente, um esmorecimento reflexivo e uma espécie de débil transcendência, que relativiza a experiência e abole todas as instâncias do imediato e do absoluto na vida e na História humana.” Ibidem, p. 96. No campo da política, a mediação voltaria como a necessidade de se encontrar um
39
soberano que determina as leis, impõe a ordem e organiza a sociedade em prol da
salvação pública retornaria, assim, sob nova roupagem. O soberano mediador não
pode ser mais aquele decorrente da vontade divina e Hobbes, propondo um
método racional, matemático, para identificar este mediador, trata de afastar
qualquer possibilidade de retorno ao pensamento medieval neste particular. Sob
os influxos da guerra civil inglesa, Hobbes identifica a luta por poder como razão
dos embates fratricidas, e aponta a necessidade de concentração e centralização do
poder em um núcleo para obtenção da paz. Do titular deste poder soberano
deveria emanar a lei civil - obrigatória e ordenadora - que disciplina todo o corpo
social e rege o sistema político.57 A teoria de Hobbes é centrada na definição do
estado de natureza e no contrato firmado entre os homens como mecanismo para
se protegerem dos efeitos deletérios daquele estado. Hobbes principia seu estudo
analisando em que condições o homem se encontrava inserido na natureza antes
de se agregar em sociedade. O que distingue este hipotético estado de natureza é o
fato de não existirem diferenças suficientes entre os homens a ponto de garantir
que um se sobreponha ao outro.58 O poder está pulverizado de modo equânime em
cada indivíduo. Desta igualdade decorre a esperança dos homens atingirem seus
fins e o conflito para obter os mesmos bens59; instaura-se, assim, uma guerra de
todos contra todos60, tornando instável a paz e a ordem. O medo da morte e a
impossibilidade de gozar seus bens acompanham o homem no estado de natureza
hobbesiano.61 A igualdade, que em Maquiavel se apresenta como princípio ao
qual a república deveria sempre retornar para garantir liberdade e estabilidade,
aparece em Hobbes como a raiz da insegurança e da instabilidade.
soberano que relativizaria o poder dos homens e definiria uma ordem – pré-constituída e com pretensão de imutabilidade – pela qual todas as ações deveriam se pautar. 57BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição; pp. 86-87. 58Hobbes descreve a igualdade como característica do estado de natureza no início do capítulo XIII do Leviatã: “observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.”. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. Alex Marins; São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 96. 59“Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Se dois homens desejam a mesma coisa, portanto, eles se tornam inimigos.” Ibidem, p. 96. 60Ibidem, p.98. 61Hobbes vaticina que no estado de natureza não há sociedade e, o que é pior, “há um constante temor e perigo de morte violenta”. Ibidem, p.98.
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Se a guerra decorre da igualdade que permite que cada homem se governe
apenas pela sua própria razão e detenha o direito a todas as coisas, a paz decorre
do pacto pelo qual os homens renunciam mutuamente ao direito a todas as coisas
e atribuem ao Estado o poder pleno de fazer cumprir este pacto.62 O estado de
igualdade é um estado de guerra63 e o modo mais racional de evitá-lo é saindo do
estado de natureza pela criação do Estado detentor da espada, garantidor da
segurança e da ordem, através da força. Renato Janine Ribeiro sintetiza com
acuidade o pensamento hobbesiano:
É a igualdade que dá aos homens a vontade de se matarem e roubarem uns aos outros, que os faz almejarem o poder sobre seus semelhantes; é na igualdade entendida como agressão, em suma, que se encontra a raiz das diferenças, ou seja, da desigualdade. Para garantir a paz devemos apoiar-nos neste efeito, a desigualdade, o poder; agravá-lo; e de um golpe abolir a raiz igualitária que torna tão incerta a sorte dos homens. ‘O estado de igualdade é o estado de guerra’. É situando a desigualdade no centro, dando-lhe o primado, que se alcança a paz. Para impedir a perpétua insegurança das relações de poder, é necessário o advento do Estado, tentativa de tornar a desigualdade irreversível de tão temida.64
A ordem e paz restam, assim, condicionadas à verticalização e unicidade do
poder na figura de um soberano – seja uma pessoa ou uma assembléia – que
represente o Estado. A ele cabe estabelecer as leis às quais os contratantes devem
cega obediência. O ato que estabelece a soberania decorre de um pacto, um ato
jurídico que não pode ser rompido unilateralmente. O Estado Leviatã nasce como
uma pessoa única - diversa daqueles indivíduos que aceitaram ceder parte de seus
direitos ao soberano - e dotada de vontade única.65
62Assim Hobbes define os termos do pacto, mediante o qual nasce o Estado e a soberania: “A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros [...] é conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes deles próprios [...] Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações’. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.” E continua: “Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os outros são súditos”. HOBBES, Thomas. Leviatã, pp. 130-131. 63Ibidem, p. 140. 64RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã: linguagem e poder em Hobbes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 29. 65BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 89.
41
Na passagem do estado de natureza para o estado de sociedade civil pode se
identificar a sagacidade da construção teórica erigida por Hobbes, consistente em
criar um mecanismo de controle sem precisar recorrer à idéia de um soberano
legitimado por uma ordem divina. Sua teoria opera, inicialmente, no campo da
imanência por não determinar a existência do soberano como derivada de
nenhuma força superior, externa, e sim, oriunda das relações humanas. A criação
do pacto que faz nascer o Estado e a figura do soberano decorre unicamente pela
atuação da razão dos homens diante dos desafios que lhes impõe as agruras do
estado de natureza. Porém - e aqui reside a sutileza do aparelho transcendente
elaborado por Hobbes - o processo metafísico que leva à legitimação do soberano
acaba por desaguar em uma transcendência que se sobrepõe à imanência. Uma
vez ungido, o soberano se descola completamente do corpo social que
hipoteticamente o autorizou e já pode atuar como poder externo e superior, de
acordo com sua própria vontade, restando limitado apenas pela obrigação de zelar
pela salvação pública: proteção do Estado dos riscos externo (invasão) e interno
(sedição e desordem). Diante disto, revela-se a pertinência da afirmativa de
Francisco de Guimaraens no sentido de que a teoria de Hobbes permitiu o
controle da imanência por mecanismos transcendentes.66
A metafísica, na teoria hobbesiana, tem o papel de permitir a construção de
um modelo transcendente67 sem a necessidade de se recorrer à legitimação divina.
A transcendência hobbesiana, no entanto, não se encerra na metafísica. Esta é
apenas um meio para realizar a transição entre a imanência do estado de natureza
para a transcendência da soberania. Em Hobbes, a transcendência opera função de
conferir autonomia à política, desgarrando-a do social68, refreando todo o
potencial criativo que o humanismo pôs em marcha no início da modernidade. Por
este modelo não há possibilidade de o social vincular-se ao político.69 O social é,
66GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 38. 67 Negri e Hardt explicitam o vínculo entre a política e metafísica européia moderna, ao identificar a metafísica como mecanismo essencial para que a forma transcendente da modernidade, preocupada em conter a revolução humanista, erigisse seu aparelho político de dominação. Para os autores a metafísica “forneceu um maquinismo transcendente que pôde impor ordem à multidão e impedi-la de se organizar espontaneamente e expressar sua criatividade de forma autônoma.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, pp. 100-101. 68GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 39. 69Como expõe Francisco de Guimaraens: “o que há de mais interessante na teoria hobbesiana é o fato de que tal autor, inicialmente aceita a imanência, parte dela, para depois abandoná-la em favor da regulação extrínseca às forças sociais”. Ibidem, p. 38.
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assim, disciplinado pela política verticalmente exercida numa relação de mando e
obediência. O poder político, nesta concepção, independente das forças sociais.
Em verdade, conforme pontua Renato Janine Ribeiro, Hobbes “monta um Estado
que é a condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o
Estado”.70 Hobbes atribui ao soberano o poder de um Deus na Terra e, assim,
sacraliza a soberania e revela o campo transcendente sobre o qual opera sua teoria
política.71 Ao fazê-lo, aproxima-se dos mecanismos de obediência, impedindo sua
contestação. Mas essa obediência nada tem a ver com o temor ao Deus Imortal.
Decorre, antes, da contrafática autorização dos homens ao soberano, que faz da
representação o meio transcendente e legítimo pelo qual a soberania é exercida.
Hobbes propõe, assim, o encerramento da crise da modernidade pelo
entrelaçamento entre soberania e representação. Da autorização que possibilita a
representação nasce a soberania. A legitimidade das decisões do soberano decorre
do próprio ato de autorização de cada indivíduo, pelo que não cabe outra postura
que não a de obediência.72
O momento histórico durante o qual Hobbes desenvolve sua teoria é
marcado pela disputa do poder político entre o parlamento e o rei, na Inglaterra73,
a incutir no pensador inglês a certeza da inadequação do exercício da soberania
entre núcleos de poder diversos. Nesta divisão do poder residiria o fruto da
sedição, o incentivo ao facciosismo. A soberania, na concepção hobbesiana, é,
assim, marcada pelo seu caráter absoluto, uno e indivisível. O contrato que
atribuiu poderes ao soberano não o submete a obrigações outras que não a
garantia da segurança dos contratantes. Seu poder é ilimitado e centralizado;
emana apenas de sua pessoa e seu exercício não é compartilhado por outros
centros de poder como se supõe pela teoria do governo misto. Estão lançadas as
bases sobre as quais se edificaria o Estado moderno. A partir de Hobbes, se
70RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: Os clássicos da política, v.1; Francisco C. Weffort (org.); São Paulo: Ática, 2006, pp. 51-77, p. 62. 71A associação é feita pelo próprio pensador inglês: “Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda a reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.” HOBBES, Thomas. Ibidem, p.131. 72HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 102. Francisco de Guimaraens explicita, no mesmo sentido: “Hobbes resolve a tensão entre a transcendência e a imanência valendo-se de um aparato político transcendente ao corpo social. A transferência de poder enseja a capacidade do soberano de decidir de acordo com sua própria vontade, na medida em que exerce a representação dos contratantes”. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 39. 73BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, p.112.
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introduziu definitivamente a imbricação entre os conceitos de soberania e
representação na teoria política. Como ressaltam Negri e Hardt, o modelo
hobbesiano possibilita a edificação do esquema transcendente em todas as formas
de governo, inclusive, na democracia. A associação entre soberania e
representação, passará, depois de Hobbes, a ser cara ao desenvolvimento da teoria
política ocidental, inclusive ao constitucionalismo liberal.
Mas há algo, ainda, de suma importância sobre a teoria hobbesiana: a forma
pela qual a propriedade é tratada em seu âmbito. Como não poderia ser diferente,
os fatores econômicos influenciaram decisivamente a construção da teoria política
de Hobbes. Renato Janine Ribeiro pontua que, à época em que o Leviatã foi
escrito a classe burguesa já iniciara a luta para afirmar o poder absoluto do
proprietário sobre seus bens. Esta relação sofria limitações na Idade Média, mas
na modernidade o proprietário iria somar ao direito de uso do bem, o direito a seus
frutos e o de dispor do bem da forma que lhe aprouvesse.74 Neste aspecto
específico, a teoria de Hobbes se aparta dos interesses da burguesia por atribuir ao
soberano o poder de controle sob todas as terras e bens. Não há uma lei que
subordine o soberano ao dever de respeitar a propriedade privada. O Estado é
quem tutela o direito de propriedade de acordo com a vontade do soberano.75 Nas
palavras de Renato Janine Ribeiro:
Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade – e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhada em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada – mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens estão controlados pelo soberano.76
No entanto, se o golpe na pretensão por autonomia do direito à propriedade
afasta a burguesia da teoria hobbesiana, o mesmo não se passa quanto à
concepção sobre as atribuições do Estado. A burguesia não procurou conferir
função diversa ao Estado que não a de mero garantidor da ordem e da segurança
do modelo liberal. O processo de acumulação de bens e lucro não pode recusar a
atuação estatal a impor disciplina social. De fato, a guerra civil lança os 74Conforme ressaltado por Renato Janine Ribeiro, na Idade Média a propriedade era um direito limitado. O autor exemplifica algumas limitações neste sentido: “o senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra”. RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança, pp. 51-77; p. 72. 75Bobbio, Norberto. A teoria das formas de governo, p.108. 76RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança, pp. 72-73.
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proprietários em um espiral de incertezas sobre a possibilidade de manutenção de
seus bens e da própria ordem que os assegura. A revolução inglesa, vivenciada
por Hobbes, iria tornar palpável esta possibilidade. Os anos de guerra civil inglesa
foram marcados pelo confronto entre modos opostos de se entender a propriedade.
A conflagração da guerra desnuda o conflito entre essas diversas formas de
interpretar o mundo. A perpetuação angustiante da vigília pela guerra que se
prenuncia leva Hobbes a propor a soberania absoluta como único meio para
conservar o gozo da propriedade. A luta política aflige o social. Deve-se, pois,
encerrar as disputas políticas centralizando o poder político no soberano como
meio de pacificar a sociedade. O ideal hobbesiano do Estado garantidor da ordem
pública e da proteção ao gozo propiciado pela propriedade privada jamais será
abandonado pela teoria liberal.
Tudo se passa de forma diversa para James Harrington. Para este
revolucionário inglês a profunda desigualdade na distribuição da propriedade é
que se revela fator determinante da instabilidade política. Não se trata, portanto,
de encerrar a revolução e, sim, ativá-la como mecanismo para alcançar
estabilidade política. A partilha do poder político resulta da disputa pela
igualitária distribuição das terras. Na exata expressão de que se vale Bercovici, “o
governo estável é aquele em que o balanço do poder corresponde ao da
propriedade.”77 Harrington concebe um estado de igualdade mutável, mas que se
dinamiza sempre na direção do reequilíbrio; uma dinâmica que reconduz ao ideal
do povo em armas tendo por fundamento a apropriação comunal da terra. Eis o
modo como Bercovici apresenta essa relação, que é central na teoria de
Harrington:
A posse das armas é vinculada à posse de terra, contrapondo a vassalagem à apropriação livre. A espada pertence a um senhor ou à coletividade. Os proprietários devem portar livremente armas para a ação política e a virtude cívica.78
O pensamento de Harrington aproxima-se, assim, de Maquiavel. Isto se
deve, explicita Negri, à forma como o pensamento de Maquiavel foi recepcionado
77BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 101. 78Ibidem, pp. 101-102.
45
na Inglaterra.79 Ali os conceitos da teoria maquiaveliana foram absorvidos em sua
potencialidade revolucionária. A desunião como mecanismo incessante de ruptura
de uma ordem em direção à igualdade, traz para o plano material da sociedade -
plano da imanência - a possibilidade de construção e reconstrução da política. Ela
agora é determinada pela virtù, individual e coletiva, dos sujeitos sociais. Vê-se
claramente que a política em Harrington em nada remete à transcendência do
absolutismo hobbesiano.80 Não há súdito submetido à vontade do soberano e, sim,
um projeto de liberação de potência dos integrantes de uma comunidade
igualitária. Não se trata, em Harrington, de disputar a condição de soberano, e
sim, lutar pela modificação da lei agrária, pelo estabelecimento das terras
comunais como condição para que não houvesse soberano a disciplinar a
sociedade. A luta contrapõe liberação das forças produtivas populares à regulação
da divisão social do trabalho regida pela concentração da propriedade. A desunião
maquiaveliana se expressa em Harrington na luta entre a plebe sem terra e os
proprietários como cerne material da ruptura e reequilíbrio da constituição
política.81 Como expõe Negri:
A “desunião” entre as estruturas da propriedade e os direitos sociais dos cidadãos deve estabelecer a base e a forma da união de seus direitos políticos na constituição republicana. A constituição deve fundar uma situação na qual a virtù tenha condição de exprimir-se livre e continuamente, sem se tornar presa da fortuna.82
Harrington faz da distribuição da propriedade a base material da república: o
equilíbrio constitucional depende do equilíbrio entre as propriedades.83 A lei
agrária constitui, assim, uma lei constituinte baseada na constituição material e a
79Com efeito, pode-se extrair de Pocock referência à relação entre Maquiavel e a teoria proposta por Harrington: “As in Machiavelli, the bearing of arms is the essential medium through which the individual asserts both his social power and his participation in politics as a responsible moral being; but the possession of land in nondependent tenure is now the material basis for the bearing of arms.” POCOCK, J.G.A. The machiavelian moment. 390. [Tal como em Maquiavel, portar armas é o meio essencial pelo qual o indivíduo afirma tanto seu poder social e sua participação na vida política, como na qualidade de um ser moral responsável; no entanto, agora, a fruição da terra constitui-se, a base material para o porte de armas].[tradução livre]. 80Não obstante, convém ressaltar, como o faz Negri, que ambos, Hobbes e Harrington, compreenderam “o elemento espacial (a propriedade) e o elemento temporal (arranjo jurídico e constitucional) como determinantes da síntese política”, conferindo tratamentos diversos a tal percepção. NEGRI, Antônio. O poder constituinte, p.164. 81Ibidem, p. 163. 82Ibidem, p. 159. Segundo Negri, a virtù maquiaveliana no contexto da República-Commonwealth harringtoniana implica em afirmar que “a república é o lugar no qual a “desunião” se faz Estado, que a legitimidade do Estado se forma através do reconhecimento e da organização dos eventos que o atravessam, que a força do Estado nasce da síntese republicana da virtù individual e coletiva de seus cidadãos.” Ibidem, p. 158. 83Ibidem, p. 183.
46
liberdade, tal como em Maquiavel, é garantida pela recondução da força e da
autoridade para o povo. É certo que Harrington entende necessária a representação
popular perante o parlamento. Ele propõe a conjugação da lei agrária com uma lei
que estabeleça não apenas a rotatividade no exercício do poder, como a brevidade
de tal exercício a evitar que o representante se prolongue neste munus, passando a
deturpá-lo como direito próprio. Nas palavras de Harrington:“the fundamental
laws of Oceana, or the centre of this commonwealth, are the agrarian and the
ballot: the agrarian by the balance of dominion preserving equality in the root,
and the ballot by an equal rotation […]”.84
No entanto, é a lei agrária igualitária que oferece as bases que dinamizam o
sistema político, retirando do representante o caráter de condutor e produtor da
realidade política. O político não se impõe ao social pela representação. Em
sentido inverso, a igualdade material, imanente, é que sustenta a liberdade
política. Disso decorre, como ressalta Negri, uma livre e direta vinculação entre
eleitor e o eleito, a estabelecer a comunidade como condutora da política e o
“povo como contrapoder, limite fundamental contra todo uso aristocrático ou
absolutista da constituição mista”.85 Harrington percorre o caminho oposto àquela
concentração da autoridade na figura de um soberano que implica em naturalizar e
eternizar as relações sociais desiguais. A igualdade agrária como lei perene evita
que o povo reste subjugado por uma aristocracia que concentre a propriedade de
terras em suas mãos. Conforme defendido por Harrington:
An equal agrarian is a perpetual law establishing and preserving the balance of dominion, by such a distribution that one man or number of men within the compass of the few or aristocracy can come to overpower the whole people by their possessions in lands.86
Sua idéia de representação, resta evidente, não se confunde com a
representação transcendente do soberano hobbesiano ou mesmo a que o próprio
84HARRINGTON, James. The commonwealth of Oceana. Trad. J.G.A. Pocock. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; pp. 100-101. [As leis fundamentais de Oceana, ou o núcleo desta república, são a agrária e a das eleições: a agrária mediante o equilíbrio da propriedade preservando a igualdade em sua raiz, e as eleições mediante uma alternância equitativa]. [tradução livre]. 85NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 178. 86HARRINGTON, James. The commonwealth of Oceana, p. 33. [Uma lei agrária igualitária é a que estabelece e preserva o equilíbrio das propriedades mediante uma distribuição pela qual nenhum homem ou grupo de homens possa, no âmbito de uma aristocracia, subjugar todo o povo através de suas propriedades de terras]. [tradução livre].
47
parlamento inglês realiza ao longo da revolução. Em Harrington, as armas não
pertencem a um soberano – seja ele o Rei ou o Parlamento. Elas pertencem ao
povo, às milícias populares87, na esteira o pensamento maquiaveliano. Como
expõe Negri: “é sempre o povo que deve levantar a espada, pois é no povo que
reside o poder. O povo é a força que autoriza a lei.”88
Para o parlamento inglês, ao seu tempo, a revolução inglesa importava na
limitação do poder régio e transferência da soberania para seu âmago. A
contraposição entre Parlamento e a Coroa britânica marca a disputa de poder entre
a burguesia ascendente e a dinastia Stuart. Neste embate entre absolutismo e
liberalismo, o ideal igualitário de Harrington não conseguiu se estabelecer como
hegemônico mesmo após a execução de Carlos I e a instauração da república. O
Protetorado de Cromwell, que se seguiu ao regicídio, alicerçou seu poder no apoio
do exército e da burguesia puritana.89
No plano econômico, as considerações de John Locke a respeito da
propriedade que fornecem o fundamento teórico para o discurso liberal. Ao
contrário do que dispõe Hobbes, Locke afirma que a propriedade é um direito
natural que antecede à formação do Estado.90 E mais: com a criação do dinheiro, a
propriedade teria perdido seu caráter limitado, possibilitando a expansão do
comércio e a ilimitada acumulação de riquezas. Eis por que, ao longo da revolução
inglesa, o regime de propriedade não chegou a ser alterado, mantendo a
concentração contra a qual Harrington lutava. De fato, da revolução inglesa não se
extraiu uma profunda mudança na estrutura social na forma proposta pelos
Levellers - grupo revolucionário que pregava a socialização da propriedade e do
qual Harrington fazia parte. O poder popular, retoricamente utilizado pelos
87Ibidem, pp.15-16. 88NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 176. 89ALBUQUERQUE. J.A. Guilhon. John Locke e o individualismo liberal in Os clássicos da política, 1. Francisco C. Weffort, organizador. São Paulo: Ática, 2006; pp. 81-110; p. 82. 90 No início, sustenta Locke, o direito de propriedade era limitado pelo uso dos produtos obtidos pelo homem pela força do seu trabalho. O homem adquire propriedade sobre tudo o que pode realizar com o seu trabalho, mas não lhe toca o direito à propriedade do excesso de produtos que podiam perecer pela falta de uso. Tal limitação é ultrapassada com o advento do dinheiro. Em suas palavras: “[...] é evidente que os homens concordaram com a posse desigual e assimétrica da terra, tendo descoberto, pela aceitação tácita e espontânea, a maneira de alguém possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso do produto, ouro e prata que pode guardar sem causar dano aos outros, uma vez que estes metais não se deterioram nem se estragam.” LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 47-50.
48
revolucionários, sempre foi reconduzido pelo exercício da soberania pela Câmara
dos Comuns,91 controlada pelos liberais. O parlamento inglês operou, assim, em
um duplo negar: refutou o absolutismo, conquanto tenha absorvido e remodelado
sua estrutura vertical de regulação para uso próprio; e impediu a constituição de
uma nova ordem que tivesse a igualdade de terras como base material da
constituição.
A revolta popular que se reinstala após a queda de Cromwell decorre
justamente das frustrações da plebe, acima aventadas. O acirramento desta divisão
só será extinto com a Restauração Inglesa por meio da Revolução Gloriosa: uma
revolução sem povo e sem luta, orquestrada pelo parlamento inglês como forma
de impedir que uma iminente revolução democrática fosse deflagrada. A
Revolução Gloriosa depõe James II e conduz ao trono William de Orange, após
sua anuência ao Bill of Rights, mediante o qual o parlamento limitava os poderes
do rei. A um só tempo, com o fim da revolução e a consolidação do poder de
produzir o político nas mãos do parlamento, libertava-se a propriedade privada do
poder ilimitado do soberano hobbesiano e a salvava do teor socializante da lei
agrária de Harrington. Concretizava-se, assim, a hegemonia do modelo liberal na
Inglaterra.
A divisão do poder entre o rei e o parlamento na Inglaterra foi estruturada
como um modelo de limitação de poder que pretendia conferir moderação e
neutralidade ao atuar político. O poder popular restou transmudado em mito, que
se exercia transcendentemente pela soberania do parlamento. A tensão entre
transcendência e imanência nesta experiência britânica restou encerrada pela
consolidação do sistema misto de governo. Como destaca Bercovici, após a
Revolução Gloriosa, “a constituição mista passa a ser o modelo teórico-
interpretativo dominante da constituição inglesa, com suas características de
soberania do parlamento, checks and balances e separação de poderes.” 92
Tais características influenciariam decisivamente o pensamento de
Montesquieu. Para Montesquieu, a monarquia ao estilo inglês possibilitava que o
poder se apresentasse dividido e, portanto, passível de ser contido. E mais:
91BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 105-106. 92BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p.107.
49
qualquer regime de governo deveria prever em sua estrutura política uma
instância que exercesse o papel moderador que a monarquia inglesa apresentava;
uma instância de poder, independente, que exercesse o efeito moderador tal qual o
realizava a nobreza na Inglaterra, a garantir a estabilidade e segurança política. A
teoria política de Montesquieu exerceu forte influência nos modelos liberais
francês e norte-americano que se impuseram como reação ao caráter democrático
que suas revoluções apresentaram. Por meio dela, institucionalizaram-se a
separação de poderes e a representação política como mecanismos para distanciar
o povo das decisões políticas. O temor pela participação popular nas decisões
públicas revela-se cruamente em Montesquieu:
A grande vantagem dos representantes é que estes são capazes de discutir as questões públicas. O povo não é, de modo algum, apto para disso, fato que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia. [...] ele [o povo] só deve tomar parte no governo para escolher seus representantes, e isso é tudo o que pode fazer.93
O “povo” não pode ser contado como integrante da comunidade política. Ou
melhor: a integra apenas na qualidade de incapaz, eternamente condenado à
menoridade política. A política não é o lugar do demos. A representação, que em
Harrington extraí-se concretamente pela condição de igualdade material conferida
pela lei agrária, aparece de forma abstrata e transcendente em Montesquieu. O
projeto liberal – triunfante – consistiu justamente em criar uma democracia sem
povo. Os conceitos de soberania e representação, oriundos do modo transcendente
de compreender a política, forneceram à teoria liberal os fundamentos para
estruturar um sistema político como dique contra as reivindicações populares por
igualdade material. O constitucionalismo nasce da necessidade do liberalismo
legitimar o exercício do poder político com base nestes ideais.
Com efeito, o que Maquiavel apresenta ao imbricar a dinâmica da desunião
com a necessidade do retorno da república aos seus princípios fundadores -
expresso na democracia pela possibilidade da contínua (re)fundação de uma
ordem mais igualitária – não se harmoniza com a pretensão liberal por cálculo,
previsibilidade e obediência, entendidos como fatores necessários para a
93MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002; pp. 168-169. O pensamento de Montesquieu, fundamental para disseminação da teoria do poder neutro, será objeto de estudo mais aprofundado ao longo do segundo capítulo.
50
acumulação de riqueza no capitalismo. Trata-se, em sentido oposto, de liberação
da potência de sujeitos sociais que devem constituir a ordem política atentos à sua
base material. Para o liberalismo, torna-se imperativo impedir qualquer volta ao
modo imanente de compreender a política. Poder constituinte: eis o que a teoria
maquiaveliana inaugura e contra o qual o constitucionalismo é erigido. Esta
contraposição apresenta-se camuflada pelo fato de o constitucionalismo não negar
a existência do poder constituinte, e sim absorvê-la como integrante da sua
estrutura. O que ele faz é apropriar-se da idéia central do poder constituinte -
poder que funda uma nova ordem - conferindo-lhe um novo conteúdo, redefinindo
seu conceito à feição liberal.
A disputa para definir o significado do conceito de poder constituinte, e os
efeitos dele extraídos, contrapõe democracia e liberalismo. De certa forma, revela-
se como uma extensão do embate entre os dois modos da modernidade: a
imanente e a transcendente. Não por acaso, soberania e representação, conceitos
estruturadores do aparato político liberal transcendente, atuam como mecanismos
de contenção do poder constituinte. O constitucionalismo permitiu que se
aprisionasse o conceito de poder constituinte em um esquema estático e estéril, no
qual a política se restringe à atuação de poucos sujeitos e não se imbrica ao plano
social, revelando sua incompatibilidade com a dinâmica da democracia. Impõe-se
neste momento, portanto, procurar caminhos para reconduzir os conceitos de
política e de poder constituinte às suas origens democráticas.
2.3 O conceito de poder constituinte na teoria de Antonio Negri
O conceito tradicional de poder constituinte que se estabeleceu por força da
hegemonia do constitucionalismo, gestado na passagem do século XVIII para o
século XIX, carrega consigo um ideal de limitação que, para além de não
possibilitar sua expansão, nega o caráter absoluto do poder constituinte. Um
conceito que anula as dimensões democráticas do poder constituinte e, portanto,
não se presta como instrumento de compreensão das relações sociais e políticas
contemporâneas. O estudo sobre o conceito de poder constituinte demanda análise
sobre os protagonistas do processo constituinte, sua dimensão temporal e os
51
espaços em que se expressa, bem como, das formas pelas quais se expressa,
incluindo aí, sua interligação com os conceitos de política e revolução. Para este
fim, Negri adota um método materialista, em que analisa as contribuições de
grandes revoluções políticas para expansão do conceito de poder constituinte em
sua perspectiva democrática.94 Este método remonta a Maquiavel na busca pela
verdade, que se extrai das relações humanas concretas e que entende o poder
constituinte como necessariamente uma causa imanente. A contraposição do
conceito de poder constituinte defendido por Negri àquele tradicionalmente aceito
pela ciência jurídica não deixa de ser, neste contexto, um reflexo da tensão entre
transcendência e imanência. Assim, convém apresentar a teoria negriana ao tempo
em que se explicita sua contraposição com o modelo constitucionalista. Este
último encontra expressão no pensamento de Emmanuel Sieyès. Após Sieyès a
crise entre transcendência e imanência seria traduzida por uma nova terminologia.
Esta mesma tensão continuaria operando seus efeitos sob a insígnia da relação
entre poder constituinte e poder constituído, relação com a qual a ciência jurídica
encontra-se familiarizada.
O constitucionalismo atribui a Emmanuel Sieyès a teorização da mecânica
do poder constituinte.95 No âmbito dos acontecimentos que deflagram a
Revolução Francesa, Sieyès defendera a legitimidade da ruptura com a estrutura
despótica do absolutismo, substituindo-a por outra ordem na qual o Terceiro
Estado96 ocupasse o lugar de preponderância na condução política nacional. O
fundamento é simples: o Terceiro Estado é responsável pelo trabalho que sustenta
94Francisco de Guimaraens revela que o próprio conceito de poder constituinte é aberto, em permanente construção o que se revela pelo próprio método utilizado por Negri, que se vale “de noções provenientes das experiências revolucionárias” ao longo da modernidade. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 149. E na visão do próprio Negri: “as grandes revoluções que se sucederam exprimiram a continuidade de um princípio constituinte que responde às necessidades de racionalizar o poder, de um princípio constituinte cuja crise foi revelada pelo nascimento e desenvolvimento do capitalismo, bem como pela forma de organização que este impõe à sociedade [...]” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 421. 95BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 142. Em sentido diverso, Francisco de Guimaraens argumenta que Maquiavel já havia descrito, com mais pertinência, o poder constituinte. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 127. Esta descrição da mecânica constituinte leva Negri a denominar os estudos políticos maquiavelianos de “fenomenologia do poder constituinte”. NEGRI. Antonio. O poder constituinte, p. 423. 96Na França os Estados Gerais eram divididos em três ordens – o Primeiro Estado correspondia ao clero; o Segundo, à nobreza e o Terceiro, ao resto da população, dentre os quais, comerciantes e banqueiros (burgueses) e camponeses, pequenos artesãos, servos e trabalhadores assalariados. A análise sobre as condições em que ocorreu a Revolução Francesa será aprofundada no capítulo seguinte, no qual trataremos do poder neutro como mecanismo de bloqueio à democracia.
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a sociedade francesa97 e, portanto, deve ter espaço político proporcional a tal feito;
o clero e a nobreza, privilegiados pela desnecessidade de laborar e pagar
impostos, parasitam o trabalho nacional e, não obstante, detêm todo poder
político. Sieyès insurge-se, portanto, contra o que considera um notório
desequilíbrio na representação política das forças econômicas. O poder político
deve refletir a força do trabalho e do poder econômico. Esta imbricação entre
social e político poderia conduzir a identificar uma tentativa de Sieyès em propor
um modelo imanente de poder constituinte. Ocorre que, assim como na teoria
Locke, o trabalho não é apresentado como meio de liberação e permanência do
poder constituinte; ele não cumpre o papel de motor do devir histórico como força
criativa que constitui novas relações em um processo aberto no tempo, e sim,
como elemento legitimador, quando não instrumento retórico, para justificar o
acúmulo de capital, em Locke, e para o aprisionamento do poder constituinte nas
mãos de uma classe, em Sieyès.98 O manifesto de Sieyès pretendeu legitimar a
transmissão do poder dos notáveis (clero e nobreza) para a burguesia. Tal
afirmação se extrai do modo como Sieyès conceitua o poder constituinte e como
ele prevê seus mecanismos de exercício.
Para Sieyès, a nação é o sujeito do poder constituinte. Ela é soberana,
independente de qualquer lei positiva e sua vontade se impõe contra todo direito
político constituído.99 Impõe-se, no entanto, ter em mente que o conceito de nação
em Sieyès encontra-se muito mais atrelado ao aspecto econômico que à identidade
97SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État? Trad. Norma Azevedo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 2. Eis porque o Terceiro Estado é tudo, e o clero e a nobreza desnecessários. Estes últimos não contribuem em nada para a formação da nação. Ibidem, p. 5. 98A demanda de Sieyès, no sentido de que seja conferida representação ao trabalho, é legítima, afirma Negri. O trabalho constitui tudo, social e economicamente. No entanto, ressalta o pensador italiano, a proposta não deixa de possuir um caráter conservador, pois, para Sieyès “é preciso mudar o sistema de representação para manter intactos e tornar funcionais a ordem e o tecido econômico-social da nação. O tema do trabalho entra no debate constitucional moderno como tema conservador.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 308. Neste mesmo sentido, ao analisar a forma limitada que Sieyès empresta ao trabalho, Francisco de Guimaraens destaca que o revolucionário francês constrói uma imagem pálida do poder constituinte, pois, “não pensa o poder constituinte como produção de um novo real, mas apenas enquanto mecanismo de afirmação de um real já constituído social e economicamente.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 111. 99“[...] uma nação é independente de qualquer formalização positiva, basta que sua vontade apareça para que todo o direito político cesse, como se estivesse diante da fonte e do mestre supremo de todo o direito positivo.” SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 51. E ainda: “a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei.”. Ibidem, p. 48.
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de um povo. A nação aparece aí como um conceito econômico, de forma que a
soberania é canalizada para a classe que detém a possibilidade de produzir
riqueza. Ao explicitar que o Terceiro Estado é tudo, é toda a nação100, Sieyès
atribui, àquela ordem, o direito de romper com a estrutura de poder vigente
(constituído), fazendo prevalecer a vontade nacional101 como expressão do poder
constituinte. O modo de exercício deste poder encontra-se indissoluvelmente
atrelado à idéia de representação. Uma lei comum e uma representação comum
fazem a nação, afirma Sieyès.102 Ela exerce sua soberania por meio de
representantes, e estes se dividem em duas categorias: os ordinários - responsáveis
por exercer a administração rotineira da nação de acordo com os ditames da
constituição – e os extraordinários que, reunidos em Assembléia Nacional, em
momentos muito específicos, substituem a nação expressando a vontade geral, não
se encontrando, por isso, limitados por nenhuma norma positivada.103
Sieyès encarna os ideais da modernidade da transcendência. O sistema
representativo por ele proposto é apresentado como forma de mediar a tensão
entre imanência e transcendência ao prever mecanismo de convivência harmônica
entre o poder constituinte (extraordinário) e poder constituído (ordinário). Ambos
encontram-se atrelados ao sistema representativo e ocupam tempo e espaços
diversos. Este ponto é crucial para compreensão do conceito limitado de poder
constituinte que o constitucionalismo adota. Ele define as relações do poder
constituinte com o tempo, espaço e forma de expressão, em consonância com a
concepção liberal, impondo freios à emancipação popular.
100 “O Terceiro Estado abrange, pois, tudo o que pertence à nação. E tudo que não é Terceiro Estado não poder ser olhado como pertencente à nação. Quem é o Terceiro Estado? Tudo.” SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 5. Arguta a observação de José Afonso da Silva ao apontar que Sieyès vale-se da idéia de nação não em seu sentido sociológico, mas “como equivalente ao Terceiro Estado, ou seja, como conjunto de indivíduos que pertencem à ordem comum”, e que assim o faz por necessitar de um fundamento para transformar aquela ordem em titular da soberania. SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 83-84. 101A vontade nacional, explicita Sieyès, “é o resultado das vontades individuais, como a nação é a reunião dos indivíduos”. SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 69. 102SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, pp. 8-12. 103Ibidem, p. 52. Como expressa Sieyès, o poder constituído (representação ordinária) “só pode se mover nas formas e condições que lhe são impostas”, ao passo que o poder constituinte (representação extraordinária) “não está submetida a nenhuma força especial.” Ibidem, p. 53. Este é o fundamento de que Sieyès se vale para comprovar que a reunião dos três Estados não pode dar à França o que ela precisa: uma nova constituição. Para isto, impõe-se convocar a nação, o poder constituinte exercido por representantes extraordinários, reunidos em Assembléia Nacional.
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A representação será erigida como procedimento que faz dos representantes
correia de transmissão da vontade geral, conferindo à relação entre poder
constituinte e poder constituído caráter de contínua normalidade. A limitação
temporal do poder constituinte, neste caso, resta evidente. Ele emerge apenas
excepcionalmente, em casos específicos em que as circunstâncias extraordinárias
exijam a manifestação da vontade da nação104, restando apenas latente em tempos
de dita normalidade. A idéia de poder constituinte como poder extraordinário,
inaugurada por Sièyes, consolidou-se na ciência jurídica.
A relação do poder constituinte com o tempo, entretanto, é de outra ordem,
revela Negri, em consonância com a teoria maquiaveliana. O movimento do poder
constituinte é ininterrupto, ele se apresenta como processo aberto no tempo, no
qual a cooperação de múltiplas singularidades conforma o real, cria novas
relações, constitui novas instituições e protagoniza acontecimentos nunca
predeterminados: a incessante mutação operada pela virtù como meio de tornar
forte a república.105 O passe de mágica com o qual Sieyès faz o poder constituinte
ser posto em estado de latência – ludibriação em que se funda o
constitucionalismo - em nada corresponde ao seu caráter original e ilimitado.
Tratava-se de evitar que a ordem liberal restasse ameaçada pela possibilidade
constante de mudança, implícita no processo constituinte. Editada a constituição
liberal, impunha-se encerrar a revolução.106 A partir da constituição de concepção
liberal, o poder constituinte, para ser novamente exercido, deverá seguir as regras
previstas no texto constitucional, como um ritual pelo qual deva atravessar para
acordar de seu sono profundo. O poder constituinte é, assim, enclausurado nos
escaninhos transcendentes do sistema representativo, disciplinado pela
constituição que outrora legitimara. O criador resta prisioneiro da criatura. O
poder constituinte obedece, agora, a um procedimento fechado, previamente
regulado pela constituição e conduzido pelo poder constituído. Ao fenômeno a
que o constitucionalismo inicialmente atribui caráter ilimitado, são impostos
limites temporal e espacial. A teoria se aparta da realidade, e deve ser obedecida a
104NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp.8-9. 105Ibidem, p. 61. 106BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, p. 158.
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despeito desta.107 Este caráter paradoxal do constitucionalismo é destacado por
Negri:
O constitucionalismo é transcendência, mas é sobretudo o policiamento que a transcendência exercita sobre a totalidade dos corpos para impor-lhes a ordem e a hierarquia. O constitucionalismo é um aparato que nega o poder constituinte e a democracia. Não parecerão estranhos, portanto, os paradoxos que surgem quando o constitucionalismo tenta definir o poder constituinte – ele não pode aceitá-lo como atividade distinta e, conseqüentemente, sufoca-o na sociologia ou agarra-o pelos cabelos através da construção de definições formalistas.108
A teoria de Sieyès prestou-se à pretensão burguesa de naturalizar a ordem
liberal como único caminho para alcançar a democracia, a despeito de sustentar
sua legitimidade em um conceito de poder constituinte antagônico às
características do regime democrático. Melhor dito: a pretensão de cristalizar
qualquer ordem – inclusive a liberal - é refratária à concepção de poder
constituinte como processo absoluto em relação ao tempo, espaço e sujeitos nele
implicados. Não por outro motivo que as ordens constituídas e as classes que
nelas desfrutam de posição privilegiada tendem a erigir diques de contenção ao
processo constituinte.
No primeiro momento, o constitucionalismo procura limitar a temporalidade
revolucionária do processo constituinte. Conforme denuncia Negri, torna breve o
período de atuação do poder constituinte, mediante criação artifícios para
bloquear sua permanência que empresta ao poder constituinte o caráter de
excepcionalidade.109 A limitação, no entanto, não se restringe ao tempo fugidio de
permanência do lampejo constituinte. Ela alcança os espaços de emergência e seus
meios de expressão, vinculando-o a uma finalidade única: legar à nação uma
107O constitucionalismo, gestado no ventre das revoluções liberais, opera nesta freqüência de afirmar, para depois negar, a condição emancipadora do poder constituinte. Como destaca Negri: “a ciência jurídica nunca se exercitou tanto naquele jogo de afirmar e negar, de tomar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho lógico – como o fez a propósito do poder constituinte”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 9. Neste sentido, ainda, Francisco de Guimaraens ressalta: “trata-se da postura típica da modernidade da transcendência. Afirmar o poder constituinte de maneira teórica como ilimitado e incondicionado. Negar o próprio poder ao submetê-lo, incondicionalmente, aos mecanismos de representação política. Transcendência e regulação, esta é a tendência intrínseca do constitucionalismo”. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 97. 108NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 444. 109“[...] se o poder constituinte é onipotente, deverá [na perspectiva da ciência jurídica] ser definido e exercido como um poder extraordinário. O tempo que é próprio do poder constituinte, um tempo dotado de uma formidável capacidade de aceleração, tempo do evento e da generalização da singularidade, deverá se fechado, detido e confinado em categorias jurídicas [...]” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 9.
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constituição e, assim, legitimar a produção do ordenamento jurídico do país sob o
comando dos poderes constituídos. Ao atribuir ao poder constituído a atuação
ordinária de conduzir a política, tratando o poder constituinte como mero
incidente a que se refere como evento passado, o constitucionalismo racionaliza o
espaço político, organiza sua estrutura de forma a que as decisões políticas restem
limitadas aos lugares da representação. Confere-se, assim, autonomia ao político,
ao tempo em que o descola do campo social.110 O poder constituinte, uma vez
cumprida sua missão, é transformado em mero instrumento abstrato a legitimar os
atos dos poderes constituídos; como sua finalidade única é lançar as diretrizes
para o novo ordenamento jurídico, o poder constituinte deve retornar apenas como
discurso de atualização da constituição no âmbito daqueles espaços ocupados
pelos agentes estatais responsáveis por produzir, interpretar e aplicar o direito, ou
seja, pelas assembléias ou cortes cujas decisões serão sempre justificadas pelo
apelo à proteção do espírito da constituição, entidade etérea que, apenas aqueles
autorizados a evocá-la detêm o saber de decifrar-lhe a vontade.111 A retórica se faz
fácil e o poder constituinte, ressalvada raras consultas aos cidadãos eleitores,
transmuta-se de atuação concreta e criativa da comunidade para mero princípio
legitimador da reforma constitucional operada pelo alto.112 Negri explicita esta
mecânica, ao tratar da limitação espacial que o constitucionalismo impõe ao poder
constituinte:
O poder constituído se apresenta como mediação centralizada, a partir de um “espaço” tornado “político” porque totalmente absorvido pelo processo de “representação”. O poder constituinte é, assim, diluído no mecanismo representativo e não pode mais se manifestar senão no “espaço político”. Aqui, ele reaparece travestido em atividades das cortes supremas ou em poder de iniciativa de outros órgãos do Estado, mas sempre neutralizado. A divisão de poderes e o controle recíproco dos órgãos de Estado, a generalização e a formalização dos processos administrativos consolidam e fixam esse sistema de neutralização do poder constituinte.113
110Ibidem, p. 433. 111E aqui já se prenuncia o problema que emerge da atuação do Supremo Tribunal Federal frente a questões políticas. Esta, entretanto, é uma questão a ser enfrentada mais adiante. Antes será necessário fixar o conceito de política condizente com o ideal democrático. 112“O poder constituinte deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído – sua expansividade não deve se manifestar a não ser como norma de interpretação, como controle de constitucionalidade, como atividade de revisão constitucional. Uma pálida imitação poderá ser eventualmente confiada a atividades plebiscitárias, regulamentares, etc. De modo intermitente e dentro de limites e procedimentos bem definidos. Tudo isso do ponto de vista objetivo: uma fortíssima parafernália jurídica cobre e desnatura o poder constituinte. ” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 10. 113Ibidem, p. 434.
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Um conceito de poder constituinte como força criativa que se estende
indefinidamente no tempo, que se expressa nos mais improváveis locais, cabendo
aos diversos atores sociais construir e reconstruir suas relações sem uma
atribuição finalística predeterminada, harmoniza-se muito mais com o ideal de
democracia do que este poder constituinte pálido e estéril - limitado no tempo,
espaço e modos de emergência - proposto pelo liberalismo. O modelo liberal,
contudo, especializou-se em identificar os interesses da classe burguesa com os
interesses coletivos, na busca por naturalizar uma ordem que lhe fosse dócil.114
Não se tratou, portanto, da instauração do modelo democrático, igualitário, como
o discurso liberal não se cansa de apregoar. Certamente menos opressor que o
absolutismo - e quanto a isso que não se deixe de reconhecer seus méritos e
avanços - no entanto, produtor de novos mecanismos de regulação concentrados
em poucas mãos.
Bem observada a história dos últimos dois séculos, constata-se que o avanço
na conquista do direito a uma ordem igualitária de direitos não decorreu do
ordeiro e seguro aparato de poder liberal. Em sentido oposto, tais avanços
impuseram-se a despeito dos inúmeros bloqueios que a ordem liberal continua a
opor à democracia. O direito ao sufrágio eleitoral, à igualdade racial e de gênero,
os direito mínimos dos trabalhadores, dentre tantas outras conquistas, não
brotaram pacificamente dos iluminados princípios da modernidade hegemônica.
Foram frutos - e a história da humanidade não se cansa de render homenagens a
Maquiavel - da desunião, do conflito, da luta que contrapôs sujeitos constituintes
contra o liberalismo, como ordem constituída. Ali, no chão das fábricas, na luta
contra o patriarcado, na resistência contra toda a forma de racismo, no embate
campesino pelo acesso à terra, enfim, onde se localize movimentos de ruptura
contra qualquer tipo de opressão, eis aí lugares de emergência do poder
constituinte. Ele não se enfronha nas dobras das togas, não se esconde sob os
114Na pertinente observação de Bonavides, a burguesia revolucionária generalizou “aquilo que, de natureza, na ocasião de seu evento, definia apenas um interesse de classe ou uma ideologia. Assim sucedeu também com a liberdade, a igualdade, a democracia o Estado de Direito, hipostasiados a todo o gênero humano, e aconteceria depois com o poder constituinte da nação, apresentado como único legítimo, mas trazendo nada menos que o ascendente privilegiado e governante da burguesia, uma classe convertida já em classe dominante. Seu poder inculcava a abstrata anuência de toda a coletividade, cuja representação ela de certo modo usurpava.” BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional p. 144.
58
carpetes das assembléias. Longe de se recolher à espera de uma conflagração
social de proporções inimagináveis, ele interpela constantemente os poderes
constituídos mantendo viva a crise que marca esta relação. Por mais que o
constitucionalismo se esmere em encobri-la, a tensão entre imanência e
transcendência, poder constituinte e poder constituído demonstra seu vigor e sua
atualidade.
O conceito de poder constituinte elaborado por Negri, em sentido inverso ao
do constitucionalismo, não se compraz com a afirmação meramente formal da
incondicionalidade, não-limitação e originalidade que o caracteriza. E mais: não
apenas descortina a insolúvel crise entre poder constituinte e poder constituído115,
como a coloca como elemento chave para compreensão do processo constituinte.
Reconduzida ao seio do ideal democrático, esta tensão ganha relevância para
compreender as aporias da democracia. O que a modernidade da transcendência
apontou como caos, e tentou impor ordem pelos mecanismos da soberania e da
representação abstrata116, constitui-se no movimento próprio da democracia,
entendida como processo absoluto de construção do real. O poder constituinte
revoluciona, cria novas relações e rompe com arranjos já instituídos, reformando
ou substituindo instituições consolidadas. Nada mais incômodo para a ordem
constituída – e para as forças e os interesses nela já sedimentados – que esta
menção à mutação. O poder constituído resiste, tenta conter e disciplinar o poder
constituinte, impondo-lhe limites. Esses limites, no entanto, conforme aponta
Negri, são ontológicos ao próprio processo constituinte e a ele se integra não
como sinal de impossibilidade de democracia, mas como obstáculo a ser
ultrapassado, constituindo novas relações. Esta dinâmica apresenta a constituição
115A crise entre poder constituinte e constituído revela-se pela contraposição das características que os definem. Conforme descreve Guimaraens, “o primeiro é conceito de alteração do real, enquanto o segundo é signo do estado de coisas.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p.167. 116O termo representação abstrata é utilizada aqui, para marcar distinção entre ao modelo de representação tradicional e o proposto por Harrington, no qual a representação vincula-se necessária e concretamente à igualdade material. Enquanto neste, o social e o político se imbricam, naquele outro se observa uma cisão entre planos. Isto revela, ainda, o caráter instrumental da representação, abrindo perspectivas para idealizar formas que minore a distância entre representantes e representados.
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do real como resultado da práxis coletiva; o governo de todos e por todos; a
democracia como processo absoluto.117
A tensão entre poder constituinte e poder constituído é, assim, internalizada
ao processo constituinte, desenvolve-se no plano da imanência e dele não pode ser
arrancado por nenhum esforço transcendente. Ora, esta dinâmica de emancipação
inverte a lógica da modernidade hegemônica, pautada pela busca por ordem,
disciplina e previsibilidade, e que logrou fazer o poder constituinte refém de uma
ordem jurídica pretensamente natural. Esta nova perspectiva revela que a lei civil,
as instituições, os poderes constituídos podem construídos e reconstruídos de
forma aberta; aberta quanto aos protagonistas do processo constituinte; aberta no
tempo, pois o poder constituinte jamais se curva à institucionalização; aberta
quantos aos espaços em que se manifestam por retirar do Estado (suas assembléias
e cortes de justiça) o status de local da política; e aberta quanto ao conteúdo, vez
que não se encontram pré-estabelecidos modos de organização da sociedade, e
sim interesses comuns construídos coletivamente no âmbito do processo
democrático.
O conceito de poder constituinte atrelado à idéia de incessantes rupturas,
como produto da superação dos obstáculos que o poder constituído lhe impõe,
insere-se na tradição maquiaveliana que apresenta a desunião como condição para
tornar mais forte a república. Nesta linhagem, o conflito é o motor de uma infinita
mutação que devolve aos homens o poder de trilhar seus destinos e a política não
se constitui função de um poder externo, transcendente; ela se imbrica com o
social tornando possível o ideal democrático, apresentado apenas como simulacro
pelo liberalismo. Sob esta perspectiva, o conceito de poder constituinte se associa
117Absoluto aqui em nada se aproxima do totalitário. Ele se refere à relação entre sujeito e mundo, associada à construção de uma segunda natureza que o ser humano quer governar. Como expõe Negri: “este absoluto não é propriamente um absoluto: ele é sobretudo o produto de condições dialéticas abertas e negativas, é o resultado de um processo histórico. É a determinação de subjetividades concretas. O absoluto é redescoberto como prótese do mundo, é uma segunda natureza que os homens querem governar – justamente porque é uma segunda natureza, não um objeto que nos condiciona, mas um sujeito coletivo que construímos todos juntos”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 425. Nesta perspectiva, compreende-se o poder constituinte como projeto de criação que transforma a democracia de potencialidade teórica em projeto político, no qual se imbricam o político e o social: “a democracia, qualificada por Maquiavel e Espinosa como “forma absoluta” de governo, torna-se uma possibilidade efetiva: ela transforma a potencialidade teórica em projeto político. O projeto já não consiste em fazer com que o político corresponda ao social, mas em inserir a produção do político na criação do social.” Ibidem, p. 425.
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não apenas ao conceito de política, como ao de revolução, produzindo
deslocamentos também quanto a este último.
A contraposição entre poder constituinte e poder constituído, conforme
visto, é apresentada pelo constitucionalismo como momento excepcional que
culmina na deflagração do processo revolucionário. O tempo da revolução
aparece ali descrito como momento único a legitimar a ruptura com uma estrutura
opressora. Por esta concepção, a revolução é o meio próprio para constituição de
uma nova ordem (“único” no sentido de adequação do meio), como também
representa o período demarcado na história em que emerge o processo
revolucionário (“único” no sentido de temporalidade restrita, como momento que
fatalmente se encerra). Neste processo, o poder constituinte conclui sua
manifestação com a codificação da constituição para não mais voltar a emergir.
Está editado o texto que organiza o social e o político. São conhecidas as
conseqüências que decorrem deste modelo: ele estabelece a constituição como o
limite da emergência do poder constituinte e atribui ao poder constituído a tarefa
de conduzir o projeto político nascido do já extinto processo revolucionário. O
conceito de política resta apartado dos conceitos de revolução e de poder
constituinte. A política, nesta perspectiva, refere-se ao presente e é exercida por
representantes que integram os poderes constituídos. Poder constituinte e
revolução, por sua vez, oscilam entre um passado já sepultado e um futuro
abstrato e incerto.
Negri insurge-se contra este distanciamento e reúne os conceitos de poder
constituinte, política e revolução no momento presente, no qual a atuação
inovadora do sujeito constituinte determina o futuro como emancipação social. É
preciso, nas palavras do pensador italiano, desdramatizar o conceito de revolução,
retirar-lhe o caráter excepcional e devolvê-lo à normalidade como movimento
contínuo de transformação. O conceito clássico de revolução como grande ruptura
que altera por completo e de uma única vez as estruturas de poder não se coaduna
ao conceito democrático de poder constituinte como processo aberto no tempo.
Negri expõe com clareza a interligação entre poder constituinte, política e
revolução, sob esta heterodoxa perspectiva:
É preciso desdramatizar o conceito de revolução de modo a fazer com que se torne, através do poder constituinte, nada mais que o desejo de transformação do tempo,
61
contínuo, implacável, ontologicamente eficaz. Uma prática contínua e incontrolável. Sobre esta base, o conceito de política é arrebatado à banalidade e à sua redução obscena ao poder constituído, aos seus espaços e seus tempos. A política é o horizonte da revolução que não termina, mas continua a ser reaberta pelo amor do tempo. Toda motivação humana em direção à política consiste nisto: em viver uma ética da transformação através de um desejo de participação que se revela amor pelo tempo a se constituir.118
Ultrapassada esta questão, resta ainda, lançar luzes sob dois importantes
aspectos da teoria negriana sobre o poder constituinte. O primeiro diz respeito ao
princípio que anima este operar incessante da potência humana. O segundo refere-
se ao sujeito que conduz este processo constituinte. Que poder constituinte e
democracia não possuem uma finalidade específica já restou registrado.119 Não
obstante, se notabilizam por um mesmo princípio, que lhes é intrínseco: a
oposição da igualdade contra o privilégio. A igualdade não se apresenta aqui,
conseqüentemente, como finalidade a ser alcançada, e sim como pressuposto
ontológico. Ela não é meta, é ponto de partida; não é objetivo, e sim condição.
Mas se igualdade já havia sido anunciada pela fórmula liberal da democracia,
convém questionar sobre a originalidade de imputar-lhe o caráter de condição.
Negri responde à provocação:
Condição material: não uma abstrata e hipócrita declaração de um direito formal, mas uma situação concreta. A natureza lógica da igualdade, a racionalidade intrínseca de sua afirmação como pressuposto consistem no fato de que a multidão só pode se apresentar como igualdade, no fato de que a liberdade só pode se desenvolver entre sujeitos iguais.120
A referência à igualdade entre sujeitos traz ao debate o questionamento
sobre os protagonistas do poder constituinte. Mesmo quando, na teoria
constitucionalista, a nação é substituída pelo ideal de povo como titular da
soberania, resta incólume o caráter transcendente que se confere ao poder
constituinte. Com efeito, o conceito de povo como sujeito do poder constituinte
sustenta-se sobre um ideal de unidade como expressão da soberania. Ocorre que,
como ressalta Negri, a população se compõe de diversos indivíduos e classes, em
que impera o pluralismo como característica indelével. Atribuir a um ser uno o
caráter de sujeito constituinte significa reduzir a uma só identidade aquilo que é
múltiplo. O liberalismo, por exemplo, procurou fundamentar sua legitimidade
118NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 459. 119Para além do registro realizado, o caráter não finalístico da democracia será analisado mais detidamente quando da análise do pensamento político de Rancière. 120NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 455.
62
através de um sistema representativo que atuaria como um filtro dos interesses
nacionais – depois substituído pelos interesses do povo -, baseando-se em uma
idéia reducionista e artificial da sociedade121, por desconsiderar sua composição
multifacetada, não redutível a uma identidade.122 O problema da unidade do
sujeito do poder constituinte encontra-se estreitamente vinculado à soberania,
pois, como expõe Negri:
[...] uma das verdades recorrentes da filosofia política é que só aquilo que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou o indivíduo; sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ser governados. Em outras palavras, todo o poder soberano forma necessariamente um corpo político dotado de uma cabeça que comanda, de membros que obedecem e de órgãos que funcionam conjuntamente para dar sustentação ao governante.123
Para além do reducionismo artificial da realidade uma questão maior se
põe: se este sujeito identitário não consegue manter preservada a diversidade, não
se mostra adequado como protagonista da democracia. Esta evidência se extrai da
constatação de que a associação entre igualdade e pluralidade é condição para o
desenvolvimento de uma teoria política democrática.
O quanto acima exposto revela a impropriedade de se associar igualdade à
uniformidade, reduzindo o sujeito do poder constituinte a um elemento uno como
o fizera a modernidade hegemônica com os conceitos de povo e nação. O poder
constituinte opera com uma racionalidade diversa e se expressa por um processo
em que se imbricam diversas singularidades.124 Estas, por sua vez, têm na
igualdade a condição de interagir como singulares sem a necessidade de terem
suas diferenças reduzidas a um signo uniforme.125 A diversidade, portanto, é a
racionalidade própria pela qual opera o poder constituinte, do que decorre que o
paradoxo na conciliação entre igualdade e diversidade é apenas aparente. A
121FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 2007, p. 61. 122GUIMARÃES, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 112. 123HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão, p. 140. 124Singularidades se referem a “um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139. Segundo Negri, uma racionalidade que ultrapasse a moderna deve ser configurada “como lógica das singularidades em processo, em fusão, em contínua superação”. E continua: “A uniformidade – pecado original da utopia, ainda que ela seja grandiosa e gloriosa – mostra aqui novamente o seu enraizamento no moderno e, com ele, o seu definitivo deficit como elemento das próprias condições do devir. O poder constituinte, ao contrário, sempre rompe a uniformidade, e sua criatividade busca a diversidade como racionalidade da sua própria consistência ontológica.” Idem, p. 456. 125HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139.
63
igualdade refere-se ao plano das hierarquias – melhor dizendo, das não-
hierarquias –, e neste sentido, dizer igualdade não significa reduzir indivíduos a
uma massa uniforme, regida pelo pensamento único, e sim explicitar que não pode
existir desigualdade hierárquica na participação da criação da lei comum. Esta
condição exclui o soberano da cena política. A diversidade, a seu tempo, se refere
ao plano da constituição das singularidades, aos modos múltiplos e abertos de
constituição de mentes e corpos e os imponderáveis agenciamentos daí
decorrentes. Longe de se excluírem, portanto, igualdade e diversidade conformam
o ambiente propício para o exercício da democracia.
Não bastasse seu caráter identitário-reducionista, o conceito de povo integra
a noção de Estado e apresenta-se como seu elemento constitutivo, dele
dependendo para assim ser reconhecido. A identificação do povo tem sua origem,
portanto, na vontade de uma esfera de poder constituída – o Estado – o que
ratifica sua inadequação para exercer o papel de sujeito de poder constituinte.
Conforme assinala Francisco de Guimaraens:
Quem institui a noção de povo é o Estado, que confere unidade á multiplicidade de singularidades existentes. O povo é produto do poder constituído e se trata de expressão do direito constituído. Povo é aquilo que o direito diz ser, pois cidadão, a singularidade abstrata que compõe o povo, é o que o Estado afirma ser.126
O histórico das lutas pela ampliação de sufrágio bem demonstra esta
dependência. Com efeito, apenas no decorrer do século passado as mulheres
foram incorporadas como cidadãs, a alargar a noção de povo político e comprovar
que seus limites variam de acordo com a previsão estatal. Ora, a luta pelo direito
ao voto feminino revela-se exercício do poder constituinte, muito antes de serem
consideradas integrantes do povo político. Outro exemplo bastante próximo e caro
aos defensores da democracia: mesmo quando se vislumbra a possibilidade do
povo atuar diretamente por meio de plebiscito e referendo, sem a necessidade da
mediação dos representantes, esta atuação é completamente disciplinada pelas
regras estabelecidas pelo Estado; a ele compete regulamentar os referidos.
Francisco de Guimaraens sintetiza o problema de alçar o povo à condição de
sujeito constituinte:
A idéia de povo em nada afronta as noções estabelecidas pela modernidade da transcendência. Unidade e homogeneidade previamente determinadas, separação
126GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p.163.
64
de titularidade e do exercício do poder, submissão das singularidades à organização externa, todos estes registros transcendentes se fazem perceber nessa noção que, desta maneira, é absolutamente inadequada para se pensar o poder constituinte.127
Se o conceito de povo128 não explica satisfatoriamente a questão do sujeito
do poder constituinte, impõe-se pesquisar um outro conceito que dê conta deste
desafio. Nesta tarefa, o conceito de multidão apresenta-se como proposta que mais
se aproxima do caráter igualitário e multifacetado que informa a democracia. Na
perspectiva de Negri, apenas a multidão pode conduzir concretamente o processo
constituinte, em sua pretensão de transformação e libertação. Ao contrapor o
conceito de multidão ao de povo, Negri explicita as características do sujeito
multitudinário:
O povo é uno. A população, naturalmente, é composta de numerosos indivíduos e classe diferentes, mas o povo sintetiza ou reduz essas diferenças sociais a uma identidade. A multidão, em contraste, não é unificada, mantendo-se plural e múltipla. Por isto, segunda a tradição dominante da filosofia política, é que o povo pode governar como poder soberano, e a multidão, não. A multidão é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente. As partes componentes do povo são indiferentes em sua unidade, tornam-se uma identidade negando ou apartando suas
127Ibidem, p.164. Tal associação “povo-Estado” remonta às lições de Hobbes: “Uma multidão é transformada em pessoa quando representada por um só homem ou pessoa de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. É a unidade do representante, e não do representado, que faz com que a pessoa seja uma [...] Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos [...] Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os outros são súditos.” HOBBES, Thomas. Leviatã, pp. 125 e 131. No mesmo sentido exposto por Guimaraens, Negri relaciona o conceito de povo à produção do Estado: “os indivíduos, no momento em que alienaram poder, tornam-se um povo, isto é, tornam-se o conjunto de portadores de direitos reconhecidos pelo soberano. Eis então que o conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado.” NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 143. 128Friedrich Müller em sua obra Quem é o povo? esforça-se por definir modos diversos de se compreender o vocábulo “povo” de forma que seja remetido à democracia. O autor alemão capta bem os problemas que podem derivar do uso da noção de “povo” como sujeito do poder constituinte; pontua Müller: “a população heterogênea é ‘uni’ficada em benefício dos privilegiados e dos ocupantes do estabilishment, é ungida como “povo” e fingida – por meio do monopólio da linguagem e da definição nas mãos do(s) grupo(s) dominante(s) – como constituinte e mantenedora da constituição. Isso impede, conforme se deseja, de dar um nome às cisões sociais reais, de vivê-las [austrangen] e conseqüentemente trabalhá-las. A simples fórmula do “poder constituinte do povo” já espelha ilusoriamente o uno”. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia, Trad. Peter Naumann, São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 72-73. Neste caso, explicita Müller, corre-se o risco de se ter o povo como mero ícone, acrescentando que, sempre que reinar o regime de exclusão na sociedade, não se faz possível atribuir ao vocábulo “povo” uma real conotação democrática. Convém questionar quando se deixou de viver em regime de exclusão, em maior ou menor grau, de sorte que, o que fora apontado como risco por Müller, ganha cores de inexorabilidade.
65
diferenças. As singularidades plurais da multidão contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do povo.129
Formada, assim, por um conjunto de singularidades plurais, a multidão se
apresenta como sujeito social capaz de agir pelos seus próprios meios mediante a
cooperação entre singularidades que revelam interesses comuns e, com base neles,
conduzem seus atos. Mais uma vez, afirma-se o viés anti-soberanista que marca a
obra de Negri.130 O sujeito do poder constituinte não precisa mais ser identificado
com o soberano uno e mediador do exercício do poder.131 A multidão produz o
real sem a necessidade de se fazer mediada, pela própria impossibilidade de que
algum corpo represente relações de cooperação que se encontram sempre em
mutação. Harmoniza-se, assim, o ideal democrático com o poder constituinte pela
possibilidade de se constituir novas instituições, novas relações e vontades
comuns pela atuação de todos e por todos, uma vez que a multidão mantém-se
múltipla e internamente diferente. Negri assim expõe a impossibilidade da
multidão ser reduzida a um pensamento único:
Comecemos dizendo que a multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum”, isto é, “um comum”, sempre que ele seja entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. [...] A multidão é um conjunto de singularidades, de fato, lá onde por “conjunto” se considera uma comunidade de diferenças e lá onde as singularidades são concebidas como produção da diferença.132
129HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139. 130Ressalte-se que Bercovici, neste aspecto particular, elabora crítica à teoria de Negri, ao afirmar que “sem soberania, o conceito de poder constituinte de Negri perde a base material de sustentação e se torna algo etéreo, metafísico. O poder constituinte atua de forma permanente. Ele se refere ao povo concreto, com autoridade e força para estabelecer a constituição, manter sua pretensão normativa e revogá-la.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp.34-35. Na concepção de Negri as coisas se passam de forma diversa: conforme visto, a transcendência, implícita na idéia de soberania possibilita que se opere a legitimação do poder sem base material, reduzindo o poder constituinte a algo etéreo e metafísico; a teoria negriana procura sua sustentação no plano da imanência, atenta, portanto, a uma base material que não permite a redução do poder constituinte a uma figura soberana identitária e artificial. Ressalte-se, no entanto, que Negri e Bercovici comungam da crítica ao constitucionalismo e seus efeitos, e defendem um conceito aberto de poder constituinte que devolva à comunidade a determinação de seu presente e de seu futuro. Ambos autores comprometem-se profundamente com a defesa pela atuação permanente e concreta do poder constituinte. As divergências se tornam claras na forma como entendem a relação entre soberania e poder constituinte e, conseqüentemente, como equacionam o problema de se identificar o seu sujeito: povo concreto para Bercovici; multidão de singularidades para Negri. 131Daí a assertiva de Negri no sentido de que “a definição conceitual inicial de multidão representa um claro desafio para toda a tradição da soberania”, uma vez que o conceito de multidão “desafia a verdade consagrada da soberania” consistente na atribuição de legitimidade para o exercício do poder a um sujeito necessariamente uno. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 140. 132NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império, p.148.
66
Vê-se, assim, como a igualdade não se obtém pela pasteurização das
singularidades; falar de igualdade não implica referir-se à homogeneidade, e sim a
ausência de hierarquização de poder de forma a permitir que diversas
singularidades possam se expressar livremente.133 A multidão se expressa
justamente na forma de agenciamentos entre singularidades que se associam em
rede134, em que a multiplicidade de interesses comuns implica em diversas
possibilidades de agrupamentos de singularidades em classes, tendo por critério
de distinção, variáveis que não podem ser exaustivamente numeradas. A multidão
é, portanto, um conceito de classes; um conceito aberto e expansivo que não
comporta lista predeterminada de seus componentes. Este ponto requer uma
especial atenção. Dizer que a multidão é um conceito aberto e vinculado à idéia de
classes não implica afirmar que todo o modo de agrupamento humano pode se
inserir no conceito de multidão. Isto porque, esclarece Negri, a classe associada à
idéia de multidão é aquela definida politicamente, e não empiricamente135; é dizer,
aquela que se constitui pela luta de classe - “uma coletividade que luta em
comum” – que atua no presente como resistência à opressão e se projeta para o
futuro como proposta política.136
Analisadas as dimensões temporal e espacial do poder constituinte, suas
formas de expressão e o sujeito implicado em suas ocorrências, um novo conceito
de poder constituinte emerge das considerações de Negri. Conceito que se
distancia daquele ofertado pelo constitucionalismo e que admite como contínua a
crise com o poder constituído; relação que é tensa, mas que, justamente pelo seu
caráter conflitivo, possibilita ultrapassar obstáculos e construir um real mais 133Importante ressaltar que Negri declara que a multidão não é um mero conceito socioeconômico, mas também um conceito de raça, gênero e diferenças de sexualidade, além de inúmeros outros que possam surgir. NEGRI, Antonio. Multidão, p. 141. 134Francisco de Guimaraens destaca que a abertura e a constante mutação que caracteriza a multidão a confere natureza rizomática, em que não pode ser identificado centro ou periferia de onde emana o poder; natureza rizomática, esta, que pode ser identificada, como exemplo, pelo modo de funcionamento da internet. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 164. 135O problema reside no fato de “tratar a classe como se fosse um mero conceito empírico, deixando de levar em consideração em que medida própria classe é definida politicamente.” Como mero conceito empírico, prossegue o pensador, “existe, naturalmente, uma quantidade infinita de maneiras possíveis de agrupar os seres humanos em classes – a cor do cabelo, o tipo sanguíneo e assim por diante – mas as classes que importam são as definidas pelos lineamentos da luta coletiva.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 144. É nesta concepção que o autor defende, a título de exemplo, que a raça é um conceito político, por não ser determinada pela etnia nem pela cor da pele, e sim, politicamente pela luta coletiva, manifestando-se através da resistência coletiva à opressão racial. Ibidem, p. 144. 136HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 144
67
condizente com os interesses comuns. Uma teoria da democracia que não resolve
este tenso convívio valendo-se de um irreal continuísmo entre poder constituinte e
poder constituído, conforme o faz o constitucionalismo ao narrar a doce e
harmoniosa passagem do poder constituinte originário para o poder constituinte
derivado (poder constituído). A linhagem maquiaveliana evidencia-se pela
denúncia ao caráter meramente retórico da formulação de modelos que, apartados
da materialidade histórica, tornam-se imprestáveis métodos para compreensão do
real.137 O efeito mais deletério destes modelos transcendentais reside na ocultação
do conflito, na negativa da possibilidade de criação de novas ordens, impondo um
pensamento único de que não há nada mais a ser feito, não há caminhos diversos a
trilhar. Negri enxerga por trás da fantasia constitucionalista e se depara com a
inconciliável relação entre poder constituinte e poder constituído. Ao internalizar
a crise como constituinte do processo democrático, o autor remonta mais uma a
Maquiavel e ao seu elogio à desunião. O conceito de poder constituinte completa-
se em sua dimensão democrática pela construção de uma teoria em que a mutação
no tempo é regida pela atuação da virtù e conduzida pela multidão:
[...] se o povo se faz Príncipe quando pega em armas, a definição histórica do poder constituinte – ou seja, a sua prática e a sua tendência – se realiza num processo que atravessa a desunião social e alimenta a sua potência através da luta; assim, o poder constituinte é paixão da multidão, uma paixão que organiza a força estimulando-lhe a expressão social, que se move lá onde o curso histórico tende a extinguir o poder na decadência, ou a banalizá-lo na inércia da anakyklosis. O poder constituinte é a capacidade de retornar ao real, de organizar a uma estrutura dinâmica [...] que, através de compromissos, ordenações e equilíbrios de força diversos, recupera sempre a racionalidade dos princípios, ou seja, a adequação material do político em relação ao social e ao seu movimento indefinido.
Eis um conceito de poder constituinte que, consentâneo com o ideal
democrático, oferece instrumentos para analisar atuação do Supremo Tribunal
137 Resta evidente que a constituição da multidão afasta-se da transcendência contratualista, por não depender de um pacto em que se transfira ou ceda direitos para um soberano. A criação de instituições não decorre da transcendência do soberano em relação aos sujeitos que compõem uma comunidade. O poder público, entendido como potência de uma coletividade, se funda pela imanência, vez que ordenado ontologicamente pelas relações de composição entre as singularidades que constituem a multidão, relações estas que podem se reorganizar de outras formas ao longo do tempo. Remonta-se ao ideal do Estado em Maquiavel, conforme ressaltou Mario de la Cueva: “o Estado para Maquiavel não é um ente real ou abstrato; é a comunidade humana que possui um poder interno supremo exercido pelo povo em uma democracia. Assim, a soberania para Maquiavel não é um atributo do estado, e sim uma característica do poder de uma comunidade política, que adquire um ethos próprio.” CUEVA, Mario de la. Estudo preliminar em: HELLER, Hermann. La soberania: contribución a la teoría del derecho estatal y del derecho internacional. Tradução Mario de la Cueva; México D.F.: Universidade Nacional Autónoma de México, 1995; p.17.
68
Federal na qualidade de instituição constituída para lidar com aspectos
constitucionais em que se entrelaçam direito e política. Negri identifica a relação
entre poder constituinte e política, apontando para o falso vínculo entre a gênese
política e poder constituído.138 A política decorre do poder constituinte e deve ser
compreendida como “potência ontológica de uma multidão de singularidades
cooperantes.”139 O que o autor procura demonstrar é a inexistência de uma força
soberana que determine de cima para baixo o devir político. A política continua a
ser reaberta no tempo pela cooperação produtiva das múltiplas singularidades, em
um processo de criação e recriação do real. Estas primeiras impressões sobre o
conceito de política suscitam dúvidas sobre a propriedade de se atribuir ao
Supremo Tribunal Federal, na qualidade de poder constituído, o papel de fonte
produtora de política.140 É preciso, à evidência, aprofundar a análise sobre o
conceito de política para melhor esclarecer a sua relação com o poder constituinte
e com as instituições dele decorrentes. A teoria de Jacques Rancière nos conduzirá
neste desafio de reconduzir a política à gramática da democracia.
2.4 A política na perspectiva de Jacques Rancière
Ao início do presente trabalho restou anunciado a insuficiência do conceito
tradicional de política para compreender o modo cooperativo de construção do
comum, implícito na idéia de democracia. A política é habitualmente associada
aos mecanismos de atuação dos poderes estatais, que visam à formação de
consensos atribuídos à sociedade, por meio da deliberação e decisão dos agentes
que ocupam postos representativos na organização harmônica e independente dos
três poderes. A inadequação deste conceito refere-se, principalmente, aos modos e
lugares associados a esta concepção sobre a política. Jacques Rancière denuncia,
em sua obra O desentendimento, a naturalidade com que se tornou habitual elogiar
138Neste sentido, Negri destaca que “não há definição de política senão a partir do conceito de poder constituinte. Longe, pois, de ser uma aparição extraordinária ou uma essência clandestina encerrada nas malhas do poder constituído, o poder constituinte é a matriz totalizadora da política.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 457. 139Ibidem, p. 457. 140 Ressalte-se que, dizer que determinado poder constituído não é fonte produtora de política, não significa afirmar que ele não receba influxos de questões políticas, sendo obrigado a lidar com estas. Na verdade, a todo o momento os poderes constituídos são confrontados pela política, como expressão, mais uma vez, da conflitiva relação entre poder constituinte e poder constituído.
69
a purificação da política, restringindo-a a lugares pretensamente adequados à
deliberação e decisão sobre o bem comum, ressaltando que, nestes mesmos
lugares, impera o conformismo sobre as possibilidades de mudanças. Os lugares
onde opera essa política seriam:
[...] as assembléias onde se discute e se legisla, as esferas do Estado onde se tomam as decisões, as jurisdições supremas que averiguam a conformidade das deliberações e das decisões às leis fundadoras da comunidade. A desgraça é que, nesses próprios lugares, se propaga a opinião desencantada de que há muito pouco a deliberar e de que as decisões se impõem por si mesmas, sendo o trabalho próprio da política apenas o de adaptação pontual às exigências do mercado mundial e de uma distribuição equitativa dos lucros e dos custos dessa adaptação.141
Nada disso soa como novidade. De fato, Rancière traduz, em outros termos,
os efeitos da perpetuação de uma ordem constituída, a que Negri se reporta ao
apontar os riscos de se aceitar o poder constituído como condutor da política. A
idéia de que há pouco o que se possa ser mudado decorre da lógica própria que
conduz a atuação do poder constituído: preservar-se institucionalizado,
pretendendo-se legitimado como representante maior da vontade constituinte.
Essa lógica, no entanto, não é nefasta por si; ela é intrínseca à crise que informa o
processo constituinte e demonstra que, de algum modo, o arranjo institucional é
impregnado pelo poder constituinte, mas acaba enclausurado pelo poder
constituído, em um movimento termidoriano. Olvidar a mecânica desta tensão,
tentando a todo custo relegar o poder constituinte ao ostracismo, é que nos lança
na letargia contra a qual Rancière se insurge. A política deve ter por efeito
dinamizar esta relação ao tornar evidentes os mecanismos de aprisionamento do
poder constituinte, abrindo caminhos para mutações que rompam com o
constituído.
Diante destas evidências, Rancière propõe uma nova formulação sobre o
conceito de política, afastada do conceito tradicional segundo o qual:
[...] designam com a palavra política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição.142
141RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 2003; p.10. 142 RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: A crise da razão. Organizador: Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 367-382, p. 372.
70
A renúncia a esta concepção deriva da constatação de que ela não expressa o
que distingue a política numa democracia: a ruptura de toda lógica de dominação
que se pretende legítima.143 Assim, imprescindível responder a duas questões.
Primeiro, o que se deve entender por política? Segundo, o que, então, significa o
tradicional conceito de política, se política, de fato, não o é?
A política, para Rancière, é, antes de tudo, uma questão estética, pois se
vincula às diversas formas de atribuir valor ao que se vê, ao que se diz e se ouve, à
situação dos que falam e os lugares que ocupam, às formas de distribuição dos
corpos no tempo e no espaço e as funções que eles devem exercer, disto derivando
diferentes recortes do mundo sensível. Recortes que se opõe e marcam a
existência de mundos diversos convivendo em um mesmo mundo144 e que
distinguem de modo diverso quem possui “competência para ver e qualidade para
dizer”, quem possui título para distinguir o justo do injusto. 145
Esta participação no comum, marcado pela diferença e pela definição prévia
de quem está autorizado ou impedido a agir de uma determinada maneira, parece
anunciar-se já em Espinosa:
Talvez esse texto seja acolhido com riso por aqueles que restringem à plebe os vícios inerentes a todos os mortais [...] A natureza, digo eu, é a mesma para todos e comum a todos. Mas nós deixamo-nos enganar pelo poder e o requinte. Daí esta conseqüência: agindo dois homens da mesma maneira, dizemos que o que era permitido impunemente a um, não o era a outro; os atos não são diferentes, mas os agentes são. A soberba é natural no homem. Uma nomeação por um ano basta para orgulhar os homens, que acontecerá com os que perseguem honras perpétuas? Mas a sua arrogância reveste-se de fausto, luxo, prodigalidade, de um certo conjunto de vícios, de uma espécie de sábio despropósito e de uma elegante imoralidade, tal como de outros vícios que, considerados separadamente, surgem em todo seu aspecto odioso e sua ignomínia, parecendo às pessoas ignorantes e de parco juízo ter um certo brilho.146
143Ibidem, p. 372. 144“A política, antes de ser o modo pelo qual indivíduos e grupos combinam seus interesses e sentimentos, é um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível.” Ibidem, p. 368. 145 Na acepção do autor, política é uma questão de estética, pois é um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005, pp. 16-17. 146 ESPINOSA, Bruch de. Tratado político. Trad. Manuel de Castro. São Paulo: Abril Cultural, 1983, capítulo VII, § 27, p. 337. Como pontua Marilena Chauí: “o parágrafo 27, distinguindo entre atos iguais e agentes desiguais, indica que a Natureza, a mesma em todos e comum a todos, é, agora, tomada sob novo ângulo, não mais na perspectiva daquilo que os homens experimentam em
71
A política como constituição estética implica, assim, em reconhecer que a
comunidade se forma pela partilha do sensível.147 O que significa e quais os feitos
desta partilha? Rancière ressalta que se deve estar atento para o fato de que ao
dizer partilha, o faz em duas significações: partilha como participação de um
conjunto comum e, ao mesmo tempo, como divisão de partes e distribuição de
quinhões. Assim, sendo, a partilha do sensível é a configuração da relação entre o
comum partilhado e a divisão de partes e lugares exclusivos.148 Nas palavras do
filósofo:
[...] denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis, que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa planilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como o comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte da partilha.149
Disto poder-se-ia extrair a constatação da possibilidade de realizar uma
perfeita contagem das partes e de seus quinhões, permitindo que se estabelecesse
um sistema harmônico, não conflituoso, em que o ideal de justiça distributiva
pudesse equilibrar as partes que integram esse cálculo do todo. Ocorre que, esta
contagem das partes da comunidade é sempre uma falsa contagem ou um erro na
contagem.150 Imperioso aprofundar a análise desta assertiva, pois dela deriva a
gênese da política na concepção de Rancière.
A política, para os clássicos, surge justamente da tentativa de repartir as
parcelas do comum levando em conta a proporção entre as parcelas da
comunidade e os títulos que as confere legitimidade a integrar a polis. Ao valor
que cada parcela traz para a comunidade, corresponde o direito de deter parte do
poder comum.151 Aristóteles define como três os títulos de comunidade: a riqueza,
a virtude ou excelência e a liberdade. A riqueza revela-se como título próprio dos
oligarcas; a virtude refere-se às pessoas de bem e mais sábias, os aristocratas; e a
comum, mas daquilo que sendo todos eles conatus e direito natural, neles se passa sob os efeitos da desigualdade instalada pela divisão social, nascida ela própria de algo comum a todos [...]”. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa, p. 277-278. 147Como afirma Rancière: “pelo termo de constituição estética deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 7. 148RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível,, p.7. 149Ibidem, p. 15. 150RANCIÈRE. Jacques. O desentendimento, p. 22. 151 Ibidem, p. 21.
72
liberdade é o título pertencente ao povo. Isoladamente, a cada título corresponde
um regime próprio – oligarquia, aristocracia e democracia – que, apenas
integrados conjunta e harmonicamente, evitam conflitos e sedição, trazendo
estabilidade a polis.152 Esta estrutura busca conferir capacidades políticas às partes
que formam a comunidade e, pretensamente, equilibrar o cálculo que conta estas
partes.
Este modelo político não parece tão distanciado no tempo. A relação entre
os antigos e os modernos aparenta, neste ponto, conter graus de semelhanças que
torna pertinente a opção de Rancière por iniciar seus estudos políticos pela
Antiguidade. Com efeito, o modelo polibiano – inspirado em Aristóteles –
influenciou decisivamente, dentre tantas, a teoria de Montesquieu sobre a divisão
dos poderes como meio de equilibrar as forças das partes que integram a
comunidade. O ideal de moderação dos poderes descende de uma linhagem que
enxerga a política como meio efetuar pequenas correções para evitar que o
equilíbrio da equação que rege a harmonia entre as partes da comunidade seja
rompido. Daí Rancière poder afirmar:
[...] o que os “clássicos” nos ensinam é antes de mais nada o seguinte: a política não se ocupa dos vínculos entre os indivíduos, nem das relações entre os indivíduos e a comunidade, ele é da alçada de uma contagem das “partes” da comunidade.153
Este pretenso equilíbrio, no entanto, esconde a existência de um erro na
contagem dessas partes, um equívoco na contagem dos títulos próprios com que
cada parte contribui para o bem comum. A liberdade atribuída ao demos em
verdade não se configura como um título próprio, somente seu. Trata-se de um
título também compartilhado entre as demais partes da comunidade. A gente do
povo, diz Rancière, é de fato simplesmente livre como os outros.154 Desta
ausência de título distintivo, vez que não possui riqueza, nem virtude, decorrem
dois efeitos: primeiro, o demos só pode ser considerado parte como resto do
cálculo que bem distingue oligarquia e aristocracia, como conjunto de pessoas que
se ligam pela negativa; aqueles que não possuem nada de distintivo e que
necessitam arrostar qualquer forma de dominação que lhe arrebate a única coisa
que os faz igual à comunidade: a liberdade. Em segundo plano, por não ter parcela
152 Ibidem, p.22. 153RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 21-22. 154Ibidem, p. 23.
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própria, por ser nada e possuir apenas a liberdade, o demos apropria-se desta
característica comum como se própria fosse. A apropriação do que é comum por
aquela parte que não tem parcela desequilibra a pretensão do cálculo harmonioso
– e fantasioso – que procura esconder a ausência de parcela do demos na
contagem das partes. Em verdade, revela-se a ocorrência de uma dupla contagem
de títulos para os oligarcas e aristocratas, vez que, além dos que lhes são próprios,
também lhes pertence a liberdade. Eis o motivo pelo qual Rancière afirma que não
é a liberdade o que o demos traz para a comunidade como título próprio, e sim o
litígio. O título que o povo traz é uma “propriedade litigiosa, já que não lhe
pertence propriamente.”155 É, portanto, através deste litígio, que o demos – como
parcela que não possui parcela peculiar - procura se identificar com o todo da
comunidade, titular-se como igual contra a dominação daqueles cuja virtude ou
riqueza têm por conseqüência relegá-lo a uma parcela da comunidade que não
toma parte nas coisas comuns.
O litígio perturba a ordem estabelecida e, neste momento, funda a política
pela divisão do mundo comum em recortes de mundos sensíveis diversos: o
daqueles que detêm títulos próprios e enxergam a dominação como estabilidade e
equilíbrio das partes que compõem a comunidade, em contraposição ao mundo
sensível daquela parcela dos sem-parcela que, fundada na igualdade que lhe
empresta o título da liberdade, compreende aquele modelo estático como
mecanismo que a impede de tomar parte nas decisões sobre o que é comum. Esta
cisão é enunciada por Rancière:
É em nome do dano que lhe é causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem não tem parcela – os pobres na Antiguidade, o terceiro estado ou o proletário moderno – não pode mesmo ter outra parcela a não ser nada ou tudo. Mas é também mediante a existência dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que é tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade política, ou seja, enquanto dividida por um litígio fundamental, por um litígio que afeta a contagem de sua partes antes mesmo de afetar seus “direitos”. O povo não é uma classe dentre outras classes. É a classe do dano que causa à comunidade e a institui como “comunidade” política.156
A política aparece nesse contexto como a possibilidade de questionar a
partilha do sensível já dada, como meio de propor reconfigurações dos sensíveis
155RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p.24. 156Ibidem, p. 24.
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comuns rompendo uma ordem lógica de dominação, pretensamente natural.157 A
comunidade política, por sua vez, só pode ser concebida através do litígio
concreto entre aqueles que têm parcela – títulos – e a parcela dos sem-parcela.
Seria inexato, no entanto, entender a política como decorrência de uma
preexistente luta entre classes. A luta de classes, ressalta Rancière, não está sob a
política, ela é a política158; ela não antecede a política, lhe é contemporânea. E
aqui Rancière aproxima-se de Negri quando o pensador italiano alerta que não se
deve tratar classe como mero conceito empírico, e sim como conceito político.
Nesta concepção, a classe não decorre de uma divisão natural, não há classes por
si mesmas, e sim a divisão do mundo sensível em mundos diversos que expressam
diferentes modos de compreender o real. Neste sentido, expõe Rancière:
[...] foram os antigos muitos mais do que os modernos, que reconheceram no princípio da política a luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram exatamente – com o risco de querer apagá-la – sua realidade propriamente política. A luta dos ricos e dos pobres não é a realidade social com que a política deva contar. Ela se confunde com sua instituição. Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política – ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos – que faz os pobres existirem enquanto entidade. [...] A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e reparações. Fora desta instituição, não há política. Há apenas ordem de dominação ou desordem da revolta.159
A democracia – o governo do demos - faz revelar a política como atividade
de um comum que é necessariamente informado pelo litígio. Cabe, neste
momento, um alerta de suma importância: democracia, lembra Rancière, aparece
inicialmente como um insulto, como referência aos pobres, menos como categoria
econômica, e mais como categoria simbólica, “um lugar específico no mundo
157 “Existe política quando a contingência igualitária interrompe como ‘liberdade’ do povo a ordem natural das dominações.” Ibidem, p. 32. 158 Como exprime Rancière, o demos “não é apenas a parte que se identifica ao todo. É a parte que se identifica ao todo exatamente em nome da injustiça que lhe é feita pela ‘outra’ parte: por aqueles que são alguma coisa, que têm propriedades, títulos para governar. Essa estrutura conflitual não deve ser pensada de forma redutora, como o dado da luta social que se imporia como subestrutura da política. A luta de classes não está ‘sob’ a política, não é a realidade da divisão e da luta que desmentiria a falsa pureza da política. A luta de classes, o cômputo polêmico enquanto um todo dos que são nada, é a própria política.” RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, p. 371. 159RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 26-27.
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daquilo que se vê e se considera.”160 O pobres são os reles, os que não possuem
nenhum título distintivo que os legitime para governar; não lhes toca título de
nobreza pelo bem nascer, nem os títulos da riqueza ou sapiência. A democracia
representa, portanto, uma ruptura de qualquer forma de dominação por prever que
não há necessidade de título para governar.161 A política, por sua vez, é marcada
pelo paradoxo de se fundar na ausência de fundamento natural de dominação.162 A
política obedece à “pura contingência de toda a ordem social”163, sem necessitar
recorrer à qualquer fundamento divino ou natural que distribua as atribuições de
mando e obediência, revelando o caráter imanente da sua teoria.
O retorno aos clássicos é revelador. Conforme destaca Rancière, Platão
considera pertinente distribuir os papéis de governante e governado pelo critério
da ciência e da ignorância. Platão sustenta, a expor sua perspectiva francamente
antidemocrática, que os artesãos não podem tomar parte das decisões comuns,
pois a dedicação ao trabalho exaure todo o seu tempo; eles não dispõem de tempo
para se dedicar a nada mais que não seja o trabalho.164 O modo como é
compreendida sua ocupação o impede de receber seu quinhão sobre a deliberação
da coisa comum. Pertinente a intervenção de Rancière:
[...] a partilha do sensível faz ver quem pode tornar parte no comum em função daquilo que se faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum.165
Nesta partilha do sensível, a parte distribuída ao artesão é, portanto, uma
não parcela. Ao mesmo tempo em que integra a partilha, pois nela lhe é atribuído
um lugar – o daquele que trabalha - o artesão participa na contagem das partes da
comunidade como uma parcela que não toma parte nas discussões das coisas
comuns. Platão define claramente um regime, em que, das decisões sobre o bem
160Idem. O dissenso, p. 370. 161“Esse nome banal para nós [democracia] significa portanto originalmente uma ruptura inédita, a instituição de um mundo às avessas para todos os que pretendem fazer valer um título para governar. Significa que governam especificamente os que não têm nenhum título para governar.” Ibidem, p. 370. 162Ibidem, p. 370. 163Idem, O desentendimento, p. 30. 164 “Os artesãos, diz Platão, não podem participar das coisas comuns porque eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não espera.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 16. 165Ibidem, p. 16.
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comum, não participam todos que compõem a polis. Ao fazê-lo, torna evidente a
existência de uma parte da comunidade que não possui qualquer título distintivo
que a legitime para tomar parte no governo e, assim, revela cruamente a existência
da parcela dos sem-parcela, demonstrando o erro no cálculo das partes do todo.166
Aristóteles, em sentido oposto, procurou conferir ao ser humano um signo
que o definisse como animal naturalmente político. A posse do logos, na
concepção aristotélica, por si, confere ao homem a natureza política. Os animais
possuem voz e podem exprimir dor ou prazer através de barulhos, mas, apenas o
ser humano, possui, para além da voz, a palavra que o permite manifestar o justo e
o injusto, o bem e o mal.167 A polis é a comunidade desses valores e o cidadão a
integra, na medida em que é contado como parcela que toma parte na construção
deste comum, no fato de governar e ser governado. A contagem das partes, no
modelo aristotélico, sempre coincidirá harmoniosamente com o todo. Qualquer
um que possua a palavra é contado como ser político, membro da comunidade.
Não há necessidade de conflito, nem erro na contagem que suscite o litígio. Mas,
como pontua Rancière, o que parece plenamente resolvido no campo teórico
apresenta-se de outra forma na concretude mundana:
Tudo parece bastante claro: quando se está diante de um animal que discursa, sabe-se que é um animal humano, portanto político. Mas, na prática, uma outra coisa é muito menos clara: como se reconhece exatamente como um discurso aquele ruído que o animal diante de nós faz com sua boca? Esse reconhecimento não é, justamente, natural. Ele próprio supõe uma subversão da ordem normal das coisas. Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas ruído no que ele diz.168
A forma como cada parcela toma parte na polis é, portanto, antecedido por
uma outra forma de partilha do sensível: aquela que determina os que tomam
parte da polis.169 É dizer: se é certo que o cidadão é aquele que possui a palavra e
166 Como expõe Rancière: “o ódio resoluto de antidemocrata Platão enxerga com mais justeza os fundamentos da política e da democracia do que os mornos amores desses apologistas cansados que nos garantem que convém amar ‘racionalmente’, quer dizer, ‘moderadamente’, a democracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro de cálculo da democracia, que em última instancia é apenas o erro de cálculo fundador da política. Idem, O desentendimento, p. 25. 167 Rancière, valendo-se de Aristóteles, ressalta a distinção entre a palavra, que manifesta, e a voz, que apenas indica. E detalha: “o que a palavra manifesta, o que ela torna evidente para uma comunidade de sujeitos que a ouvem é o útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o injusto. RANCIÈRE, Jaques. O desentendimento, p. 17. 168 Idem. O dissenso, p. 373. 169 Idem. A partilha do sensível, p. 16. “Antes do logos que discute sobre o útil e o nocivo, há o logos que ordena e confere o direito de ordenar. Mas esse logos primeiro já está mordido por uma
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não apenas voz, existe uma partilha do sensível que atribui apenas a uma parte da
comunidade o fato de ter seu discurso ouvido como palavra e não como ruído, que
distribui simbolicamente os corpos entre aqueles visíveis e invisíveis. A política
não decorre, assim, da mera posse do logos como anuncia Aristóteles; ela existe
por conta da forma cindida pela qual se apartam aqueles que emitem a palavra, e,
por isso, estão aptos a diferenciar o justo do injusto, daqueles outros, cuja voz não
pronuncia um discurso articulado e racional:
Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta.170
Esta divisão do mundo sensível é retrata por Rancière ao descrever a
interpretação que Pierre-Simon Ballanche confere à sedição dos plebeus romanos
que se retiraram da cidade e se refugiaram no monte Aventino. O conflito, do qual
se originaram os tribunos da plebe, contrapôs plebeus aos patrícios em Roma. A
tratativa entre as partes revela, em primeiro plano, a ordem do sensível que
organizava a dominação dos patrícios sobre a plebe. À exortação do patrício
Menênio Agripa a que os plebeus retornassem às suas atividades naturais, estes
responderam com a proposta de um tratado. O escândalo desta proposta revela-se
na ruptura da ordem desigualitária vigente; na pretensão de igualdade da plebe
como possuidora do logos a ponto de poder debater com – e como - os patrícios,
de firmar contrato e participar da formação de uma lei comum. Tudo isso soa
absurdo para os patrícios: aqueles que não têm nome, que não são contados como
emissores do que é justo ou injusto para a cidade, não podem ser reconhecidos
como participantes igualitários de uma discussão.171 A reação de Ápio Cláudio,
descrita por Ballanche – e transcrita por Rancière - desnuda a ordem do sensível
que organiza a dominação dos patrícios:
Possuem a palavra como nós, ousaram eles dizer a Menênio! Foi um Deus que fechou a boca de Menênio, quem ofuscou seu olhar, quem fez zumbir seus
contradição primeira. Há uma ordem na sociedade porque uns mandam e outros obedecem.” Idem. O desentendimento, p. 31. 170RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 36. 171 “A posição dos patrícios intransigentes é simples: não há porque discutir com os plebeus, pela simples razão de que estes não falam. E não falam porque são seres sem nome, privados de logos, quer dizer de inscrição simbólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual, que não transmite nada, a não ser a própria vida, reduzida a sua faculdade reprodutiva.” Ibidem, p. 37.
78
ouvidos? Será que foi tomado de uma vertigem sagrada? [...] ele não soube responder-lhes que tinham uma palavra transitória, uma palavra que é um som fugidio, espécie de mugido, sinal da necessidade e não da manifestação da inteligência. São privados da palavra eterna que estava no passado, que estará no futuro.172
Ao se anunciarem como iguais detentores do logos os plebeus rompem com
uma ordem de dominação supostamente natural, lançam por terra o fundamento
que legitimava a divisão desigualitária do sensível e estabelecem uma nova ordem
em que passam a ser contados.173 Passam, assim, de invisíveis, de massa uniforme
que emite sons guturais, a seres que tinham nomes, emitiam a palavra e tomavam
parte na discussão do comum.174 O desenlace do conflito, relata Rancière, impôs
aos patrícios a conclusão de que “se os plebeus se tornaram seres da palavra, não
mais há a fazer, a não ser falar com eles.”175 Do desfecho deste conflito nascem os
tribunos da plebe, institucionalizando a participação da plebe no governo romano.
O que se expressa claramente aqui, e articula as falas de Maquiavel, Negri e
Rancière, é que a política, originária do confronto entre dois mundos sensíveis,
permite a atuação do poder constituinte como mecanismo de ruptura de ordens
que estruturam a dominação tendo por fundamento um título que determina a
distribuição desigual e hierarquizada dos sujeitos, dos lugares e funções. O
apólogo do Aventino expressa, em certa medida, a tensão entre poder constituinte
e poder constituído a que Negri se refere; o conflito entre imanência – vez que a
política obedece à pura contingência de toda a ordem social – e transcendência –
em que se recorre a um fundamento natural de dominação que distribui as
atribuições de mando e obediência.
Rancière defende - e se vale do apólogo do Aventino para demonstrá-lo -
que a política refere-se a um conflito anterior àquele que contrapõe interesses de
172Ibidem, p.37. 173 A posse do logos, destaca Rancière, permite que os plebeus se valham da palavra para erigir um destino comum, e ao fazer o que contraria a ordem posta, expõe o autor, “instituem uma nova ordem, uma outra divisão do sensível, constituindo-se [...] como seres falantes repartindo as mesmas propriedades daqueles que as negam a eles.” Ibidem, p. 38. 174 Como explicita Rancière, afirmando a posse logos os plebeus passam a executar uma série de atos de palavras semelhantes à dos patrícios. Assim é que executam uma série de atos de palavras que mimetizam os dos patrícios e comportam-se, por meio da transgressão, como “seres falantes, dotados de uma palavra, que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência”. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 38. 175 “O Senado romano, no relato de Ballanche, é animado por um Conselho secreto de velhos sábios. Estes sabem que, quando acaba um ciclo, quer isso nos agrade, quer não, ele está acabado. E concluem que, já que os plebeus se tornaram seres de palavra, nada mais há a fazer, a não ser falar com eles.” Ibidem, p. 39.
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debatedores que, através do debate regido por regras isonômicas, seriam capazes
de atingir um consenso universalizante. A política é, antes de tudo isso, o conflito
para se determinar se existe um palco comum e quais são as pessoas que podem
ser contadas como protagonistas nesse conflito. Conforme expressa Rancière:
A política é primeiramente o conflito da existência de uma cena comum, em torno da existência e a qualidade daqueles que estão ali presentes. É preciso estabelecer antes de mais nada que a cena existe para o uso de um interlocutor que não a vê e que não tem razões para vê-la já que não existe. [...] Não há política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não se estão, o mundo em que há algo ‘entre’ eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada.176
É justamente à reunião desses dois mundos sensíveis em um mesmo mundo
que instaura uma cena de conflito a que Rancière denomina dissenso. O
desentendimento, nesta concepção, não se traduz no fato de que ambos os lados
expressem vocábulos diferentes. O que marca a diferença são as formas
inconciliáveis como cada um entende o que foi enunciado. Quando contados e
não-contados expressam o termo “igualdade”, por exemplo, querem expressar
realidades diversas de como apreendem este signo a partir de seus peculiares
modos de enxergar o mundo: “o dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das
maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo do
mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria.”177 É neste
sentido que Vera da Silva Telles, em artigo que trata sobre direitos sociais, expõe:
[...] se a reivindicação de direitos está longe de ser a tradução de um suposto mundo das necessidades, tampouco pode ser reduzida simplesmente ao jogo dos interesses, pois os direitos estruturam uma linguagem pela qual esses sujeitos elaboram politicamente suas diferenças e ampliam o "mundo comum" da política ao inscrever na cena pública suas formas de existência, com tudo o que elas carregam em termos de cultura e valores, esperanças e aspirações, como questões que interpelam o julgamento ético e a deliberação política. [...] Se é certo que a reivindicação por direitos faz referência aos princípios universais da igualdade e da justiça, esses princípios não existem como referências de consenso e convergência de opiniões. Ao contrário disso é o que define o terreno do conflito no qual as
176RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 39-40. 177Idem. O dissenso, p.368.
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disputas e antagonismos, divergências e dissensos, ganham visibilidade e inteligibilidade na cena pública.178
O dissenso, portanto, promove a instauração da cena política por revelar
uma pressuposição de igualdade, onde a desigualdade é vista – e vivida - como
natural. Ele provoca arrombamentos na ordem constituída, pois se expressa na
emergência de personagens que pretendem encerrar com a distinção entre
protagonistas e figurantes, subverter a distribuição de papéis que distingue quem
possui fala daqueles que devem permanecer calados. A questão, portanto, não se
resume ao eventual reconhecimento fático de uma desigualdade. Esta mera
constatação pode conviver bem com a inalterabilidade do estado de coisas, a se
constituir, também, um mecanismo de naturalização. Com efeito, mesmo o
sentimento piedoso e o mero desejo de que as coisas se passem de forma diversa
acabam por confirmar a distribuição dos lugares e funções na sociedade. Eles se
revelam como bons anestésicos, e nesta qualidade prestam-se à transcendência da
dor real. A política - e o dissenso que a anima -, em sentido inverso, reconduz a
questão à concretude mundana, pois revela a desigualdade no momento em que
atua para desestabilizar a ordem que a institui, em nome de uma pressuposição de
igualdade ativada pelos sujeitos destituídos do logos:
[...] igualdade que não existe na realidade dos fatos, mas que se apresenta como uma exigência de equivalência na sua capacidade de interlocução pública, de julgamento e deliberação em torno de questões que afetam suas vidas e essa exigência tem o efeito de desestabilizar e subverter as hierarquias simbólicas que os fixam na subalternidade própria daqueles que são privados da palavra ou cuja palavra é descredenciada como pertinente à vida pública do país. O que instaura a polêmica e o dissenso sobre as regras da vida em sociedade não é portanto o reconhecimento da espoliação dos trabalhadores, a miséria dos sem-terra, o desamparo das populações nos bairros pobres das grandes cidades, ou ainda as humilhações dos negros vítimas de discriminações seculares, a inferiorização das mulheres, o genocídio dos índios e também a violência sobre aqueles que trazem as marcas da inferioridade na sua condição de classe, de cor ou idade. Em todas essas negatividades o discurso humanitário pode seguir tranqüilo, é seu terreno por excelência, aqui as identidades de cada uma na geometria simbólica dos lugares são apenas confirmadas. O que provoca escândalo e desestabiliza consensos
178TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Disponível em <http://www2.ibam.org.br/municipiodh/biblioteca%2FArtigos/Direitos_sociais.pdf>. Acesso em 22 out. 2009, p. 5-6. A autora traz um exemplo brasileiro a elucidar a teoria exposta: “Quando os trabalhadores sem-terra fazem as ocupações de terra, instauram um conflito que é mais do que o confronto de interesses, pois abrem a polêmica - e o dissenso - sobre os modos como se entende ou pode se entender o princípio da propriedade privada e seus critérios de legitimidade, sobre o modo como se entende ou pode se entender a dimensão ética envolvida na questão social e sua pertinência na deliberação sobre políticas que afetam suas vidas, sobre o modo como se entende ou pode se entender a questão da reforma agrária, suas relações com uma longa história de iniqüidades e o que significa ou pode significar para o futuro deste país. Ibidem, pp. 6.
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estabelecidos é quando esses personagens comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu reconhecimento sujeitos falantes [...] que se pronunciam sobre questões que lhes dizem respeito, que exigem a partilha na deliberação de políticas que afetam suas vidas e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado, ou então fixado na ordem do não-pertinente para a deliberação política.179
Daí Rancière afirmar que a política se move por uma racionalidade própria:
a racionalidade do desentendimento, e que ela se baseia em um único princípio: o
da igualdade. Em sentido oposto à noção de guerra fratricida, este dissenso
permite o que Rancière denomina de “situações de conflito ordenadas” em que se
fazem notar situações de discussão e argumentação.180 A igualdade, por sua vez,
ressalva o pensador francês – como o faz Negri -, não deve ser entendida como o
objetivo a ser alcançado pela política. A igualdade constitui-se uma pressuposição
que dinamiza a política: é o seu princípio e não seu fim. Não há nada
essencialmente político e mesmo a lógica igualitária que a ampara nunca é
preconstituída. O poder constituinte não opera com um plano traçado, uma pauta
definida e fechada a ser cumprida. Ele decorre dos agenciamentos das
singularidades múltiplas, desses sujeitos da política a que Rancière classifica
como potências de enunciação e manifestação do litígio181, como sujeitos em atos
que não existem como entidades estáveis182, capazes de estabelecer improváveis
relações e agenciamentos para romper com a lógica constituída. A esta lógica
Rancière denomina de policial, estreitamente vinculada à segunda questão posta
no início deste item: o que significa o processo tradicionalmente identificado
como política?
A política, na concepção de Rancière, refere-se àqueles atos que perturbam
a ordem estabelecida e vivida como natural a permitir, através de uma cena em
que se estabelece o conflito entre recortes do mundo sensível, a atualização do 179 TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais, p. 5. 180 RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, p. 374. Mas, esta discussão ou argumentação, ressalta Rancière, é de ordem bem diversa do modelo habermasiano da razão comunicativa. Nesta já estão previamente constituídos os sujeitos de fala e as regras gerais a que o caso sob debate deve obedecer. Como expressa Rancière, por este modelo, “dois locutores se vêem confrontados e são levados, pela própria lógica da confrontação, a ultrapassar seu ponto de vista limitado.” E continua, apontando a diferença entre o dialogismo possível pela política daquele proposto por Habermas: “Esse modelo é certamente satisfatório para o espírito, mas creio que nenhuma situação de interlocução política forte lhe corresponda [...] o próprio do dissenso político, como vimos, é que sempre pelo menos um dos elementos da cena não está constituído: seu lugar, seu objeto, os sujeitos aptos a falar dele etc.” RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, pp. 376-377. 181Ibidem, p. 377. 182Ibidem, p. 378. A definição do sujeito político para Rancière não exclui o caráter rizomático que informa a multidão como sujeito constituinte na teoria de Negri.
82
princípio da igualdade; a política se manifesta, portanto, pelo dissenso que causa
um dano, uma ruptura na configuração do sensível, uma mutação naquilo que é
“visível, dizível, contável.183 Por sua vez, àquele conjunto de processos através
dos quais se organizam os poderes, que distribuem os lugares e funções e os
modos de legitimação desta distribuição, normalmente identificados com a
política, Rancière propõe chamar de polícia. Este ponto demanda redobrada
atenção pelo significado negativo que este termo costuma carregar. Rancière é
categórico ao afirmar que deve ser dado um sentido neutro e não pejorativo ao
termo polícia. A idéia de ordem policial aqui não deve ser entendida como
necessariamente repressora, ainda que a repressão possa integrá-la, nem mesmo
identificada à noção de aparelho de Estado, em que se opõe o estado Leviatã à
sociedade em risco iminente de ter cerceada sua liberdade.184 A ordem policial se
apresenta como ordem vigente, que depende não apenas da atuação do Estado
como deriva de uma suposta naturalidade das relações sociais; uma lei que
organiza, não raro, implicitamente, a distribuição dos corpos, funções e parcelas
que cabe a cada sujeito ou grupo na comunidade. Nas palavras de Rancière:
A polícia é, assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído [...] A polícia não é tanto uma “disciplinarização” dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.185
À polícia, portanto, não deve ser atribuído necessário caráter depreciativo. A
polícia pode se apresentar de forma positiva e ser responsável pela boa
distribuição de bens e direitos necessários e úteis à comunidade, o que se apreende
facilmente por um processo elementar de comparação entre diversas ordens
policiais, a comprovar que elas não se apresentam sempre da mesma maneira. 186
Se o fato de a polícia poder ser “doce e amável” não altera sua natureza contrária
183 Ibidem, p. 372. “A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho.” Idem. O desentendimento, p.42. 184RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 41-42. 185Ibidem, p. 42. 186“Há a polícia menos boa e a melhor – não sendo a melhor, aliás, a que segue a ordem supostamente natural das sociedades ou a ciência dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lógica igualitária vieram na maioria das vezes afastar sua lógica ‘natural’.”Ibidem, p. 43.
83
à da política187, resta evidenciado que em grande medida, aquela ordem é
influenciada pela atuação política. Isto porque, se as ordens policiais podem se
distinguir em gradação de qualidade, o critério que as define como melhores ou
piores é justamente o fato de, naquelas, a lógica igualitária ter logrado êxito em
romper com a ordem de dominação vivida como natural, mediante sucessivas
mutações que promoveram a atualização do princípio da igualdade.
Disso depreende-se que a política não prescinde da lógica policial para
existir. Explica-se: se a política decorre do confronto entre dois mundos sensíveis
- um constituído como ordem vigente e outro impulsionado pela pressuposição de
igualdade a perturbar aquele primeiro - a sua gênese decorre necessariamente do
encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária. É constitutivo da política
este embate e, não por acaso, se apresenta de forma semelhante ao processo
constituinte, regido que é, pelo confronto entre poder constituinte e poder
constituído. Política e poder constituinte encontram-se imbricados, conforme
discorrido no item anterior. Ali restou ressaltado a impossibilidade de se dissociar
ambos os conceitos. De forma análoga à que Negri se refere ao poder constituinte,
Rancière ressalta a inexistência de um sujeito, objeto, lugar, ou finalidade
predeterminados à política. Ela aparece como forma, como acontecimento que
possibilita averiguar a igualdade no âmbito de determinada ordem policial188,
disputando conceitos, colocando sob suspeita uma estrutura que sempre se fez
transparecer naturalizada:
Um mesmo conceito – a opinião ou o direito, por exemplo – pode designar uma estrutura do agir político ou uma estrutura de ordem policial [...] Mas é preciso acrescentar que essas palavras também podem designar, e designam na maioria das vezes, o próprio entrelaçamento das lógicas [policial e igualitária]. A política age sobre a polícia. Ela age em lugares e com palavras que lhes são comuns, se for preciso reconfigurando esses lugares e mudando o estatuto dessas palavras. O que habitualmente é colocado como o lugar do político, ou seja, o conjunto das instituições do Estado, justamente não é um lugar
187“A polícia pode ser doce e amável. Continua sendo, mesmo assim, o contrário da política.” Ibidem, p. 43. 188“A política não tem objetos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único princípio, a igualdade, não lhe é próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o caráter político de uma ação não é seu objeto ou o lugar onde é exercida, mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade política que existe apenas pela divisão. A política encontra em toda a parte a polícia.” RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 45.
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homogêneo. Sua configuração é determinada por um estado das relações entre a lógica política e a lógica policial.189
A relação conflitante entre a lógica igualitária e a lógica policial não parece
distante da tensão entre poder constituinte e poder constituído, exposta por Negri.
Ambas apontam no sentido para o qual os ensinamentos maquiavelianos
indicavam. O ideal do povo em armas vinculando a liberdade à igualdade
concreta; o conflito como mola propulsora das mutações que trazem boa ordem à
cidade; a potência dos sujeitos constituintes como poder em ato, como práxis que
expressa a virtú coletiva na construção do real, em seu poder constituinte. Esta
linha que perpassa o pensamento de Maquiavel, Rancière e Negri, nos é
extremamente cara para a compreensão das instituições na democracia.
Em primeiro lugar, já se evidenciou que o poder constituinte e a política não
emergem da estrutura estatal, dos emaranhados das deliberações legislativas e das
decisões judiciais das altas cortes. E mais: que a lógica transformadora pela qual
operam a política e o poder constituinte colide com a tendência de manutenção de
um estado de coisas posto pelo qual atua o poder constituído, operando com a
lógica policial. Isso, no entanto, não implica em fazer de Negri e Rancière teóricos
aversos à existência das instituições. Em sentido contrário, elas integram, em
ambas as teorias, a própria mecânica dos processos político e constituinte. Ambos,
no entanto, se insurgem contra a perpetuação de uma ordem de dominação tida
por natural, portanto, imutável, que procura capturar a política e o poder
constituinte na estrutura de suas instituições, relegando ao degredo os sujeitos
políticos e constituintes. Não há o desprezo pelas instituições e sim, a recusa ao
mau uso que delas se faz, à possibilidade de se endeusá-las como sacrossantas
entidades que se devem proteger da mutação operada pelos sujeitos constituinte
ou que restem, elas próprias, simulacro destes sujeitos, atribuindo-se legitimidade
para controlar e tanger a mutação a seu talante.
Em Negri, há um expresso elogio a Maquiavel justamente pelo fato de o
florentino ter demonstrado a importância dos homens se darem instituições que
melhor preservem a liberdade e a igualdade do povo em armas, instituições que
189Ibidem, p. 45.
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não retirem do povo as armas que lhe conferem a guarda daqueles princípios190.
Negri não se insurge, deste modo, contra as instituições e sim, contra a
naturalização de uma ordem constituída que, não apenas impede a criação e
renovação das instituições, como a torna condutora da política em lugar do poder
constituinte. Em Rancière, a importância se faz mais explícita. Primeiro, pela
referência à possibilidade da existência de boas ordens policiais. Segundo, por
prever que o conflito ente as lógicas igualitária e policial promove uma
reconfiguração do sensível da ordem policial. Tais litígios não passam ao largo
das instituições, não as desconsideram como local de embate; na qualidade de
manifestações da democracia191, produzem inscrições de igualdade nas
instituições e atuam sobre as inscrições ali já existentes. Como expõe Rancière:
Não são, portanto, de forma alguma indiferentes à existência de assembléias eleitas, de garantias institucionais das liberdades de exercício da palavra e de sua manifestação, de dispositivos de controle do Estado. Elas encontram neles as condições de seu exercício e em troca os modificam. Mas não se identificam com eles.” 192
Ambos pensadores, tampouco, associam a importância do conflito à
indefinida guerra de todos contra todos. Apenas uma má compreensão sobre o que
significam a permanência da revolução, para Negri, e o dissenso que repousa
sobre uma contagem que nunca é exata, na concepção de Rancière, permitem tal
interpretação enviesada. Em verdade, ambos estão a afirmar que processos de
atualização do princípio da igualdade, perturbadores da ordem estabelecida, e,
portanto, revolucionários, não cessam de ocorrer independentemente da vontade
do poder constituído.
Afirmada a importância das instituições, resta evidente que o presente
estudo não se presta como um libelo contra o Supremo Tribunal Federal. Importa
em identificar os mecanismos que bloqueiam a emergência do poder constituinte
no âmbito desta instituição. Os arranjos institucionais convivem com esta
190“Não nos interessa a arqueologia do poder constituinte; interessa-nos uma hermenêutica que, além das palavras e através dela, saiba interpretar a vida, as alternativas, a crise e a recomposição, a construção e a criação de uma faculdade do gênero humano: a de construir instituições políticas.” Negri, Antonio. O poder constituinte, pp. 55-56. 191Segundo Rancière, as formas da democracia são manifestações da subjetivação não-identitária de atores políticos coletivos que removem as identificações em termos de partes do Estado ou da sociedade. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 103. Rancière aproxima-se, neste ponto, da perspectiva de Negri que refuta a associação entre sujeito do poder constituinte e identidade. 192Ibidem, pp. 103-104.
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oposição: são impregnados pelo poder constituinte que os origina, ao passo que,
não raro, são utilizados como instrumento de captura do próprio poder
constituinte. Impõe-se, portanto, descortinar o modo como o conflito é vivenciado
e operado nas instituições que devem lidar com demandas políticas que
desequilibram uma ordem supostamente harmoniosa. O conflito - este provocador
de paz e boas leis - pode encontrar uma instituição aberta à sua atuação, disposta a
ser modificada pelo embate entre lógicas policial e igualitária, mas, em sentido
oposto, também pode – e não é raro que ocorra – se deparar com instituições que
já desejam conduzir, por si, o processo constituinte, que se entendam como
decifradoras da “vontade constituinte”. Neste ambiente institucional em que não
há concórdia, onde reina apenas uma forma nada democrática de regulação, o
conflito é lido como ameaça e a virtude maior passa a ser evitá-lo, retirando dos
seus possíveis e improváveis atores a condição de singulares que se agenciam em
torno do bem comum.
Os discursos que procuram ocultar a política, que buscam enterrar o poder
constituinte num passado glorioso, mas longínquo, derivam deste horror ao
conflito, deste horror ao que ele nos faz ver pelas frestas da ordem consolidada:
que ela não é natural, que a distribuição das funções de governar e ser governado
não se extrai de poder transcendente algum, que ela é contingencial, é pura
imanência. É no rastro deste temor que se ingressa no segundo capítulo,
procurando melhor entender os aspectos de um arranjo institucional construído
para evitar e esconder o conflito, ocultar a política e reduzir à condição de mero
barulho, a palavra de seus verdadeiros atores.
O ideal de poder moderador apresenta-se, nesta perspectiva, como
engrenagem mestra do aparato institucional que busca reger os destinos de uma
democracia sem povo. Seu estudo é fundamental pela influência que exerceu nos
processos de restauração francesa e contra-revolução norte-americana, bem como,
pela marcante presença na cultura política brasileira.
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