O direito nas polticas pblicas A ser publicado em Eduardo Marques e Carlos Aurlio Pimenta de Faria (eds.) Poltica Pblica
como Campo Disciplinar, So Paulo, Ed. Unesp, no prelo.
Diogo R. Coutinho
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo (Departamento de Direito Econmico, Financeiro e Tributrio) e pesquisador do CEBRAP - Centro Brasileiro de Anlise e
Planejamento. E-mail: [email protected] Agradecimentos: Gostaria de agradecer a Ana Maria de Oliveira Nusdeo, Virglio Afonso da Silva, Jean-Paul Rocha, Fernando Herren Aguillar, Maria Paula Dallari Bucci, Paulo Mattos, Mario Schapiro, Carolina Stuchi, Vinicius Marques de Carvalho, Juliana Marques e Evorah Cardoso as ricas oportunidades de dilogo sobre direito e polticas pblicas, bem como as crticas e comentrios feitos a verses anteriores deste texto. Minha gratido, tambm, aos professores Eduardo Marques (FFLCH-USP) e Carlos Aurlio Pimenta (PUC-MG) pelo convite para participar deste volume, assim como do frum a multidisciplinaridade na anlise de polticas pblicas, que ocorreu no 7 Congresso da Associao Brasileira de Cincia Poltica (ABCP), em Recife, em agosto de 2010.
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I. Introduo
Quem no Brasil procura explorar as interaes que existem entre o direito e as
polticas pblicas no tarda a constatar que h inmeras dificuldades em faz-lo e que
essas dificuldades so de diferentes ordens conceituais, semnticas, metodolgicas,
tericas e prticas. Perguntas do tipo possvel pensar em uma teoria jurdica das
polticas pblicas?, como as relaes entre direito e polticas pblicas podem ser
observadas empiricamente? ou que critrios metodolgicos podem ser empregados
para descrever os papis desempenhados pelo direito nas polticas pblicas?, assim
como indagaes do tipo qual a acepo da palavra direito no contexto das
polticas pblicas? ou existe alguma distino relevante entre as expresses direito
das polticas pblicas e direito nas polticas pblicas?, traduzem, de antemo,
desafios nada triviais pesquisa nesse campo.
Sem a pretenso de responder a essas perguntas de forma definitiva ou de propor um
corpo acabado de princpios ou um mtodo capaz de dar explicaes ou de oferecer
prognsticos, este captulo procura desenhar, de forma ainda incipiente, categorias ou
ferramentas de anlise pelas quais o direito pode ter seus papis nas polticas pblicas
enxergados com algum ganho de clareza e nitidez. Por trs disso est a suposio de
que se de fato possvel observar e compreender os papis do direito nas polticas
pblicas, seria tambm possvel, em tese, aperfeio-las desde uma perspectiva
jurdica. A perspectiva adotada , por isso, funcional - no sentido especfico de que
busca estudar e questionar as funes desempenhadas pelo direito. Outro ponto de
partida a suposio de que se possvel desdobrar polticas pblicas em um
emaranhado de normas, processos e arranjos institucionais mediados pelo direito,
tambm possvel observar o direito nas polticas pblicas sem disseca-lo, isto ,
enxergando-o como um elemento intrnseco, como um componente central de tais
polticas.
A classificao segundo a qual o direito pode ser visto como objetivo, arranjo
institucional, vocalizador de demandas ou ferramenta de polticas pblicas ento
proposta, com a ressalva, feita ao final, de que sua utilidade ainda precisa ser testada
empiricamente, o que, por sua vez, suscita importantes desafios aos juristas
3
brasileiros, cuja formao tem negligenciado tanto a importncia da reflexo jurdica
sobre as polticas pblicas e, mais ainda, a construo de habilidades e mtodos de
investigao aplicada.
II. Uma provocao aos juristas brasileiros
Um sem-nmero procedimentos mediados por cdigos, leis, decretos, regulamentos,
portarias, circulares e outras espcies de normas diariamente movimentado no dia-a-
dia das polticas pblicas. Os juristas, por isso, so a todo o tempo solicitados a opinar
e decidir sobre problemas que surgem em suas diferentes fases, defend-las ou
question-las judicialmente, responder consultas e dirimir dvidas sobre as mais
diversos expedientes e providncias que as envolvem1.
Desde o ponto de vista acadmico, contudo, os juristas brasileiros estudam pouco as
polticas pblicas e o fazem com recursos metodolgicos escassos e frgeis. Pode-se
dizer, em outras palavras, que a disciplina do direito tem uma relao um tanto
ambgua com o campo transversal das polticas pblicas. Se, de um lado, quando
desempenham os papis de gestores, administradores ou procuradores, os juristas
interagem com elas intensamente (moldando-as e operando-as), de outro lado delas
mantm, como cientistas sociais, uma reveladora distncia.
Essa relao simultnea de proximidade (prtica) e distncia (acadmica) entre o
direito e o campo das polticas pblicas brasileiras seguramente tem muitas causas.
Algumas delas esto, acredito, relacionadas a certos traos do ensino jurdico que
temos, que embora venha se dedicado a formar magistrados, advogados, promotores,
procuradores, defensores polticos, autoridades pblicas e polticos h quase dois
sculos, no se props, especificamente, a formar profissionais do direito preparados
para estruturar, operar e aprimorar polticas pblicas e programas de ao
governamental2.
1 No podemos interpretar leis e atos regula trios sem entender as polticas que eles devem implementar e as teorias que levaram a essas polticas. Mas, de outro lado, no h meios de se dizer o que a poltica pblica sem estudar o direito. (...) Para entender a poltica precisamos estudar as regras jurdicas de perto (Trubek, 1971:9). 2 Uma disciplina de estudo das polticas pblicas no consta dos currculos das faculdade de direito brasileiras. O art. 4 da Resoluo CNE/CES (Conselho Nacional de Educao, Cmara de Educao Superior) n 9, de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduao em
4
Como j h tempos diagnosticado, os cursos de graduao e de ps-graduao em
direito no Brasil seguem presos a referenciais e abordagens de ensino descritas como
formalistas, estanques3 e enciclopdicas4, essencialmente baseadas em ensinamentos
doutrinrios5. A utilizao intensiva de manuais textos didticos nos mais das vezes
rasos e simplificadores prevalece sobre a discusso do estado da arte da pesquisa
nas salas de aula e isso, em ltima anlise, colabora para que o ensino jurdico termine
negligenciando a problematizao, o dilogo, o caso e a dvida como mtodos6. As
abordagens de pesquisa empricas e interdisciplinares7 so ainda escassas no campo
do direito no pas, que, auto-centrado, tende a desdobrar-se no estudo inmeros seus
direito, determina, no mximo, que [o] curso de graduao em Direito dever possibilitar a formao profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competncias: () IV - adequada atuao tcnico-jurdica, em diferentes instncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilizao de processos, atos e procedimentos. Essa diretriz a que mais se aproxima do campo das polticas pblicas, expresso que no chega, de resto, a ser empregada pela mencionada resoluo. 3 O ensino jurdico (...) continua distante tanto de um pensamento verdadeiramente terico quanto de uma utilidade profissional imediata. Sem servir nem teoria nem pratica, resvala na tentativa de casar um amontoado de regras o contedo do direito positivo com um sistema fossilizado de conceitos doutrinrios (Unger 2005, 18). 4 Pobre de contedo e pouco reflexivo, o ensino jurdico hoje se destaca por uma organizao curricular meramente geolgica. O que se espera dos professores dos primeiros anos (...) a oferta de informaes no problematizantes, um conhecimento claro e evidente, fora de tanta repetio, mas desatualizado e alienado com relao s condies reais do pas; um conhecimento receita-de-doce, que propicia aos professores dos anos seguintes lecionar sobre estratos sucessivamente mais tcnicos, mas nem por isso mais atualizados ou ensinados com rigor metodolgico (Faria, 2005). Mendes (2008: 20) distingue faculdades de direito inovadoras de tradicionais, associando a estas a caracterstica de ocuparem-se de uma formao generalista, com currculos amplos, por vezes inchados, e partirem da premissa que o aluno deve, ao longo de sua graduao, ter uma viso, ainda que superficial, de todas as reas do direito. 5 Muito simplificadamente, no campo do direito, doutrinadores so juristas que procuram organizar a prtica jurdica (a chamada doutrina) produzindo respostas tcnicas para certas questes que requerem, necessariamente, um deslinde, uma deciso seja ela legislativa, judicial, administrativa ou contratual. Doutrinadores procuram descrever e analisar a realidade, ensinam e dizem como deve ser feito (Ferraz 1995, 108), isto , enfrentam o imperativo de produzir respostas (as respostas certas) para problemas e controvrsias jurdicas. 6 San Tiago Dantas disse em 1955: [q]uem percorre os programas de ensino em nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbr, v que o objetivo atual do ensino jurdico proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemtico das instituies e normas jurdicas. Poderamos dizer o que curso jurdico , sem exagero, um curso de institutos jurdicos, apresentados sob a forma expositiva de tratado terico-prtico (San Tiago Dantas 1955, 452). Ver ainda, mais recentemente, sobre a crtica ao ensino jurdico no pais (Unger, 2001). 7 Marcos Nobre supe um atraso relativo da pesquisa em direito no Brasil. Esse atraso seria resultado do isolamento do direito em relao a outras disciplinas e de uma peculiar confuso entre pratica profissional e pesquisa acadmica (Nobre 2004, 4). Efetivamente, no Brasil so escassos os profissionais do direito exclusivamente dedicados docncia e pesquisa. A regra , entre os acadmicos, o exerccio simultneo de atividades prticas (como a advocacia ou a magistratura) e docentes. Como resultado dessa sobreposio, ficou prejudicada a atividade de pesquisa no campo do direito, nele includo o rico universo de suas relaes com as polticas pblicas.
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prprios ramos ou sub-reas, com prejuzos para o dilogo com as outras cincias
sociais.
Os estudantes de direito so, nesse contexto, inercialmente levados a crer que as
profisses jurdicas se resumem advocacia privada ou s carreiras pblicas no
mbito do poder Judicirio e do Ministrio Pblico8. O futuro jurista brasileiro no ,
em outras palavras, estimulado a envolver-se na concepo, gesto ou na pesquisa de
polticas pblicas, especialmente no mbito da administrao pblica, que , por
excelncia, o protagonista em sua operao (Daintith 1987, 8).
Alm disso, a discusso sobre os efeitos de leis e de polticas pblicas privilegia, entre
ns, enfoques e abordagens predominantemente estruturais (em oposio a
funcionais), que tendem a ser estticos, formais ou procedimentais. Exemplos disso
so controvrsias e disputas de interpretao envolvendo a observncia de regras de
competncia, a autonomia de rgos e entes pblicos, a legalidade dos atos praticados
por autoridades administrativas e as possibilidades e limites da reviso de decises de
poltica pblica pelo Judicirio9.
O debate pblico e as pesquisas acadmicas em torno de aspectos formais e
interpretativos so fundamentais para a formao dos juristas, no h dvida. Mas
dado que juristas brasileiros tm grande influncia no modo como polticas pblicas
so moldadas, ajustadas e implementadas (na qualidade de legisladores, juzes e
8 Evidentemente isso no os impede de descobrir, depois de formados, que podem ser gestores pblicos, carreira criada no Brasil em 1989, por meio da Lei Federal 7.834, de 6 de outubro de 1989 e regulamentada pelo Decreto 5.176, de 10 de agosto de 2004. Segundo o Documento de referncia para a Gesto da Carreira de EPPGG (Especialista em Polticas Pblicas e Gesto Governamental) publicado pelo Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto em dezembro de 2008, direito a segunda graduao mais freqente entre os gestores pblicos (18%), perdendo para os economistas (27%) e seguidos pelos administradores (12%), bacharis em relaes internacionais (10%) e cientistas sociais (9%). O mesmo documento menciona que os membros da carreira de Especialista em Polticas Pblicas e Gesto Governamental da Classe A devero ser capazes de, entre outras coisas, colocar em prtica a racionalidade tcnica e instrumental por meio de seus conhecimentos de administrao pblica, direito constitucional, direito administrativo e polticas sociais (Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto 2008, 22). 9 Nos pases de cultura latina, explica Enrique Saravia, a perspectiva jurdica mantm sua vigncia alicerada no legalismo prprio da conformao de seus sistemas sociais. Essa viso leva a uma considerao um tanto esttica do Estado e da administrao publica, que privilegia o estudo de estruturas e das normas que organizam a atividade estatal. O estudo circunscreve-se s questes de lege data ou de lege ferenda e deixa de lado as realidades vitais que permeiam as estruturas pblicas (Saravia 2007, 21).
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burocratas, respectivamente)10, preciso reconhecer que so igualmente importantes
as habilidades que lhes permitam conhec-las em suas peculiaridades setoriais e
meandros, beneficiando-se do aprendizado que o fato de faz-lo sistematicamente lhes
traria11. Em especial, refiro-me a conhecimentos que os permitam aos juristas, como
prticos ou como acadmicos, formular e propor solues e ajustes que contribuem
para executar ou mesmo aperfeioar tais polticas, mitigando suas disfunes e
aumentando sua efetividade12.
Particularmente negligenciado pelas faculdade de direito, nesse cenrio, o papel
coordenador e articulador desempenhado pelo direito pblico e pelos juristas na
modelagem institucional necessria implementao de polticas. A reflexo sobre o
uso do arcabouo do direito pblico para a definir papis e tarefas executivas (quem
faz o que?), atribuir competncias (decidir quem decide), conectar atores (quem
interage com quem e como?), coletar, solidificar e difundir experincias bem-
sucedidas praticamente ausente nas faculdade de direito, incluindo os cursos de ps-
graduao. Isso ocorre, possivelmente, porque os juristas ignoram os debates sobre
formas, funes13, alternativas, aprendizados e comparaes institucionais ou porque
os consideram parte de um campo disciplinar estranho14.
Empobrecida tem sido tambm a reflexo dos juristas a respeito da dimenso jurdica
do controle social e da participao nas polticas pblicas no Brasil. Se o direito
administrativo pode ser visto como mecanismo de disciplina, procedimentalizao e
de regulao da participao substantiva, bem como da mobilizao de atores mais ou
menos organizados na formulao, implementao e avaliao de polticas pblicas,
ento faz sentido que isso seja mais tematizado por juristas, acadmicos ou prticos. E 10 Cf. Epstein e King (2002, 7). 11 [A] observao de modelos concretos praticamente obrigatria para a anlise de polticas pblicas, cr Bucci (2008, 258). 12 O grau de efetividade reflete a intensidade em que as prticas e comportamentos sociais sofreram alteraes aps a promulgao de uma certa norma jurdica. J o nvel de eficcia volta-se para apurar se h relao de causalidade entre a adoo de novas prticas e comportamentos e as normas jurdicas que incidem sobre os agentes. Ver, sobre isso, Eberhard (1997). 13 Entre outros, sobre a discusso de forma, funo e qualidade de instituies no desenvolvimento, ver Chang (2006) e Rodrik e Subramanian (2003). 14 Como afirma Komesar, embora decises importantes e controversas sobre quem decide estejam enterradas em cada norma ou aspecto de poltica pblica, elas no raro seguem no analisadas, tratadas superficialmente, ou, no melhor dos casos, analisadas em termos das caractersticas de uma alternativa (Komesar 1994, 4). Roberto Mangabeira Unger critica especificamente o ensino jurdico brasileiro, que escorrega ao deixar de ensinar aos alunos que h um importante debate jurdico em torno da investigao das alternativas institucionais para o desenvolvimento (Unger 2005, 34).
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se igualmente verdadeiro que o direito, alm disso, estrutura e regula formas de
prestao de contas e transparncia (accountability) dessas polticas - uma vez que
pode obrigar quem as opera a justificar e motivar as decises relativas definio de
prioridades, seleo de meios, formulao de planos de execuo, alocao de
recursos e outras consideradas de interesse pblico, ento seria razovel supor que a
falta de conscincia desse papel profissional tende a aumentar o risco de que haja
maior opacidade, menor participao e menos intensa mobilizao de atores
relevantes sobretudo os grupos menos organizados em polticas pblicas.
III. Limitaes e anacronismo no direito administrativo brasileiro
O jurista Norberto Bobbio identificou os papis do direito nas mudanas estruturais
do capitalismo e das funes estatais ocorridas ao longo da segunda metade do sculo
XX. Essas mudanas, sobretudo no contexto da construo do Estado de Bem-Estar
europeu15, fizeram com que o direito (como ordenamento) e as normas jurdicas
passassem a estar intensidade associados realizao de objetivos pblicos concretos,
por meio do encorajamento, da induo e de recompensas de comportamentos
(Bobbio 2007, 15).
Aos olhos de Bobbio, o direito pblico passa a desenhar, operacionalizar e disciplinar
um conjunto amplo de aes para a implementao e monitoramento de polticas
pblicas16 e o fez por meio sanes positivas ou premiais, de cunho indutor, explica17.
15 Trata-se, como o descreveram alguns autores, de um processo de juridificao, isto , da expanso e da proliferao (em alguns casos, de uma verdadeira exploso) de normas destinadas a regulamentar a vida social e as burocracias no mbito do Welfare State. Esse processo reflete um importante processo de transformao do direito, que passa progressivamente a ser funcionalizado e instrumentalizado para alcanar objetivos de poltica pblica, com todos os problemas de legitimidade, eficcia e controle social que passam a afetar as ordens jurdicas, at ento tratadas pelos juristas como sistemas coerentes e ntegros. Ver, quanto idia de juridificao, Teubner, 1987. 16 Comentando passagem de Bobbio e de outros autores que tratam das funes do direito, Eros Grau diz que a: afirmao de que o direito funciona como um instrumento de implementao de polticas pblicas tem o condo de evidenciar a necessidade de o tomarmos como objeto da anlise funcional. Por meio dessa anlise funcional, segue Grau, pode-se considerar as finalidades efetivamente funcionalizadas pelo direito e no as finalidades que o direito deveria numa perspectiva axiolgica ou prescritva. Dito em outras palavras, no campo da produo jurdica os estudos de polticas pblicas podem ser tanto normativos (no sentido de prescritivos), quanto descritivos. Referindo-se a Antoine Jeammaud, Grau afirma tambm que uma anlise funcionalista do direito nas polticas pblicas pode no apenas identificar ou determinar as funes estuturadoras e reguladoras do direito, mas tambm tentar compreender como os mecanismos e as representaes jurdicas organizam e regulam as relaes empricas dos indivduos, grupos especficos e classes dentro de sociedades histricas (Grau 1996, 25 grifo no original).
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Normas baseadas no binmio permisso/proibio passam a conviver com incentivos
financeiros, procedimentais e com mecanismos de compensao. Alm do critrio de
observncia da norma, seu grau de utilizao (Eberhard 1997, 2) pelos destinatrios
passa a ser considerado uma varivel-chave na construo de uma tecnologia
jurdica de gesto de polticas pblicas no mbito de um Estado que tem obrigaes
(em alguns casos constitucionalmente previstas) positivas (isto , no apenas de
absteno) que por sua vez demandam aes promocionais e medidas prospectivas
permanentes e extraordinariamente dinmicas.
Especialmente a partir do anos 1970, uma inflexo liberalizante reduz
significativamente os papis do Estado, mitigando sua funo de implementador de
planos e programas de ao. Seu papel de condutor e planejador da economia
questionado pelo diagnstico ortodoxo de que est acometido por uma crise fiscal e
financeira, alm de colonizado por interesses privados, inchado por contrataes
polticas e entorpecido por ineficincias cujo custo em muito supera eventuais
benefcios. O direito do Estado de Bem-Estar, como tipo ideal, cede lugar a um tipo
de ordenamento jurdico cuja funo primordial , de forma estilizada, garantir
previsibilidade e segurana aos agentes econmicos, bem como definir claramente
direitos de propriedade e reduzir ao mximo custos de transao. Assim, o direito das
polticas pblicas, instrumento de ao articulada do Estado em nome de objetivos e
poltica pblica, passa a perder espao para um tipo de anlise que procura descrever
(e tambm prescrever) seu papel de fundamento de uma economia de mercado. O
direito e outras instituies relevantes para o desenvolvimento no so mais
identificados braos de implementao de programas polticos, econmicos e sociais
por meio de polticas pblicas de bem-estar e sim como um limite ou um escudo de
proteo do indivduo em relao ao Estado (Trubek 2008).
O aparato jurdico passa a ser descrito durante o perodo neoliberal, no mais como
estruturador de mercados de outra forma inexistentes, formulador de planos de ao e
implementador de polticas pblicas, mas sim como um corretor de falhas de mercado
e vetor de promoo de eficincia econmica. Com isso, o direito, tipicamente, passa 17 Para Bobbio as tcnicas de estmulo a comportamentos podem tanto desencorajar a fazer quanto encorajar a no fazer. Portanto, diz ele, podem ocorrer, de fato, quatro diferentes situaes: a) comandos reforados por prmios, b) comandos reforados por castigos, c) proibies reforadas por prmios e d) proibies reforadas por castigos (Bobbio 2007, 6).
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a ser menos caracterizado por metas substantivas certo objetivos macroeconmicos,
como o pleno emprego, ou sociais, como a redistribuio da renda, por exemplo - uma
vez que sua racionalidade vai se tornando progressivamente procedimental,
facilitadora e descentralizada (em oposio racionalidade substantiva,
centralizadora e finalstica do Welfare State). Como resultado, as tcnicas de
prescrio e induo de comportamentos voltados a objetivos de interesse social
passam a conviver a proliferao de normas que definem procedimentos, estruturam
competncias e asseguram as regas do jogo capitalista (Faria 1999, 195).
Como conseqncia das limitaes e instabilidades dos mercados, da necessidade de
sua regulao e re-regulao depois de liberalizados e privatizados, do acirramento da
competitividade entre pases no comrcio internacional, bem como em decorrncia da
crise financeira de 2008, o neoliberalismo e seu tipo ideal de direito esto em xeque e
alguns estudos discutem possveis indcios de que um novo tipo de
desenvolvimentismo pode estar sendo lentamente gestado em paises como o Brasil18 e
de que, nesse modelo, haveria novos papeis ou novas aplicaes para o direito19.
No Brasil20, entretanto, como aponta Maria Paula Dallari Bucci, o direito
administrativo segue marcadamente liberal: de cunho predominantemente negativo,
voltando-se conteno da discricionariedade do governo mais que coordenao
de sua ao 21. Herdeiro do direito administrativo francs sistematizado no incio do
sculo XX, ele tem revelado dificuldades e limitaes epistemolgicas para se adaptar
s metamorfoses do Estado e dos papis de seu arcabouo jurdico na construo de
polticas pblicas. E como sintetiza Faria, nosso direito administrativo segue
enfrentando dificuldades severas em conjugar poder discricionrio e certeza jurdica,
eficcia na gesto pblica e segurana do direito (Faria 1999, 179).
18 Ver, por exemplo, Arbix e Martin (2010) e Boschi (2010). 19 Ver, por exemplo, Trubek (2008). 20 Claro esse no um problema brasileiro, apenas. Severas restries de capacidade administrativa, capacitao da burocracia, coordenao de aes, assim como limites da ao distributiva e reduzidos nveis de gasto pblico (temas direta e indiretamente ligados s caractersticas jurdico-institucionais de cada pas) so caracterstica de muitas naes em desenvolvimento (ou subdesenvolvidas), cf., por exemplo, Lindert (2004). 21 Bucci (2002: 11).
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Em boa medida por conta disso, um subconjunto de problemas epistemolgicos e
prticos se delineia em torno do anacronismo de algumas categorias jurdicas do
direito administrativo brasileiro. Entre outras, as noes clssicas de servio pblico,
poder de polcia, autoridade, discricionariedade, poder normativo, regulamento,
concesses, outorgas e distintas formas de parcerias pblico-privadas tm sido
crescentemente descritas (e criticadas) como limitadas tanto em termos de capacidade
explicativa terica, quanto em termos operacionais, isto , como ferramentas para a
resoluo de problemas concretos22.
Um exemplo dessa exausto de certas categorias a noo estanque de ato
administrativo, que ainda ocupa lugar central no direito pblico brasileiro. Para os
juristas administrativistas as polticas pblicas so, em regra, formalmente traduzidas
como uma sucesso de atos administrativos e no como um continuum articulado e
dinmico, estruturado em torno de fins previamente articulados a meios (Bucci 2002,
18). Essa viso fragmentria impe limitaes severas compreenso de polticas
pblicas como planos de ao prospectivos que, para fazer serem efetivos e eficazes,
precisam de alguma dose de flexibilidade e revisibilidade (isto , serem dotados
mecanismos de auto-correo), j que esto em permanente processo de
implementao e avaliao23.
Mesmo assim, o Welfare State brasileiro, com muitas limitaes e vcios24, assumiu a
misso de adotar uma ampla gama de medidas jurdicas administrativas, incorrer em
significativos gastos, eleger prioridades com limitaes de informao, articular
programas, avaliar seus resultados e promover ajustes por intermdio de polticas
pblicas simultneas e inter-setoriais. Boa parte de seus objetivos foram reafirmados e
22 Ver, por exemplo, Sundfeld (2000), Aguillar (2006), Azevedo Marques (2005) e Binenbojn (2006). Nesses trs trabalhos esto claramente discutidas as limitaes de anlise, diagnstico e operao que certas categorias usuais do direito administrativo brasileiro ainda revelam. 23 Sobre a importncia das polticas pblicas conterem, em sua estrutura funcional, atributos de ajuste, adaptao e flexibilidade que permitam a realizao de experimentos e a incorporao de aprendizados, ver, entre outros, Sabel e Reddy (2003). 24 Sobre a idia de um Estado de Bem-Estar no Brasil, marcado pelo forte papel do governo no desenvolvimento da dinmica capitalista de industrializao tardia e na regulao das transformaes sociais como um modelo distinto do Estado de Bem-Estar Social europeu clssico, oriundo das revolues burguesas, ver Aureliano e Draibe (1989) e Draibe (1993).
11
constitucionalizados em 1988 e regulamentados sob a forma de leis, decretos e outras
espcies de normas jurdicas25.
Como resultado, o Estado e a burocracia brasileiros encontram-se de modo geral
carentes de categoriais jurdicas analticas, institutos jurdicos ou estudos
acadmicos e no acadmicos aplicados que possam enfrentar os desafios
tecnocrticos que se impem concepo, implementao e gesto de programas de
ao complexos, inter-setoriais e articulados. Exemplo disso, no campo do direito
administrativo, a dicotomia ato administrativo vinculado versus ato
administrativo discricionrio. Baseados nela, a maior parte dos futuros bacharis em
direito brasileiros ensinada, em seus cursos de graduao, que ou a lei (promulgada
pelo Legislativo) determina objetivamente administrao pblica o que fazer como
forma de cumpri-la (atos vinculados) ou, quando se tratar de atos discricionrios, o
agente pblico poder fazer juzos (subjetivos) de oportunidade e convenincia em
nome do interesse pblico26.
Embora seja importante reconhecer que polticas pblicas requerem um certo grau de
liberdade ou de margem de manobra e adaptao por parte dos agentes pblicos (por
exemplo, na escolha de meios alternativos e concorrentes para a realizao de
objetivos ou na opo por esta ou aquela soluo para dado problema identificado ao
longo da implementao da poltica), a doutrina jurdica brasileira, ao tratar da
discricionariedade, parece estar mais preocupada com a busca do que so,
intrinsecamente, atos vinculados ou discricionrios, ou com o delineamento de
critrios para disciplinar a liberdade de escolha do agente pblico e, por isso, menos
engajada em ajud-lo a tomar a melhor deciso dados os constrangimentos reais que a
realidade impe. Como resultado, o binmio ou pode/no pode prevalece, em suma,
25 Uma descrio das relaes entre direito, economia e Estado no Brasil a partir de 1988 (um momento maquiavlico na histria do Brasil) feita por Jos Eduardo Faria, que identifica, nesse contexto, dilemas, aporias e contradies severas que, no limite, pem em xeque a eficcia das polticas pblicas destinadas a implementar os novos direitos constitucionalmente adquiridos (Faria 1993). 26 Atos discricionrios seriam os que a Administrao pratica com certa margem de liberdade de avaliao de deciso segundo critrios de convenincia e oportunidades formulados por ela mesma, ainda que adstrita lei reguladora da expedio deles. Eles se distinguem dos atos administrativos vinculados, que seriam aqueles em que, por existir prvia e objetiva tipificao legal do nico possvel comportamento da Administrao em face de situao igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administrao, ao expedi-los, no interfere com apreciao subjetiva alguma (Bandeira de Mello 2001, 383).
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sobre a discusso sobre como se pode alcanar objetivos na administrao pblica.
E em grande medida isso tem relao com o fato de que gestores pblicos, juristas ou
no, temem que as razes prticas e funcionais que do para justifica esta ou aquela
medida sejam questionadas por rgos de controle, como os tribunais de contas27.
Seja porque os objetivos da poltica pblica raramente so especificados em mincia
pelo legislador, seja porque h caminhos alternativos e diferentes para alcan-los,
seja porque polticas pblicas esto a todo tempo em processo de adaptao, ajustes e
avaliaes, necessrio, enfim, que administradores e gestores pblicos possam
contar com um arcabouo jurdico minimamente flexvel, que permita
experimentaes, revises e a incorporao de aprendizados, alm de assegurar
prestao de contas e controle democrtico. Em sntese, alm de ser um escudo de
proteo do indivduo, pode-se imaginar o direito administrativo como uma espcie
tecnologia de implementao de polticas pblicas28.
No chega a ser surpreendente, enfim, que os juristas brasileiros tenham grandes
dificuldade em identificar, analisar, avaliar e aperfeioar de modo sistemtico os
arranjos e ferramentas jurdicas empregados em polticas pblicas29. Porque partem da
suposio de que elas no (a no ser se vistas fragmentariamente) so seu mtier,
terminam, no fim das contas, por se excluir e privar de debates centrais a respeito da
construo e aperfeioamento do aparelho do Estado e do Estado democrtico de
direito. Do ponto de vista da pesquisa acadmica, perdem a oportunidade de
desenvolver mtodos de anlise e abordagens de prprias, que possam compor, no
27 Uma discusso sobre o medo da discricionariedade em polticas pblicas (em particular, no campo da regulao das condies de trabalho) feita por Pires (2010), que contrape diferentes paradigmas de gesto pblica, apontando seus vcios e virtudes. Para uma discusso sobre a importncia do aprendizado institucional, da inovao, do experimentalismo (a idia de learning by doing) em polticas pblicas ver Sabel (2004 e 2005) e Sabel e Reddy (2003). 28 Para uma discusso sobre as mudanas paradigmticas que tem feito o direito administrativo norte-americano transformar sua arraigada tendncia regulatria (rgida, top down e baseada em mecanismos de comando-e-controle e sano punitiva) em uma forma de governana (governance) pela qual atividades e funes at ento consideradas exclusivamente pblicas passam a ser compartilhadas por atores pblicos e privados, ver Lobel (2004, 265). Para Lobel, nesse modelo de governana o produo do direito caminha em direo a instrumentos feitos sob medida, adaptados s circunstncias locais e dotados de mecanismos de auto-adaptao. A respeito de uma discusso de poltica pblica (no campo do financiamento da inovao no Brasil) na qual esse modelo de governana referido, ver Schapiro (2010). 29 Na provocao de Christian Courtis, a linguagem dos juristas e aquela daqueles que tm tido a tarefa de desenhar, implementar e avaliar polticas sociais tm estado, inexplicavelmente, divorciadas por tempo demasiado (Courtis 2007, 73).
13
estudo integrado das polticas pblicas, um repertrio consolidado de aprendizados
que possam, no limite, ser replicveis em outros contextos, setores, localidades ou
nveis federativos. Com isso perdem tambm os demais profissionais envolvidos na
gesto de polticas pblicas - cientistas polticos, economistas, socilogos,
administradores pblicos, gestores, entre outros, que se ressentem da falta de uma
interlocuo mais substantiva com quem forja, implementa, interpreta e aplica leis.
Em suma, a distncia dos juristas do estudo aplicado e da pesquisa em polticas
pblicas impede que eles desenvolvam um tipo de conhecimento prprio e que o
arcabouo jurdico possa ser, dentro de limites, adaptado e funcionalizado realizao
de objetivos identificados com metas de desenvolvimento30. Se no puder faze-lo (se
os atuais e futuros juristas no forem treinados para tanto, poder-se-ia dizer),
paradoxalmente, ficaro mitigadas a eficcia e a efetividade dos direitos assegurados
pela Constituio ou pelas leis em vigor. Afinal, razovel admitir que programas de
ao adequadamente concebidos, implementados e avaliados do ponto de vista
jurdico podem ser vistos como condio de efetividade dos direitos que procuram
realizar ou materializar.
VI. Normas programticas e a crescente judicializao da poltica
A Constituio Federal de 1988 progressista, generosa e transformativa. Apelidada
de constituio cidad por ter sido promulgada aps um perodo no qual o Estado
Democrtico de Direito foi suprimido no pas e por conter um respeitvel rol de
direitos e garantias contra o arbtrio, ela enuncia ainda um longo e detalhado captulo
de direitos econmicos e sociais. Alm disso, ela contm normas ditas
programticas isto , normas que prevem objetivos a serem alcanados por meio
de polticas pblicas (como a erradicao da pobreza e a reduo das desigualdades
regionais e sociais, constantes do art. 3) e comandos que explicitam valores a serem
perseguidos pelo legislador infra-constitucional, juzes e administradores pblicos.
Diante disso, as questes da eficcia, da efetividade e da vinculao dos direitos
30 Bucci refere-se figura do analista jurdico de polticas pblicas como profissional que opera uma caixa de ferramentas jurdicas. A ele caberia, entre outras tarefas, sistematizar as anlise, segundo determinadas categorias, que permitiro identificar repeties histricas, semelhanas e dessemelhanas nos arranjos observados, extraindo concluses a respeito dos processos decisrios e suas componentes jurdicas (Bucci 2008, 258).
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sociais e das normas programticas em relao a legisladores, juzes e autoridades
pblicas vm mobilizando os constitucionalistas brasileiros h algumas dcadas31.
Mas as abordagens de direito constitucional brasileiras, no almejam, a no ser
incidentalmente, enfrentar as polticas pblicas desde uma perspectiva interna, isto ,
preocupada com os processos de mediao jurdica que sua gesto demanda. Dito de
outra forma, embora os principais autores brasileiros reconheam sua importncia na
efetivao de direitos econmicos32, sociais e culturais, no tem sido objetivo de sua
agenda acadmica fazer estudos voltados compreenso e ao aperfeioamento de
engrenagens jurdicas dessas polticas pblicas como um captulo do tema da
efetividade dos direitos33.
Ao mesmo tempo em que avanava, no campo jurdico, o debate doutrinrio sobre as
normas programticas, seu status e eficcia, como resultado do aumento progressivo
da judicializao das relaes sociais e polticas34, desde a dcada de 1980 uma larga
gama de assuntos e conflitos passou a ser levada dos tribunais35, sendo a discusso
sobre a judicializao de polticas pblicas isto , sobre os limites da interveno
(ou da correo), pelo Judicirio, em polticas pblicas um dos assuntos que mais
31 Cf. Silva (1968). 32 Ver, por exemplo, Lopes (2006) e os trabalhos da coletnea organizada por Souza Neto e Sarmento (2010). 33 A discusso sobre estarem as polticas pblicas incrustadas no prprio texto da Constituio de 1988 foi tematizada pela cincia poltica. Para Couto e Arantes (2002, 2), a existncia de direitos econmicos, sociais e culturais faz com que a carta de 1988 tenha consagrado formalmente como norma constitucional diversos dispositivos que apresentam, na verdade, caractersticas de polticas governamentais com fortes implicaes para o modus operandi do sistema poltico brasileiro. Bucci (2008, 254), de outro lado, lembra que no se pode confundir polticas pblicas com direitos. As primeiras, que no devem ser reduzidas s disposies jurdicas com que se relacionam, a rigor no so direitos. 34 Sobre a judicializao da poltica ver, entre outros, Werneck Vianna et al. (1999) e Maciel e Koerner (2002). 35 No diagnstico de Jos Eduardo Faria, que aqui vale citar mais longamente, a judicializao da poltica um fenmeno complexo, que envolve diferentes atores. Um deles a incapacidade do Estado de controlar, disciplinar, regular, com os instrumentos normativos de um ordenamento jurdico resultante de um sistema romano idealista, rgido e sem vnculos com a realidade contempornea, mercados cada vez mais integrados, em escala planetria. Pressionado por fatores conjunturais, desafiado por contingncias que desafiam sua autoridade, condicionado por correlaes circunstanciais de foras, obrigado a exercer funes muitas vezes incongruentes entre si e levado a tomar decises em contradio com os interesses sociais vertidos em normas constitucionais, o Estado tende a legislar desenfreadamente com o objetivo de coordenar, limitar e induzir o comportamento dos agentes produtivos. (...) Como a ordem jurdica assim produzida no oferece aos operadores do direito as condies para que possam extrair de suas normas critrio constantes e precisos de interpretao, ela exige um trabalho interpretativo contnuo. E como seu sentido definitivo s pode ser estabelecido quando de sua aplicao num caso concreto, na pratica os juzes so obrigados a assumir um poder legislativo. (Faria 2003,12-15).
15
ateno dos juristas vem recebendo.
No caso brasileiro, esse debate tem como principal parmetro jurdico a norma
contida no art. 5, inciso XXXV da Constituio de 1988: a lei no excluir da
apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito. Essa norma impede o
Judicirio de recusar a anlise de qualquer poltica pblica ou de qualquer ato
administrativo por ela editado - que lese ou ameace lesar direitos. Em termos prticos,
significa que nenhuma poltica pblica est imune ao seu questionamento e reviso
judiciais. Isso est longe de significar, porm, que se trata de uma questo trivial: as
formas como os juzes podem enfrentar polticas pblicas que chegam ao seu crivo
por meio de aes individuais e coletivas so muito diferentes.
H magistrados tipicamente ativistas, isto , que consideram parte de seus papis
institucionais a possibilidade de alterar, remodelar, interromper ou mesmo criar uma
poltica pblica. Esses juzes tendem a decidir de modo voluntarista e, explcita ou
implicitamente, atribuir ao Judicirio a responsabilidade ativa de pr em curso
polticas pblicas em relao s quais o governo se revele eventualmente omisso,
alm de corrigir os rumos de programas que, em sua da implementao, supostamente
fogem ao objetivo da lei ou da constituio.
H, de outro lado, juzes que contm a si mesmos, entendendo que a anlise judicial
de polticas pblicas deve ater-se, no mximo, ao controle formal (e no substantivo)
dos atos praticados pelos gestores no Executivo. Nesse segundo caso, ao invs de
rever o mrito da poltica pblica, o juiz atribui a si o papel de assegurar que os
procedimentos que direta ou indiretamente a regulam sejam respeitados - por
exemplo, que um certo nmero de interessados seja ouvido, que prazos e cronogramas
nela previstos sejam cumpridos, que os recursos financeiros com que conta sejam
gastos corretamente e que os atos administrativos que a pem em curso sejam
devidamente motivados e praticados por quem tem competncia para tanto.
No Brasil, o Judicirio vem exercendo um papel cada vez mais ativo - ou ativista - na
implementao de certos direitos sociais e normas progrmaticas36 por meio da
36 Esta parte reproduz os argumentos de Coutinho e Ferraz (2008).
16
reviso de polticas pblicas em aes de diferentes tipos. Os juzes o fazem
ordenando ao Estado, por exemplo, o fornecimento de medicamentos e procedimentos
mdicos no disponveis no SUS, a garantia de acesso a vagas em escolas e creches
superlotadas, a remoo de moradores em reas urbanas e rurais, a incluso de
pessoas que tm deficincias, a determinao de que obras sejam realizadas, o
reajuste de preos e tarifas, o gasto ou conteno oramentria, entre muitos outros
exemplos de decises que, direta ou indiretamente, afetam polticas pblicas
implementadas nos nveis federal, estadual e municipal.
Se o que est em jogo so direitos constitucionais, dizem os defensores do ativismo
judicial, funo do Judicirio interferir para garantir o seu cumprimento sempre que
o Executivo e o Legislativo deixarem de cumprir suas obrigaes, isto , quando eles
se abstiverem ou se omitirem. Para os defensores do protagonismo dos juzes nas
polticas pblicas, uma atitude passiva dos tribunais poderia equivaler, enfim, a uma
verdadeira abdicao de sua principal misso constitucional.
J os crticos do ativismo judicial os que defendem uma postura mais contida dos
juzes em polticas pblicas - ressaltam o fato de que o Judicirio tem caractersticas
estruturais e institucionais que restringem significativamente sua capacidade de
promover mudanas sociais abrangentes e de corrigir adequadamente o rumo de
polticas pblicas desde uma tica substantiva ou distributiva37. Polticas pblicas
requerem medidas legislativas e complexas aes administrativas que dependem, em
ltima instncia, da combinao de aes polticas e expertise tcnica para as quais o
Judicirio no capacitado, vocacionado ou legitimado. Alm disso, medidas como
essas dependem diretamente da arrecadao e alocao de volumes de recursos
significativos e de decises alocativas baseadas numa viso alargada do universo das
polticas pblicas, que o Judicirio no possui.
Por isso, o papel de juzes e tribunais ativos e bem-intencionados no campo dos
direitos sociais ficaria, na melhor das hipteses, restrito a medidas bem-intencionadas
e pontuais, nas margens do sistema, como a concesso de um medicamento ou
tratamento no exterior aqui, uma vaga em creche ali, etc. E essas medidas pontuais 37 Como exemplo disso, ver, quanto judicializao de polticas pblicas na rea da sade no Brasil Silva (2008).
17
poderiam, em ltima anlise, minar a racionalidade de polticas pblicas que, no
fosse a interferncia judicial, poderiam funcionar melhor.
Os crticos do ativismo judicial alertam para o risco de que a interferncia dos juzes
nas polticas pblicas sociais no a mera inocuidade. H a possibilidade real do
Judicirio modificar, para pior, programas que, embora imperfeitos, foram concebidos
e implementados por especialistas. Pior que isso, como as demandas que chegam ao
Judicirio so na sua grande maioria individuais, argumentam que o ativismo judicial
pode causar um efeito ainda mais perverso: sem conseguir medir ou antecipar os
impactos distributivos de suas decises, juzes voluntaristas podem estar privilegiando
aqueles que, por terem recursos para pagar um advogado, furam a fila das polticas
pblicas geridas pelo Executivo38.
No minha inteno aprofundar aqui o debate sobre a judicializao das polticas
pblicas. A despeito de sua importncia evidente, ele no abrange aspectos que
gostaria de discutir neste trabalho e tem, como mencionado, sido objeto de cada vez
mais ateno dos juristas. Alm disso, ele no se centra na dimenso jurdica interna
das polticas pblicas e sim nas distintas opinies sobre os papis institucionais dos
juzes e tribunais quando levados a analis-las e sobre elas decidir, por exemplo, sobre
se so constitucionais ou no.
Por isso, opto por abordar o que seriam os possveis papis do direito na concepo,
implementao e gesto de polticas pblicas desde o ponto de vista da administrao
pblica (direta e indireta), partindo da premissa de que, ao compreender melhor tais
papis, os juristas possam colaborar para que tais polticas sejam aperfeioadas e, com
isso, capazes de tornar mais efetivos e eficazes direitos.
V. Fins, arranjos, meios e participao
Como j afirmado, o campo do direito, observado em sua interao com as polticas
pblicas, abrange uma extensa gama de normas e processos. So leis em sentido
formal (isto , promulgadas pelo Legislativo) e em sentido material (atos normativos
38 Nesse sentido, Silva e Terrazas (2011).
18
regulamentares produzidos pelo Executivo, como decretos, regulamentos, portarias,
circulares, instrues normativas, instrues operacionais, entre outros). Por conta
disso, seja de forma instrumental, como medium, seja para definir os pontos de
chegada ou objetivos das polticas e situ-las no ordenamento, seja para prover
arranjos institucionais ou para construir canais de accountability e participao, o
direito permeia intensamente as polticas pblicas em todas as suas fases ou ciclos: na
identificao do problema (que pode ser ele prprio um gargalo jurdico), na definio
da agenda para enfrent-lo, na concepo de propostas, na implementao das aes e
na anlise e avaliao dos programas39.
Entretanto, do ponto de vista de uma agenda relevante (a despeito de incipiente) de
pesquisas no Brasil, to ou mais importante que traduzir polticas pblicas para a
linguagem tcnica ou para o jargo do direito compreender os diferentes modos
pelos quais ele nelas se manifesta, identificando e compreendendo seus papis. Dito
de forma sinttica, to importante quanto dizer o que o direito compreender o que
ele faz, o que requer uma abordagem ou mtodo de investigao40 minimamente
adaptados complexidade dessa empreitada emprica.
Confrontado com o intrincado desafio de observar e descrever as polticas pblicas
desde um ponto de vista jurdico, proponho e descrevo, a seguir, alguns papis e
tarefas para o direito e seus operadores em polticas pblicas. Esses papis consistem
em apontar fins e situar as polticas no ordenamento (direito como objetivo), criar
condies de participao (direito como vocalizador de demandas), oferecer meios
(direito como ferramenta) e estruturar arranjos complexos que tornem eficazes essas
polticas (direito como arranjo institucional).
V.1 Direito como objetivo
39 As fases das polticas pblicas aqui mencionadas so as apresentadas por Theodoulou (1995, 86). 40 Maria Paula Dallari Bucci cr que preciso que haja uma metodologia jurdica para analisar o conjunto de tarefas jurdicas nas polticas pblicas. A essa metolodogia caberia descrever, compreender e analisar as polticas pblicas, de modo a conceber as formas e processos jurdicos correspondentes" (Bucci 2006, 47). Bucci desenvolveu, em seguida, a idia: [o] desafio reside em estabelecer uma metodologia apropriada para o trabalho jurdico, que permita descrever e compreender, segundo as categorias do Direito, uma ao governamental determinada e analisar juridicamente o seu processo de formao e implementao (Bucci 2008, 228).
19
Os fins das polticas pblicas podem ser enxergados desde pelo menos dois ngulos.
O primeiro ngulo os toma como dados, isto , como produtos de escolhas polticas
em relao s quais o direito ou o jurista tm pouca ou nenhuma ingerncia. Os
objetivos e metas das polticas pblicas seriam, portanto, definidos extra-
juridicamente, no campo da poltica, cabendo ao arcabouo jurdico a funo
eminentemente instrumental de realiz-los. Outro ponto de vista enxerga o direito
como, ele prprio, uma fonte definidora dos prprios objetivos aos quais serve como
meio (Daintith 1987, 22)41. Essas duas descries no precisam ser vistas como
antagnicas ou excludentes, pois o direito em relao s polticas pblicas pode ser
visto tanto como seu elemento constitutivo, quanto como com instrumento, a
depender do ponto de vista e do critrio de anlise escolhido.
Assim, enxergar o direito como objetivo de polticas pblicas sugere, em primeiro
lugar, que se reconhea que o arcabouo jurdico tenha a caracterstica de formalizar
metas e indicar os pontos de chegada das polticas pblicas. O direito, nesse
sentido, pode ser entendido como uma diretriz normativa (prescritiva) que delimita,
ainda que de forma geral e sem determinao prvia de meios, o que deve ser
perseguido em termos de ao governamental. Ele , nessa acepo, uma bssola cujo
norte so os objetivos dados politicamente, de acordo com os limites de uma ordem
jurdica42. Exemplos disso seriam, no caso brasileiro, as normas contidas na
Constituio de 1988 que determinam que o pobreza e a marginalizao devem ser
erradicadas, as desigualdades sociais e regionais reduzidas (art. 3, III), a autonomia
tecnolgica incentivada (art. 219) e o meio ambiente preservado (art. 225).
Ao formalizar uma deciso poltica e/ou tcnica sob a forma de um programa de ao
governamental, o direito agrega-lhe traos cogentes (isto , vinculantes, no
facultativos), distinguindo-a de uma mera inteno, recomendao ou proposta de
ao cuja adoo seja facultativa. Dito de outra forma, o direito d poltica pblica
seu carter oficial, revestindo-a de formalidade e cristalizando objetivos que traduzem
embates de interesses por meio de uma solenidade que lhe prpria. E ao serem 41 Uma descrio semelhante feita por Reich que afirma que o direito ps-liberal tem uma dupla instrumentalidade: ele organiza e faz fluir processos econmicos, mas tambm promove a transformao desses mesmos processos tendo em vista fins de poltica pblica (Reich 1985). 42 [A] deciso [poltica], expressada em geral por meio de uma formulao jurdica, representa a cristalizao de um momento no estado da relao de foras entre os distintos atores que intervm no processo de definio das regras do jogo da regulao estatal (Roth 2007, 19).
20
juridicamente moldadas, as polticas pblicas passam, a priori e/ou a posteriori pelos
crivos de constitucionalidade e de legalidade, que as situam como vlidas ou no em
relao ao conjunto normativo mais amplo.
V.2. Direito como arranjo institucional
Neil Komesar alerta que a nfase na dimenso finalstica importante, mas
insuficiente para compreender o papel do direito nas polticas pblicas. Dito de outra
forma, haveria, segundo ele, uma lacuna no raciocnio segundo o qual dado resultado
de poltica pblica se origina, automaticamente, da definio de certo objetivo social.
Isso porque a escolha de objetivos e o que define como escolha institucional so,
ambas, essenciais para o direito das polticas pblicas e esto intrinsecamente
relacionadas (Komesar 1994, 5)43.
Entender o direito como parte da dimenso institucional de polticas pblicas supor
que normas jurdicas estruturam seu funcionamento, regulam seus procedimentos e se
encarregam de viabilizar a articulao entre atores direta e indiretamente ligados a tais
polticas. Atributos do desenho institucional de polticas pblicas - como seu grau de
descentralizao, autonomia e coordenao inter-setorial e os tipos de relaes
pblicas e pblico-privadas que suscitam, bem como sua integrao com outros
programas44 - de alguma forma dependem, em sntese, da consistncia do arcabouo
jurdico que as vertebra. O direito visto como componente de um arranjo
institucional, ao partilhar responsabilidades, pode, por exemplo, colaborar para evitar
sobreposies45, lacunas46 ou rivalidades e disputas47 em polticas pblicas. Nesse
43 Para Komesar, cujo cenrio o direito norte-americano, a escolha institucional quem conecta objetivos a seus resultados jurdicos e de poltica pblica. Para ele, se verdade que instituies somente podem ser avaliadas tendo como referncia um certo objetivo ou conjunto de objetivos sociais, tambm verdade, de outro lado, que como dado objetivo pode ser consistente com diferentes polticas pblicas, a deciso sobre quem decide determina como um objetivo molda a poltica pblica (Komesar 1994, 5). 44 Descentralizao, intersetorialidade, conjugao de esforos, integrao e o aproveitamento de sinergias so atributos descritos como desafios contemporneos de polticas pblicas sociais no Brasil por Draibe (1997). Ver tambm, no caso das polticas sociais brasileiras, Arretche (2004). 45 Casos em que, desnecessariamente, mais de um ator, ente ou rgo pblico desempenha uma funo que apenas um deles poderia ou deveria realizar adequadamente. 46 Situaes em que nenhum agente ou rgo pblico desempenha uma tarefa ou ao de poltica pblica necessria. 47 Casos em que, em face da inexistncia da poltica pblica, dois ou mais atores, rgos ou entes pblicos disputam competncia formal e expertise tcnica para implement-la.
21
sentido, o direito pode ser visto uma espcie de mapa de responsabilidades e tarefas
nas polticas pblicas48.
V.3. Direito como ferramenta
Praticamente falando, cabe aos juristas envolvido na gesto de polticas pblicas
realizar os fins almejados por meio de decises cotidianas, no nvel executivo.
Descrever o direito como ferramenta de polticas pblicas como categoria de anlise
serve para enfatizar que a seleo e a formatao dos meios a serem empregados para
perseguir os objetivos pr-definidos um trabalho jurdicos. O estudo das diferentes
possibilidades de modelagem jurdica de polticas pblicas, a escolha dos
instrumentos de direito administrativo mais adequados (dados os fins a serem
perseguidos), o desenho de mecanismos de induo ou recompensa para certos
comportamentos, o desenho de sanes, a seleo do tipo de norma a ser utilizada
(mais ou menos flexvel, mais ou menos estvel, mais ou menos genrica) so
exemplos de tpicos que surgem quando o direito instrumentalizado para pr dada
estratgia de ao em marcha. Desde este ponto de vista, o direito poderia ser
metaforicamente descrito como uma caixa de ferramentas, que executa tarefas-meio
conectadas a certos fins de forma mais ou menos eficaz, sendo o grau de eficcia, em
parte, dependente da adequao do meio escolhido.
Tambm tm relao com a perspectiva do direito como ferramenta a intensidade com
que os atributos de flexibilidade (a possibilidade do arcabouo jurdico que estrutura a
poltica pblica servir a mais de uma finalidade) e revisibilidade (a caracterstica de a
poltica pblica conter em sua prprio corpo jurdico mecanismos de ajuste e
adaptao) estejam presentes, assim como a existncia de certa manobra para
experimentao e sedimentao de aprendizados, dados certos limites que a prpria
exigncia de estabilidade e segurana jurdica impem. Em outras palavras, pode-se
dizer que o direito no apenas pode ser entendido como conjunto de meios pelos quais
os objetivos ltimos das polticas pblicas so alcanados, mas tambm como regras
internas que permitem a calibragem e a auto-correo operacional dessas mesmas
polticas. 48 Para Bucci (2008, 250), polticas pblicas so, elas prprias, arranjos institucionais complexos, expressos em estratgias ou programas de ao governamental, que resultam de processos juridicamente regulados, visando adequar fins e meios.
22
V.4. Direito como vocalizador de demandas
Descrever o direito como vocalizador de demandas em polticas pblicas significa
supor que decises em polticas pblicas devam ser tomadas no apenas do modo
mais bem fundamentado possvel, por meio de uma argumentao coerente e
documentada em meio aberto ao escrutnio do pblico, mas tambm de forma a
assegurar a participao de todos os interessados na conformao, implementao ou
avaliao da poltica. Para isso, o direito pode prover (ou desprover) as polticas de
mecanismos de deliberao, participao, consulta, colaborao e deciso conjunta
assegurando, com isso, que elas sejam permeveis participao e no insuladas em
anis burocrticos.
O direito, nas polticas pblicas, ento, pode ser visto, assim, como tendo a funo
no trivial de assegurar que elas no escapem aos mecanismos de participao e
accountability. Isto : normas jurdicas podem levar polticas pblicas a serem mais
democrticas uma vez que, por meio de regras procedimentais que disciplinem
consultas e audincias pblicas e a publicidade dos atos administrativos, as obriguem
a estar abertas aos inputs de uma pluralidade de atores49. O arcabouo jurdico pode,
adicionalmente, ser mais ou menos capaz de estimular a mobilizao de atores que, de
outra forma, no se engajariam no acompanhamento e na avaliao de programas de
ao pblicos. Assim visto, o direito seria comparvel a uma espcie de correia de
transmisso pela qual agendas, idias e propostas gestadas na esfera pblica circulam
e disputam espao nos crculos tecnocrticos.
49 Ver, quanto ao debate sobre direito, democracia, legitimidade e accountability da poltica pblica de telecomunicaes no incio dos anos 2000 no Brasil a investigao de Mattos (2006).
23
A tabela abaixo sintetiza os papis do direito acima descritos:
Direito como objetivo
Direito como
arranjo institucional
Direito como ferramenta
Direito como vocalizador de
demandas
Idia-chave
Direito positivo cristaliza opes polticas e as formaliza como normas cogentes, determinando o que deve ser
Direito define tarefas, divide competncias, articula e coordena relaes inter-setoriais no setor pblico e entre este e o setor privado
Como caixa de ferramentas, direito oferece distintos instrumentos e veculos para implementao dos fins da poltica
Direito assegura participao, accountability e mobilizao
Perguntas-chave
Quais os objetivos a serem perseguidos por polticas pblicas? Que ordem de prioridades h entre eles?
Quem faz o que? Com que competncias? Como articular a poltica pblica em questo com outras em curso?
Quais so os meios jurdicos adequados, considerando os objetivos?
Quem so os atores potencialmente interessados? Como assegurar-lhes voz e garantir o controle social da poltica pblica?
Dimenso Substantiva Estruturante Instrumental Participativa
VI. A importncia da observao emprica
Como j afirmado, os papis acima descritos no constituem um mtodo acabado de
anlise, tampouco uma teoria das relaes do direito com as polticas pblicas. No
somente porque so categorias de anlise embrionrias que podem, no limite, se
sobrepor50, mas tambm porque um verdadeiro mtodo voltado a essa finalidade no
pode deixar de lado a incontornvel dimenso emprica das polticas pblicas. Um
estudo por dentro dos papis do direito no pode nem deve, por isso, esgotar-se em
formulaes genricas ou mesmo em ferramentas de anlise abstratas sob pena de
incorrer nos mesmos problemas e limitaes prticas apontados no incio deste texto.
50 possvel, por exemplo, questionar tal classificao apontando o fato de que a tarefa de vocalizar demandas produto de um arranjo institucional ou que arranjos institucionais so instrumentos ou ferramentas juridicamente construdas. Desde logo reconheo a pertinncias dessas observaes, mas ainda assim creio que os papeis do direito aqui descritos so potencialmente capazes de agregar maior objetividade e clareza nos estudos sobre o direito nas polticas pblicas.
24
Por isso, cada poltica pblica - social, econmica, regulatria, descentralizada ou no
em termos federativos - deve ser compreendida em sua especificidade, de modo que
sua estruturao e modelagem jurdicas sejam concebidas e estudadas em funo de
seus traos prprios, no como aplicao de modelos pretensamente gerais ou
universais. Dito de outra forma, so as peculiaridades o setor a que se refere, sua
configurao administrativa e institucional, os atores, seu histrico na administrao
pblica, entre outras variveis - que permitem a discusso sobre o direito das polticas
pblicas, no uma teoria jurdica auto-centrada e distanciada da realidade.
Assim, para estudar e aperfeioar as polticas pblicas, ser preciso que o jurista suje
as mos51, isto , debruce-se sobre elas e enfronhe-se em seus meandros e mincias,
observando-as, descrevendo-as e compreendendo-as. Tal esforo requerer do ensino
do direito e dos juristas, sem dvida, a construo de abordagens e ferramentas de
pesquisa emprica mais robustas, tal como vm h muito desenvolvendo os
socilogos, cientistas polticos, antroplogos, economistas e administradores pblicos
(Epstein e King, 2002). Ser necessrio, enfim, que os juristas brasileiros aprendam a
estruturar estudos de casos, surveys, entrevistas, abordagens quantitativas e
qualitativas com lastro e consistncia metodolgica. Ser preciso tambm que
aprendam a lidar com argumentos envolvendo causalidades, lastrear inferncias52,
bem como distinguir argumentos normativos (prescritivos) de anlises descritivas,
que no almejam construir uma interpretao vlida das normas em questo e sim
observar e descrever polticas pblicas para nelas encontrar gargalos e solues.
VII. Concluses
Para usar uma expresso ilustrativa de Maria Paula Dallari Bucci, neste trabalho
procurei meios para poder observar, desde a tica do direito, as polticas pblicas por
51 Essa expressiva metfora de Fernando Herren Aguilar. 52 Ver, sobre a idia de inferncias defensveis quanto ao papel do direito em polticas de desenvolvimento, Ohnesorge (2007, 226). O autor afirma que uma boa forma de produzir uma contribuio terica para o debate de direito e desenvolvimento , indutivamente, estudar exemplos histricos recentes de sucessos e fracassos econmico, deles extraindo inferncias defensveis lastreadas no que pode ser observado do funcionamento do direito nesses episdios. Tal abordagem se oporia construo de modelo baseado em hipteses abstratas voltadas para explicar teoricamente o processo de desenvolvimento ou a construo das polticas a ele associadas.
25
dentro - isto , como arranjos complexos que requerem uma gesto jurdica
estruturante e tambm cotidiana (uma vez que o direito no apenas elemento
constitutivo das polticas pblicas, mas tambm componente-chave na sua
implementao). Para isso, procurei descrever alguns desafios que se apresentam aos
juristas, prticos e acadmicos que se queiram debruar sobre o campo das relaes
entre direito e polticas pblicas no caso brasileiro. Certos papis do direito em
polticas pblicas, vistas desde uma perspectiva jurdica interna, foram apresentados
e, por fim, a dimenso emprica das polticas pblicas vistas desde a tica do direito
foi enfatizada. Nenhuma aplicao desses tipos foi aqui feita, contudo53. Por isso,
parece-me que no h como escapar da concluso de que as polticas pblicas so,
efetivamente, um campo aberto para os juristas brasileiros, que para desbrav-lo tero
de utilizar novos referenciais de anlise, dando continuidade ao desafio de construir
um referencial metodolgico cuja lacuna se faz sentir. Um verdadeiro filo, uma
mirade de temas e programas a serem potencialmente explorados se desvela a partir
das hipteses de que elas, as polticas pblicas, podem ser juridicamente
compreendidas, melhoradas e, sendo o caso, eventualmente replicadas em outros
contextos . Resta agora explorar esse campo frtil: que venham as pesquisas, suas
lies aplicaes. Com elas, as polticas pblicas s tm a ganhar, assim como os
juristas de hoje e futuros juristas.
VIII. Bibliografia
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53 Para uma aplicao experimental no caso do Programa Bolsa Famlia, ver Coutinho (2010). Para uma aplicao no campo das polticas de habitao na Regio Metropolitana de So Paulo, ver Coutinho et. al. (2010).
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