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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Edinéia Pereira da Silva Betta
A institucionalização da indumentária gaúcha: imagens que (re)vestem o tradicionalista gaúcho (1947 - 1989)
DOUTORADO EM HISTÓRIA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em História, sob a orientação da Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga.
São Paulo
2018
1
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura______________________________________ Data:________________ E-mail ___________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Angela Sikorski Santos – CRB 14-836
391.0098165 B565i
Betta, Edinéia Pereira da Silva
A institucionalização da indumentária gaúcha: imagens que (re)vestem o tradicionalista gaúcho (1947-1989) / Edinéia Pereira da Silva Betta – São Paulo, 2018.
217 f. : il. Orientadora: Estefânia Canguçu Fraga Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
1. Gaúcho. 2. Indumentária gaúcha. 3. Movimento tradicionalista
gaúcho I. Fraga, Estefânia Canguçu. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.
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Banca Examinadora
__________________________________________________
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Àquele que permite que minhas realizações
sejam até maiores que os meu sonhos...
...Deus!
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Bolsista parcial CAPES
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AGRADECIMENTOS
À Estefânia Knotz Canguçú Fraga, a mais paciente e centrada das professoras!
Confederação Internacional da Tradição Gaúcha
Em especial à Loiva Lopes Calderan, secretária (2012/2014), por reunir e
disponibilizar os documentos oficiais da instituição.
Sociedad Criolla Dr. Elias Regules
Todo o meu agradecimento à Cecília Assunção, filha do maior pesquisador de
Pilchas Criollas do Uruguai - Fernando Assunção (in memoriam), pela receptividade,
orientação e disponibilização dos preciosos materiais.
Museo del Gaucho
À Alicia Brassesco pelas valiosas orientações sobre o maior acervo do gaúcho
uruguaio.
Confederacion Gaucha Argentina
Ao presidente Adolfo Caballero, pelas informações.
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha
Ao presidente Sr. João Ermelino de Mello, por permitir o acesso aos filiados. E ao
Sr. Jabob Momm Filho (in memoriam), um dos grandes incentivadores e primeiro
presidente da instituição, que com saúde debilitada me presenteou com longas
conversas e disponibilizou inéditos documentos.
Movimento Tradicionalista Gaúcho
Aos MTGs de todo o Brasil, que estiveram disponíveis para os inúmeros
questionamentos. À Sra. Vera Rejane Freitas Fernandes, responsável pela
biblioteca do MTG/RS, por localizar e enviar a mais rica das atas desta pesquisa.
À UNIFEBE, minha instituição!
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Mulher Pampeana
[...] Nestes serões solitários
Entre agulhas de costura E velhos livros que li
Fui alinhando as ideias Alinhavando verdades
Até que um dia entendi
Sou a história repetida Eu já vivi outras vidas
Eu já fui outras mulheres Antes de ser a que sou
[...] Fui das páginas da historia
Aos sonhos de faz de conta Na guerra, fui Cabo Toco
Uma mulher que peleou
Fui Anita e Ana Terra [...]
Quem percorrer a querência Pelos caminhos da historia
Decerto me encontrará [...]
Eu já dancei a tirana Já bailei nas amadas
Já fui prenda cortejada Nos fandangos de galpão
[...] Eu, já vivi tantas vidas
Eu já fui tantas mulheres E outras que por certo serei
[...] Muda o tempo, muda a gente...
[...] Mas no fundo sou a mesma
(Odilon Ramos, s/d)
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RESUMO
Esta investigação tece reflexões acerca do Movimento Tradicionalista Gaúcho e
analisa o repertório imagético selecionado na composição da indumentária gaúcha
institucionalizada. O vestuário constituiu-se como elemento central do conjunto de
referências selecionadas pelo movimento a partir de 1947, a partir dele as pessoas
se apropriam da identidade constituída, criam personas e se afirmam como gaúcho.
Em razão da intensa utilização de referências históricas nas práticas do movimento,
o imaginário se fortalece e resulta na conexão do presente com o passado, criando
sentidos, evocando-o como o diferente e evidenciando o “eu” e o outro”. Desse
modo, a pesquisa tem como objetivo verificar as fontes textuais e imagéticas
utilizadas na obra Indumentária Gaúcha de Antonio Augusto Fagundes, identificando
e analisando as referências históricas e aspectos da moda que reverberam na
composição proposta pelo autor e aprovada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho
a partir da segunda metade do século XX.
Palavras-chave: Gaúcho, Indumentária gaúcha, Movimento tradicionalista.
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ABSTRACT
This research set reflections about the Gaucho Traditionalist Movement and
analyses the selected imagery repertoire on the composition of the institutionalized
Gaucha clothing. Clothing became the main element of the set of references selected
by the movement from 1947, from it people embrace the constituted identity, create
personas and declare themselves as Gauchos. Due to the intense use of historical
references on the movement practices, the imaginary is reinforced and results in the
connection of the present with the past, creating meanings, evoking it as the different
and emphasizing "me" and "the other". Therefore, the aim of this research was to
verify the textual and imagery sources used in the book "Indumentária Gaucha" of
the writer Antonio Augusto Fagundes, identifying and analyzing the historical
references and the fashion aspects that rebound on the composition proposed by the
author, and approved by the Gaucho Traditionalist Movement from the second half of
the twentieth century.
Key words: Gaúcho, Gaucha clothing, Traditionalist Movement.
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LISTA DE FIGURAS E QUADRO
Figura 1 - Paseo Criollo, 24 de maio de 1894 - Montevidéu.................................... 43
Figura 2 - Grupo de oito jovens em trajes gaúchos, denominado “Piquete
da Tradição”............................................................................................. 51
Figura 3 - Apresentação do 35 CTG na III Semana Nacional de Folclore, em 1950,
em Porto Alegre, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul........ 62
Figura 4 - Getúlio Vargas e os fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho
no 1º Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.... 63
Figura 5 - João Carlos Paixão Côrtes e Juliano José Laerte Simch no baile
gauchesco do Colégio Júlio de Castilhos, em 1947............................... 70
Figura 6 - Vestimenta do Gaúcho, Paixão Côrtes.................................................... 74
Figura 7 - Descrição dos trajes................................................................................ 75
Figura 8 - Chiripá primitivo, braga, chiripá farroupilha e bombacha........................ 81
Figura 9 - Trajes gaúchos, 1750-1820 - primeira época.......................................... 82
Figura 10 - Traje gaúcho, 1820-1865 - segundo época........................................... 82
Figura 11 - Traje gaúcho, 1865-1976 - terceira época............................................. 83
Figura 12 - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret, 1834..........................97
Figura 13 - Chiripá - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret..................... 100
Figura 14 - Camisa, jaleco, jaqueta e ponxe - Charruas Civilisé (Pions), Jean
Baptiste Debret..................................................................................... 101
Figura 15 - Chapéus - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.................. 103
Figura 16 - Botas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret....................... 104
Figura 17 - Botas Garrão de Potro, Jorge Ubiratan Lopes...................................... 106
Figura 18 - Processo de fabricação da bota de garrão de potro.............................. 107
Figura 19 - Armas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret...................... 108
Figura 20 - Homem do Rio Grande do Sul. Gaúcho. Jean-Baptiste Debret………. 110
Figura 21 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817…………………………….. 114
Figura 22 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817…………………………….. 116
Figura 23 - Atardecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.......... 121
Figura 24 - Amanecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d......... 121
Figura 25 - Crepusculo, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão (24x28cm), s/d... 121
Figura 26 - La Aurora, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão (28x23cm), s/d...... 121
Figura 27 - Chiripá farroupilha................................................................................. 123
10
Figura 28 - Los tres Chiripás, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela
(40x50cm), 1881.................................................................................... 125
Figura 29 - José Podestá representando Juan Moreira........................................... 129
Figura 30 - Reportagem “Churrasco nos Pampas”.................................................. 132
Figura 31 - Pedro Raimundo, 1960.......................................................................... 135
Figura 32 - Maria Zulema Paixão Côrtes, no primeiro baile organizado em razão
do nascimento do Movimento Gaúcho, em 1947...................................140
Figura 33 - Capa do disco Gauchos Hi-Fi, Conjunto Farroupilha, 1957.................. 142
Figura 34 - Idilio criollo, óleo sobre tela (100x140cm), 1861................................... 149
Figura 35 - Bailando el gato, aquarela sobre papel (17x33,3cm), 1860.................. 150
Figura 36 - Tienda, aquarela sobre papel (34,7cm), 1860....................................... 151
Figura 37 - Organograma das instituições gaúchas filiadas à Confederação
Brasileira da Tradição Gaúcha - CBTG, com seus respectivos CTGs.. 162
Figura 38 - Localização dos CTGs fundados por brasileiros no exterior................. 163
Figura 39 - Organograma da estrutura do movimento gaúcho e quantidade
de Centros de Tradições Gaúchas por confederação........................... 164
Quadro 1 - Vestuário gaúcho proposto por Antonio Augusto Fagundes................. 87
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CATG Confederação Argentina de Tradição Gaúcha
MTO Movimento Tradicionalista Oriental (Uruguai)
CBTG Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha
CITG Confederação Internacional da Tradição Gaúcha
CNATGB Confederação Norte-Americana do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro
CTG Centro de Tradições Gaúchas
MTG Movimento Tradicionalista Gaúcho
ONU Organização das Nações Unidas
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
IBECC Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências
CNFL Comissão Nacional do Folclore
CGF Comissão Gaúcha de Folclore
BN Biblioteca Nacional
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 13
CAPÍTULO I – DO GAÚCHO HISTÓRICO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: IDENTIDADE, MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO....................................... 23
1.1 TROPEANDO E POUSANDO: TEORIAS QUE ASSENTAM........................................ 23
1.2 DO GAÚCHO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: PRODUZINDO IDENTIDADES............................................................................................................... 28
CAPÍTULO II – O MOVIMENTO TRADICIONALISTA E O VESTIR GAÚCHO................. 49
2.1 TRADIÇÃO "ELETIVA" GAÚCHA E FOLCLORE: A CONSOLIDAÇÃO DA IDENTIDADE IDEAL................................................................................................ 49
2.2 VESTINDO O GAÚCHO TRADICIONALISTA: PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES DO VESTUÁRIO........................................................................ 68
CAPÍTULO III – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INDUMENTÁRIA GAÚCHA: IMAGENS QUE (RE)VESTEM E REVERBERAM NO TRADICIONALISTA GAÚCHO................................................................. 78
3.1 IMAGENS NARRADAS E NARRATIVAS TRADUZIDAS EM IMAGENS: RELATOS E AQUARELAS NA INDUMENTÁRIA DE FAGUNDES.............................. 86
3.2 IMAGENS ENCENADAS QUE ANUNCIAM UM VESTIR GAÚCHO: DOS CIRCOS CRIOLLOS A PEDRO RAIMUNDO....................................................... 127
CAPÍTULO IV – E A INDUMENTÁRIA DA "PRENDA" GAÚCHA?................................... 139
4.1 ENTRE RELATOS, AQUARELA E MODA, O VESTIDO IDEAL DA PRENDA TRADICIONALISTA....................................................................................................... 139
4.2 DOS BABADOS "FORA DE MODA" ÀS LEIS QUE NORMATIZAM: REFLEXOS DO MOVIMENTO EM EXPANSÃO........................................................... 154
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 167
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 172
GLOSSÁRIO....................................................................................................................... 189
APÊNDICE.......................................................................................................................... 198
ANEXOS.............................................................................................................................. 201
13
INTRODUÇÃO
Gaúcho. Palavra que me acompanha desde a infância. Enquanto os
dicionários conceituavam como o “habitante do Rio Grande do Sul”1, inquietações,
dúvidas e desconfianças permeavam meus pensamentos (ver Apêndice I). Ao iniciar
minhas pesquisas, percebi que a situação era ainda mais complexa, visto que a
cada livro, imagem ou documento surgiam novos significados. Pois bem, após uma
imersão em obras de outrora, uma nota de rodapé de um relatório de viagem de
1787 se tornou o ponto de partida para a resolução das minhas questões:
Gauches, palavra Hespanhola usada neste paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo, quais Vaqueiros, costumados a matar os Touros chimarroens a sacar-lhe os Couros [...].2
Esse conceito foi por muito tempo a força propulsora das minhas pesquisas.
Considerado a primeira prova documental em que aparece a palavra “Gauches”, os
registros de 1787, do viajante português José de Saldanha, trazem um conceito que
muito se difere daquele observado nos dias atuais. O gaúcho, presente em diversas
obras como gentílico, honesto, herói de guerras, sujeito de inúmeros predicados, já
foi detentor de características negativas. Quais os fatores que contribuíram para tal
alteração? Ou seja, para cada descoberta, novos questionamentos.
Durante o processo de investigação, iniciado na Especialização e no
Mestrado, percebi que os fatores responsáveis pelas transformações ocorridas do
conceito inicial atribuído ao gaúcho aos dias atuais incidiram em dois momentos. O
primeiro, durante o século XIX, quando a literatura permeia a história e recria o
personagem de forma lúdica, possivelmente como resultado da necessidade
emergente de definir a identidade em uma terra recém-colonizada por meio de
disputas de fronteiras. E o segundo (e mais intrigante) momento, na segunda
metade do século XX, quando surge um movimento cultural, institucionalmente
organizado, com o objetivo de (re)criar e preservar a figura do gaúcho tal qual foi
idealizada no século anterior. Duas iniciativas que alcançaram proporções
1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Júnior - Dicionário escolar da língua portuguesa.
Curitiba: Positivo, 2011, p. 458 e 777. AVOLIO, Jelssa Ciardi. Michaelis - Dicionário escolar francês. São Paulo: Melhoramentos, 2009, p. 487. 2 SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938,
p. 181.
14
inimagináveis, fazendo com que essa figura se tornasse conhecida e abordada em
diferentes lugares do mundo numa época em que a mídia eletrônica era pouco
explorada.
O primeiro processo, resultado do trabalho da literatura, deixa explícito que
são estórias, ainda que elaboradas com elementos da história. Porém, o segundo,
criado pelo movimento cultural gaúcho, trata-se de um conjunto intenso de práticas
representativas, repletas de imagens selecionadas e organizadas pelo grupo, com
base também em elementos da história, porém com o objetivo de instituí-las como
verdades históricas. Tais práticas com referências imagéticas, constituídas pelo
movimento a partir do ano de 1947, foram apreendidas e são defendidas como
verdades por aqueles que as seguem.
Provendo essa rede de práticas com elementos de representação estão a
música, a poesia, a literatura, a dança e atividades de recreação que lembram a vida
no campo do antigo gaúcho. Entre as diversas práticas se sobressai a indumentária,
que está entre os principais elementos selecionados para representar o gaúcho na
atualidade. Ela é destaque nos relatos e nas aquarelas dos viajantes dos séculos
XVIIII e XIX, reaparece com ênfase na literatura nos séculos XIX e XX e é elemento
obrigatório na construção e disseminação do gaúcho ideal da segunda metade do
século XX, quando inicia o movimento gaúcho institucionalizado.
Tais práticas revestem os sujeitos, atuando como formas de se reconhecer e
de se fazer reconhecer. Nesse contexto, a imagem se configura como ferramenta
estratégica de representação, sendo a vestimenta recurso escolhido para legitimar
as práticas, atribuindo efeitos de verdade ao personagem identitário.
Nesse sentido, o estudo procura de modo breve historicizar a gênese do
gaúcho, a fim de compreender as transformações ocorridas, e apresentar a
arquitetura constituída a partir da organização desse movimento institucionalizado,
que atualmente é composto por quase quatro mil instituições, distribuídas no Brasil e
no exterior, com aproximadamente meio milhão de associados que as seguem
rigorosamente. Dessa forma, esta investigação tece reflexões acerca do repertório
imagético reunido, considerando a indumentária como elemento central do conjunto
de referências históricas selecionadas pelo movimento gaúcho após 1947, que fez
com que um grande contingente de pessoas se apropriasse da identidade gaúcha e
criasse personas por meio de vestimenta específica.
15
Assim, esta pesquisa tem como objetivo verificar a institucionalização da
indumentária gaúcha, analisando as referências históricas que reverberam na
vestimenta selecionada pelo movimento gaúcho a partir da segunda metade do
século XX.
O recorte temporal
A pesquisa tem como recorte temporal o período de 1947 a 1989. Ocasião em
que foi institucionalizada a indumentária do gaúcho pelo movimento organizado
iniciado em 1947, aprovado em congresso em 1961 e oficializado por lei estadual
em 1989.
A partir de 1947 começaram a ser criados espaços exclusivos para a difusão
desse personagem em todo o país. Espaços que, no ano seguinte, foram
denominados Centros de Tradições Gaúchas, popularmente conhecidos por CTGs,
nos quais hábitos e costumes do personagem são apreendidos e seguidos por
gerações. Logo, foi necessária a realização de encontros oficiais, a fim de organizar
o movimento conforme idealizado. Nesse sentido, o Congresso Tradicionalista se
constituiu no mais importante evento, onde os temas de interesse são discutidos,
decididos e seguidos.
Dessa forma, a vestimenta tem sido citada desde os primeiros congressos.
Foi pauta no I Congresso Tradicionalista, em 1954, na tese “O sentido e o valor do
tradicionalismo”, de Barbosa Lessa, revelando a importância da temática. Já no V
Congresso Tradicionalista, em 1958, foram apresentadas pesquisas específicas
sobre a bombacha, definida na ocasião como indumentária do gaúcho. No entanto,
foi no VIII Congresso Tradicionalista, em 1961, que uma das maiores pesquisas
sobre o vestuário do gaúcho até o momento surgiu na pauta principal em formato de
tese, defendida por Antonio Augusto Fagundes, sendo aprovada pela assembleia,
ficando assim institucionalizada a indumentária do gaúcho.
Em razão da quantidade de instituições sendo fundadas em diferentes
lugares, foi necessária a criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, ou MTG,
como é conhecido, com o objetivo de congregar todas as instituições denominadas
CTGs. A instituição seguiu com a realização dos congressos, e no XXIII Congresso,
em 1978, a tese sobre indumentária gaúcha de Antonio Augusto Fagundes, agora
ampliada e publicada, foi novamente aprovada.
16
Em 1989, o governo do Estado do Rio Grande do Sul oficializou, por meio da
Lei nº 8.813, como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para
ambos os sexos, a indumentária denominada “Pilcha Gaúcha”. A lei registra ainda
que será considerada somente a vestimenta que reproduza com autenticidade as
diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Ou seja, compete ao
movimento definir a indumentária do gaúcho. Cabe, no entanto, destacar a
importância da instituição perante o Estado já na década de 1980.
Ainda sobre o espaço de tempo selecionado para o estudo, cabe dizer que,
entre as pesquisas que discutem o gaúcho, poucas se debruçam sobre esse
período. Parte dos estudos identificados examina o gaúcho pelo viés da literatura,
com recorte temporal anterior ao proposto nesta tese. Não foram identificadas
pesquisas que se dedicam a discutir o gaúcho institucionalizado, tampouco a sua
vestimenta.
Embora o objeto desta pesquisa seja a vestimenta institucionalizada pelo
movimento gaúcho, ela não existiria sem os sujeitos que se revestem e colocam os
elementos em movimento. Dessa forma, a pesquisa considera a atuação desses
sujeitos revestidos, que ajudam a compor o universo das tradições gaúchas, parte
das investigações, verificando o que há de indícios históricos nessa arquitetura
construída que vive em constante movimento.
Investigar as práticas dessas instituições em todos os seus níveis de
organização administrativa após 1947 traz a necessidade de entender o contexto
histórico em que o gaúcho estava inserido, ou seja, o cenário da região do atual
Uruguai, Argentina e Sul do Brasil, a fim de compreender os vestígios históricos que
permeiam a atuação das instituições no recorte temporal selecionado, bem como as
referências que ainda reverberam na indumentária institucionalizada. Tais
investigações são possíveis em razão do acesso privilegiado aos documentos
oficiais.
A reunião das fontes foi iniciada antes mesmo do Mestrado. Como integrante
do movimento gaúcho, participei de diferentes eventos desde a infância, ocupando
inclusive cargos de liderança no Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado de
Santa Catarina - MTGSC e, posteriormente, na Confederação Brasileira da Tradição
Gaúcha - CBTG. Neste último tive a oportunidade de viajar por todos os Estados do
Brasil.
17
O envolvimento com lideranças e adeptos do movimento, o acesso a
documentos oficiais e a formação em História levaram-me a questionar a
organização e problematizar as práticas definidas pelas instituições gaúchas.
Durante os dez anos em que estive à frente de alguns departamentos, pude reunir
fontes de diferentes tipologias, as quais, com o consentimento dos envolvidos, tenho
o privilégio de utilizar nesta pesquisa, algumas inclusive inéditas.
Fontes e abordagens
As abordagens foram delineadas privilegiando quatro tipos de fontes. São
elas: os relatórios de viagem de pesquisadores que passaram pelo Sul do Brasil,
pelo Uruguai e pela Argentina nos séculos XVIII e XIX; aquarelas e fotografias;
artefatos que fizeram parte do vestuário do gaúcho, pertencentes ao Museo del
Gaucho, em Montevidéu; bem como documentos oficiais das instituições gaúchas,
como atas, teses, estatutos, regimentos, cartas e moções resultantes de congressos
organizados. A variedade do corpus documental, somada ao recorte temporal já
citado, contribui para uma análise diversificada do objeto, permitindo realizar
abordagens pouco exploradas.
Para análise do termo “gaúcho”, bem como de relatos sobre sua vestimenta e
aquarelas, são priorizados os registros dos viajantes dos séculos XVIII e XIX, por ser
um período escasso em publicações, e pelo fato de constar nesses documentos a
primeira referência ao termo. Embora apresentem considerações simplificadas
acerca do que viam e uma visão eurocêntrica sobre aqueles que aqui habitavam,
essas fontes trazem elementos indispensáveis para esta pesquisa.
Para analisar tais fontes, no que se refere à classificação da escrita dos
viajantes, a pesquisa utiliza como referencial teórico os estudos de Flora Süssekind
e Mary Louise Pratt.3 As autoras classificam os relatos de viagem como científicos
ou sentimentais. Mary Louise Pratt descreve que a informação é prioridade na
narrativa científica, tal qual orienta o sistema de conhecimento institucionalizado,
limitando-se a relatar de maneira objetiva o que se vê, ao passo que os relatos de
viagem sentimentais se baseiam na experiência sensorial, ou seja, a autoridade da
3 SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.
18
narrativa reside na autenticidade das sensações, e o pronome “eu” permeia o
discurso, narrando a interação com o espaço e os sujeitos encontrados.4
Flora Süssekind estende suas análises e afirma que nos relatos científicos
cabe ao viajante narrar, fixar tipos, classificar, ordenar e organizar em mapas, ou
seja, apresenta uma estrutura organizacional. Nessas expedições o narrador se
apaga e passa a figurar ora num plural impessoal, ora numa imagem genérica. Já as
narrativas sentimentais sofrem interferência do narrador, que algumas vezes
compara as regiões exploradas com paisagens europeias.5
Valendo-se de tais abordagens, foi possível selecionar e classificar os relatos
dos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Como critério de seleção, os viajantes teriam
de relatar passagens pela América do Sul e mencionar o gaúcho, ou características
deste. São eles: José de Saldanha, matemático e astrônomo português, 1787; Jean
Baptiste Debret, pintor e desenhista francês, 1816-1831; Nicolau Dreys, militar,
comerciante e naturalista amador francês, 1817-1825; Auguste de Saint-Hilaire,
naturalista francês, 1816-1822; Arsène Isabelle, comerciante, naturalista amador
francês, 1833-1834; Alexandre Baguet, comerciante belga, 1845; Thomas Jefferson
Page, oficial da Marinha de Guerra Norte-americana, 1859; Emeric Essex Vidal,
membro da marinha inglesa e pintor, 1916-1918; e Conde d‟Eu, nobre francês e
príncipe imperial consorte do Brasil, 18656.
No decorrer do século XIX, com a constante chegada de imigrantes europeus
ao Sul do Brasil, emergiu a necessidade de afirmar uma identidade. Nesse sentido,
o gaúcho foi o escolhido pela literatura para servir de modelo, tendo como fontes os
relatos de alguns viajantes, sobretudo aqueles que o descreveram com atributos
positivos. Nesse sentido, ele deixava a história aqui registrada por meio dos relatos
de viagem para entrar no campo da literatura, que recria a imagem do sujeito,
transformando-o em herói. Nesse processo de recriação, o gaúcho torna-se o
protagonista identitário, outra representação que passou por uma série de
transformações intencionais.
4 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC,
1999, p. 138-141. 5 SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 45- 58, 110-111. 6 Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans e Saxe-coburgo-Gota.
19
A representação do gaúcho na literatura foi impulsionada pelos uruguaios, na
segunda metade do século XIX, que, ao perceberem a chegada maciça de
imigrantes europeus, organizaram um movimento, assumindo para si uma
identidade com referências na história, mais especificamente em hábitos e costumes
do gaúcho – movimento esse que posteriormente seria replicado no Brasil. É
possível identificar tal preocupação nos registros oficiais, como nas atas de
fundação das primeiras instituições7 criadas com o objetivo de recuperar e valorizar
a cultura do Sul.
É possível verificar que, no Brasil, essas primeiras instituições, fundadas entre
o século XIX e início do século XX, não prosseguiram tal como idealizadas, por
diferentes fatores, delineados nesta pesquisa. No entanto, em 1947 o movimento
ressurgiria com uma nova roupagem. Guiado pelos objetivos das instituições criadas
no século anterior, o novo movimento intensificou suas práticas e tomou um grande
impulso, desta vez se autointitulando “tradicionalismo gaúcho”.
Para análise dessa fase do movimento, recorte temporal prioritário deste
estudo, a pesquisa aborda o objeto a partir da História Cultural. Nesse sentido,
Sandra Jatahy Pesavendo e Roger Chartier são por vezes visitados. Segundo a
autora, os conceitos de cultura, representação, imaginário, sensibilidade, memória e
subjetividade foram reapropriados pelos investigadores do passado no terreno da
cultura nos últimos anos, e estão consolidados. Igualmente, são conceitos que
permeiam esta pesquisa e que, portanto, serão abordados sob essa ótica.
A criação e organização do denominado Movimento Tradicionalista Gaúcho
são abordadas sob a perspectiva de Benedict Anderson, em sua obra “Comunidades
Imaginadas”, e questões relacionadas à identidade, latentes no processo de criação,
a partir de Stuart Hall e Zygmunt Baumann.
Pela análise dos documentos oficiais das instituições, verifica-se uma
necessidade constante de afirmação de uma identidade por meio de discursos e
práticas culturais, que remetem aos hábitos e costumes do gaúcho, tendo como
referência aqueles descritos pelos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Percebe-se
ainda que as imagens se configuram como principal ferramenta de assimilação
visual daquilo que se quer como cultura gaúcha. Com base nessa constatação,
passou-se então a pesquisar as tipologias de imagens utilizadas e possíveis
7 Em 1894 foi fundada em Montevidéu, no Uruguai, a Sociedad La Criolla. E quatro anos depois, em
1898, essa iniciativa seria replicada no Brasil, por mais de 15 instituições.
20
abordagens teórico-metodológicas. Verificou-se que os relatos e aquarelas foram
ferramentas estratégicas para a elaboração da indumentária gaúcha, constituindo
uma representação ideal.
A esse respeito, Sandra Jatahy Pesanvento e Roger Chartier dizem que as
representações dotam o presente de sentidos e estabelecem relações de poder.
Embora o representante não seja o representado, mas uma imagem, ele traz
semelhanças e significados dele, ficando no lugar da realidade.8 A utilização das
imagens como formas de representação é constantemente projetada, servindo como
referência da identidade escolhida, a fim de tornar presente o ausente, tal como
descreve Peter Burke em sua obra “A fabricação do Rei”9. Tais imagens são
replicadas constantemente pelas instituições, para construir e consolidar uma
identidade tal qual idealizada nas leituras sobre vestígios históricos do gaúcho.
Tendo em vista as diferentes tipologias de imagens adotadas pelas
instituições gaúchas, o estudo leva em conta os trabalhos de Alberto Manguel,
Martine Joly, Peter Burke e, principalmente, Erwin Panofsky quanto à análise
iconográfica e iconológica das imagens dos pintores. Quanto às imagens elaboradas
pelo movimento gaúcho, embora queiram representar um tempo específico, são
permeadas de memórias e tempos distintos. A construção da imagem idealizada
perpassou dois séculos e, nessa constante construção e reconstrução, foi
preenchida por muitos “agoras” de diferentes tempos. E que se reconfiguram por
meio dos novos olhares e memórias.
Quanto à indumentária instituída pelo movimento como item obrigatório para
aqueles que seguem as normas da cultura considerada como gaúcha, é entendida
como elemento central, capaz de revestir o sujeito de gaúcho. A indumentária é tida
como um meio que proporciona ao sujeito experimentar a imagem idealizada, ao
estabelecer relações entre o sujeito espectador e a imagem. O mesmo sujeito que
se “reveste” de gaúcho consegue imaginar como será observado por outros
espectadores, já que se sente o próprio gaúcho, por estar vestido como tal. O
sujeito, literalmente, experimenta da imagem.
8 PESAVENTO, Sandra J. Representações. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/
Contexto, v. 15, nº 29, 1995. 9 BURKE, Peter. A fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1994.
21
Nesse sentido, o vestuário é analisado sob a ótica de alguns pensadores,
como Diana Crane, Daniel Roche e Roland Barthes, que entendem a vestimenta
como instrumento de representação social e cultural e, enquanto indumentária, um
importante veículo de significação. Por fim, a pesquisa identifica e analisa o quanto
a indumentária gaúcha institucionalizada a partir de 1947 e, principalmente, em 1961
estava impregnada pela moda.
Capítulos
O primeiro capítulo apresenta a gênese do gaúcho, a partir dos relatos do
viajante português José de Saldanha em 1787, que fez o reconhecimento e
demarcações da costa no Sul. Seus documentos trazem o primeiro registro do termo
gaúcho e sua definição. Descrito em nota de rodapé do diário de viagem, o autor
apresenta um conceito a partir de um contexto histórico de dominação europeia,
pouco aceito posteriormente.
Dessa forma, o texto se dedica às transformações históricas sofridas pelo
gaúcho no decorrer do século XIX, quando se verificam deslocamentos na sua
representação, à medida que outros viajantes percorrem o mesmo espaço de
Saldanha e descrevem as suas alterações. Os relatos são analisados a partir do
contexto histórico do Sul, envolto em instabilidade política e social que, instaurando
uma nova dinâmica social e cultural no espaço, impulsionou a literatura e outras
ações na busca por uma identidade, fazendo com que surgissem instituições
dedicadas ao tema.
O segundo capítulo expõe o início do movimento gaúcho em 1947, quando da
organização em instituições intituladas CTGs, bem como a seleção das práticas que
fariam parte dessa rede identitária. Verifica-se a relação do chamado Movimento
Tradicionalista Gaúcho que estava nascendo com o movimento folclórico que estava
sendo impulsionado, já que juntos contribuíram para a eleição de elementos tidos
como folclóricos e outros “tradicionais”. Em meio a essa organização política do
movimento, o capítulo apresenta a forte relação e preocupação em selecionar o
vestuário ideal.
22
O terceiro capítulo centra-se na institucionalização da indumentária gaúcha
selecionada, vestuário ideal aprovado e recomendado pelo movimento gaúcho a
partir de 1961, proposto por Antonio Augusto Fagundes. Tema central desta
pesquisa. Dessa forma, são identificadas as práticas vestimentares anteriores à
institucionalização do traje gaúcho por parte dos adeptos do movimento
tradicionalista, bem como as publicações, os relatos de viagem e as aquarelas
platinas que circularam pelo Sul do Brasil, que permearam o imaginário dos
tradicionalistas e possivelmente foram fontes ou influenciaram Antonio Augusto
Fagundes.
Por meio do vestuário o gaúcho é conhecido e reconhecido. Aquarelas,
fotografias, relatos e artefatos foram cuidadosamente selecionados pelo movimento,
suas imagens foram apreendidas e cristalizadas nesse tempo, representando
passados gloriosos. Dessa forma, discute-se aqui a representação das imagens, e
os referenciais que reverberam na indumentária institucionalizada, estabelecendo
um diálogo.
No quarto e último capítulo a pesquisa traz à tona a indumentária da mulher
gaúcha, tendo em vista que são poucos os registros sobre o tema. Cabe, pois, dizer
que para o movimento gaúcho a mulher não se configura como personagem
principal. Aparece como coadjuvante em diversos momentos. Dessa forma, o
capítulo analisa, principalmente, a origem dos referenciais presentes na composição
da vestimenta da mulher na primeira década do movimento gaúcho, bem como a
influência da moda no conjunto do traje feminino selecionado.
O vestuário feminino foi instituído em 1989, quando definidas e aprovadas as
primeiras normativas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, sendo no mesmo ano
ratificadas por lei estadual, resultado de uma expansão desenfreada do movimento,
com iniciativas de brasileiros no Brasil e no exterior, demonstrada principalmente na
criação de leis voltadas ao vestuário gaúcho em outros estados do Brasil. Dessa
forma, o último texto apresenta a expansão do movimento gaúcho, sua organização
e os reflexos da sua atuação diante do Estado sobre a utilização da indumentária
gaúcha em eventos oficiais dos estados brasileiros, como métodos de manutenção e
permanência da cultura, reforçando a dimensão política da iniciativa.
23
CAPÍTULO I – DO GAÚCHO HISTÓRICO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES:
IDENTIDADE, MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO
1.1 TROPEANDO E POUSANDO: TEORIAS QUE ASSENTAM
Gauches, palavra Hespanhola usada neste paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo [...]. (José de Saldanha, 1787) Tradicionalismo é um movimento cívico-cultural. É a tradição em marcha, resgatando valores [...] que trouxeram o Rio Grande e o gaúcho do passado para o presente, projetando-os no futuro. (Antonio Augusto Fagundes, 1994)10 [...] o maior movimento popular de cultura em todo o mundo ocidental [...]. (Luiz Carlos Barbosa Lessa, 1979)11 Assim sendo, toda a vez que vestimos as sagradas vestes da tradição, nos transformamos em soldados, à causa maior. (Rubens Luiz Sartori, 1991)12
A epígrafe apresenta um conjunto de citações e expõe o percurso dos temas
que serão aqui abordados. Questões que permeiam esta pesquisa e que este
primeiro capítulo se propõe a discutir, a fim contextualizar o objeto para, em seguida,
entrar no tema central da tese: a indumentária institucionalizada pelo Movimento
Tradicionalista Gaúcho.
Ao exame das citações percebe-se que, inicialmente, o gaúcho não era
detentor de bons atributos, como conceitua José de Saldanha. Contudo, quase dois
séculos depois, o mesmo sujeito torna-se referência identitária para o maior
movimento popular de cultura do mundo ocidental. Porém, dever-se-ia dizer que, se
é o maior, como expõe Barbosa Lessa, não há certezas, no entanto, é “reconhecido
pela ONU como um dos maiores movimentos socioculturais do mundo”13. Desse
10
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de Tradicionalismo Gaúcho. Porto Alegre: Martin Livreiro, 1994, p. 38. 11
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Introdução. In: Idem. O sentido e o valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: S.A. Moinhos Rio Grandenses, 1979, p.03. 12
Ata de abertura do 3º Congresso Brasileiro da Tradição Gaúcha, realizado em 15 nov. 1991, em Balneário Camboriú. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS. Rubens Luiz Sartori era na ocasião Presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado do Paraná. 13
FIGUERA, Francisco Carlos. Contribuição para o processo de aperfeiçoamento da informação para a decisão e avaliação do desempenho patrimonial, econômico e financeiro dos Centros de Tradições Gaúchas do Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis e Atuariais), PUC-SP, São Paulo, 2005, p. 13.
24
modo, parece acertado revelar as circunstâncias que levaram o gaúcho,
historicamente conhecido como vagabundo, a se transformar em modelo de uma
cultura, buscando compreender as palavras de Antonio Augusto Fagundes quando
afirma que a tradição resgatou valores e trouxe o gaúcho do passado para o
presente. O ladrão do campo passa se consagrar como importante representação.
Como se deu essa transformação?
As primeiras representações sobre o gaúcho, contribuíram para a criação de
instituições dedicadas ao seu culto. Os relatos dos viajantes dos séculos XVIII e XIX
e a literatura o transformou em personagem repleto de valores, desta forma busca-
se subsídios para compreender o percurso até o surgimento do movimento, para
então se examinar o vestuário do gaúcho.
A última citação exibida na epígrafe se refere à indumentária
institucionalizada pelo movimento gaúcho e apresenta de forma sintetizada o objeto
desta tese. A partir dela é possível perceber quão instigante e plena de sentidos ela
se apresenta – retrata sobretudo a autoridade que tem o vestuário para aqueles que
seguem o movimento. Cabe notar que “tradição” é o termo principal da citação, a ela
são dedicadas vestimentas diferenciadas capazes de transformar quem as veste em
prol da sua defesa. No entanto, a que tradição o autor se refere? E que vestimentas
são essas que revestem sujeitos e os transformam em soldados?
O termo tradição gaúcha foi institucionalizado na segunda metade do século
XX, pelo já citado Movimento Tradicionalista Gaúcho, que, no Brasil, teve origem no
Rio Grande do Sul, objetivando eleger uma identidade com elementos que
representassem os habitantes daquele estado. Dessa forma, impulsionado pelo
contexto político do período, o pós-Estado Novo, em 1947 surgiu um evento
denominado Ronda Gaúcha, que deu origem no ano seguinte aos Centros de
Tradições Gaúchas, popularmente conhecidos como CTGs, tendo o gaúcho como
personagem representante. A esse respeito, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes,
fundadores do movimento, registram ainda o termo “tradicionalismo”, que seria
utilizado com frequência e se tornaria um conceito quase que exclusivo do
movimento gaúcho. Segundo os autores, o “tradicionalismo é um movimento”, e
acrescentam: “Sua dinâmica realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições
25
Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm por fim estudar, divulgar e fazer
com que o povo viva as tradições rio-grandenses.”14
Sobre a fundação dessas instituições dedicadas a contribuir para a criação de
uma identidade cultural regional, registros dão conta de que as primeiras datam do
século XIX, porém o ápice do movimento de busca por uma identidade se deu com a
fundação dos CTGs, a partir de 1948. Nessa mesma perspectiva, Pesavento afirma
que o século XX ficou marcado pela forte cultura regional, consolidada como
homogênea, ou seja, considerando que todos os habitantes do Rio Grande do Sul
são iguais, todos seriam herdeiros de tradições gloriosas e corresponderiam à figura
idealizada do gaúcho.15
O movimento se propõe a selecionar elementos do passado histórico da
região para compor-se, sendo responsável por realizar o “processo de identificação,
seleção, montagem e composição de elementos que formam o padrão identitário de
referência”16. Nesse processo de composição, foram resgatados vestígios do
passado histórico do gaúcho. Ou seja, trata-se da identidade cultural, tendo como
referência um sujeito que fez parte da história em um determinado espaço e tempo.
A esse propósito, Stuart Hall cita que “as identidades culturais provêm de alguma
parte, têm histórias, refletem experiências históricas em comum”17.
Tais referências do passado histórico do gaúcho munem a identidade de
sentidos. A esse respeito, Stuart Hall, Sandra Jatahy Pesavento e Benetict Anderson
compartilham da mesma teoria no que refere à identidade, ou seja, “constrói-se uma
comunidade simbólica de sentido que cria a sensação de pertencimento”18. Essa
comunidade é tida como uma nação, não apenas política, mas algo que produz
sentidos, “uma comunidade simbólica”19, que tem poder de gerar um sentimento de
identidade e lealdade. Uma “comunidade imaginada”20 atua por meio dos CTGs e
faz sentido para a alma. De acordo com Sandra Jatahy Pesavento, “a identidade é
14
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 98. 15
PESAVENTO, Sandra J. Gaúcho: mito e história. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 24, nº 3, 1989, p. 18. 16
Idem. A cor da alma: ambivalências e ambiguidades da identidade nacional. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 20, n.1, p. 123-133, 1999, p. 123. 17
HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 24, p. 68-75, 1996, p. 69. 18
PESAVENTO, op. cit., 1999, p. 123. 19
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 49. 20
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 10-34.
26
uma construção datada, e ela surge a partir do momento em que um grupo afirma
que a nação existe”21.
Dessa forma, as instituições gaúchas denominadas CTGs, também
conhecidas como entidades singulares do movimento gaúcho, são por esta pesquisa
entendidas como “comunidade imaginada” responsável pelo processo de construção
e preservação da identidade, garantindo a permanência por meio de práticas. Locais
onde se vê o presente ligado ao passado, criando efeitos de realidade. Na formação
desse imaginário, as danças, a indumentária, a poesia, os monumentos, as
cerimônias, os festivais, entre outros, são incluídos e conferem permanente
legitimidade à celebração da imagem do gaúcho histórico que permeia a
comunidade imaginada na atualidade. Esse esforço é dedicado a garantir a
identidade do gaúcho a todos aqueles que desejam ser identificados como tal.
Esse amplo sistema com elementos de representação, variedades de
significantes organizados pela comunidade, constrói sentidos, com os quais seus
seguidores podem se identificar através da memória, que conecta o presente com o
passado.22 Ou seja, “tem suas histórias - e as histórias, por sua vez, têm seus
efeitos reais, materiais e simbólicos”23. Essas comunidades imaginadas instituíram
um modo de vida por meio de práticas com referências do passado, formando uma
rede de significados que os indivíduos e grupos usam para dar sentido ao
cotidiano.24
A preservação dessa memória, conforme Le Goff, é entendida “como
propriedade de conservar certas informações”25, importante para manter a conexão
estabelecida pela comunidade entre passado e presente, pois, ainda de acordo com
o autor, a memória é essencial para a identidade, individual ou coletiva, já que
procura recuperar o passado para servir ao presente e ao futuro. A esse propósito,
conforme exposto na epígrafe, Fagundes afirma que a tradição resgata valores que
“trouxeram o Rio Grande e o gaúcho do passado para o presente, projetando-os no
futuro”. Porém, cabe ainda ressaltar que essa memória gaúcha foi selecionada e
exilada na história idealizada pela comunidade, ou seja, trata-se de uma memória
21
PESAVENTO, Sandra Jatahy. A cor da alma: ambivalências e ambiguidades da identidade nacional. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 123-133, 1999, p. 123. 22
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 51. 23
Idem. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 24, p. 68-75, 1996, p. 70. 24
Idem. Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Projeto História. São Paulo, v. 31, 2005, p. 1. 25
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 419.
27
historicizada26, em razão da necessidade de conservar o que foi selecionado pela
comunidade como elementos da tradição.
Considera-se como norteador de todo o movimento gaúcho pós-1947 a
tradição, compreendida pela comunidade como o caminho inverso à modernidade,
uma vez que o período em questão (1947) era de inovações nos diferentes setores
da sociedade, com o fim do Estado Novo e da Segunda Grande Guerra. Nesse
sentido, esta investigação pretende trabalhar a tradição à luz das teorias dos
historiadores Jörn Rüsen e Javier Fernández Sebastián, em que tradição e
inovação, ou tradição e modernidade, relacionam-se de maneira contrastante, sendo
que, em razão da não aceitação da segunda, busca-se a primeira, que Sebastián
denomina de “tradições eletivas”. Ainda segundo o autor, por meio delas as
comunidades se autoconstituem, dotando-se de diferentes passados, com seleção
de personagens e acontecimentos históricos, fazendo relação com a identidade
selecionada, de modo que passam a se reconhecer a partir deles, com vistas a
legitimar seus projetos futuros.27
O conceito de tradição entendido pelo movimento gaúcho à época vem ao
encontro do conceito de “tradição eletiva” proposto por Fernández Sebastián. Em
seu livro “Manual do Tradicionalismo”, Glaucus Saraiva, historiador, professor
universitário e importante líder do movimento tradicionalista gaúcho do período, faz
uma analogia, tratando os elementos selecionados como sementes escolhidas. Cita
o autor:
Tradição, a nosso ver, é o todo que reúne em seu bojo a história política, cultural, social e demais ciências e artes nativas, que nos caracterizam e definem como região e povo. Não é o passado, fixação e psicose dos saudosistas. É o presente, como fruto sazonado de sementes escolhidas. É o futuro, como árvore frondosa que seguirá dando frutos e sombra amiga às gerações do porvir.28
Do mesmo modo, Jörn Rüsen, historiador alemão, refere-se à tradição como
um exercício da consciência histórica, de modo a gerar sentido para a vida prática,
26
SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memórias em terras de História: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, p. 41. 27
SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tradiciones electivas. Cambio, continuidade y ruptura em historia intelectual. Almanack. São Paulo, n. 7, p. 5-26, 2014. 28
SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 14.
28
uma forma de permanência em meio às mudanças provocadas pelo tempo,
retornando ao passado a fim de garantir uma continuidade fundamentada, sendo a
identidade moldada pelo passado.29 Ou seja, instrumentaliza-se o passado a seu
favor, objetivando a continuidade de elementos selecionados desse passado, que
fazem sentido para a comunidade na sociedade contemporânea.
Por meio dessas abordagens teóricas, o texto trilhará a origem do gaúcho,
tecendo reflexões acerca das transformações conceituais, buscando compreender
tais mudanças e os principais fatos que antecederam a criação do movimento
gaúcho em 1947. Procura-se fazer alguns apontamentos acerca dos motivos que
fizeram com que a representação do gaúcho, instituída pela “comunidade
imaginada”, fosse prioridade e, dentro desse contexto, a vestimenta do gaúcho se
configurasse como elemento indispensável, a ponto de garantir legitimidade ao
representante.
1.2 DO GAÚCHO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: PRODUZINDO IDENTIDADES
As constantes disputas entre Portugal e Espanha, a partir do século XVI,
marcaram o início da história do Uruguai, da Argentina e do Brasil. Seja pela
destacada posição geográfica, pela demarcação de fronteiras, possibilidade de
exploração indígena ou, mais tarde, pela situação econômica, o Sul foi cenário de
intensas lutas. Entretanto, a disputa por terras foi a mais longa. A cada tratado30 os
territórios ganhavam novas configurações. Do século XVI ao século XIX, os limites
territoriais foram por vezes deslocados.
Entre os conflitos por terras, durante a colonização e exploração pelos
europeus, as ordens religiosas acompanhavam as expedições e se estabeleciam no
novo espaço, com o objetivo de reunir e organizar aqueles que aqui viviam, a fim de
formar uma nova comunidade cristã, ou seja, catequizá-los na fé católica, segundo
ordens espanholas ou seguindo as portuguesas. A partir de 1610 foram fundadas
mais de 30 comunidades, chamadas de reduções. A iniciativa cristã chegou a reunir
em comunidades organizadas mais de 40 mil índios. Com constituições próprias,
29
RUSEN, Jorn. Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture. History and Theory. Middletown, Theme Issue 51, dez. 2012. 30
Tratado de Tordesilhas - 1494, Tratado de Madrid - 1750, Tratado de El Pardo - 1761, Tratado de Santo Ildefonso - 1777, Tratado de Badajós - 1801. Ver mais em: PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
29
autoridades, chefes militares, igreja, escolas, agricultura e pecuária, eles se
organizavam como cidades. Os nativos viam nas reduções uma possibilidade de
proteção, já que os caçadores, conhecidos como bandeirantes, para aprisionar os
índios atacavam as reduções, disputando a mão de obra aborígine.31
As comunidades indígenas eram orientadas e preparadas pelos padres
católicos, e travavam grandes batalhas com os invasores. Algumas vezes venciam,
mas outras eram vencidas, e por vezes abandonavam a comunidade. Nesse
abandono, deixavam para trás muitos cavalos e gados que criavam nas reduções.
Em meio a terras pouco colonizadas, os rebanhos reproduziam-se, formando
imensas reservas de gado livre em terras que ora eram da Espanha, ora de
Portugal, ora consideradas terras de ninguém. Dentro de uma sequência de fatos
que favoreceram tal economia e contexto, “estava lançado o fundamento econômico
básico de apropriação das terras do Sul, que seria a caça do gado xucro”32.
O gado se multiplicava e era tratado como uma caça maior e menos arisca.
Os rebanhos expandiam-se enormemente, chegando a constituir um manancial
aparentemente inesgotável nas Vacarias del Mar33, do qual tanto índios como
europeus procuraram se valer, objetivando o comércio. A existência de um rebanho
de ninguém numa terra de ninguém atraiu também ingleses, que estabeleceram na
área um entreposto ligado à South Sea Company34 para lucrar com o negócio da
courama. Logo se estabeleceria uma intensa atividade de caça a esse gado xucro,
com a finalidade de extrair o couro, cuja comercialização movimentou o extremo sul.
Os habitantes do Sul e aqueles que lá estavam para negociar dispunham de cavalos
e gados em abundância em uma terra vulnerável. Essa situação despertou o
interesse pela região para exploração, surgindo nesse embate indivíduos vindos de
toda parte.35
As intervenções europeias, que iniciaram no século XVI, a partir de
expedições litorâneas de exploração objetivando demarcar fronteiras, somadas a
uma intensa movimentação da pecuária, atraíram e intensificaram a chegada de
31
Ver mais em: COSTA, Elmar Bones da; FONSECA, Ricardo; SCHMITT, Ricardo. História Ilustrada do Rio Grande do Sul. Porto alegre: RBS Publicações, 2004. 32
PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 8-9. 33
Vacaria vem do castelhano baquería, quer significa grandes extensões de campos com significativa quantidade de gado vacum solto e livre. 34
Companhia do Mar do Sul ou Companhia dos Mares do Sul (tradução nossa). 35
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 414-415.
30
outros europeus, de variadas nacionalidades. Entre os diferentes objetivos que
tinham em relação ao novo espaço, alguns faziam o reconhecimento do território,
outros estudavam a região e anotavam cada área visitada, resultando nos primeiros
registros oficiais.
São esses os registros que serão utilizados nesta pesquisa para analisar a
presença do gaúcho nesse espaço. Embora apresentem considerações
tendenciosas daqueles que aqui habitavam, essas fontes são ricas em detalhes no
que se refere à definição de conceitos e aos costumes e hábitos de vestimenta.
Elementos que foram utilizados como base para a elaboração das práticas do
movimento gaúcho, sendo os conceitos tratados neste capítulo e as vestimentas e
os costumes, no capítulo seguinte.
Há uma variedade de narrativas sobre o extremo Sul do Brasil dos séculos
XVIII e XIX, revelando diferentes visões de viajantes ansiosos pelo novo. Sem a
pretensão de apreender na sua totalidade a figura do gaúcho a partir dos registros
dos viajantes, a pesquisa procura identificar resquícios desse personagem, com o
intuito de compreender a imagem que se tem no presente, já que a sua
representação atual, construída ou recuperada, traz elementos que convidam para
uma imersão na sua história. Nesse sentido, foram selecionados os viajantes que
transitaram pela região e que em seus relatos citaram a presença do gaúcho.
Cada relato traz especificidades de contexto e de métodos. Quase sempre
acompanham imagens, sejam pictóricas ou textuais. Textos e imagens se articulam.
Tentativas de se fazer entender, de retratar com exatidão talvez não o real, mas o
que se gostaria de passar como real. Relatos de retratos que contribuíram para a
produção historiográfica brasileira. Concepções europeizadas de um novo espaço,
reflexo de uma trajetória de conquistas expansionistas.
Observou-se que a origem e o objetivo das viagens refletiam formas
diferentes de escrita, e foram classificadas nesta pesquisa como científicas ou
sentimentais. Na viagem científica, ou com fins científicos, tal qual cita Flora
Süssekind, os viajantes iniciam suas expedições como autoridades científicas, em
sua maioria já formados, com sólido repertório, de modo que a experiência vai
apenas testar e ampliar seus conhecimentos frente ao novo. Esses viajantes
procuram centrar sua narrativa num plural impessoal, com base nos pressupostos
31
da história natural, de modo a não excluir o homem.36 Conforme Mary Louise Pratt, e
segundo a autora, a narrativa científica é objetiva e prioriza a informação, na medida
em que se liga a metas e sistemas de conhecimento institucionalizados externos ao
texto.37 Mas, ainda assim, uma narrativa escrita sob uma visão europeia. Um olhar
europeu sobre o não europeu.
No entanto, os viajantes em análise, em sua maioria, seguem a linha da
narrativa sentimental. Embora tenham objetivos científicos, é possível classificar os
textos como escrita sentimental em razão da forma como descrevem o visível.
Tomando como referência a proposta de Pratt, “o relato sentimental se baseia
explicitamente naquilo que está sendo expresso na experiência sensorial, juízo,
agência ou desejos dos sujeitos humanos”38, sendo o pronome “eu” o elemento
presente na escrita, ou seja, o viajante adentra o texto.
O primeiro registro em que aparece o termo “gaúcho” encontra-se no Diário
Resumido de José de Saldanha.39 Embora seus escritos tivessem como objetivo a
demarcação do território entre Portugal e Espanha, Saldanha descrevia a
paisagem.40 Os escritos principais do seu diário se limitam a descrever a paisagem
de forma objetiva, porém as notas de rodapé trazem uma riqueza de detalhes sobre
os usos e costumes, por vezes seguindo a formatação de glossário e outras vezes,
uma descrição alongada de impressões curiosas para o autor. Com isso, nota-se a
preocupação do viajante em seguir seu objetivo, embora o que estivesse ao seu
redor em termos de cultura fosse considerado por ele também importante.
36
SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 110-111. 37
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 141. 38
Ibidem, p. 140-141. 39
José de Saldanha nasceu em Lisboa em 1758. Bacharel em Filosofia pela Universidade de Coimbra, formado em Matemática, Geógrafo e Astrônomo. Recém-formado, veio para o Brasil, diretamente para o Rio Grande do Sul, ocupou o posto de tenente-coronel de engenheiros. Foi um dos oficiais encarregados, em 1784, da demarcação de limites meridionais entre os territórios de Portugal e da Espanha, para a execução do tratado de 1777. Empregado nas comissões demarcadoras como geógrafo e astrônomo, atuou de 1786 a 1788, nas duas primeiras Partidas Demarcadoras. José de Saldanha faleceu em Porto Alegre, como Major do Real Corpo de Engenheiros, a 28 de maio de 1808. 40
SPALDING. Walter. Dicionário do “Diário Resumido e Histórico” de José de Saldanha. Revista de História. São Paulo, v. 38, nº 77, 1969.
32
Ao relatar o dia primeiro de janeiro de 1787, Saldanha registra que em seu
caminho encontrou “destroçados ranchinhos e vestígios de coureadores e Gauches
do Campo”, e explica em nota de rodapé:
Gauches, palavra Hespanhola uzada neste Paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo, quaes Vaqueiros, costumados a matar os Touros chimarroens a sacar-lhe os Couros, e a levalos occultam.te as Povoaçoens, para a sua venda ou troca por outros generos.41
Esse relato é a primeira prova documental em que aparece o termo “gaúcho”
no Brasil42, registrando em nota explicativa quem é o gaúcho, o que demonstra que
“o papel do observador não é apenas coletar o visível, mas o de interpretá-lo em
termos do invisível”43. Nesse caso, José de Saldanha situa o leitor acerca do
conceito que se tem de “gaúcho” no país.
Naquele texto Saldanha relata que um determinado local era “intitulado pelos
gauches, ou Vagabundos do Campo, de Arroyo das Pedras”44. A escrita denota o
conhecimento do gaúcho frente ao espaço em que vivia, reforçando a tese de que
ele naturalmente era o sujeito que conhecia aquele lugar. No entanto, no que se
refere ao autor do relato, este faz questão de reforçar o seu conceito de vagabundos
do campo. Seriam os povos “subjugados” descritos por Mary Louise Pratt, que são
definidos a partir da chamada “zona de contato”,
[...] espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada.45
Nesses relatos há indícios ainda de uma relação entre Saldanha e os
chamados “vagabundos do campo”, ou gaúchos, quando cita “Jozé Minuano”. Nesse
41
SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 181. 42
Algumas obras dizem haver uma comunicação entre o comandante de Maldonado, no Uruguai, Don Pablo Carbonell e Juan José Vértiz, na Argentina, em 1771, dessa forma considera-se o primeiro registro oficial em que aparece a palavra gaúcho e a presença deste na região platina. Ver: ASSUNÇÃO, Fernando O. História del gaúcho - El Gaucho: Ser y Quehacer. Buenos Aires: Claridad, 2007, p. 220. 43
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 113. 44
SALDANHA, op. cit., p. 205. 45
PRATT, op. cit., p. 30-31.
33
caso, em nota explicativa no rodapé, o autor faz questão de esclarecer que “José
Minuano é um antigo Vaqueano, ou Vagabundo do Campo”46. Ou seja, o viajante o
conhece, há uma relação próxima, mas justifica que esse seu conhecido é um
“antigo” vagabundo do campo. Esclarecimentos desse tipo Mary Louise Pratt chama
de “estratégias de afirmação de inocência”, muito utilizadas nos relatos dos
viajantes, recurso considerado pela autora como “anticonquista”47. É possível
visualizar tais estratégias ainda nos relatos de Saint-Hilaire.
Outro viajante foi Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire,
conhecido como Auguste de Saint-Hilaire, cientista francês, especializado em
Botânica. Chegou ao Brasil em 1816, na qualidade de membro da Embaixada da
França para uma importante pesquisa científica. Viajou pelo interior, percorrendo
especialmente o Sudeste e o Sul do país, classificando e organizando uma vasta
coleção de plantas, animais e minerais. Foi referência para muito pesquisadores, e
suas coletas fazem parte de importantes coleções de museus e arquivos europeus.
Embora sua viagem tivesse propósito científico, e os relatos incluíssem
minuciosas informações dessa natureza, seus escritos podem também ser
classificados, segundo Flora Süssekind e Mary Louise Pratt, como sentimentais, já
que o pronome J’ ou Je permeia a descrição de sua experiência pessoal diária com
o meio.48 “O espaço/tempo textual correspondente ao espaço/tempo da viagem é
preenchido (ou constituído) por atitude humana”49, ou seja, a interação com as
pessoas que encontra não é desconsiderada. Não que a natureza seja relatada
apenas à medida que atua no meio social, mas essa interação se apresenta como
importante componente nos relatos.
Suas expedições incluíram incursões pelo Rio Grande do Sul e pelo Uruguai,
resultando em diversas publicações, em diferentes idiomas. Para esta tese foi
selecionada a publicação em francês de 1887, por apresentar termos ainda não
traduzidos por outras obras posteriores e importantes para esta pesquisa, e por
incluir os registros realizados no Uruguai. Saint-Hilaire descreve os gaúchos com a
mesma conotação vista nos escritos do português José de Saldanha, porém
esclarece que é um conceito estipulado pelos portugueses: “Estes homens sem
46
SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 187. 47
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 33. 48
J’ ou Je – pronome eu em francês (tradução nossa). 49
PRATT, op. cit., p. 138-139.
34
religião e sem moral, a maioria índios ou mestiços, que os portugueses designavam
sobre o nome de Garruchos ou Gahuchos [...].”50 O viajante segue seus relatos
usando a terminologia Gauchos. Nesse ponto, vale recorrer novamente a Mary
Louise Pratt, que chama de expressões “auto-etnográficas” termos nos quais “os
europeus representam para si os (usualmente subjugados) outros”51.
Francês, Saint-Hilaire tinha o cuidado de descrever em seus relatos a
nacionalidade dos europeus e outros que estavam de passagem, ou que ali tinham
se fixado, porém se ateve principalmente aos povos autóctones. Embora fizesse
comparações com os costumes europeus, relatava suas experiências com pouca
preocupação em utilizar de estratégias de representação para assegurar a inocência
do europeu. No entanto, descrevia os habitats como algo a ser aperfeiçoado. Em
passagem por Rio Grande, em 27 de outubro de 1820, registrou:
Depois da personalidade bem conhecida dos gaúchos, é permitido acreditar que quando a independência foi proclamada eles aproveitavam os primeiros momentos de desordem para roubar animais nas estâncias portuguesas, e os portugueses nas estâncias espanholas.52
O viajante, ao se referir à independência53, descreve o comportamento do
gaúcho tal qual delineado pelo português José de Saldanha, porém denuncia
também a conduta dos portugueses diante dos espanhóis, quando diz que utilizam
dos mesmos artifícios dos gaúchos para roubar animais. Ou seja, Saint-Hilaire usa o
conceito de ladrão e o aplica aos próprios portugueses. Porém, uma situação pouco
anunciada, em razão da utópica autoridade mundial portuguesa no período. Nesse
caso, “Quem seriam os Bárbaros, quem seriam os civilizados?”54 Assim,
estereótipos de gaúcho criados pelos portugueses iam se desfazendo ao longo do
século XIX.
O terceiro relato de viagem analisado é o do militar francês Nicolau Dreys. Por
razões políticas, emigrou para o Brasil em 1817, e logo seguiu viagem para o Rio
50
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 160 (tradução nossa). 51
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 33. 52
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 82 (tradução nossa). 53
Independência aqui nominada não se trata do episódio ocorrido no Brasil em 22 de abril de 1822, diante de Portugal, mas dos constantes embates resultantes dos tratados entre Portugal e Espanha, frente ao Uruguai, Argentina e Extremo Sul do Brasil. 54
PRATT, op. cit., p. 86.
35
Grande Sul, permanecendo por dez anos, onde se dedicou ao comércio. Nesse
período registrou observações sobre a região, divulgando em 1839 uma das poucas
publicações em língua portuguesa da época. Em seus relatos, Dreys descreve o
gaúcho com mais detalhamento que outros. O viajante menciona os “Hábitos
aventurosos do gaúcho”55, e segue afirmando que são nômades, característica que
tinha conotação desfavorável, mas ia ganhando novo sentido com o passar do
tempo: “Do homem da natureza ao gaúcho, [...] cujos membros são designados no
Sul por essa denominação, a qual, todavia, perdeu n‟essa aplicação alguma cousa
do significado desfavorável que lhes era primitivamente inerente.” 56
O autor segue explicando os gaúchos e os compara, por vezes, com outros
povos nômades, apontando entre as principais diferenças o fato de estes não serem
vistos com mulheres. Dreys diz ainda que os gaúchos pertencem a uma sociedade
originária do contato de brancos com índios, nascem sem ordem e sem destino e
gostam de uma vida fácil e de perfeita liberdade.57 Vivem às margens do Rio da
Prata, entre Montevidéu e todo o território banhado – Paraguai, Paraná e Uruguai –,
servindo de peões em algumas charqueadas. O viajante ainda descreve que,
embora não tenham moral social, respeitam “a propriedade de quem lhes faz
benefício ou de quem os emprega, ou neles deposita confiança”58.
Em razão de ter permanecido no Rio Grande do Sul por dez anos, é possível
perceber que Dreys demonstra maior conhecimento sobre o gaúcho, já que o
descreve em longos trechos de sua publicação, narrando suas características, seus
hábitos e costumes. Há indícios de que teve maior proximidade com os habitantes
locais, embora culturalmente se distanciassem. Com base em seus escritos se pode
perceber que o gaúcho estava aos poucos se integrando na sociedade, passando a
trabalhar nas estâncias. Por consequência, perdia paulatinamente a conotação
negativa.
Arsène Isabelle, naturalista francês que viajou pelo Rio Grande do Sul, pela
Argentina e pelo Uruguai entre 1830 e 1834, relata que “os habitantes do campo ou
gaúchos [...], em muitos aspectos, podem ser classificados entre os beduínos de
55
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 148. 56
Ibidem, p. 191. 57
Ibidem, p. 192. Sobre aspectos da genética dos gaúchos, ver tese doutoral de Andréa Rita Marrero. A pesquisadora reforça descrição de Nicolao Dreys. MARRERO, A. R. História genética dos gaúchos: dinâmica populacional do sul do Brasil. Tese (Doutorado em Genética e Biologia Molecular), Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. 58
DREYS, op. cit., p. 191-192.
36
Argel, os sertanejos e mamelucos do Brasil e, mesmo, entre os zambos da
Colômbia”59. A “paixão classificatória” dos viajantes, como explica Flora Sussekind60,
acaba resultando em comparações e reafirmando o distanciamento cultural. Porém,
nesses mesmos relatos é possível verificar que o autor lhes atribui valores ao relatar
características específicas: “[...] os homens do campo, chamados gaúchos, são tão
audaciosos, intrépidos, infatigáveis a cavalo.”61 Ou seja, aos poucos, as
considerações acerca do gaúcho vão se transformando.
Em 1845, o comerciante belga Alexandre Baguet, em passagem pelo Sul do
Brasil, declarou que, diante do que os viajantes tinham relatado sobre aqueles que lá
habitavam, pensou que talvez nunca mais fosse rever seus amigos, pois haviam
descrito os campos do Rio Grande, erroneamente, como refúgio de bandidos dos
quais raramente se escapa. Entretanto, segundo o autor, “por ali se podia viajar com
certa segurança”62.
Nesse mesmo período, em 1850, Thomas Jéferson Page, oficial da marinha
norte-americana que dirigiu uma expedição enviada para explorar o Rio da Prata e
seus afluentes, descreveu o gaúcho como um habitante natural do Sul, experiente
com cavalos e com o laço, um homem livre e independente. Thomas Jerferson
registra que, em sua estada, estava gostando da independência selvagem da vida
gaúcha.63 Corrobora sua declaração Luís Filipe Maria Fernando Gastão, conhecido
como Conde d‟Eu64, que esteve no Rio Grande do Sul em 1865, por ocasião da
Guerra do Paraguai, onde deixou registrado em seu diário de viagem que os
gaúchos eram os habitantes comuns do Sul, da mesma forma como cita Page.
59
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p 111. 60
SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 112. 61
ISABELLE, op. cit., p. 84. 62
BAGUET, Alexandre. Viagem ao Rio Grande do Sul. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Paraula/ Edunisc, 1997, p. 23. 63
PAGE, Thomas Jefferson. La Plata, the Argentine Confederation and Paraguay. London: Trubiner & Co., 1859, p. 44-46. 64
Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans e Saxe-coburgo-Gota, o Conde d‟Eu, tornou-se príncipe imperial consorte do Brasil por seu casamento com D. Isabel Cristina Leopoldina de Bragança. Em 1865 estava em viagem de núpcias quando, por ocasião da Guerra do Paraguai, tropas paraguaias invadiram a Argentina e, logo depois, a Província do Rio Grande do Sul. Após a partida do imperador para a região invadida, Conde d‟Eu, recém-chegado da Europa, também seguiu para o sul e, em sua viagem, fez anotações do seu dia a dia, que posteriormente seriam publicadas com o título Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.
37
As ocupações rio-grandenses por meio de fazendas se efetivaram durante
todo o século XIX, principalmente após a definição das fronteiras.65 Logo, muitos
gaúchos foram contratados, convertendo-se em peões ocasionais ou permanentes
das estâncias, por sua experiência com o campo.66 O gaúcho se transformava em
reserva de mão de obra, e o proprietário podia recrutar os homens de que
necessitasse.67 Dreys descreve que “a estância é servida ordinariamente por um
capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros
escravos, outras vezes, e mais comumente, são índios ou gaúchos assalariados
[...]”68. Ou seja, os nômades, descritos inicialmente como gaúchos ladrões do
campo, adequaram-se à realidade imposta pelos europeus, da mesma forma que
haviam se adaptado à realidade anterior.
Com o passar do tempo, os relatos apresentaram alterações no significado do
termo gaúcho. Entre os diferentes motivos, é possível constatar que o próprio
contexto histórico proporcionou esse deslocamento. O choque cultural dos primeiros
viajantes portugueses que, ao chegarem a um espaço que tinham como seu,
depararam-se com povos já ali estabelecidos lhes despertou a necessidade de se
autorrepresentarem diante do contexto de subordinação69, refletindo na classificação
inferior do outro.
No entanto, houve outras condicionantes que contribuíram para que o gaúcho
gradativamente se transformasse no personagem-herói, representante de uma
identidade regional. Fatos para além dos relatos dos viajantes, que escreveram sob
a perspectiva de contextos históricos específicos de cada época e cultura. A
participação dos gaúchos em diferentes guerras e revoluções, a necessidade de
identidade após a independência do Brasil e a definição da fronteira trouxeram à
tona o personagem que melhor representava o Sul do Brasil. Nesse sentido,
principalmente durante o século XIX, a literatura iniciou a sua projeção no universo
da representação identitária.
65
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Arquitetura das estâncias e fazendas do Rio Grande do Sul: distribuição interior e gênese. Arqtexto. Revista do Departamento de Arquitetura e do Propar. Porto Alegre, nº 3-4, 2003, p. 111. 66
DUTRA, Cláudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002, p. 26. 67
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 423. 68
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão EDIPUCRS, 1990, p. 94. 69
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 30.
38
Enquanto os viajantes dos séculos XVIII e XIX retratavam o que viam, a figura
de um gaúcho estereotipado era cuidadosamente construída, especialmente a partir
da segunda metade do século XIX, quando já havia participado de guerras e
revoluções e estava, aos poucos, integrando-se na “civilização” imposta pelos
europeus. Ou seja, ocorre um amplo processo de resgate da sua figura, agora como
representação identitária, sobretudo por meio da literatura, trazendo um gaúcho
idealizado como herói.
Com as fronteiras demarcadas, teve início um intenso movimento imigratório,
e novamente os colonizadores europeus, imbuídos de uma cultura letrada,
chegariam para compor um mosaico de culturas. Era necessário empoderar aqueles
que aqui estavam, criar uma identidade cultural que fosse percebida como nativa,
mas apreciada e valorizada pelo outro. Reunir um conjunto de características
culturais específicas da região, o regionalismo, e não ficar à margem da cultura do
colonizador. Nesse sentido, a construção identitária se valeu dos fatos históricos
para construir uma identidade.
O gaúcho deixa o campo da história para entrar na literatura, passando por
uma série de transformações intencionais propostas pelos literatos. Adquire
conotação de homem forte e virtuoso, possuidor de inúmeros conceitos e valores
simbólicos. Sobre essa relação entre História e Literatura, José de Barros
d‟Assunção diz que, embora a literatura não siga o rigor histórico, está diretamente
mergulhada na História, é dela que extrai boa parte de seus materiais para elaborar
suas narrativas.70 Essa narrativa apoiada no passado tem o intuito de legitimar a
origem, o destino e a configuração de uma realidade. Logo, essa representação de
gaúcho proposta pela literatura apresenta indícios históricos.
O romantismo brasileiro, gênero literário que unia o gosto pela natureza e
pela pátria, um projeto de independência cultural para o país, para além da cultura
portuguesa, buscando contribuir para a grandeza da nação, favoreceu o
fortalecimento dessa literatura romantizada e característica do Sul, apoiando a
elaboração de uma identidade por meio da representação. A literatura regional
iniciava o processo de mitificação e exaltação do gaúcho. Moacyr Flores, ao tratar
dessa questão, trabalha com o conceito de mito. Segundo autor: “O mito não é uma
mentira, nem uma falsidade, é a interpretação de uma realidade. Refere-se a uma
70
BARROS, José d‟Assunção. História e Literatura – novas relações para os novos tempos. Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades. Santo André, nº 6, maio-out. 2010.
39
existência histórica, pois ninguém consegue falar ou escrever sobre uma coisa que
não existiu.”71 Ou seja, a representação do gaúcho parte de indícios históricos.
Dessa forma, o gaúcho se tornou o modelo histórico em torno do qual os sulinos
passariam a construir a sua identidade.
O desejo desses indivíduos de se sentirem diferentes dos demais, por sua
luta pela independência, fez com que a literatura se utilizasse das batalhas vencidas
para criar essa representação, pois a necessidade de compor uma identidade
inspirada em elementos do passado supostamente heroico surge quando o ego
necessita fortificar-se.72 É uma representação construída pela memória histórica, e
nesse processo, sobretudo na literatura, a representação do gaúcho constitui
elemento formador de identidade.
Uma das características dos textos literários, e posteriormente intensificada
pelo movimento, era a utilização de vocábulos e frases específicas do universo
gaúcho, uma espécie de glossário. Desse modo, essas obras se tornavam próprias
da identidade daquele espaço, incluindo palavras específicas do universo do
gaúcho, em razão da diversidade de dialetos e idiomas, entre eles o indígena,
espanhol, português, inglês, francês, entre outros. Era necessário fixar o idioma
português e trazer à tona termos já consolidados para o universo letrado. Destacam-
se as obras de Antonio Alvares Pereira Coruja, “Colleção de Vocabulos e frases
usados na Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul no Brasil”, elaborada em
1852, e “Popularium sulriograndense e o dialecto nacional”, de Appolinario Porto
Alegre, em 1870. A primeira define o gaúcho como “índio do campo, sem domicílio
certo”73, tal como fizeram os viajantes que percorreram a região.
Em 1956 surgiria a primeira revista de caráter literário, O Guayba, que se
preocupava com a construção dessa literatura.74 Porém, havia a necessidade de
promover o universo cultural e literário – em um período marcado por guerras, era
preciso intensificar essa área. Assim, “a carência de livrarias e editoras” somada à
“presença de pessoas com instrução, pessoas que tinham domínio do código da
71
FLORES, Moacyr. Gaúcho: História e Mito. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 7. 72
JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964, p. 123. 73
CORUJA, Antonio Alvares Pereira. Colleção de Vocabulos e frases usados na Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul no Brasil. Londres: Trubner Comp - Typographia de Thomas Harrild, 1856, p. 16. 74
SILVEIRA, Cássia Daiane Macedo. Dois pra lá, dois pra cá: o Parthenon Litterario e as trocas entre literatura e política na Porto Alegre do século XIX. Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2008, p. 39.
40
cultura letrada, incluindo docentes”75, resultaram na fundação da Sociedade
Parthenon Litterario em 1868, que tinha como propósito reunir literatos e contribuir
com publicações, formações, divulgação da cultura regional, entre outros.
Fundado por Appolinário Porto Alegre e José Antonio do Vale Caldre e Fião,
entre outros jovens letrados, o Parthenon Litterario se ocupava de pequenos
projetos, de jogos de influência e de lutas por legitimidade, tratava de uma série
diversificada de assuntos que iam muito além de seus limites.76 A sociedade
estimulava um pensar intelectualizado e utilizava dos registros dos viajantes e
vestígios do gaúcho para amparar a literatura, seja por meio de sua revista mensal
ou outras obras, discursos, cursos e teatro. Segundo Guilhermino Cesar, “a nova
corrente se deixou atrair, acima de tudo, pelo passado gaúcho, procurando reviver o
guasca largado, o homem livre dos primeiros tempos da conquista, os rebeldes de
1835”77. De acordo com os líderes do movimento gaúcho de 1947, essa foi uma
entidade decisiva para o regionalismo gauchesco.78
A partir de então, muitas obras literárias surgiram tendo o gaúcho como
personagem central. Em 1870, José de Alencar, que em suas obras abordava
retratos do país, em uma tentativa de fortalecer o nacionalismo, mesmo não estando
no Rio Grande do Sul, publicou o romance O gaúcho, que apresenta um guerreiro
que luta por justiça e tem como companheiro fiel um cavalo. Embora seja
“considerada uma obra menor na literatura de Alencar integrando a fase regionalista
do autor”79, foi referência para a figura do gaúcho que se consolidou a partir de
então como representação. Outra obra de destaque dessa época foi Os Farrapos,
de Luis Alves de Oliveira Belo, publicada em 1877, que assim descreve o gaúcho:
“[...] o herói revolucionário é bom, franco, honesto e corajoso, lutando contra o vilão
castelhano, covarde e mentiroso.”80 Além de outras obras de romancistas não
menos importantes.
75
SILVEIRA, Cássia Daiane Macedo. Dois pra lá, dois pra cá: o Parthenon Litterario e as trocas entre literatura e política na Porto Alegre do século XIX. Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2008. 76
Ibidem, p. 27. 77
CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 173. 78
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 15. 79
MELO, Eduardo Silveira Cabral de. A figura histórica e ficcional do gaúcho: O Gaúcho, de José de Alencar, e Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas. Dissertação (Mestrado em Letras), PUC-RS, Porto Alegre, 2008, p. 77. 80
FLORES, Moacyr. Gaúcho: História e Mito. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 8.
41
Nesse processo de retomada dos valores históricos do passado do gaúcho,
Simões Lopes Neto, considerado um dos maiores escritores regionalistas do Rio
Grande do Sul, publicou apenas quatro livros em sua vida, porém de grandes
proporções para a disseminação do chamado gaúcho. São eles: Cancioneiro
Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913) e Casos do
Romualdo (1914), obras que despertaram a admiração dos críticos e foram por
vezes reeditadas.
Em 1916, já após a morte de Simões Lopes Neto, Olavo Bilac fez um
comentário sobre uma de suas obras em uma conferência, atestando o prestígio que
o escritor Lopes Neto havia alcançado, e em 1918 seu nome apareceria citado na
obra “Conto Brasileiro”, editada pela Biblioteca Nacional. Além de edições em jornais
e revistas, a Editora Globo reeditou, em 1926, Contos Gauchescos e Lendas do Sul,
fazendo com que o reconhecimento ao trabalho de Simões aumentasse81, e
disseminando esse personagem local por todo o Brasil.
Nas obras de Simões Lopes Neto é possível visualizar a imagem de um
gaúcho que procura demonstrar honestidade, solidariedade e fidelidade. Todos os
personagens compartilham a mesma nobreza de sentimentos e as mesmas
características, indicando uma identidade que os iguala entre si e, ao mesmo tempo,
distingue-os dos demais. No entanto, a introdução do “outro” é vista de modo
negativo. No caso, o personagem Bonifácio, um negro, abala a harmonia da
sociedade gaúcha. É preciso que o gaúcho arremesse suas boleadeiras para salvar
a sociedade. Novamente se constrói a imagem do gaúcho ordeiro, valente, enquanto
o negro é visto como desordeiro.82
Como se pode notar, as iniciativas de retomada da cultura autóctone,
incluindo a figura do gaúcho, intensificaram-se na segunda metade do século XIX,
sobretudo por meio da literatura. Historiadores, sociólogos, escritores e intelectuais
brasileiros procuravam, por meio da literatura, relacionar a cultura popular à
81
ANTUNES, Cláudia R. D. A poética do conto de Simões Lopes: o exemplo de O negro Bonifácio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 185-186. 82
Sobre a presença do negro no Rio Grande do Sul ver: MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008. No entanto, são poucas as produções sobre o negro no Rio Grande do Sul, principalmente em meio ao movimento gaúcho. Que bom seria se surgissem pesquisas sobre o tema, certamente seriam incursões excepcionais, já que é clara a ausência do negro no meio, e infelizmente não será tratado nesta pesquisa, pois, por não se tratar do objeto central desta investigação, o tema não receberia a atenção devida.
42
nacionalidade, como foi o caso de Silvio Romero83. Porém, cabe dizer que esse
movimento não era exclusividade do Rio Grande do Sul, o país buscava uma
identidade própria, almejava definir um caráter nacional, da mesma forma que os
países do Prata.
O Uruguai e a Argentina viviam um movimento semelhante e, da mesma
forma, procuravam por meio da literatura, da pintura e de outras atividades como
teatro, dança e música colocar em movimento seus temas definidos como
folclóricos, conferindo mais vivacidade às iniciativas. Dessa forma, surgiram
instituições dedicadas à organização de tais fins, a primeira delas no Uruguai, em
1894, dando início às instituições dedicadas à preservação da identidade gaúcha
idealizada na capital, Montevidéu.
Elías Regules84, jovem militante, deu início ao movimento gaúcho naquele
país, fundando a primeira instituição voltada para a representação do gaúcho por
meio de práticas institucionalizadas, a Sociedad La Criolla, de Montevidéu, em 1894,
considerada a pioneira das instituições gaúchas. Sua criação se deu em razão da
preocupação da sociedade de Montevidéu em relação à chegada massiva de
imigrantes de diversos países europeus. Sobre os motivos que impulsionaram a
criação dessa primeira instituição gaúcha, Fernando Assunção, pesquisador do
tema, em um artigo lançado em 2004 e posteriormente republicado na obra “120
años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules”, de 2014, regista:
Corria a última década do século passado. A influência do Velho Mundo se fazia sentir de forma imperativa sobre os costumes, a ponto de se aceitar sem análise tudo o que vinha com etiqueta europeia. O ambiente urbano vestia a última moda de Paris, acompanhavam os modismos, francês, comentavam sobre literatura, música, pintura e tudo o que se referia as manifestações de arte europeia. As coisas próprias da terra, as mais puras tradições nativas, as recordações dos homens do passado, se olhavam com indiferença e com desprezo, as sombras da influência estrangeira
83
SCHNEIDER, Alberto Luiz. Silvio Romero - Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p. 181. 84
Elías Regules nasceu em março de 1861 e viveu sua infância no campo, compartilhou da vida rural com gaúchos e, segundo Raúl Iturria, “aprendeu com eles a liberdade embriagadora do campo, o valor que o cavalo agrega ao cavaleiro e realizou todos os trabalhos rurais, próprios de um menino do campo, por isso se tornou um defensor do tradicionalismo gaúcho. Jovem foi morar em Montevidéu e, em 1879, ingressou na Universidad de la Republica, se formando em medicina em 1893, onde posteriormente foi secretário, professor, Vice Decano, Decano, chegando em 1922 a Reitor da instituição. Além de muitos projetos dedicados à população, que projetou Elias Régules, inclusive internacionalmente”. ITURRIA, Raúl. Elías Regules: de La Tapera a La Criolla. San Martin: Ediciones de La Plata, 2014.
43
chegavam a obscurecer as próprias glórias do nosso passado heroico.85
O autor ainda acrescenta que os jovens da cidade não tinham uma autêntica
personalidade, aceitavam as maiores extravagâncias estrangeiras e renegavam com
ódio tudo o que fosse local, que ganhava ares de inferioridade e depreciação. Nesse
sentido, os circos criollos, uma espécie de teatro onde se encenavam temas
literários protagonizados pelo gaúcho, estavam em ascensão na Argentina e no
Uruguai. Reunindo simpatizantes, sob a coordenação de Elías Regules, iniciaram
uma campanha de reinvindicação pelas coisas da terra e, no dia 24 de maio de
1894, programaram uma festa campestre. A programação contou com um desfile a
cavalo que teve como ponto de partida o centro de Montevidéu, com destino a uma
chácara. Participaram do evento simpatizantes que, usando vestimentas específicas,
montaram em seus cavalos, a fim de representar o gaúcho.86
Figura 1 - Paseo Criollo, 24 de maio de 1894 - Montevidéu.87
85
ASSUNÇÃO, Fernando. Dr. Elías Regules: prócer de la civilidad oriental. In: SOCIEDAD LA CRIOLLA. 120 años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules. Montevideo: Sociedad La Criolla, 2014, p. 5 (tradução nossa). 86
SOCIEDAD LA CRIOLLA, op. cit., p. 9. 87
Arquivo Sociedad La Criolla, Montevidéu, Uruguai.
44
A imagem, além de representar homens vestidos de gaúcho, com palas,
botas e bombachas, reunião de pessoas com objetivos afins, apresenta a
preocupação desses sujeitos em deixar registrado esse momento. Ao pararem a
atividade para congelar a imagem por meio de uma fotografia, fica clara a intenção
de cristalizar uma memória, que reside nas aparências. Ocorre que essas imagens
pouco ou nada informam àqueles que nada sabem do contexto em que se origina tal
ato.88 Dessa forma, vê-se a preocupação em registrar o que foi o evento, bem como
a data, na própria imagem fotográfica. O olhar dos retratados somado à descrição
conversam com o receptor da imagem, conferindo informações mais vívidas sobre o
que foi o evento.
Durante a festa foi proposta a fundação da primeira instituição já citada, que
teria como “finalidade o culto dos costumes nacionais e tudo o que tivesse relação
com as origens da pátria. A ideia foi acolhida com aplausos, e todos foram
convidados para que no dia seguinte, 25 de maio, se reunissem no Circo Podestá”89,
a fim de oficializar tal fato. Os documentos ainda registram que o local foi escolhido
levando em conta que era nesse lugar que o gaúcho estava sendo mais aplaudido,
por conta dos constantes espetáculos com esse tema nos circos criollos, que
encenavam cenas do gaúcho.
Dessa forma, no dia 25 de maio de 1894, foi registrada a ata de fundação da
entidade proposta, ou seja, foi criada oficialmente a primeira instituição gaúcha.
Sobre a iniciativa, afirma Pablo Lacasagne que o gaúcho foi a “figura representativa
do campo que se transformou nos olhos da juventude do país, [...] impedindo que o
país se transformasse em uma campanha no estilo europeu, de acordo com os
projetos da classe dirigente do país”90.
No mesmo ano, o primeiro ato público, após o registro da instituição, consistiu
em um desfile equestre, no dia 2 de setembro de 1894, contando com a participação
de 250 pessoas91, entre cavaleiros e prendas92. No entanto, a iniciativa foi polêmica,
88
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 164. 89
SOCIEDAD LA CRIOLLA. 120 años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules. Montevideo: Sociedad La Criolla, 2014, p. 10. 90
LACASAGNE, Pablo. El gaucho en Uruguay y su contribución a la literatura. Revista Interamericana de Bibliotecología. Medellín, v. 32, nº 1, june 2009 (tradução nossa). 91
BARREIRO, Margarita Carámbula de. Elias Regules: 1861 - 1929. Montevideo: Hospital Maciel, 1988, p. 10 (tradução nossa). 92
Prenda: Jóia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha. Ver: NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 395.
45
os jornais criticaram o desfile com ironia, e Elías Regules defendia o ato com
publicações. O jornal La Razón afirmava “que el gaúcho a muerto”, enquanto
Regules defendia “la presencia palpitante del gaúcho”, em texto intitulado
“Intoxicación Exótica”, referindo-se à cultura europeia que permeava a sociedade
uruguaia da época. Com o passar dos anos, a iniciativa foi sendo consolidada, e
outras instituições foram surgindo.
No Brasil, em 1898, foi fundado em Porto Alegre o Grêmio Gaúcho, entidade
voltada a semelhantes práticas com referências gaúchas. Por meio de festas,
desfiles de cavaleiros, dança, música, palestras e cursos, trazia à tona a figura do
gaúcho, já constituída pela literatura. Fundada por João Cezimbra Jacques, essa
agremiação foi o ponto de partida para as próximas instituições, sobretudo após
1947, sendo inclusive seu fundador considerado patrono do movimento gaúcho.93
O Grêmio Gaúcho de Porto Alegre disseminava referências do gaúcho a fim
de relembrar e elogiar acontecimentos, ou seja, havia a intenção de buscar um
passado idealizado como forma de identidade, sempre selecionando o melhor desse
passado, o qual podemos chamar de atemporal, com espaço de tempo variável. Ao
escrever ou ler, seja história ou literatura, vê-se uma tentativa de penetrar nesse
mundo, buscando um “efeito de real” que, por meio do imaginário, procura
representar outro contexto que se viabiliza segundo distintas hierarquias de
verdade.94
No período posterior à fundação dessa primeira instituição, entre 1898 e
1943, surgiram outras com objetivos semelhantes, respeitadas por escritores do
movimento gaúcho e tidas como iniciativas isoladas, consideradas antecedentes
históricos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, entre elas: a União Gaúcha de
Pelotas, fundada em 1899, tendo como líder o escritor regionalista e literato Simões
Lopes Neto; a Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense; e o Clube Farroupilha de
Ijuí.95 Essas últimas fundadas em áreas de colonização alemã e italiana, em 1938 e
1943.96
93
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 17. 94
PESAVENTO, Sandra J. Fronteiras da ficção: diálogos da história com literatura. Anais do XX Simpósio da Associação Nacional de História. Florianópolis, 8 jul. 1999, p. 821. 95
SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG, 2008, p. 179. 96
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil - Nação. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 103.
46
Cabe, pois, registrar que os fatores que contribuíram para a criação das
instituições gaúchas nesse período, em especial as duas últimas, eram revestidos
de intenções individuais, e não coletivas, conforme objetivavam os literatos com
suas obras que evocavam um Brasil com características específicas, porém próprias
e unas. Parece acertado dizer que o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial
foram grandes motivadores para o nascimento das referidas instituições.
Diferentemente dos períodos anteriores, dessa vez os imigrantes tentavam,
forçadamente, enquadrar-se nesse estereótipo. Nesse período o país vivia um
momento singular no que se refere às culturas e identidades regionais, o Estado
Novo decidira acabar com as iniciativas regionalistas, proibindo todos os símbolos
que não fossem os federais.97 A fundação da Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense,
em 1938, em pleno Estado Novo, em região de colonização alemã (Novo
Hamburgo), foi uma iniciativa de 22 amigos de origem alemã que, de acordo com a
ata de fundação, tinham como objetivo fazer exercícios a cavalo e simbolizar o
gaúcho primitivo, entre outros. Ao contrário das demais instituições, essa vivia as
tensões socioculturais emergentes, acentuadas com o início da campanha de
nacionalização, pois possuía uma ideologia e um discurso do “perigo alemão” em
razão da Segunda Grande Guerra98, o que justificou a sua fundação.
Segundo o escritor e seguidor do movimento gaúcho Antônio Augusto
Fagundes, a criação da Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense foi uma tentativa de
defesa no contexto da Segunda Guerra Mundial:
Na quarta década do século XX, no bairro de Lomba Grande, em São Leopoldo, um grupo de moços de sobrenome alemão via com preocupação o sucesso da pregação nazista entre a população local. [...] Era a doutrina nazista pregada pelos seus diplomatas em Porto Alegre o jus-sanguinis, o direito do sangue, sustentando que todo cidadão com sangue alemão nas veias eram alemães de fato e de direito. Com isso, a Alemanha chegou a levar para Berlim e integrar ao exército nazista jovens nascidos no Vale do Rio dos Sinos. Mas os moços teuto-gaúchos de Lomba Grande disseram não: nós somos brasileiros, nós somos gaúchos, nós não somos alemães. Com forte sotaque colonial e sem conhecer muito bem as tradições gaúchas, deram ao Rio Grande uma das mais lindas lições de gauchismo, fundando a Sociedade Gaúcha Lomba-grandense em 31 de janeiro
97
GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 135. 98
Ibidem, p. 145-155.
47
de 1938, que existe até hoje, linda e forte e plenamente integrada ao tradicionalismo que o 35 CTG só irá iniciar dez anos mais tarde.99
O medo dos imigrantes alemães diante da guerra fez com que abdicassem da
sua nacionalidade, já que o momento era de tensão, “a preocupação dos imigrantes
era garantir a sua sobrevivência econômica, social, cultural e física diante do
processo de nacionalização que os pôs em perigo”100. O objetivo dessas entidades
era o culto à tradição gaúcha, à cultura do Rio Grande do Sul e a um passado
idealizado por eles, que iria, de certa forma, proteger aqueles que o seguissem. E
assim outras surgiram, posteriormente, fundadas por europeus com os mesmos
objetivos, como foi o caso do Clube Farroupilha, em 1943.
O que aconteceu no período da nacionalização, a partir dos anos de 1930 e
especialmente durante a Segunda Guerra, quando se intensificou a perseguição aos
imigrantes, sobretudo os de origem alemã, foi a necessidade de renegociar a
identidade étnica e as suas práticas socioculturais de forma imediata, em nome da
construção de uma memória pública nacional, pois precisariam se adequar às ideias
e circunstâncias impostas pelo governo e pela opinião pública nacional.101 Segundo
René Gertz, a região colonial alemã abandonaria aos poucos sua hegemonia
conservadora, como forma de buscar soluções para seus problemas fora do seu
antigo habitat.102 Ou seja, principalmente os filhos desses imigrantes sentiram
necessidade de se adequar à nova pátria, integrando-se na nova cultura, e as
instituições gaúchas naquele momento seriam a solução, pois os incluiria no cenário
nacional. Assim, pode-se afirmar que as instituições gaúchas, impulsionadas pela
Segunda Grande Guerra, contribuíram para o enfraquecimento do
Deutschbrasilianertum – expressão alemã que designa o duplo pertencimento, à
nação alemã e ao Estado brasileiro.103
Sobre as iniciativas de reviver o gaúcho nesse período, René Gertz registra:
“A fundação da revista Província de São Pedro, em 1945, mostrou que o
tradicionalismo gaúcho estava bastante arraigado e que nesse campo o Estado
99
FAGUNDES, Antonio Augusto. Tradicionalismo. Caderno de História. Porto Alegre, nº 22, 2005. 100
NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no oeste de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 2009, p. 20. 101
Ibidem, p. 20. Ver ainda sobre os italianos: WEBER, Regina. O avanço dos “italianos”. História em Revista. Pelotas, v. 10, n. 10, 2017. 102
GERTZ, René E. Os cidadãos teuto-gaúchos. In: FISCHER, Luís A.; GERTZ, René E. (Orgs.). Nós os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1998, p. 180. 103
SCHNEIDER, Alberto Luiz. Silvio Romero - Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p. 175.
48
Novo não conseguira realizar grandes modificações.”104 Embora algumas das
instituições tenham desaparecido, três delas permaneceram e continuam em
funcionamento e integradas ao atual movimento gaúcho. São elas: União Gaúcha de
Pelotas, Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense em Novo Hamburgo e Clube
Farroupilha de Ijuí, todas no Estado do Rio Grande do Sul.105
104
GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 136-137. 105
SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG, 2008, p. 179.
49
CAPÍTULO II – O MOVIMENTO TRADICIONALISTA E O VESTIR GAÚCHO
2.1 TRADIÇÃO "ELETIVA" GAÚCHA E FOLCLORE: A CONSOLIDAÇÃO DA
IDENTIDADE IDEAL
Em 1947, passada a fase das proibições regionalistas dos estados, um grupo
reinicia o culto ao gauchismo no Rio Grande do Sul, trazendo à tona práticas que
evocam o gaúcho. O movimento emergia de forma ainda mais intensa, já que dessa
vez, além do apoio do estado, foi impulsionado por jovens ativos e influentes
politicamente. Essa nova fase inicia-se com a criação de um departamento
destinado ao culto das tradições gaúchas, vinculado ao grêmio estudantil do Colégio
Estadual Júlio de Castilhos, uma importante escola da cidade de Porto Alegre, no
Rio Grande do Sul. Nesse contexto, desponta João Carlos Paixão Côrtes, jovem
estudante, como idealizador do movimento nesse período.106
Sobre a criação desse departamento, Côrtes relata, no livro intitulado “Origem
da Semana Farroupilha: Primórdios do Movimento Tradicionalista”, que os jornais de
1947 noticiaram a iniciativa dizendo:
O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade da perpetuação das tradições gaúchas, fundou, aliando aos seus já numerosos departamentos o das “Tradições Gaúchas”, procurando assim preservar esse legado dos nossos antepassados [...].107
De acordo com Antônio Augusto Fagundes, tradicionalista gaúcho108,
integrante do movimento e autor de diversos livros sobre essa fase, nesse período
“O Rio Grande do Sul, como o Brasil inteiro, está sob intensa influência cultural
estrangeira. O gaúcho é ignorado e até desprezado”109, justificando a retomada
dessa figura como referência identitária para a cultura do Sul do Brasil. Vê-se que os
sinais de modernidade, tidos pelo grupo como “bombardeio cultural estrangeiro”,
impulsionaram o retorno ao passado na busca por elementos considerados
tradicionais.
106
CÔRTES, João Carlos Paixão. O Rio Grande do Sul canta e dança com Paixão Côrtes. Notas curriculares. Caxias do Sul: Lorigraf, 2005, p. 188-190. 107
Ibidem, p. 188-190. 108
O seguidor e/ou adepto do movimento gaúcho, nessa fase, é intitulado pela instituição como “Tradicionalista gaúcho”. 109
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de Tradicionalismo Gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1994, p. 19.
50
Nesse sentido, é possível visualizar a relação de conflitos que há entre
tradição e modernidade. A esse propósito, Jacques Le Goff denomina de
“modernização conflitual, que, atingindo apenas uma parte da sociedade, ao tender
para o „moderno‟, criou conflitos graves com as tradições antigas”110, refletindo na
mobilização para a organização em comunidades. Zygmunt Bauman, seguindo a
teoria de Benedict Anderson, concorda que “a modernidade é também uma era de
totalidades supralocais, de „comunidades imaginadas‟ orientadas ou aspiradas de
construção de nações – e de identidades culturais compostas, postuladas ou
construídas”111, nesse caso eletivas. Ainda segundo Antônio Augusto Fagundes, “foi
o primeiro grito de revolta da mocidade gaúcha em defesa das nossas tradições e
que tem larga repercussão”112.
O primeiro ato oficial do grupo à frente do Departamento das Tradições
Gaúchas do colégio foi a organização de um evento denominado Ronda Gaúcha113.
O evento estava programado para acontecer entre os dias 8 e 20 de setembro de
1947, porém foi antecipado para o dia 5. Com a intenção de transformá-lo em um
ato cívico, os jovens desejavam retirar uma centelha do fogo simbólico da Pira da
Pátria para iluminar um candeeiro típico durante a Ronda, sendo que, na ocasião da
autorização pelo presidente da Liga da Defesa Nacional, foram convidados para
escoltar a chegada dos restos mortais de David José Martins Canabarro, que
estavam sendo transportados do interior para o Panteão Rio-grandense do
Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, na capital do estado, Porto Alegre. As
solenidades foram então antecipadas para esse dia.
Após a chegada da urna funerária a Porto Alegre, conduzida pelo avião da
Força Aérea Brasileira - FAB, um grupo de oito jovens, denominado “Piquete da
Tradição”, com cavalos cedidos pelo comando do Regimento Osório do Exército
Nacional, acompanhou o cortejo até o cemitério. Esse foi o primeiro evento oficial
dos jovens, e viria a ser oficialmente considerado o início do movimento em 1947.
Registros permitem verificar que os participantes exibiam vestuário característico de
110
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 191. 111
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 44. 112
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 41-42. 113
Nome que remete a cuidados com o fogo simbólico retirado da pira da pátria pelos jovens. Ou no sentido literal da palavra refere-se a ao serviço de vigilância a que se submete a tropa de gado nos pousos ou sesteadas. Vigília, pastoreio. Lugar onde pasta ou pernouta a tropa de gado a vigilância dos tropeiros. NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1993, p. 436.
51
gaúcho114, um dos principais elementos das tradições gaúchas tal como
conhecemos atualmente, propagadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho.
Figura 2 - Grupo de oito jovens em trajes gaúchos,
denominado “Piquete da Tradição”.115
Esse evento marcou o início do movimento, e sua programação se estenderia
por doze dias ininterruptamente, com músicas, poesias, fandango, concursos e
discursos. Cabe destacar a preocupação com a vestimenta logo no primeiro evento.
Paixão Côrtes descreve em sua obra que o jornal Correio do Povo publicou
naqueles dias a seguinte notícia:
[...] antes de ser extinto o fogo da Pátria, os cavaleiros deste Departamento transportaram até o velho casarão do Colégio estadual Júlio de Castilhos, uma centelha do fogo que foi inflamar o “candeeiro” armado no saguão do prédio. O fogo da Pátria ficará, desta maneira, presente no Júlio de Castilho até o dia 20 de setembro vindouro, de onde será transportado também a “pata de cavalo” até o local onde se realizará um grande baile das Tradições Gaúchas, devendo ser extinto às 24 horas do dia mencionado. [...] Ainda no baile de 20 de setembro serão oferecidos finos prêmios aos
114
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 49-68. 115
Ibidem, p. 65.
52
tipos mais sugestivos que se apresentarem em trajes característicos do nosso pampa.116
No ano seguinte, 1948, com o início do ano letivo, os jovens voltaram às aulas
com mais um objetivo em mente, fundar uma associação. Segundo o escritor,
historiador e advogado Barbosa Lessa, que passou a integrar o grupo nesse mesmo
ano, “não nos animavam preocupações literárias, mas sim o empenho
associativo”117. A partir dessa iniciativa, teve início a formação de novas entidades,
sendo a primeira delas o “35 CTG” Centro de Tradições Gaúchas, fundado em 24 de
abril de 1948. A entidade tinha por objetivo não só organizar festas e bailes, mas
ser, segundo Cyro Dutra Ferreira, um dos jovens do grupo, “uma sociedade onde
também se estudasse e se divulgasse, de todas as formas ao nosso alcance, as
tradições gaúchas”118.
É possível compreender a “tradição gaúcha” a que se refere o grupo a partir
da teoria do historiador Javier Fernández Sebastián, que a nomeia como “tradição
eletiva”, principalmente quando surgem os estatutos das instituições, onde ficam
registrados os elementos da história que foram selecionados como tradicionais. O
termo é reforçado por Fernando Nicolazzi, que, ao citar Sebástian, define tradição
“menos como uma herança recebida dos seus antepassados e mais como um
legado histórico imaginado e elaborado pelo próprio legatário”. Nicolazzi ainda expõe
que há uma inversão, e exemplifica da seguinte forma: “[...] aqui é o filho quem gera
o pai, já não se trata apenas de um determinado presente sendo afetado por um
determinado passado, mas sim, e, sobretudo, da forma pela qual este pode ser
afetado por aquele presente.”119 Utilizando de exemplo semelhante, Gérard Lenclud
descreve que, “ao contrário dos pais engendrarem os filhos, os pais nascem dos
filhos”120.
A esse respeito, Gérard Lenclud aponta a tradição como um itinerário
constituído pelo grupo humano que vai do presente ao passado, sendo uma
“retroprojeção” que institui uma “filiação inversa”. Ou seja, “não é o passado que
116
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 50. 117
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985, p. 57. 118
FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG. 4ª ed. Porto Alegre: Edições Renascença, 2005, p. 46. 119
NICOLAZZI, Fernando. História da historiografia e temporalidades: notas sobre tradição e inovação na história intelectual. Almanack. São Paulo, nº 7, p. 27-32, 2014, p. 31. 120
LENCLUD, Gérard. A tradição não é mais o que era... Sobre as noções de tradição e de sociedade tradicional em etnologia. História, Histórias. Brasília, v. 1, nº 1, 2013, p. 158.
53
produz o presente, mas o presente que molda o passado. A tradição é um processo
de reconhecimento de paternidade”121.
Segundo Lessa, o estatuto dessa primeira instituição gaúcha consignava
entre suas finalidades a de “zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul, sua história,
suas lendas, canções, costumes, etc. [...]”122. Ou seja, foram eleitos os elementos do
passado que fariam parte dessa “tradição”. Sobre os mecanismos de eleição,
seleção ou apropriação, são justificados como aqueles elementos que fizeram parte
do passado do gaúcho, que podem ser extraídos dos diários de viagem, das
aquarelas, da literatura e da memória. É possível verificar que há uma seleção de
elementos de diferentes períodos da história, reinterpretados e utilizados no
presente como tradição.
A questão fica mais clara nas palavras de Paixão Côrtes, quando afirma que o
grupo seguiu estudando e selecionando as práticas que iriam fazer parte desse
movimento pela tradição gaúcha:
Procurávamos assim mentalizar a figura ideal do homem do campo rio-grandense, acima de nossas reduzidas vivências municipais e além dos limites de nossa própria época: buscávamos aquela síntese, se possível, aquele ponto de encontro entre passado e presente, em dimensão estadual.123
Com o objetivo de rememorar os usos e costumes do gaúcho, foram sendo
incorporados com o passar do tempo inúmeros elementos do passado, como a
indumentária, a poesia, a literatura, monumentos, danças, músicas, entre outros,
como elementos tradicionais, a fim de estruturar e legitimar a instituição gaúcha. De
acordo com Sandra Pesavento,
[...] um estereótipo sobre o Rio Grande e seu povo é extremamente significativo para que se possa apreciar o espaço de atuação de um grupo na sociedade, instrumentalizando ideologicamente uma noção de história para legitimar sua posição de predomínio e hegemonia na sociedade.124
121
LENCLUD, Gérard. A tradição não é mais o que era... Sobre as noções de tradição e de sociedade tradicional em etnologia. História, Histórias. Brasília, v. 1, nº 1, 2013, p. 158. 122
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985, p. 58. 123
Idem; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 124
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Gaúcho: mito e história. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 24, nº 3, 1989, p. 55.
54
O fortalecimento desse processo de recriação era importante no sentido de
incluir o grupo em uma sociedade urbana que vivia as novidades do pós-guerra,
quando a propaganda da cultura norte-americana chegava à cidade, com revistas
em quadrinhos, o cinema, o cowboy e uma quantidade de heróis estrangeiros.125 Os
Centros de Tradições Gaúchas transformavam-se no melhor ambiente de lazer para
os mais conservadores e regionalistas. As pessoas eram atraídas principalmente
pelo imaginário em relação aos elementos que compõem tal tradição, como a
indumentária, a música, a poesia, a dança, a literatura e demais práticas culturais
institucionalizadas pelo movimento.
Tais elementos apresentam ao indivíduo características culturais de outras
gerações perdidas no tempo. Por meio de simbologias com referências do passado
histórico do gaúcho, os adeptos revivem outros tempos, por meio do imaginário. A
própria instituição, denominada Centro de Tradição Gaúcha, foi definida por seus
fundadores como uma “Estância Simbólica”126, simulando uma hierarquia em que os
cargos foram recebendo nomes pouco convencionais, como Galpão para designar a
sede da instituição, Patrão para chamar o presidente do CTG, Capataz para o vice-
presidente, entre outras nomenclaturas.127
Dessa forma, a instituição gaúcha representa a organização de uma Estância,
na qual, em situações reais, o gaúcho era um simples peão empregado, conforme
descreve Nicolau Dreys.128 Essa aproximação com a Estância por meio de
nomenclaturas dentro dos Centros de Tradições Gaúchas, ainda que pelo
imaginário, permite aos associados se colocarem no mesmo grau de igualdade. O
objetivo das simbologias era aproximar-se de um passado, que poderia ter sido
diferente, não fosse a intervenção do colonizador. Nas instituições o gaúcho, ainda
que apenas uma representação, pode ocupar o cargo que deseja dentro da
“Estância”, mesmo que somente no imaginário criado pelo movimento gaúcho.
Da mesma maneira, a poesia e a música trazem elementos históricos
selecionados de um gaúcho representativo, ideal. As danças incluem coreografias
com sapateios, algumas dançadas exclusivamente por homens reproduzindo
125
FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 42. 126
Estância é um termo utilizado desde o século XIX no Rio Grande do Sul para designar fazendas. 127
SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 115-116. 128
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão/ EDIPUCRS, 1990, p. 94.
55
disputas, incluindo facões, representando o herói corajoso. Porém, em sua maioria,
quando incluem mulheres, o respeito ao par se sobrepõe à coreografia.
E, continuando a saga em busca da preservação dessa tradição, os Centros
de Tradições Gaúchas bem vistos e começaram a se proliferar. Entre abril de 1948 e
junho de 1954 foram criadas 38 instituições em todo o estado do Rio Grande do Sul
e, como consequência, surgiram divergências quanto aos seus objetivos, seus
discursos e suas práticas. Ou seja, era necessário discutir o caminho que iriam
seguir, definindo diretrizes ideológicas, já que dessa vez a sociedade estava
aderindo ao movimento gaúcho, e a tendência era expandir o número de Centros de
Tradições Gaúchas.
Na tentativa de reestruturar as instituições, em 1954, organizou-se o I
Congresso Tradicionalista, considerado a maior assembleia do movimento gaúcho,
evento que passou a ser realizado anualmente, em que são discutidos e decididos
os mais importantes temas.129 Entre os assuntos abordados merece destaque um
documento, o qual designaram de tese, intitulado “O Sentido e o Valor do
Tradicionalismo”, que norteou a atuação das instituições gaúchas, elaborado e
apresentado por Barbosa Lessa, integrante que contribuiu desde a fundação das
primeiras instituições. Sobre o documento (ver Anexo I), Manoelito Carlos Savaris130
diz:
Barbosa Lessa apresentou ao plenário daquele primeiro Congresso a tese “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”. Esse documento é considerado até os dias atuais, a base ideológica mais clara, simples e profunda do Movimento Tradicionalista.131
O documento atenta para a importância de viver coletivamente preservando
as culturas locais, evitando-se a desintegração cultural, termo utilizado para designar
a aculturação promovida pela influência de outras culturas, o que se tornaria danoso
para a tradição recém-organizada. O texto apresenta teorias de sociólogos como
129
LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... Responsabilidade Social - Reflexões. Porto Alegre: MTG, 2004, p. 182. 130
Manoelito Carlos Savaris foi presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul, presidente do Instituto gaúcho de Tradição e Folclore e presidente da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. 131
SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG , 2008, p. 190.
56
Donald Pierson e Ralph Linton132, da Escola de Chicago, possivelmente a fim de
produzir legitimidade e conferir cientificidade ao movimento gaúcho, já que pouco
fundamentava suas publicações, valendo-se principalmente de pesquisas de campo,
e começava a ser visto como “carnavalesco”.
Quanto a Ralph Linton, este foi um dos primeiros sociólogos a iniciar uma
tentativa sistemática de utilizar teorias e técnicas psicodinâmicas na análise de
dados etnográficos. Vivenciou a recíproca atração entre antropologia e psicologia na
primeira metade do século XX133, demonstrada no citado documento quando expõe
sobre a necessidade psicológica das pessoas de se integrarem a um grupo local,
afirmando ainda que o tradicionalismo age dentro da psicologia coletiva, envolvendo
as pessoas.
Ao citar Donald Pierson134, o texto vai ao encontro das tradições eletivas
propostas por Javier Fernández Sebastián e, ao mesmo tempo, remete à última
citação da epígrafe deste capítulo, em que Rubens Luiz Sartori se autodenomina
“soldados, à causa maior”. Traz o texto:
Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas ideias, duas coisas podem ocorrer. Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aqueles traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam benéficos à coletividade. Se, porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titubear entre as crenças e valores mais antagônicos.135
Ou seja, se o patrimônio tradicional invadido for suficientemente forte, ele
poderá inclusive se beneficiar da cultura externa, integrando novos elementos à sua.
Dessa forma, é lícito supor que a tradição é construída a partir de elementos
selecionados do passado, e também do presente. No entanto, se o grupo não estiver
coeso e forte, a invasão cultural externa poderá pôr em risco a cultura organizada.
132
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954, p. 2. 133
GAUER, Ruth M. Chittó. A fundação da norma para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 116. 134
Ver em: GUIMARÃES, Rafael Estevão Marão. Os estudos de comunidade e urbanos coordenados por Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Cadernos CERU. São Paulo, v. 22, nº 1, p. 221-238, jun. 2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/ 29473>. Acesso em: 26/11/2017. 135
LESSA, op. cit., p. 3.
57
Nesse caso, são necessários “soldados” para defender o conjunto de elementos
organizados da tradição. O que justifica a necessidade da organização institucional,
realização de congressos, regulamentos, estatutos, textos orientadores e dirigentes.
Ao descrever algumas funções do movimento tradicionalista e a forte relação
com o regionalismo, o texto “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”, defendido por
Luis Carlos Barbosa Lessa, ainda deixa explícita a dimensão política do movimento.
Registra o texto:
Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à medida que surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio Grande do Sul, vai o Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois opera para que todos os indivíduos que compõem a Região sintam os mesmos interesses, os mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar na maior força política do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com "política partidária", expressemo-nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a auxiliar o Estado na resolução dos problemas cruciais da coletividade.136
Na sequência, o mesmo documento ainda complementa que o
“Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução
do bem coletivo [...]”137. Há uma nítida preocupação com o Estado, conforme
demonstrado também em documentos posteriores. Cabe, pois, dizer que o
tradicionalismo gaúcho se caracteriza como um movimento de elite, embora se dirija
e se esforce para ser popular. A esse respeito, Paixão Côrtes registra em sua obra
que Glaucus Saraiva, patrão, fundador do primeiro CTG e professor universitário,
quando da fundação do “35 CTG”, defendia que a instituição deveria se constituir em
uma associação fechada, “algo maçônica na sua simbologia, de alto valor cívico-
místico, limitada a 35 sócios iniciais”138. No entanto, os registros apontam que se
optou por um movimento aberto e popular.
Parece acertado dizer que o movimento foi idealizado e liderado por pessoas
atuantes socialmente e politicamente. Dentre os pioneiros, cabe destacar que todos
estavam, de certa forma, estrategicamente bem posicionados no quesito emprego à
136
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio Grande do Sul, 1954, p. 6. 137
Ibidem, p. 7. 138
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 135.
58
época da fundação dos primeiros CTGs. João Carlos Paixão Côrtes, que logo se
formou em agronomia, era funcionário da Secretaria de Agricultura do Rio Grande
do Sul, onde trabalhou durante toda a sua vida, conciliando o trabalho com
pesquisas sobre as danças gaúchas; Luiz Carlos Barbosa Lessa, autor da primeira
tese e um dos fundadores do primeiro CTG, atuava na Revista do Globo, era
produtor de cinema e, entre outras atuações, formou-se em Direito e também se
dedicou às pesquisas sobre o tradicionalismo.
Com o passar dos anos, outros congressos aconteceram e outras teses foram
sendo apresentadas. No VIII Congresso Tradicionalista Gaúcho, em 1961, foi
aprovada a “Carta de Princípios”139 (ver Anexo II), de autoria de Glaucus Saraiva da
Fonseca, no intuito de instituir diretrizes oficiais a todas as entidades, objetivando a
padronização dos discursos e práticas. De acordo com o Movimento Tradicionalista
Gaúcho do Rio Grande do Sul, a “Carta de Princípios” está atualmente em vigor e
fixa os objetivos do MTG desde 1961140, considerada “cláusula pétrea” do atual
Estatuto141 que deve ser seguida por todas as instituições. Desde então, cada
instituição tem a Carta de Princípios exposta em sua sede, a fim de lembrar aos
tradicionalistas suas obrigações e seus princípios. Esse documento apresenta, logo
no primeiro artigo, novamente sua relação com o poder público, conforme já
mencionado. Registra o documento que uma de suas funções é “Auxiliar o Estado
na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do bem coletivo”142, o
que demonstra, mais uma vez, a dimensão política.
Por fim, deve-se dizer que o movimento gaúcho conseguiu, nos primeiros dez
anos de existência, ir além dos seus objetivos. Conseguiu reunir um contingente de
pessoas no meio urbano em torno de práticas rurais até então conhecidas somente
pela literatura. Logo no início atingiu um patamar, talvez, nem sequer imaginado por
seus idealizadores. Cabe, pois, reiterar que eram estudantes secundaristas iniciando
um movimento gaúcho junto a um grêmio escolar. No entanto, souberam aproveitar
o contexto histórico para divulgar suas práticas, publicações, seus projetos, seus
anseios.
139
LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1989, p. 31-32. 140
MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO. Carta de Princípios. 1961. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/historico/219>. Acesso em: 28/05/2017. 141
Idem. Estatuto do MTG. 2014. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/public/libs/kcfinder/upload/ files/ESTATUTO/1_0_ESTATUTO_MTG.pdf>. Acesso em: 28/05/2017. 142
SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 17.
59
Contudo, importa dizer que, embora os discursos e publicações do grupo
procurassem conferir exclusividade à iniciativa, essa preocupação em trazer à tona
uma identidade regional era reivindicada por diferentes grupos em todo o país,
incluindo o poder público. Parece acertado afirmar que, justamente por ser uma
preocupação nacional, muitas das ações realizadas pelos jovens obtiveram apoio e
projeção, inclusive internacional, tanto da iniciativa privada como da pública.
Em razão do pós-guerra, o período foi de iniciativas pelo reconhecimento e
valorização da diversidade cultural, a fim de promover boas relações, o que
impulsionou os estudos sobre cultura, regionalismo, folclore, entre outros. A esse
respeito, a Organização das Nações Unidas - ONU criou em 1946 uma agência
especializada, intitulada Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura - UNESCO143, que por sua vez previa a formação de organismos
e comissões nos países que aderissem à iniciativa. Esta, em suma, visava uma
sociedade mais justa e segura por meio da educação, ciência, cultura e
comunicação, assegurando o respeito entre os povos, independentemente da raça,
do sexo, do idioma ou da religião.144
No mesmo ano o Brasil aderiu à UNESCO145, e criou o Instituto Brasileiro de
Educação, Ciência e Cultura - IBECC, um organismo interministerial, de execução,
vinculado ao Ministério das Relações Exteriores, que logo criou comissões146 a fim
de cuidar de temas pertinentes à iniciativa, envolvendo importantes intelectuais do
período. Nesse contexto o folclore, visto como um instrumento de compreensão
entre os povos, ganhou especial atenção, resultando na criação da Comissão
Nacional de Folclore - CNFL, que por sua vez criou subcomissões representantes
nos estados, com a proposta de trazer à tona as tradições populares. Dessa forma,
foi instituída no Rio Grande do Sul uma Comissão Gaúcha de Folclore.
Logo, surgiu um movimento folclorista que atuou em todo o país. Embora o
tema já estivesse em evidência em governos e fosse objeto de estudo de
importantes intelectuais em períodos anteriores, como Sílvio Romero, Amadeu
Amaral e Mário de Andrade, incluindo a criação mais tarde do Instituto Brasileiro de
143
NUNES, Rosiane da Silva. UNESCO: Patrimônio Cultural Imaterial e Sociomuseologia. Dissertação (Mestrado em Museologia), Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2011, p. 18. 144
UNESCO. Qu'est-ce que l'UNESCO? s/d. Disponível em: <http://www.unesco.org/education/ asp/pdf/handbk_f.pdf/unesco24.pdf>. Acesso em: 20/11/2017. 145
NUNES, op. cit., 2011. 146
VARGAS, José Israel; MORENO Márcio Quintão. Ciência em tempo de crise - 1974-2007. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 326-329.
60
Folclore, em 1942, e a Sociedade Brasileira do Folclore, as iniciativas estavam
desarticuladas, talvez reflexo de governos pouco democráticos, entre outras razões.
Dessa vez as comissões estavam seguindo em uma mesma direção, pelo menos no
seu início, já que os debates acerca da identidade nacional se renovavam e se
intensificavam.147 Além disso, a Constituição de 1946 traria em seu art. 174 o
amparo à cultura como sendo um dever do Estado, o que não garantiu a sua
efetividade, mas contribuiu para as ações no período. Ou seja, os temas em torno da
cultura nacional borbulhavam num regime um pouco mais democrático que o
anterior.
Com a criação de uma comissão específica de folclore, o Brasil orgulhava-se
de ser o primeiro país a atender à recomendação da UNESCO. Em 1948 realizou-se
a Primeira Semana Nacional do Folclore no Rio de Janeiro e em 1951, o Primeiro
Congresso Brasileiro de Folclore, inclusive com a participação do presidente Getúlio
Vargas, incluindo apresentações folclóricas na Quinta da Boa Vista. Desse evento
resultou a Carta do Folclore Brasileiro, que traçava um Plano Nacional de Pesquisa
Folclórica, o qual previa a realização de um mapa folclórico do país148, que resultaria
na edição de inúmeras obras sobre o tema no Brasil.
Nesse contexto, o Rio Grande do Sul adentrou com afinco o movimento,
instituindo em 1948 a Comissão Gaúcha de Folclore, filiada à comissão nacional. O
primeiro passo foi reunir nomes que expressassem o pensamento científico e
literário do Rio Grande do Sul. Como presidente assumiu Dante de Laytano, nome
com forte influência política149, seguido de importantes intelectuais, como Athos
Damasceno Ferreira, Manoelito de Ornellas, Othelo Rosa, Ênio Freitas e Castro,
Darcy Azambuja, Walter Spalding, Moysés Valinho, Érico Veríssimo, entre outros.
Trata-se de intelectuais de uma nova geração de escrita da história regional que,
assim como a nova geração de escritores de todo o país, procuravam valorizar os
aspectos culturais populares.
Com a institucionalização do saber histórico por meio da criação do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul - IHGRS, em décadas anteriores, por
147
ABRANTES, Antônio Carlos Souza de (et al.). Ciência, educação e sociedade: o caso do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) e da Fundação Brasileira de Ensino de Ciências (FUNBEC). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2008. 148
Ibidem, p. 96. 149
BARCELLOS, Daisy Macedo de. Dante de Laytano e o folclore no Rio Grande do Sul. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 3, nº 7, p. 252-275, 1997.
61
razões políticas, o discurso histórico do Rio Grande do Sul se aproximava da região
do Prata. Agora chegava a hora de a história “oficial documental, elitista e militar” dar
lugar à história popular. Eram necessárias novas formas de buscar e se integrar ao
nacional. E o movimento folclorista pensava o Brasil a partir do regional e da cultura
popular.
A esse respeito, Manoelito de Ornellas apresentava uma nova forma de
escrita da história. Em sua obra “A gênese do Gaúcho Brasileiro”, ao citar Gilberto
Freyre, o autor expressa seu posicionamento sobre o assunto: “[...] para o estudo de
uma região, de uma época, de um movimento ou de uma instituição, não se poderia
guardar, da primeira à última página, rigidez ou exclusividade de método”150, o que
chamou ainda de “pureza científica”. Ressalta que o autor deve valer-se de estudos
de ciências vizinhas. Ou seja, a década de 1940 trouxe novas maneiras de escrever
e registrar a História e a identidade nacional, nesse caso, evidenciando suas
potencialidades identitárias regionais e objetivando a integração à cultural nacional.
Desse modo, o movimento folclórico, formado por importantes intelectuais, e o
movimento gaúcho, composto pelos jovens do período, aproximaram-se logo nos
primeiros anos de atuação. Muito embora Paixão Côrtes e Barbosa Lessa afirmem
que esses dois movimentos não sabiam um do outro, os jovens diziam buscar
orientação nas obras dos intelectuais do movimento folclórico, como Otelo Rosa,
Dante de Laytano e Walter Spading. Contam ainda que Otelo Rosa e Manoelito de
Ornellas haviam participado como convidados especiais de um dos eventos de
1947.151 E, em 1949, “iniciaram um trabalho no sentido de atrair para o 35 CTG os
intelectuais de renome, desejosos que estávamos de uma orientação cultural
bastante séria”152. Assim, organizaram três conferências com Moysés Vellino,
Coelho de Souza e Manoelito de Ornellas, mas destes apenas Ornellas continuaria
acompanhando e frequentando o CTG.
Dante de Laytano, por sua vez, manteve um contato maior com o grupo de
jovens e com o 35 CTG, convidando-os para se apresentarem no evento nacional
que seria realizado em Porto Alegre em 1950, a III Semana Nacional de Folclore.
Laytano emprestou gravador de som para que iniciassem algumas pesquisas e
150
ORNELLAS, Manoelito. A gênese do gaúcho brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956, p. 7. 151
CÔRTES, Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 96. 152
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 91 e 109.
62
pudessem elaborar o que chamaram de “festival gauchesco”. Para completar, em
1949, a convite do governo estadual, embarcaram para uma imersão cultural na
cidade de Montevidéu, onde visitaram, entre outras instituições, a primeira dedicada
ao culto do gauchismo, fundada em 1894, a Sociedad La Criolla, e participaram de
algumas festividades naquele país. No retorno se prepararam e realizaram, no ano
seguinte, o “festival gauchesco”, sendo considerado a primeira apresentação oficial
de danças tradicionalistas.153 Segue imagem do evento:
Figura 3 - Apresentação do 35 CTG na III Semana Nacional de Folclore, em 1950,
em Porto Alegre, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul.154
O sucesso desse primeiro evento projetou o movimento tradicionalista gaúcho
e o movimento folclórico. Vê-se na imagem a composição do grupo e distribuição
dos personagens no palco, objetivando apresentar de forma espontânea uma cena
gaúcha. Cenas retratadas nas obras de artistas do século XIX, e que serão
apresentadas no capítulo 4. No ano seguinte, em 1951, por ocasião do Primeiro
Congresso Brasileiro de Folclore, realizado na cidade do Rio de Janeiro, que
contaria também com uma exposição sobre o gaúcho com ilustrações de Isolde
Brans, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, o grupo de jovens tradicionalistas
foi novamente convidado a se apresentar, e dessa vez entre os espectadores estava
o presidente da república Getúlio Vargas.
153
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Porto Alegre: Editora Garatuja Ltda, 1975, p. 109. 154
IBECC. Anais da III Semana Nacional de Folclore. São Paulo, 1951.
63
Figura 4 - Getúlio Vargas e os fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho no
Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.155
A Comissão Gaúcha de Folclore apoiou o grupo de jovens tradicionalistas de
diferentes formas. Entre elas, contribuiu para as pesquisas sobre danças de Paixão
Côrtes e Barbosa Lessa, por meio da edição do livro “Manual de Danças Gaúchas”,
em 1956, pela Imprensa Oficial do Estado, e da tese de Barbosa Lessa, “O Sentido
e Valor do Tradicionalismo”, em 1957, entre outras obras.156
No entanto, essa aproximação entre a Comissão Gaúcha de Folclore e o
movimento tradicionalista gaúcho ocorreu somente nos primeiros anos. Ainda
durante a década de 1950, com a criação de inúmeros Centros de Tradições
Gaúchas, o grupo alcançou notoriedade. Parece acertado dizer que, por meio do
movimento tradicionalista gaúcho, a identidade do estado alcançava maior
notoriedade, inclusive se destacando mais que as atividades da Comissão Gaúcha
de Folclore. Contudo, cabe notar que eram formas de atuação distintas. Enquanto a
Comissão Gaúcha de Folclore se destacava por um trabalho científico157, o
movimento tradicionalista gaúcho priorizava as práticas, embora alguns
tradicionalistas estivessem se dedicando a estudar e pesquisar seus campos de
155
IBECC. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore. São Paulo, 1951. 156
LAYTANO, Dante de. Folclore do Rio Grande do Sul: levantamento dos costumes e tradições gaúchas. Caxias do Sul: EDUCS/Nova Dimensão, 1987, p. 151-152. 157
Sobre folclore recomenda-se a leitura da seguinte obra: FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
64
atuação.158 As pesquisas dos intelectuais do folclore serviam de base para as
atividades do movimento tradicionalista gaúcho, porém, aos poucos, tais atividades
deixaram de fazer parte dos eventos da Comissão Gaúcha de Folclore.
A esse respeito, Letícia Borges Nedel expõe que os intelectuais não
concordavam com a ênfase dada ao gaúcho pelos jovens tradicionalistas, chamava-
os de “gaúchos postiços”, alertavam para os exageros, imprecisões e excessos
carnavalescos nas representações. Entre os intelectuais, Darcy Azambuja não foi
simpático às iniciativas dos jovens tradicionalistas gaúchos desde o início do
movimento, em 1947. Dante de Laytano oscilava, ora os defendia, dizendo que o
tradicionalismo e o trabalho da Comissão Gaúcha de Folclore se complementavam,
ora os desconsiderava. Manoelito de Ornellas e Walter Spalding chegaram a dizer
que o alinhamento de ambos os movimentos era a única forma de manter as rédeas
morais e o rigor cultural do tradicionalismo.159
No entanto, a divergência por parte da Comissão Gaúcha de Folclore pouco
ofuscou os jovens tradicionalistas gaúchos, tamanha a projeção que o movimento
havia alcançado, principalmente na segunda metade da década de 1950. Vale
observar que nesse período os jovens, além de continuarem ativos em suas práticas
nos Centros de Tradições Gaúchos, que ultrapassavam as fronteiras do Estado do
Rio Grande do Sul160, já estavam graduados e se destacando profissionalmente.
É preciso considerar ainda o espaço que os jovens, principalmente Paixão
Côrtes e Barbosa Lessa, haviam conquistado nos diferentes meios de
comunicação.161 No rádio foram destaque no programa “Grande Rodeio Coringa”, na
Rádio Farroupilha, no Rio Grande do Sul; na televisão realizaram apresentações em
programas semanais da Record, em São Paulo162; no cinema, participaram como
atores, com seus grupos de dança, em filmes nacionais como “Paixão de Gaúcho” e
158
Entre os tradicionalistas com obras publicadas no período em estudo, cabe destacar Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e Antonio Augusto Fagundes. 159
NEDEL, Letícia Borges. Um passado novo para uma história em crise: regionalismo e folcloristas no Rio Grande do Sul (1948-1965). Tese (Doutorado em História), Universidade de Brasília, Brasília, 2005. Vale destacar a excelência do trabalho de investigação realizado por Letícia Borges Nedel sobre o tema. 160
Os primeiros Centros de Tradições Gaúchas do Estado de Santa Catarina foram fundados nos anos de1957 e 1959. Ver: BETTA, Edinéia Pereira da Silva; HOLZ, Celívio. História e Memória Gaúcha. Blumenau: Nova Letra, 2013, p. 59-60. 161
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p.123. 162
Em 1953 Barbosa Lessa mudou-se para São Paulo, constituiu um grupo de danças gaúchas e participou de programas de televisão. No Rio Grande do Sul, Paixão Côrtes formou, no mesmo ano, em Porto Alegre, outro grupo de dança independente do 35 CTG, o “Tropeiro da Tradição”.
65
“As aventuras de Pedro Malasartes”, e também ofereceram consultoria quanto aos
costumes dos gaúchos a importantes diretores, como o diretor Adolfo Celi, em
1953163; e na música, o “Conjunto Farroupilha” gravou o primeiro disco, intitulado
“Gaúcho”, em 1953 e Inezita Barroso, em 1955, lançaria o disco “Danças Gaúchas”,
ambos com músicas fruto das pesquisas sobre danças tradicionais gaúchas de
Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.
O movimento tradicionalista gaúcho tornou-se popular por meio do vestuário,
das músicas, das danças e das demais práticas que retratavam os costumes do
gaúcho, conquistando um contingente de pessoas e ganhando espaço. A identidade
gaúcha, considerada “ideal” pelos intelectuais, definitivamente recebia “vida”, e o
espaço por muito tempo aguardado pelos membros da Comissão Gaúcha de
Folclore era concedido aos tradicionalistas.
Em 1954, por meio da Lei 2.345 de 29 de janeiro, foi criada no Rio Grande do
Sul a Divisão de Cultura, órgão vinculado à Secretaria de Educação e Cultura, que
passava por reestruturação, instituindo por meio da Diretoria de Ciências o Instituto
de Tradições e Folclore, órgão oficial do Estado164, que daria especial atenção ao
ensino do tema na região. Foi convidado para dirigir o instituto o folclorista e também
tradicionalista Carlos Galvão Krebs, surpreendendo a Comissão Gaúcha de Folclore.
No entanto, a lei previa a vinculação do Museu Júlio de Castilhos também à Diretoria
de Ciência, junto à Divisão de Cultura165, e esse ficou sob a responsabilidade de
Dante de Laytano. No entanto, o fato de ter um tradicionalista responsável pelo
Instituto de Tradição e Folclore causou desconforto.166
Tal iniciativa fortaleceu ainda mais a atuação dos Centros de Tradições
Gaúchas. Durante o período em que esteve à frente do instituto, Krebs participou
assiduamente dos congressos tradicionalistas, apoiando suas práticas, porém se
dedicou também ao folclore no estado, realizando pesquisas pelo interior,
163
REVISTA DO GLOBO. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p.39. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 164
DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre, ano XII, nº 164, 1º fev. 1954. 165
De acordo com a Lei 2.345 de 29 de janeiro de 1954, subordinados à Diretoria de Ciências ficaram os seguintes órgãos: Instituto de Estudos Científicos e Filosóficos, Instituto de Tradição e Folclore, Museu Júlio de Castilhos, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e Museu Histórico Farroupilha. 166
A obra mais popular de Dante de Laytano sobre Folclore do Rio Grande do Sul, publicada na década de 1980, menciona tal órgão de forma discreta, quando registra a realização de cursos que Krebs viria a organizar posteriormente. O autor faz menção ao Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, criado por meio da Lei 6.736, de 29 de setembro de 1974. Sendo que os próprios documentos dessa instituição reconhecem ser a continuidade da primeira, que por sua vez foi extinta em 2016.
66
representando oficialmente o Rio Grande do Sul em congressos sobre folclore,
nacionais e internacionais, proferindo palestras e realizando exposições sobre o
folclore gaúcho pelos diferentes Estados do país.167
Durante todo o período de atuação do órgão, os diretores do Instituto de
Tradição e Folclore foram tradicionalistas, que, com o apoio da Secretaria de
Educação e Cultura, formaram um patrimônio incalculável, incluindo um importante
museu e uma biblioteca168, porém nada havia em 1954. Carlos Galvão Krebs afirma:
Quando me convidaram para dirigir o Instituto recém fundado, não tínhamos máquina nem cadeiras mas aos poucos fomos conseguindo o que era de primeira necessidade e conseguimos até uma pequena biblioteca. Minha preocupação foi formar assistentes. Estudando uma hora por dia formei assistentes folcloristas onde se destaca Antonio Augusto Fagundes e um fotógrafo documentarista – Léo Guerreiro. Naquela época, Antonio Augusto Fagundes, que hoje é um professor e pesquisador de nível internacional – era apenas um estudante secundário que se interessava por folclore.169
Em 1958 o Ministério da Educação e Cultura lançou a Campanha de Defesa
do Folclore, resultando na criação do Instituto Nacional de Folclore, vinculado à
Fundação Nacional da Arte - FUNARTE. Logo, o folclore, que já vinha recebendo
especial atenção no ensino, seria projetado a patamares ainda maiores no estado do
Rio Grande do Sul. E, em 1959, Krebs iniciaria o primeiro curso de Folclore e
tradicionalismo. Por ocasião da aula inaugural, no salão nobre do Instituto de Belas
Artes, que contou com a presença do Secretário de Educação e outras autoridades,
a imprensa noticiou a inscrição de mais de 400 alunos no curso de curta duração,
que seria ministrado por Carlos Galvão Krebs, Isolde Brans, Antonio Augusto
Fagundes e Leo Guerreiro.170 O referido curso visava atender às solicitações de
pessoas ligadas ao magistério, “que há muito tempo apreciaria um pronunciamento
167
A TARDE. Tecelagem popular gaúcha numa exposição na Bahia. Salvador, 11 jul. 1957. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 168
De acordo com o jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, de 14 de maio de 1972, Antonieta Barone, que havia assumido o Departamento de Ciência e Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, afirmou que o patrimônio material do instituto poderia ser orçado facilmente em vários milhões, tendo ainda patrimônio cultural com valor incalculável. 169
ZERO HORA. Porto Alegre, 11 set. 1977. 170
JORNAL DO DIA. Instalado o Curso de Tradicionalismo e Folclore. Porto Alegre, 21 ago. 1959. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
67
da divisão de Cultura sobre folclore e tradicionalismo”171, segundo divulgava o jornal
Correio do Povo de Porto Alegre.
O curso foi um sucesso, e o Instituto de Tradição e Folclore criou a Escola de
Folclore, com o primeiro Curso Superior gratuito de Folclore, fato inédito no país172,
formando a primeira turma em 1969.173 Dante de Laytano inclui em sua obra sobre
folclore do Rio Grande do Sul apenas um parágrafo sobre o tema, porém afirma a
sua importância: “Foi uma escola de fato pioneira com resultados de mérito
inigualáveis, prestando um serviço dos mais dignos à valorização do folclore.”174 O
autor dá especial atenção a pós-graduações com a mesma temática sob a sua
coordenação oferecidas posteriormente. O fato é que o folclore e o tradicionalismo
gaúcho se propagaram por todo o Estado.
Nesse embate, parece acertado dizer que os tradicionalistas atingiram seus
objetivos e propagaram por todo o Estado uma cultura, de modo a produzir e
consolidar a identidade do gaúcho idealizado, inspirado em fatos selecionados do
passado, atribuindo efeito de “verdade” por meio de práticas, levando as pessoas a
acreditarem que todos são herdeiros do gaúcho antigo. A esse respeito, Homi
Bhabha esclarece que “[...] a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta [...]
a cultura é uma produção [...] que esta produção, faz nos capacitar, através da
cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos”175.
Portanto, foi sobretudo por meio de práticas que os tradicionalistas
produziram novos sujeitos e se autoproduziram. Entre as práticas instituídas pelo
movimento tradicionalista gaúcho, o uso da vestimenta esteve em evidência desde a
formação, em 1947, quando no primeiro baile os convidados foram incentivados a
adotá-la. O elemento permeia a publicação de obras literárias, seja pelos intelectuais
do folclore, seja pelos tradicionalistas, além de exposições e matérias jornalistas do
período. Também os cursos de folclore oferecidos incluíam em sua grade curricular
a disciplina Indumentária Gaúcha.
171
CORREIO DO POVO. Pela primeira vez no Brasil, um curso sobre Tradicionalismo. Porto Alegre, 5 jul. 1959. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 172
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Folclore é curso superior. Porto Alegre, 11 abril 1965. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 173
CORREIO DO POVO. Primeira turma de Folclore receberá diplomas amanhã. Porto Alegre, 9 jan. 1969. 174
LAYTANO, Dante de. Folclore do Rio Grande do Sul: levantamento dos costumes e tradições gaúchas. Caxias do Sul: EDUCS/Nova Dimensão, 1987, p. 158-162. 175
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 49.
68
2.2 VESTINDO O GAÚCHO TRADICIONALISTA: PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES
DO VESTUÁRIO
Embora a indumentária tenha sido institucionalizada somente no ano de 1961,
os participantes do movimento tradicionalista não deixaram de utilizar o vestuário
considerado “típico” do gaúcho de outrora entre 1947 e 1961. Nessa corrida entre
Comissão Gaúcha de Folclore e Instituto de Tradição e Folclore, o vestuário foi um
dos temas abordados por ambos os grupos, resultando em algumas publicações que
serviram de referência para legitimar o traje, trazendo “indícios do passado no
presente”176. Embora sem pesquisa específica, já que o próprio movimento
tradicionalista estava no seu início, o vestuário do gaúcho era necessário. Era uma
forma de “representação no sentido de presentificação do ausente”177. O gaúcho já
não mais existia, mas tinha de estar presente.
Apesar das poucas leituras e pesquisas178 disponíveis em 1947, os jovens do
movimento tradicionalista tinham o mínimo de referências para iniciar os trabalhos já
vestidos de gaúchos, e não deixaram de representar-se como tal. Os livros de
história estavam repletos de pistas que poderiam contribuir para a representação do
vestuário. A vasta história do Rio Grande do Sul, marcada por guerras e revoluções
de dimensão nacional e internacional, seguramente em algum momento fizera parte
do conteúdo escolar dos jovens.
Paralelamente à história registrada nos livros, o homem do campo ainda vivia
naturalmente seus usos e costumes. Os jovens pioneiros, embora residissem na
cidade, tinham sua origem no campo, logo as referências sobre o trajar do gaúcho
vinham do dia a dia desse campeiro. Dessa forma, na primeira aparição pública e
oficial do “Piquete da Tradição” do Colégio Júlio de Castilhos, por ocasião do
translado dos restos mortais de David Canabarro, em 5 de setembro de 1947, como
mostra a Figura 2 deste estudo, todos se “trajaram sobriamente à moda
campeira”179.
176
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 16 177
CHARTIER, Roger. Poderes e limites da representação. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 165. 178
Paixão Côrtes e Barbosa Lessa registram que intensificaram as leituras no primeiro ano e estavam aptos para discutir sobre o ideal de homem do campo apenas no fim do ano de 1948. Ver: LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 179
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 65-71.
69
Para o encerramento das atividades que o grupo denominou como Ronda
Gaúcha, foi escolhido o dia 20 de setembro, data de início da Guerra dos Farrapos
ou Revolução Farroupilha180, quando se realizou um “Baile Gauchesco”, conforme
cartaz de divulgação (ver Anexo 3). Segundo Paixão Côrtes, para o evento foi
produzido um ambiente decorado com diversos acessórios que lembravam a vida no
campo, como “real fogo-de-chão para servir café de chaleira e chimarrão. Via-se
ainda uma ramada, casa de João-de-barro, pelego estaqueado, bancos de cortiça,
guampa de boi Franqueiro, arreios pendurados, pastel-de-carreira”,
complementando com música regional, dança, trovas e verso. Côrtes conta que todo
o contexto da ambientação do local incentivou as pessoas a participarem trajadas
com vestuário gaúcho.
A esse respeito, Roger Chartier assegura que “as representações possuem
uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é
exatamente o que elas dizem que é”181. Portanto, é necessário estar alerta para o
que ele chama de “meios e procedimentos da representação”182, o conjunto de
dispositivos e materiais que constituem o aparato formal dessa anunciação.
O resultado foi satisfatório, o evento atraiu jovens trajados de gaúcho,
devidamente representado, e o concurso com premiações “aos mais tipicamente
vestidos” contribuiu para a disseminação daquela que seria, mais tarde,
institucionalizada como indumentária gaúcha. Côrtes descreve:
A promoção incentivou àqueles que, ainda receosos de serem ridicularizados por trajarem roupas campesinas, as vestissem e fossem divulgar as autênticas vestes da vida rural, participando dos “prêmios valiosos aos mais tipicamente vestidos”, conforme constava nos cartazes e propagandas desse evento. Na foto [...], vemos Juliano José Larte Simch (que era canhoto), um dos vencedores, simbolizando o gaúcho atual (bombacha, bota, tirador, guaiaca, pala atirado às costas, chapéu de aba larga, atc.) e eu, vestindo cheripá e ceroula de crivo, guaiaca com moeda, bota com espora de prata encabrestada, boleadeira à cintura, vincha, chapéu de aba curta, pala ao ombro, lenço, faca prateada, etc., considerado gaúcho à moda antiga, segundo a comissão julgadora, composta pelo
180
Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha foi um conflito que eclodiu no Rio Grande do Sul em 20 de setembro de 1835, perdurando por dez anos entre o governo imperial e fazendeiros produtores de charque, que exigiam liberdade política e econômica no sul do país. Do acordo final entre fazendeiros e império resultou uma narrativa histórica que privilegiou os fazendeiros, em razão da produção historiográfica que buscava uma identidade gaúcha a partir da segunda metade do século XIX. 181
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de História. Dourados - MS, v. 13, nº 24, p. 15-29, 2012, p. 23. 182
Ibidem, p. 20.
70
historiador Manoelito de Ornellas e pelo poeta-desenhista Amandio Bica.183
O convite para atuar como avaliador do vestuário a Manoelito de Ornellas
legitimava não só o concurso, mas também o próprio evento, pois já era considerado
um importante escritor sobre os costumes no Rio Grande do Sul. Além de Manoelito,
fez parte como avaliador o uruguaio Amandio Bicca Quintana, poeta e desenhista de
temas gaúchos, que pode ter contribuído com referências identitárias platinas, já que
desde o final do século XIX a identidade gaúcha estava em evidência no Uruguai,
com a fundação da Sociedad La Criolla em Montevidéu. Segue imagem citada por
Côrtes de um dos vencedores do concurso, posando com o próprio autor e
idealizador do evento, Paixão Côrtes:
Figura 5 - João Carlos Paixão Côrtes e Juliano José Laerte Simch no baile
gauchesco do Colégio Júlio de Castilhos, em 1947.184
183
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 104. 184
Ibidem, p. 104.
71
A foto faz parte de uma sequência de 11 imagens do evento, publicadas na
obra “Origem da Semana Farroupilha”, de Paixão Côrtes, apresentando as
atividades realizadas na noite. É possível perceber que “as autênticas vestes da vida
rural”, citadas por Côrtes, refletem na indumentária proposta mais tarde por Antonio
Augusto Fagundes, uma vez que os trajes selecionados pelos jovens retratados na
imagem trazem elementos semelhantes aos observados nas vestimentas propostas
por Fagundes e descritos na obra do autor.185 No entanto, a comissão avaliadora
classificou os trajes da Figura 5 entre “gaúcho à moda antiga” e “gaúcho atual”,
conforme sinalizou Côrtes, enquanto Fagundes indica as datas em que foram
utilizadas pelos gaúchos.
Manoelito de Ornellas, que também realizava pesquisas sobre o gaúcho em
1947 para o seu livro “Gaúcho e Beduínos: a origem étnica e a formação social do
Rio Grande do Sul”, publicado no ano seguinte, assinava uma coluna semanal do
jornal Correio do Povo sobre o Rio Grande do Sul e os costumes dos gaúchos.
Paixão Côrtes, após o evento, escreveu um artigo em que dizia estar satisfeito com
a iniciativa dos jovens, os moços rio-grandenses se vestiram de gaúcho, usaram
bombachas e chiripás e as mulheres, vestidos simples, com tranças e laços de fita
nos cabelos, um alvoroço de gaúchos com trajes típicos.186
As referências gaúchas circulavam de diferentes formas entre os jovens. Os
elementos para a produção do vestuário do “gaúcho atual” estavam em evidência,
pois a bombacha ainda era utilizada pelo homem do campo daquele período. E para
a elaboração do vestuário de Paixão Côrtes, jovem à esquerda na Figura 5, o qual
denominaram “gaúcho à moda antiga”, as referências derivavam da Revolução
Farroupilha. Nesse contexto, a peça principal do vestuário masculino era o chiripá, e
por essa razão foi chamado por Fagundes de “chiripá farroupilha”, termos que serão
analisados no capítulo seguinte.
185
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 19-30. 186
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 99.
72
Após esse primeiro ano, os jovens passaram a se dedicar à leitura. Côrtes e
Lessa afirmam que “aí por fins de 1948 nós dois já estávamos doidamente
mergulhados na leitura da bibliografia de História, Folclore, etc”187. O movimento
estava se disseminando pelo estado do Rio Grande do Sul, era necessário criar um
repertório de elementos representativos, porém fundamentados na literatura. Em
1952 consta que foi realizada na cidade de Pelotas uma Assembleia Tradicionalista
que reuniu sete Centros de Tradições Gaúchas e, em 1954, quando do I Congresso
Tradicionalista, foram 36 CTGs.188 Dessa forma, com o advento do movimento,
seguiram buscando referências para compor os elementos da tradição gaúcha, entre
eles a indumentária.
Cabe ressaltar que são três as principais obras dedicadas exclusivamente à
indumentária gaúcha publicadas no Rio Grande do Sul entre 1947 e 1961, período
anterior à aprovação da tese de Antonio Augusto Fagundes que institucionalizou a
indumentária gaúcha tradicionalista. São elas: “Vestimenta do Gaúcho”, de autoria
de Paixão Côrtes, publicada pela Revista do Globo em 1953 e em formato de livro
em 1961; “História do Traje do Gaúcho Brasileiro”, de 1955, com ilustrações de
Isolde Brans, coleção do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre; e
“Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul”, publicada em
1957 por Athos Damasceno, integrante da Comissão Gaúcha de Folclore. Dentre as
obras citadas, apenas a última, de Damasceno, foi citada por Antonio Augusto
Fagundes.
A pesquisa realizada por Paixão Côrtes e publicada na Revista do Globo em
1953 serviria como guia para os adeptos do movimento gaúcho naquele período,
primeiro em razão da falta de fontes imagéticas sobre a indumentária gaúcha, ou
pelo menos do acesso a elas, e segundo pela popularidade da Revista do Globo,
periódico que mais circulava no período. A Revista do Globo pertencia à Livraria do
187
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 188
GARCIA, Maria Arita Madruga. Breve retrospectiva dos Primeiros Congressos Tradicionalistas. Eco da Tradição. Caderno Piá do Sul. Porto Alegre, nº 149, jan. 2014, p. 1. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS.
73
Globo, a maior casa editorial do Sul do Brasil, fundada em 1883, responsável pela
publicação dos principais editoriais do período. A revista foi lançada em 1929 e
circulou até 1967, quinzenalmente, de forma interrupta. Composta em sistema
tipográfico, variava entre 48 e 70 páginas, com tamanho aproximado de 20,5 x 27
cm.
A revista surgiu num momento político e cultural crítico, com escassos
periódicos no estado do Rio Grande do Sul, sendo inclusive apoiada pelo
governador Getúlio Dornelles Vargas. Constituída por textos e imagens, configurou-
se como um dos mais importantes títulos do país, incluindo correspondentes no
exterior. Entre os editores a revista contou com personalidades como Érico
Veríssimo e Henrique Bertaso, além de ilustradores como Tarsila do Amaral e Di
Cavalcanti, entre outros. Publicava textos de importantes escritores dedicados à
temática regional gaúcha, como Manoelito de Ornellas, Athos Damasceno Ferreira,
Augusto Meyer, Érico Veríssimo, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, que também foi
funcionário da revista. Divulgou obras de Lauro Rodrigues, Darci Azambuja, Simões
Lopes Neto, Moysés Vellinho e Barbosa Lessa. Todos contribuíram para a
disseminação da representação do gaúcho.189
A Revista do Globo de número 595, de 19 de setembro de 1953, trazia
pesquisas de Paixão Côrtes sobre a vestimenta do gaúcho sob o título “Revivendo a
Querência”. Além desse artigo, a edição era composta de mais três textos dedicados
à temática gaúcha190, valorizando os apontamentos de Côrtes. Segue imagem
central do artigo:
189
PUC-RS. DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural. Revista do Globo. s/d. Disponível em: <http://www.pucrs.br/delfos/?p=globo>. Acesso em: 10/12/2017. KARAWEJCZYK, Mônica. “O Voto de saias”: breve análise das imagens veiculadas na Revista do Globo (1930-1934). História, Imagem e Narrativas. Rio de Janeiro, nº 3, ano 2, set. 2006. 190
São eles: Barbosa Lessa, com “A heroína desprevenida no rastro de Ana Terra”, reportagem que descrevia a experiência de viagem pelo interior do Estado do Rio Grande do Sul de Adolfo Celi, diretor do filme “Ana Terra”, inspirado em “O tempo e o Vento”, onde Lessa atuou como consultor de costumes; Gustavo Renó, jornalista que atualizou os leitores sobre o filme “Ana Terra” que viria a ser gravado no Rio Grande do Sul; e a edição ainda trazia o conto “Duelo de Farrapos”, de Simões Lopes Neto.
74
Figura 6 - Vestimenta do Gaúcho, Paixão Côrtes.191
Em suas pesquisas Paixão Côrtes dividiu em dois modelos o vestuário do
gaúcho, cada um representando uma época distinta: gaúcho antigo e gaúcho atual,
conforme denominação citada por Manoelito de Ornellas em 1947. Porém, de
acordo com o autor, suas pesquisas foram elaboradas tendo como fontes três
importantes viajantes europeus que passaram pelo Sul do Brasil e relataram em
seus diários de viagem os usos e costumes dos homens que lá viviam. Conta o
autor:
As investigações e estudos feitos, baseiam-se em observações e depoimentos deixados por viajantes estrangeiros que outrora cruzaram o pago rio-grandense. As mais antigas gravuras conhecidas são de autoria de Debret e datam do princípio do século XIX. As descrições deixadas pelo inglês Nycolau Dreys e as do francês Auguste de Saint-Hilaire, publicadas nos meados do século XIX, são os elementos obrigatórios de consulta, embora contenham
191
CÔRTES, Paixão. Revivendo a Querência. Revista do Globo. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p. 44. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS.
75
nestas obras, nada mais nada menos, do que impressões de seus diários de viagem.192
Ao exame das demais partes do texto, percebe-se que Côrtes opta por
apresentar tais modelos de maneira didática: enumera as peças dos trajes e
relaciona com descrição em formato de glossário. Entretanto, o autor não indica a
localização das suas referências nos referidos diários de viagem.
Figura 7 - Descrição dos trajes.193
Omitir a localização das referidas fontes não era exclusividade de Côrtes,
publicações posteriores usam da mesma metodologia de escrita, incluindo as dos
intelectuais e historiadores do período. Entretanto, o fato de indicar as obras
consultadas de maneira geral na introdução, de certa forma, legitimava a pesquisa,
novamente publicada em 1961 nesse mesmo formato de glossário.194
A segunda obra sobre a indumentária gaúcha entre as principais escritas no
período anterior à aprovação da tese de Antonio Augusto Fagundes foi publicada em
1955, intitulada “História do Traje do Gaúcho Brasileiro”, com ilustrações de Isolde
Brans e texto de Dante de Laytano, em formato de livreto, fazendo parte da coleção
do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. No texto o autor também utiliza como
192
CÔRTES, Paixão. Revivendo a Querência. Revista do Globo. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p. 44. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 193
Ibidem, p. 45. 194
Idem. Vestimenta do Gaúcho. Porto Alegre: Edição TRADISUL, 1961.
76
referência os relatórios dos viajantes, porém acrescenta outros historiadores do final
do século XIX e início do século XX, indicando suas fontes ao longo de todo o texto,
apontando inclusive as páginas das mesmas.
Na introdução do trabalho fica claro o posicionamento do autor diante da
identidade gaúcha quando diz: “E por suas tradições gloriosas, através de inúmeros
e meritórios atos que o imortalizaram nas páginas refulgentes da nossa História,
soube o gaúcho da velha estirpe manter-se nobremente no cumprimento de seus
deveres [...].” E segue afirmando o objetivo da publicação: “Daí o propósito de salvar
do esquecimento as nossas mais caras tradições, cultuando, ao mesmo tempo, o
passado em seus feitos memoráveis, revivendo também usos e hábitos tipicamente
gauchescos.”195 No entanto, no texto, acompanhado das ilustrações de Brans196,
Laytano discorre sobre os homens do Rio Grande do Sul e seus respectivos
vestuários ao longo do tempo, e se mantêm as descrições de suas fontes.
A terceira, e mais extensa, publicação foi “Apontamentos para o estudo da
indumentária no Rio Grande do Sul”, publicada em 1957 por Athos Damasceno.
Diferentemente das obras anteriores, o autor não enfatiza o gaúcho, talvez porque
estava entre os intelectuais que tinham restrições em relação ao movimento
tradicionalista gaúcho.
Sua obra faz alguns apontamentos principalmente sobre os açorianos, os
alemães, os índios e os negros, as poucas vezes que cita a palavra gaúcho o faz
nas entrelinhas, como ao abordar as diferentes formas de uso do “xiripá”197,
observando que “entre os gaúchos era a indumentária masculina que brilhava”198,
quando explica que no caso dos negros eram as mulheres que se destacavam com
a vestimenta. Contudo, muitos dos elementos descritos sobre os trajes no decorrer
do texto iriam reverberar na indumentária do gaúcho, como ponchos, bragas, botas,
jalecos, boleadeiras, entre outros.199 Embora Damasceno dedique atenção ao
vestuário feminino dos grupos citados, nas poucas vezes que cita o gaúcho segue a
mesma linha de Laytano e Côrtes, exila-o em um universo masculino apenas.
195
LAYTANO, Dante. História do Traje do Gaúcho Brasileiro - Ilustrações de Isolde Brans. Porto Alegre: Museu Júlio de Castilhos, 1955. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 196
As ilustrações de Isolde Brans são releituras de aquarelas de Jean Baptiste Debret. 197
FERREIRA, Athos Damasceno. Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia/UFRGS, 1957, p. 77. 198
Ibidem, p. 81. 199
Ibidem, p. 75.
77
No que se refere às fontes, Damasceno adota a mesma metodologia de
Laytano, utiliza como fontes principalmente os relatos de viajantes dos séculos XVIII
e XIX, além de historiadores, sociólogos e outros escritores. Porém, faz uso de
testemunhos orais, cuja veracidade, todavia, gera dúvida, visto que sua pesquisa
tem como recorte temporal a primeira metade do século XIX.
Apesar das poucas pesquisas sobre o vestuário do gaúcho, o movimento
tradicionalista estava tomando grandes proporções em termos de número de
adeptos. Logo, o vestuário precisava ser institucionalizado oficialmente para que,
assim como as demais práticas, essa também fosse selecionada e definida como
gaúcha. Para tanto, seriam necessárias pesquisas. Nesse contexto, Antonio Augusto
Fagundes, que passou a fazer parte do movimento e já tinha iniciado pesquisas
sobre o tema para a sua disciplina História da Indumentária no Curso de Folclore200,
intensificou seu trabalho e institucionalizou o vestuário do gaúcho junto ao
movimento tradicionalista, em 1961.
200
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Os quatro trajes masculinos fundamentais do RGS. Porto Alegre, 7 fev. 1971. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Folclore é curso superior. Porto Alegre, 11 abril 1965. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
78
CAPÍTULO III – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INDUMENTÁRIA GAÚCHA:
IMAGENS QUE (RE)VESTEM E REVERBERAM
NO TRADICIONALISTA GAÚCHO
O Dr. Antonio Augusto Fagundes [...] é, indubitavelmente, o maior pesquisador, dentro do Brasil, da indumentária gauchesca, trabalho a que se dedica por mais de dezessete anos sobre o assunto, vem sendo considerado a respeito, autoridade inconteste. Mas não parou aí. Recuou no tempo, buscando as mais remotas origens universais que possam ter influído direta ou indiretamente nas formas e funcionalidades das vestes do nosso gaúcho desde o seu aparecimento. Para tanto, além de pesquisas de campo, reuniu e detém, talvez, a mais robusta biblioteca específica, apoiada por farta iconografia e hemeroteca afins. (Glaucus Saraiva, 1976)201
A epígrafe é parte do prefácio escrito por Glaucus Saraiva na obra
“Indumentária Gaúcha”, de Antonio Augusto Fagundes, conhecido pesquisador do
tema que institucionalizou oficialmente o vestuário do gaúcho junto ao movimento
tradicionalista, por meio de pesquisas realizadas. A obra, que teve oito edições,
afirma no prefácio que o autor era considerado o maior pesquisador brasileiro sobre
o tema, uma “autoridade inconteste”. Confesso que essas palavras me
acompanharam nos últimos anos e impulsionaram naturalmente esta pretensa tese
doutoral. Todavia, sem a pretensão de desconstruir, esta pesquisa se dedica a
analisar as referências históricas que reverberam na vestimenta proposta por
Antonio Augusto Fagundes.
Após a efetivação do movimento tradicionalista gaúcho no Brasil em 1947, as
instituições iniciaram um amplo processo de seleção das atividades e ações que,
inspiradas no passado histórico do gaúcho, fariam ou não parte do repertório das
práticas do movimento. Dessa forma, a cada Congresso Tradicionalista realizado,
eram apresentadas teses de diferentes assuntos, tendo por objetivo legitimar a
atuação do referido movimento. Entre elas, em 1961, no VIII Congresso
Tradicionalista, foi apresentada e aprovada a tese “O Vestuário do Gaúcho”, que
instituía o traje gaúcho202, um estudo realizado por Antônio Augusto Fagundes e
apresentado na ocasião por este e por Ary Gonçalves, representantes do CTG
201
Cf.: FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 3. 202
Ata do VIII Congresso Tradicionalista, realizado entre 20 e 23 de julho de 1961, em Taquara, Rio Grande do Sul. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS.
79
Galpão Universitário.203 Em 1977 a obra foi editada e ampliada, dessa vez com
ilustrações de Jorge Ibiratan Lopes, e novamente apresentada e aprovada no 23º
Congresso Tradicionalista, no ano seguinte.204
Verifica-se que, para apresentar o conjunto de elementos selecionados, o
movimento tradicionalista optou sobretudo por práticas imagéticas, como
apresentações de dança, declamações de poesias, exposições e, principalmente, a
indumentária. Ou seja, imagens são frequentemente utilizadas para divulgar os
elementos selecionados, tendo como finalidade mantê-los no imaginário daqueles
que os seguem. A esse respeito, Alberto Manguel confirma que “As imagens, assim
como as histórias, nos informam, porém só podemos ver as coisas para as quais já
possuímos imagens identificáveis”205. Portanto, só é possível identificar as imagens
porque foram criadas e registradas pela literatura, já produzidas pelos intelectuais,
que, segundo Côrtes e Lessa, eram tomados como referência.
A vestimenta tornou-se obrigatória a todos aqueles que seguem o movimento
tradicionalista, foi o elemento primordial na construção da representação, e se
configura como reafirmação da identidade gaúcha, revestindo os sujeitos e
permitindo serem reconhecidos como gaúchos. Nesse sentido, o vestuário é
analisado sob a ótica de alguns pensadores, como Diana Crane, Daniel Roche e
Roland Barthes, que entendem a vestimenta como instrumento de representação
social e cultural e, como indumentária, um importante veículo de significação.
Sabe-se que a vestimenta está além da funcionalidade ligada à proteção, ela
indica a identidade de quem a veste, pois o vestir pode representar um ato de
significação. A esse respeito, Diana Crane, importante socióloga americana,
apresenta o papel desempenhado pelo vestuário na construção social da identidade.
Segundo a autora, “As roupas, como artefatos, criam comportamentos por sua
capacidade de impor identidades sociais”206. Ainda a esse respeito, Stuart Hall
afirma que o complemento da identidade é preenchido a partir do exterior, pela
203
O Centro de Tradições Gaúchas “Galpão Universitário” era uma instituição fundada junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e tinha como Patrão (presidente) Antonio Augusto Fagundes. Em 1962, sediou o II Congresso Internacional de Tradições Gaúchas, evento que recebeu adeptos dos Estados Unidos, do Brasil e da Argentina e que teve a indumentária como um dos principais temas discutidos, segundo notícias veiculadas no Jornal do Dia de 1º de julho de 1962 e na Folha da Tarde de 1º de outubro de 1962. 204
PAIXÃO, Darcy. Prenda Tradicionalista. Santa Maria: Palloti, 1995, p.112. 205
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 21. 206
CRANE, Diana. A Moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006, p. 22.
80
forma como o indivíduo imagina ser visto por outros, criando formas de
representação. Ou seja, a vestimenta é escolhida para ser um dos elementos que o
complementam.
Dessa forma, o vestuário gaúcho se configura como um importante aliado na
construção, preservação e identificação dessa identidade. Nessa mesma
perspectiva, Diane Crane observa que, como nos séculos anteriores, quando as
roupas constituíam o principal meio de identificação do indivíduo no espaço público,
neste continuam sendo um meio de identificação, por isso a necessidade de
institucionalizá-las.
A pesquisa apresentada por Antonio Augusto Fagundes, por ocasião do VIII
Congresso Tradicionalista, teve parecer favorável “devido a importância do assunto
e o interesse dos congressistas pelo mesmo, a tese foi lida na íntegra”207, como
registra a ata. Contudo, houveram alguns questionamentos por parte dos
congressistas sobre certos elementos do gaúcho que, já publicados pela literatura,
não constavam no texto. Além disso, fizeram objeção quanto à utilização de palavras
como fantasiar e gringalhada, e um deles discordou da padronização dos trajes que
estava sendo proposta, dizendo não serem militares. Por fim, o autor defendeu sua
pesquisa, respondendo a todos os questionamentos, procedeu-se à votação e a tese
foi aprovada.
No texto, publicado em formato de livro, Antonio Augusto Fagundes utiliza-se
da introdução para alertar o movimento tradicionalista dos erros cometidos por seus
seguidores quanto ao vestuário. Cabe dizer que foi uma forma de justificar sua tese.
Seguem as palavras do autor:
Parece incrível que parte dos tradicionalistas do Rio Grande do Sul, guardiães por definição da pureza do folclore e defensores de seus cânones tradicionais, são exatamente os maiores responsáveis pela deturpação da indumentária gaúcha [...]. Não são os artistas, nem os turistas, mas simplesmente aqueles que se consideram os sacerdotes do culto da tradição os que fantasiam a indumentária [...].208
São muitas as expressões utilizadas pelo autor que demonstram como eles
se viam diante do movimento tradicionalista, chegando ao extremo de se intitular
207
Ata do VIII Congresso Tradicionalista, realizado entre 20 e 23 de julho de 1961, em Taquara, Rio Grande do Sul. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS. 208
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 5.
81
“Sacerdotes do culto da tradição” e assumir o papel de “guardiães” dos elementos
do passado que estão “fantasiando”, palavra que foi questionada quando da
apresentação da tese no VII Congresso, que denominou “cânones tradicionais”
selecionados por eles. Com um discurso carregado de significados, Fagundes
encerra dizendo que o movimento precisa se conscientizar e “fazer seus seguidores
se corrigirem”.
O autor, ao entrar no tema, logo no primeiro parágrafo, deixa explícita sua
tese, afirmando que são quatro os trajes principais do gaúcho ao longo da história:
São quatro os complexos da indumentária gauchesca masculina no Rio Grande do Sul, se atentarmos para a peça que domina o conjunto: 1º) do chiripá primitivo; 2º) das bragas; 3º) do chiripá farroupilha e 4º) das bombachas. A cada um desses complexos corresponde, naturalmente – e também a grosso modo – uma indumentária feminina.209
Os complexos da indumentária a que se refere o autor são as peças inferiores
do vestuário masculino que dominam ou se destacam no conjunto. Segue ilustração
de cada um dos trajes:
Figura 8 - Chiripá primitivo, braga, chiripá farroupilha e bombacha.210
209
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 6. 210
As imagens foram extraídas da obra de Fagundes, conforme citação, porém foi realizada alteração de tonalidade pela autora, a fim de destacar cada uma das peças que domina o conjunto, conforme cita o autor. Ibidem, p. 33, 35, 37 e 39 (grifo nosso).
82
Apesar de mencionar o vestuário da mulher, Fagundes prioriza na sua
pesquisa o traje masculino. Das 66 imagens constantes no interior do livro, apenas
quatro se referem à indumentária da mulher gaúcha – no entanto, para cada uma
apresenta um modelo feminino. E, além da divisão dos trajes masculinos por
modelos específicos, o autor indica o período em que foi utilizada cada uma das
peças do vestuário e sua composição, de acordo com a História do Rio Grande do
Sul. A primeira imagem apresentada corresponde ao período entre 1750 e 1820,
incluindo dois trajes masculinos e dois trajes femininos. A segunda corresponde aos
anos de 1820 a 1865, com um traje masculino e um traje feminino. E a terceira exibe
trajes que surgiram em 1865 e seguem até os dias atuais. A seguir observam-se os
trajes gaúchos masculinos propostos pelo autor, de acordo com o período:
Figura 9 - Trajes gaúchos, 1750-1820 - primeira época.211
Figura 10 - Traje gaúcho, 1820-1865 - segundo época.212
211
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 33-36. 212
Ibidem, p. 37-38.
83
Figura 11 - Traje gaúcho, 1865-1976 - terceira época.213
Alguns Centros de Tradições Gaúchas mantêm as imagens apresentadas
anteriormente expostas a fim de decorar os ambientes, outros fazem releituras
aplicando cores com o objetivo de rememorar a indumentária institucionalizada, uma
forma lúdica de orientar seus associados a utilizar o vestuário. As instituições
procuram aproveitar-se da fabricação de imagens para trazer à tona o que foi
selecionado como práticas representativas do gaúcho, criando um patrimônio de
imagens à disposição, formando, segundo Alberto Manguel, um “museu
imaginário”214. Dessa forma, despertam o imaginário daqueles que as seguem. Tal
ação é possível perceber por meio da epígrafe do primeiro capítulo, quando o autor
afirma que as “sagradas vestes da tradição” seriam capazes de transformar sujeitos
em soldados. A esse respeito, Roland Barthes aponta que “o vestuário é sempre
implicitamente concebido como o significante particular de um significado geral que
lhe é exterior”215, ou seja, as vestes “sagradas” (significante) estão à disposição do
significado maior, que é o Gaúcho – o vestuário é o significante que o complementa.
Por meio do vestuário, chamado de indumentária gaúcha, cria-se uma
imagem do que se quer representar, aflorando a imaginação num retorno ao
passado. Segundo Peter Burke, “imagens nos permitem imaginar o passado de
forma mais vívida”216. Esse conjunto de referências históricas incorporadas às
imagens cria uma forte relação com a memória, instiga o imaginário, resultando na
representação identitária do gaúcho ideal, que faz com que as pessoas se
213
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 39-40. 214
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28. 215
BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 262. 216
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 16.
84
reconheçam e se instituam como tal. De modo que, ao se vestirem, adquirem um
intenso poder de representação, sentem-se transformadas no próprio personagem.
Sandra Jatahy Pesavento e Roger Chartier defendem que as representações
dotam o presente de sentidos e estabelecem relações de poder. Embora o
representante não seja o representado, mas uma imagem, ele traz semelhanças,
ficando no lugar da realidade.217
Ao conceituar a representação, Roger Chartier faz um percurso por definições
anteriores e, entre elas, cita o dicionário de língua francesa publicado por Furetère
em 1690. Assim, atesta que representação é a imagem que remete a uma ideia e
que permite ver o objeto, pessoas, coisa ou pessoa ausente. Ou seja, a
representação nos permite ver o ausente, substituindo por uma imagem capaz de
representá-lo adequadamente. Representar, portanto, é fazer conhecer as coisas
mediatamente a imagem, é a exibição de algo, a demonstração de uma presença,
ou seja, fazer presente alguma coisa.218 Seguindo esse conceito, pode-se dizer que,
ao se vestirem com a indumentária proposta por Antonio Augusto Fagundes, os
sujeitos tornam-se representantes “adequados” do gaúcho de outrora.
Ainda segundo Chartier, o conceito de representação foi e é um precioso
apoio para que se possa assinalar e articular as diversas relações que os indivíduos
ou grupos mantêm com o mundo social, como “as práticas e signos que visam fazer
reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo”219.
Como por exemplo “as formas institucionalizadas pelas quais uns „representantes‟
encarnam de maneira visível, „presentificam‟ a coerência de uma comunidade, a
força da identidade ou a permanência de um poder”220.
A institucionalização da indumentária gaúcha contribuiu para garantir a
“presentificação” do ausente, a partir dela os sujeitos encarnam o gaúcho,
contribuindo para o fortalecimento da identidade. Nesse sentido, Diane Crane afirma
que o vestuário desempenha um importante papel, “pois as roupas, como artefatos,
„criam‟ comportamentos por sua capacidade de impor identidades sociais e permitir
217
PESAVENTO, Sandra J. Representações. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/ Contexto, v. 15, nº 29, 1995. 218
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de história. Dourados - MS, v. 13, nº 24, jul./dez. 2011, p. 16-17. 219
Ibidem, p. 20. 220
Ibidem, p. 20.
85
que as pessoas afirmem identidades”221. Por sua vez, Pesavento diz que a
presentificação de uma ausência é atributo de toda representação, que em essência
é um “estar no lugar de”. Da mesma forma como construções imaginárias, que
podem ser tanto substituição da coisa ou ser ausente, como uma evocação mimética
daquilo que representa222, que se dedica à afirmação da identidade proposta.
Dessa forma, as análises sobre representação que permeiam este trabalho
seguem a ótica de Chartier e Pesavento. No entanto, há de se ter cuidado, pois,
ainda de acordo com Roger Chartier, “as representações possuem uma energia
própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente
o que elas dizem que é”223.
No que se refere ao imaginário, entende-se como “um sistema de ideias e
imagens de representação coletiva que os homens constroem através da história
para dar significado às coisas”224. E, a esse respeito, “todos nós temos um museu
imaginário de imagens, transmissoras de uma herança do passado, veiculadas pela
memória individual, forjada de acordo com a memória social”225. Dessa forma, é lícito
supor que a indumentária proposta e institucionalizada evoca um sistema de
imagens de representação construídas para dar significado àquele que se
condicionou chamar de gaúcho.
Essa seleção e organização dos elementos de representação por parte das
instituições gaúchas é dotada de um imaginário social permeado de bens
simbólicos. Segundo Bronislaw Baczko, “cada sociedade produz um sistema de
representações e entre estas ocupam um lugar a parte os símbolos e as
imagens”226. O autor ainda ressalta que “o imaginário social é uma das forças
reguladoras da vida coletiva”227, sendo que “os sistemas simbólicos em que assenta
e através do qual opera o imaginário social são construídos a partir da experiência
dos agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e
221
CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006, p. 22. 222
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Palavras para crer: imaginários de sentido que falam do passado. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Paris, v. 6, 2006. 223
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de história. Dourados - MS, v. 13, nº 24, jul./dez. 2011, p. 23. 224
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cultura e representações, uma trajetória. Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 13, nº 23/24, p. 45-58, jan./dez. 2006, p. 50. 225
Ibidem, p. 50. 226
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopedia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, p. 296-332, 1985, p. 332. 227
Ibidem, p. 311.
86
motivações”228. Ou seja, as referências presentes na indumentária gaúcha decorrem
dos elementos selecionados da história do gaúcho, porém são resultado de
pesquisas de agentes sociais integrantes das instituições gaúchas e, portanto,
influenciados por seus desejos e aspirações.
3.1 IMAGENS NARRADAS E NARRATIVAS TRADUZIDAS EM IMAGENS:
RELATOS E AQUARELAS NA INDUMENTÁRIA DE FAGUNDES
Examinando as pesquisas já citadas sobre o vestuário do gaúcho realizadas
na década de 1950, assim como a obra de Antonio Augusto Fagundes, observa-se
que as principais fontes históricas utilizadas são os relatos dos viajantes, bem como
as aquarelas produzidas no mesmo período. Imagens permeiam o processo,
pictóricas ou textuais, foram capturadas e narradas pelos viajantes em períodos
históricos específicos, depois selecionadas pelos pesquisadores tradicionalistas
como ideais, e essas, por sua vez, agora são novamente traduzidas em imagens e
palavras.
Sobre essa dinâmica em relação às imagens, Alberto Manguel observa que
as imagens são:
[...] capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos, imagens cujo significado (ou suposição de significados) varia constantemente, configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens.229
Nesse caso, as imagens foram realçadas em relatos e aquarelas, supondo
significados sobre o vestir do gaúcho, pois, conforme já delineado no primeiro
capítulo, esses viajantes as descreveram com um olhar de outro tempo e contexto.
E, portanto, configuram-se como impressões sobre o vestuário. Contudo,
importantes impressões. São fontes balizadoras para construção de novas imagens.
Novas imagens carregadas de sentidos, que se constituem em imagens identitárias
deste tempo.
Essas imagens do vestuário com referenciais gaúchos propostas por
Fagundes foram elaboradas e classificadas como chiripá primitivo, braga, chiripá
228
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopedia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, p. 296-332, 1985, p. 311. 229
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
87
farroupilha e bombacha. Elementos que, por sua vez, foram organizados em
períodos históricos, evocando a época em que o gaúcho utilizava as peças, fazendo
relação com a data do registro pelos viajantes. A seguir estão relacionados os
vestuários do gaúcho, seus respectivos períodos e suas descrições, discriminados
ainda conforme o usuário:
Quadro 1 - Vestuário gaúcho proposto por Antonio Augusto Fagundes.230
1750/1820
Peão das vacarias Chiripá primitivo Palas ou poncho Botas de garrão de potro Esporas nazarenas e chilenas Ceroulas de crivos Faixa larga negra ou cinturão de bolsas, tipo guaiaca Boleadeiras Faca flamenga, adaga e mais raramente facão Lança Camisa Lenço como touca atado à nuca Chapéu, de palha, de feltro ou pança de burro (couro cru) Barbicacho de tentos ou de fita sob o queixo ou nariz Tirador
Patrão das vacarias - Braga/calça Botas de garrão de potro ou preta industrializada Lenço de pescoço Pala ou poncho Tira de pano prendendo os cabelos Chapéu pança de burro (couro cru)
1820/1865
Chiripá Farroupilha Botas russilhona (industrializada) Jaleco Jaqueta Pala bichará ou poncho Cabelos compridos trançados
1865/1976
Bombachas Botas lajeanas (industrializada) Camisa com colete Chapéu de abas largas e copa baixa Pala-poncho
Ao exame do texto, verifica-se que elementos do vestuário foram surgindo em
cada período, conforme revela o Quadro 1, porém continuavam a ser utilizados nos
períodos subsequentes, exceto no último, quando se excluiu o uso da bota de
garrão, do chapéu pança de burro e do lenço à cabeça na composição com a
bombacha. No entanto, continuam usando, embora em menor número, as
230
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF,1977, p. 9-40.
88
composições anteriores. A lista de Fagundes aponta o período em que se iniciou o
uso, não se limitando somente a ele.
Embora o texto tenha problemas com a escrita, no sentido de não indicar a
localização das suas fontes, alguns viajantes e artistas são mencionados ao longo
da obra, porém outros constam apenas na bibliografia. Entende-se como problema,
pois “o texto histórico serve-se, em profusão, de notas porque ele não recorre ao
argumento de autoridade”231. Foram citadas em sua bibliografia as seguintes obras:
CERQUEIRA, Dionísio: “Reminiscência da Campanha do Paraguai”: 1865/1870. Edição da Biblioteca Militar - Vols. CXXV e CXXVI Gráfica Laemmert Ltda. - Rio de Janeiro - s/data. DAMASCENO, Athos: “Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul” Separata do Volume FUNDAMENTOS DA CULTURA RIO-GRANDENSE, segunda série, Faculdade Filosofia - UFRGS - s/data. D‟EU, Conde: “Viagem militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865)” Coleção Brasiliana, série 5ª, Volume 61, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1936. DOURADO, D. Ângelo: “Os voluntários do martírio” Liv. Echenique - Pelotas - 1896. DREYS, Nicolau: “Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul” Instituto Estadual do Livro - Porto Alegre - 1961. [...] GRANADA, Daniel: “Reseña histórico-descritiva de antigas y modernas supersticiones del Rio de la Plata” Editorial Guilhermo Kraft Ltda., Buenos Aires, Argentina, 1947. SALDANHA, Dr. José de: “Diário Resumido e Histórico (Campanha 4ª de 1786 para 1787)” “in” Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1929, volume LI, M.E.S. - Serviço Gráfico, Rio de Janeiro, 1938.232
Além das obras listadas anteriormente, Fagundes cita sete textos jornalísticos
de sua autoria, incluídos na sessão Bibliografia em sua obra Indumentária Gaúcha,
aqui em estudo. Contudo, verificou-se que ao longo do texto o autor menciona ainda
algumas obras e entrevistas orais as quais não constam na bibliografia, e cujas
referências não são assinaladas, mas que serão abordadas ao longo desta análise.
Para definir a composição da indumentária gaúcha do primeiro e segundo
período, Fagundes se baseia nos relatos de José de Saldanha, Auguste de Saint-
Hilaire, Nicolau Dreys e aquarelas de Jean Baptiste Debret, Emeric Essex Vidal e
Juan Manuel Blanes. Logo, a análise inicia com as referidas fontes.
231
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 235. 232
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 29-30.
89
José de Saldanha – entre os citados, o primeiro a visitar o Rio Grande do Sul,
em 1787, conforme verificado em capítulo anterior – registra algumas palavras, fatos
e impressões que considera importantes para a compreensão do seu texto principal,
discorrendo sob notas explicativas no rodapé do seu diário. Após receber uma visita
de índios minuanos, Saldanha faz um amplo registro, com impressões sobre a
fisionomia, usos e costumes dos referidos índios. O autor justifica seu registro
dizendo: “Eu não me posso dispensar de ajuntar neste lugar tão rezumido, o que
tinha rezervado para hum Suplemento, porem a importância da matéria me
desculpará o excesso.”233
A relevância do tema para o autor fica ainda mais explícita na introdução
elaborada para a nota, quando Saldanha utiliza da teoria de um dos mais
importantes naturalistas, o sueco Caroli Linnaei, que publicou no século XVIII a obra
Systema Naturae, dividindo a natureza em três reinos: animal, vegetal e mineral.234
Saldanha discorre sobre a teoria dizendo que o homem é parte dos primatas no
reino animal, que por sua vez está dividido em Monstruozo, Europeu, Asiático,
Americano e Africano. Contudo, apenas a categoria Monstruozo, Linnaei divide em
três subvariedades. No entanto, em razão da diversidade de índios que encontrou,
Saldanha se diz obrigado a dividir a categoria Americanos também em quatro
subvariedades: Patagoens, Pampas, Minuanos e Tapes. E segue afirmando que o
número seria maior se presenciasse todos os diferentes índios da América.235
Dessa forma, José de Saldanha descreve usos e costumes dos referidos
índios. Cita o autor sobre a composição do vestuário dos minuanos:
Os cabelos soltos e enriçados de que procede não cresceram muito, cobertos pelas costas até os calcanhares, com os cayapis – ou grandes mantas de couro descarnado e sovado com o pelo para o corpo e o carnal para a parte de fora atados com hua tira do mesmo couro, por cima dos hombros, e por diante do pescoço: envolvidos desde a cintura até o joelho com volta e meya de panno de algodão, são estas as suas vestimentas. [...] As suas lanças são humas varas compridas, e direitas que acabam em huma das extremidades com hum palmo ou dois de punhal [...] as bolas e laço, instrumentos comuns e necessarios aos campeiros [...] a faca flamenga com uma
233
SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 231. (sic) 234
LINNAEUS, Caroli. Systema naturae. Holmiae: Impesis Direct, Laurentii Salvii, 1758, p. 06 e 20. 235
SALDANHA, op. cit., p. 231-232.
90
bainha de couro cru, sempre a trazem entalada entre a Tanga de algodão e a cintura pela parte das costas.236
Sobre os visitantes minuanos, Saldanha afirma serem caciques, aqueles que
tomam para si seus bandos, e cita seus nomes, dizendo ainda que um deles, de
nome D. Miguel, havia trabalhado em uma estância como peão, porém retornou para
os seus. Vivem livres com os demais, criando e vendendo alguns produtos criados
por eles, pois circulam livremente entre portugueses e espanhóis. O autor segue
explicando:
A sua vestimenta é hua camisa sobre a Tanga de Algodão e as vezes um ponche Bichará (os ponches de que tanto uso se faz neste continente, tem a figura rectangular como de um cobertor, com huma abertura no centro, pela qual os enfião na cabeça assentando sobre os hombros, e cahindo a metade para diante, e a metade para traz: há-os de differente cores, na cidade de Buenos Ayres, outros mais finos e bem fabricados, a que os Hespanhoes chamão de Palla vendem por seis, ou oito pezos fortes. Também fabricão outros em Missões de algodão, com diversas cores, mais finas e que dão pelo valor de doze a dezesseis pezos dos ditos, e estes são a similhança de huns ricos de tecido de algudão finissimo e Listras de cores delicadas, que se apronptão na cidade de Paraguay, e vizinhas Povoações, e de custo desde noventa a cem pezos fortes. Destes se servem as Pessoas, mais ricas, também para cobertas de cama). [...] outros dos Minuanos trazem os cabelos, e cabeça atados com hum pequeno e sujo lenço [...].237
Os registros de Saldanha se referem sobretudo aos índios e, com base em
suas impressões, percebe-se que o poncho, as armas e o pano de algodão que os
envolvem da cintura até o joelho vêm ao encontro de parte dos elementos do
vestuário do Peão e do Patrão das vacarias propostos por Antonio Augusto
Fagundes, como o denominado chiripá. Além desse, percebe-se ainda nos registros
de viajantes posteriores o uso dessas vestimentas, ou de alguns elementos, por
homens de outros grupos culturais, incluindo europeus, que circularam pelo Rio
Grande do Sul e pela região platina. Auguste de Saint-Hilaire registrou vestimentas
no mesmo espaço, porém de outros grupos, 30 anos após Saldanha e verificou
elementos semelhantes. Tais observações reforçam a afirmação de Fagundes
236
SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 233-234. (sic) 237
Ibidem, p. 234. (sic)
91
quando diz que o gaúcho, bem como sua indumentária, é resultado de uma
composição de culturas.238
Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês, que esteve no Brasil entre 1816
e 1822, registra o vestuário daqueles que lá viviam ou circulavam em diversas
passagens. Porém, diferentemente de Saldanha, não o faz em notas de rodapé, mas
dentro do próprio texto, já que seus objetivos de trabalho eram diferentes. Tal qual
mencionado no primeiro capítulo, seus relatos se apresentam em primeira pessoa, o
que demostra interação com a população, principalmente com os povos autóctones.
Dessa forma, seu relato pode ser classificado, segundo Flora Süssekind e Mary
Louise Pratt, como sentimental.
A obra intitulada “Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil)”, publicada na França
em 1887, é resultado de pesquisas realizadas entre junho de 1820 e maio de 1821.
Nesse espaço de tempo, Saint-Hilaire percorreu o atual estado do Rio Grande do
Sul e o Uruguai. No entanto, no Brasil, até 2002, a obra não tinha sido publicada na
íntegra, sendo excluída sua passagem pelo Uruguai.
Para esta pesquisa será considerado o registro como um todo, pois no
período em questão as terras do atual Uruguai estavam sendo requeridas por
Portugal. Desde 1811, Dom João VI vinha invadindo a chamada Banda Oriental e,
entre idas e vindas e alguns embates, em 1820, uma das batalhas vencidas239
concedia o domínio definitivo a Portugal, sendo assinado um tratado no ano seguinte
oficializando e anexando a Banda Oriental a Portugal sob a denominação de
Província Cisplatina. Pelo menos até a Guerra Cisplatina alguns anos depois, que
fez surgir entre a Argentina e o Brasil, o Uruguai.240 Dessa forma, os estancieiros do
Rio Grande do Sul, que haviam intensificado suas entradas em terras uruguaias
objetivando a pilhagem do gado, promoviam um trânsito frequente entre terras
brasileiras e orientais, chegando a estabelecer estâncias na região.241 Com índios e
brancos atuando nas estâncias, bem como nas guerras, e todos transitando pela
chamada região platina, seus usos e costumes se entrelaçavam.
238
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 9. 239
Batalha de Taquarembó. 240
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A expansão do Brasil e a formação dos estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 241
PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 18.
92
Sendo o gaúcho resultante dessa miscigenação de homens em circulação por
toda essa região, tornou-se personagem representante também da identidade
argentina e da uruguaia. O movimento de guerras por demarcações de fronteiras,
seja atuando nelas ou fugindo delas, o trabalho nas estâncias, entre outros ensejos,
contribuíram para a semelhança dos hábitos vestimentares. A esse respeito, é
possível verificar comparações feitas por Saint-Hilaire entre as populações por onde
passava. Registra o autor:
Além disso, os homens de Entre-Rios que vi em São Borja são notáveis por sua avantajada estatura [...]. As roupas deles e as dos habitantes do campo de Montevidéu fazem com que eles pareçam bandidos de teatro; eles têm cabelos trançados e um lenço ao redor da cabeça; um outro lenço ligado muito frouxo lhes serve de gravata; para as armas eles usam uma grande faca, comprida pendurada no cinto. Eles usam o chiripá com calça branca com franja. O chiripá é frequentemente listrado em vermelho; em geral eles não usam casaco e as mangas de suas camisas são dobradas como as mangas dos nossos açougueiros.242 (grifo nosso)
A comparação realizada pelo autor se dá entre habitantes do campo de
Montevidéu, no Uruguai, e homens de Entre Rios, na Argentina243, encontrados em
São Borja244, no Rio Grande do Sul, em março de 1821, o que demonstra a
circulação entre regiões. Vê-se que a descrição que faz do vestuário vem ao
encontro do Peão das vacarias nomeado por Fagundes, que usava, segundo o
autor, “Lenço como touca atado à nuca, na cintura o facão, o chiripá e as ceroulas
de crivo”, aqui descrito por Saint-Hilaire como “lenço ao redor da cabeça, grande
faca pendurada no cinto e o chiripá com calça branca de franja”. Sendo que
semelhantes mangas dobradas, que o autor compara com as dos açougueiros,
podem ser vistas na camisa utilizada por Paixão Côrtes na foto exposta na Figura 5.
Quanto ao modelo de chiripá, Auguste de Saint-Hilaire explica o formato e sua
usabilidade: “Vários enrolam ao redor da cintura uma coberta listrada que parece um
saiote (saia, chiripá).”245 E segue detalhando em outro registro o tamanho e o tecido
utilizado: “Eles usam o chiripá, um tipo de cinto que se estende até os joelhos, como
242
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 361 (tradução nossa). 243
Província do nordeste da Argentina. 244
São Borja é uma cidade situada a Oeste do estado do Rio Grande do Sul. 245
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 28 (tradução nossa).
93
uma saia e que é feito desse tecido grosseiro usado para fazer ponchos.”246 E, por
fim, o autor reitera: “[...] chiripá, um pedaço de lã que é feito um cinto e que cobre as
coxas até os joelhos como um pequeno saiote.”247 Vale destacar que nessas
citações o autor se refere a espanhóis e uruguaios, mas estavam no Rio Grande do
Sul na ocasião do seu registro. Nota-se que o chiripá de Saint-Hilaire vem ao
encontro do vestuário indígena registrado por Saldanha como pano que se estende
da cintura até os joelhos.
Sobre as calças de algodão com franjas, não fica claro nos registros se eram
utilizadas como complemento do chiripá, ou se poderiam ser utilizadas
individualmente, conforme afirma Fagundes. O fato é que o registro das calças com
franjas vem seguido da descrição do chiripá. Complementando a citação anterior, o
viajante diz: “Usam calças largas de um pano de algodão feito em casa e a
extremidade de cada perna termina com franjas sobre as quais muitas vezes são
feitos pontos de arremate.”248 Em outra descrição chama-os de “homens com roupas
de camponeses, com chiripá, as calças de franjas e as botas de couro de perna de
novilha”249.
Quanto aos estancieiros, Saint-Hilaire discorre sobre um homem e seus
amigos de uma estância onde ficou hospedado, nos campos de Viamão, no
nordeste do atual estado do Rio Grande do Sul. Registra o autor que o proprietário e
seus amigos “eram todos brancos e tinham hábitos parecidos com os camponeses
franceses, trajavam calças de pano de algodão, botas e esporas de prata, um
casaco de pano e em cima um pocho”250.
Quanto ao poncho, Saint-Hilaire registrou em Mostardas, próximo a Porto
Alegre, uma estância onde se criava ovelha, cuja lã as mulheres utilizavam para
tecer ponchos, que, porém, não tinham qualidade, mas eram vendidos em locais
como Porto Alegre. Em tom depreciativo cita o autor que “Esses ponchos são
brancos com listras marrom ou preta e são usados apenas pelos índios e negros”251.
O autor ainda atribui aos jesuítas o conhecimento da tecelagem, diz ele que, ao
ensinar os índios, contribuíram para a disseminação da técnica no Rio Grande do
246
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 131 (tradução nossa). 247
Ibidem, p. 131 (tradução nossa). 248
Ibidem, p. 151 (tradução nossa). 249
Ibidem, p. 240 (tradução nossa). 250
Ibidem, p. 13-14 (tradução nossa). 251
Ibidem, p. 59 (tradução nossa).
94
Sul e na Banda Oriental.252 Comenta o viajante que presenciou usos distintos do
poncho, inclusive atravessado ao peito, semelhante ao vestuário romano.253
O hábito de atribuir diferentes usos para uma mesma peça de vestuário foi
registrado por outros viajantes, entre eles Nicolau Dreys, que, por ter residido na
região durante dez anos, de 1817 a 1827, descreve em detalhes o homem do Rio
Grande do Sul. Quanto ao ponche, Dreys registra que “he o vestido de obrigação
para o Rio Grandense; he quasi vestido característico, bem que se ache igualmente
introduzido nos outros povos do Sul do Brazil [...]”254, além do uso para defender do
frio e da chuva, utilizado como “barraca” em acampamentos.
Em seus registros, Nicolau Dreys afirma que a posição social e a riqueza do
habitante do Sul não são demonstradas pelo seu vestuário, mas pelos acessórios de
luxo utilizados em seu cavalo.
[...] o cavaleiro, dizemos, apparece modestamente coberto de seu ponche de panno azul, forrado ordinariamente de baeta vermelha, e por baixo delle levando humas calças e jaqueta do mesmo panno ou fazenda de algodão, segundo a estação.255
Da mesma forma que Saldanha e Saint-Hilaire, Dreys conceituou o gaúcho,
conforme exposto no primeiro capítulo, porém demonstrou maior conhecimento
sobre ele, possivelmente em razão do tempo de permanência no Rio Grande do Sul.
O autor afirma serem nômades, e por isso vivem no Sul entre os três países, do
oeste até o oceano. Sobre seus hábitos vestimentares, menciona:
O gaúcho he optimo cavalleiro: identificado apparentemente com o cavalo, nasce, vive e morre com elle [...]. A faca he arma particularmente usada nas questões que sobrevem entr‟elles [...]. Certo de seus mantimentos, enquanto o laço não lhe faltar, e não tendo vestido senão o estricto necessa‟rio, isto he, o chiripá, pedaço de baeta amarrado em redor do corpo, da cintura para baixo; e por cima do chiripá, o cingidor, especie de avental de couro crú, destinado a receber a fricção do laço, quando um animal faz força sobre elle; huma camisa, se a tem; huma jaqueta sem mangas; hum par de ceroulas com franjas compridas nas extremidades inferiores; as vezes um par de calças por cima; hum lenço, quasi sempre, amarrado na cabeça; hum chapéo roto; raras vezes hum ponxe
252
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 276 (tradução nossa). 253
Ibidem, p. 297 (tradução nossa). 254
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 170. (sic) 255
Ibidem, p. 170.
95
completo, e em lugar d‟este, hum pedaço de baeta vermelha [...]. O barbicacho é uma guasca [...]. Suas botas são, de ordinário, fabricadas da pelle crua tirada inteira da perna de hum cavalo ou de hum boi, seccada depois sobre huma fórma grosseira e amarrada fortemente na extremidade inferior para formar a ponta do pé.256
Ao exame dos registros textuais de José de Saldanha, Auguste de Saint-
Hilaire e Nicolau Dreys, é possível notar que os elementos de vestuário destacados
por eles reverberam na indumentária tradicionalista gaúcha, nesse caso, nos trajes
do Peão e do Patrão das vacarias. Cabe ainda salientar que o vestuário gaúcho
desse primeiro período elaborado por Fagundes é um espelho das produções
textuais de tais viajantes. Todavia, há elementos na composição pontuada por
Antonio Augusto Fagundes não encontrados nos relatos. Nesse sentido, passar-se-á
para a verificação das aquarelas de Jean Baptiste Debret, Emeric Vidal e Juan
Manuel Blanes, para que averiguar e analisar.
Nesse sentido, o texto se dedica a investigar o vestuário nas imagens
registradas em aquarelas, tecendo relações com o conjunto de referências
selecionadas por Fagundes para compor a vestimenta do gaúcho, com o objetivo de
verificar os elementos que reverberam na indumentária dos tradicionalistas gaúchos.
As imagens serão analisadas à luz de Erwin Panofsky, no que se refere à teoria da
iconografia e iconologia proposta pelo autor, ou seja, constituindo inicialmente uma
descrição pré-iconográfica, procurando apreender as formas, as linhas e as cores,
porém ampliando o olhar, buscando sobretudo os significados intrínsecos e
convencionais, e atentando para o aporte cultural que envolve tais registros.257
Serão consideradas ainda observações levantadas por Peter Burke quanto à teoria
de Panofsky no que se refere ao significado em diferentes espectadores.258
O primeiro citado por Fagundes é Jean Baptiste Debret. Pintor e desenhista
francês, integrou a Missão Artística Francesa ao Brasil e aportou na colônia com
outros artistas em 1816. Aqui retratou, principalmente, cenas do cotidiano do Rio de
Janeiro, incluindo a Família Real Portuguesa. Contudo, faz parte das produções
brasileiras cenas de lugares para além do Rio de Janeiro, entre eles o Rio Grande
do Sul.
256
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. 257
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50-52. 258
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 51.
96
Após seu retorno à França em 1831, ainda na mesma década, Debret se
dedicou à publicação de suas produções, com ampla obra de três volumes intitulada
“Voyage pittoresque et historique au Brèsil”. Porém, a primeira edição brasileira foi
traduzida e publicada somente em 1940. No entanto, quatorze anos depois, em
1954, foi publicada no Brasil, pelo empresário e colecionador de arte Raymundo
Ottoni de Castro Maya, outra obra com inéditas aquarelas do artista, adquiridas pelo
colecionador Castro Maya, atualmente parte do acervo do museu de mesmo nome
no Rio de Janeiro. Entre elas, aquarelas que retratavam a paisagem e os homens do
Rio Grande do Sul.259
Suas produções circularam entre os folcloristas da década de 1950, tornaram-
se fontes obrigatórias para aqueles que se dedicavam à pesquisa dos costumes no
Brasil.260 Essa última obra, com aquarelas inéditas, foi citada inclusive por
tradicionalistas como Barbosa Lessa em publicações posteriores.261 No entanto, não
se sabe a quais aquarelas Antonio Augusto Fagundes se refere ao citar Debret, já
que o autor não inclui a obra entre as suas referências, apenas cita o artista no
texto. Contudo, serão analisadas duas obras do pintor francês, uma inserida na
primeira publicação, “Voyage pittoresque et historique au Brésil”, nomeada Charruas
Civilisés (Pions), de 1834, escolhida em razão da palavra Pions incluída entre
parênteses, designando a ocupação dos indígenas. A outra imagem selecionada faz
parte da coleção de Castro Maya, e a escolha nesse caso se justifica por ser a única
em que o autor enfatiza a palavra “gaúcho”, intitulada “Homem do Rio Grande.
Gaúcho”. Não há nos registros a data da obra, tampouco a data da sua estada no
Sul.
259
OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, 2017, p. 160. 260
Nos Anais do I Congresso no Rio de Janeiro, em 1951, vê-se Debret, Saint-Hilaire, entre outros viajantes citados nas conferências realizadas. Ver: IBECC. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore. São Paulo, 1951. 261
LESSA, Barbosa. O Rio Grande do Sul através de Debret. Porto Alegre: SAMRIG, 1978, p. 03.
97
Dessa forma, sem a pretensão de apreender toda a obra, aplicando a
“retórica da certeza”, ou considerando esta como um espelho exato ou um vidro
transparente capaz de traduzir todos os conceitos em imagens e todas as imagens
em conceitos, conforme discorre Didi-Huberman262, o texto pousa o olhar nas
referidas imagens no sentido de identificar os referenciais do vestuário, porém
atentando para além do visível, procurando os significados que permeiam a obra em
diferentes tempos.
Figura 12 - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret, 1834.263
A imagem apresenta em primeiro plano dois indivíduos, os quais Debret
descreve como índios charruas civilizados atuando como peões. O artista os insere
em uma paisagem composta por relevos, tal qual a geografia característica do sul, e
ao fundo outros peões aparecem tocando uma tropa de animais. Segundo Saint-
Hilaire, os índios charruas e minuanos se uniram, de forma que não é possível
identificá-los como um ou como outro. Quando integrados são chamados de peões,
trabalhavam em estâncias ou como muleiros, ou tropeiros, e tinham como função
acompanhar grupos ou tropas de animais em longas jornadas. Quanto à fisionomia,
262
DIDI-HUBERMAN, George. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 11. 263
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
98
chegou a mencionar que havia brancos e mulatos, de rosto estreito e alongado.264 A
representação mostra consonância com o relato de Nicolau Dreys, cujos registros
apontam que os peões acompanham manadas, ou trabalham em estâncias, “são
negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gauchos
assalariados; sua ocupação consiste em velar sobre os animais, contê-los nos
limites da estancia, reuni-los, guarda-los e aparta-los [...]”265.
Ao lado, porém em segundo plano, o cavalo aguarda por seus arreios, a fim
de continuarem os trabalhos, tendo em vista que os peões podem ter parado para
um descanso, em razão da fogueira à esquerda na imagem. A esse respeito, Dreys
registra que os tigres266 eram numerosos e perigosos naquela província, dessa
forma, era comum visualizar cabanas espalhadas pelas passagens, com o objetivo
de proteger os peões da invasão desses animais em seus momentos de descanso
ou pernoites no campo. Porém, na ausência das cabanas, os peões se valiam de
fogueiras em suas paradas para afugentar os tigres, que atacavam tanto os peões
como os animais conduzidos.267 Saint-Hilaire também registra a presença de um
tigre em volta de seu acampamento, em uma das pernoites ao ar livre, afirmando
terem percebido o animal próximo do lugar onde haviam feito fogo, momento antes
de acabar a brasa. Tiveram então de fazer uso da arma a fim de afastar o animal.268
A obra coaduna com os registros de Saint-Hilaire e Dreys, que por sua vez
repercutem na composição proposta por Fagundes. Este define que, pelo viés da
indumentária, o gaúcho é o índio que aos poucos se integrou ao meio e miscigenou-
se; no entanto, não descreve sua fisionomia. Embora não seja objetivo desta
pesquisa analisar a origem dos referenciais de Debret, e sim de Fagundes, em razão
da ausência de registro sobre a data da viagem de Jean Baptiste Debret ao Rio
Grande do Sul, é importante mencionar a possibilidade de este não ter viajado para
264
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 277, 502 e 605. 265
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 142 e 179. 266
Os tigres registrados pelos viajantes possivelmente dizem respeito ao gato-do-mato ou jaguatirica. 267
DREYS, op. cit., p. 82-85. 268
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 299.
99
a região, e sim produzido suas obras ancorado nos registros textuais dos viajantes
aqui citados.269 Ou ainda, de acordo com Burke, pode o artista ter recebido apoio de
“conselheiros humanistas”, conforme teoria de Warburg e Panofsky, configurando
um apoio aos viajantes para formular um programa iconográfico de imagens.270
Porém, a possibilidade de Debret ter recorrido aos registros de outros
viajantes para representar o homem do Rio Grande do Sul, o Gaúcho ou o Charrua,
não reduz o seu talento, sua autoridade como artista e sua importante contribuição
para a história brasileira. Ao mesmo tempo, não há dúvida de que a experiência em
campo ampliaria e qualificaria ainda mais o repertório imagético do artista sobre o
representado. No entanto, se por um lado poderia ter alcançado uma quantidade e
diversidade maior de elementos do vestuário, por outro, a representação imagética
de Debret seria entendida como uma tradução de imagens narradas e
testemunhadas pelos viajantes que talvez os tradicionalistas desse tempo não
fizessem com tamanha precisão, já que são representações de intelectuais de um
mesmo tempo e espaço cultural e, portanto, com ideias e referenciais que
convergiam.
Nesse sentido, caso sejam realmente releituras dos registros, são também
consideradas importantes para esta análise, que objetiva verificar os elementos que
reverberam na proposta de Fagundes. Mas são apenas suposições, não há certeza
de que o artista não tenha vindo. O fato é que são imagens que reforçam os
registros dos viajantes e foram importantes fontes para Fagundes.
O testemunho de imagens é valioso para a cultura material, segundo Peter
Burke, por revelarem não apenas os artefatos em si, mas a sua organização. E uma
das vantagens é que elas comunicam rápida e claramente os detalhes de um
processo complexo, muito mais rápido que um texto. No que se refere aos trajes,
reitera o autor que “O valor de imagens como evidência para a história do vestuário
é inquestionável [...]”271. Dessa forma, examinado o contexto da paisagem em que
os peões estão inseridos, seguimos para a análise do vestuário.
269
Sobre a possibilidade de Debret não ter estado no Rio Grande do Sul, há várias discussões a respeito, entre elas ver: LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 270
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 50. 271
Ibidem, p. 99.
100
Figura 13 - Chiripá - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.272
O chiripá primitivo, conforme nomeia Fagundes, é por ele considerado a peça
principal do traje gaúcho do primeiro período, por isso o nomeia como primitivo.
Registra o autor, citando Saldanha, que tal peça consiste em um retângulo enrolado
da cintura até os joelhos; também foi registrado por Saint-Hilaire, como um tipo de
cinto que se estende até os joelhos. A mesma peça do vestuário é retratada por
Debret com tamanho inferior ao citado, refletindo a descrição de Nicolau Dreys, que
não cita o comprimento. O chiripá vem acompanhado de ceroula com barra franjada
e calças azuis, sendo que todos os elementos estão dispostos sob o cingidor,
também citado por Fagundes sob a denominação tirador.
Contudo, Fagundes mantém o registro do chiripá até os joelhos, demonstra a
usabilidade de parte das peças individualmente ou formando outras composições, e
a calça ou calções intitula braga, registrando ainda a tipologia dos tecidos utilizados
nessa peça: “[...] justo nas coxas, terminando logo abaixo dos joelhos. Os
portugueses chamavam a esses calções „bragas‟ [...]. O material das bragas era o
veludo, a lã e o algodão, conforme as posses do homem.”273 As ceroulas e as braies
são também mencionadas como roupas ordinárias dos homens brancos no espaço
rural, bem como os bordados, crivo, rendas e outros enfeites em roupas brancas,
tanto para homens como para mulheres, no estudo de Mara Rúbia Sant‟Anna sobre
“sociabilidades coloniais”274.
272
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 273
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 7. 274
SANT‟ANNA, Mara Rúbia. O Brasil por suas aparências: sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016, p. 65-66.
101
Cabe destacar que o veludo das calças não foi encontrado nos registros de
Saldanha, Saint-Hilaire e Dreys, viajantes citados por Fagundes. Afora a textura
aveludada das calças retratadas na aquarela de Debret, o registro aparece na
publicação do francês Arsène Isabelle, como calça de veludo azul-celeste e jaqueta
de pano também azul. Embora o viajante não tenha sido citado na obra sobre o
vestuário gaúcho de Antonio Augusto Fagundes, pode também ter sido utilizado por
este como referência.
Figura 14 - Camisa, jaleco, jaqueta e ponxe - Charruas Civilisé (Pions),
Jean Baptiste Debret.275
No que refere à parte superior do vestuário, Fagundes descreve a camisa
“sem botões, apertada aos punhos por cadarços, com gola ampla e mangas fofas
[...]”276, elementos retratados no vestuário do peão da esquerda na aquarela de
Debret. A peça em tom ferroso sobre a camisa branca retratada na obra é registrada
por Fagundes como jaleco, que exemplifica dizendo ser uma “espécie de colete”,
também chamada por Nicolau Dreys de “jaqueta sem mangas”277.
275
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo Biblioteca Nacional - RJ. 276
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 7. 277
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 196.
102
Sobre o jaleco, algumas vezes é utilizado “une veste court”278, conforme
descreve Saint-Hilaire. A peça é chamada por Fagundes de jaqueta, e explica ser
um “casaquinho curto, terminado na cintura, fechado à frente por moedas ou
grandes botões de metal”279. Observa-se que, mais uma vez, os elementos que
compõem o vestuário na aquarela de Debret reverberam na composição proposta
por Fagundes e reafirmam os registros dos viajantes. Cabe dizer ainda que os
botões de metal, citados pelo autor, constam em vestuários retratados em outras
pinturas de Debret.
O ponche ou pala-bichará repercute na aquarela, sendo utilizado de duas
formas, conforme descrito por outros viajantes: amarrado na cintura do peão à
esquerda, e atravessado no peito no peão da direita. As duas formas de uso
retratadas na aquarela não são registradas na obra de Fagundes. Porém, conforme
citado, constam nas descrições de Saint-Hilaire, que compara inclusive com o
vestuário romano. Dreys escreve que nem sempre o gaúcho utiliza “ponxe completo,
em lugar d‟este, hum pedaço de baeta vermelha”280, que seria um tecido pesado de
lã.
Fagundes o chama de pala-bichará e descreve como “um grande retângulo
formado de dois tecidos de lã, incompletamente costurados deixando uma abertura
no centro, por onde o homem enfiava a cabeça”281, sendo que houve também
produção em outros tecidos, em razão da disseminação da tecelagem por parte dos
jesuítas no Rio Grande do Sul. No que se refere ao ponxe, ponche bichará, pala-
bichará ou poncho, vê-se que Fagundes teve como referência o registro de José de
Saldanha.
Conforme peças de roupa utilizadas para a definição do vestuário gaúcho da
primeira época e de parte do vestuário da segunda época, verifica-se que os
retratados na aquarela de Debret exibem também acessórios que se destacam em
Fagundes. A imagem apresenta dois diferentes modelos de chapéu, que podem ter
sido referência para os chapéus de feltro e de couro registrados pelo tradicionalista.
278
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 152. 279
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 8. 280
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 196. 281
FAGUNDES, op. cit., p. 8.
103
Figura 15 - Chapéus - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.282
Antonio Augusto Fagundes cita o uso do chapéu pelos gaúchos em todas as
fases, ou períodos, em que dividiu o vestuário. Segundo o autor, na primeira fase
eram usados chapéus de copa alta e abas estreitas e de palha de abas largas. O
primeiro, conhecido como chapéu “pança de burro”, de couro cru ou de feltro.283
Além da imagem examinada, que os apresenta visualmente, Saint-Hilaire descreve
os citados chapéus como peças de “abas estreitas e forma muito alta e
arredondada”284, enquanto Nicolau Dreys chama de chapéu “roto” ou envelhecido.
Os chapéus de feltro não são descritos pelos viajantes citados por Fagundes, porém
constam nos relatos de outros que passaram pelo Rio Grande do Sul.285
Embora não haja registro nos citados diários sobre o chapéu “pança de
burro”, Fagundes descreve sua fabricação artesanal, afirmando ser “feito com um
retalho circular de couro da barriga do muar, moldado na cabeça de um
palanque”286. E justifica a ausência de documentos comprobatórios dizendo: “Não se
conhecem, ainda, documentos a respeito do uso do chapéu de pança-de-burro entre
os gaúchos rio-grandenses, mas é presumível tenha sido usado tanto na Banda
Oriental como no Rio Grande, face os costumes comuns à época.”287 Ou seja,
282
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 283
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 8, 14 e 16. 284
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 502. 285
LOCCOCK, John. Aspectos sul-riograndenses. São Paulo: Record, 1935, p. 54. 286
FAGUNDES, p. cit., p. 14. 287
Ibidem, p. 14.
104
segundo o autor, são hipóteses, no entanto, incluiu o referido chapéu entre os
elementos do vestuário do gaúcho estancieiro.288
O lenço “como touca, atado à nuca”, ou “amarrado à pirata” foi incluído por
Fagundes desde as primeiras épocas, e só desaparece a partir de 1865, quando
inicia a última época citada pelo autor. Tal elemento compõe o vestuário retratado
por Debret, bem como consta nos registros de Saint-Hilaire, Dreys e Saldanha,
alguns sujeitos inclusive foram registrados com um lenço na cabeça e outro no
pescoço. Quanto à coloração, não é especificada pelos viajantes, apenas Saldanha
sinalizou que eram sujos os lenços que os minuanos traziam atados à cabeça. No
entanto, Fagundes cita como sendo o branco e o vermelho os mais populares, mas
acrescenta que outras cores, e a padronagem enxadrezada, também eram
utilizadas.289 Informação que se equipara com os lenços retratados por Debret e que
irão compor pinturas de outros artistas.
Figura 16 - Botas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.290
288
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 289
Ibidem, p. 16. 290
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
105
As botas retratadas por Debret e descritas pelos viajantes, Nicolau Dreys e
Auguste de Saint-Hilaire, apresentam algumas peculiaridades. Segundo eles, são
fabricadas artesanalmente a partir do couro da perna de animais, fato que deu
origem ao nome “bota de garrão de potro”. Fagundes afirma que a referida bota é
“invenção gauchesca típica”291, lembrando que a indumentária tem forte influência
ecológica em razão do contexto vivido pelo gaúcho. Sobre as botas, discorre o autor:
As botas mais comuns eram as de garrão, que o próprio gaúcho sacava de vacas, burros e éguas: raramente do potro que lhes deu o nome. Essas botas eram lonqueadas, ou perdiam o pelo com o uso. Mas às vezes o pêlo era resguardado e até mesmo se matavam mais de um animal para conseguir um par de botas manchadas, iguais. Em uso, as botas de garrão não duravam mais de dois meses. Normalmente, eram feitas com o couro das pernas traseiras do animal, que dão botas maiores. Aquelas tiradas das patas dianteiras – mãos – muitas vezes eram cortadas na ponta e no calcanhar de fora. Acima da barriga da perna, o homem ajustava essas botas por meio de tentos, ou trança.292
Fagundes complementa a obra com ilustrações de Jorge Ubiratan Lopes,
apresentando algumas tipologias de botas de garrão de potro. As imagens mostram
a “bota garrão de potro inteira, bota garrão de potro com dedos e calcanhar de fora e
bota de meio pé”. A primeira delas traz semelhanças com as botas retratadas por
Debret.
291
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 292
Ibidem, p. 11.
106
Figura 17 - Botas Garrão de Potro, Jorge Ubiratan Lopes.293
Roberto Lehmann Nitsche, renomado pesquisador alemão, residiu na
Argentina entre os anos de 1897 e 1930 e se dedicou a pesquisar sobre o folclore e
a etnologia daquele país, publicando em 1916 uma obra em que discorre sobre a
origem da bota de potro. De acordo com o autor, a bota faz parte do traje popular da
Argentina, porém tem origem no mundo antigo, chegando à América do Sul pelos
espanhóis. Na obra Nitsche descreve o processo de fabricação com imagens e
fotografias do início do século XX.294
Algumas obras publicadas recentemente trazem registros do seu uso por
diferentes índios da América do Sul. Patrícia Rieff Anawalt, importante pesquisadora
sobre indumentária da América e especialista em Cultura Asteca, publicou
recentemente imagens de índios utilizando botas de garrão de potro, chiripá e
cayapis295 na Patagônia.296 No Brasil, Edison Acri lançou uma obra com diversas
ilustrações com notas explicativas sobre o universo gaúcho, incluindo o processo de
fabricação da bota de garrão de potro.
293
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 47-48 e 53. 294
LEHMANN-NITSCHE, Robert. Folklore Argentino. La Bota de Potro. Boletín de la Academia Nacional de Ciencias en Córdoba. Buenos Aires, v. XXI, 1916, p. 185. 295
Os cayapis, como registrou José de Saldanha, foram publicados por Patrícia Rieff Anawalt como quillangos. 296
ANAWALT, Patrícia Rieff. A História mundial da roupa. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011, p. 501.
107
Figura 18 - Processo de fabricação da bota de garrão de potro.297
Ainda ao exame da imagem de Debret, observa-se nas costas do peão
retratado à esquerda um couro de gato-do-mato, ou tigre, conforme se referiam os
viajantes. De acordo com Antonio Augusto Fagundes, “houveram também umas
chamadas „botas-de-gato‟, mais raras, feitas com o couro do gato-do-mato”298, que
apareceriam nas descrições de Eric Essex Vidal.
297
ACRI, Edison. O Gaúcho: usos e costumes. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 69. 298
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 11.
108
Quanto às esporas, Debret representa na aquarela um modelo pontiagudo,
presente no vestuário gaúcho proposto por Fagundes sob o nome “eporas
nazarenas”. Registra o autor que “as nazarenas devem o nome aos seus espinhos
ponteagudos, que lembram os cravos que martirizaram Nosso Senhor”. Quanto às
esporas chilenas, também presentes nos trajes propostos pelo autor, têm sua
origem no Chile, sendo esse modelo hipertrofiado. Estas aparecem entre os
comentários do Conde d‟Eu quando da sua passagem pelo Rio Grande do Sul em
período posterior.299 Já Nicolau Dreys apenas menciona que “As esporas do gaúcho
tem mais de huma polegada de diâmetro”300.
Figura 19 - Armas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.301
Jean-Baptiste Debret expõe na imagem as principais armas do gaúcho,
corroborando as descriçoes de Nicolau Dreys: “[...] a faca, a espada, a pistola,
quando póde comprar, e, sobre tudo, o laço e as bolas; estas duas ultimas armas
299
ORLÉANS, Luís Filipi Maria Fernando Gastão de (Conde d‟Eu). Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Itatiaia/ USP, 1981, p. 43. 300
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. 301
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
109
são, ás vezes, as unicas que tem, e nunca o gaúcho hé visto sem ellas.”302 As armas
são também citadas por Saldanha e Saint-Hilaire. Antonio Augusto Fagundes
discorre sobre a composição e usabilidade:
Ainda à cintura, as infaltáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. Este era tão usado nos arreios que ganhou, por vezes, o nome de “facão caroneiro”. E sempre à mão a lança - de peleia ou de trabalho. Esta última ostentava uma lâmina em forma de meia-lua [...].303
A “faca flamenga” é mencionada por José de Saldanha, que cita o uso pelos
minuanos na cintura pela parte das costas. Tem esse nome em razão da origem do
aço, de exelente qualidade, e chegou à América pelos espanhóis. Com estrutura
inteiriça, e apenas um lado de corte, o modelo se diferencia principalmente pelo
cabo, elaborado com resistentes materiais, pode ser de prata, osso, chifre, entre
outros, a fim de proporcionar apoio, sendo preso com pinos.304 Visualmente
assemelha-se com o cabo retratado por Debret, na bota direita do peão à esquerda
na imagem. Esse hábito foi registrado também por Dreys, para quem seria mantido
principalmente pelos homens mais abastados do Rio Grande305, porém sabe-se que
os costumes foram permeando todos os habitantes do Rio Grande do Sul. As
adagas são facas com cortes para os dois lados, sendo o facão uma variação da
adaga.306
A espada, chamada por Fagundes de lança com lâmica em curva, é retratada
por Debret no ombro do peão da esquerda, enquanto que o outro traz um laço, arma
utilizada para capturar o gado no campo, uma espécie de “corda comprida de couro
entrançado”307, demonstrado na obra de Fagundes por meio de imagens. A
disposição dos acessórios faz alusão às habilidades de cada peão retratado por
Debret. No entanto, a boleadeira, arma comum na região, faz parte da composição
dos dois peões. José de Saldanha descreveu as bollas e o laço como instrumentos
302
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. (sic) 303
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 12. 304
Sobre facas, ver: ARANHA, Frederico; SELAIMEN, Cassio. A faca gaúcha: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Edigal, Renascença, 2013, p. 94-100. 305
DREYS, op. cit., p. 171. 306
ASSUNÇÃO, Fernando O. Pilchas Criollas. Buenos Aires: Emecé, 1991, p. 184-185. 307
DREYS, op. cit., p. 171.
110
comuns e necessários para os campeiros, utilizados para apanhar animais no
campo.308
A segunda aquarela selecionada, de Jean-Baptiste Debret, retrata o Homem
do Rio Grande do Sul e o Gaúcho. Um dos homens retratados se apresenta com
vestuário diferente daqueles observados na aquarela anterior, e está na presença de
um peão, o qual Debret denominou nesta aquarela de gaúcho.
Figura 20 - Homem do Rio Grande do Sul. Gaúcho. Jean-Baptiste Debret.309
Antonio Augusto Fagundes definiu o gaúcho como resultado natural do meio
em que vivia. Esse índio que passou a ser peão, conforme descrição na aquarela
anterior, agora é designado gaúcho, retratado por Debret no início do século XIX, é
resultado desse contexto, apresentado no primeiro capítulo, marcado pela
exploração do gado nas vacarias, que deu início às estâncias. A necessidade do
recrutamento de homens para arrebanhar o gado deu origem aos peões, que são
brancos, índios, negros e mestiços, revestidos com uma indumentária acessível à
época e cobertos por acessórios funcionais, conforme examinado.
308
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 170, 233. 309
Aquarela sobre papel (16,5x21,5cm), 1825. Acervo do Museu Castro Maya - Rio de Janeiro.
111
Os peões que optavam por trabalhar nas estâncias respondiam aos
proprietários, chamados de estancieiros, registrados por Nicolau Dreys como
homens do Rio Grande. Segundo o autor, eram homens geralmente altos, robustos
e bem-apessoados.310 Tal explanação corrobora a representação proposta na
aquarela de Debret, no que se refere ao homem retratado à esquerda. Contudo, se
atentarmos para a postura de ambos, o estancieiro parece que não inferioriza o
peão. No entanto, a discrepância entre eles fica evidente no vestuário, considerando
os elementos que compõem o traje do peão, bem como a relação do traje com as
práticas desempenhadas. Ou seja, o vestuário é revelador, tem poder de
comunicação, a cultura indumentária e a aparência revelam o status e o ser, como
afirma Daniel Roche.311
Nicolau Dreys afirma que o luxo fez progressos no Rio Grande do Sul, mais
do que em outras partes do Brasil. O homem do Rio Grande tem inclusive cavalos
ornados com ricos arreios, facas com cabos e bainhas de prata, que levam dentro
da bota, enquanto que na cintura, um par de pistolas. Não sai de casa sem o seu
ponche, pois debaixo dele as armas estão seguras. Dreys descreve seu vestuário
afirmando que utiliza “[...] ponche de panno azul, forrado ordinariamente de baeta
vermelha, e por baixo d‟elle levando humas calças e jaqueta do mesmo panno ou
fazenda de algodão, segundo a estação"312. Observa-se que os elementos citados
são corroborados na aquarela de Debret, no entanto, dentre as peças do vestuário,
o poncho ganhou destaque. Como a se impor diante dos outros elementos.
Do mesmo modo, Antonio Augusto Fagundes dedica em sua obra maior
atenção ao poncho, incluindo detalhamentos citados pelos viajantes. Em sua
explanação, afirma que a cor “quase sempre é azul escuro, forrado de baeta
colorada”313, mas que existem de outras colorações, inclusive com padronagens. Tal
afirmação pode visualizada no peão que está tocando os animais, retratado ao fundo
da aquarela, vestido com um pala de outras cores. O autor ainda acrescenta que “a
gola é alta, abotoada e há um peitilho na frente do poncho”, como visto no poncho
desenhado por Debret.
310
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 173. 311
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007, p. 506. 312
DREYS, op. cit., p. 170-173. (sic) 313
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 13.
112
Ao exame dos registros em torno do vestuário nas obras dos viajantes que
retrataram o Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX, como José de
Saldanha, Auguste de Saint-Hilaire, Nicolau Dreys e Jean-Baptiste Debret, verifica-
se o quanto tais informações permeiam as composições propostas por Antonio
Augusto Fagundes, demonstrando o esforço empreendido pelo autor em reunir as
peças representadas pelos viajantes. As referências se entrelaçam, formando uma
teia de informações e, acima de tudo, de significações importantes para a
elaboração do vestuário ideal buscado pelo autor.
No entanto, diante da obra de Fagundes, observa-se que houve lacunas
preenchidas com informações que não constavam nos documentos dos viajantes
citados, possivelmente buscadas nas fontes platinas, conforme mencionou em um
dos textos. O autor cita Emeric Essex Vidal (1791-1861) e Juan Manuel Blanes,
afirmando terem deixado belas “aquarelas e óleos” que documentam a época, ou as
épocas.
Entre os muitos artistas que imprimiram suas impressões sobre os costumes
platinos, evidenciando a presença do gaúcho, certamente Vidal e Blanes foram os
que mais tiveram obras em circulação no meio tradicionalista gaúcho. Emeric Essex
Vidal desenhou cenas do gaúcho em situações tradicionais do seu trabalho e lazer.
Os relatos que acompanham as aquarelas apontam que o autor visualizou tais
cenas no início do século XIX. Enquanto Blanes trouxe à tona um gaúcho já
romantizado do final do mesmo século, tranquilo e sem compromissos, mas que
chama a atenção pelo vestuário repleto de cores, sombras e luzes, retratado a óleo.
Emeric Essex Vidal foi oficial da marinha britânica, veio pela primeira vez ao
Brasil em 1808, em um dos navios ingleses que acompanharam a vinda da família
real portuguesa. Marinheiro, circulou entre o Rio de Janeiro, Bueno Aires e
Montevidéu. Chegou a Buenos Aires em 1816 e permaneceu até 1818, quando
retornou ao seu país.314 Embora não se dedicasse exclusivamente à produção de
aquarelas, em pouco tempo retratou inúmeras cenas platinas, e no seu retorno à
Inglaterra selecionou as 25 aquarelas que, acompanhadas de textos explicativos,
compõem o álbum “Picturesque Illustrations of Buenos Ayres and Monte Video”,
314
SEIF, Sebastián Senlle. El gaucho como sujeto social aportes desde la pintura y la literatura. Cuadernos de Filosofía Latinoamericana. Bogotá, v. 31, nº 102, p. 63-76, 2010, p. 66.
113
publicado em 1820.315 Suas aquarelas estão entre as primeiras a retratar os
costumes gaúchos.
As imagens de Vidal ilustram cenas do cotidiano platino. O autor organizou
suas obras atentando para as tipologias culturais que permeavam a região no
período, de modo que cada aquarela vem acompanhada de um texto sobre o
espaço, os costumes e o vestuário da população retratada. Imagens que, aos olhos
do autor ou do editor, tinham a responsabilidade de ilustrar a narrativa tão bem
construída e detalhada. Vidal não tinha a pintura como principal ofício, mas também
não era escritor, no entanto, realizou as duas atividades com muita destreza. Poucos
viajantes registraram em palavras detalhes de suas experiências. E suas imagens
não só ilustraram, mas dialogaram vivências. Entretanto, as produções imagéticas
publicadas separadas das produções textuais em questão permitiriam outras
leituras. A esse respeito, Peter Burke adverte sobre a utilização de imagens como
meras ilustrações ou para reafirmar conclusões.316
Pensando nos elementos do vestuário do gaúcho representados nas
aquarelas e nos textos de Vidal que podem ter contribuído para a proposta de
indumentária de Fagundes, verifica-se que as 25 aquarelas publicadas no álbum
apresentam de alguma forma usos e costumes dos gaúchos. Cada aquarela retrata
uma cena diferente, capaz de suscitar outras. Porém, uma em especial reúne um
expressivo número de homens retratados também nas demais aquarelas,
apresentando um momento de sociabilidade. Cada qual com seu vestuário
específico e acompanhado de um cavalo. Dessa forma, foi selecionada para análise
a citada imagem, intitulada “The Horse Race”, bem como as narrativas textuais que
acompanham as demais obras, até porque representa uma das práticas instituídas
como tradicionais pelos Centros de Tradições Gaúchas: as corridas de cavalos,
também conhecidas como “carreiras de cancha reta”317.
315
OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, 2017, p. 92. 316
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauri: EDUSC, 2004, p. 12. 317
GOLIN, Tau. O povo do pampa: uma história de 12 mil anos do Rio Grande do Sul para adolescentes e outras idades. Passo Fundo: EDIUPF, 1999, p. 80.
114
Figura 21 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817.318
As imagens de Emeric Essex Vidal são carregadas de significados. As
aquarelas publicadas no álbum “Picturesque Illustrations of Buenos Ayres and Monte
Video” seguem uma ordem que permite ao leitor realizar a experiência de conhecer
a cidade, seus usos e costumes com os olhos do autor, talvez não a rota que ele fez,
mas aquela que por algum motivo ele gostaria que os leitores fizessem. A obra
oferece um enredo que inicia com o sujeito, ainda sobre as águas do Rio da Prata,
avistando a recente urbanização de longe e enfrentando a dificuldade da chegada.
Em seguida se embrenha pelas imagens da cidade, passeando e visualizando os
diferentes grupos sociais e culturais, percebendo que há interação eles. Depois,
visita os espaços de convivência de cada um, dedicando especial atenção ao
ambiente de trabalho. E, ao final, um grande encontro de sociabilidades, em que se
reúnem a maioria dos agora “conhecidos” – The Horse Race, última imagem do
álbum.
Cabe notar que, em nosso imaginário, “construímos nossa narrativa por meio
de ecos de outras narrativas”319, como afirma Alberto Manguel. Contudo,
complementa o autor, como que a acalmar o leitor, “nenhuma narrativa suscitada por
318
VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 112. 319
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28.
115
imagens é definitiva ou exclusiva”320. Portanto, a seguir apresenta-se outro olhar e,
consequentemente, outra narrativa. Trata-se agora de um olhar para além do enredo
proposto. Com o conhecimento do conjunto das aquarelas que compõem o álbum,
mas focalizando o vestuário dos retratados nesse grande encontro de
sociabilidades, será analisado o diálogo e o comportamento da roupa com e no
evento.
Pensando na questão central, que é analisar a imagem de indumentária
gaúcha criada por Antonio Augusto Fagundes – desafio que suscitou a necessidade
de interpretar outras imagens e textos que poderiam oferecer subsídios para a
compreensão da imagem de Fagundes, ou seja, o terceiro ponto quanto ao método
exemplificado, conforme discorre Peter Burke321 –, pode-se dizer que as aquarelas
de Vidal dentro do corpus documental, que são as fontes utilizadas por Fagundes,
configuram-se, junto com as imagens de Juan Manoel Blanes, como importantes
ferramentas de análise, que contribuíram principalmente para o último nível de
interpretação proposto por Panofsky. Embora ao exame de cada imagem,
individualmente, tenha-se atentado também para a metodologia em seus três níveis.
Entretanto, a localização dos elementos do vestuário que refletem na imagem
de indumentária gaúcha proposta por Antonio Augusto Fagundes, identificados pelo
exame realizado nas aquarelas de Debret, bem como nas descrições dos viajantes,
permaneceu principalmente entre a primeira e a segunda etapa da metodologia de
análise de imagens selecionada, que consiste na descrição pré-iconográfica – ou
seja, a identificação dos objetos e formas e a compreensão do significado
convencional dos elementos do vestuário, atentando para a mensagem que cada
qual reverbera, como propõe Panofsky. No entanto, para a obra de Vidal a análise
irá centrar-se principalmente no terceiro nível de interpretação – a iconológica, que
para Peter Burke configura-se como a principal fase da teoria de Panofsky.322
Posto isso, ainda numa análise pré-iconográfica breve, vê-se que a imagem
apresenta 16 homens com diferentes tipos de vestuário reunidos em um mesmo
evento, uma corrida de cavalo. Porém, buscando os significados dos elementos
dispostos na imagem, importa recorrer aos textos do autor que acompanham as
320
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28. 321
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 49. 322
Ibidem, p. 45.
116
aquarelas, uma espécie de rótulo, inscrição ou “iconotexto”323, a fim de contribuir
para a interpretação.
Figura 22 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817.324
No texto Emeric Essex Vidal explica o que é uma corrida de cavalos em
Buenos Aires, tece relação com eventos da mesma natureza na Europa, define
como amador o evento, porém frequente na região e discorre sobre a função dos
cinco homens retratados em primeiro plano. Um frade e um fazendeiro ou
estancieiro, representados no primeiro plano à esquerda na imagem, e do lado
oposto, também em primeiro plano na pintura, um carreteiro proprietário de estância
no interior, um gaúcho com pequena propriedade e uma pessoa de classe mais
baixa, possivelmente um peão trabalhador.325 O autor revela como um importante
espaço de sociabilidade, onde se reuniam homens de diferentes classes sociais, no
entorno de Buenos Aires, já no início do século XIX.
A indumentária eclesiástica do frade se sobressai, ainda que entre uma
população com trajes peculiares, distantes da moda europeia, denotando como a
igreja segue as tradições religiosas. A imagem traz uma larga veste com capuz,
possivelmente uma capa, sendo composta por amplo chapéu, elemento também
utilizado pelos religiosos.326 A relação da igreja com os mais abastados, comum no
período, é também demonstrada por Vidal no diálogo com o estancieiro. Este, por
sua vez, expõe uma combinação de elementos dos trajes dos peões e dos
estancieiros retratados por Debret, o que repercute na proposta de Fagundes,
323
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 49. 324
VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 112 (grifo nosso). 325
Ibidem, p. 113-114. 326
RACINET, Auguste. The Costumes History. Koln: Taschen, 2003, p. 430-431.
117
quando diz que os Patrões das vacarias, portanto os estancieiros, foram aos poucos
mesclando seu vestuário.327
Emeric Essex Vidal, no texto que acompanha a aquarela Estância de São
Pedro, integrante da obra “Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte
Video”, ao discorrer sobre a organização do espaço, descreve os usos e costumes,
bem como o vestuário das pessoas que se dedicam ao trabalho naquele local. Cita o
autor328:
Os trabalhadores, capatazes e estancieiros, em geral todos que podem comprar, usam um gibão, um colete e calções, ceroulas brancas, um chapéu, sapatos e poncho. Seus peões, em contrapartida, não usam nada além de chiripá, que é um pedaço de tecido de lã grossa, preso em volta da cintura. Muitos deles não usam camisas, porém usam chapéu, ceroulas brancas, um poncho e botas curtas, produzidas com o couro das pernas de um potro ou bezerro, outros usam couro de gato selvagem.329
Observa-se que os elementos do vestuário aqui citados, do ponto de vista
iconográfico, assemelham-se àqueles descritos pelos viajantes já citados, porém
acrescidos de duas peças que fazem parte do conjunto elaborado por Fagundes,
que aparecem pela primeira vez na aquarela de Vidal: as faixas à cintura para
prender a faca330 e as botas de tigre ou gato-do-mato, nominado aqui gato
selvagem.
Porém, o principal ponto a ser considerado na aquarela de Vidal são as
diferentes possibilidades de uso do vestuário, descrito ora como traje do peão, ora
como traje do estancieiro, ou seja, os elementos foram pulverizados na aquarela nos
diferentes sujeitos retratados. Embora o autor tenha reservado uma das obras para
apresentar o gaúcho, nominada Gaúchos of Tucumam, as características descritas
em relação ao vestuário reverberam em outros sujeitos. Posto isso, importa registrar
que o autor, no texto que acompanha a obra, afirma que “todos os compatriotas são
chamados pelos habitantes de Buenos Aires de gaúchos”331. Ou seja, percebe-se o
entrelaçamento de diferentes tipologias ecoando para um único indivíduo, o gaúcho,
que por sua vez fora constituído de múltiplos sujeitos.
327
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 328
VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 71-84. 329
Ibidem, p. 76 (tradução nossa). 330
Ibidem, p. 115. 331
Ibidem, p. 89 (tradução nossa).
118
Situando o olhar no terceiro nível de interpretação proposto por Panofsky, no
que se refere à iconologia, é possível verificar que Vidal retratou em uma mesma
aquarela múltiplos sujeitos, passando a mensagem de um Prata integrado,
fortalecendo a ideia de províncias unidas pela independência da coroa espanhola. E,
ao mesmo tempo, uma diversidade entrelaçada pelo capital. Os compatriotas, como
designou o autor, estavam convivendo, de certa forma, em harmonia no mesmo
espaço com os “conquistadores” europeus, porém importa registrar que essa
harmonia estava diretamente relacionada com a economia, já que todos os citados
descritos pelo autor tinham relação com o comércio e, portanto, mantinham uma
suposta reciprocidade. Pelo menos na imagem sugerida pela aquarela.
É importante considerar a posição do autor, que oficialmente representava os
interesses ingleses. A Inglaterra se destacava como grande potência do período e
tinha intenso interesse na região do Prata. Seus produtos, em especial o couro,
eram valorizados pela indústria inglesa, em contrapartida os produtos
manufaturados ingleses eram bem-vindos no Prata, e com esses fatores somados à
competência marítima da Inglaterra e à facilidade da navegação no Rio da Prata, as
relações comerciais tornaram-se atrativas e evidentes. Dessa forma, todos os
habitantes do Prata faziam parte da rede de interesses dos ingleses, uma vez que
poderiam contribuir para seus objetivos comerciais. Tais observações podem ter
concorrido para a publicação das aquarelas de Vidal em 1820 na Inglaterra, a fim de
apresentar uma região rústica, mas em desenvolvimento.
Os homens de Vidal, de diferentes classes sociais, embora rústicos,
misturavam elementos da moda inglesa, que imperava no período, com a variedade
de peças do vestuário gaúcho, combinação que contribuía para a aproximação dos
sujeitos. A imagem apresenta combinações coloridas entre os diferentes trajes, uma
característica da moda inglesa chamada de dandismo, com “coletes e calções de
cores diferentes; por exemplo, um colete vermelho e calções amarelos poderiam ser
usados com casaco azul [...]”332. Além das cores, as aquarelas de Vidal e Debret
retratam peças de formas que muito se aproximavam do vestuário do cavaleiro
inglês, com seus uniformes rurais funcionais. Esse sujeito na Inglaterra se vestia
com “casaco de lã com botões de metal, colete, calça de montaria bege usada para
332
LEVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 160.
119
dentro das botas e chapéu de aba estreita e copa alta”333, referências que
contribuíram para a composição do traje proposto por Fagundes.
A técnica pictórica de Vidal de colocar os personagens em movimento seduz
o espectador ao mesmo tempo que esclarece, em razão do comportamento dos
tecidos ao vento. Os trajes retratados no centro da imagem corroboram a proposta
de Fagundes quando credita a usabilidade de palas finos, camisas com mangas
fofas e o lenço à pirata nos tons vermelho e branco.
Diferentemente dos homens de Debret, que pareciam estar posando para
uma cena cuidadosamente produzida, com todos os referenciais atribuídos como
seus, emitindo autoridade aos retratados, os homens de Vidal parecem não ter
tempo para posar. O movimento trava um diálogo vívido com o leitor, os retratados
quase ultrapassam a moldura, como a convidar a fazer parte da cena. A imagem
não se esgota no visível. Ou talvez essa percepção seja resultado do caminho
percorrido por esta investigação, pois “aquilo que lemos em um quadro varia
conforme a pessoa que somos e conforme aquilo que aprendemos”334.
Seguindo com as fontes de Antonio Augusto Fagundes, outro artista é citado
na obra, o pintor uruguaio Juan Manuel Blanes, conhecido por contribuir para a
produção histórica do Uruguai por meio de suas pinturas a óleo. Nascido em 1830,
filho de pai espanhol e mãe argentina, autodidata no ofício da pintura, Blanes
buscou se aperfeiçoar em Florença e se dedicou a pintar o nacional, tornando-se
conhecido como o primeiro pintor daquele país, e o fato de seguir o caminho da
pintura histórica acarretou mais status ao artista. Porém, diferentemente de Emeric
Essex Vidal, Blanes não esteve pessoalmente nas cenas retratadas em suas
pinturas, ele viveu em outro tempo. Tempo de busca pela identidade nacional.
333
FOGG, Marnie Tudo sobre moda. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, p. 116. 334
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 90.
120
Dessa forma, Blanes coloca as suas produções a serviço da afirmação da
identidade nacional, cria símbolos pictóricos da nacionalidade uruguaia, produz as
primeiras imagens da história da iconografia rio-platense, ocupando um lugar
privilegiado na representação imagética daquele país.335 Nas cenas produzidas
alguns personagens são evidenciados, entre eles os gaúchos. De acordo com
Emma Sanguinetti, o pintor “tinha simpatia por aqueles que estavam desaparecendo
diante das mudanças sociais e econômicas do país: os gaúchos e os índios”336.
Dessa forma, Blanes produz uma série intitulada Gauchitos, com personagens
mesclando ideal, fantasia e realidade. Embora não se tenha registro das datas
exatas das citadas produções, Sanguinetti assegura que as primeiras pinturas da
série iniciaram em 1868. Suas obras tornaram-se referência e “foram repetidas
infinitamente em capas de livros”337.
Na década de 1950, o Uruguai produziu uma coleção de livretos comentados
em três idiomas – espanhol, inglês e francês – sob o título “Arte de Las Americas”,
em que foram reproduzidas importantes obras de seus principais pintores, entre elas
uma série intitulada Los gauchitos de Blanes. A coleção, que contou com reedições,
continha seis reproduções de Blanes e alcançou uma ampla circulação no Sul do
Brasil, chegando aos tradicionalistas gaúchos e aos acervos de Centros de
Tradições Gaúchas, que ansiavam por referências. Dessa forma, das seis
reproduções, foram selecionadas para análise quatro obras que retratam
individualmente o gaúcho, cada uma mostrando o personagem por um ângulo.
E, entre outras obras de Blanes que ilustram o dia a dia e os costumes dos
gaúchos, uma em especial atenta para a história do vestuário, obra de 1881,
intitulada Los tres Chiripás. Mostra o chiripá primitivo, o chiripá farroupilha e a
bombacha, três das principais peças do traje gaúcho proposto por Antonio Augusto
Fagundes. Dessa forma, foram selecionadas cinco produções de Juan Manuel
Blanes para análise.
335
SOUZA, Susana Bleil de. A palheta e o pincel na construção de um mito fundador. Esboços. Florianópolis, nº 20, p. 155-168, 2008, p. 161 e 164. 336
SANGUINETTI Emma. Juan Manuel Blanes. Montevideo: Altea, 2014, p. 16 (tradução nossa). 337
VARAS, Alberto. Buenos Aires: una trilogia metropolitan. Arquitetura, paisage y espacios urbanos en transición. Buenos Aires: Nobuko, 2006, p. 417.
121
Figura 23 - Atardecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.338
Figura 24 - Amanecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.339
Figura 25 - Crepusculo, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão
(24x28cm), s/d.340
Figura 26 - La Aurora, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão
(28x23cm), s/d.341
338
ARGUL, José Pedro. Arte de Las Americas: Los Gauchos de Blanes. Montevideo: Editorial Mosca Hnos., 1953. 339
Ibidem. 340
Ibidem. 341
Ibidem.
122
Nas obras Atardecer e Amanecer, Blanes retrata o personagem com chiripá
primitivo na altura dos joelhos, conforme descrição dos viajantes, já as ceroulas com
franjas, ou ceroulas de crivos, aparecem por dentro das botas, enquanto o chapéu
da obra Atardecer apresenta indícios de que seja de palha. O artista complementa
os trajes com o cinturão de bolsas ou guaiaca, que não havia sido registrado pelas
fontes anteriores. Tais elementos conversam com o vestuário da obra de Fagundes,
disposto nas Figuras 9, 10 e 11, corroborando a declaração desse autor quando
afirma sobre os diferentes usos do vestuário gaúcho tradicionalista.
Juan Manuel Blanes ilustra na composição dos vestuários de Crepusculo e La
Aurora o chiripá farroupilha, peça que ainda não havia aparecido entre as fontes
anteriores, possivelmente por ter surgido mais tarde. Fagundes o inclui na
composição do traje gaúcho que afirma ter sido usado entre 1820 e 1865.342 Conde
d‟Eu, em “Viagem militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865)”,
comentou que o chiripá estava sendo utilizado na Guerra do Paraguai de forma
errada:
[...] em vez de enrolarem o chiripá nas pernas, como fazem os soldados orientais e brasileiros, de modo a fazer dele uma espécie de calças, acham mais simples enrolá-lo ao mesmo tempo à roda das duas pernas, formam assim como que uma saia perfeitamente cilíndrica.343
Ou seja, havia diferentes formas de uso, fato confirmado também por Athos
Damasceno quando discorre sobre a usabilidade dos tecidos grosseiros urdidos nas
estâncias: “[...] os gaúchos usavam, quer enfiadas pela cabeça à guisa de poncho,
quer passadas entorno da cintura, como tanga ou tirador, ou ainda por entre as
pernas, como xeripá.”344 Segue desenho do chiripá farroupilha a fim de ilustrar o
tamanho aproximado, a possível modelagem e a forma de uso mais comum:
342
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 15. 343
ORLÉANS, Luís Filipi Maria Fernando Gastão de (Conde d‟Eu). Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 155. 344
FERREIRA, Athos Damasceno. Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul. In: FERREIRA, Athos Damasceno (et al.). Fundamentos da Cultura Rio-grandense. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia/UFRGS, 1957, p. 77.
123
Figura 27 - Chiripá farroupilha.345
De acordo com Antonio Augusto Fagundes, o “novo chiripá, em forma de
grande fralda passada por entre as pernas, adapta-se bem ao ato de cavalgar e
essa é certamente a explicação para o seu aparecimento entre os gaúchos das três
pátrias”. O autor justifica ainda o nome atribuído à peça afirmando que o “chiripá que
denominamos de „farroupilha‟, não só para diferenciá-lo do anterior mas porque foi a
peça mais usada pelos farrapos (1835/1845)”. No entanto, são poucas as descrições
sobre a peça nas obras citadas pelo autor.
O mesmo acontece com a bombacha – traje utilizado pelos gaúchos entre os
períodos de 1865 e 1976 –, porém Blanes a traz para o dialógo imagético, a última
peça das quatro citadas como “complexos da indumentária masculina no Rio Grande
do Sul, que domina o vestuário do gaúcho”, segundo Fagundes.346 Todavia, a
referência para o vestuário tradicionalista gaúcho que inclui a bombacha é militar – o
item fez parte do traje oficial em algumas guerras nos países do Sul. A primeira
descrição consta nos registros de Saint-Hilaire, ainda no início do século XIX, que,
ao se referir aos soldados guaranis sob a guarda do Conde de Figueira, menciona
345
ACRI, Edison. O Gaúcho: usos e costumes. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 111. 346
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 6.
124
seus uniformes, dizendo seguirem “mais ou menos a modelagem do feitio dos
uniformes dos Cossacos”, referindo-se aos soldados russos, que utilizavam amplas
bombachas. No entanto, a referência de bombacha para Fagundes vem de Ângelo
Dourado em “Os voluntários do Martírio”, que apenas cita e não descreve, e do
militar brasileiro Dionísio Cerqueira, que descreve em seu diário sobre a Guerra do
Paraguai, evento de que participou, a utilização do vestuário por diferentes grupos
de soldados, entre eles a cavalaria da guarda nacional de Rio Grande. Descreve
Cerqueira:
Alguns tinhambarbas longas que lhes desciam até o peito, e cabelos trançados que chegavam quase a cintura. Seu guisamento era digno de nota: longas adagas de fortes punhos com virotes em cruz e bainhas de prata lavrada; pesadas chilenas também de prata, [...] chepéu de feltro de abas estreitas, cobertos de ganga vermelha e presos por barbicachos de borla à ponta do natiz; bombachas vermelhas ou negras e ponches de bicunha de cores vivas ou de outros estofos bordados a seda e agaloados; [...] um par de pistolas à cintura, na pistoleira, que era a larga guaiaca, espécie de balteo coberto de chaparias e moedas, onde guardavam onças e libras de ouro, patacões e bolivianos de prata. Os cavalos tinham as crinas tosadas em cogotilho e as colas atadas. Cada um tinha em cima um montão de prataria lavrada.[...] Todos tinham boleadeiras, umas de marfim, outras de ferro retovadas de couro, presas debaixo dos pelegos do lado da garupa. Em muitos, viam-se laços bem trançados presos a cinchador, [...] era um quadro pitoresco. Haviam altos e robustos, claros, de olhos azuis e cabelos alourados; outros morenos, musculosos, de cabeleiras negras e lisas [...], um ou outro negro. Parecia uma cabila de guerreiros da Mauritânia.347
A bombacha de fato fazia parte de uniformes militares em diferentes partes do
mundo, não era exclusividade do gaúcho. A introdução de uniformes militares a fim
de identificar os soldados em guerra surgiu na segunda metade do século XVII na
França, e se espalhou por todos os países europeus, chegando à América pelos
colonizadores348, vestindo os homens nas guerras e revoluções ocorridas na
América do Sul.
347
CERQUEIRA, Dionísio: “Reminiscência da Campanha do Paraguai” - 1865/1870. Edição da Biblioteca Militar – Vols. CXXV e CXXVI. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, s/d, p. 302-304. 348
BOUCHER, François. História do Vestuário no Ocidente: das origens aos nossos dias. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 254.
125
Figura 28 - Los tres Chiripás, Juan Manuel Blanes,
óleo sobre tela (40x50cm), 1881.349
A bombacha é retratada na obra Los tres Chiripás, compondo o vestuário do
primeiro homem à esquerda na imagem, enquanto que os outros dois homens
apresentam chiripá farroupilha e chiripá primitivo. A imagem com característica
atemporal apresenta a intenção do autor em reunir as principais peças do vestuário
do gaúcho utilizadas ao longo da história em uma mesma obra. Dessa forma,
corroborando a cronologia do vestuário, são retratados homens com fisionomias que
acompanham a idade das peças.
A imagem expõe vastos campos, paisagem característica do Uruguai, da
Argentina e do Sul do Brasil, com o personagem central, o gaúcho, em suas
diferentes formas e conceitos retratados pelos viajantes de outrora. Uma imagem
romantizada de um gaúcho idealizado pelo autor e influenciado pelo contexto, que
teve excelente receptividade, visto que, conforme citado, as obras de Blanes se
caracterizam como pintura histórica, que à época era considerado o “gênero artístico
mais nobre e completo, não só por incluir em sua constituição todos os gêneros da 349
SANGUINETTI, Emma. Juan Manuel Blanes. Mondevideo: ALTEA, 2014, p. 16.
126
pintura, mas também por abordar em suas telas as cenas mais virtuosas da ação
humana”350.
Blanes acreditava que com o “conhecimento científico da história, aliado às
perspectivas sobre a arte, poder-se-ia chegar a uma representação verossímil da
realidade”351. No entanto, vê-se na série Gauchitos um gaúcho solitário, melancólico,
rodeado por campos vazios, enquanto que Los Tres Chiripás apresenta três
gaúchos reunidos em família, quando no curso da história, desde o século XVIII, o
gaúcho fora registrado em intensas atividades com gado e cavalos e sem mulheres.
Talvez a representação verossímel da realidade a que o autor se refere esteja
ligada ao contexto que o gaúcho estava vivendo no final do século XIX, período em
que as obras foram produzidas. Uma realidade em que o gaúcho já não tinha
espaço para permanecer em liberdade, vivendo dos campos com gados livres em
abundância. O gaúcho, que era o sujeito principal dos campos, conhecedor das
atividades campeiras, continua como sujeito central na obra, mas no centro do
campo vazio, tanto que nem é preciso usar esporas e boleadeiras. E o laço, na
espera para ser usado. Tal observação talvez esteja subtendida nos próprios nomes
das telas – Amanecer, atardecer, Crepusculo e La aurora. Não importa a fase do dia,
ele ainda estará ali, sozinho em meio a um campo imenso, porém vazio. Pois essa
nação que se formara, resultado de batalhas pela independência em que o próprio
gaúcho lutou, estava permeada de leis, com o gado cercado legalmente pelas
estâncias. Não havia mais espaço para “aquele” gaúcho.
Com efeito, o lugar do gaúcho passou a ser no imaginário de uma nação,
como um pesonagem identitário de um país em ascensão. E o que se conseguia
expor desse personagem nas pinturas com maestria talvez fosse o vestuário, visto
que o gaúcho não tinha em sua trajetória um epísódio épico que pudesse ser
registrado, ainda que eles, os gaúchos, tivessem sido determinantes nas lutas pela
independência e pela organização do gado nas estâncias, entre outras ações.
Porém, poucos foram os episódios históricos apreendidos nas telas tidas como
representantes da “história oficial” em que ele se fez presente como protagonista.
350
DE CASTRO, Isis Pimentel. Pintura, memória e história: a pintura histórica e a construção de uma memória nacional. Revista de Ciências Humanas. Rio de Janeiro, nº 38, p. 335-352, 2005, p. 340. 351
PRADO, Maria Ligia C. Política e nação na pintura histórica de Pedro Américo e Juan Manuel Blanes. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 39, p. 20-25, 2007.
127
Logo, pode-se afirmar que o protagonista das cinco obras em análise é o
vestuário masculino. A série Gauchitos está menos para pintura histórica e mais
para produção fotográfica de uma coleção de moda, para demonstrar como era a
roupa. A atenção do autor se volta para a posição do “modelo”, a composição dos
trajes, o caimento dos tecidos, a distribuição e combinação de cores, a modelagem
das peças do vestuário, distribuição hamônica dos acessórios, ponto focal, entre
outros aspectos desse tipo. Era sim uma coleção! Uma coleção de vestuário ideal de
um personagem que estava sendo introduzido como identidade, que permaneceria
na “moda” por inúmeras estações. Uma coleção que segue sendo copiada
constantemente, ainda que seja uma coleção criada fora do seu tempo, uma coleção
não de moda, mas de indumentária.
3.2 IMAGENS ENCENADAS QUE ANUNCIAM UM VESTIR GAÚCHO: DOS
CIRCOS CRIOLLOS A PEDRO RAIMUNDO
Embora esta investigação seja sobre o gaúcho brasileiro, a gênese histórica
desse personagem perpassa os três países: Uruguai, Argentina e Brasil. Como visto,
a preocupação com o “registro” da figura desse personagem emergiu nos três
países, com o intuito de fortalecer suas identidades. Juan Manuel Blanes, retratando
o nacional, Elias Régules e João Cezimbra Jacques, dando início às instituições
gaúchas, e correndo os três países os Circos Criollos, um teatro itinerante que
circulava apresentando um suposto “morto”, que estava sendo forçado a ressuscitar,
por meio de imagens. De acordo com Martine Joly, no sentido de “imago”, do latim,
que se refere a “máscara mortuária usada nos funerais na Antiguidade romana”,
uma acepção que vincula a imagem, que pode ser o espectro ou a alma do morto,
não só à morte, como instrumento de comunicação, assemelhando-se ou
confundindo-se com o que represente352, a imagem traria à tona um suposto real por
meio de imagens escolhidas.
Na Argentina, a “mitologia gauchista”, como é chamada, repleta de
representações rurais, passou por diferentes modelos de representação ao longo da
história. Desde a aparição do personagem numa visão pejorativa, passando também
pela literatura no final do século XIX, a partir da publicação de textos e novelas,
352
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 18-19.
128
como forma de introduzir no imaginário a identidade nacional353, tal qual acontece no
Brasil. Porém, o destaque fica para o pioneiro Bartolomeu José Hidalgo, que se
destacou no início do século XIX com poesias com temas gaúchos.
Entre as obras que foram destaque na Argentina, registra-se “El gaucho
Martín Fierro”, do argentino José Hernández, de 1872 e 1879, poesia que enaltece a
figura do gaúcho, que resistiu o quanto pôde à dominação.354 Outra obra foi “Juan
Moreira”, de Eduardo Gutiérrez, de 1879, romance-novela que retrata, além dos
costumes do gaúcho, a vida política na Argentina. Por fim, mas não menos
importante, “Don Segundo Sombra”, de Ricardo Güiraldes, obra de 1926, que
apresenta o gaúcho e se transformou em patrimônio da cultura nacional. De acordo
com Liliana Morini, “Don Segundo Sombra e Juan Moreira são personagens que
ficaram gravados na memória do povo e no imaginário popular”. Ainda segundo a
pesquisadora, os escritores tinham “o objetivo de mostrar o modelo do gaúcho de
uma época que estava prestes a terminar [...] e de resgatar a história de um gaúcho
que existiu realmente e romanceá-la para entreter o público leitor”355.
Além das poesias e dos romances na Argentina, e também no Uruguai,
sobressaíram-se os Circos Criollos. Considerados como o berço da teatralidade
argentina, os Circos Criollos eram companhias de teatro itinerantes que faziam
apresentações representando a vida do gaúcho, incluindo cavalos em suas peças
teatrais. Em 1884, o renomado ator uruguaio José Podestá, do Circo Irmãos Carlo,
estreou o personagem Juan Moreira, um espetáculo que teve como supervisor
Eduardo Gutiérrez, autor de novela e romance argentino que tem o gaúcho como
protagonista.356 O espetáculo pantomímico aconteceu em Paraná y Corrientes,
Buenos Aires. Em 1886, na cidade de Chivilcoy, Argentina, o espetáculo foi
aprimorado com danças e cantos de artistas locais e, pela primeira vez, com
diálogos. Nesse período, Buenos Aires era conhecida pela qualidade e quantidade
de espetáculos teatrais, principalmente estrangeiros. O sucesso do Circo Criollo
353
RIERA, Elena López. Memoria, relato e identidad nacional en el cine argentino contemporáneo: la mirada subversiva de Albertina Carri. Tesis (Doctoral), Facultad de Filologia, Traducció i Comunicaciói, València, 2013, p. 62 (Tradução nossa). 354
FALCÃO, Luiz Felipe. Entre o ontem e o amanhã: diferença cultural, tensões sociais e separatismo em Santa Catarina no século XX. Itajaí: UNIVALI, 2000, p. 211. 355
MORINI, Liliana. Juan Moreira - Don Segundo Sombra: duas histórias, dois gaúchos diferentes. Dissertação (Mestrado em Literatura), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008, p. 89. 356
CARREIRA, André. Circo e Teatro: a construção da cena nacional argentina. Sala Preta. São Paulo, v. 6, p. 27-34, 2006.
129
marcou uma nova fase na Argentina, sendo a apresentação teatral Juan Moreira,
interpretado por José Podestá, em 1886, considerada o marco de nascimento do
teatro nacional argentino357, logo o vestuário do gaúcho “morto” foi sendo
recuperado e passou a circular pelo Sul.
Nesse período de corrida por uma identidade nos três países – Argentina,
Brasil e Uruguai –, além das obras de arte, o gaúcho ganhou mais uma ferramenta
de disseminação da sua figura, as fotografias, assumindo o papel de “testemunho
segundo um filtro cultural”358, ou representando a criação de um testemunho.
Figura 29 - José Podestá representando Juan Moreira.359
357
Sobre circos criollos ver: SEIBEL, Beatriz. Historia del Circo. 1ª ed. Buenos Aires: Del Sol, 2005. PELLETTIERI, Osvaldo. Historia del teatro argentino en Buenos Aires: La emancipación cultural – 1884/1930. Buenos Aires; Galerna: Universidad de Buenos Aires; Faculdad de Filosofía y Letras, 2002. 358
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 52. 359
PODESTÁ, José. Medio Siglo de Farandula. Córdoba: Ed. Rio de La Plata, 1930.
130
A imagem retrata a representação do suposto gaúcho, que dialoga com os
Gauchitos de Juan Manuel Blanes, que por sua vez tecem relações com imagens
pintadas e descritas pelos viajantes. As imagens não cessam. Suas encenações
dominam o período e o vestuário segue como elemento indispensável do
protagonista, vestindo de sentidos o gaúcho ideal.
Na Argentina a chamada “ideologia criolla foi um dos pilares fundamentais no
processo de reconstrução da identidade nacional, entre o final o século XIX e início
do XX”360. A Figura 29 exibe a representação do gaúcho idealizado pelo teatro
mencionado361, que se tornou o personagem principal da identidade argentina. O
ator José Podestá era um dos principais artistas do período, reconhecido na
Argentina, no Uruguai e no Brasil, e contribuiu para o processo de disseminação da
cultura gaúcha, popularmente conhecida como cultura criolla. Segundo Hermínia
Silva, além de ator, José Podestá “se tornou um cantor e divulgador das canções
criollas, e os estribilhos das suas canções eram cantados por toda parte, lançando a
novidade das cançonetas sobre temas do momento”362.
Em 1884, após 13 apresentações do espetáculo Juan Moreira pela Argentina,
o Circo Irmãos Carlo seguiu em turnê para o Brasil. A equipe se instalou no
Politheama Fluminense, no Rio de Janeiro, onde permaneceu por quatro meses.
Durante sua estada no Brasil, José Podestá apresentou o “Clown criollo”363. Nelson
de Araújo ressalta que José Podestá, ao encenar Juan Moreira, daria início ao
chamado teatro gauchesco, calcado em temas criollos364, “cuja criação sobre a obra
de Gutiérrez o Imperador D. Pedro II veria no Rio de Janeiro quando ali estiveram,
ainda em 1884”365. Ou seja, além do show intitulado “Clown criollo”, Podestá
apresentou o espetáculo Juan Moreira também no Brasil. Entre os espetáculos com
representação do gaúcho apresentados no Brasil, esse é o primeiro registro
encontrado.
360
RIERA, Elena López. Memoria, relato e identidad nacional en el cine argentino contemporâneo: la mirada subversiva de Albertina Carri. Tesis (Doctoral), Facultad de Filologia, Traducció i Comunicaciói, València, 2013, p. 66 (tradução nossa). 361
A indumentária exibida por José Podestá retratada na Figura 29 apresenta o gaúcho do romance Juan Moreira de Eduardo Gutiérrez. O traje é uma apropriação das descrições das obras dos viajantes que passaram pela argentina no início do século XIX e dos artistas que retrataram por meio de pinturas gaúchos no período. Esse tema será discutido no capítulo seguinte. 362
SILVA, Hermínia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana, 2007, p. 124. 363
Ibidem, p. 125. 364
Na Argentina e no Uruguai a palavra criollo remete ao estilo gaúcho de viver. 365
ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978, p. 209.
131
Ao retornar à Argentina, José Podestá intensificou os espetáculos com
representações do gaúcho e transitou com sua equipe entre a Argentina e o
Uruguai. Logo constituiu sua própria companhia de teatro, que se tornou uma das
mais importantes. Formada por sua família e conhecidos artistas circenses, os
irmãos Podestá ficaram conhecidos no Uruguai, na Argentina e no Brasil,
interpretando obras literárias e poesias que tinham o gaúcho como personagem
principal366, reproduzindo cenários gauchescos.
Foram muitas as obras com viés gaúcho interpretadas pelos Irmãos Podestá
além de Juan Moreira, de Eduardo Gutiérrez. Entre elas, Martín Fierro, de José
Hernandes, com texto adaptado por Elías Regules em 1890367, no Uruguai, este que
foi um estudioso do tema, considerado o primeiro intelectual a apoiar o circo criollo
dos irmãos Podestá, onde criou e adaptou outras obras.368 Entre elas, contribuiu
para o aprimoramento do espetáculo Juan Moreira, indicando a inclusão da música e
dança El Pericon369, uma adaptação americana de Isa Canaria que se tornou
característica do Uruguai, da Argentina e também do Paraguai.370 Dança que
inspirou os tradicionalistas a fazer inclusões em suas práticas gaúchas.
No Brasil, as encenações (por brasileiros) circulavam entre o palco e as
revistas, apresentando por meio da imprensa escrita as cenas cuidadosamente
criadas de um suposto real, como no caso do fotojornalismo. Na década de 1940,
Porto Alegre era referência no mercado editorial. Entre as empresas que mais
editavam obras estava a Editora Globo, antiga Livraria Globo, uma das mais bem
sucedidas empresas do Sul com destaque no cenário editorial, principalmente na
primeira metade do século XX, responsável pela edição da Revista do Globo, do
Província de São Pedro e inúmeras outras obras que davam especial atenção à
cultura gaúcha.
Além disso, o governo de Getúlio Vargas havia projetado o Rio Grande do Sul
para todo o país e, consequentemente, aproximado o estado da sua capital federal,
o Rio de Janeiro. Dessa forma, notícias nacionais de temas diversos eram de
366
PODESTÁ, José J. Medio siglo de farándula: memórias de José J. Podestá. Buenos Aires: Galerna, 2003, p. 53. 367
SEIBEL, Beatriz. Historia del Circo. Buenos Aires: Del Sol, 2005, p. 57 e 62. 368
GUIDO, Clara Rey de; GUIDO, Walter. Cancioneiro Rioplatense - 1880-1925. Caracas: Biblioteca Atacucho, 1989, p. 126. 369
El Pericon é uma dança que foi adaptada da americana de Isa Canaria, que se tornou característica do Uruguai, Argentina e também do Paraguai. 370
ITURRIA, Raúl. Elías Regules: de La tapera a La Criolla. San Martin: Ediciones de La Plata, 2014, p. 129.
132
interesse do estado. Logo, além dos jornais e revistas de âmbito estadual,
circulavam entre um número significativo de pessoas do estado periódicos nacionais
editados na capital do Brasil.
Dessa forma, embora o Estado Novo tivesse impedido o regionalismo em
nome de uma identidade única para o país, em 1944, a revista O Cruzeiro,
importante periódico semanal ilustrado de circulação nacional, lançado no Rio de
Janeiro, publicava uma ampla reportagem intitulada “Churrasco nos Pampas”, do
conhecido jornalista David Nasser, com fotografias do francês Jean Manzon, onde
apresentavam impressões da cultura do Sul.
Figura 30 - Reportagem “Churrasco nos Pampas”.371
O artigo, permeado de fotos, conhecido como fotorreportagem, tinha como
tema o churrasco, porém apresentava quase que em sua totalidade o dia a dia do
homem rio-grandense, trazendo à tona seus usos e costumes. Talvez uma forma de
371
O CRUZEIRO. Churrasco nos Pampas. Texto David Nasser. Foto de Jean Manzon. Rio de Janeiro, ano XVI, nº 49, 30 set. 1944. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
133
desviar-se da censura da ditadura de Getúlio Vargas, apresentando as
especificidades que representariam o estado, muito comum no período. No que se
refere à foto, é possível que tenha sido encenada, assim como as outras 19 que
fazem parte da matéria, visto que nesse período Nasser e Manzon introduziram
inovações ao jornalismo brasileiro, entre elas a foto posada.372 Porém, há indícios de
que os entrevistados sejam reais, em razão das histórias espontâneas por eles
contadas, indicando onde estavam, onde moravam, o que faziam e como atuavam
nas estâncias.
O fato é que a fotorreportagem circulou pelo país, mostrando como se
vestiam os campeiros ou gaúchos do Rio Grande do Sul. A Figura 30 apresenta três
peças de vestuário semelhantes aos itens do traje utilizado pelo gaúcho entre 1865
e 1976, conforme sugerido por Fagundes. A bombacha, peça que domina o conjunto
do vestuário, está presente nos três retratados, de cores lisas ou, no máximo, com
listras, como é o caso da bombacha do homem posicionado à direita, que
diferentemente dos demais traz um pala de seda. Os três homens ainda apresentam
botas pretas industrializadas, acompanhadas de esporas, guaiaca, chapéu tapeado
de abas largas e camisa de mangas longas. O que os diferencia são alguns
acessórios, descritos por Fagundes ao se referir a essa mesma época, como é o
caso da faca atravessada às costas em dois deles, sendo que um ainda traz um
relho pendurado. Porém, há uma peça que se sobrepõe, e que está sobre a
bombacha do homem do centro da imagem, a qual Fagundes chama de “tirador de
bagé”, um pedaço de couro amarrado à cintura, que se configura como peça
indispensável para o trabalho no campo.
Ao exame dos elementos que compõem a imagem, fica claro que houve
preocupação em atentar para os detalhes ao elaborar a fotografia. Registra-se que
havia mais de oito pessoas participando da fotorreportagem, e que aparecem nas
demais fotografias, porém houve uma seleção para que em uma imagem fossem
expostos diferentes elementos do vestuário do gaúcho. Contudo, a peça que domina
o conjunto do traje gaúcho no período, a bombacha, está presente em todos os
retratados.
372
TAVARES, Frederico de Mello; SCHWAAB, Reges (Orgs.). A revista e seu jornalismo. Porto Alegre: Penso Editora, 2013, p. 238. Ainda sobre David Nasser ver: CARVALHO, Luíz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001.
134
A imagem foi produzida a fim de apresentar os costumes do homem campeiro
do Rio Grande do Sul aos leitores da revista O Cruzeiro de todo o país. Nesse caso,
essa análise se baseia nas teorias de Martine Joly, cabendo ressaltar que em
nenhum momento o texto narra o vestuário, porém a imagem foi utilizada como
ferramenta de expressão e de comunicação, constituindo “uma mensagem para o
outro” com critérios, como a contextualização da imagem, pois “qualquer mensagem
exige, em primeiro lugar, um contexto, também chamado de referente, ao qual
remete”373. Nesse caso a imagem transmitiu, por meio do vestuário, os costumes do
Rio Grande do Sul.
Quanto aos referenciais presentes na composição da imagem, tema central
desta investigação, cabe, pois, concluir que todos os elementos repercutem na
indumentária gaúcha proposta por Fagundes, embora reportagens dessa natureza
não estejam na bibliografia registrada na publicação do autor. Certamente haviam
outras manifestações ou obras em circulação no período apresentando os mesmos
elementos que fizeram parte da produção fotográfica de Jean Manzon e David
Nasser, que fundamentaram a proposta de Fagundes e foram referência para os
jovens tradicionalistas gaúchos se vestirem de gaúcho em 1947.
Ainda na década de 1940, circulava pelo Rio Grande do Sul um jovem cantor
que, embora tivesse nascido em Santa Catarina, fazia sucesso utilizando vestuário
gaúcho em suas apresentações. O “gaúcho alegre do rádio” ou “Cancioneiro dos
pampas”, como ficou conhecido, era Pedro Raimundo, que se tornou na década
seguinte um instrumentista, cantor e compositor famoso nacionalmente374.
Pedro, nascido na cidade de Imaruí, mudou-se para cidades como Laguna,
Blumenau e, em 1929, para Porto Alegre. Sua estada na capital gaúcha foi um
importante passo para o sucesso. Porém, no início de sua carreira teve de enfrentar
uma difícil situação financeira, quando decidiu tocar acordeom às voltas do mercado
público da capital gaúcha. Porém, logo formaria uma banda de músicos intitulada
“Quarteto dos Tauras”, e seguiria se apresentando por todo o estado do Rio Grande
do Sul, incluindo rádios gaúchas. No interior, o cantor reuniu referências para
373
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 55-56. 374
Sobre Pedro Raimundo, registra-se a excelente obra: LOPES, Israel. Pedro Raymundo e o canto monarca: uma história da música regionalista, nativista e missioneira. Porto Alegre: Letra&Vida Suliani, 2013.
135
compor seu figurino e decidiu utilizar vestimentas gaúchas em suas apresentações,
tornando-se popularmente conhecido.375
Em 1943, seguiu para o Rio de Janeiro e iniciou sua carreira nacional, sendo
contratado por importantes rádios, que o projetaram nacionalmente. E, por continuar
a usar trajes e cantar músicas que retratavam o gaúcho, Pedro Raimundo foi
inspiração para outros cantores no que se refere à utilização de figurinos em
apresentações musicais, como Luiz Gonzaga.376
Figura 31 - Pedro Raimundo, 1960.377
Embora não fosse rio-grandense, o vestuário utilizado, bem como as letras de
suas músicas garantiram uma identidade a Pedro Raimundo.378 Cabe observar que
375
RAIMUNDO, Pedro. Minha vida contada por mim mesmo: Pedro Raimundo. Revista do Rádio. Rio de Janeiro, ano III, nº 26, 11 mar. 1950. 376
SPINDOLA, Elaine Miguél. Santa Catarina nos versos e na sanfona: análise de canções de Pedro Raymundo em uma perspectiva nativista. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem), Universidade do Sul de Santa Catarina, 2014, p. 63. 377
SOUZA, André Pinto de. Brasil - ritmos. São Paulo: Souza, 1960, capa. Acervo Israel Lopes. 378
Quanto ao sobrenome do cantor, não há consenso se seria Raimundo ou Raymundo. Os discos divulgavam Pedro Raymundo, porém seus familiares têm como sobrenome Raimundo. Acredita-se
136
o cantor não vivia no campo e, portanto, o vestuário não tinha relação com
atividades campeiras, como no caso dos entrevistados de David Nasser. O propósito
do vestuário para Pedro Raimundo era contribuir para a representação de artista
imbuído de referências gaúchas. Desse modo, o vestuário tinha função de figurino,
que significa o traje usado por um personagem a fim de compor uma produção
artística, ou ainda pode ser designado como o guarda-roupa do artista, que nesse
caso tinha como função complementar as mensagens passadas pelo cantor em
suas apresentações.
As letras das músicas do cantor e compositor retratavam passagens da sua
vida e, principalmente, os costumes dos campeiros e gaúchos do Rio Grande do Sul.
A primeira canção que conferiu sucesso ao cantor no Rio de Janeiro e o projetou
nacionalmente foi “Adeus Mariana”379. A letra da música, de composição do próprio
cantor, contava um caso amoroso complicado com a personagem Mariana, e fazia
menção ao vestuário gaúcho com a seguinte frase: “É gaúcha de verdade dos
quatro costados, que usa chapéu grande, bombacha e esporas”. No ano seguinte,
fez sucesso com outra composição sua, intitulada “Gaúcho Largado”380, e a letra
novamente evidenciava o vestuário: “Quando eu ponho minhas botas, bombacha e
lenço encarnado toda gente logo grita: - Eta gaúcho largado”.
Ou seja, as letras das músicas e o figurino formavam o conjunto que
contribuiu para que Pedro Raimundo se tornasse conhecido como cantor gaúcho. É
sobre essa afirmação que se assenta a teoria de Roland Barthes, confirmada por
Martine Joly, no que se refere às mensagens que as imagens transmitem por meio
de certos elementos. Barthes chama de mensagem ou signo. O autor faz o seguinte
esclarecimento: “Do ponto de vista estrutural, um signo é constituído pela junção de
um significante (ou forma) com um significado (ou conceito, na linguagem de
Saussure).”381 O significado tem caráter conceitual, é uma ideia, enquanto que o
significante apenas atualiza. Os suportes do significante são o cenário, a música e o
guarda-roupa do artista. No caso de Pedro Raimundo, são alguns signos
transmitidos pelo autor, entre eles os costumes do gaúcho, e, dentro desse contexto,
que a alteração da vogal tenha sido uma opção do cantor, adotando assim como nome artístico. Uma opção que também pode ser verificada no nome do filho: Joecy Hedy Raymundo. 379
A música foi gravada em 1943 pela gravadora Colúmbia, sob o nº 55.462, e também pela Continental, com o nº 15.054. 380
Música gravada em 1944 pela Continental, projeto nº 15.178. 381
BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 37.
137
o vestuário e a música são significantes que, associados ao significado, contribuem
para a formação do signo.
Segundo esclarece Barthes, ao emitir o signo é importante atentar para os
limites do inteligível, pois o valor estético está entre a forma do signo e seu
conteúdo, sem sair dos limites do inteligível. Ou seja, a mensagem é emitida pelo
autor, que imprime um estilo pessoal à narrativa dentro de um limite inteligível para
que seja bem compreendido pelo receptor do espetáculo.382 Dessa forma, sem
exageros na exposição dos significantes, para que o conjunto seja harmônico.
Sobre o figurino ou guarda-roupa do artista, reitera Gerard Betton, ele não é
um elemento isolado, ele faz parte de um conjunto criado para valorizar os gestos e
a atitude do personagem. Os trajes ainda podem ser classificados como “realistas”,
quando se tem cuidado com a reconstituição histórica, ou intemporal, quando
pertence a qualquer tempo, ou seja, quando a exatidão histórica cede a uma
preocupação maior: a de sugerir ou traduzir simbolicamente caracteres, estados de
alma, ou ainda criar efeitos dramáticos ou psicológicos.383
Diante do figurino proposto por Pedro Raimundo, parece acertado classificá-lo
como “realista”, já que indica uma temporalidade, reconstitui um tempo histórico, a
“história do tempo presente”384. Ele era vida e voz daquele tempo e, portanto, capaz
de alterar os referenciais. Muito embora não fosse um campeiro, no sentido de
executar as atividades do campo ele, em algum momento foi parte do dia a dia
deste, já que fez shows pelo interior do estado do Rio Grande do Sul, foi parte e
testemunho daquela história.
Entre as décadas de 1940 e 1950, Pedro Raimundo era tema frequente de
publicações da Revista do Rádio, chegando a compor a capa da edição de número
49, de 15 de agosto de 1950 (ver Anexo 4). Em 5 de setembro de 1950 a revista
publicou uma reportagem de duas páginas contando sobre a vida do cantor,
apresentando cinco fotografias, três delas parte uma produção fotográfica que,
segundo o texto, foi realizada em algum lugar do Sul do país, na segunda metade da
década de 1940.385 Entretanto, as fotografias foram utilizadas por um longo período
em diferentes publicações, a fim de divulgar o trabalho do cantor nos anos
382
BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 35-36. 383
BETTON, Gerard. A Estética do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 57. 384
DELGADO, Lucilia de Almeida; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). História do tempo presente. Rio de Janeiro: FGV, 2014. 385
A Revista não informava o fotógrafo nesse período.
138
seguintes. Há indícios de que, embora algumas fotografias tenham sido produzidas
em ambiente externo, a imagem utilizada para compor a capa da revista em 15 de
agosto de 1950 e a exposta na Figura 31, que foi posteriormente colorida a fim de
compor a capa do livreto Brasil Ritmos, em 1960, façam parte da mesma produção
fotográfica citada. A interpretação se dá em razão do cenário das fotografias
produzidas internamente, e dos pormenores que compõem o figurino, como
padronagem dos tecidos, caimento e tamanho da bombacha, forma de unir o lenço
no pescoço – por meio de anel – e o penteado (ver Anexo 4).
Nas imagens o cantor utiliza como figurino a bombacha, bota industrializada,
lenço branco, porém realçado posteriormente com a cor vermelha, e um cenário que
traz uma cerca produzida com troncos, fazendo alusão ao ambiente do campeiro. No
entanto, o cantor faz uso de camisa xadrez, uma padronagem de tecido que,
estranhamente, constaria nas pesquisas de Antonio Augusto Fagundes como uso
em caso de luto.386 Uso que se repetiria em outros figurinos do cantor.
Em junho de 1949, a Revista do Rádio publicou uma matéria sobre Pedro
Raimundo em que consta uma foto com Getúlio Vargas. A legenda registra a recente
visita do cantor ao ex-presidente em sua fazenda no Rio Grande do Sul. Na imagem,
Vargas é retratado usando bombachas387, como fez muitas outras vezes,
principalmente quando estava em sua fazenda. Fato que seguramente contribuía
para a divulgação da referida peça do vestuário gaúcho no período.
Vê-se que os referenciais, independentemente da sua tipologia, seja em
âmbito local, estadual ou nacional, possivelmente alcançaram em algum momento
Antonio Augusto Fagundes. Imagens textuais, pictóricas ou encenadas permeavam
o período, e contribuíram para a formação do vestuário do gaúcho tradicionalista de
Fagundes.
386
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 23. 387
REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano II, nº 16, 1º jun. 1949, p. 19. Acervo Biblioteca Nacional - RJ.
139
CAPÍTULO IV – E A INDUMENTÁRIA DA "PRENDA" GAÚCHA?
4.1 ENTRE RELATOS, AQUARELA E MODA, O VESTIDO IDEAL DA PRENDA
TRADICIONALISTA
Desde as primeiras tentativas de elaboração da vestimenta da mulher
tradicionalista gaúcha, o grupo se mostrou confuso quanto ao seu modelo. As
pesquisas sobre os costumes e, consequentemente, o vestuário privilegiavam o
gaúcho como personagem principal do enredo, e o grupo de jovens precursores era
formado em sua totalidade por homens. Logo, a mulher ficou à sombra de um
protagonista que se apresentava com uma diversidade de roupas, categorizadas por
período.
Paixão Côrtes, líder do grupo de jovens tradicionalistas, registra em sua obra
sobre os “primórdios do movimento” que, no primeiro baile gaúcho, em 20 de
setembro de 1947, “poucas foram as prendas que se atreveram a vir com vestidos
de chita ao Baile Gauchesco [...], por falta de conhecimento, à época, das
características de como se vestia, outrora em festa, a mulher campesina”388. Essa
mesma preocupação é demonstrada na escolha do vestuário das prendas na
ocasião da III Semana Nacional do Folclore, quando apresentaram o “Festival
Gauchesco”, em 22 de agosto de 1950. Lessa e Côrtes afirmam:
Com referência às “prendas”, tivemos de improvisar algum figurino que nos parecesse lógico, enquanto tomávamos consciência de um novo item a acrescentar aos próximos formulários de pesquisa-de-campo: a indumentária gauchesca nas festas do passado. [...] No fim as “prendas” entraram em cena, com seus vistosos vestidos floreados. E o auditório quase veio abaixo, de tanta palma e entusiasmo, com a primeira apresentação, em palco, de danças tradicionalistas.389
Observa-se que desde as primeiras apresentações havia pesquisas sobre o
tema, já que estavam iniciando o movimento, mas as poucas referências
encontradas eram de vestidos de chita vistosos e floreados. Ainda de acordo com os
autores, o tema seria inserido nas investigações que estavam realizando sobre as
388
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 112. 389
LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 110-111.
140
festas do passado. No entanto, não há registros de pesquisas realizadas e
publicadas pelo grupo especificamente sobre o vestuário da prenda, ou
apresentadas em congresso, até a publicação de Antônio Augusto Fagundes.
As primeiras representações do vestuário da mulher tradicionalista gaúcha, a
prenda, deram-se na ocasião do primeiro baile em 1947. Sobre os registros
fotográficos do evento, Paixão Côrtes descreve na legenda da imagem: “Na foto,
apareço ao lado de minha irmã – Maria Zulema – que, com seus 12 anos, pela
primeira vez ia a um baile noturno e, justamente, com um „vestido de prenda‟, que
minha mãe lhe criara.”
Figura 32 - Maria Zulema Paixão Côrtes, no primeiro baile organizado em razão do
nascimento do Movimento Gaúcho, em 1947.390
Na imagem Paixão Côrtes se apresenta acompanhado de uma prenda com
vestido florido, que o autor chama de chita. Sobre a imagem fotográfica, “a imagem
contém em si um inventário de informações acerca de um determinado passado, ela
390
CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994.
141
sintetiza no documento um fragmento do real visível”391. O vestuário, a pose e as
aparências estão congeladas, demonstrando que o vestuário masculino de fato é
reflexo dos trajes usados pelos gaúchos de outrora. No entanto, o vestido da mulher
(ou menina) retratada apresenta características da moda do período em que foi
captada a imagem – 1947.392 Vestido floral com cintura justa ao corpo, ou cintura
marcada, saia em corte godê franzido, decote e mangas bufantes, composição
complementada com as sandálias peep-toe. O tom de simplicidade do vestido se dá
em função da suavidade das características citadas, da quantidade de tecido
utilizado na feitura da saia, do uso de passa-fitas no decote e fitas nos cabelos,
tornando o conjunto mais simples em relação à moda do período.393
Tais observações nos levam a supor que a suavidade do vestido foi priorizada
em razão da imagem que se queria passar, fazendo alusão à simplicidade dos
modos campesinos, mas também em razão da idade da menina retratada, que, aos
12 anos, estava participando do seu primeiro baile. O fato é que não foram
encontradas referências dos vestidos do século anterior para a criação do traje
feminino, como se buscou fundamentar o vestuário masculino. Ou seja, a prenda
retratada estava representando costumes historicamente e intencionalmente
cristalizados, porém fazendo uso do vestuário da moda do período atual – 1947.
A mulher tradicionalista gaúcha que optava por participar das práticas do
movimento passou a utilizar semelhantes vestidos. Na década de 1950, o grupo
musical Conjunto Farroupilha, que ficou conhecido internacionalmente, fazendo
shows em diversos países com músicas tipicamente gaúchas, trazia duas cantoras
mulheres com trajes de prenda. E, mais uma vez, veem-se vestidos seguindo os
modelos em voga no citado período.
O modelo apresentava formas de feminilidade, importantes para a
consolidação de um movimento gaúcho que pregava valores e princípios tradicionais
cuidadosamente selecionados, em que os referenciais masculinos predominavam. O
vestido da moda na década de 1950 “exibia um retorno a uma estética mais
391
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 113. 392
Para esta pesquisa a moda será entendida como mudança, um fenômeno social de considerável oscilação e que não pertence a todas as épocas, que nasceu como um processo excepcional, inseparável do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno. Ver: LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 24-26. 393
HERNNESSY, Kathryn. Fashion: the definitive history of costume and style. New York: Smithsonin, 2012, p. 322-323.
142
„burguesa‟, que refletia conceitos mais tradicionais de gênero. O estilo parecia ser
uma inovação radical, mas em certo sentido aquela era uma inovação retrô”394.
Figura 33 - Capa do disco Gauchos Hi-Fi, Conjunto Farroupilha, 1957.395
O disco retrata a proposta de traje atual de Antônio Augusto Fagundes,
destoando apenas no comprimento do vestido, que para Fagundes encerra no peito
do pé, enquanto que na capa do disco as cantoras do Conjunto Farroupilha vestem
peças um pouco mais curtas. Mais uma vez um retrato da moda dos anos 50. A
pose dos retratados apresenta diferentes elementos característicos gaúchos, como a
dança, o vestuário, o violão e o campo, convidando o receptor a vivenciar aquele
universo de significantes. Ou seja, para apresentar-se como conjunto gaúcho, a
pose e os elementos da composição são importantes. A esse respeito, Annateresa
Fabris afirma que “colocar-se em pose significa inscrever-se num sistema simbólico
para o qual são igualmente importantes o partido compositivo, a gestualidade
corporal e a vestimenta usada para a ocasião”396.
394
SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 32. 395
HERENCIO, Diego. Conjunto Farroupilha: análise histórica e investigação de suas influências para a música do Rio Grande do Sul. Revista da Fundarte. Montenegro, ano 17, nº 33, p. 114-136, jan./jul. 2017, p. 127. Disponível em: <http://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/ article/view/439>. Acesso em: 14/07/2017. 396
FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 36
143
As imagens foram constantemente utilizadas como referência para apresentar
os elementos propostos como indumentária ideal pelo movimento gaúcho, pois, sem
um texto norteador, faziam a função de comunicar o vestuário que se pretendia.
Nesse sentido, Olga Simson diz que a cultura permeia cada vez mais o registro
imagético e passa a ser o texto orientador na construção de memórias.397
Logo, o vestido apresentado, com indícios de moda, ajudou a construir uma
imagem de vestuário tradicional da mulher gaúcha, tornando-se conhecido
principalmente no Rio Grande do Sul. No entanto, fora do Estado, em razão da
quantidade de enfeites e das estampas do tecido, o vestuário era confundido com o
traje das festas de São João e não tinha conquistado o reconhecimento como
vestido de prenda. Maria José Cardoso, Miss Brasil do Rio Grande do Sul, no ano de
1956, ao participar do concurso Miss Universo, na cidade de New York, optou por se
apresentar com trajes típicos do seu estado. No entanto, os jornalistas brasileiros
sinalizaram que a candidata não obteve sucesso em virtude do seu vestuário:
“Infelizmente, o traje de Miss Brasil não fez sucesso, pois, pretendendo ser de
gaúcha, mais parecia o de uma de nossas festas de São João.”398
As pesquisas de Antonio Augusto Fagundes indicam que a indumentária
feminina atual da gaúcha era reflexo da moda, somada à intervenção dos jovens
pioneiros do movimento, que, sentindo a necessidade de criar o traje para a mulher,
reuniram um apanhado de referências que consideravam adequadas para o
vestuário. Descreve o autor sobre a indumentária que acompanharia o homem no
Traje Atual do Gaúcho:
Sobre o vestido da mulher, de 1865 para cá, há fartas ilustrações: pinturas, daguerreotipo e fotografias. Sensível à moda, a mulher vestiu de acordo as suas posses. Mas, quando se iniciou o Movimento Tradicionalista, com a fundação do “35” Centro de Tradições Gaúchas, em Porto Alegre, a 24 de abril de 1948, os rapazes quando, algum tempo depois, filiou-se a primeira moça – sentiram a necessidade de criar um traje feminino que fizesse “pendant” com a brilhante indumentária masculina. E assim, consultando fotos antigas das próprias famílias e também inspirados no “traje de china” das tradicionalistas uruguaias e até mesmo – forçoso é reconhecer – no vestido “caipira”, que eles combatiam, criaram o hoje famoso “vestido de prenda”, dentro dos pressupostos válidos da indumentária feminina mais simples do Rio Grande – a de
397
SAMAIN, Etienne (Org.). O Fotográfico. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. 398
O CRUZEIRO. Rio de Janeiro, ano XXVIII, nº 42, 4 ago. 1956, p. 11. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.
144
chita – ao fim do século passado e começos deste. Apesar de ser uma criação tradicionalista, o vestido de prenda conservou a padronagem e a sobriedade do vestido padrão da mulher gaúcha.399
Ou seja, o vestuário conhecido como vestido de prenda foi uma invenção dos
jovens tradicionalistas a fim de criarem um traje para acompanhar o vestuário
masculino, considerado por Fagundes como “brilhantes indumentárias masculinas”.
Dessa forma, o autor seguiu a indumentária utilizada pelas mulheres no primeiro
baile em 1947, acrescentando babados ao vestido a fim de chegar ao peito do pé e,
de igual modo, fazendo crescerem as mangas e o decote. Tudo complementado
com o fichu, peça que permeou o vestuário da mulher em diferentes países do
ocidente.
Vê-se que, dentro do movimento tradicionalista, faltavam referenciais que
justificassem a presença da mulher, o feminino apenas complementava um universo
que priorizava o gênero masculino, em que a prenda foi introduzida a fim de
complementar suas práticas. De acordo com os viajantes, o gaúcho era um homem
que vivia livre nos campos. Como visto, Nicolau Dreys descreve que na maioria das
vezes os homens eram vistos sozinhos.
No entanto, Fagundes afirma em sua obra que, a cada complexo da
indumentária histórica masculina, correspondia uma feminina400, desde as épocas
anteriores ao início das divisões periodizadas dos trajes gaúchos. O mesmo autor
registra o uso do vestuário indígena feminino, intitulado tipoy, “longo vestido formado
por dois panos costurados entre si, deixando apenas sem costurar duas aberturas
para os braços e uma para o pescoço. Na cintura, era apertado por uma espécie de
cordão, chamado „chumbé‟”401.
Já o traje usado pela mulher do estancieiro gaúcho ou patrão das vacarias,
segundo as pesquisas apresentadas sobre o Traje Gaúcho utilizado entre 1750 e
1820, era formado por “botinas fechadas, meias brancas ou de cor, longos vestidos
de seda ou veludo, mantilha, xale ou sobrepeliz, grande travessa prendendo os
cabelos enrolados e o infaltável leque”402. A respeito da mulher do peão das
vacarias, o autor registra que suas vestes refletiam suas condições financeiras:
399
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 24. 400
Ibidem, p. 06. 401
Ibidem, p. 09. 402
Ibidem, p. 10.
145
A mulher desse homem, como é natural supor, vestia pobremente: nada mais que uma saia comprida, rodada e uma blusa. A saia era sempre de cor pesada, tendendo para o escuro, e a blusa ou era branca ou esbranquiçava com o uso. Pés e pernas descobertas403.
E, sobre o traje feminino no período subsequente, Fagundes descreve:
A mulher, nesta época (1820/1870) popularizou um tipo de indumentária na base da saia e do casaquinho, este com discretos enfeites de rendas. As pernas femininas sempre cobertas por meias salvo na intimidade do lar – e o cabelo solto ou trançado para as moças, e preso, em coque, para as senhoras. Sapatos fechados e discretos. Joias? Um simples camafeu, ou broche, fechando a gola do casaquinho. Ao pescoço, muitas vezes, o fichú, pequeno triângulo de seda, crochê, etc., com as pontas cruzadas fechadas por um broche. Mais rico ou miais pobre, esse foi o traje dá da mulher do Rio Grande do Sul nessa época. Simples, não é?404
Em toda a obra, suas pesquisas sobre o vestuário da mulher se limitam às
descrições supracitadas, bem como as pesquisas publicadas pelo movimento
tradicionalista em épocas posteriores. No entanto, os viajantes mencionavam a
presença da mulher.
Saint-Hilaire faz apontamentos acerca do vestuário das diferentes classes
sociais que presenciou no início do século XIX e, em todos os registros, destaca que
as mulheres eram bem vestidas. Em seu primeiro registro, o viajante expõe as
fragilidades das casas de família em se hospeda, mas ressalta que “a mulher do
proprietário da casa é certamente muito melhor vestida que as camponesas
francesas”405. Em outra experiência cita o autor que a “dona da casa estava vestida
como uma dama, semelhante a mulher da casa anterior [...], usava um vestido de
cor nakin, manga longa e um fichu de musseline; seus cabelos são presos com uma
travessa”406. Já no Uruguai, o viajante registra episódios semelhantes:
403
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 15. 404
Ibidem, p. 17. 405
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 5 (tradução nossa). 406
Ibidem, p. 5 (tradução nossa).
146
Eu parei numa casa muito pobre, pequena, muito baixa, sem móveis e habitada por pessoas que pareciam ser extremamente pobres. O dono da casa e sua mulher são cobertos por trapos, mas a filha deles é vestida como uma dama, em nenhum lugar da Europa achamos tal diferença entre a casa das pessoas e suas roupas. [...] As mulheres são vestidas como damas [...].407
Contudo, a respeito das índias e mestiças, o autor as descreve com pés e
pernas despidas, camisa de algodão, saias do mesmo tecido e, em seus ombros,
uma peça de tecido azul, além de um chapéu de feltro na cabeça, ou então vestidos
indígenas, cabelos presos por travessas e fichu.408
Como já mencionado, embora não tenha sido citado por Fagundes, as
descrições de Arsène Isabelle condizem com o vestuário gaúcho proposto pelo
autor. Segundo Arsène, as mulheres do Rio Grande do Sul montavam a cavalo
como homens e se vestiam com “bombachas debaixo do vestido; além disso,
vestem uma longa sobrecasaca, espécie de amazona, às vezes de fazenda azul,
mas, ordinariamente, de chita florida ou listrada”409. Da mesma forma que Saint-
Hilaire, Arsène Isabelle as compara com as mulheres francesas: “Ataviadas dessa
maneira, parecem-se bastante às nossas altas e poderosas damas da nobreza
campestre.”410
Discorrendo sobre Buenos Aires e Montevidéu, o viajante descreve a
circulação de publicações de moda e a relação das mulheres com esta:
Com exceção do uso do pente, as mulheres de Buenos Aires e de Montevidéu seguem as modas francesas. Há um grande número de modistas e de costureiras dessa nacionalidade, e os jornais de modas de Paris circulam em todos os boudoirs (ou o que faz as vezes de boudoirs) das portenhas. Elas, porém, adotaram cores e desenhos especiais que se harmonizam com seus gostos e com seu caráter.411
407
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 213. 408
Ibidem, p. 271, 444, 518 e 567. 409
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 244. 410
Ibidem, p. 244. 411
Ibidem, p. 130.
147
O autor cita que em Porto Alegre, embora em número reduzido, também
havia casas destinadas ao comércio de produtos franceses, porém em sua maioria
os produtos chegavam a Buenos Aires e Montevidéu, e posteriormente se dirigiam
para o Rio Grande do Sul, já que havia uma relação tanto comercial como política e
social entre os países platinos. Os poucos navios de comércio vindos da França que
chegavam à cidade de Porto Alegre eram oriundos de Marselha ou de Bordeaux,
mas traziam produtos com pouco qualidade.
Além da moda, os navios vindos de Marselha certamente traziam mais que
produtos de pouca qualidade, como cita o autor. Os navios transportavam culturas.
Marselha fica no sul da França e é a cidade mais antiga do país, em sua região
conservam-se antigas tradições, entre elas destacam-se os Gardians de Camargue,
exímios cavaleiros que, como o gaúcho, tornaram-se personagem identitário do
local. Camargue é uma região de planície de Arles, com um considerável parque de
vida selvagem, os gardians que ali viviam com seus inseparáveis cavalos trazem
elementos do vestuário semelhantes aos dos gaúchos e, sobretudo, a mulher, que
acompanha as tradições da região, correspondendo às camponesas descritas por
Saint-Hilaire, às quais nossas mulheres foram por vezes comparadas.
O vestuário feminino que encontrou no Rio Grande do Sul, descrito pelo autor
como vestido de cor nakin, manga longa com fichu de musseline, trazendo nos
cabelos uma travessa, é também a descrição do vestuário das tradicionais mulheres
de Arles.412 Não há dúvidas de que os navios que circulavam carregavam produtos,
artefatos de moda, mas criados por pessoas e, portanto, permeados de histórias,
memórias e culturas.
É consenso entre os historiadores dedicados ao tema que a moda tem origem
na França do século XIV. Contudo, impulsionada pela Revolução Industrial e pela
Revolução Francesa, no início do século XIX, a Inglaterra conquistou prestígio e
imprimiu uma nova concepção de moda, tornando-se referência. No entanto, a
França, que fora por muitos considerada o epicentro da moda ocidental, continuava
influenciando a região do Prata. Em especial, Paris, que era a menina dos olhos das
mulheres.
412
NIEL, Nicole. L’art du costume d’Arle. Traité theorique et pratique de coiffure et d‟habillage. Arles: Publication à compte d‟auteur, 1989.
148
Jean Leon Pallière Grandjean Ferreira, filho e neto de artistas franceses, foi
um destacado pintor, nascido no Rio de Janeiro em 1823 e registrado como cidadão
francês ainda criança. Estudou em Paris e na Itália, entre os diferentes países por
onde passou, circulou entre a França e a América do Sul, e permaneceu em Buenos
Aires entre 1855 e 1866, período em que retratou o gaúcho e os costumes.
Dedicado ao pitoresco, Pallière constituiu uma ampla produção a respeito da
diversidade, referente aos usos e costumes de diferentes povos. Retratando o que
Marta Penhos designou de “tipos”413, ou seja, representando e classificando os
diferentes habitantes, seus costumes e vestimentas. A partir de uma observação
direta e pinturas que retratavam a cultura de povos distantes, suas produções
alimentaram a curiosidade europeia.
Pallière, que se dedicava inicialmente às temáticas religiosas, passou a
retratar o “tipo” gaúcho. Suas obras alcançaram ampla circulação, tornando-se
conhecido na região platina, e também na Europa. Com incontáveis obras sobre os
costumes dos habitantes da América do Sul, o gaúcho se configurou como tema
central, e foi personagem de uma série publicada em 1864 no Album Pallière -
Escenas Americanas.414
Entretanto, em oposição aos distintos viajantes que retrataram o gaúcho no
século XIX, Pallière se destaca por trazer para a cena das suas representações a
mulher. O gaúcho livre que vivia sozinho pelos campos surge de repente nas telas
do autor em cenas enamoradas. Com suas companheiras de retrato, bailam e
namoram, com seus trajes pitorescos que marcam os períodos do vestuário do
gaúcho.
Dessa forma, a seguir passa-se a examinar três imagens que retratam casais,
em que as mulheres se apresentam com três diferentes composições de vestuário.
413
PENHOS, Marta. Modelos globales frente a espacios locales: tensiones en la obra de dos artistas europeos en la Argentina del siglo XIX. Studi latinoamericani. Udine, v. 4, n. 4, 2008, p. 6. 414
OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, Porto Alegre, 2017, p. 105.
149
Figura 34 - Idilio criollo, óleo sobre tela (100x140cm), 1861.415
Na primeira imagem a mulher exibe vestuário rústico e simples, conforme
descrito pelos viajantes. As edificações rústicas do campo e a família são citadas por
diversas vezes nos registros de Saint-Hilaire, e retratadas em Los tres Chiripás, de
Juan Manuel Blanes. A mulher apresenta uma simples saia, com blusa de algodão
clara sob um fichu azul, está com os pés descobertos, parece sair do retrato e
transportar-se para a obra de Antonio Augusto Fagundes. Contudo, o gaúcho
retratado na tela teria de sair de cena e deixar a jovem de Pallière, já que chiripá
farroupilha não faz parte da composição do traje gaúcho de 1750 a 1820 proposto
por Fagundes, e que veste a mulher retratada. Ou será que Fagundes é que deveria
incluir o traje da mulher representada no vestuário do período de 1820 a 1870, já
que a obra de Pallière data de 1861?
Parece acertado dizer que se trata do vestuário da mulher que acompanha o
peão das vacarias, que, em razão das dificuldades no período, não tinha condições
de trocar frequentemente de roupa. A moda permeava a região e o período, porém
dependia das condições financeiras do interessado, logo as mesmas silhuetas
permaneciam por anos na população sul-americana.
415
Acervo do Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires, Argentina.
150
Figura 35 - Bailando el gato, aquarela sobre papel (17x33,3cm), 1860.416
A segunda obra faz uma incursão pelas fortes cores dos vestuários,
retratadas também por Emeric Essex Vidal, aqui distribuídas harmoniosamente entre
os presentes no baile que ocorre em um galpão. O autor, mais uma vez, privilegia o
gaúcho com a presença de mulheres vestidas com suas saias, casaquinhos e fichu.
Ao centro, o casal baila El gato, uma dança de interior, a mais tradicional das danças
na região platina e em países próximos.417 O casal ao centro é assistido por uma
plateia, que admira a cena. Uma dança que apresenta indícios de autoridade, visto
que a atenção se volta para o corpo e os pés dos dançarinos.
Contudo, a concentração dos retratados na aquarela não convida o leitor a
adentrar a cena, mas para assistir do lado outro lado da imagem. Mesmo do lado de
fora, consegue vê-la para além da tela, limitada por uma moldura que registra,
sobretudo, os costumes de uma sociedade que mantém fortes relações de
sociabilidade. O ambiente recebe pessoas de diferentes idades, visto que há uma
criança no lado direito, um ambiente onde as pessoas sentem-se à vontade, tendo
em vista a posição do homem que está sentado próximo ao dançarino, que por sua
vez está ao lado de uma pessoa negra. O baile é para todos da “campanha”. Os
cabelos das mulheres apresentam uma diversidade, como sugere Fagundes.
Trançados para moças e presos para as senhoras. Talvez não destinados dessa
416
Acervo do Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires, Argentina. 417
VEGA, Carlos. Danzas y canciones argentinas: teorías e investigaciones - un ensayo sobre el tango. Buenos Aires: G. Ricordi, 1936.
151
forma, por idade, porém há indícios de que diferentes mulheres usavam das duas
maneiras.
Figura 36 - Tienda, aquarela sobre papel (34,7cm), 1860.418
A terceira imagem, intitulada Tienda, se refere a um comércio de tecidos ou
de ponchos em Buenos Aires. A aquarela retrata o local de trabalho de uma mulher
que foi colocada propositalmente em fundo preto, a fim de destacar os personagens
centrais da trama – o gaúcho e a mulher. A imagem expõe a intenção do autor de
destacar o vestuário dos retratados, já que joga luz sobre os trajes, evidenciando os
modelos, tecidos e a moda propriamente dita que reverberava no período.
A imagem surpreende, em razão da data da sua criação. A aquarela, criada
em 1860, retrata o vestuário feminino que passou a ser usado na Europa, de fato, na
segunda metade do século XIX. Cabe, portanto, afirmar que a moda não demorava
a chegar. Dos elementos que faziam parte, podem-se destacar os chapéus muito
pequenos, caídos sobre a testa, ou amplos laços de fita prendendo os cabelos em
418
PALLIERE, Leon. Diario de viaje por la América del Sud - 1856 a 1866. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1945, p. 109.
152
tranças ou cachos. A crinolina começou a se deslocar para a parte detrás e logo foi
eliminada, com a frente da saia mais ou menos reta e uma concentração de tecido
atrás, aparado pela anquinha.
O vestido da imagem apresenta modelagem utilizada entre 1860 e 1870.419
Os ornamentos franjados, os rufos do traje da vendedora, os tecidos listrados,
brocados e veludos apresentavam o avanço da indústria têxtil, possivelmente
chegando ao Sul do Brasil e à região platina pelos navios italianos, ingleses e
franceses que desde a primeira metade do século XIX atracavam com frequência na
América do Sul, levando e trazendo produtos. Uma troca para além dos produtos.
Um intercâmbio de culturas.
Os tecidos ilustrados na imagem trazem o caimento do vestuário, que
contribui para a produção de identidade. A leveza retratada pelo autor no traje do
gaúcho se contrapõe aos tecidos estruturados do vestuário da mulher, que, impostos
pela moda do período, dificultavam inclusive o deslocamento, em razão da
quantidade de tecido, mas sobretudo pela estrutura pesada das suas tramas. Ao
mesmo tempo que apresenta um homem livre e, portanto, com roupas que
acompanham suas atividades, como visto ao vento nas corridas de cavalos de
Emeric Essex Vidal, aparecendo anos depois na aquarela de Pallière. Também as
destacadas cores do vestuário do gaúcho continuam repercutido nos diferentes
elementos que compõem o vestuário na imagem anterior.
Tendo em vista a especialidade de Pallière, no período em que estava na
região do Prata, em retratar cenas do cotidiano do diferentes “tipos” que viviam em
Buenos Aires e interior, cabe, pois, dizer que as imagens apresentadas nas
aquarelas configuram como cenas do cotidiano do gaúcho. Ao mesmo tempo que é
retratado bailando uma das danças tradicionais do interior platino, e enamorado por
uma mulher do campo, é visto na companhia de outras em cenário urbano. Os
espaços de sociabilidade eram múltiplos. O gaúcho era o habitante comum da
região e, portanto, circulava por todos os ambientes, fazendo-se presente e
acompanhando a dinâmica dos lugares.
Logo, vê-se que as mulheres acompanhavam a moda, como registrou Arsène
já na primeira metade do século XIX. Os jornais e as costureiras locais eram
ferramentas dessa “cadeia ininterrupta e homogênea de variações, marcada a
419
ITALIANO, Isabel; VIANA, Fausto. Para vestir a cena contemporânea: moldes e moda no Brasil do século XIX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2015, p.182-190.
153
intervalos mais ou menos regulares por inovações de maior ou menor alcance”420,
que é a moda, como conceitua Lipovetsky. E foram essas variações que impediram
os folcloristas de pesquisar com mais afinco os elementos que poderiam constituir o
vestuário da prenda.
Ainda segundo Lipovetsky, “por ser um fenômeno social de considerável
oscilação nem por isso a moda escapa, de um ponto de vista histórico
abrangente”421. No entanto, a metodologia de investigação e registro da história teria
de seguir por outros caminhos, que não aquele escolhido por Antonio Augusto
Fagundes. “Pensar a moda exige que se saia da história positivista e da
periodização clássica em séculos e decênios, cara aos historiadores do
vestuário.”422 Porém, não que esse formato não tenha legitimidade, é o ponto de
partida, mas ele só irá reforçar as variações, e historicizar a moda é realizar um
trabalho que adentre o invisível, que dialogue e descreva para além do visível.
Na ânsia por retratar uma história do traje da prenda, viu-se que se realizou
uma seleção de elementos recortados de poucas imagens pictóricas e textuais, sem
observar os diálogos que as congelaram no tempo, por meio das descrições e
imagens dos viajantes, acarretando problemas que refletiram por anos no
movimento tradicionalista. Não há pesquisas dedicadas ao tema que deem conta da
indumentária da mulher gaúcha. Há questões que merecem ser buscadas. Porém,
por um viés tal qual sugere Gilles Lipovetsky: “Para além da transcrição pontilhista
das novidades de moda, é preciso tentar reconstruir as grandes vias de sua história,
compreender seu funcionamento, destacar as lógicas que a organizam e os elos que
unem ao todo coletivo”423.
Não que a investigação e periodização de Fagundes não tenham sido
importantes. Como afirmou Lipovetsky, o formato tem legitimidade, e a investigação
realizada e publicada sobre a indumentária gaúcha pode ser o ponto de partida para
uma história do vestuário gaúcho. Já que o autor “exilou” elementos do vestuário
constantes nas representações históricas do personagem registradas ao longo dos
séculos XVIII e XIX. No entanto, a composição foi produzida com base no que
parecia lógico na visão de Fagundes, que selecionou o que era de interesse do
420
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 26. 421
Ibidem, p. 26. 422
Ibidem, p. 26. 423
Ibidem ,p. 26.
154
movimento para a composição da identidade gaúcha. Mas viu-se ainda que essa
seleção não foi produzida exclusivamente pelo autor, foi uma construção emergente
para a fixação de uma nacionalidade que se buscava, principalmente na segunda
metade do século XIX, por escritores de diferentes áreas, incluindo folcloristas.
Por fim, pode-se afirmar que a indumentária de Fagundes, por dialogar com
diferentes viajantes, traz indícios do vestuário histórico. No entanto, as peças podem
não ter sido alocadas em locais e tempos distintos, bem como a usabilidade pode ter
sido diferente dessa apresentada. E, no que se refere à indumentária da mulher, a
problemática se amplia em razão da moda. Tal percepção foi revidada pelos
próprios pesquisadores do movimento tradicionalista, que instituíram normativas sem
referenciais para o vestuário da prenda. Tais questões serão discutidas no
derradeiro subcapítulo, a fim de se perceber a importância do vestuário e seus
problemas advindos da falta de investigação adequada, que refletiram ao longo do
tempo em um movimento que se expandiu para além do que foi imaginado pelos
jovens de 1947.
4.2 DOS BABADOS "FORA DE MODA" ÀS LEIS QUE NORMATIZAM: REFLEXOS
DO MOVIMENTO EM EXPANSÃO
Ao longo da história do movimento tradicionalista, algumas pesquisas foram
realizadas e apresentadas em congressos objetivando trazer à tona novas seleções
de vestuário gaúcho, haja vista os problemas com a indumentária principalmente da
mulher. De acordo com o tradicionalista Darcy Pereira da Paixão, na obra “A Prenda
Tradicionalista”, “O traje usado pelo gaúcho foi, ao longo dos anos, a temática mais
controvertida dos Congressos e Convenções tradicionalistas”424.
Entre as obras publicadas, registra-se uma importante investigação realizada
por Paixão Côrtes em 1978, intitulada “O Gaúcho: danças, trajes, artesanato”, de
1978, com versão em inglês. Entre os temas abordados na obra,, o autor faz uma
incursão pelos aspectos do artesanato têxtil, porém não apresenta investigações a
respeito do vestuário feminino.425 Importa registrar ainda outros textos diversos
sobre o vestuário da mulher, em pequenos livretos que circulam pelas instituições
424
PAIXÃO, Darcy Pereira da. A prenda tradicionalista. Santa Maria: Gráfica e Editora Pallotti, 1995, p. 111. 425
CÔRTES, J. C. Paixão. O Gaúcho: danças, trajes, artesanato. Porto Alegre: Garatuja, 1978.
155
tradicionalistas, de autoria de Paixão Côrtes e Marina Paixão Côrtes. Entre as
principais obras que circulam está ainda a “Indumentária Gaúcha” organizada pelo
MTG do Rio Grande do Sul em 2003, muito utilizada pelo movimento. Consideram-
se importantes obras, que abordam temas fazendo uso de destacados teóricos, com
investigações importantes acerca da história da moda e do vestuário, contudo,
distante do que afirmou Lipovetsky. Certamente, poderiam ser classificadas como
importantes obras com possibilidade de ampliação nos moldes sugeridos pelo citado
autor.
Entretanto, uma iniciativa se destaca entre as demais, e demonstra uma
seleção por convenção. Em 1989, o pesquisador de costumes do Rio Grande do Sul
Luiz Celso Hyarup, conhecido por suas pesquisas acerca dos costumes e
especialista em figurinos, elaborou uma proposta de normativas para a confecção do
vestido de prenda, apresentada no XXXIV Congresso Tradicionalista Gaúcho, no Rio
Grande do Sul. A sugestão era composta por dois módulos que indicavam
elementos de um modelo de vestuário ideal para a mulher tradicionalista, e tinha
como justificativa a ausência de pesquisas a respeito da indumentária histórica da
mulher gaúcha. Ausência essa que, segundo o autor, somada ao “surto” do
movimento tradicionalista gaúcho, estava levando à disseminação de uma roupa
feminina com poucos elementos dos costumes gaúchos, voltada apenas a
encenações teatrais de danças gaúchas, com o intuito de abrilhantar apresentações.
Módulo I 1- O vestido deve ser de uma peça, com a barra da saia à altura do peito do pé. 2- A quantidade de passa-fitas, apliques, babados e rendas, é de livre criação. 3- O vestido deve ser de chita estampada ou lisa, sendo facultado o uso de tecidos sintéticos com estamparia miúda, ou peti-pois. 4- Vedado o degote. 5- Saia de armar, quantidade livre. 6- Obrigatório o uso de bombachinhas rendadas ou não, cujo comprimento deverá atingir a altura do joelho. 7- Mangas até os cotovelos, ¾, ou até os pulsos. 8- Lenço com pontas cruzadas sobre o peito, ou fichu (de seda com franjas ou crochê) uma ou outra peça, presa por broche ou camafeu. Facultativo o uso do chalé. 9- Meias longas, brancas ou coloridas, não transplantes. 10- Sapato de salto grosso, tipo escolar, que abotoa do lado de fora por uma tira que passa sobre o peito do pé. 11- Cabelo solto ou em trança (única ou dupla), enfeitado com flores ou fitas. Vedado o uso de coque, para solteiras.
156
12- Facultado o uso de brincos de argola inteira, de metal. Vedados os de fantasias ou plástico. 13- Permitido o uso de pulseiras de aro de qualquer metal. Não aceitas as pulseiras de plástico. 14- Vedado o uso de colares. 15- Permitido o uso de um anel de metal em cada mão. Vedados os de fantasias. 16- É permitido o discreto uso de maquiagem facial, sendo vedados as sombras e batons brilhantes, lilases ou roxos. 17- Vedado o uso de relógio de pulso. 18- Livre criação, quanto à cores, padrões é silhueta, dentro dos parâmetros acima enumerados.426
Conforme descrito, a proposta indicava parâmetros a serem seguidos, porém
não fundamentava os elementos sugeridos, apenas afirmava-se que estavam
ancorados nas primeiras apresentações das mulheres tradicionalistas gaúchas da
década de 1950. Logo, um regulamento impediria as contínuas inovações que as
prendas estavam fazendo no período.
O texto foi concluído com um alerta por parte do autor, para que não fosse
questionado em razão da ausência de pesquisas a respeito, o que corrobora nossa
afirmação. Cita o autor proponente:
Para encerrar a presente tese concluímos que, do consubstanciado nos itens dos módulos acima apresentados nada poderá ser considerado discrepante ou inadequado no sentido de uma abstrata concepção do naqueles tempos não havia isso ou aquilo porque estamos tratando de um traje que não possui nenhum embasamento quer histórico ou folclórico [...].427
Em 1989, o movimento tradicionalista gaúcho havia conquistado um amplo
espaço, tanto político como geográfico. Os Centros de Tradições Gaúchas estavam
presentes em diversos estados do Brasil, principalmente, em razão da migração de
rio-grandenses, catarinenses e paranaenses para os demais estados do país,
sobretudo à fronteira oeste, e viam no movimento gaúcho uma forma de ocupar o
vazio deixado pela mudança. Além da expansão territorial, ampliou sua atuação
política e conquistou espaços. Dessa forma, o tradicionalista gaúcho tornou-se
conhecido em todo o Brasil, atuando em diversos segmentos, e os CTGs operando
com suas práticas “gaúchas”, conquistando cada vez mais espaços. Como reflexo
426
Luiz Celso Hyarup, 1989. Apud: ZATTERA, Véra Beatriz Stedile. Pilchas do Gaúcho – Vestuário Tradicional, Arreios e Avios de Mate. Porto Alegre: Gráfica e Editora Pallotti, 1998, p. 176. 427
Luiz Celso Hyarup, 1989. Apud: Ibidem, p. 178.
157
dessa expansão, diferentes cidades e Estado instituem leis que oficializam a
indumentária gaúcha como traje oficial.
A primeira delas aconteceu no mesmo ano em que foram definidas as normas
para o vestido da mulher tradicionalista, em 1989, a partir da Lei Estadual n° 8.813
de 10 de janeiro, quando o Rio Grande do Sul oficializou como traje de honra e de
uso preferencial no Estado a indumentária denominada pilcha gaúcha. Em seguida,
em 1991, Santa Catarina criou lei semelhante, entre outras cidades em âmbito
municipal. No Rio Grande do Sul, a lei conferia autonomia ao Movimento
Tradicionalista Gaúcho para definir qual seria o vestuário oficial do gaúcho e,
consequentemente, da mulher tradicionalista, denominada prenda.
Dessa forma, os regulamentos foram necessários, a fim de cristalizar as
práticas e os conceitos criados, garantindo a continuidade da maneira como foi
imaginada nos primeiros anos de atuação, conforme citado pelo autor da tese que
sugeriu as normativas para o vestuário da prenda. Tal preocupação havia sido
sinalizada pelo tradicionalista Barbosa Lessa em 1954, quando afirmou que, se a
cultura invadida não for predominantemente forte, a confusão social é inevitável e
poderá “desnortear” os indivíduos428, conforme discutido no segundo capítulo deste
estudo. Ou seja, a preocupação em preservar as práticas instituídas foi demonstrada
desde a organização das primeiras instituições, e assegurada por regimentos, o que
demonstra as fragilidades das suas práticas que afirmam ser gaúchas.
Essa corrida pela institucionalização da indumentária da mulher gaúcha, por
meio da normatização do seu vestuário, pode ser compreendida como reflexo da
expansão do movimento tradicionalista. Dessa forma, esta investigação encerra
seus textos apresentando uma continuidade do primeiro capítulo, como forma de
favorecer o entendimento sobre a organização diante da extensão que alcançou.
Com o amplo crescimento do movimento gaúcho e o uso contínuo que se faz
do vestuário, a pilcha tornou-se um dos principais meios de identificação do gaúcho
tradicionalista, contribuindo para o fortalecimento da identidade. Logo, a
indumentária gaúcha tornou-se traje oficial do Rio Grande do Sul, sendo instituída
pela Lei Estadual nº 8.813, de 10 de janeiro de 1989, proposta pelo deputado
Joaquim Moncks, que trazia o seguinte registro:
428
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954, p. 3.
158
Art. 1º. - É oficializado como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para ambos os sexos, a indumentária denominada "Pilcha Gaúcha". Parágrafo Único - Será considerada "Pilcha Gaúcha" somente aquela que, com autenticidade, reproduza com elegância, a sobriedade da nossa indumentária histórica, conforme os ditames e as diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Art. 2º. - A "Pilcha Gaúcha" poderá substituir o traje convencional em todos os atos oficiais públicos ou privados realizados no Rio Grande do Sul. Art. 3º. - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º. - Revogam-se as disposições em contrário. Assembleia Legislativa do Estado, em Porto Alegre, 10 de janeiro de 1989.
A partir do texto é possível verificar a autoridade que o movimento gaúcho
adquiriu, ao ponto de o Estado instituir uma lei afirmando que as especificidades
serão traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Vejamos a autoridade
adquirida pelo movimento gaúcho ao longo do tempo e a sua organização após o
VIII Congresso Tradicionalista, em 1961.
O movimento de retomada da identidade do gaúcho se transforma em um
grande movimento cultural a partir da segunda metade do século XX, agora sob a
denominação Movimento Tradicionalista Gaúcho, congregando mais de 2.813429
instituições, registradas como ente jurídico, no Brasil e no exterior, com o objetivo de
preservar a cultura gaúcha430, sob a nomenclatura de Centro de Tradições Gaúchas
e afins. Em razão da quantidade de instituições tradicionalistas, verificou-se que
seria necessário um órgão com o objetivo de congregar, orientar, disciplinar e
garantir a preservação do todo instituído até então.
Dessa forma, durante o XII Congresso Tradicionalista Gaúcho, em 1966, foi
fundado o Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, para melhor organização
daquele que já se configurava como um grande movimento. Embora a identidade
gaúcha houvesse se consolidado, era necessária a sua manutenção, assim como
uma instituição, hierarquicamente superior, para garantir a permanência do modo
429
Este número inclui apenas instituições fundadas por brasileiros, no Brasil e no exterior. 430
Por cultura levar-se-ão em conta as definições de Stuart Hall. Segundo o autor, “no sentido antropológico, cultura é um „modo de vida‟ de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social. [...] de uma forma tradicional, cultura é vista como algo que engloba „o que de melhor foi pensando e dito‟ numa sociedade. [...] Basicamente, a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos – o „compartilhamento de significados‟ – entre os membros de um grupo ou sociedade. [...] Além disso, a cultura se relaciona a sentimentos, a emoções, a um senso de pertencimento”. HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, APICURI, 2016, p. 19-20.
159
como foi idealizada. Pois identidade se configura como uma “produção” que nunca
se completa, está sempre em processo.431
O movimento gaúcho tomou grandes proporções e, visando crescer de forma
organizada, no que se refere à sua estrutura, em 1968, Glaucus Saraiva da Fonseca
publicou o “Manual do Tradicionalista”. Entre os documentos que compunham o
manual a ser seguido pelas instituições, orientações sobre a elaboração de
documentos institucionais à luz do que regula a instituição maior, como forma de
orientara criação de novas instituições.
No entanto, a proliferação de instituições gaúchas não se restringiu somente
aos limites geográficos do Rio Grande do Sul. A partir da década de 1970 foi
possível verificar a fundação de instituições, denominadas Centro de Tradições
Gaúchas, em outros Estados brasileiros. Dessa forma, viu-se a necessidade de
organizar também o movimento em âmbito nacional.
No início do século XX, inicia-se um amplo processo migratório sul-rio-
grandense para os demais estados do Brasil. Sabe-se que o Rio Grande do Sul,
durante o século XIX, recebeu uma forte imigração europeia. No entanto, ao chegar
o fim do citado século, as terras ficaram escassas, em virtude da ocupação das
áreas, somada à multiplicação das famílias. Os descendentes de imigrantes
esgotaram os núcleos coloniais, e as novas gerações migraram para outras regiões
do próprio Estado, e depois para outros. Desse modo, os excedentes dos imigrantes
cruzaram a fronteira do estado do Rio Grande do Sul, para colonizar os estados de
Santa Catarina e do Paraná. E, posteriormente, o Mato Grosso, Goiás, oeste baiano,
Maranhão, Acre, Pará, Rondônia, Roraima, e por todo o Brasil.432
A partir da segunda metade do século XX, o sul-rio-grandense vai
conquistando grandes extensões de terras, nos estados da fronteira oeste do país,
em razão da política de ocupação instituída pelo governo federal no século XX para
ocupar o interior do país. Dessa forma, o sul-rio-grandense deixa de ser pequeno
proprietário rural, passando a grande fazendeiro. Eles se veem como grandes
pioneiros que estão desbravando novas terras com trabalho e coragem.433
431
HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, nº 24, p. 68-75, 1996, p. 68. 432
FACCIONI, Victor. Mais gaúchos-brasileiros que “gringos”. In: MAESTRI, Mário (Org.). Nós, os Ítalos-gaúchos. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1998, p. 204. 433
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil Nação. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 141.
160
E as propagandas fortalecem a imagem do sul-rio-grandense como gaúcho.
Fortalecem o imaginário, conectam o presente com o passado, criam sentidos. O
que contribuía para que eles pudessem se identificar como tal. Essa reafirmação de
coragem em desbravar o chão desconhecido, de valentia, liberdade e luta por um
ideal vem legitimar a identidade do gaúcho, evocando-o como o diferente,
evidenciando o “eu” e o outro”.
O migrante sul-rio-grandense vive em uma “fronteira” quando deixa o Rio
Grande do Sul por não haver condições econômicas de permanência, porém não se
sente incluído culturalmente no novo espaço que o recebe e que fornece as
condições financeiras que procura. Motivo que o leva a optar por viver em uma
“comunidade imaginada”. Ele é reconhecido como gaúcho e como sul-rio-grandense,
e os seus filhos que nascem no novo estado, da mesma forma, são considerados
gaúchos.434
Com o objetivo de fortalecer a cultura, os usos e os costumes do gaúcho
histórico eram retomados e colocados em prática no novo espaço. Dessa forma, as
instituições gaúchas entravam em cena, iniciando um universo gaúcho longe do Rio
Grande do Sul, pois eram vistas como formas de garantir a cultura. Contudo, quando
residiam em suas cidades de origem, talvez não buscassem essa identidade em
particular, pois não havia o “outro”, o “diferente”. A esse propósito, cita Zygmunt
Bauman:
[...] não se pensa em identidade quando o “pertencimento” vem naturalmente, quando é algo pelo qual não se precisa lutar, ganhar, reivindicar e defender; quando se “pertence” seguindo apenas os movimentos que parecem óbvios simplesmente pela ausência de competidores.435
Ou seja, a necessidade de pertencimento e identidade é impulsionada pelo
distanciamento e pela presença do “outro”. Nesse sentido, o conjunto de práticas
instituídas pelas comunidades é forma de afirmação dessa identidade cultural na
diferença. É uma maneira de classificar aqueles que fazem parte dessa cultura em
relação ao “outro”. A esse respeito, Stuart Hall diz que toda essa energia e trabalho
simbólico e narrativo destinam-se a nos segurar “aqui” e a eles “lá”, a fixar cada um
434
SILVA, Edinéia Pereira da. A construção de uma memória Gaúcha em Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em História), PUC-RS, Porto Alegre, 2010. 435
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 43.
161
no lugar que lhe é designado. Sendo que o “outro” é necessário para o nosso próprio
senso de identidade, esse “outro” não está fora de nós, mas dentro, já que ele
fornece o sentido da própria identidade.436 Esse novo espaço “provoca de modo tão
profundo uma certa plenitude imaginária, recriando o desejo infinito de retornar às
origens perdidas”437. E as instituições, os chamados Centros de Tradições Gaúchas,
serão o núcleo de fortalecimento da identidade na diferença.
Com o crescente número de Centros de Tradições Gaúchas distribuídos pelo
Brasil, os Estados foram estabelecendo seus próprios MTGs, a fim de congregar
todos os Centros de Tradições Gaúchas. Assim, em 1973 foi fundado em Santa
Catarina o Movimento Tradicionalista Catarinense, posteriormente alterado para
Movimento Tradicionalista Gaúcho de Santa Catarina; em 1975, o Movimento
Tradicionalista Gaúcho no Paraná, entre outros. Fazendo com que surgisse, em 24
de maio de 1987, a Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha438, um órgão
regulador e organizador que tem como objetivo maior agregar todas as instituições
gaúchas fundadas por brasileiros.
Atualmente, são mais de 2.800 Centros de Tradições Gaúchas por todo o
Brasil que, seguindo o modelo do Rio Grande do Sul, estão reunidos e organizados
sob a competência de um Movimento Tradicionalista Gaúcho em seu estado,
quando este possuir mais de dez instituições devidamente registradas.439 Segue
organograma com a organização administrativa do movimento gaúcho no Brasil e
número de CTGs filiados:
436
HALL, Stuart. Raça, Cultura e Comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Tradução de Helen Hughes. Projeto História. São Paulo, v. 31, 2005, p. 8. 437
Idem. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, nº 24, p. 68-75, 1996, p. 75. 438
CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Ata da reunião de fundação da CBTG. Ponta Grossa, 23 mai. 1987. Embora a instituição tenha oficializado o dia 24 de maio como data de sua fundação. 439
Em cada estado em que haja um Centro de Tradições Gaúchas deve também haver uma instituição organizadora, denominada de Movimento Tradicionalista Gaúcho. Porém, de acordo com suas diretrizes atuais, o estado só poderá constituir um Movimento Tradicionalista Gaúcho quando atingir o número de dez Centros de Tradições Gaúchas - CTGs filiados dentro do seu Estado. Caso não atinja, esses CTGs deverão se unir a órgãos do estado mais próximo. Nessas condições encontram-se os estados de Roraima, Acre, Pará, Amapá e Amazonas, que se filiaram ao Movimento Tradicionalista Gaúcho de Rondônia, que já estava consolidado com 33 entidades federadas, pois não atingiram o número de dez CTGs em seus estados. E, de acordo com o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, em 1995 foi fundada a União dos Tradicionalistas Gaúchos do Nordeste e em 2000 a União Tradicionalista Gaúcha do Rio de Janeiro, a fim de congregar as entidades singulares de estados vizinhos, já que não atingiam o número mínimo de dez exigido. Essas uniões ou federações são, genericamente, tratadas como MTG, pois possuem as mesmas funções e objetivos deste. Segue gráfico com o número de entidades singulares – Centro de Tradições Gaúchas –, por entidade federativa – Movimento Tradicionalista Gaúcho ou União Tradicionalista Gaúcha.
162
Figura 37 - Organograma das instituições gaúchas filiadas à Confederação Brasileira
da Tradição Gaúcha - CBTG, com seus respectivos CTGs.440
As entidades federativas, assim distribuídas, são organizadas de forma que
suas práticas sejam permanentemente fiscalizadas, a fim de garantir a permanência
da comunidade nos moldes em que foi imaginada. Nesse sentido, a sua organização
e fiscalização acontecem de forma hierarquizada. Cada qual com seus estatutos,
regulamentos, registros jurídicos e outros documentos próprios. Porém, todos em
consonância com a instituição maior, a Confederação Brasileira da Tradição
Gaúcha.
A intensa migração ocorrida no século XX atingiu não somente o oeste do
Brasil, mas também o exterior. Nesse caso, vão em busca da inserção no mercado
de trabalho, com o intuito de ganhar dinheiro e voltar para suas origens. Todavia, os
que alcançam o objetivo, acabam por não mais voltar. Outros, com objetivos
distintos, aventuram-se e retornam, porém no curto espaço de tempo distante de
suas origens optam por práticas que lembram sua cultura. Atualmente são 20
Centros de Tradições Gaúchas fundados por brasileiros distribuídos por diversos
países.441 Segue mapa de localização das unidades:
440
Figura elaborada pela autora a partir das Atas da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha e de documentos enviados pelas instituições estaduais, 2017. 441
CTG Saudade da Minha Terra - Newark, EUA; CTG Amigos do Rio Grande - Danbury, EUA; Centro Cultural Gaúcho General Bento Gonçalves - Los Angeles, EUA; CTG 100 Fronteiras - Boston, EUA; Centro de Tradições Nova Querência - Harbor Island, EUA; CTG Brasil Tchê - Bernadesville, EUA; CTG Além Fronteira - Acton, EUA; CTG Patrão Velho Internacional - Framingham, EUA; CTG Recuerdos del Pago - Málaga; CTG Nova Querência - Fort Lauderdale, EUA; CTG Distante do Pago - Broadway Everett, EUA; CTG Rancho Rio Grande - Perris, EUA; CTG Indio José - Santa Rita, Paraguai; CTG Deserto da Saudade - Israel; Piquete China Veia - Dongguan, China; CTG Pedro Álvares Cabral - Lisboa, Portugal; CTG Querência do Norte - Toronto, Canadá; CTG Estância Celeste Brasil - Wroclaw, Polônia; CTG União de Ideais - Paris, França; e Association Sol do Sul - Paris, França. Esta última se configura como uma associação que reúne não só a cultura do Rio Grande do Sul, mas dos três estados do Sul.
CBTG
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha
MTG RS
1.736 CTGs
MTG SC
562 CTGs
MTG PR
350 CTGs
MTG SP
28 CTGs
MTG MS
19 CTGs
MTG MT
43 CTGS
UTG RJ
8 CTGs
UTG N
10 CTGs
MTG PC
19 CTGs
MTG AO
38 CTGs
163
Figura 38 - Localização dos CTGs fundados por brasileiros no exterior.442
Os Centros de Tradições Gaúchas organizados fora do território nacional por
iniciativa de brasileiros podem filiar-se à entidade federativa – Movimento
Tradicionalista Gaúcho do estado de sua escolha –, devendo essas filiações ser
comunicadas à entidade confederativa.443 Entretanto, em virtude do número de
entidades singulares fundadas nos Estados Unidos, no ano de 2005, por ocasião do
I Encontro Nacional do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro na cidade de Framingham
- EUA, foi instituída a Confederação Norte-Americana do Tradicionalismo Gaúcho
Brasileiro, abarcando os Estados Unidos, Canadá e México.444
No entanto, embora o Brasil tenha organizado um amplo movimento cultural
em torno dos usos e costumes do gaúcho, instituindo uma identidade para o Sul do
Brasil, a iniciativa é reflexo da organização em nível maior, e os países vizinhos,
Uruguai e Argentina, desde o século XIX, têm servido de modelo organizacional de
cultura gaúcha. Apesar das tentativas de organização do movimento gaúcho em
nível internacional na década de 50, em 1984, antes de ser criada a CBTG, foi dado
início à proposta de fundação de um órgão máximo do movimento gaúcho em
442
Figura elaborada pela autora a partir de dados coletados em pesquisa de campo, arquivo da CBTG e arquivo da CITG, 2017. 443
CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Coletânea da Legislação Tradicionalista. Brasília: CBTG, 2011, p. 43. 444
BETTA, Edinéia Pereira da Silva; HOLZ, Celívio. História e memória gaúcha: MTGSC. Blumenau: Nova Letra, 2013, p. 224.
164
âmbito internacional, e em 1991 foi fundado sob a denominação Confederação
Internacional da Tradição Gaúcha.
Dessa forma, desde 1985, foram realizadas reuniões e congressos nos três
países com o objetivo de instituir tal órgão e organizar o movimento gaúcho, que a
cada ano tomava proporções maiores. Desse modo, no VI Congresso Internacional
da Tradição Gaúcha, realizado na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina -
Brasil, entre os dias 3 e 5 de maio de 1991, foi aprovado o primeiro documento
oficial da entidade, a “Carta Constitutiva” que oficializou a sua fundação. Com efeito,
tal documento é utilizado como diretriz internacional para o movimento gaúcho nos
diferentes países. Ainda de acordo com a Carta Constitutiva, a Confederação
Internacional da Tradição Gaúcha “é uma instituição internacional, de caráter
tradicionalista-cívica-cultural, com duração indeterminada, constituindo-a as
intuições maiores destes países, sem fins políticos, lucrativos nem religiosos”445.
Segue organograma da estrutura administrativa do movimento gaúcho atual:
Figura 39 - Organograma da estrutura do movimento gaúcho e quantidade de
Centros de Tradições Gaúchas por confederação.446
O movimento gaúcho é uma alternativa para aqueles que desejam aderir ou
preservar referências culturais. O indivíduo da sociedade moderna sente falta do
“pertencer” e de ser identificado pelo outro por boas qualidades. Nesse sentido, as
práticas, o discurso e a organização do movimento gaúcho, seja no Brasil ou no
445
CONFEDERAÇÃO INTERNACIONAL DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Carta Constitutiva. Florianópolis: CITG, 1991. 446
Figura elaborada pela autora, a partir de documentos da CITG, CBTG e MTGs. Cf.: TRADICIÓN GAUCHA. Listado de Centros Tradicionalistas. s/d. Disponível em: <http://www.tradiciongaucha. com.ar/Centros.asp>. Acesso em 2017. EL PAIS. Buscan reconocimiento internacional al "gaucho". 18 jul. 2015. Disponível em: <http://www.elpais.com.uy/informacion/buscan-reconocimiento-internacional-gaucho.html>. Acesso em 2017.
CITG
Confederação Internacional da Tradição Gaúcha
CNATGB
Confederação Norte-Americana da Tradição Gaúcha Brasileira
(EUA)
12
CATG
Confederação Argentina da Tradição Gaúcha
245
CBTG
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha
2.813
MTO
Movimento Tradicionalista Oriental (Uruguai)
700
165
exterior, permitem que seus adeptos sejam reconhecidos. No entanto, é a
indumentária que visualmente permite o mais rápido reconhecimento.
Dessa forma, a indumentária foi sendo institucionalizada e oficializada por
Leis em diferentes cidades e estados. Em 9 de dezembro de 1991, Santa Catarina
promulgou a Lei nº 1.124, que dispõe sobre o uso de Traje Tradicional.
Diferentemente do Rio Grande do Sul, o Estado de Santa Catarina prevê a inclusão
das demais culturas que contribuíram para a formação da identidade cultural do
estado e não cita o Movimento Tradicionalista Gaúcho. Destaca a referida lei:
Assembléia Legislativa de Santa Catarina Decreta: Art. 1º Fica oficialmente na condição de traje de honra ou social no Estado de Santa Catarina, a indumentária tradicional da Cultura Gaúcha e de todas as outras formas étnico culturais no Estado, de ambos os sexos. Parágrafo único. A vestimenta a que se refere o “caput”, deverá necessariamente observar o feitio, as diretivas, as orientações e os preceitos das respectivas tradições culturais. Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário. Palácio Barriga Verde, em Florianópolis, 09 de dezembro de 1991.447
Da mesma forma, a cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, em dezembro de
1997, instituiu uma lei municipal oficializando a pilcha gaúcha. Em seu artigo
primeiro, registra que “Fica oficializado no Município de Foz do Iguaçu, como traje de
honra e de uso preferencial dos integrantes e simpatizantes do Movimento
Tradicionalista Gaúcho, para ambos os sexos, a indumentária denominada Pilcha
Gaúcha”448. A referida lei ainda traz de forma idêntica a redação do parágrafo único
da lei da Pilcha do Rio Grande do Sul, dizendo que: “Será considerada "Pilcha
Gaúcha" somente aquele traje que com autenticidade, reproduza com elegância, a
sobriedade da indumentária histórica, conforme os ditames e as diretrizes traçadas
pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho.” Ou seja, fazendo menção ao Movimento
Tradicionalista Gaúcho.
Em 2007, o então deputado federal Pompeo de Mattos propôs em nível
nacional o Projeto de Lei - PL nº 806/2007, que visava oficializar como traje de honra
e de uso facultativo em solenidades públicas, para ambos os sexos, a indumentária
denominada "Pilcha Gaúcha". Em seu artigo terceiro o texto expunha que a "Pilcha
447
Lei nº 1.124, de 09 de dezembro de 1991, de procedência do Dep. Luiz Basso, publicada no DO 14.340 de 12/12/1991. 448
Lei nº 2110, de 8 de dezembro de 1997.
166
Gaúcha poderá substituir o traje convencional em todos os atos oficiais públicos,
realizados no país”449. O projeto cita em seu artigo segundo o que denomina como
Pilcha para a proposta “no traje masculino, [...] botas, bombacha, guaiaca, com ou
sem faixa, camisa, colete, casaco ou jaqueta, e lenço. II - No traje feminino, [...] saia
e blusa ou saia e casaquinho ou vestido comprido, saia de armação, bombachinha,
meias e sapatos”. O autor complementa com um breve histórico da vestimenta, que
aponta o uso das pesquisas de Fagundes: “A origem da indumentária gaúcha data
dos primórdios da colonização dos pampas e é resultado da união de influências
históricas. [...] pode ser dividida em quatro fases, existindo para cada uma a peça
feminina correspondente.”450 No entanto, a iniciativa não teve êxito.451
Pode-se observar que a pesquisa de Antonio Augusto Fagundes, embora seja
sucinta, iniciada na década de 50 do século passado, publicada em 1977, é a
pesquisa sobre indumentária gaúcha que mais circula, sendo frequentemente
tomada como referência quando o assunto é vestuário do gaúcho, em razão da falta
de obras sobre o tema, mas também pela autoridade adquirida pelo autor ao longo
dos anos.
449
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei de 2007 (Dep. Pompeo de Mattos). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=454156>. 450
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 806-B, de 2007 (Do Sr. Pompeo de Mattos). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=6FBD4 CB2C758BE1786C9703ACB1D279D.node2?codteor=750424&filename=Avulso+-PL+806/2007>. 451
Seguindo a tramitação, em 25 de novembro de 2009, a Comissão de Educação e de Cultura opta também pela rejeição do projeto, seguindo a justificativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Em 2010, o autor do Projeto de Lei recorre, reiterando a justificativa do projeto. Porém, em 2012 o projeto de lei foi arquivado.
167
CONSIDERAÇOES FINAIS
O Dr. Antonio Augusto Fagundes [...] é, indubitavelmente, o maior pesquisador, dentro do Brasil, da indumentária gauchesca, trabalho [...], vem sendo considerado a respeito, autoridade inconteste. Mas não parou aí. Recuou no tempo, buscando as mais remotas origens universais que possam ter influído direta ou indiretamente nas formas e funcionalidades das vestes do nosso gaúcho desde o seu aparecimento. (Glaucus Saraiva, 1976)452
Instigante. A epígrafe que impulsionou este trabalho foi esclarecida. Aqui teço
realmente considerações finais e me despeço de Fagundes. Mas ilusão minha ter
imaginado que minhas curiosidades e ansiedades findariam com este trabalho. Uma
descoberta me levou a outras. E mais outras! Os elementos do vestuário que fui
buscar, ou talvez conferir para verificar se realmente o maior pesquisador era
inconteste, me pegaram de surpresa! Durante todo o tempo senti que conversaram
comigo. Um sentimento impulsionou a dar continuidade... Mas, voltando à epígrafe,
posso afirmar que no período pesquisado Fagundes foi o maior pesquisador acerca
da indumentária gaúcha no Brasil, levando em conta que a palavra maior será aqui
entendida como o que mais investigou na poucas fontes que selecionou.
O termo autoridade inconteste talvez não tenha sido apropriado, mas pode-se
afirmar que, nas fontes que se propôs a pesquisar, Fagundes alcançou os
elementos e soube traduzir em suas composições. Quanto a ter buscado nas fontes
mais remotas, não se aplica. Apesar de ter iniciado também com José de Saldanha,
ponto de partida para os investigadores do tema, o autor se limitou a poucas fontes,
já que o intuito era a composição de um vestuário histórico. E verificou-se ainda que
usou outras que não citou.
Contudo, sobre as incursões acerca do movimento tradicionalista, verificou-se
que o repertório imagético formado se configura como amplo inventário de
elementos históricos possíveis, com o intuito de constituir uma identidade tradicional,
que elege os fatos que agregam valores à identidade ideal. Contudo, importa dizer
que os elementos selecionados não foram iniciativas exclusivas do movimento
tradicionalista gaúcho, mas de escritores que, dedicados a formar o nacional,
elaboraram, já a partir da metade do século XIX, espectros de um país com olhos
452
FAGUNDES. Antonio Augusto. Cadernos Gaúchos 2: Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 3.
168
para o local. Em razão das questões políticas, o movimento gaúcho foi interrompido
no Estado Novo, porém reiniciado no final da década de 1940. Dessa vez
impulsionado pela retomada do movimento pelo Folclore, afirmando serem
complementares. Afirma-se, portanto, que os jovens de 1947 foram pioneiros do
movimento de retomada, que dessa vez atingiu proporções certamente não
imaginadas.
Em razão de se constituir como uma comunidade imaginada, o movimento se
vale também das memórias e documentos para continuar a construção dessa
identidade, já que não cessa. Produzido no século XIX, o gaúcho enquanto
personagem é continuamente posto em manutenção, de modo que os elementos
apreendidos sejam constantemente renovados. E viu-se que, dentro dessa
dinâmica, o vestuário se constituiu no eixo central das representações visuais do
movimento. Uma espécie de garantia de que o gaúcho vive naqueles que desejam
constituir uma identidade a partir do visual.
Essa corrida por constituir um repertório de elementos do vestuário gaúcho
nos primeiros anos do movimento fez com que Antonio Augusto Fagundes se
configurasse como referência indispensável para (re)vestir do gaúcho. Já que eram
poucas as publicações sobre o tema. A investigação do autor apresentou
fundamentos em relação aos elementos identificados, porém a composição foi
exilada em períodos, não permitindo o diálogo entre os elementos. Embora a
periodização tivesse relação com as datas em que os viajantes registraram seus
relatos, o vestuário do gaúcho histórico não se configura de forma cristalizada como
apontado por Fagundes. Deixo registrado posicionamento e defesa pela
representação da disposição do vestuário apresentada por Emeric Essex Vidal, em
que o autor retrata uma composição possível sem periodizar. Em uma mesma
imagem faz com que o vestuário posto aflore o imaginário do leitor, mas atinge a
compreensão sobre o possível vestuário, reverberando na proposta de Fagundes,
sem, no entanto, ter a necessidade de exilar em períodos.
Vê-se que Fagundes coloca as imagens diante das suas pesquisas como
testemunho. Observou-se que o autor apreendeu fielmente as informações das suas
fontes, limitando-se às margens impostas pelo olhar dos viajantes.453 No entanto,
sabe-se que os relatos são também representações. Dessa forma, registra-se a
453
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 92.
169
necessidade do crítico diálogo com as fontes, no sentido de ver para além do
sugerido, a fim de tecer relações com o contexto que envolve os fatos e/ou as
imagens.
No entanto, compreendemos que os relatos de viagem em diálogo com as
imagens pictóricas de viajantes artistas se configuram como um possível caminho
para os estudos do vestuário, apontado também, nesta investigação, pelos teóricos
de imagens. Observou-se ainda que, na tentativa de compreender uma imagem,
outras devem vir à tona, sejam textuais ou visuais, é preciso despertar a leitura para
além do visual, e fazer a interpretação não se limitando apenas ao iconográfico,
como aponta Panofsky.
No que se refere à indumentária da mulher gaúcha, o autor não realiza
investigações significativas, no entanto, percebe que esta é reflexo da moda. Sabe-
se que, em razão das constantes mudanças impostas por esta, a oscilação dificulta
o trabalho do pesquisador, mas nem por isso a moda escapa de uma possível
investigação. Eis porque poucos pesquisadores se debruçaram no tema, causando,
inclusive, uma ausência de elementos capazes de legitimar tal vestuário, que
acarreta dificuldades de compreensão sobre a moda que permeia o vestuário da
mulher gaúcha.
Cabe dizer que o vestuário do gaúcho passou por interferências da moda,
principalmente da moda inglesa, porém não inferiu de forma significativa na
usabilidade do vestuário gaúcho, conseguiu consolidar inúmeros elementos. A esse
respeito, Gilda de Mello e Souza diz que a moda se encontra em oposição aos
costumes, sendo estes últimos relativamente permanentes454, enquanto que a moda
vive a mudança, o novo, o efêmero. Dessa forma, a indumentária está relacionada
com os costumes, pode sofrer mudanças, mas procura manter as regras impostas
pela tradição. Enquanto que a moda não consegue manter-se fixa.
Vale registrar que o fato de ter sido composto por elementos da moda não
reduz a importância nem a autoridade do vestuário da mulher gaúcha. Porém,
considera-se importante ter a clareza da distinção do que pode ser entendido como
indumentária e, da mesma forma, compreender a moda. Pode ser classificada como
indumentária o traje do gaúcho, atentando para a compreensão dos elementos que
o envolvem, e como moda o traje da mulher. Vale destacar que esta pode ainda
454
SOUZA, Gilda de Mello. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 20.
170
retornar, igual ou com novas roupagens, aumentando as chances de conflito, no que
se refere à compreensão dos referenciais que compõem o traje da mulher.
Voltando ao objetivo desta investigação, observou-se que os referenciais
contidos nos relatos de viagem repercutem na obra de Fagundes. Porém, a forma
como compôs os trajes foi que criou certa dúvida quanto ao tempo e às formas de
uso. No entanto, as questões a serem destacadas sobre a obra estão na forma
como Fagundes se dirige ao leitor. Observa-se um autoritarismo, como que a impor
as regras. Sentia-se proprietário das usabilidades históricas do vestuário.
Os erros mais comuns, cometidos pelos tradicionalistas contra essa indumentária, dizem respeito, como sempre, às cores aberrantes, sobretudo no chiripa, que foi a essa época uma sofrida peça destinada a mal cobrir as vergonhas do homem e que agora aparece em verde-exorcista, grená-hemoptise e quejandos. Ademais, esse chiripa, que era uma saia enrolada da cintura aos joelhos, com abertura de cima abaixo, bem na frente, começa agora a ser usado com a abertura ao lado, o que lhe dá uma aparência “hippie”. E seu tamanho foi reduzido em um mínimo, transformado em autêntico tapa-rabo de luxo.455
Afora a linguagem, não adequada e desnecessária para a obra, o autor tece
comentários dessa natureza sempre após descrever os elementos retirados dos
relatos de viagem. Desse modo, cabe afirmar que a pesquisa realizada pelo autor
tem legitimidade histórica, porém os comentários feitos após a descrição da
composição do vestuário não se fundamentam. Excede-se na autoridade que
conquistara como professor de indumentária no curso de Folclore e como
investigador respeitado sobre o tema.
Levando em conta especificamente as obras citadas pelo autor, nota-se que
as cores aberrantes afirmadas por Fagundes como não usuais não se aplicam,
tendo em vista a diversidade das cores por vezes demonstrada nas obras. Do
mesmo modo, o tamanho e a abertura do chiripá. Verificou-se nos relatos afirmação
sobre o chiripá alcançar o joelho, porém as obras de Debret apresentam a peça com
comprimento inferior ao estipulado pelos viajantes. Porém, embora não se saiba de
fato se o artista esteve no Rio Grande do Sul ou se presenciou um personagem, não
é possível afirmar que não foi utilizado mais curto, e de igual maneira a abertura.
455
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 15.
171
Contudo, afora alguns elementos que não constavam em sua obra, seus
comentários, as poucas fontes e sua forma de escrita periodizada e cristalizada, de
modo a exilar elementos em tempo determinado, Antonio Augusto Fagundes
realizou de importante investigação, coletou informações, organizou e conseguiu
ampla circulação.
A partir dos dados coletados e organizados pelo autor, as pessoas se
apropriaram da identidade constituída, criaram personas e se afirmaram gaúchos. O
imaginário se fortalece, resultando em conexão entre o passado e o presente,
criando sentidos e constituindo uma identidade selecionada. Como resultado do
conjunto de práticas instituídas, entre elas o vestuário, o movimento se expandiu e
conquistou outros espaços, outras pessoas. Criando sentidos para um viver que se
completa com o imaginário.
Despeço-me de Fagundes agradecendo pelas possibilidades de continuidade
de pesquisa que ele deixou. Percorrer o caminho já trilhado pelo autor me
proporcionou viver as ansiedades, angústias, surpresas e inúmeras realizações
quando dos encontros. Em meus serões solitários fiz amigos no século XIX que se
apresentaram como Gardians de Camargue. Me encantei! Tenho a impressão de
que são primos dos gaúchos. Será?
172
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GLOSSÁRIO
A
Alpargatas: Sapatinhas de tecido ou couro com solado trançado em corda. 456
Aramado: Cerca de Arame.457
Arreio: Conjunto de peças com que se encilha um cavalo.
458
B
Barbicacho: Peça de seda torcida, de trança de couro crú ou mesmo de sola, que o gaúcho usa pra prender, geralmente por baixo do queixo, o chapéu à cabeça.459
Boleadeiras: Conjunto composto por três pedras ligadas entre si por tentos torcidos. Duas pedras têm o mesmo tamanho e a terceira que é menor tem o nome de manicla, por ser empunhada pelo homem. Entre os gaúchos, as pedras são retovadas de couro. Entre os índios, não.460
461
Bota lageana:
462
Bota Samborjense:
463
456
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p.48. 457
Ibidem, p.19. 458
ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 72. 459
FAGUNDES, op. cit., p. 14. 460
Ibidem, p. 12. 461
ACRI, op. cit., p. 70. 462
FAGUNDES, op. cit., p. 54. 463
Ibidem, p. 51.
190
Bota Serrana:
464
Bota Russilhona:
465
Boleadeiras: As bolas, compostas de tres pedras ligadas separadamente no escroto de algum quadrupede, e amarradas cada huma na ponta de huma guasca de certo comprimento, são mais proprias dos povos americanos, e parecem também herdadas dos indígenas: he arma mais destruidora que o laço. O cavaleiro que, depois de ter enroscado as guascas, segurando huma das bolas na mão, imprime ás outras hum movimento de rotação por cima da cabeça e larga-as repentinamente pela tangente, póde á sua vontade lanças a morte ou o captiveiro, segundo se dirigir á cabeça ou aos pés da presa.466
Boi Franqueiro: Raça de gado vacun de grande corpulência, com longos aspas abertas.
C
Cabresto: Peça trançada ou torcida com tentos de couro crú. Uma extremidade se apresilha à argola do buçal. A outra fica na mão do cavaleiro, em caso de doma, ou então sobre os pelegos, e mais raramente contornando o pescoço do animal e se apresilhando a si mesmo. É de boa tradição do campeiro sair com cabresto na mão quando o cavalo roda, isto é, o bom gaúcho mantém o animal preso mesmo quando cai.467
Campanha: Zona de campo apropriada à criação de gado. Local distante da cidade. Parte baixa do Estado.468
Capincho: Capivara, grande roedor que vive nas lagoas e remansos de rios, em brandos.469
Cebola: Popularmente, relógio de bolso. Os primitivos relógios de bolso tinham a forma de uma cebola, com cascas e tudo.470
464
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 49. 465
Ibidem, p. 45. 466
DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 172. 467
FAGUNDES, op. cit., p. 20. 468
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 83. 469
FAGUNDES, op. cit., p. 26. 470
Ibidem, p. 22.
191
Chapéu clássico aba larga:
471
Chapéu de tapeado:
472
Chapéu de filtro com barbicacho de seda:
473
Chapéu com barbicacho de sola:
474
Chapéu de palha:
475
Chapéu de copa pontuda:
476
Chapéu pança de Burro:
477
Chapéu serrano:
478
471
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 64. 472
Ibidem, p. 58. 473
Ibidem, p. 57. 474
Ibidem, p. 63. 475
Ibidem, p. 57. 476
Ibidem, p. 64. 477
ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 89. 478
FAGUNDES, op. cit., p. 67.
192
Chapéu pança de burro: Chapéu confeccionado de forma artesanal.
Chapéu pança de couro: Chapéu confeccionado com couro.
Charque: Carne gado bovina, salgada e seca em mantas.479
China: Descendente ou mulher de índio, ou pessoa do sexo feminino que apresenta alguns dos característicos étnicos das mulheres indígenas. || Cabocla, mulher morena. || Mulher de vida fácil. || (Parece provir do quíchua, xina, que significa aia).480
Chinas: China é a mulher de baixa categoria social. Atualmente, aparece como sinônimo de prostituta.481
Cincha: Cilha, peça dos arreios destinada a apertar, como uma cinta, o lombilho, o serigote ou bastos no lombo do animal.482
Cola-fina: Fatiota, roupa de gente da cidade; gente da cidade.483
Cuia: Porongo, cabeça de ponrongo que se usa para preparar o mate.484
Cusquinho: Cachorrinho. Diminutivo de cusco, cachorro, cão.485
D
Desenfrenou: Desenfrenar é tirar o freio. Desentrna-se o cavalo para soltá-lo, ou para que paste, encilhado.486
Despilchados: Mal vestidos, sem dinheiro ou bens.487
E
Estância: Fazenda de gado
Estancieiro: Proprietário de estância. Fazendeiro.488
479
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 107. 480
NUNES, NUNES, op. cit., p. 114. 481
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 16. 482
Ibidem, p. 20. 483
Ibidem, p. 19. 484
NUNES, NUNES, op. cit., p.136. 485
FAGUNDES, op. cit., p. 20. 486
Ibidem, p. 20. 487
Ibidem, p. 21. 488
NUNES, NUNES, op. cit., p. 176.
193
F
Farrapos: Ou “farroupilhas”, apelido que os conservadores (portugueses ou filhos de portugueses que pregavam a volta de D. Pedro I ao Brasil) davam aos liberais no Rio Grande do Sul, antes mesmo de eclodir a revolução farroupilha, a 20 de setembro de 1835. Com a Revolução Farroupilha (20/09/35 a 11/09/36) e a Guerra dos Farrapos (11/09/36 a 28/02/45) o apelido de farrapos e farroupilhas foi dado depreciativamente pelos imperialistas aos soldados rio-grandenses republicanos. Os gaúchos, porém, transformaram o insulto em título de honra.489
G
Garfos: O garfo é a armação da espora, em forma de “U”, abraçando o calcanhar e a parte traseira do pé do homem. “Juntas nos garfos” quer dizer cravar as esporas.490
Gaudério: Gaudério era chamado, no Rio Grande antigo, o pré-gaúcho por volta de 1750. Hoje gaudério quer dizer andarengo, vagamundo, desaquerenciado, o que não para em lugar nenhum.491
Guaiaca: Cinto largo de couro macio, às vezes de couro de lontra ou de camurça, ordinariamente enfeitado com bordados ou com moedas de prata ou de ouro, que serve para o porte de armas e para guardar dinheiro e pequenos objetos. Var: Goiaca (Etim.: Vem do quíchua, huayaca, que significa bolsa).492
493
Guasca: corda de couro cru não curtido.
Guampa: chifre de boi para ser usado como objeto.
H
Huaso: Ou “guazo”, homem cavaleiro do Chile, o equivalente chileno do gaúcho, com o qual tem muitos pontos comuns.494
489
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 16. 490
Ibidem, p. 12. 491
Ibidem, p. 19. 492
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 234. 493
FAGUNDES, op. cit., p. 71. 494
Ibidem, p. 12.
194
I
Indiada: Gauchada. Os próprios gaúchos, quando se referem amistosamente a outros gaúchos, dizem “os índios”, ou “a indiada”.495
Indumentária: Vestuário usado em determinada época ou por determinado grupo de indivíduos com características comuns.
L
Lobunos: Cavalo lobuno é o que tem pelo de cor aproximada à cor do lobo, acinzentado.496
Lonca: Pele de animal, de onde os pêlos foram raspados. Os tentos de lonca são usados para trabalhos mais delicados de trança.497
Lonqueadas: Peles de onde o pelo foi raspado.498
M
Manada: magotes de éguas ou burras, acompanhadas por um garanhão ou um burro.
Maneou: Manear o cavalo significa colocar-lhe a maneia, espécie de algemas de couro crú nas patas dianteiras – mãos - a fim de que não caminhe, ou caminhe pouco.499
Maragatos: Revolucionários que enfrentaram o governo rio-grandense em 1893 e 1923, em duas grandes e sangrentas revoluções, sem conseguir a vitória final pelas armas. A cor vermelha, sobretudo no lenço no pescoço, era símbolo dos maragatos, cujo nome evoca uma lendária confraria do vale do Nilo, antes da invasão berberisca da Espanha.500
Matungo: Cavalo de pouca categoria. Muitas vezes o gaúcho se refere assim a um cavalo que admira, unicamente em bem de conversa, para não valorizá-lo demais. Usa a expressão também no diminutivo.501
Moura: Diz-se da pelagem do cavalo que tem fios brancos misturados a fios escuros. Cor grisalha. 502
495
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 21. 496
Ibidem, p. 20. 497
Ibidem, p. 14. 498
Ibidem, p. 11. 499
Ibidem, p. 20. 500
Ibidem, p. 23. 501
Ibidem, p. 20. 502
Ibidem, p. 17.
195
P
Pacholice: A alegria de ostentação.503
Pago: Lugar em que se nasceu, o lar, o rincão, a querência; o povoado, o município em que se nasceu ou onde se reside. Geralmente usa-se no plural. (Etim.: Para Roque Callage, parece ser uma corruptela de plaga; Para Luiz Carlos de Moraes, Romaguera Corrêa, Beaurepaire-Rohan, a palavra deriva-se do latim pagus, aldeia, lugar pequeno; na opinião de Propício da Silveira Machado “...provém do conhecido vocábulo do lat. Pagus, oriundo do gr. pagos, colina, outeiro;”).504
Pardo: Espécie de veado. O “pardo” é bem maior que o veado-virá.505
Patrão: Designação dada ao presidente do Centro de Tradições Gaúchas.506
Peão: Homem ajustado para o trabalho rural. Conchavado. Empregado para condução de tropa. ||Associado de Centro de Tradições Gaúchas.507
Plata: Termo espanhol para Prata. Dinheiro.
Pelegas: Cédulas de dinheiro, ao contrário de “nicle”, que é moeda.508
Pelego: Couro de ovelha.
Pilcha: Bem material. Pilcha tanto pode ser dinheiro, como roupas ou objetos de valor.509
Prenda: Jóia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha.510
Q
Quincha: Cobertura de capim dos ranchos e dos galpões da campanha gaúcha. Há vários tipos de quincha, onde o capim mais empregado é o santa-fé.511
503
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 12. 504
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 340. 505
FAGUNDES, op. cit., p. 26. 506
NUNES, NUNES, op. cit., p. 354. 507
Ibidem, p. 357. 508
FAGUNDES, op. cit., p. 22. 509
Ibidem, p. 15. 510
NUNES, NUNES, op. cit., p. 395. 511
FAGUNDES, op. cit., p. 22.
196
R
Rabo-de-tatu: Chicote curto, com menos de um metro, trançado desde o cabo, em tentos de couro crú, afilando para a extremidade oposta, onde termina em açoiteira curta.512
Rebenque: Chicote curto, com o cabo retovado, com uma palma de couro na extremidade. Pequeno relho.513
Regionalismo: Corrente artística voltada para os temas regionais, um dos ramos do romantismo, que pregava o abandono dos temas clássicos e a busca de temas nacionais.514
Ronda: serviço de vigilância a que se submete a tropa de gado nos pousos. Pastoreio, lugar onde pasta ou pernoite a tropa de gado sob a vigilância dos tropeiro.515
Ramada: Cobertura de ramas à frente dos ranchos, à sombra da qual descansam os campeiros nas horas de sol ardente.516
S
Sepé: José Tiarayu, Alferes Real e Corregedor do Povo de São Miguel, então o mais importante dos Sete Povos das Missões. Não se sabe onde nasceu. Morreu a 7 de fevereiro de 1756, à margem esquerda da Sanga da Bica, em São Gabriel. Foi o comandante missioneiro mais notável da resistência que os jesuítas opuseram aos exércitos de Espanha e Portugal, na execução do Tratado de Madri. A alcunha de “Sepé” foi atribuído anteriormente a outros índios. José Tiarayu falava guarani e espanhol e compreendia bem o latim.517
T
Tentos: Tiras ou fios de couro cru cortados a faca ao longo do couro, para trabalhos de trança.518
519
512
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 27. 513
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 421. 514
FAGUNDES, op. cit., p. 19. 515
NUNES, NUNES, op. cit., p. 436. 516
Ibidem, 1993. 517
FAGUNDES, op. cit., p. 08. 518
Ibidem, p. 11. 519
ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 95.
197
Tirador: Espécie de avental de couro curtido que o homem normalmente usa sobre o lado esquerdo, preso à cintura e cobrindo a perna. É feito de couro de vaquilhona, capivara ou veado pardo.520
521
Tolderias: As aldeias dos índios pampas, com choças de couro cru e ramas.522
Trova: versos declamados em respostas.
Truco: Jogo de cartas de naipe espanhol, popularíssimo ainda hoje na fronteira castelhana do Rio Grande do Sul. O truco é irmão do truque jogado pelos caipiras do centro do Brasil.523
V
Vacaria: Grande número de vacas. Grande extensão de campo que os jesuítas reservaram para a criação de gado bovino.524
X
Xerenga: Faca tosca, de má qualidade. O gaúcho às vezes chama uma faca boa de xerenga apenas para não gabar o que é seu.525
520
FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 14. 521
ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 146. 522
FAGUNDES, op. cit., p. 11. 523
Ibidem, p. 19. 524
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 521. 525
FAGUNDES, op. cit., p. 26.
198
APÊNDICE
Vivências e convivências: motivações pessoais para desmontar e montar um
novo quebra-cabeça
Desde a infância, a tentativa de elaboração da famosa árvore genealógica da
minha família tem sido, no mínimo, curiosa. Às vezes uma confusão mesmo! Além
das famosas perguntas típicas de cidade do interior: De onde tu é? Qual é o teu
sobrenome? De quem tu és filha?
Mas curiosa mesmo eram as perguntas acompanhas de afirmações: “Tu é
neta do Antononofre? Báh, esse foi um domador!”, ou “Tu és bisneta do Chiquinho
serrano? Tais brincando? Dizem que ele era um gaúcho da serra, será que era
mesmo?”, ou ainda sobre minha mãe, “Tu é filha da Albertina costureira? Essa sabe
fazer bombacha com favo. Báh!”
Como se tudo isso fosse dar conta de responder quem eu sou!
Mas, enfim, o fato é que os parágrafos acima dizem muito sobre a razão
desta pesquisa. Posso afirmar que as problemáticas desta tese partiram dessas
questões. Inquietações, dúvidas e curiosidades que surgiram ainda na infância.
Natural de uma cidade chamada Armazém, a 40 minutos do litoral Sul do
Estado de Santa Catarina, venho de uma família excepcionalmente catarinense sem
relações com o estado vizinho - Rio Grande do Sul. Mas durante toda a minha vida o
gaúcho vestido de bombachas permeou minha história.
Ainda na infância lembro dos meus questionamentos que, sem respostas,
pairavam no ar. Enquanto meus colegas de classe davam conta das suas árvores
genealógicas, que aliás sempre tinham um europeu no meio, na minha era o gaúcho
o personagem principal do enredo.
Quando questionava em casa sobre meus bisavôs a resposta era: “Seu
bisavô paterno, „Chiquinho‟, era um gaúcho serrano. Alguém sem família, muito
valente, que veio dos campos de cima da serra de Lages.” Curioso é que a resposta
era unânime, todas as pessoas a quem eu perguntava falavam a mesma coisa, e
diziam com orgulho que era um gaúcho. A verdade é que nunca souberam me dizer
de onde ele veio.
199
Já meu bisavô materno, diziam que tinha vindo da Alemanha, mas o que me
intrigava é que seu filho, meu avô, loiro de olhos verdes, dizia-se gaúcho domador
de cavalos e tropeiro. Usava bombacha, bota e chapéu todos os dias. Era conhecido
e reconhecido como um gaúcho, e, portanto, eu nunca incluí os alemães na minha
árvore. Pelo menos, não com a ênfase dada aos europeus das árvores dos meus
colegas de classe.
Aos domingos os homens da minha família se vestiam com botas,
bombachas, guaiacas, lenço vermelho, chapéu e iam para a “argolinha” (modalidade
de rodeios), participar de competições de cavalo. Todos da família acompanhavam
com seus trajes gaúchos, inclusive eu. Certo dia, meu avô materno caiu do cavalo e
ficou entre a vida e a morte, eu tinha apenas cinco anos, mas lembro que alguns
diziam “Ele vai sobreviver, pois é um gaúcho”.
Minhas inquietações borbulhavam e me acompanhavam...
O tempo passou e minha vivência se resume a participações nas práticas
instituídas pelo movimento gaúcho – rodeios, danças, poesias e concursos de
prenda. Fiz parte da diretoria de diversas instituições gaúchas, incluindo a
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha, o que me deu a oportunidade de
visitar todos os MTGs dos estados brasileiros e instituições do exterior. Sempre
aproveitei para questionar as pessoas, fazer entrevistas, comprar livros de história
das instituições de cada lugar onde passava.
Pois minhas inquietações nunca cessaram!
Até que um dia decidi interromper minha participação no movimento gaúcho
para buscar respostas.
Na especialização e no mestrado resolvi parte dos meus questionamentos
sobre o gaúcho, e a carga começou a ficar mais leve. O que estava cristalizado e
ofuscado se desfez, e uma palavra se destacou - identidade (ideal). Ou seja, o
mestrado me ajudou a desmontar um quebra-cabeça que eu tinha passado anos
montando.
No doutorado com o quebra-cabeça (de centenas de peças) desmontado,
com imagens perdidas no tempo e no espaço, busquei memórias, histórias, leituras
e amigos (teóricos) para remontar. Passei os últimos anos buscando compreender
cada uma das peças. Algumas busquei longe, outras eu tinha, mas que de tanto ver
não eram compreendidas como deveriam.
200
Hoje, entrego meu quebra-cabeça remontado.
Mas formei ele com os olhos deste tempo.
Talvez tenham outras peças mais adequadas?
Talvez!
Mas não tem problema, pois continuarei predisposta a compreendê-las e
buscá-las. Pois, assim como a História, a graça do quebra-cabeça é montar e
desmontar de acordo com as leituras do agora, porém de diferentes tempos!
Que tenhamos tempo e oportunidade de desmontar e montar nossas histórias
com leituras de um tempo que ainda não chegou!
Ah!
E com imagens.
201
ANEXOS
Anexo 1
Tese: O Sentido e o Valor do Tradicionalismo526
Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a principal
força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione como unidade, é
necessário que os indivíduos que o compõem possuam modos de agir e de pensar
coletivamente. Isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura". Graças
à cultura comum, os membros de uma sociedade possuem a unidade psicológica
que lhes permite viverem em conjunto, com um mínimo de confusão.
A cultura, assim, tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu
ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma
série de técnicas que ensinam ao indivíduo, desde a infância, a maneira como
comportar-se na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma
geração a outra, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração
na vida em sociedade.
I - A DESINTEGRAÇÃO DE NOSSA SOCIEDADE
A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de
desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a cultura e a sociedade de
quaisquer dos povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior ou menor
intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes centros urbanos que esse fenômeno
se desenha mais nítido, através das estatísticas sempre crescentes de crime,
divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros índices de desintegração
social.
526
Este texto foi retirado da página do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado do Rio grande do Sul e apresenta correções de grafias em relação ao texto original publicado em 1954. LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/historico/ 240>. Acesso em: 26/11/2017.
202
Analisando tais circunstâncias, mestres da moderna Sociologia chegaram à
conclusão de que problemas sociais cruciantes da atualidade são causados, ou
incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e noções tradicionais de
cada cultura.
II - OS DOIS FATORES DE DESINTEGRAÇÃO
Sociólogos de renome afirmam que a desintegração social, característica de
nossa época, é devida a dois fatores:
Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais.
Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos Locais" comunidades
transmissoras de cultura.
Analisemos, então, esses dois fatores.
A) O ENFRAQUECIMENTO DO NÚCLEO CULTURAL
A cultura de qualquer sociedade se compõe de duas partes.
Há um núcleo sólido, de certa forma estável, constituído pelo PATRIMÔNIO
TRADICIONAL. Nesse núcleo se concentram aqueles inúmeros hábitos, princípios
morais, valores, associações e reações emocionais partilhados por TODOS os
membros de determinada sociedade (como a linguagem, a indumentária típica, os
princípios fundamentais de moral, etc. ou ainda, por TODOS os membros de certas
categorias de indivíduos, dentro da sociedade (como as ocupações reservadas só
às mulheres ou só aos homens, as reações emocionais típicas de todos os velhos
ou de todas as crianças, bem como os conhecimentos técnicos reservados aos
ferreiros, aos médicos, aos agricultores, etc.). Tais elementos culturais contribuem
para o bem-estar da coletividade, pois o indivíduo fica sabendo como comportar-se
em grupo, e qual o comportamento que pode esperar dos outros("expectativas de
comportamento"). Em suma: o cerne cultural dá, aos indivíduos, a unidade
psicológica essencial ao funcionamento da sociedade.
Mas, cercando o núcleo, existe uma zona fluída e instável, constituída por
elementos culturais chamados, em sociologia, Alternativas, e que são traços
partilhados apenas por ALGUNS indivíduos, representando diferentes reações às
mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar os mesmos fins. (Certa
pessoa viaja a cavalo, fazendo o mesmo percurso que outra prefere realizar em
203
carroça; certa pessoa sente-se tremendamente ofendida se alguém faz "crítica" a um
defeito físico seu, enquanto outra se comporta resignadamente face a tais críticas;
etc.)
É esta zona de Alternativas que permite à cultura crescer e acomodar-se aos
avanços de uma civilização. Evidentemente, quanto maior for o entrechoque com
culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de novas Alternativas, por
parte dos membros de uma sociedade.
Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas
idéias, duas coisas podem ocorrer:
Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade só
tem a lucrar com o referido contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio
aqueles traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam benéficos à
coletividade.
Se , porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é
inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os
indivíduos, e fazendo-os titubear entre as crença e valores mais antagônicos. Quem
mais sofre com essa confusão social - acentua o sociólogo Donal Pierson - são as
crianças e os adolescentes, os responsáveis pela sociedade do porvir.
Crescendo nessas circunstâncias, a criança não sabe como agir, não é capaz
de assumir, em seu espírito, qualquer expectativa clara de comportamento. E assim
se originam, entre outros, os problemas da delinqüência juvenil, resultados de uma
desintegração social.
Pois bem. Devido ao surto surpreendente do maquinismo em nossos dias,
bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os mais diversos povos,
observa-se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se reduzindo
gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela zona das Alternativas. E a fluidez
naturalmente se acentua, à medida que as sociedades mantêm novos contatos com
traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por viajantes ou imigrantes,
ou difundidos por livros, imprensa, cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada
num núcleo sólido e coerente, transformou-se numa variedades de Alternativas,
entre as quais o indivíduo tem que escolher.. Sem ampla comunidade de hábitos e
de idéias, porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem
podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem moral que afligem o
204
indivíduo, fazendo atarantar-se sem saber quais as opiniões e os valores que
merecem acatamento.
Essa insegurança reflete-se imediatamente na sociedade como um todo e,
consequentemente no Estado, pois, conforme ensina Ralph Linton "embora os
problemas de organizar e governar Estados nunca tenham sido perfeitamente
resolvidos, uma coisa parece certa: se os cidadãos tiverem interesses e culturas
comuns, com a vontade unificada que daí advém, quase qualquer tipo de
organização formal de governo funcionará eficientemente; mas se isso não se
verificar, nenhuma elaboração e padrões formais de governo, nenhuma
multiplicação de lei, produzirá um Estado eficiente ou cidadãos satisfeitos".
B) O DESAPARECIMENTO DOS "GRUPOS LOCAIS"
As duas unidades mais sociais mais importantes, como transmissoras de
cultura, são a "família" e o "grupo local". Através dessas duas unidades, o indivíduo
recebe, com maior intensidade, a sua "herança social".
São exemplos de "grupo local", em nossa sociedade, o "vizindário" ou "pago"
das populações rurais, bem como as pequenas vilas do interior, ou ainda (um
exemplo do passado) os bairros com vida própria das cidades de há alguns anos
atrás.
Por "grupo local" entende-se o agregado de famílias e de indivíduos avulsos
que vivem juntos em certa área, compartilhando hábitos e noções comuns.
Embora não tenha organização formal (como o distrito ou o município), o
"grupo local" é a unidade social autêntica. O "pago", por exemplo, influencia a vida
dos seus membros, estabelece limites à vida social (quais as famílias que podem ser
convidadas para as festas) , mantém elevado grau de cooperação entre os
indivíduos, pois todos devem se auxiliar (antigos trabalhos de puxirão) e cada qual
tem consciência desse dever de auxílio mútuo. O Indivíduo conhece perfeitamente
os costumes e os princípios morais instituídos pelo seu "pago"; além disso, há um
conhecimento íntimo entre os membros de um mesmo "pago" (conhecem-se até os
animais objetos pertencentes aos vizinhos). Todas essas circunstâncias influem para
que o "grupo local" se constitua numa potente barragem para as transgressões à
ordem pública ou à moral (furto, sedução, adultério, etc.). Ademais, embora não
tenha um meio de reação formal(como a polícia), o "grupo local encerra grande força
punitiva, através de medidas como a perda de prestígio, o ridículo, o ostracismo.
205
Certamente já depreendemos, então, a grande importância de que se reveste o
"grupo local" para assegurar a normalidade da vida comum, segundo os padrões
culturais instituídos pelo grupo.
Acresce notar o seguinte: o integrar-se a um "grupo local" constitui verdadeira
NECESSIDADE PSICOLÓGICA para o indivíduo normal. Este precisa de uma
unidade social coesa, maior que a família, dentro da qual sinta que outros indivíduos
são seus amigos, que compartilham suas ideias e hábitos. Tanto é verdade que o
indivíduo se sente inseguro quando se vê só entre estranhos.
Pois bem. O enfraquecimento da vida grupal - conforme acentuou Ralph
Linton - é outra característica de nossa época. As unidades sociais pequenas estão
gradativamente desaparecendo, e cedendo lugar às massas de indivíduos. Nas
zonas rurais, os "grupos locais" ainda conservam um pouco de sua função como
portadores de cultura; mas, em geral - devido ao afluxo de Alternativas - os jovens
discordam dos padrões culturais antigos; acontece, porém, que a sociedade mais
ampla - com a qual o jovem entra em contato por meio da imprensa, do rádio e
cinema - ainda não têm padrões coerentes de vida para oferecer-lhes. Daí a
insegurança que começa a notar-se em nossa sociedade rural.
Se nas zonas rurais se percebe apenas uma insegurança incipiente, apenas o
relaxamento das forças do "grupo local" , o que se percebe nas cidades é a
desintegração total dessas forças. A mudança de padrões culturais, em nossos dias,
tem sido tão rápida que, em geral, o adulto de hoje teve sua infância condicionada à
vida segundo as bases do "grupo local". Ensinaram-lhe a esperar dos seus vizinhos
encorajamento e apoio moral; e quando esses vizinhos se afastam, o indivíduo se
sente perdido. Ele escolhe entre muitas Alternativas, mas não dispõe de meios para
estabelecer contato com outros que tenham feito, escolha semelhante.
Sem o apoio de um grupo que pense do mesmo modo, é - lhe impossível
sentir-se seguro a respeito de qualquer assunto. E assim o indivíduo torna-se presa
fácil de qualquer propaganda insistente, (quer seja a má propaganda, quer seja a
boa propaganda).
Por isso, Ralph Linton escreveu "A cidade moderna, com sua multiplicidade
de organizações de toda a espécie, dá a imagem de uma massa de indivíduos que
perderam seus "grupos locais" e estão tentando, de maneira tateante, substituí-los
por alguma outra coisa. De todos os lados surgem novos tipos de agrupamentos,
mas até agora nada foi encontrado, que pareça capaz de assumir as principais
206
funções do "grupo local". Ser membro do Rotary Club, por exemplo, não substitui
adequadamente a posse de vizinhos e amigos tal como se verifica nos grupos
locais".
O MOVIMENTO TRADICIONALISTA RIO-GRANDENSE
O movimento tradicionalista rio-grandense - que vem se desenvolvendo
desde 1947, com características especialíssimas - visa precisamente combater os
dois reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento científico deste
movimento encontra-se na seguinte afirmação sociológica: "Qualquer sociedade
poderá evitar a dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de seu
núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo, produzem conflitos entre indivíduos
que compõem a sociedade, pois esses vêm a preferir valores diferentes, resultando,
então, a perda da unidade psicológica essencial ao funcionamento eficiente de
qualquer sociedade".
Através da atividade artística, literária, recreativa ou esportiva, que o
caracteriza - sempre realçando os motivos tradicionais do Rio Grande do Sul - o
Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-grandense,
tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de
nossa época.
E, através dos Centros de Tradições, o Tradicionalismo procura entregar ao
indivíduo uma agremiação com as mesmas características do "grupo local" que ele
perdeu ou teme perder: o " pago". Mais que o seu "pago", o pago das gerações que
o precederam.
Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à
medida que surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio Grande do Sul,
vai o Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois opera para que
todos os indivíduos que compõem a Região sintam os mesmos interesses, os
mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade
regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar na maior força política
do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com "política partidária",
expressemo-nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a
auxiliar o Estado na resolução dos problemas cruciais da coletividade.
207
Para compreendermos tal afirmativa, basta repetir a transcrição já feita: "Se
os cidadãos tiverem interesses e culturas comuns, com vontade unificada que daí
advém, quase qualquer tipo de organização formal de governo funcionará
eficientemente. Mas, se isso não se verificar, nenhuma elaboração de padrões
formais de governo, nenhuma multiplicação de lei, produzirá um Estado eficiente ou
cidadãos satisfeitos.
O SENTIDO DO TRADICIONALISMO
O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA do povo rio-grandense, no
sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor funcionamento da
engrenagem da sociedade. Como toda experiência social, não proporciona efeitos
imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou
não desta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que
poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por enquanto - pálida
experiência. E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que
acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao passado". A
realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro.
Feitas estas considerações preliminares, podemos tentar um conceito do
movimento tradicionalista. E então diremos:
"Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na
consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não
se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças
ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida comum".
CARACTERÍSTICAS DO TRADICIONALISMO
Mais do que uma teoria, o Tradicionalismo é um movimento. Age dentro da
psicologia coletiva. Sua dinâmica realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições
Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm por fim estudar, divulgar e fazer
com que o povo "viva" as tradições rio-grandenses.
O Tradicionalismo deve ser um movimento nitidamente POPULAR, não
simplesmente intelectual. É verdade que o tradicionalismo continuará sendo
compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma minoria intelectual. Mas,
208
para vencer, é fundamental que seja sentido e desenvolvido no seio das camadas
populares, isto é, nas canchas de carreiras, nos auditórios de radioemissoras, nos
festivais e bailes populares, na "Festas do Divino" e de "Navegantes", etc.
Para alcançar seus fins, o Tradicionalismo serve-se do Folclore, da
Sociologia, da Arte, da Literatura, do Esporte, da Recreação, etc. Tradicionalismo
não se confunde, pois, com Folclore, Literatura, Teatro, etc. Tudo isso constitui
MEIOS para que o Tradicionalismo alcance seus fins. Não se deve confundir o
Tradicionalismo, que é um movimento,, com o Folclore, a História, a Sociologia, etc.,
que são ciências. Não se deve confundir o folclorista, por exemplo, com o
tradicionalista: aquele é o estudioso de uma ciência, este é o soldado de um
movimento. Os Tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o folclore;
estarão agindo eficientemente se servirem dos estudos dos folcloristas, como base
de ação, e assim reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo.
AS DUAS GRANDES QUESTÕES DO TRADICIONALISMO
Existem duas questões importantíssimas, que de maneira nenhuma podem
ser descuidadas pelos tradicionalistas, sob pena deste esforço cultural se desenhar,
de antemão, como uma experiência fracassada.
A) ATENÇÃO ESPECIAL ÀS NOVAS GERAÇÕES
Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade no setor infantil ou
educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça com a nossa
geração. Porque nós - os tradicionalistas de primeira arrancada - entramos para os
Centros de Tradições Gaúchas movidos pela necessidade psicológica de encontrar
o "grupo local" que havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações
novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade social autêntica, e
somente seguirão nossos passos por força de impulsos que a educação lhes
ministrar.
Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso para o movimento
tradicionalista será aquele em que a classe de Professores Primários do Rio Grande
do Sul - consciente do sentido profundo desse gesto, e não por simples atitude de
simpatia - oferecer seu decisivo apoio a esta campanha cultural.
209
Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias continuem por mais tempo
apartadas do movimento tradicionalista. Pois a maneira mais segura de garantir à
criança o seu ajustamento à sociedade é precisamente fazer com que ela receba, de
modo intensivo, aquela massa de hábitos, valores, associações e reações
emocionais - o patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que o
indivíduo se integre eficientemente na cultura comum.B) ASSISTÊNCIA AO HOMEM
DO CAMPO
A idéia nuclear das Tradições Gaúchas é a figura do campeiro das nossas
estâncias. Por isso, é sumamente necessário que o Tradicionalismo ampare social e
moralmente o homem do campo, para que um dia não se chegue à situação
paradoxal de manter-se uma Tradição de fantasia, em que se tecessem hinos de
louvor ao "Monarca das Coxilhas", ao "Centauro dos Pampas", e esse gaúcho fosse
um desajustado social, um pária lutando febrilmente pela própria subsistência. A
nossa cultura somente poderá se impor sobre as outras culturas, no entrechoque
inevitável, se for suficientemente prestigiosa. Daí a razão por que precisamos
mostrar às novas gerações - bem como àqueles que, vindos de terras distantes,
acorrerem à nossa querência - que as tradições gaúchas são REALMENTE belas, e
que o gaúcho merece realmente a nossa admiração.
O TRADICIONALISMO COMO FORÇA ECONÔMICA
Prestigiando as tradições gaúchas e prestando assistência moral e social ao
homem do campo, o Tradicionalismo estará contribuindo de maneira inestimável
para a solução do problema que ora sufoca a nossa vida econômica: o êxodo rural,
a crise agrícola. É que, dentre as principais causas do êxodo rural, encontramos
uma que foge ao âmbito dos fenômenos econômicos. Para proteger o homem do
campo, e fazer com que ele permaneça no meio rural, não basta que o Estado lhe
forneça meios econômicos mais seguros. Se o campesino acaso julgar que o lugar
que lhe está reservado na sociedade encontra-se nas cidades, ele será um
desajustado enquanto não realizar seu sonho de transferir-se para a cidade. Este
fenômeno prende-se ao conceito sociológico de "status", que é a posição social de
uma pessoa em relação a todas as outras com quem está em contato. Se "os
outros" demonstram que certo indivíduo ocupa um "status" digno, ele fica satisfeito;
mas se "os outros" demonstram o contrário, ele é, inconscientemente, levado a
210
demonstrar habilidade, e, nesse afã, sempre deseja competir com os indivíduos que
considera superiores, jamais com aqueles que considera inferiores. Assim sendo, se
o campesino se considera inferior ao citadino, mais cedo ou mais tarde tentará
procurar a cidade, para ali competir com quem lhe rouba a posição social.
Prestigiando as tradições gaúchas, e prestando assistência moral e social ao
homem do campo, o Tradicionalismo estará convencendo o campesino da dignidade
e importância do seu "status". Estará, em suma, pondo em prática aquilo que o
sanitarista Belizário Penna um dia salientou, mais ou menos nestes termos: "O Brasil
é o país onde mais se fala em valorização. Valorização do café brasileiro, do
dinheiro brasileiro, do algodão brasileiro, do boi brasileiro. Somente não se pensa na
mais urgente e importante valorização: a do Homem brasileiro, a qual, por si só,
estaria conduzindo a todas as outras".
211
Anexo 2
Carta de Princípios
A "Carta de Princípios" atualmente em vigor foi aprovada no VIII Congresso
Tradicionalista, levado a efeito no período de 20 a 23 de julho de 1961, no CTG "O
Fogão Gaúcho" em Taquara, e fixa os seguintes objetivos do Movimento
Tradicionalista Gaúcho:
I - Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do
bem coletivo.
II - Cultuar e difundir nossa História, nossa formação social, nosso folclore, enfim,
nossa Tradição, como substância basilar da nacionalidade.
III - Promover, no meio do nosso povo, uma retomada de consciência dos valores
morais do gaúcho.
IV - Facilitar e cooperar com a evolução e o progresso, buscando a harmonia social,
criando a consciência do valor coletivo, combatendo o enfraquecimento da cultura
comum e a desagregação que daí resulta.
V - Criar barreiras aos fatores e idéias que nos vem pelos veículos normais de
propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e
pendores naturais do nosso povo.
VI - Preservar o nosso patrimônio sociológico representado, principalmente, pelo
linguajar, vestimenta, arte culinária, forma de lides e artes populares.
VII - Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e através da
prática e divulgação dos hábitos locais, noção de valores, princípios morais, reações
emocionais, etc.; criar em nossos grupos sociais uma unidade psicológica, com
modos de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio,
para a reação em conjunto frente aos problemas comuns.
212
VIII - Estimular e incentivar o processo aculturativo do elemento imigrante e seus
descendentes.
IX - Lutar pelos direitos humanos de Liberdade, Igualdade e Humanidade.
X - Respeitar e fazer respeitar seus postulados iniciais, que têm como característica
essencial a absoluta independência de sectarismos político, religioso e racial.
XI - Acatar e respeitar as leis e poderes públicos legalmente constituídos, enquanto
se mantiverem dentro dos princípios do regime democrático vigente.
XII - Evitar todas as formas de vaidade e personalismo que buscam no Movimento
Tradicionalista veículo para projeção em proveito próprio.
XIII - Evitar toda e qualquer manifestação individual ou coletiva, movida por
interesses subterrâneos de natureza política, religiosa ou financeira.
XIV - Evitar atitudes pessoais ou coletivas que deslustrem e venham em detrimento
dos princípios da formação moral do gaúcho.
XV - Evitar que núcleos tradicionalistas adotem nomes de pessoas vivas.
XVI - Repudiar todas as manifestações e formas negativas de exploração direta ou
indireta do Movimento Tradicionalista.
XVII - Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas que, sincera e honestamente,
queiram perseguir objetivos correlatos com os do tradicionalismo.
XVIII - Incentivar, em todas as formas de divulgação e propaganda, o uso sadio dos
autênticos motivos regionais.
XIX - Influir na literatura, artes clássicas e populares e outras formas de expressão
espiritual de nossa gente, no sentido de que se voltem para os temas nativistas.
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XX - Zelar pela pureza e fidelidade dos nossos costumes autênticos, combatendo
todas as manifestações individuais ou coletivas, que artificializem ou
descaracterizem as nossas coisas tradicionais.
XXI - Estimular e amparar as células que fazem parte de seu organismo social.
XXII - Procurar penetrar e atuar nas instituições públicas e privadas, principalmente
nos colégios e no seio do povo, buscando conquistar para o Movimento
Tradicionalista Gaúcho a boa vontade e a participação dos representantes de todas
as classes e profissões dignas.
XXIII - Comemorar e respeitar as datas, efemérides e vultos nacionais e,
particularmente o dia 20 de setembro, como data máxima do Rio Grande do Sul.
XXIV - Lutar para que seja instituído, oficialmente, o Dia do Gaúcho, em paridade de
condições com o Dia do Colono e outros "Dias" respeitados publicamente.
XXV - Pugnar pela independência psicológica e ideológica do nosso povo.
XXVI - Revalidar e reafirmar os valores fundamentais da nossa formação, apontando
às novas gerações rumos definidos de cultura, civismo e nacionalidade.
XXVII - Procurar o despertamento da consciência para o espírito cívico de unidade e
amor à Pátria.
XXVIII - Pugnar pela fraternidade e maior aproximação dos povos americanos.
XXIX - Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de força social que lhe dê
ressonância nos Poderes Públicos e nas Classes Rio-grandenses para atuar real,
poderosa e eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de vida do
nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e homem rural, suas raízes
primordiais, cumprindo, assim, sua alta destinação histórica em nossa Pátria.
214
Anexo 3
Cartaz para divulgação do baile gauchesco de 20 de setembro 1947
Fonte: CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento
Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 103.
215
Anexo 4
Capa da Revista do Rádio de 1950
Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano II, nº 49, 15 ago. 1950.
Acervo Israel Lopes.
216
Anexo 5
Produção fotográfica de Pedro Raymundo
Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, Ano III, nº 52, 5 set.
1950, p. 22-23. Acervo Biblioteca Nacional – RJ.
217
Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano III, nº 52, 5 set.
1950, p. 22-23. Acervo Biblioteca Nacional - RJ.
Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano III, nº 23, 1º jan.
1950, p. 42. . Acervo Biblioteca Nacional - RJ.
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