Zquerubim 15 2011 Vol 2

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO 2011 2011 2011 2011 Revista Querubim Letras Ciências Humanas Ciências Sociais Outubro Ano 07 nº15 Vol. 2 NITERÓI RIO DE JANEIRO

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

2011

2011

2011

2011

Revista Querubim

Letras – Ciências Humanas – Ciências Sociais

Outubro – Ano 07 nº15 Vol. 2

NITERÓI – RIO DE JANEIRO

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011

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Revista Querubim 2011 Ano 07 nº 15 – Vol. 2 – 183p. (outubro – 2011) Rio de Janeiro: Querubim, 2011 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais –Periódicos. I - Titulo: Revista Querubim Digital Conselho Científico Alessio Surian (Universidade de Padova - Italia) Carlos Walter Porto-Goncalves (UFF - Brasil) Darcilia Simoes (UERJ – Brasil) Evarina Deulofeu (Universidade de Havana – Cuba) Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal) Vicente Manzano (Universidade de Sevilla – Espanha) Virginia Fontes (UFF – Brasil) Conselho Editorial Presidente e Editor Aroldo Magno de Oliveira Consultores Alice Akemi Yamasaki Andre Silva Martins Elanir França Carvalho Enéas Farias Tavares Guilherme Wyllie Janete Silva dos Santos João Carlos de Carvalho José Carlos de Freitas Jussara Bittencourt de Sá Luiza Helena Oliveira da Silva Marcos Pinheiro Barreto Paolo Vittoria Ruth Luz dos Santos Silva Shirley Gomes de Souza Carreira Vanderlei Mendes de Oliveira Venício da Cunha Fernandes

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SUMÁRIO

01 O sistema tonal e o sistema tonal acentual nas línguas banto – Evilazia Ferreira Martins 04 02 A Belle Époque: os literatos e a boêmia no Rio de Janeiro dos 1900 – Luciana Marino do

Nascimento e Luís Edmundo Bouças Coutinho 12

03 Crase: solução ou problema? – Luciane de Oliveira Morales e Rebeca Bulcão da Silva 16 04 Princípios da educação anarquista: o orfanato de Prévost – Luciano Ricardo Nascimento e

Celso Kraemer 23

05 Letramento literário: falem meninos e meninas, nós queremos ouvi-los sobre a leitura de textos literários no ensino médio – Maria da Conceição Jesus Ranke, Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luiza Helena Oliveira Silva e Gislene Pires de Camargos Ferreira

30

06 Estágio supervisionado em educação a distância: um estudo da plataforma moodle – Maria José de Pinho e Severina Alves de Almeida

38

07 Nódoas poéticas e impressionistas em um conto de Menalton Braff – Mariângela Alonso 45 08 Formação de mediadores de leitura: imagens visivas propostas pela arte – Patrícia Colavitti Braga

Distassi e Mary Julia Dietzsc 51

09 Para além do corpo fabricado: possibilidades do devir em educação – Melissa Probst 62 10 À luz da fonoestilística: uma possibilidade de leitura do poema Brasil, de Ronald Carvalho –

Patrícia de Brito Rocha 69

11 Literatura, leitura e produção de textual: intersecções – Patrícia Colavitti Braga Distassi 76 12 Valores na estrutura e na organização da instituição escolar: alguns pontos para reflexão –

Pedro Braga Gomes 90

13 O cinema e a caverna: luzes e sombras da realidade e da educação – Patrícia Colavitti Braga Distassi e Adalberto Miranda Distassi

96

14 Do autoritário ao lúdico-crítico: o jornal Meia Hora em sala de aula – Phellipe Marcel da Silva Esteves

103

15 Desenvolvendo a compreensão leitora de alunos do ensino médio – Priscilla Vichinieski e Cristiane Malinoski Pianaro Angelo

114

16 O pesquisador e seu lugar exterior: exotopia e responsi(a)bilidade – Rodrigo Acosta Pereira e José Agostinho Barbosa de Souza

122

17 Paraolimpíadas e políticas de inclusão: novas formas de governo dos corpos – Roseli Belmonte Machado

129

18 Sujeitos rave: onde o neotribal encontra o eletrônico – Sandro Bortolazzo 137 19 Estado, educação e dominação social sob o olhar de gramsci, altusser e poulantzas: uma análise

introdutória – Severina Alves de Almeida, Maria José de Pinho e Francisco Edviges Albuquerque

144

20 Programa mais educação: concepções e interfaces de monitoramento com o plano de ações articuladas – Sheila Cristina Monteiro Matos

150

21 Envelhecência: um conceito a ser refletido – Tania Scuro Mendes 155 22 Aprendizado da lingua inglesa através das redes sociais: uma observação no site ingles verde e

amarelo – Vânia Carvalho de Castro 161

23 Aplicação da técnica SWOT para determinar a inserção do setor de gestão documental no planejamento estratégico da Unisul – Vera Lúcia da Rosa Fernandes

165

24 O gaúcho e os animais sob o processo de dicionarização – Verônica Franciele Seidel 175 25 RESENHA – RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto,

2010 – Márcia Moreira Pereira 182

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O SISTEMA TONAL E O SISTEMA TONAL ACENTUAL

NAS LÍNGUAS BANTO

Evilazia Ferreira Martins1

Resumo: O objetivo deste artigo é delimitar as principais características do sistema acentual e do sistema tonal-acentual no sistema nominal de duas línguas pertencentes ao grupo Banto de línguas africanas da família Niger-Congo. Analisamos as propriedades prosódicas classificatórias propostas nos estudos de Goldsmith (1984) e Charles W. Kisseberth (1984). A metodologia empregada é de base comparativa e a teoria autossegmental. Os sistemas prosódicos estudados são os pertencentes às línguas bantas: ‗Tonga‘ (tonal acentual) e Digo (língua tonal). Palavras-chave: Fonologia, Línguas Banto, Linguística. Abstract: The aim of this paper is to define the main characteristics of the accentual and pitch-accent systems, in the nominal system of two languages belonging to the Bantu group of Niger-Congo African family. We analyze the prosodic properties in the studies of Goldsmith (1984) and Charles W. Kisseberth (1984). The methodology is comparative based on auto-segmental theory. Prosodic systems studied are those belonging to the Bantu languages, Tonga (pitch-accent language) and Digo (tonal language). Keywords: Phonology, Bantu Languages, Linguistics. Introdução

O presente texto apresenta as propriedades prosódicas classificatórias do sistema nominal de duas línguas pertencentes ao grupo Banto de línguas africanas da família Niger-Congo propostas nos estudos de Goldsmith (1984) e Charles W. Kisseberth (1984). Justifica-se o estudo dos sistemas nominais porque foram a partir de suas comparações que se pode estipular o proto-banto, língua que deu origem as línguas do grupo banto. As línguas deste grupo são constituídas de sistemas prosódicos muito variados, e assim, podem ser caracterizadas fonologicamente como sistemas totalmente tonais, acentuais, ou em vários níveis entre estes extremos. Desta forma, ir-se-á, neste pequeno trabalho, apresentar uma breve exposição: do sistema acentual, do sistema tonal puro, do sistema tonal acentual e da teoria autossegmental, que fundamenta a descrição dos autores acima citados. Após isto, uma comparação das análises destes autores para os dois sistemas lingüísticos do grupo Banto com ênfase nas propriedades que as caracterizam como sistemas prosódicos.

O grupo Bantu

A mais importante classificação genética das línguas africanas foi realizada por John Greenberg (1963) pelo método comparativo no plano fonético e no plano semântico. Ele classificou 730 línguas e identificou quatro famílias: Congo-Cordofaniana, Nilo-Saariana, Afro-Asiática e Coissan. A divisão mais recente de Heine & Nurse (2000) e Nurse & Philippson (2003) propõe quatro troncos (phyla): Nigero-Congolês (Niger-Congo), Nilo-Saariano (Nilo-Saharan), Afro-Asiático (Afroasiatic) e Coissan (Khoisan, Khoesan). Desta distribuição, as línguas Bantas constituem um subgrupo do ramo Benue-Congo do tronco Nígero-Congolês.

1 Mestranda da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG na área de Lingüística Teórica e Descritiva – Linha: Organização Sonora da Comunicação Humana – Orientador: Seung Hwa Lee – Graduada em 2008 pela Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES - e-mail: [email protected]

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O grupo Banto ( que significa ―os homens‖, plural de ―muntu‖, nominação proposta por

W. Bleek em 1862) é constituído por 450 a 650 línguas que descendem do protobanto, língua falada provavelmente há três ou quatro milênios atrás.

A estrutura silábica das línguas bantas é predominantemente aberta (CV). Quanto ao tom,

elas apresentam sistemas complexos de dois tons (H = High e L= Low) que exprimem sistemas com organizações diversas, desde a organização tonal completa, como o Kikuyu, ou línguas que não apresentam nenhum sistema tonal, como o Suaíli, por exemplo. Porém, a maioria das línguas deste grupo exibe propriedades ambas de línguas tonais e acentuais em variados níveis.

Acerca de seu sistema morfológico, este grupo possui dentre as línguas da família Niger-

Congo o mais elaborado sistema de classes que funciona por meio de uma morfologia verbal aglutinante por prefixação. Os sistemas prosódicos acentuais e tonais

Quanto à sua propriedade prosódica, as línguas do mundo podem ser dividas em dois grupos: as línguas que apresentam o sistema acentual, ou línguas que apresentam o sistema tonal2. Não se afirma estes sistemas como ―puros‖ ou estabelecidos dicotomicamente nesta disposição. Como explica Hyman:

while stress and tone represent the logical dichotomy within such typologies, it is quite clear that many languages fall in one respect or another midway between stress and tone. First, it is quite clear that stress exists in at lest some tone languages. (HYMAN, 1975, p. 230)

Ainda segundo Hyman, as línguas acentuais são estabelecidas por propriedades fonéticas e/ou lingüísticas. Foneticamente, apresentam proeminência culminativa. O termo proeminência inclui stress (intensity), tom (pitch) e duração (lenght), e o termo culminativo refere-se à propriedade de apresentar apenas uma sílaba acentuada por palavra, isto é, um único acento primário. As línguas acentuais podem sobrepor essas proeminências. Assim, como exemplo, cita-se as línguas nas quais a sílaba acentuada é atraída pela sílaba mais longa da palavra, isto é, pela sílaba pesada (CV: ou CVC). O contrário também pode acontecer. Nas línguas em que a acentuação tônica é atribuída às sílabas leves (CV) o acento pode prolongá-las, exibindo, assim, como propriedade também a duração.

As línguas acentuais podem apresentar proeminência livre, isto é, localizada em qualquer

sílaba da palavra, ou podem apresentar sílaba com proeminência fixa, isto é, previsível. Aquelas têm o acento marcado na forma lexical, enquanto estas têm o acento previsto por regras, apresentando, deste modo, como função lingüística a capacidade de delinear os limites de palavra, já que a tendência natural dos acentos é de se localizar em bordas de palavras: no seu início (à esquerda), ou na penúltima sílaba (à direita).3

2 Hyman (1975) usa o termo stress language para se referir às línguas de sistema acentual e o termo tonal language para as línguas tonais. Às línguas tonais que apresentam organização acentual são denominadas pitch-stress. Já Goldsmith, não utiliza a nominação stress language e nem pitch-stress apenas accentual system e tonal system. Desta forma, este autor reúne, no primeiro grupo, os sistemas acentuais stress e pitch-tonal em contraposição aos sistemas tonais puros. Como este texto apresenta citação dos dois autores, utilizo a terminologia: língua acentual para stress language, língua tonal, ou tonal pura para tonal language e língua tonal acentual para pitch-stress. 3 Conforme Hyman (1975), a penúltima sílaba da borda direita da palavra é preferível à última sílaba para demarcar o fim da palavra porque permite melhor percepção do tom decrescente (falling tone - HL), indício importante do final da sílaba tônica e de palavra nas línguas ―stress‖ com acento à direita, pois a transição do tom alto (H), localizado na sílaba tônica, para o tom baixo (L), localizado na última sílaba da palavra, se dará entre duas sílabas. Se o acento cair na última sílaba, o tom decrescente (HL) deverá ocorrer dentro de uma única sílaba, exigindo maior esforço articulatório e resultando na

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As línguas tonais não são culminativas e os tons podem exibir função gramatical ou lexical.

Elas também podem sofrer os processos de assimilação ou dissimilação, diferente das línguas acentuadas que exibem processos de redução acentual.

Dentre as línguas tonais, há um grupo de línguas que são denominadas tonais acentuais

(pitch-accent), em oposição às línguas acentuais (stress-accent) já delineadas acima. As línguas tonais acentuais apresentam a propriedade culminativa, característica das línguas acentuais, no tom, isto é, elas têm uma única melodia tonal previsível que pode ser atribuída a todas as palavras (raramente, duas melodias). A Teoria Autossegmental na análise dos sistemas prosódicos

A teoria autossegmental consiste na estruturação das representações fonológicas, até então, consideradas pela Teoria Gerativa padrão (1968) como um pacote (bundle) de traços distintivos, não ordenados entre si, contidos à duração de um segmento. A teoria autossegmental propõe que as representações sejam organizadas em seqüências multilineares compostas por tiers (camadas), nas quais os processos fonológicos vão atuar, modificando sua organização. Cita-se, por exemplo, os tons que estão localizados em um tier diferente dos segmentos. Os tons e as unidades sustentadoras de tom, isto é, os segmentos (geralmente vogais e, algumas vezes, consoantes soantes) são ligados

uns aos outros por linhas de associação. Conforme Clements e Goldsmith (1984), isto ocorre no nível das regras de acento e no nível subjacente tonal para as línguas tonais acentuais ou apenas neste último nível para as línguas tonais puras. Depois deste nível, as regras tonais irão se aplicar (e os associam às unidades de sustentação de tons. Pode-se resumir o sistema acentual fundamentado em Goldsmith (1982), citado por Clements e Goldsmith (1984):

As associações entre segmentos e tons, na Teoria Fonológica autossegmental, são governadas pelas condições de boa formação (Well-Formedness Condition - WFC) reproduzidas abaixo: (2) Well-formedness Condition (WFC)4

menor proeminência deste contorno. Desta forma, o autor afirma que não é o stress, isto é, a intensidade, que é o sinal fonético mais importante da percepção da sílaba tônica e, sim, o pitch, da mesma forma que este caracteriza as línguas tonais. O que estaria correlacionado com as línguas stress seriam as mudanças de pitch e a sua diferença das línguas tonais, uma questão lingüística, e não fonética. 4 Em português, este princípio é denominado Condições de Boa Formação.

i. Todas as vogais são associadas à, no mínimo, um tom. ii. Todos os tons são associados à, no mínimo, uma vogal iii. Linhas de associação não podem se cruzar

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i. All vowels are associated with at least one tone. ii. All tones are associated with at least one vowel. iii. Association lines do not cross.

(3) Associação de unidades sustentadoras de tom (t) e tons (T): t t t t...

T T T Estas condições não têm por finalidade excluir as representações que desviam deste

padrão, e sim, ser um mecanismo utilizado pelas línguas para satisfazer estas condições universais (ver modelo de associação na figura 3, acima). Aquelas que desviam do WFC podem ser explicadas por regras adicionais que completam o WFC, como as Convenções de Associação, propostas por Haraguchi.

Diferente das línguas tonais, as línguas tonais acentuais apresentam uma melodia tonal

previsível, denominada Melodia Tonal Básica, que é distribuída antes do nível subjacente do tom. Nesta, um tom da melodia é designado como acentual e ligado à vogal acentuada pelas regras de acento (ver figuras 1 acima e 4 abaixo). Depois, os outros tons são associados (ver figura 5, abaixo):

(4) V* (5)...t t t* t t... T* T T* T

Aos outros tons que não são designados acentos, a associação às unidades sustentadoras de

tom (âncoras) ocorrerá através das Condições de boa Formação no nível da representação tonal subjacente (ver figuras 1 e 5, acima). Clements e Golsmith (1984) lembram que o conceito de acento não mantém nenhuma relação particular com propriedades fonéticas, tais como o stress e a amplitude. Os sistemas prosódicos acentuais e os sistemas prosódicos tonais das línguas Bantas Tom e acento no sistema nominal de Tonga por Goldsmith (1984)

Tonga é a maior língua falada em Zâmbia, país africano localizado na África Austral. Para descrever o sistema tonal desta língua, Goldsmith (1984) fundamenta-se na Teoria autossegmental acentual. Segundo ele, Tonga é uma língua tonal acentual. Para descrevê-la, o autor utiliza da aplicação de um pequeno número de regras acentuais, não tonais que precedem o nível subjacente do tom. No nível subjacente do tom (Underlying Tone Level), é designada uma melodia (HL*) com uma cópia por acento derivado (uma para cada acento presente no nível subjacente do tom). Estas melodias são ligadas com as vogais da palavra por uma regra que associa o tom Low (tom baixo, doravante L) da melodia – o tom acentuado, como é chamado, para a vogal acentuada em questão.

Segundo Goldsmith, Guthrie afirma que Tonga possui três classes tonais em radicais

nominais dissilábicos e Carter (1962) afirma, também, a existência de três classes tonais para radicais monossílabos. A estas classes, Goldsmith (1984) adiciona uma quarta, que apresenta o padrão dos nomes polissílabos.

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Classe A5: Atribui um tom L* na primeira vogal de cada radical verbal. (6) - radical monossilábico 6a. í + bú + sì ‗smoke‘ (nome da classe 14) 6b.í + kú + pà ‗to give‘ (nome da classe 15) i + bu + si* H L* (7) - radical dissilábico: 7a. í + má + kànì ‗new affairs‘ (classe 6) 7b. í + mó + òmbè ‗edge‘ (classe 3) i + ma + ka* ni H L* (8) Classe B2: A mesma melodia está presente, porém o tom L não é atribuído a primeira vogal do radical. 8a. í + mú + súrè ‗ox‘ (classe 1) 8b. í + mó + ómbè ‗calf‘ (classe 1) i + mu + sune* H L* (9) Classe B1: radicais monossilábicos que ora apresentam padrões tonais da classe A, ora podem sofrer uma regra de apagamento de –L, sendo marcados, desta maneira como irregulares. 9a. í+má+lì ou í+má+lí ‗money‘ (classe 6) i+ma+li* ou i+ma+li H L* H (10) Classe C: Classe composta por nomes que apresentam o tom L em todas as sílabas. São analisadas como não-acentuadas. 10a. ì+bù+sù ‗meal flour‘ (classe 14) 10b. ì+kù+tì+à ‗to pour‘ (classe 15) i+bu+su

5 Todos os exemplos citados são de Goldsmith (1984).

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L (11) Classe D: Polissílabos que apresentam o padrão de melodia HLHL. Este molde sofre uma regra de simplificação de tom que reduz o tom decrescente subjacente HL para apenas L na forma superficial. Esta regra ocorre no nível das regras tonais (ver figura 11a). Abaixo ilustra-se o exemplo com a palavra àcísyà que significa ‗uncle‘ (classe 1a): 11a. à* cí syà* (H) L* H L* (12) Regra de Simplificação Tonal V ## H L

De acordo com Goldsmith, as classes A e B apresentam melodia básica tonal HL e a classe

D, HLHL. Antes da aplicação das regras tonais (por exemplo, antes da regra de simplificação de

tom), todas as palavras da língua Tonga possuem a melodia básica na forma (HL) . Ela possui a propriedade de aplicação da melodia tonal por fatoração, o que a caracteriza como uma língua tonal acentuada. Tonologia nominal em Digo, por Charles W. Kisseberth

Conforme Kisseberth (1984), os nomes da língua Digo podem ser divididos em três grupos tonais distintos, quando estão entre pausas, ou, quando são antecedidos por verbos que ausentam o tom High (tom alto, doravante H). O primeiro comporta os nomes compostos apenas por tons L associados às vogais (ver exemplos em 12, abaixo). O segundo grupo apresenta apenas vogais associadas a tons L na forma superficial entre pausa e após verbos com que ausentam o tom H, porém, quando recebem o morfema de locativo –ni evidenciam o tom H (High) subjacente que possuem. Este está associado a sua antepenúltima vogal do nome, sofrendo neutralização e falhando na aplicação da regra de Deslocamento de tom Alto (H). Nos locativos, como este tom não está mais associado à penúltima vogal, e sim, a antepenúltima, ele é deslocado, pela regra citada acima, para a última vogal. Depois, sofrerá a aplicação da regra de Espraiamento de tom Alto para a esquerda (Leftwards High Spread) que espraia este tom para a vogal antepenúltima (ver exemplos em 13, abaixo). O terceiro grupo apresenta um tom High associado na sua forma subjacente. Este tom não sofre neutralização. Ele é deslocado para a última vogal produzindo uma seqüência ascendente-descendente nas últimas duas vogais ou um tom alto na antepenúltima (ver exemplos em 14, abaixo). Kisseberth (1984) afirma que se este tom estiver associado à penúltima vogal da palavra, ele deve ser marcado para não sofrer a regra de Neutralização. Se não, ele deve estar localizado em outra sílaba. Por fim, ele conclui afirmando que não é necessário determinar a localização exata deste tom, apenas saber que ele se desloca para a última vogal.

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A evidência significante que Digo é uma língua tonal é observada nas seqüências formadas

por verbos e nomes. A análise dos nomes falados entre pausas e em contextos mostra como as mudanças tonais ocorrem.

Após os verbos formados somente por tons baixos, as três classes acima se mantiveram

inalteradas, da mesma forma como quando aparecem entre pausas. Porém, após verbos com tom H (aqui, exemplificaremos apenas os verbos com um tom H) ocorrem mudanças significativas, no contexto do sintagma verbal: 16) Verbo com um tom H seguido por nomes de tom L - o tom H do verbo se desloca para o nome:

Neste caso, o tom H será deslocado para a última vogal do sintagma verbal pela regra de

Deslocamento de tom alto. Após, ele será espraiado para a penúltima vogal, pela regra de Espraiamento de tom alto para a esquerda. Após a aplicação destas regras os verbos não apresentarão tom, como em 15a, ou apresentarão um tom H, como em 15b, mantido ciclicamente na derivação, por ser seguido por um segmento obstruinte vozeado, que, segundo Kisseberth, sustenta um tom L. 17) Verbo com um tom H que sofrem neutralização entre pausas seguido por nomes apenas com tom L:

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O tom do verbo, neutralizado quando entre pausas, se realizará no nome, por meio da

regra de deslocamento de tom H e depois sofrerá a aplicação da regra de espraiamento para a esquerda.

A regra de neutralização não ocorrerá no verbo, com H na penúltima vogal porque esta

regra apenas ocorre em alguns sintagmas, isto é, na penúltima vogal do sintagma. Acerca dos fenômenos em Digo, Kisseberth afirma que ainda há muito que se estudar,

como por exemplo, a relação das obstruintes vozeadas e o espraiamento de tom alto. Considerações finais

Com o objetivo de tentar identificar algumas características que diferenciam os sistemas tonais puros e os sistemas tonais acentuais das línguas bantas, foi exemplificado acima, resumidamente, pelo prisma da teoria autossegmental, os sistemas da Tonga e de Digo.

Conforme Goldsmith (1984), Tonga é uma língua tonal acentual porque apresenta um nível

acentual, anterior ao nível tonal, que por meio de regras acentuais, fixa um tom a um segmento, ao qual é determinado acentual e que sofre as regras acentuais. Em Tonga a melodia é HL e o tom acentuado é o L*. Esta melodia tonal é previsível e capaz de ser gerada por fatoração. Digo, porém, é classificada como língua tonal porque não há melodia previsível. Suas regras tonais fazem referência às estruturas sintáticas, como por exemplo, a regra de neutralização citada acima, que é sensível ao sintagma. Observa-se, também, que nesta língua, os tons apresentam-se completamente autônomos e separados dos segmentos e possuem a capacidade de se espraiar, característico das línguas tonais. Referências CASTRO, Y. P. de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. 2ed. Rio de Janeiro: Top Book, 2005 CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH. Autosegmental studies in Bantu Tone: Introduction. In: ________. Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 1-18. GOLDSMITH, J. Tone and Accent in Tonga. In: CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH, John (org). Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 19-51. KISSEBERTH, C. W. Digo Tonology. In: CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH, John (org). Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 105-182. HYMAN, L. M. Phonology: Theory and analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1975. PETTER, M. M. T. Minicurso em Línguas Africanas e Português Brasileiro, 1-4 de mar. de 2010. 11 f. Belo Horizonte. Notas de Aula. Impresso. Enviado – 29/07/2011 Avaliado – 15/10/2011

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A BELLE ÉPOQUE: OS LITERATOS E A BOÊMIA

NO RIO DE JANEIRO DOS 1900.

Luciana Marino do Nascimento6 Universidade Federal do Acre

Luís Edmundo Bouças Coutinho Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo: O presente trabalho constitui um recorte de nossa pesquisa de pós-doutorado intitulada ―João do Rio: pintor da vida moderna‖, realizada sob a supervisão do Prof. Dr. Luis Edmundo Bouças Coutinho, no período de 2009/2010, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Neste trabalho, pretende-se tecer algumas considerações sobre a vida literária na Belle Époque carioca, com destaque para a frequência dos poetas aos cafés e confeitarias da época, enquanto espaços de sociabilidade e de vida literária. Palavras-chave: Literatura, Belle Époque, Rio de Janeiro Abstract: This paper is part of the post-doctorate work entitled ―João do Rio: pintor da vida moderna‖, under supervision of Prof. Dr. Luis Edmundo Bouças Coutinho in post-graduation program in Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. The aim of this article is do some considerations about literacy life in carioca Belle Époque with focus on cafés and delis as places of sociability and literacy life Keywords: literacy, Belle Époque, Rio de Janeiro.

A cidade pode ser entendida como um polo imantado que atrai, reúne e concentra os

homens. Ela é o templo onde o homem celebra e promove dia após dia a sua habilidade de interagir e reinventar o ambiente. Como ícone da modernidade, a cidade foi apreendida por muitos sujeitos, sejam eles cidadãos comuns, políticos ou poetas, sendo que estes apreenderam a cidade e a tornaram matéria de poesia lírica. Sobre o discurso dos literatos sobre a cidade, Brito Broca assim se expressa:

O que constitui o principal atrativo de uma cidade é o que poderemos chamar [de] seu mito. Paris, Londres, Roma, Lisboa, Madri e tantas outras urbes do velho mundo possuem todas uma mitologia e é a literatura que as cria. São os romances, os poemas, a história numa sedimentação profunda de impressões e reminiscências que formam (...) a superestrututura mitológica das cidades. (BROCA, 1993, p. 55)

A cidade moderna gerada pela urbanização de fins do século XIX/início do século XX

instaurou novas formas de sociabilidade, como footing e a frequência aos cafés, sendo que parte da vida literária esteve voltada para os cafés, sendo que estes foram associados na visão dos literatos, ao progresso e à civilização. Assim, José do Patrocínio, Olavo Bilac, Coelho Neto, Guimarães Passos, Paula Nei, entre outros, eram figuras constantes nos cafés e na Confeitaria Colombo. Brito Broca nos informa que na vida literária dos 1900, havia vários grupos que se dividiam entre a Confeitaria Colombo e os cafés:

Os principais cafés ―literários‖ do Rio são, entre outros, os da última década do século 19 do período áureo da boêmia: o café do Rio no

6 Docente dos cursos de Graduação em Letras e do Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade – Universidade Federal do Acre. Pós-doutorado em Ciência da Literatura pela UFRJ, sob a supervisão do Prof. Dr. Luís Edmundo Bouças Coutinho, 2009/2010.

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cruzamento da Rua do Ouvidor com a Gonçalves Dias; o Java, no Largo de São Francisco, esquina de Ouvidor; o café Paris, o Café Papagaio; o Café Globo, na Rua Primeiro de Março entre Ouvidor e o Beco dos Barbeiros (...). Pontos igualmente preferidos pelas celebridades literárias: Confeitaria Colombo, na Rua Gonçalves Dias e a Confeitaria Pascoal, na Rua do Ouvidor, além de outras menos freqüentadas como a Cailteau e a Castelões. (BROCA, 1960, p. 33)

A Belle Époque instaurou um estilo mundano na literatura, ao captar a cidade em seus

múltiplos acontecimentos, convertendo a literatura em verdadeiro festival de atração pela vida social:

O corso em Botafogo (...) torna-se até certo ponto um espetáculo literário. Os escritores vão ali colher os potins, tecer intrigas. (...) Para atrair o público, a literatura procura valer-se da fotografia, das ilustrações, identificando-se tanto quanto possível com os motivos sociais e mundanos, nas revistas da época. (BROCA, 1960, p. 30)

Na perspectiva de mostrar paisagens e também atividades sociais, dentro do estilo

mundano, os cafés foram por excelência, palco da vida literária dos 1900, onde a euforia pelo progresso trouxe uma grande atração pela rua. De acordo com Benjamin, foi no bulevar que se deu a assimilação do artista na sociedade (BENJAMIN, 1991, p. 59), pois é nas ruas que o artista vai buscar material para sua arte. A rua se fixou no imaginário dos literatos da Belle Époque de tal forma, que a Rua do Ouvidor, por exemplo, tornou-se o grande fetiche (NEEDEL, 1993, p. 192).

Os cafés eram lugares mais democráticos do que os salões e os clubes. Espalhados pela

cidade e presentes pelas principais capitais da Europa, que constituíam a idei a-matriz de nossos cafés, sendo esses estabelecimentos os substitutos dos salões para as classes médias, jornalistas e escritores iniciantes, abrigando a efervescência e a inquietação provocada pelas novas idei as. O espaço dos cafés como local de discussões literárias e culturais demarcou também os grupos de literatos. No Café Papagaio, por exemplo, reunia-se a turma da música, com Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré, Paulo sacramento, como também o grupo de Lima Barreto, Bastos Tigre, Raul Braga, Frota Pessoa, Abreu Fialho, Fernando Magalhães, Mario Pederneiras, Gonzaga Duque, Lima Campos, sendo que, segundo o cronista da época, Luis Edmundo, ―os três últimos formavam uma rodinha à parte. O menos assíduo é o Mario, grande poeta de Ronda Noturna e das Palavras ao Léu, sempre ar tímido, pince-nez de vidros pretos, um maço de jornais e revistas debaixo do braço‖ (EDMUNDO, 2003, p. 339). O mesmo Luis Edmundo nos mostra em uma de suas crônicas que o café Papagaio também se tornava um verdadeiro ―refúgio de Momo‖ no carnaval e com isso, observamos como a literatura se mesclava à cultura popular e os literatos frequentadores do Café se alinhavam ao carnaval:

Raul organiza préstitos. Calixto compõe estandartes.Tigre alinha canções.João Foca, um pandeiro entre os dedos, ensaia o rancho.Frota Pessoa, furiosamente, raspa um reco-reco, Fernando Magalhães barulha um chocalho, Abreu Fialho sopra um canudo de papel. É quando surge o Cordeiro Jamanta, um travesti, de baiana, duas abóboras-d`água compondo a linha de seio farto.... E o cordão cai na rua! (EDMUNDO, 2003, p. 341)

A atuação do literato na rua e no carnaval nos mostra que este homem de letras perdeu sua

aura de ser especial e, passou a alinhar-se às manifestações das ruas e como se pode observar está em cena, portanto, o riso carnavalesco e a quebra de barreiras e a inversão da ordem que o carnaval em si representa.

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Já o café Paris tinha em sua lista de frequentadores assíduos jornalistas e escritores como, Antonio Austregésilo (poeta que assinava como Antonio Zilo), o Filólogo Carlos Góis, o escritor anarquista, Domingo Ribeiro Filho, Vítor Viana, Trajano Chacon, entre outros, como bem descreve Luis Edmundo:

São oito horas da noite. As luzes do café estão todas acesas. Os boêmios começam a chegar. Lá está o Trajano Chacon, o que fundou a Ateneida, de ar majestoso, sério, arrasando o Balzac, exaltando Gogol, de tal forma a provar que a escola naturalista veio da Rússia e não da França. (EDMUNDO, 2003, p. 350)

Tal qual nos cafés parisienses, ainda que, guardadas as proporções, o ambiente do café,

tornava-se espaço para a recitação de poemas, conforme nos mostra Luis Edmundo, em muitas de suas crônicas. Além dos cafés, a Confeitaria cumpriu seu papel para além do espaço de rodas literárias, pois a confeitaria reunia também as famílias em certa hora do dia, como também as mulheres, que não entravam nos cafés, mas na Confeitaria, encontravam as amigas e foi a Confeitaria Colombo que melhor representava esse espaço. Entretanto, junto da Colombo, existia a Confeitaria Pascoal, que primeiramente reuniu a roda literária de Paula Nei, Bilac, Pardal Mallet, José do patrocínio, B, Lopes, Emílio de Meneses, Plácido Júnior, entre outros, que mais tarde migraram para a Colombo e sem dúvida, se tornaram o grupo mais célebre. No âmbito da Confeitaria Colombo, também se exercitavam os epigramas e a lírica satírica e foi Emilio de Meneses quem praticou essa escrita humorística e de próprio punho escreveu um epitáfio para seu túmulo, externando sua crise financeira: Morreu em tal quebradeira Que nem pôde entrar no Céu Pois só levou cabeleira Bigode, banha e chapéu. (In: EDMUNDO, 2003, p. 393)

Emilio de Meneses escreveu inúmeros versos satíricos, dirigidos a alguns literatos

frequentadores da Colombo, como Bandeira Júnior, Pinto da Rocha e João laje. Entretanto, Emilio de Meneses também foi alvo de pilhérias, como foi o caso de um soneto escrito por Bastos Tigre, no qual foram satirizadas sua forma física e sua ―língua fatal‖ (EDMUNDO, 2003, p. 393-394). Brito Broca ressalta que, muitos desses literatos boêmios superestimaram a anedota e ―pareciam mais empenhados em deixar anedotas do que obras‖ (BROCA, 1960, p. 38): Pelas mesas dos cafés, verificava-se o desenvolvimento de grande atividade panfletária em verso; é Bastos Tigre agredindo num soneto a elegância de Guerra Duval; é Bilac satirizando um medíocre qualquer; e Emílio de Meneses ―enterrando‖ as celebridades do dia com seus temíveis epitáfios. (BROCA, 1960, p. 38)

De toda a boêmia frequentadora dos cafés, os literatos que se tornaram mais conhecidos

foram José do Patrocínio, Olavo Bilac, considerado príncipe dos poetas, Aluísio de Azevedo, Coelho Neto, Guimarães Passos e Paula Ney, sendo que este último não chegou a publicar nenhum livro e tornou-se conhecido apenas pelos poemas e epigramas que escreveu e recitou nos cafés (NEEDEL, 1993, p. 223). Foi, portanto, entre os cafés e a Rua do Ouvidor que os literatos da Belle Époque ―construíram suas reputações e reinaram, rimando, declamando, fofocando e debatendo seus ideais e sonhos‖ (NEEDEL, 1993, p. 222).

Frente à posição de prestígio da Colombo e de suas rodas literárias, Paulo Barreto, o João

do Rio organizou um grupo de oposição, do qual fizeram parte Camerino Rocha, Vítor Viana, Mário Guaraná e outros, tendo como alvo o grupo de Bilac: Procuram hostilizar com zombarias a roda de Bilac a quem chamam de Sr. Bilac, opondo a Musa Verde (o absinto) dos poetas da Colombo, que costumam quase todos embebedar-se, o culto de

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Nietzche, o filósofo do super-humanitismo. Não conseguindo, porém, estabelecer a cisão no grupo, como pretendiam, acabam pouco a pouco, deixando a Rua do Ouvidor e passando para Gonçalves Dias. (BROCA, 1960, p. 34)

Posteriormente, a boêmia literária entrou em decadência, quer seja pela morte de alguns

boêmios como também pela mudança na configuração da cidade e nos parâmetros da vida literária, tendo em vista que para ocupar espaço na Academia de Letras, exigia decoro e compostura, o que fez com que muitos literatos boêmios abandonassem os cafés (BROCA, 1960, p. 9).

Ainda que grande parte desses escritores boêmios não tenha sobrevivido nas hostes

literárias e nem tenham se projetado para a posteridade, torna-se importante reconhecê-los como participantes da vida literária da Belle Époque carioca, como produtores de escritas sintonizadas ao panorama literário da época, inseridos na boêmia literária. Por outro lado, deve-se reconhecer a importância de se rastrear a produção literária – mesmo àquela considerada ―menor‖ – para incorporá-la ao ―caldo cultural‖ que revela a produção de uma determinada época, onde também se lê a literatura. Referências BENJAMIN, Walter. Sociologia. KOTHE, Flávio R. (Org.). 2. ed. São Paulo: Brasiliense,1991. BROCA, Brito J. A vida literária no Brasil – 1900. V.108, 2. ed. ren. e aum. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1960. (Coleção Documentos Brasileiros. Dir. Octávio Tarquínio de Souza.) BROCA, Brito J. Teatro das letras. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993. (Coleção Repertórios. Coord. Alexandre Eulálio.) EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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CRASE: SOLUÇÃO OU PROBLEMA?

Luciane de Oliveira Morales Licenciada em Letras – Universidade Federal de Pelotas - RS

Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior - Faculdade Anhanguera de Pelotas Aluna especial do Mestrado em Estudos da Linguagem – pela UFP RS

Professora do Ensino Fundamental da rede Estadual de Pelotas.

Rebeca Bulcão da Silva Licenciada em Letras – Universidade Federal de Pelotas

Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior – Faculdade Anhanguera de Pelotas Aluna especial do Mestrado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas.

Resumo: O emprego da crase gera um desconforto para a maioria das pessoas porque não entendem a sua funcionalidade no texto. A sensação de ser um acento desnecessário, e sua utilização de difícil compreensão, faz com que a crase seja vista como mais um fator para dificultar o processo da escrita. Apresentaremos, neste artigo, duas posições sobre o uso da crase: uma na perspectiva normativa e outra com enfoque no sentido produzido, evidenciando seu caráter semântico. Após, abordaremos esse fenômeno linguístico, por meio de exemplos, constatando que se trata de uma ferramenta importante para evitar a ambiguidade no texto. Palavras-chave: crase, ambiguidade, sentido. Abstract: The use of the grave accent creates discomfort for most people because don't understand its functionality in the text. The feeling of being an unnecessary accent, and the difficulty to fully understand its use, makes it seen as another factor to hinder the writing process. We will present in this article, two positions on the use of the grave accent: a normative view and the other focusing on textual evidence of its semantic character. After we will discuss this linguistic phenomenon, by example, noting that it is an important tool to avoid ambiguity in the text. Keywords: grave accent (crase), ambiguity, direction

Introdução

É possível notar que a utilização da crase sempre foi e continua sendo um problema para a maioria da população brasileira. Alguns preferem omiti-la, enquanto outros a usam em excesso. Torna-se difícil memorizar tantas regras explicitadas pela gramática tradicional. Muitos usuários da língua defendem que, para evitar a inadequação, a crase deveria ser abolida. Porém, se tal fato ocorresse, traria um sério transtorno para o uso da língua, já que esse acento tem a importante função semântica de desfazer a ambiguidade. Luft (2005) afirma que as crianças intuem a utilização da crase, porém quando são ensinadas na escola, perdem tal capacidade. Isso por serem expostas a um universo ilimitado de regras e listas acerca desse acento, que se dividem em obrigatórias, facultativas, proibitivas e outros casos especiais, dificultando o domínio de seu uso.

Em 2005, o assunto se tornou polêmico e o então deputado João Herrmann Neto tentou

implantar o projeto de lei nº 5.154 que extinguia a crase. Para ele, a maioria das pessoas ignora a ocorrência da crase na maior parte das expressões em que ela aparece. "As ambiguidades podem ser desfeitas com o estudo e a análise do texto, sem considerar esse sinal obsoleto que o povo já fez morrer" (HERRMANN NETO 2005, apud MASSON NETO 2009, p.1).

Esse posicionamento foi alvo de críticas por gramáticos e linguistas que condenaram com

veemência tal projeto. Herrmann apoiou-se na crônica de Moacyr Scliar ―Tropeçando nos

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Acentos‖, na qual o escritor reclama do excesso de acentos do português brasileiro e faz menção ao uso da crase. Scliar defende que sua crônica foi interpretada equivocadamente, pois é a favor da redução dos acentos, mas acredita ser necessário um estudo linguístico mais aprofundado sobre o assunto antes de qualquer tipo de reforma ortográfica. Com base no uso da crase, Scliar menciona o fato que a população brasileira pode ser dividida em duas classes: uma minoria, que sabe utilizar com propriedade esse fenômeno fonético e a maioria, que tem medo de usá-la, conforme demonstra um trecho da crônica publicada no jornal Zero Hora (2009):

Alguém já disse que os ingleses conquistaram o mundo porque não precisavam perder tempo acentuando as palavras. Pode não ser verdade, mas o gasto de energia representado pelos agudos, pelos circunflexos, pelos tremas, impressiona. E a pergunta é: para quê, mesmo? Alguém já disse que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Tenho minhas dúvidas: acho que a crase foi feita, sim, para humilhar. A população se divide em pobres e ricos, mas também se divide em dois grupos, os que sabem usar a crase, a minoria, e a maioria que tem um medo existencial a este sinal. (...) Há duas soluções para o problema. Uma é representada por esses dispositivos de correção que hoje fazem parte dos programas de computação (mas que às vezes cometem erros lamentáveis). Outra seria uma revolução na grafia que reduzisse os acentos ao mínimo possível ou, melhor ainda, a zero. (SCLIAR 2005, apud MASSON NETO, 2009, p. 1)

Conforme Luft (2005), o acento grave ( ` ) tem duas aplicações distintas. A primeira é demonstrar a fusão da preposição (a) com o artigo (a). Já a segunda serve para evitar a ambiguidade em expressões de circunstância em que a preposição aparece com substantivo feminino singular e que não deve ser confundida com o artigo. Esses dois casos serão analisados ao longo do desenvolvimento deste artigo, principalmente, o segundo deles, que será mais evidenciado pela necessidade da utilização da crase, acima de tudo, como um indicativo de clareza no texto.

Serão apresentados, neste trabalho, exemplos e reflexões sobre a importância semântica do

objeto de estudo, demonstrando que nem sempre é possível desfazer a ambiguidade, levando em consideração apenas o contexto. Esse fenômeno linguístico será abordado e discutido sob o enfoque semântico, diferentemente de como é apresentado nas gramáticas normativas que dificultam o entendimento e a percepção da finalidade do uso da crase. Fundamentação teórica

De acordo com Coutinho (apud Almeida, 2009), no período fonético, que começa com os

primeiros documentos redigidos em português, e termina no século XVI, verificava-se a existência do uso de hiato que, com o passar do tempo, se desfez em ditongo ou crase. A crase foi um fenômeno fonético significativo na evolução do latim para o português. Vale lembrar que a palavra crase provém do grego (krásis) e designa mistura, combinação, fusão. Pode-se destacar que: ―Coincide este período com a fase arcaica do idioma. O objetivo a que visavam os escritores ou copistas da época era facilitar a leitura, dando ao leitor uma impressão, tanto quanto possível exata, da língua falada.‖ (COUTINHO, 1974 apud ALMEIDA, 2009, p.3)

O seguinte exemplo mostra como esse processo se desenvolveu: sedēre > seder > seer >

ser. No caso específico de sedere, ocorreu a síncope7 da consoante d, que resultou na formação da

7 Segundo Botelho e Leite (2006), síncope designa uma alteração fonética por supressão que ocorre no interior de uma palavra.

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vogal dobrada ee. Posteriormente, pela acomodação fonológica, houve a fusão (a crase) do e. Na escrita, o acento grave aparece na vogal (a) para indicar a contração.

Sob uma perspectiva da gramática normativa, Cegalla (2002, p. 256) mostra casos em que a

crase ocorre. Segundo o autor, a contração da preposição a pode ocorrer com:

o artigo feminino a ou as; Ex.: Fomos à cidade e assistimos às festas.

o pronome demonstrativo a ou as; Ex.: Chamou as filhas e entregou a chave à mais velha.

o a inicial dos pronomes aquele(s), aquela(s), aquilo. Ex.: Refiro-me àquele fato. Poucos vão àquela ilha. Nessa esteira, Sacconi (1994, p. 214) explicita que toda fusão de vogais idênticas forma

uma crase:

à = crase da preposição a + o artigo a;

àquilo = crase da preposição a + a primeira vogal do pronome aquilo.

Sacconi (1994, p. 214) define o processo de contração como toda união de uma preposição com outra palavra, havendo perda ou transformação de fonema e diz que “a crase não deixa de ser um caso especial de contração”.

Nesse sentido, Bechara (apud Machado, 2005) afirma que a extinção dos sinais gráficos é

um absurdo, como é o caso da crase. E ainda Neves (apud Machado, 2005), sob uma perspectiva da gramática funcional, faz questão de frisar que para uma reforma desse tipo é necessário que seja cientificamente fundamentada e não como uma forma de facilitar o estudo.

Conforme explica Luft (2005, p. 16), a crase tem a finalidade de:

sinalizar uma fusão: indica que o a vale por dois (à) como, por exemplo, ―Dilma Rouseff compareceu às CPIs‖.

evitar ambiguidade: sinaliza a preposição (a) em expressões de circunstância com substantivo feminino singular, indicando que não se deve confundi-la com o artigo (a). ―Dilma Rousseff depôs à CPI‖. Sem a marca da crase, a frase hipotética se revelaria ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O sinal de crase assume a importante função de eliminar a dúvida.

O autor denomina o primeiro caso como índice de contração (crase); e o segundo, como

índice de preposição (clareza), como veremos a seguir. Crase: índice de contração

A contração ou fusão de vogais idênticas se dá o nome de crase. Trata-se do fenômeno que ocorreu com palavras que passaram do latim para o português como, por exemplo: colore> coor> cor. Essa mesma contração é verificada na pronúncia das palavras compreender, caatinga etc, porém, ortograficamente, elas apresentam duas vogais ou nas expressões como em todo o mundo, começa a

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chover etc, que mantêm na escrita a independência das vogais, no entanto, na oralidade não se percebe essa independência.

A gramática normativa, em muitos casos, utiliza o termo crase somente para indicar a contração da preposição (a) com o artigo (a) e com o (a) inicial dos pronomes demonstrativos aquele (s), aquela (s) e aquilo. O que se pode perceber nos seguintes enunciados:

Você vai [a] (um) lugar.

Você vai [a] ( ) Brasília.

Você vai [a] (o) parque.

O verbo ir pede a preposição [a]: você vai a algum lugar. Na primeira frase, verifica-se a presença de uma preposição [a] e um artigo indefinido (um); na segunda frase não há artigo, somente preposição, porque o substantivo próprio Brasília não admite artigo, pode-se perceber isso quando a frase é iniciada por esse substantivo: ( )Brasília é... . Já na terceira frase há, na escrita, a união de dois vocábulos [a] (o), demonstrando a junção de uma preposição [a] e um artigo definido masculino (o). Ao substituir a palavra parque por um substantivo feminino como, por exemplo, escola, nota-se a presença de uma preposição [a] e um artigo definido feminino (a), resultando então em (aa), na escrita, representado por um a acentuado (à), foneticamente denominado de crase.

Você vai à escola.

O mesmo acontece com o (a) inicial dos demonstrativos: você vai [a] aquela praça, que resulta em você vai àquela praça.

Para simplificar o estudo da crase, analisa-se a existência da preposição (a) e do artigo ou

demonstrativo (a), saída para a qual nem todos conseguem aplicar. Em alguns casos, usa-se o acento não só para a crase (fusão da preposição com o artigo), mas para a preposição, em contraste com o artigo não acentuado, o que acaba resultando no aumento do número de acentos, além de, às vezes, serem desnecessários.

De acordo com Luft (2005), a melhor alternativa seria tornar o acento grave facultativo,

dessa forma, o índice de erros reduziria e a preocupação escolar com a temida crase chegaria ao fim, restringindo sua utilização apenas para situações em que o contexto não esclarece a mensagem, ou seja, com a finalidade de desfazer a ambiguidade, como se pode verificar nos exemplos abaixo:

Ele cheira a gasolina.

Ele cheira à gasolina.

O primeiro caso, ―ele cheira a gasolina‖, refere-se ao fato de cheirar ou aspirar o combustível, enquanto a segunda frase diz respeito a exalar, cheirar tal qual o produto.

Luft (2005) aponta recursos (expedientes) a que se pode recorrer para que as dúvidas sejam solucionadas:

Expediente gramatical: verificar a presença da preposição [a] e do artigo (a). A presença da preposição [a] ocorre na regência de alguns verbos tais como ceder, comunicar,

etc, para unir palavras como corpo a corpo, máquina a vapor etc, e para indicar circunstâncias como vender a vista, aos domingos etc.

A presença do artigo (a) exige três condições: deve haver um substantivo (às vezes

subentendido) como à direita do [a]; o substantivo deve ser feminino, podendo antepor-se às palavras ―Falo da –‖ e deve ser usado em sentido determinado e não em sentido geral como a (aquela) criança gosta de bala/ criança (= as crianças em geral).

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Exemplo: a) Os alunos falaram à diretora. Quem fala, fala a alguém (regência), a diretora é substantivo feminino, portanto, é uma

pessoa determinada. Logo: [a] (a) = à (crase).

Expediente da, na, pela: procurar substituir o [a] por outra preposição, particularmente para, de, em, por. Feito isso, se terá à se o resultado for preposição + a: para a, da, na, pela. Se a substituição da preposição for para, de, em, por, não haverá crase.

Exemplo: a) Meus primos foram [a] cidade. Meus primos foram para a cidade. Logo: meus primos

foram à cidade.

Expediente ao: procurar substituir a palavra feminina por uma masculina. Se a substituição resultar em ao se terá (aa) à. Se o resultado for a ou o, não haverá acento.

Exemplo: a) Ela ia [a] padaria. Ela ia ao supermercado. Logo: ela ia à padaria.

Expediente a uma (certa): quando se pode acrescentar palavras como a esta, a essa, a aquela (=àquela) têm-se à, quando se pode acrescentar palavras como a uma, a nenhuma, a certa, a qualquer, não ocorrerá crase.

Exemplo: a) Quanto [a] luta, foi sacrificante. Quanto a essa luta (ou a aquela= àquela), foi sacrificante.

Logo: quanto à luta, foi sacrificante.

Na gramática normativa, como é o caso da do Cegalla (2002), por exemplo, a crase é listada em casos obrigatórios, casos especiais ou facultativos e casos que não admitem a sua utilização. Há tantas regras, ao ponto que se torna tarefa árdua memorizá-las, pode-se citar, por exemplo, casos em que não ocorre a crase: antes de palavras masculinas; antes de pronomes indefinidos e pronomes pessoais e interrogativos; nas locuções formadas com a repetição da mesma palavra; antes de verbos; antes de numerais cardinais referentes a substantivos não determinados pelo artigo, usados em sentido genérico; antes da palavra casa, no sentido de lar, quando não acompanhada de adjetivo ou locução adjetiva etc. Essa abordagem não permite que o aluno compreenda o uso ou a finalidade semântica da crase, pois, em muitos casos, a presença ou ausência do artigo não é percebida, o que ocasiona maior dificuldade para dominar a escrita e causa insegurança no uso de sua própria língua.

Em contraste a essa concepção prescritiva, Luft (2005) propõe, por meio de exemplos

práticos e passíveis de entendimento, o uso ou não da crase em determinadas situações sob o ponto de vista semântico, ressaltando a importância desse uso, principalmente, para desfazer a ambiguidade.

O acento como índice de preposição: clareza

No contexto: O operário pinta a máquina, é possível notar que a frase apresenta ambiguidade,

pois pode indicar que a máquina é pintada pelo operário ou o operário pinta com a máquina. Essa ambiguidade é decorrente da impossibilidade da interpretação do a como preposição ou artigo. Nesse caso, o contexto poderia auxiliar na compreensão do sentido. Na fala, geralmente há reforço do acento da preposição em oposição à atonicidade do artigo.

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Gramáticos discutem, alguns até proíbem tal acento, pois acreditam que se trata de

ambiguidades ilusórias, impossíveis de ocorrer na maioria das vezes: texto escrito a máquina, ferir a faca, vender a vista etc, sendo então o acento dispensável, nesses casos.

quando não se trata de crase, é facultativo o acento, embora necessário em contextos ambíguos ou de leitura embaraçosa. mas não se confunda a preposição (indicativa de instrumento, modo, fim, tempo, lugar, etc.) com legítimos casos de preposição + artigo (crase): escrever /pintar à mão = escrever /pintar com a mão; pesquisar à noite = durante a noite, pela noite. (luft, 2005, p. 29)

Em contrapartida, a gramática normativa enumera várias locuções em que há utilização do

acento: apanhar à mão, fechar à chave, à maneira de , à noite, à toa etc. Segundo Luft (2005), nas frases em que se tem a + substantivo feminino singular, exprimindo circunstância, acentua-se o a mesmo que seja somente preposição, pois é um acento facultativo e também índice de clareza, quando a situação é ambígua. Considerações finais

Comprovadamente ineficaz, o ensino tradicional da gramática, ainda hoje desenvolvido na escola, deve ser reformulado, já que a memorização de regras e exceções, a partir de frases descontextualizadas, faz com que até mesmo os falantes nativos sintam-se inseguros em relação ao próprio idioma e passem a desenvolver aversão à língua portuguesa, principalmente com relação à escrita. Para um ensino eficaz, é necessária uma abordagem pela perspectiva textual, conforme evidenciam os autores:

O objeto de estudo privilegiado no ensino de linguagem, ao abandonarmos o formalismo gramatical, deve ser o texto, na medida em que ele é, de fato, a manifestação viva da linguagem. Nesse sentido, até mesmo o ensino dos aspectos normativos estaria subordinado ao trabalho com o texto, isto é, as regras gramaticais não seriam mais ensinadas por meio de frases soltas, abstraídas de contexto, e sim na perspectiva de sua funcionalidade textual. Em outras palavras, a proposta dos lingüistas reivindica o abandono da memorização exaustiva dos conceitos e normas gramaticais em frases descontextualizadas, em favor da percepção prático-intuitiva dos fatos gramaticais presentes no texto. Em síntese, parece claro que essa mudança de visão sobre o ensino de linguagem, embora à primeira vista possa parecer apenas uma mudança de opção prática, aponta para problemas de ordem teórica acerca da linguagem que transcendem os limites da preocupação exclusiva com o seu ensino. (FARACO; CASTRO, 2000, p. 2)

Pode-se concluir, então, que para estudar a crase de forma produtiva, é necessário que haja

uma discussão entre professores e alunos sobre a construção de sentido no texto, as variedades linguísticas existentes e a mudança provocada pela utilização (ou não) do acento. É nesse sentido que o objetivo do educador deve ser o de subsidiar os alunos para que possam compreender o raciocínio linguístico a ser empregado.

A crase é principalmente um indicativo de clareza e, segundo Luft (2005), não há nenhuma

regra a decorar, para saber empregá-la basta o raciocínio (a compreensão do sentido). Além disso, a utilização adequada desse fenômeno linguístico faz com que ambiguidades sejam evitadas, ou ainda, sejam usadas, propositadamente, conforme a intenção do autor.

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É importante salientar que por não ser foneticamente perceptível, a maioria das pessoas se

sente incapaz de compreender e não consegue perceber que sua apreensão deverá ser pela estrutura, pela sintaxe e pelo sentido. Porém, não se pode admitir que falantes nativos do português brasileiro se achem incompetentes e que afirmem não saber português, por não saberem utilizar a crase (e outros fenômenos linguísticos de nossa língua).

Desde os primeiros anos de vida, a criança já possui o domínio da língua materna,

portanto, sabe português. Cabe à escola apresentar a variedade de prestígio (a língua padrão), à qual todos os alunos têm direito e, consequentemente, a utilização dos acentos e demais fenômenos linguísticos importantes à constituição do sentido desejado.

Aulas expositivas, reflexivas, com análises em textos, verificando como o sentido é

construído, baseadas na intuição do falante nativo seriam de grande valia para a compreensão e para a apreensão do uso semântico da crase. Deixando de lado, assim, as listas e as regras decoradas, improdutivas e ineficientes, ainda tão valorizadas no meio escolar. Referências ALMEIDA, Miguél Eugenio. Ocorrências Ortográficas em Foral de Penella. Disponível em:<http://projetos.unioeste.br/eventos/cellip/moodle/file.php/1/moddata/glossary/57/1122/OCORRENCIAS_ORTOGRAFICAS_EM_FORAL_DE_PENELLA.doc.>. Acesso em 12 de dez. de 2009. BOTELHO, José Mário; LEITE, Isabelle Lins. Metaplasmos contemporâneos: Um estudo acerca das atuais transformações fonéticas da Língua Portuguesa. Disponível em:< http://www.filologia.org.br/cluerj-sg/anais/ii/completos/comunicacoes/isabellelinsleite.pdf> Acesso em 12 de dez. de 2009. CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002. FARACO, Carlos Alberto; CASTRO, Gilberto de. Por uma teoria lingüística que fundamente o ensino de língua materna. Disponível em: < http://www.educaremrevista.ufpr.br/arquivos_15/ faraco_castro.pdf>. Acesso em 10 de dez. de 2009. HERRMANN NETO, João. Projeto de lei. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ sileg/integras/304036.pdf>. Acesso em 12 de dez. de 2009. LUFT, Celso Pedro. Decifrando a crase. São Paulo: Globo, 2005. MACHADO, Josué. Crase Fora da Lei. Disponível em: <http://siga.ufjf.br/index.php?module=concurso&action=html:files:0292008:prova17.pdf>. Acesso em 22 de nov. de 2009. MASSON NETO, Ângelo. Como usar a crase sem crise. Disponível em: < http://revistaescola.abril.com.br/ensino-medio/como-usar-crase-crise-475416.shtml>. Acesso em 12 de dez de 2009. SACCONI, Luiz Antonio. Gramática Essencial Ilustrada. São Paulo: Atual, 1994. Enviado – 29/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO ANARQUISTA: O ORFANATO DE PRÉVOST

Luciano Ricardo Nascimento8 Celso Kraemer9

Resumo O presente texto discute a experiência de Paul Robin (1837-1912) no Orfanato de Prévost, França, no século XIX. A experiência de educação em Prévost retoma as linhas históricas do pensamento anarquista na Europa, alicerçada por pensadores como Proudhon e Bakunin. Robin foi o principal nome no que tange a educação libertária no século XIX, aplicando no dia-a-dia, as inúmeras questões educacionais que vinham sendo discutidas nos meios socialistas e anarquistas. O orfanato é considerado uma iniciativa educacional importante, dentre as diversas que se desenvolveram na Europa no século XIX e XX. Palavras-chave: Educação. Anarquismo. Paul Robin. Abstract This paper discusses the experience of Paul Robin (1837-1912) in Orphanage of Prévost, France in the nineteenth century. The experience of education Prévost takes over the historic lines of anarchist thought in Europe, founded by thinkers like Proudhon and Bakunin. Robin has been the leading name when it comes to libertarian education in the nineteenth century, applying the day-to-day, the many educational issues that were being discussed in the media socialists and anarchists. The orphanage is an important educational initiative, among several that have developed in Europe in the nineteenth and twentieth centuries. Keywords: Education. Anarchism. Paul Robin. Introdução

O objeto de estudo do presente artigo é a experiência de Paul Robin no Orfanato de Prévost: um experimento da educação anarquista.

No meio acadêmico e para grande parte da população, são inúmeras as interpretações e os

termos utilizados, muitas vezes de forma equivocada, sobre os conceitos aplicados a determinados grupos ou pensamentos ideológicos; com o anarquismo não é diferente, na Europa produziu-se ―uma fobia antianarquista‖ por um longo período após a revolução russa. No Brasil não foi de outra forma, conforme relata Dulles (1977):

A campanha antianarquista produzida pelo PCB começou em abril de 1922, com a publicação em Movimento Communista de um artigo que Canellas afirmava que os anarquistas haviam se manifestado a favor da guerra mundial e pegaram em armas para defender o ‗Czar, o rei da Inglaterra e Poincaré‘. Canellas disse ainda que milhares de anarquistas, para ‗seguiram a moda‘, ‗desataram a dizer sandices sobre a revolução russa, muitas delas copiadas de jornais ou traidores‘.(DULLES, 1977, p.160.)

8Graduado em Direito pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior de Blumenau - IBES(Blumenau/SC). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Catarinense de Pós-Graduação - ICPG (Blumenau/SC). Mestrando em Educação pela Fundação Universitária Regional de Blumenau - FURB (Blumenau/SC). e-mail: [email protected] 9Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil(2008) Professor titular da Universidade Regional de Blumenau , Brasil. e-mail: [email protected]

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O anarquismo antes de ser posto à prova, de ser testada sua praticabilidade, ganhou

inimigos em todas as camadas sociais, conforme mostra Rodrigues (1988): na burguesia porque esta tinha medo de perder suas fortunas advindas dos braços dos trabalhadores; entre os políticos e governantes por não desejarem ficar ‗desempregados‘ e assim ter de produzir seus próprios sustentos; na Igreja por receio de que as pessoas emancipadas dispensassem seus serviços, ficando a igreja desta forma ocupando um papel secundário na sociedade.

Para as anarquistas, segundo Rodrigues (1988), a escola oficial tinha o mérito de ensinar a

ler e escrever, mas tinha o defeito de deformar a inteligência, o caráter, condicionar os alunos à submissão e à obediência. Para os anarquistas, saber ler não era tudo. O aluno precisa aprender a verdade histórica, científica e social. O anarquista queria um ser humano educado, instruído, culto, despido de ódio, de rancor, de inveja, com capacidade para se auto- governar, gerir seus atos, ser livre e cultivar a liberdade como a vida, todos os dias

Martín Luengo et al (2000) aponta que a educação libertária se forma com pessoas que

sentem, pensam, vivem e raciocinam, desejando para si e para os demais a liberdade, a igualdade e a justiça social. A educação libertária resulta em uma maneira de proceder diante da vida, segundo a qual as normas que nos regem se baseiam no respeito, no autoconhecimento, na discussão para outro desenvolvimento do ambiente social.

Para Gallo (1995b), na educação anarquista, Paul Robin (1837-1912), é um dos principais

nomes da pedagogia libertária no século XIX, por ter sido o precursor no sentido de trabalhar, na prática, as várias questões educacionais teóricas que vinham sendo debatidas nos meios anarquistas. Toda a teoria pedagógica libertária que vinha sendo construída por importantes autores como Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876) entre outros, mesmo bastante interessante e profunda, não tinha ainda uma vinculação mais estreita como a vivência prática: tais teóricos libertários não tinham vivência mais concreta do sistema educacional, ―além de suas próprias experiências como alunos. Mesmo tendo uma aguda visão da realidade, tinham com a educação apenas uma relação de exterioridade‖ (GALLO, 1995b, p. 87). Paul Robin, ao contrário, foi professor e pedagogo, segundo Gallo (1995b) relata, conhecia com profundidade a educação, sua bases teóricas, seus sistemas e, desta forma, pode trabalhar de maneira muito mais completa e profunda a teoria e a prática de uma pedagogia libertária.

A partir desses dados, o presente artigo pretende discutir a experiência do pedagogo Paul

Robin no Orfanato de Prévost. Para melhor situar a experiência de Robin traçou-se as linhas históricas do pensamento anarquista na Europa. Em seguida descreve-se a experiência de Paulo Robin no orfanato de Prévost. A questão de pesquisa interroga: ‗quais princípios da educação anarquista aplicadas em Prévost e de que forma eles foram aí trabalhados?‘ Por fim, quanto aos aspectos metodológicos, a pesquisa foi exploratória, alicerçada na pesquisa bibliográfica. Anarquismo: conceitos gerais Anarquia, anarquistas e anarquismo: conceitos

O anarquismo e a anarquia, de modo geral, são associados a vários tipos de desordem,

contudo, eles possuem também um significado mais limitado, isto é, ―a ausência de autoridade coercitiva usada para manter a ordem social, em especial quando a autoridade é exercida pelo Estado.‖ (SILVA e MIRANDA NETTO, 1986, p. 17). Os anarquistas, portanto, não são contrários a um estilo de vida organizado, mas sim, ao uso indevido da coerção e da força para mantê-lo; é o ―estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo.‖ (MALATESTA, 1999, p. 11)

Segundo Gallo (2006), não é correto se falar em anarquismo, como sendo apenas um, já

que são diversas as perspectivas assumidas pelos inúmeros teóricos e militantes do movimento

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anarquista, em múltiplos pontos de vista, o que determinam a impossibilidade de agrupar o pensamento anarquista em uma doutrina. Uma boa forma de se entender o anarquismo é considerá-lo um principio gerador:

Defendo nesta obra que devemos, assim, considerar o anarquismo como um princípio gerador, uma atitude básica que pode e deve assumir as mais diversas atitudes particulares de acordo com as condições sociais e históricas às quais é submetido. [...] formado por seis princípios básicos de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo, ação direta, associações operarias e greve geral. (GALLO, 2006, p.10;grifo do autor)

Pode-se enxergar no anarquismo como princípio gerador Gallo (2006), um paradigma de análise político-social, pois existiria assim um elo que liga entre si as diferentes práticas anarquistas. O Anarquismo assumiria diferentes formas e facetas de interpretação da realidade e de ação de acordo com o momento e as condições históricas em que fosse aplicado, pois o principio gerador, na visão de Gallo (2006), dissocia o anarquismo de uma ideologia engessada, possibilitando explicar as várias facetas em que se desdobra o pensamento anarquista.

Princípios gerais da educação anarquista

A educação anarquista (ou libertária) pode ser considerada uma das iniciativas educacionais

não oficiais mais importantes, dentre as diversas que se desenvolveram na Europa e em várias partes do mundo no século XIX e XX.

Conforme esclarece Gallo (1995a) em meio ao movimento socialista, o anarquismo trouxe

suas propostas pedagógicas fundamentadas na idéia proudhoniana de que a emancipação dos trabalhadores passaria pela criação de suas próprias escolas, trabalhando as diretrizes educacionais voltadas para um caminho diferente das propostas pelo estado e pela igreja.

Desse modo, defende Gallo (1995a), que uma sociedade justa deve ter uma educação

igualitária; de acordo com a relação saber/poder, sistemas de ensinos diferentes correspondem a classes sociais diferentes e a conseqüente exploração das menos sábias pelas mais privilegiadas que, claro, tudo fazem para manter esta condição.

Portanto, compreende-se que a educação libertária ensina cada pessoa a explorar seu

poder, contudo, com uma visão contrária ao uso e abuso deste poder, estudando seus limites a partir dos parâmetros do respeito e da solidariedade. A educação libertária é caracterizada ainda por uma oferta de liberdade e conhecimentos e uma possibilidade de aprendizagem alternativa, proporcionando mudanças sociais e mudanças na formação individual.

Paul Robin e o Orfanato de Prévost

Desde início do século XIX, quando Proudhon (1809-1864), sistematizou o Pensamento

Libertário, vários pensadores e educadores têm buscado organizar a educação segundo os pressupostos do pensamento anarquista em oposição ao pensamento capitalista e sua organização vigente na sociedade.

Paul Robin (1837-1912), como inúmeros pensadores de sua época, não concordava com o

ensino que era desenvolvido na sociedade. Entendia o ensino como ciência pedagógica e buscou um modelo alternativo de educação. Robin foi um contestador em sua vida profissional, entre os anos de 1861 e 1864 ocupou o cargo de professor na rede pública, dedicando-se a lecionar ciência e matemática, sua inquietude com o modelo de educação de sua época o levou a organizar visitas a

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fabricas e artesões, a ensinar seus alunos fora do ambiente mesmerizado da sala de aula, em disciplinas como botânica, astrologia e geologia, buscando uma ponte entre o ensino teórico e a riqueza da prática. Sua forma diferenciada de lecionar lhe trouxe inimizades:

[...] A comunidade local, entretanto insurge-se contra seu ensino laico e critico e contra as suas posições políticas; com os superiores está também em constante atrito, pois além de seu pensamento político, não respeita os programas, formenta protestos entre os alunos e ainda trabalha com a instrução popular. (GALLO, 1995b, p. 88-89).

Em 1880 surge a oportunidade perfeita para Robin, ao ser designado diretor de um orfanato, encontrou a chance que buscava para desenvolver um método anarquista de educação. O Orfanato de Prévost foi fundado em 1861 por Joseph-Gabriel Prévost(1793-1875), um rico comerciante da cidade de Cempuis, membro da sociedade espírita de Paris, um adepto das teorias de Saint Simon que , através de testamento, deixou a propriedade sob os cuidados da prefeitura local, com disposições bem claras quanto às diretrizes a serem respeitadas na educação dos órfãos: estudo laico, praticado por professores também laicos e para crianças de ambos os sexos, crianças estas que deveriam freqüentar as aulas conjuntamente. Estava criado o ambiente propício para a prática da educação integral.

Entre 1880 e 1894, o Orfanato de Prévost foi administrado por Paul Robin, e se pode

considerar esta a primeira experiência real de cunho anarquista na educação. Neste sentido, Robin, contribui para a implantação da educação integral, objetivando a construção de um novo tipo de sociedade, na qual fosse possível a formação total do homem; onde ele poderia ter acesso à totalidade dos conhecimentos humanos, buscando um equilíbrio entre a necessidade de constituir um ser individual e um ser social, buscando em sua experiência na cidade de Cempuis um meio-termo entre a educação intelectual, manual e moral.

Floresta (2007) considera que Robin dedicou boa parte de sua vida à realização de seu

projeto de educação integral. No Orfanato de Prévost pode colocar em prática as idéias que desenvolveu ao longo de sua vida como educador e pedagogo. Robin foi importante no campo teórico libertário, pois desenvolveu uma prática pedagógica alternativa ao modelo vigente na época, contribuindo para a fixação de uma pedagogia com perfil libertário.

A originalidade de Robin como pedagogo destaca-se nos seguintes aspectos: métodos e instrumentos pedagógicos; a co-educação; a convivência harmoniosa entre os membros do grupo; a importância do respeito à individualidade, ao desenvolvimento próprio da criança e o lugar concedido à ciência. O enfoque dado a essas questões é de extrema importância para o período, servindo de referencial para muitos educadores posteriores, não só anarquista, mas para todos aqueles que irão apoiar a crítica à educação tradicional (FLORESTA, 2007, p. 122).

Freitas e Corrêia (1998) relatam que em Prévost, Robin exercitou a educação integral e marcou a educação dos dois sexos, isto é, foi o precursor no que tange a autorizar meninos e meninas estudarem na mesma sala de aula. Robin defendia que e educação deveria ser responsável pelo desenvolvimento da todas as capacidades dos homens, seja na esfera física, intelectual ou moral. Considera que na sociedade, a educação que estava enraizada era imoral e anti-racional, uma verdadeira anti-educação. A proposta educacional de Robin dividia a educação em fases: a primeira era chamada de ‗período espontâneo‘, onde as crianças são essencialmente consumidoras; e a segunda, ‗período dogmático‘, quando a criança passa a poder ser também produtora. Assim, em Prévost havia várias oficinas, como de sapateiro, de costura, entre outras, para serem utilizadas em atividades práticas em um segundo período. Figueiroa (2007) lembra que Robin acreditava que são

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as experiências práticas que devem orientar a educação das crianças na primeira infância, de modo que qualquer conhecimento teórico apresentado a elas será fruto de sua curiosidade e interesses advindos da experiência na prática. Assim, esta primeira fase da educação centrava-se no caráter espontâneo que a criança demonstraria pelas coisas. O educar nada impunha, simplesmente aproveitava o interesse natural da criança para trabalhar atividades que tinham como objetivo sensibilizar os sentidos do corpo humano, bem como os membros do corpo e conhecimentos gerais sobre as coisas e os fatos. Assim, progressivamente:

[...] as atividades partem da individualidade para a coletividade, de forma que as crianças aprendam a se socializar de maneira sadia e que consigam desenvolver atividades em grupo. Essa fase inicial se encerra quando as crianças já possuem: um repertório básico de conhecimentos, condições de uma elaboração lógica do conhecimento e uma capacidade razoável de abstração (FIGUEIROA, 2007, p. 35).

Figueiroa (2007) coloca que a segunda fase da educação praticada por Robin em Prévost é denominado de dogmática. Esta segunda fase da educação integral nada mais é do que o aprendizado sistemático das diversas ciências. O ensino teórica ganha nova relevância quando na adolescência, caracterizada como última fase da proposta de Robin, os jovens participam das oficinas para desenvolver seu conhecimento prático. Os adolescentes de ambos os sexos aprendiam os diferentes ofícios, da tapeçaria à costura, todos tinham oportunidade de adquirir o conhecimento prático da manufatura, acompanhado de todos os subsídios teóricos.

Gallo (1995a) chama a atenção ao fato de que as crianças passavam muito tempo ao ar

livre, praticando esportes. Tal educação não admitia que fossem realizadas provas e exames como forma de classificação dos alunos, bem como não existiam castigos ou prêmios para quem se destacasse. Os alunos mais destacados, ou seja, mais adiantados, auxiliavam os outros, ou seja, praticavam a solidariedade com os outros.

Gallo (1995a) destaca que na parte prática, nas diversas oficinas, os adolescentes de ambos

os sexos aprendiam os diferentes ofícios, todos tinham oportunidade de adquirir o conhecimento prático, acompanhado dos subsídios teóricos. Ao final do processo de instrução via educação integral, o adolescente poderia fazer uma escolha entre os diferentes ofícios para se especializar e se aprofundar.

Martins (2009) considera que a educação integral preocupava-se ainda com a saúde e a

higiene das crianças. Tais crianças deveriam ter um vestuário de acordo com as normas higiênicas, tomar com freqüência banhos e ter acompanhamento de seu desenvolvimento físico. Outro aspecto da educação integral seria a educação intelectual, que deveria desenvolver com equilíbrio todas as faculdades, tais como assimilação, produção, observação, julgamento, memorização e imaginação. A educação integral também deveria desenvolver a educação moral, que deve estar pautada na justiça e nas relações sociais. Outro aspecto fundamental para a educação integral proposta por Robin era a educação literária, que deveria ser desenvolvida por meio de quatro caminhos: ouvir, ler, falar e escrever. Tais etapas estavam intimamente vinculadas umas com as outras.

Floresta (2007) declara que para Robin, o período que as crianças passavam em Prévost era

apenas um estágio, devendo a educação continuar por toda a vida. Assim, a experiência de Robin em Prévost colocou em prática o pensamento político-pedagógico de Proudhon e Bakunin; definiu, no exercício diário escolar, uma crítica à autoridade, à disciplina castradora, à hierarquia, à homogeneização dos indivíduos, ao individualismo, etc.

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Martins (2009) vê em Robin um intelectual que foi a expressão de seu tempo e que podem

ser observadas algumas características de sua proposta pedagógica, desenvolvida em Prévost: a crença no racionalismo científico, a possibilidade de regeneração da espécie humana, a visão internacionalista e a existência de uma sociedade igualitária. Ele influenciou vários educadores, entre eles Ferrer y Guardia.

Gallo (1995a) frisa que dentre todas as premissas da proposta pedagógica de Robin,

algumas geraram grande polêmica, como educação mista, com ambos os sexos e o ensino racional e laico. Tais premissas geraram violentos ataques dos cristãos e conservadores, além das autoridades escolares, sendo que Robin foi perseguido e exonerado do cargo de administrador de Prévost em 1894:

Tal experiência, apesar do grande sucesso, suscitou muitos ataques, principalmente vindos de católicos e conservadores, que acusavam o sistema de co-educação dos sexos como ‗pornográfico‘. Robin foi perseguido e, em 1894, cede às pressões, se demitindo de Cempuis após 14 anos. O exemplo de Robin inspirou outras várias experiências de educação libertária como: ‗La Ruche‘, liderada por Sebastian Faure (1858-1942), e a Escola Moderna, inspirada por Francisco Ferrer y Guardia (1849-1909) (VARGAS, 2007, p. 97)

O Orfanato de Prévost perdeu assim o pedagogo que reescreveu a forma de se ver a educação, o resultado de sua obra se fez perceber em outras experiências que se seguiram e que até hoje estão lutando pela educação em uma perspectiva diferente, mais crítica e emancipadora, fazendo assim um contraponto à sociedade embasada na educação alienadora e perversa em si. Considerações finais

Percebeu-se que o anarquismo é uma teoria dos anarquistas, alicerçada na liberdade, onde a

produção e o consumo deveriam atender, ao mesmo tempo, às necessidades individuais e de todos. Contudo, frisa-se que o anarquismo deve ser considerado como um princípio gerador, assumindo várias formas de interpretar a realidade e maneiras de ação, conforme o momento e as condições históricas em que é vivido. Portanto, considerando-se o princípio gerador, de Gallo, diz-se que o anarquismo não pode ser visto como uma ideologia engessada, mas como uma forma de elucidar os inúmeros prismas que se desdobram no pensamento anarquista.

O anarquismo debateu os problemas que assolavam a sociedade e buscou formas e saídas

possíveis, num período em que inúmeros autores tinham suas crenças arraigadas na disciplina e no autoritarismo. A característica mais marcante de Prévost talvez tenha sido não converter as pessoas a uma ideologia doutrinária fixa, engessada; preferiu a liberdade individual como a melhor forma de desenvolver uma sociedade mais justa.

Neste contexto, a experiência de Robin, no Orfanato de Prévost, deu vida à prática da

educação anarquista durante mais de uma década. Robin aplicou e aperfeiçoou uma novidade metodológica de ensino; quebrou tabus para a época, com um ensino sem gratificações ou castigos; a convivência entre os sexos em sala de aula; um ensino racional sem a adoração ao divino; o desenvolvimento integral dos internos. Todas essas novidades instigaram críticas de uma sociedade que não conseguiu enxergar com bons olhos a quebra de tantos tabus educacionais. Robin, não via na religião a salvação e nem via no Estado o caminho para o equilíbrio social; nem acreditava na divisão de classe; intitulava-se anarquista. Referências DULLES, John W. F. Anarquistas e o comunismo no Brasil. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1977.

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FIGUEIROA, Jonas N. Educação anarquista: conceitos e experiências de uma educação para a liberdade. 2007. 57 p. Monografia (Licenciatura em Pedagogia), Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2007. Disponível em: <http://www.ufscar.br/~pedagogia/novo/files/tcc/tcc_turma_2004/249270.pdf> Acesso em: 30 maio. 2011. FLORESTA, Leila, Um projeto de educação integral: a experiência de Paul Robin em ‗Cempius‘. Olhares & Trilhas, Uberlândia, ano VIII, n. 8, p, 121-134, 2007. FREITAS, Francisco Estigarribia de; CORRÊA, Guilherme Carlos. Encontro de educação libertária: textos. Santa Maria: UFSM, 1998. GALLO, Sílvio. Anarquismo: uma introdução filosófica e política. Rio de Janeiro: Ed. Achiamé, 2006. ______Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Ed. Unimep, 1995a. ______Pedagogia do risco. Campinas: Papirus Editora, 1995b. MALATESTA, Errico. A anarquia. São Paulo: Nu-Sol; Rio de Janeiro: SOMA: Imaginário, 1999. MARTÍN LUENGO, Josefa et al. Pedagogia libertária: experiências hoje. São Paulo: Editora Imaginário, 2000. MARTINS, Angela M. S. A pedagogia libertária e a educação Integral. VIII Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas – História, Sociedade e Educação no Brasil: história, educação e transformação: tendências e perspectivas. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 30 de junho a 03 dse julho de 2009. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/trabalhos.html> Acesso em: 30 maio. 2011. RODRIGUES, Edgar. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro: Achiamé, 1992. ______Os libertários: idéias e experiências anárquicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. SILVA, Benedicto; MIRANDA NETTO, Antônio Garcia de. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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LETRAMENTO LITERÁRIO: FALEM MENINOS E MENINAS, NÓS QUEREMOS OUVI-LOS SOBRE A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS NO ENSINO MÉDIO

Maria da Conceição Jesus Ranke (PPGL/MELL – UFT) Hilda Gomes Dutra Magalhães (PPGL/MELL – UFT)

Luiza Helena Oliveira Silva (PPGL/MELL – UFT) Gislene Pires de Camargos Ferreira (PPGL/MELL – UFT)

Resumo: Objetivamos analisar, a partir das percepções de discentes, os sentidos atribuídos ao trabalho com o texto literário em aulas de literatura em um Centro de Ensino Médio de Araguaína, Tocantins. A pesquisa consiste num estudo de caso qualitativo no qual os discentes responderam a um questionário. Os depoimentos dados sinalizam que a aula de literatura, poderia se configurar num espaço para ―escapar um pouco da realidade nua e crua em que vivemos, e um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações, sem sair do conforto de nossos quartos‖ e quiçá de nossas salas de aulas. Palavras-chave: Letramento literário. Literatura. Semiótica. Abstract: The objective is to analyze, from the perceptions of students, the meanings attributed to the work with the literary text in class of literature in a Center of the Middle School in Araguaína, Tocantins. The research consists of a qualitative case study in which the students answered a questionnaire. The testimonies indicate that the class of literature, could be a space for "escape a little of the hard reality in which we live, is a way of experiencing other worlds, times and situations, without leaving the comfort of our rooms" and perhaps in our classrooms. Key-word: Literacy literary. Literature. Semiotics. Introdução

Nosso propósito neste artigo é analisar a partir das percepções de discentes como vem se constituindo o trabalho com o texto literário em aulas de literatura em um Centro de Ensino Médio de Araguaína, Tocantins.

Com o embasamento teórico da teoria literária, dos estudos do campo do letramento

literário e a contribuição da semiótica discursiva, acreditamos, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, que estas duas áreas de conhecimento se interrelacionam/complementam no que diz respeito à importância dada à atividade de leitura, e, mais precisamente à leitura do texto literário, numa abordagem que faça sentido para o sujeito leitor, em nosso caso, o aluno.

Dessa maneira, pretendemos que nossa pesquisa possa contribuir para a reflexão sobre o

tema da leitura literária no espaço escolar. Nesse intento, procuramos problematizar a relação do jovem leitor com a leitura literária,

uma vez que há atualmente uma visão bem disseminada, mas também bastante questionada, de que os jovens não gostam de ler, e, que se nas séries iniciais do Ensino Fundamental, estes demonstram prazer pelas narrativas imaginativas, pelas histórias de aventura, pela musicalidade dos poemas, na medida em que vão se aproximando do Ensino Médio – etapa em que a Literatura ganha status de disciplina curricular – revelam, muitas vezes, resistência frente às propostas de leitura.

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Metodologia

Norteado por princípios qualitativos, o presente estudo teve como referencial metodológico os princípios do estudo de caso (YIN, 2005), no qual a escolha dos participantes se deu a partir de conversas informais com três professores de literatura de um Centro de Ensino Médio, de Araguaína, TO. Na ocasião, indagamos aos professores sobre alunos considerados como leitores assíduos, isto é, alunos que demonstravam em suas aulas maior gosto e familiaridade declarada pela leitura. A partir das indicações dos professores fomos autorizados a conversar com os alunos, que após serem informados a respeito do caráter do estudo, aceitaram participar da pesquisa.

Nosso instrumento metodológico constituiu-se de um questionário aberto, instrumento

típico de pesquisas de cunho qualitativo (YIN, 2005). Logo, as respostas dadas pelos alunos-leitores configuram-se como nosso objeto de análise. O questionário compreendeu cinco perguntas das quais selecionamos três para aqui analisarmos: (i) Este ano você leu algum livro indicado pela escola? (Se sim, qual foi? Você gostou?) (ii) Na escola, quando o professor solicita a leitura de livro(s) de literatura, qual a maior dificuldade ou facilidade que você encontra? (iii) Para você o que é literatura? Fundamentação teórica

Os pressupostos teóricos dos fundamentos da teoria literária que norteiam nossa investigação apóiam-se na visão Aristotélica de literatura entendida como a arte da palavra, que caracteriza-se pela imitação, ou seja, pela mimese como significado de recriação estética da realidade (verossimilhança).

Entendemos aqui literatura como um objeto estético (CULLER, 1999) ou arte que se

constrói com palavras, a qual tem como finalidade despertar o sentimento estético do leitor, o que a Literatura proporciona ao leitor, só ela o faz, e esse ―prazer não pode ser confundido com nenhum outro‖ (COUTINHO 2008, p. 23).

Cândido (1995) ressalta ainda que o acesso à literatura é um direito universal humano

garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e, que a literatura é fundamental à vida do homem:

(...) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade (CÂNDIDO, 1995, p. 186).

Nesse sentido, acreditamos que o ensino de literatura deve ter garantido um lugar

significativo no currículo escolar, posto que a literatura além de proporcionar o alargamento da sensibilidade estética, o hábito da leitura, estímulo da imaginação e, pela catarse, apura as emoções e promove a construção de conhecimentos, ou dito de outro modo, a literatura contribui de forma significativa na formação do sujeito como cidadão (MAGALHÃES & BARBOSA, 2009).

Por Letramento entendemos o que Soares (1998, p.98) define como ―conjunto de práticas

socialmente construídas‖ envolvendo a leitura e a escrita, ―geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais‖.

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O letramento também pode ser pensado em relação à literatura. Paulino destaca que o

letramento literário: ―como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação pessoal de práticas de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem por ela‖ (2004, p.59). Ademais, o letramento literário, pode ser compreendido como instrumento, visando a formação de um leitor ―para quem o texto é objeto de intenso desejo, para quem a leitura é parte indissociável do jeito de ser e de viver‖ (RANGEL, 2007, p.137-138).

Cumpre ressaltar que o letramento literário, de modo geral, deve envolver mais

especificamente o fenômeno da leitura. As habilidades de escrita literária não estão no foco desse fenômeno, e, portanto são entendidas como escolhas individuais. Como atesta Paulino:

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto (PAULINO, 2004, p.56).

Pensando mais especificamente na leitura do texto literário, é importante considerarmos,

como propõe Paulino, sobre suas especificidades, sem desconsiderar o que há de comum (as semelhanças) entre essa leitura e a de textos não-literários, já que, numa perspectiva contemporânea, ―todos os domínios discursivos, sem exceção, exigiriam e desenvolveriam habilidades complexas e competências sociais de seus leitores‖ (PAULINO, 2007, p. 61).

Para Paulino, assim como para Soares (1998), da mesma forma que existe diversidade de

textos, existe, em função desses textos, diversidade de leituras, de modos de ler. Não é suficiente defendermos a presença da diversidade de tipos e gêneros textuais na escola, se não levarmos em conta os diferentes modos de leitura, de acordo com determinadas especificidades do texto. Paulino ressalta que ―as diferenças se localizariam nos objetos lidos e se definiriam a partir deles, mas seriam também estabelecidas pelos sujeitos em suas propostas, espaços sociais e ações de leitura‖ (2007, p.56).

Entendemos que os textos literários devem ser lidos – inclusive no ambiente escolar –

tendo em vista a sua função estética de apurar a sensibilidade e causar prazer possibilitando ao aluno-leitor o desenvolvimento da sensibilidade, propiciando fruição uma vez que ―a literatura é arte e, como tal, demanda competências e habilidades ligadas à subjetividade, à criatividade e à sensibilidade, devendo, por isso, ser tratada com métodos e objetivos específicos‖ (MAGALHÃES, 2008, p.121). Assim, para que o letramento literário seja de fato desenvolvido, a escola não deve limitar-se aos objetos lidos, mas também e, principalmente, à forma como a leitura está sendo provocada/incentivada no seu interior, sobretudo, pelos professores e realizada pelos alunos.

Afirmando-se como uma teoria cujo objeto de estudo é o sentido, a semiótica de linha

francesa tem orientado seus desenvolvimentos teóricos mais recentes justamente em direção à dimensão do sensível (GREIMAS, 2002). Assim, a Semiótica assume como projeto, a descrição do sentido e busca a compreensão dos seus processos de produção.

De acordo com Bertrand (2003, p.24), para a semiótica o leitor é ―um ‗centro do discurso‘,

que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita significações‖ e, portanto um co-enunciador. A significação, nesse sentido, é resultante de uma construção, isto é, de um fazer. O leitor deixa de ser ―aquela instância abstrata e universal‖, ou seja, um ―receptor‖ que registra de modo passivo o que foi dito pelo enunciador. Desse modo, o leitor também responde pela enunciação, e a leitura é, então, resultante da relação intersubjetiva atualizada na linguagem.

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É oportuno destacar, que não se trata, de se atribuir qualquer sentido ao texto. É nesse

sentido, que Landowski (2001) preconiza uma ética de leitura, possibilitando, assim, o encontro com a alteridade, encontro que é viabilizado pela linguagem. O autor acrescenta ainda que o ato de atribuir sentidos ao mundo é que faz emergir a própria subjetividade:

Diríamos que ―compreender‖ é construir. É, portanto, fazer-ser alguma coisa: fazer-ser o mundo enquanto mundo significativo, mas também nos fazer-ser, nós mesmos, enquanto sujeitos. (...) Fazer-ser o sentido constitui, assim, uma exigência primeira em relação a nós mesmos: é a condição fundamental de nossa completude. (...) se ―construímos o mundo‖, é sempre num processo de interação com uma positividade exterior – uma alteridade – que nos desafia e que não poderia ser pura e simplesmente reduzida, em todos os casos, à posição e ao estatuto do ―objeto‖. (LANDOWSKI, 2001, p.26, itálico no original)

Pensar essa construção, esse fazer-ser na leitura literária é garantir ao leitor um campo aberto

para a liberdade, subjetividade e prazer, negar esse tratamento, quer do objeto literário, quer da leitura construída e sentida pelo aluno, é, de acordo com Paulino (2007:15), falta de ética.

Isso posto, passemos aos depoimentos dos alunos-leitores, no intuito de analisar e refletir a

partir de suas percepções sobre como a escola, no Ensino Médio, vem trabalhando com o texto literário nas aulas de literatura.

Falem meninos e meninas, nós queremos ouvi-los

A primeira pergunta dirigida aos discentes indagava-os sobre a leitura de algum livro, que estes haviam lido, este ano, por indicação da escola, bem como a opinião sobre a leitura. Os títulos que mais compareceram foram: Triste fim de Policarpo Quaresma; Viver de cara limpa; Macunaíma; Iracema; O Guarani; O estudante; O quinze, dentre outros. No que diz respeito às suas opiniões, o diferencial aparece por meio das justificativas sobre a obra lida. Senão vejamos:

(1) /.../ Gostei, [porque] gosto de livros como ele, de ação e suspense. (J. Lenon). (2) /.../ gostei bastante, pois conta a realidade da vida e que tudo tem uma solução. (Fernanda). (3) /.../ Gostei muito, porque que é um livro muito interessante, que prende nossa atenção. (Débora).

Como podemos perceber, as justificativas apresentadas pelos alunos deixam antever seus

gostos e também, julgamentos sobre a obra lida. O prazer ou gosto pela leitura literária parece se estabelecer de forma significativa quando o leitor se sente capaz de se deslocar para um mundo que, mesmo não sendo o seu, lhe proporciona sensações agradáveis e nas quais o leitor se reconhece e se realiza: ―/.../ gosto de livros como ele, de ação e suspense‖; ―/.../ conta a realidade da vida e que tudo tem uma solução‖. Trata-se, portanto das apropriações pessoais de que nos falou Graça Paulino (2004), ou ainda, conforme Landowski (2001) da leitura enquanto construção de um fazer-ser no mundo enquanto sujeito. Além disso, percebe-se, através das opiniões dos jovens leitores uma estreita relação da leitura literária com seus universos afetivos, uma especificidade que é inerente ao texto literário. De acordo com os excertos examinados, notadamente, percebemos que as percepções dos discentes apontam para um trabalho de apropriação do texto literário pelos leitores no âmbito escolar.

Adentrando mais nos domínios da sala de aula, a partir da percepção dos discentes, nossa

segunda solicitação contemplou uma prática típica da aula de literatura, trata-se da solicitação por

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parte do professor para que os alunos leiam um livro. Tendo em vista esse questionamento, os discentes falaram sobre suas maiores dificuldades e/ou facilidades neste tipo de atividade. Senão vejamos:

(4) Na maioria das vezes, a minha maior dificuldade é o tipo de linguagem. Se a linguagem é rebuscada, eu não me atraio tanto pelo livro, e normalmente o deixo de lado, mas se a estória for legal e conseguir chamar minha atenção em algum momento, eu vou até o fim, mesmo que isso demore. (Gisely). (5) Geralmente a minha maior dificuldade é o vocabulário, mas mesmo com essa dificuldade é impossível não gostar dos livros e se emocionar, rir, com suas histórias. (Rosa). (6) Por enquanto não encontrei nenhuma dificuldade nos livros solicitados pela professora. Pois /.../ tenho intimidade, familiaridade com os livros (Daiana).

Como podemos observar nos depoimentos acima transcritos, assim como na maioria dos depoimentos dos jovens que responderam ao questionário, a dificuldade na leitura do texto literário está relacionada ao vocabulário e/ou linguagem, conquanto tal dificuldade não se configura como um impedimento para a leitura.

Cosson (2007) na segunda parte de sua obra ―Letramento literário: teoria e prática‖

apresenta estratégias sistematizadas para o ensino de literatura na escola. De acordo com o autor, o professor, juntamente com os alunos, deve explorar ao máximo as potencialidades do texto literário a fim de que o contato entre aluno e literatura seja uma busca plena de sentidos. Conforme Cosson, (2007, p.30)

É justamente para ir além da leitura que o letramento literário é fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem.

Para tanto o autor apresenta um método que pode ser desenvolvido em duas sequências,

uma básica e outra expandida. Acreditamos que a proposta da sequência expandida pode, pelo menos, minimizar as dificuldades explicitadas por nossos jovens leitores.

Nessa sequência (cf. COSSON, 2007) o autor sugere aos professores que quando da

solicitação da leitura de uma obra mais extensa, estes realizem ―intervalos de leitura‖, que se assemelham às divisões (em partes) sugeridas pela leitora Sara em resposta a quinta pergunta do nosso questionário. Cosson explica que nessas aulas intermediárias, o professor pode propor atividades com textos que dialogam com a obra lida, seja por questões temáticas, seja por questões formais. Nesse intento, o professor pode levar contos, músicas, imagens dentre outros. Os intervalos de leitura podem ser momentos propícios para que o professor acompanhe o desenvolvimento da leitura pelos alunos e, também contribuir no sentido de ampliar o conhecimento dos discentes a fim tornar a leitura mais profícua, auxiliando-os, quando necessário, em suas dificuldades, como por exemplo, com o tipo de linguagem apresentada na obra que, por vezes, pode ser um fator dificultador para a compreensão global e mais rica do texto.

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Por este caminho e de acordo com as percepções dos discentes, ―a linguagem rebuscada‖,

de que fala Gisely (4), ou a dificuldade com o ―vocabulário‖ informada por Rosa (5), não são, para as estudantes, fatores impeditivos ao hábito pela leitura literária, uma vez que, conforme enfatizado por Daiana (6), as leitoras têm ―intimidade, familiaridade com os livros‖ e em decorrência com a leitura.

Essa intimidade parece ser estabelecida, sobretudo, pelo hábito de ler como prática

freqüente, isto é, a leitura como algo familiar, ou conforme as palavras de Faria (1999 apud MAGALHÃES, 2008, p.123), ―o mundo do livro deve ser familiar para que o leitor possa fazer dele um caso pessoal‖. O caso especial que decorre, sobretudo de uma familiaridade pode ser entendido pela semiótica através da noção de hábito entendida como um fazer que se repete e ―que produz um tipo específico de contato entre o sujeito e o que ele faz‖ (OLIVEIRA, 2004, p.15). Acostumando-se ao sentir desencadeado pela mesma natureza de arranjo, ―o sujeito se familiariza com ele e o seu querer senti-lo, de novo, é a volição que o faz praticá-lo‖. Assim, quanto maior a familiaridade, a intimidade, mais a continuidade do hábito é desejada.

É nessa perspectiva que o hábito pode ser entendido como uma espécie de estesia que se

instaura a partir do gosto, em nosso caso, a leitura, não uma leitura qualquer, mas a leitura literária, entendida, aqui, fundamentalmente como uma experiência de fruição.

Não é sem razão que nas justificativas da primeira pergunta do questionário os estudantes

deixam antever que através da leitura literária o mundo se projeta para esses leitores como se fosse dotado de intencionalidade e estivesse ali para ―se mostrar‖, agradá-los, para fazê-lo justamente fruí-lo. Ou no termos de Aguiar, é assim, que ―ao término da leitura, não sou a mesma de antes, porque tenho comigo os resultados da experiência vivida, equilibrada na linha que separa fantasia e realidade‖ (AGUIAR, 2007, p.18).

É nessa perspectiva de hábito como estesia na qual a reiteração volitiva é constitutiva da

fruição e do prazer pela leitura literária, que os discentes falam sobre o que é, para eles, literatura:

(7) Para mim, literatura além de diversão é como se fosse uma fuga, rsrs. Sei que sou nova para andar fugindo, mas se existe algo que me tira da realidade sem me fazer mal e, que me ajuda a pensar melhor, sentir melhor, esse algo é a minha literatura. Espero ser assim para sempre /.../. (Sara). (8) /.../ é um jeito de escapar /.../ da realidade nua e crua em que vivemos, e um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações sem sair do conforto de nossos quartos (Samantha). (9) É uma forma de viajar sem sair de casa, conhecer outras pessoas sem nunca tê-las visto, descobrir novos lugares e situações /.../ Ao ler, a gente esquece os problemas que tanto nos perturbam e passamos a sonhar com um mundo novo, que o autor nos faz viver naquele momento, prendendo nossa imaginação em algo irreal (Gisely).

Greimas (2002), na primeira parte de sua obra ―Da Imperfeição‖, destaca um tipo de êxtase denominado pelo autor de ―deslumbramento‖ que pode ser experimentado pelo sujeito nas experiências cotidianas. O ―deslumbramento‖ ocorre quando um outro-objeto provoca uma espécie de ―fratura‖, ressemantizando o dia-a-dia. É justamente essa ressemantização que o texto literário parece deflagrar, reiterando a importância do hábito como um tipo de estesia.

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Entendemos, assim, que o sentido atribuído pelos discentes à literatura, parece residir,

sobretudo na imprescindibilidade do gosto que esses leitores atribuem ao gosto do contato com o texto literário, conforme afirmado por Sara ―/.../ se existe algo que /.../ me ajuda a pensar melhor, sentir melhor, esse algo é a minha literatura /.../‖. Ademais, da fala de Sara, de Samantha e Gisely depreende-se o estatuto da literatura como provocadora de um tipo especial de prazer que atualiza e ressemantiza suas vivências.

Em suas definições pessoais sobre o que é literatura, Sara, Samantha e Gisely, reiteram o

que disseram J. Lenon, Fernanda e Débora, no que diz respeito a uma característica inerente do texto literário que é a de possibilitar deslocamentos entre mundos ao sabor do prazer: ―/.../algo que me tira da realidade sem me fazer mal /.../‖ (Sara); ―/.../ um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações /.../‖ (Samantha); ―/.../É uma forma de viajar sem sair de casa /.../‖ (Gisely).

Tendo em vista os depoimentos dos estudantes, entendemos que estes deixam antever que

a aula de literatura pode garantir ao leitor um espaço a leitura literária norteado pela subjetividade. Contudo cremos que seja necessário investir em pesquisas que de forma mais aprofundada investiguem sobre qual o lugar da fruição em aulas de literatura nessa etapa de escolarização. Assim, no desejo de realizar um gesto de interpretação finalizador, para este momento, acreditamos que conseguimos colocar em discussão a questão da relação dos jovens com a leitura literária, uma vez que temos atualmente uma visão tão disseminada, mas também bastante questionada, de que os jovens não gostam de ler. O que presenciamos ao longo desta pesquisa contraria bastante este estereótipo, uma vez que encontramos leitores ávidos pelo texto literário, e mais, que esses leitores-alunos têm algo a dizer, na medida em que suas percepções apontam que a literatura e, em decorrência, a aula de literatura, poderia se configurar como um espaço para ―escapar um pouco da realidade nua e crua em que vivemos, e um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações, sem sair do conforto de nossos quartos‖ e quiçá de nossas salas de aulas.

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OLIVEIRA, Ana Claudia Mei Alves. Jornal e hábito de leitura na construção da identidade. In: XIII encontro anual da associação nacional de programas de pós-graduação em comunicação, 2004, São Bernardo do Campo. Produção de sentido as mídias, 2004. v. 1. p. 15-30. PAULINO, Graça. Algumas especificidades da leitura literária. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2007. p. 55-70. PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. Revista Portuguesa de Educação. Braga: Universidade do Minho, v. 17, n 1, p. 47-62. 2004. RANGEL, Egon de Oliveira. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: "Os amores difíceis". In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FAE/UFMG, 2007. p. 127-146. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005. Enviado – 19/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA:

UM ESTUDO DA PLATAFORMA MOODLE

Maria José de Pinho10. Severina Alves de Almeida11.

Resumo: Neste artigo analisamos a implantação do Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia (EaD) via Plataforma Moodle, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), alcançando os pólos de Araguaína, Ananás, Nova Olinda e Wanderlândia. Os resultados constatam que mesmo diante da importância do curso, é perceptível a necessidade da aproximação do educando com os meios tecnológicos, para que, ao optar por esta modalidade de ensino, esteja preparado para que possa adquirir conhecimento com qualidade. Num contexto em que a maioria dos alunos concluiu o Ensino Médio em escola pública, é responsabilidade de o Governo possibilitar o acesso desses alunos às tecnologias. Palavras Chave: Estágio Supervisionado; Educação à Distância; Plataforma Moodle. Abstract: In this article we analyses the introduction of the Supervised Traineeship of the Licenciatura Biology Course, in the kind to the distance (EaD) he was seeing Platform Moodle, of the Federal University of the Tocantins (UFT), reaching the poles of Araguaína, Ananás, Nova Olinda and Wanderlândia. The results note that even before the importance of the course, the necessity of the approximation is perceptible of educating with the technological ways, so that, while opting for this kind of teaching, it is prepared so that it can acquire knowledge with quality. In a context in which most of the students ended the High Scholl in public school, it is a responsibility of the Government to make possible the access of these students to the technologies. Key words: Supervised Traineeship; Education to the Distance; Moodle Platform. Introdução

O Grupo de Pesquisa Práticas de Linguagens em Estágios Supervisionados na linha de pesquisa ―O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo da Plataforma Moodle‖ estudou e analisou o Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia, na modalidade à distância do pólo de Araguaína, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

O trabalho se desenvolveu através de estudos sistemáticos na Universidade e do

levantamento de dados através de questionários aplicados aos alunos estagiários que utilizam o ambiente virtual, Plataforma Moodle, como ferramenta essencial nas relações com os professores tutores.

A proposta da Educação à distância (EAD) vai além de uma mudança no processo de

ensino e representa um avanço na democratização da educação para as camadas sociais menos favorecidas. Esse modelo de educação é uma alternativa promissora para o Brasil, que com condição peculiar vem ganhando espaço e oportunizando pessoas impossibilitadas de freqüentar

10 Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Palmas, e do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaína. e-mail: [email protected] 11 Pedagoga. Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras no MELL - Mestrado em Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins – UFT – e Profª. Tutora do Curso de Biologia a Distância da UFT Campus Araguaína. e-mail: [email protected].

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uma sala de estudo presencial, muitas das vezes em função da distância dos grandes centros urbanos.

Para Kenski (2003), até algum tempo atrás havia espaço definido para ensinar e aprender:

escolas, campus universitários, bibliotecas etc. Todos precisavam estar em ―estado constante de aprendizagem‖acerca de tudo. Porém, a tela (televisão, computador), hoje, desloca as atividades de ensino para experiências e vivências virtuais em lugares, espaços, tempos e grupos sociais nos quais ―as coisas acontecem‖, como no ambiente Plataforma Moodle, utilizado pelos alunos do curso de Biologia Ead, da UFT.

Procurando entender o papel da plataforma Moodle e o processo de interação dos alunos

estagiários com os tutores do curso, foi feito levantamento do número de alunos estagiários do pólo de Araguaína da UFT. Através de um questionário identificamos o perfil e as percepções desses alunos em relação ao estágio supervisionado.

O universo da pesquisa: objetivos Objetivo geral: Analisar a implantação do Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia, na modalidade à distância via Plataforma Moodle.

Objetivos específicos: a) Levantar as diferentes percepções do estágio supervisionado através dos depoimentos dos tutores e coordenadores dos pólos e alunos estagiários. b) Compreender como ocorre a interação entre o professor responsável pelo estágio supervisionado e aluno estagiário através da Plataforma Moodle.

Materiais e métodos

A pesquisa ―O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo

da Plataforma Moodle‖ teve inicio em agosto de 2010 com a leitura de bibliografias que tratam da Educação a Distância (Ead), sua história, seu desenvolvimento na UFT e a relação do homem com os novos meios de comunicação. Nessa primeira fase de levantamento bibliográfico e leitura algumas obras identificadas podem ser citadas pela sua relevância e pelas contribuições que tem a oferecer a pesquisa. Dentre estas, destacamos o livro ―Mídia & Educação‖ de José Marques de Melo e Sandra Pereira Tosta, que aponta a relação entre esses dois temas que dão titulo ao livro, e ―A Mídia e a Modernidade – uma teoria social da mídia‖, escrito por Thompson e publicado em 1998, que oferece uma importante reflexão no que tange ao papel das mídias em um novo contexto de interação dentro da sociedade.

Além dos livros, alguns artigos que tratam da Educação a Distância foram levantados como base teórica para o desenvolvimento da pesquisa, tais como ―A Educação a Distância no Brasil: conceitos e fundamentos‖, escrito por Marcio Mognol, professor da Faculdade Internacional de Curitiba (FACINTER) e o ―Ensaio sobre a Educação a Distância no Brasil‖ escrito por Maria Luiza Bellone, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Após o levantamento dessa base teórica, para conhecer o curso de Biologia foi realizada

uma leitura do Projeto Político Pedagógico do curso (PPP), que rege as bases estruturais do curso e traz informações sobre o uso da Plataforma Moodle, ao longo do curso e na fase do estágio supervisionado, o qual retrata a relação entre os docentes e seus tutores e professores e o processo avaliativo. O PPP oferece ainda informações sobre as transformações que ocorreram na Universidade Federal do Tocantins nos últimos anos e retrata o processo de implantação de cursos na modalidade Ead.

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Na fase do levantamento dos dados envolvendo os pólos e os alunos estagiários do curso

de Licenciatura de Biologia na modalidade à distância, surgiu à primeira necessidade de mudança nas propostas inicial do projeto de pesquisa, que definia como objeto de estudo todos os pólos da UFT que oferecem o curso de Biologia Ead. Aqui se descobre que o tempo que tínhamos à nossa disposição não era suficiente diante da vastidão de trabalho que se anunciava, sendo que um pólo é responsável por várias cidades ao mesmo tempo, e ao final ficou decidido que a pesquisa seria realizada inicialmente apenas no pólo de Araguaína.

A próxima fase foi a elaboração do questionário para ser aplicado com os alunos do pólo que ficou definido como objeto da pesquisa. Inicialmente, a proposta era que o questionário seria aplicado através do ambiente Moodle, o mesmo que é usado pelos alunos na realização de suas atividades acadêmicas. No entanto, um mês após a aplicação do questionário, percebemos que era pouco o retorno que tínhamos dos questionários respondidos, o que demonstra certa fragilidade no devido uso da ferramenta. Era o momento de mais um reinventar para prosseguir a pesquisa. Em um evento presencial realizado com os alunos do estágio supervisionado do Curso de Biologia em Araguaína, o questionário foi aplicado com os alunos presentes.

Resultado e discussão

Aqui serão apresentados os resultados da pesquisa “O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo da Plataforma Moodle‖.

Quando o questionário foi aplicado o Curso de Biologia Ead da UFT Campus de

Araguaína contava com 150 alunos matriculados nos quatro níveis de estágio supervisionado. O questionário alcançou alunos dos pólos de apóio presencial de Araguaína, Ananás, Nova Olinda e Wanderlândia. O questionário foi aplicado com 57 (38%) dos alunos matriculados no estágio supervisionado. Destacamos que esse percentual de alunos que respondeu ao questionário é considerado significativo para a análise pretendida, uma vez que, conforme Lakatos e Marconi (1991), a média de retorno de 25% garante a representatividade das respostas.

Por determinação do Projeto Político Pedagógico do Curso de Biologia Ead, da

Universidade Federal do Tocantins, a prática do estágio supervisionado acontece do segundo ao quinto módulo12. Sendo assim, nem todos os alunos que estavam matriculados na época em que o questionário foi aplicado estavam realizando estagio supervisionado:

Alunos Matriculados por Pólo de Apóio Ananás, 45; Araguaína, 49; Araguaína Parfor, 20; Nova Olinda, 18 e Wanderlândia 18. De acordo com o a regulamentação do colegiado do curso de licenciatura em Biologia

001/2008, o Estágio Supervisionado tem como objetivo complementar a formação do professor em Ciências e Biologia, inserindo-o nos diferentes contextos de sua futura prática profissional, ocasião em que procurará articular sua formação prévia ao cotidiano da profissão, ao ampliar a concepção estrita de sala de aula, possibilitando contemplar as diferentes dimensões do trabalho do professor.

Para entendermos a importância da iniciativa da criação do curso de Biologia Ead, na

Universidade Federal do Tocantins, se faz necessário conhecer o perfil social dos alunos, assim como algumas das características do seu Projeto Político Pedagógico. O curso criado em 2004, foi ao encontro das necessidades de uma região que se caracteriza pelo multiculturalismo, com uma população heterogênea, o que coloca a UFT num contexto desafiador, que é o de promover o

12 Ao contrário da tradicional organização disciplinar, a organização do curso de Biologia Ead é feita através de módulos.

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desenvolvimento socioeconômico e cultural através de práticas educativas que objetivem e promovam a melhoria da qualidade de vida da população.

A faixa etária dos alunos entrevistados esta entre 23 a 62 anos, sendo que apenas um dos

matriculado tem mais de 60 anos, desses 40 (70%) são do sexo feminino e 17 (30%) do sexo masculino. Além de estarem cursando Biologia Ead 19 (33%) alunos revelaram que já possuem outro curso superior completo, distribuídos nas áreas de Pedagogia 03 (16 %), Geografia 01 (5%), Normal Superior 01 (5%), os outros 14 (74%) não revelaram sua formação. Do total de 57 entrevistados, 48 (84%) estavam trabalhando. É perceptível a predominância da atuação profissional dos graduandos do curso de Biologia Ead, na sala de aula. Vale ressaltar que um mesmo professor atua em mais de um nível de ensino.

Em 1996, aconteceu primeiro boom da Internet no Brasil, em abril do mesmo ano, nasce o

UOL, do Grupo Folha, que hoje é um dos maiores provedores do mundo. Em 1997, a Internet já estava consolidada no Brasil, principalmente em relação ao conteúdo em língua portuguesa. Em 1998, o número de usuários já era de dois milhões, mas a maior parte dos alunos matriculados no Curso de Biologia Ead, passaram a ter acesso à internet muito tempo depois:

Tempo que os alunos têm de Acesso a Internet: De 2-6 meses, é o tempo que 05 alunos têm de acesso à internet, o que representa 9% dos

entrevistados. De 1-3 anos, são 18 alunos, ou seja, 32%. De 4-6 anos, temos também 18 alunos, isto é, 32%. De 8-15 anos, o total é de 11 alunos, portanto, 19%. Vale ressaltar que 19% dos entrevistados, ou seja, 11 alunos não responderam.

Sobre a importância a Plataforma Moodle a professora coordenadora de estágio do curso

de Biologia Ead, revelou em entrevista que o ambiente é de fundamental importância nas atividades relacionadas ao estágio. ―Pela plataforma orientamos os estagiários, uma vez que as aulas presenciais só ocorrem nos finais de semana. Deixamos os documentos de estágio para os alunos baixarem e preencherem, também textos para leitura.‖

A coordenadora de estágio do curso reforça a importância da Plataforma Moodle através

do seguinte relato: ―Muito grande uma vez que parte do curso é feito a distância. Através da Plataforma, tiramos dúvidas, deixamos documentos para alunos, acompanhamos horários de aula dos alunos nas escolas, entre outras. É um importante instrumento facilitador da aprendizagem, porque as informações estão mais acessíveis e rápidas‖.

Mas, como a periodicidade do acesso não é cobrado, sendo de responsabilidade do aluno a

decisão do momento de estudo através da plataforma, a pesquisa revela que o uso do ambiente virtual do curso de Biologia Ead, por parte dos alunos, pode variar entre dias e semana.

Periodicidade de acesso a Plataforma Moodle No que tange à periodicidade do acesso à Plataforma Moodle pelos alunos estagiários, o

quadro é o seguinte: Todos os dias, 13, ou seja, 23%; Menos de duas vezes por semana, 11 alunos, isto é, 19%; Semanalmente, 33, o que representa 58%.

A professora coordenadora avaliou a interação entre professores e alunos como boa, mas

contou que ainda existe alguns problemas a serem superados. ―A interação entre professores e alunos é boa, mas alguns professores e alunos ainda têm dificuldades para acessar a plataforma, por causa da não familiaridade com as tecnologias, mas esses problemas têm sido superados aos poucos a cada semestre. E alguns fóruns têm muita interação‖.

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A professora, coordenadora do estágio, destacou que embora a plataforma seja um importante instrumento facilitador da aprendizagem, o seu uso de forma inadequada pode trazer prejuízos na formação dos acadêmicos. ―Na primeira turma de Biologia Ead tivemos uma evasão muito grande, acredito que não soubemos dosar bem entre as atividades a distancias e as presenciais‖. ―A plataforma é muito importante, mas não pode ser a única metodologia do curso, porque seu uso como único instrumento não resolve todas as questões‖, ressaltou a professora.

De acordo com as respostas dada pelos 57 entrevistados, 37 (65%) tem facilidade de acesso

na Plataforma Moodle, 05 (9%), tem dificuldade na hora de acessar o ambiente virtual do curso de Biologia Ead e 15 (26%), apenas as vezes tem facilidade no acesso. Os alunos acessam a plataforma em locais diferentes de acordo com a sua realidade, quando questionados sobre o local de acesso foram obtidas 82 respostas, sendo que os entrevistados poderiam escolher mais de uma opção, o locais onde mais se faz acesso a plataforma é da casa do acadêmico com 26 (30%) de acesso e o mesmo número de acesso foi identificado nos laboratórios dos pólos.

Locais de Acesso à Plataforma Moodle Em relação aos locais nos quais os alunos fazem o acesso à Plataforma Moodle,

encontramos a seguinte situação: 26 alunos têm computador em casa, o que representa 32%. A quantidade de alunos que acessam nos computadores do laboratório de informática do pólo também é de 26, ou seja, 32%. Já aqueles que dizem acessar pelo computador do trabalho são 24, ou seja, 29%; 03 acessam numa Lan House, isto é, 4%; 02 dizem acessar na casa de amigos, (2%) e 01 na casa de pessoas da família (1%).

Por diferentes motivos os pesquisados optaram por um curso superior, com formação na

modalidade à distância, indo da falta de opção ao interesse pelo curso.

Motivos que levaram os estudantes a cursar Biologia Ead Os estudantes que dizem ter escolhido um curso à distância, a partir da flexibilidade de

horário totaliza 19 (33%); Os que afirmam que é por ser esta a única oportunidade são 18 (32%); Aqueles que dizer ser por interesse pelo curso são 05 (9%); 09 (11%) deram outras respostas, e 06 (11%) não rsponderam.

Embora os alunos tenham optado pelo curso de Biologia Ead, a coordenadora entrevistada

contou que existe um interesse dos alunos por mais momentos presenciais. ―Muitos alunos demonstram interesse por mais momentos presenciais, mas tentamos dosar esses dois momentos, os a distancia ficam pra orientações e acompanhamento e solução de duvidas.‖

Para 11 (19%), dos alunos, o estágio supervisionado realizado durante o curso, tem

correspondido totalmente as suas expectativas, já 44 (77%) responderam que estão bastante satisfeito, apenas 01 (2%), não está satisfeito e 01 (2%) não respondeu. Quando questionado sobre em que aspectos o estágio supervisionado tem correspondido às expectativas foram dadas as seguintes respostas:

Aspectos em que o Estágio Supervisionado tem correspondido às expectativas dos acadêmicos Ao serem indagados sobre os aspectos do Estágio Supervisionado no que tange às

expectativas correspondidas, 19 alunos (33%) afirmaram que foi a melhoria na prática na sala de aula; 07 (12%) dizem ser a aprendizagem que melhorou; 03 alunos (5%) afirma ser a troca de

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conhecimento; 05 (9%) que foi a relação entre teoria e prática; Já 08 alunos (14%) deram diferentes respostas, e 15 alunos (26%) não responderam.

Quando questionada sobre o que mais chamava sua atenção em relação ao curso de Biologia

Ead, a coordenadora de estágio respondeu: ―O nível de interação dos alunos com as tecnologias de aprendizagem, porque apesar de alguns ainda apresentarem dificuldades a grande maioria lida bem com isso e aplica na sala no momento do estágio.‖

O valor dado pelos alunos ao estágio supervisionado pode ser comprovado na tabela 09 que

demonstra o número dos entrevistados que fariam outro estágio supervisionado:

Alunos que (não) realizariam outro Estágio Supervisionado Dentre os alunos estagiários, 36 (63%) responderam que fariam, sim, outro estágio; 15

alunos (26%) responderam que provavelmente fariam; 01 (2%) disse que não faria; 01 (2%) respondeu que não sabe; e 04 (7%) afirmaram que não fariam outro estágio.

Quando questionada sobre o nível de engajamento dos alunos na realização do estágio

supervisionado, a professora/coordenadora afirmou que é muito grande, e nas palavras dela, não tem meio estágio, se o aluno não se engajar não é possível concluí-lo. O que vem corroborar o interesse pela realização do estágio supervisionado demonstrado nas respostas dos próprios alunos.

A coordenadora destacou ainda que embora a plataforma seja um importante instrumento

facilitador da aprendizagem, o seu uso de forma inadequada pode trazer prejuízos na formação dos acadêmicos. ―Na primeira turma de Biologia Ead tivemos uma evasão muito grande, acredito que não soubemos dosar bem entre as atividades a distancias e as presenciais. A plataforma é muito importante, mas não pode ser a única metodologia do curso, porque seu uso como único instrumento não resolve todas as questões‖, ressaltou a professora. Conclusão

A pesquisa “O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo da Plataforma Moodle‖, identificou que diante da realidade social em que os alunos do curso de Biologia Ead estão inseridos, a modalidade de educação a distância é uma alternativa de ampliação de ensino, rompendo barreiras sociais que impedem que o cidadão comum tenha acesso ao ensino superior.

Ao mesmo tempo em que os novos meios tecnológicos oferecem avanços na expansão do

ensino superior, ainda existem barreiras que precisam ser superadas. As barreiras sociais impedem muitas pessoas de fazerem um acesso de qualidade aos novos meios de comunicação, marcado pela falte de condição de se adquirir os meios tecnológicos ou a falta de habilidade na hora de usá-los, o que impede uma formação de qualidade.

Ao observamos a freqüência do acesso ao ambiente virtual Plataforma Moodle, pode-se

constatar que o ambiente virtual não tem um uso efetivo por parte dos acadêmicos. A professora e coordenadora de estágio supervisionado do curso de Biologia Ead, em entrevista ao grupo de pesquisa ressaltou que parte da dificuldade de acesso a ao ambiente virtual do curso decorre da relação com as novas tecnologias, tanto por parte de alguns alunos e professores, mas que de acordo com a professora esses problemas estão sendo superados. ―A interação entre professores e alunos via Plataforma Moodle, podem ser considerada boa, pois alguns professores e alunos ainda têm dificuldades para acessar a plataforma, mas esses problemas têm sido superados aos poucos a cada semestre‖.

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A deficiência no uso da Plataforma Moodle começou a ser percebida logo no inicio da

pesquisa quando se propôs que os alunos respondessem um questionário aplicado por meio do ambiente e pouco retorno foi obtido. Através do questionário 33 (58%) dos alunos revelaram que acessam o ambiente apenas uma vez por semana e 11 (19%) acessa menos de uma vez por semana.

Por outro lado a experiência da UFT na promoção da formação de professores através da

educação na modalidade a distância, é uma iniciativa importante considerando que a instituição está inserido em uma realidade onde o número de universidades presentes nas cidades do interior é reduzido e o número de educadores da rede pública que necessitam de formação em nível superior é alto.

Mesmo diante da importância do curso de Biologia Ead, ficou perceptível a necessidade da

aproximação do educando desde o inicio da sua formação com os meios tecnológicos, para que no momento em que ele decida optar pela Educação a Distância, o mesmo esteja preparado para que possa adquirir conhecimento com qualidade. Nesse contexto em que a maioria dos alunos concluíram o ensino médio em escola pública, o governo tem responsabilidade de possibilitar o acesso desses alunos às tecnologias. Referências ALVES, Elane de Jesus. Inovação tecnológica e novos paradigmas da educação: Uma análise retrospectiva da experiência de implantação do curso de Biologia na modalidade à distância (EaD) na Universidade Federal do Tocantins. 2007. 89f. Monografia (Especialização em Agente de Inovação Tecnológica) – Universidade Federal do Tocantins, Palmas. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – MEC. Universidade Aberta do Brasil. Disponível em: http//www.uab.mec.gov.br/infogerais.php#01. Acesso em 12 de abril 2010. BELLONI, Maria Luiza. Educação a Distância. Campinas, São Paulo. Autores Associados, 2008. ______. Ensaio sobre a Educação a Distância no Brasil. Santa Catarina 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n78/a08v2378.pdf. Acesso em: 28 de novembro de 2010. CANDAU, Vera M. 1991. Informática na Educação: um desafio. Tecnologia Educacional, v.20, n.98, 99, jan/abr.1991. KENSKI, Vani Moreira. Tecnologia e as Alterações no Espaço e Tempo de Ensinar e Aprender. São Paulo: Papirus, 2003. LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de Pesquisa. 3. Ed. São Paul: Editora Atlas, 1996. MOGNOL, Marcio. A Educação a Distância no Brasil: conceitos e fundamentos. Curitiba-PR 2009. Disponível em: http://www2.pucpr.br/reol/index.php/. Acesso em: 10 de janeiro de 2011. MORAN, J. M. O que é educação à distância. Campinas-SP 2002. Disponível em: <http : //www.fae.unicamp.br/etd/viewarticle. php?id=482>. Acesso em: 28 de abril. 2010. PIMENTA, S. G. O estágio na formação de profesores: unidade, teoría e prática? 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2004. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade - uma teoria social da mídia. Petrópolis, Vozes, 1998. TOSTA, Sandra Pereira; MELO, José Marques de. Mídia & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Biologia. Palmas, 2006. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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NÓDOAS POÉTICAS E IMPRESSIONISTAS EM UM CONTO

DE MENALTON BRAFF

Mariângela Alonso Doutoranda em Estudos Literários

UNESP - Campus de Araraquara – SP Docente de Literatura Brasileira

Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro-SP).

Resumo: Estudo da permanência de traços líricos e impressionistas presentes na composição do conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, narrativa que faz parte da coletânea Á sombra do cipreste, publicada em 1999 por Menalton Braff. A pesquisa fundamentar-se-á nas reflexões de Jean-Yves Tadié e Ralph Freedman, entre outros. Palavras-chave: Narrativa poética; Impressionismo; Menalton Braff. Abstract: Study of the permanence of lyrical and impressionistic strokes in the composition of the tale Girl in the rain: the trackless paths, narrative that is part of the collection In the shade of cypress, published in 1999 by Menalton Braff. Research will be based on the reflections of Jean-Yves Tadié and Ralph Freedman, among others. Key-words: Lyrical novel; Impressionism; Menalton Braff.

Introdução

A narrativa poética ou romance lírico constitui-se em um gênero híbrido ao aproximar-se

do poema em diversos aspectos. A aproximação com a poesia se dá principalmente pela presença de sonoridades, ritmos e metáforas, além do recurso da repetição. Também pelo recurso do mito, que é polissêmico.

No que concerne à enunciação, nas narrativas poéticas, o ponto de vista do autor exprime

o objeto, na medida em que escolhe o que narrar, da mesma forma que na poesia, quando a subjetividade é expressa. Neste sentido, a análise da narrativa poética deverá levar em conta técnicas descritivas do romance e do poema, ao mesmo tempo.

As narrativas poéticas, diferentemente das narrativas realistas, trazem, como tema central,

questões inerentes à condição humana. Seus personagens efetuam, muitas vezes, uma busca freqüente, de aspecto existencial. Assim, tais narrativas assemelham-se às narrativas míticas, na medida em que recriam o mundo através de símbolos. O herói assume um percurso, no qual o tempo exterior não é relevante, uma vez que o interesse recai sobre o tempo interiorizado, com suas angústias e seus gestos. O tempo torna-se assim, uma instância mítica, subjetiva, em que se instaura um processo de volta às origens, ou seja, o eterno retorno humano.

Por sua vez, o espaço é caracterizado principalmente por imagens, contando com a

representação de lugares específicos e simbólicos. Nestes cenários, numa relação por vezes muito estreita com a personagem, cada imagem suscita a própria subjetividade do homem. Imerso nesses lugares, o lirismo narrativo propõe uma reflexão acerca da condição humana.

A difusão teórica a respeito da narrativa poética ou romance lírico foi postulada pelo norte-

americano Ralph Freedman e pelo francês Jean-Yves Tadié, cujas obras ressaltam, principalmente, a condição de um gênero híbrido e dos rumos da arte.

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Em The lyrical novel, Ralph Freedman estabelece como ponto de partida para sua análise as

obras de Hermann Hesse, Andre Gide e Virginia Woolf. Ele demonstra, em seus apontamentos, a existência de diversos aspectos líricos, sobreviventes da herança simbolista.

A presença de uma subjetividade latente, de um ―eu‖ que se reflete continuamente,

perpassa a obra dos autores escolhidos. Freedman insiste no fato de que o ponto de vista do autor seja o responsável pela descrição e recriação do mundo. Para dar vazão aos processos ocorridos na mente, o artista pode utilizar diversos recursos, tais como crônicas, diários, autobiografias __ elementos muito comuns às narrativas poéticas, como forma de compreensão do estado íntimo do escritor. Neste sentido, a busca interior do narrador assemelha-se à busca de um poeta, permeando o mundo e o ser.

O francês Jean-Yves Tadié, na obra Le récit poétique, estabelece a discussão dos temas das

narrativas poéticas numa perspectiva estrutural. Retomando Jakobson, Tadié chama a atenção para a função poética da linguagem, ao confrontar os procedimentos da narração com a poesia. Ele observa o fato de que a função poética assume, nas narrativas poéticas, um papel bem mais relevante que a referencial:

[...] il y a là un conflit constant entre la fonction référentielle, avec ses tâches d‘évocation et de représentation, et la fonction poétique, qui attire l‘attention sur la forme même du message. Si nous reconnaissons, avec Jakobson, que la poésie commence aux parallélismes, nous trouverons, dans le récit poétique, un système d‘echos, de reprises, de contrastes qui sont l‘équivalent, à grande échelle, des assonances, des allitérations, des rimes [...] (TADIÉ, 1978, p. 8)

Espaço, tempo, personagem e mito relacionam-se, instaurando uma narração que cria seu

próprio mundo, absorvendo os significados mais ocultos, que, num romance tradicional, não surtiriam grandes efeitos. Nas narrativas poéticas, tais significados são antes símbolos que empreendem uma viagem rumo ao autoconhecimento.

O surgimento da narrativa poética ou do romance lírico encontra-se relacionado à escola

romântica, cujos autores empreenderam uma reflexão sobre o processo criativo, no qual a expressão do ―eu‖ do artista revelava uma intensa subjetividade. A Modernidade, por sua vez, foi palco da presença do ―eu‖ do narrador, já praticada anteriormente pelo Romantismo e pelo Simbolismo. Ao contrário dos narradores do século XIX, a ficção moderna é caracterizada pelo emprego cada vez mais freqüente do foco narrativo em primeira pessoa.

As narrativas poéticas instauram-se com a preocupação por aspectos míticos e a

problemática das questões eternas. Como matéria dessas narrativas, Michel Raimond reconhece: La couleur d‘une rêverie, la grâce d‘un objet, le mystère d‘une rencontre, tout cela, qui a alimenté le roman poétique, exclut une lourde structure en même temps que l‘observation réaliste ou psychologique courante. Symptôme non négligeable de la crise du roman que ce passage du réalisme au lyrisme, dans un genre qui paraissait voué à la peinture de la réalité. (RAIMOND, 1966, p. 225-6)

O poético surge, portanto, oferecendo possibilidades de questionamento, numa busca

incessante e eterna. Nessa espécie de narrativa, residem questões de ordem filosófica e mítica, acerca do próprio ―eu‖. Assim, somados todos esses elementos, o presente artigo procura percorrer o perfil do conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, de Menalton Braff, acentuando nele um olhar sobretudo lírico.

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Nódoas impressionistas em uma rua industrial:

O conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos pertence à coletânea de contos intitulada À

sombra do cipreste, publicada em 1999 por Menalton Braff. Foi com esta obra que em 2000 o escritor conquistou o Prêmio Jabuti, concorrendo com Carlos Heitor Cony e Nélida Piñon, autores já consagrados pela crítica.

Em muitos momentos, os contos de Á sombra do cipreste dialogam com as produções

impressionistas do século XIX ao fazerem uso de um lirismo fixado ao estado de alma dos personagens, bem como aos aspectos memorialistas e sensoriais. Assim, a prosa de Braff desenha-se a partir de traços predominantemente intimistas.

Nosso objetivo não é o de enquadrar a obra de Menalton Braff na esfera do chamado

Impressionismo, mas sim o de apontar a permanência destes traços no conto escolhido para análise, detectando, neste sentido, os possíveis diálogos entre os aspectos impressionistas e a prosa lírica braffiana. Para tanto, faremos primeiramente uma contextualização do movimento impressionista a fim de estabelecermos a atitude pautada no diálogo em que questão.

Podemos dizer que o Impressionismo foi um dos principais movimentos da arte ocidental

do século XIX e talvez de toda a modernidade. Sua técnica originou-se a partir das experiências artísticas presentes na obra de pintores como Monet, Pissaro, Morisot, Renoir, Sisley e Bazille, os quais consagraram-se como os seus verdadeiros expoentes.

Tais pintores utilizavam em suas telas uma composição refinada, procurando captar a

expressão direta da luz e das cores, contando, muitas vezes, com cenários ao ar livre, num acabamento perfeito. De acordo com Janice Anderson, os impressionistas ―[...] procuravam analisar a cor e o tom de um deterninado objeto o mais exatamento possível e pintar o jogo de uz sobre a superfície de objetos‖ (ANDERSON, 1997, p. 6).

No campo literário o Impressionismo conta com os escritores adeptos da chamada écriture

artist e aparece nas composições de Henry James, Marcel Proust, Anton Tchékcov, Jules e Edmond Goncourt, além de Joseph Conrad. Precedentemente, há tendências impressionistas nas obras de Baudelaire, Daudet, Verlaine e Rimbaud. Enquanto fenômeno literário, Arnold Hauser observa as diferenças da técnica impressionista em relação à naturalista, sinalizando: ―O impressionismo é menos ilusionístico do que o naturalismo; em vez da ilusão, fornece elementos do tema, em vez de uma imagem do todo, as várias peças que compõem a experiência‖ (HAUSER, 1995, p. 899).

Trata-se, portanto, de uma expressão pautada pela sugestão dos objetos, bem como das

sensações e subjetividades despertadas por eles. Assim, o Impressionismo procura atingir o momento essencial, trazidos à tona por meio do estado de alma, ou seja, a subjetividade do artista. Nestas obras, o apego à descrição sobrepõe-se à narração, procedimento justificado pela ação contemplativa ou poética, o que caracteriza o caráter eminentemente visual da composição.

A escrita impressionista opera uma atmosfera poética, na qual seu projeto de escrita busca

não a retratação do mundo, mas sua revelação. Tal qual o trabalho do poeta, o narrador impressionista está submerso na eterna busca pela natureza primeva das palavras e a pluralidade de seus significados por vezes já esquecidos. É o que encontramos no conto de Menalton Braff. Nele, um narrador de primeira pessoa, caminha calmamente por uma rua industrial, descrita como ―melancólica e metalúrgica‖, com ―paredes sujas‖ e ―reboco carcomido‖. A cena engendra um quadro impressionista na medida em que a espacialização conta com a chuva e seus aspectos sensoriais. O cenário torna-se uma espécie de contemplação pictórica, semelhante ao pincel de um artista:

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Os primeiros pingos da chuva eu os ouvi na pureza de sua individualidade: alguns pesados, líquidos e sonorosos, pérolas que se espatifavam ao cair, e caindo levantavam o pó do passeio. Apenas os primeiros, porque em seguida desabou o aguaceiro de pingos homogêneos, massa contínua de sons sem identidade: água jorrada. Não me alcançou, pois começou a cair exatamente na hora em que cheguei à esquina e saltei para dentro do bar, feliz ainda por ter podido escapar. (BRAFF, 1999, p. 76 )

De dentro do bar onde toma cerveja, este homem observa contemplativamente a rua lá

fora, notando a presença de uma moça vestida de azul: ―Seu vestido azul, seco ainda, tremulava ao vento sem temer o escândalo de seu gesto nervoso‖ (BRAFF, 1999, p. 76)

Por meio de uma descrição altamente plástica, o narrador introduz a moça da chuva. O

estado contemplativo que toma conta do narrador remete a uma tela impressionista na medida em que tenta captar os movimentos e as cores que envolvem a moça. Neste ponto do conto de Braff é pertinente recorrermos aos apontamentos acerca do romance poético efetuados por Todorov. O teórico recorre à oposição feita por Novalis no romance Heinrich von Ofterdingen. Partindo das tendências observadas por Novalis, temos de um lado, os ―homens de ação‖, aos quais ―[...] não lhes é permitido entregar-se às reflexões silenciosas, ceder aos convites do pensamento meditativo‖; e por outro lado, os ―seres recolhidos‖, ―[...] para quem o mundo é interior, a ação contemplativa e a vida um secreto e discreto acréscimo das forças do interior [...] Esses homens são os poetas‖ (NOVALIS apud TODOROV, 1980, p. 100). Tais atitudes ecoam no conto de Braff, uma vez que o aspecto romanesco cede lugar ao lírico, presentificado pelo uso da primeira pessoa. Semelhante ao papel do poeta, o narrador de Braff oscila entre o plano do enredo e as imagens da chuva que eclodem.

Na perspectiva estrutural, é possível visualizar nas narrativas líricas, o plano sintagmático

da narrativa, que se apresenta constantemente invadido pelo plano paradigmático da poesia. Ralph Freedman, ao postular importantes considerações acerca do romance lírico, oferece-nos um esclarecimento no que tange a esta questão:

Conventionally, the lyric, as distinct from epic and drama, is seen either as an instantaneous expression of a feeling or as a spatial form. The reader approaches a lyric the way an onlooker regards a picture: he sees complex details in juxtaposition and experiences them as a whole. (FREEDMAN, 1963, p. 6)

Esta concepção é importante para pensarmos o caráter impressionista apontado na obra de

Menalton Braff, baseado sobretudo na contemplação interior, na criação de um mundo próprio. Esta tendência é observada nos protagonistas de romances líricos, nos quais o narrador e a personagem fundidos combinam-se para criar um ―eu‖. A cena comum de ficção ambientada em uma rua industrial torna-se uma textura do imaginário. Como bem assinala Ralph Freedman: ―The ‗I‘ of the lyric becomes the protagonist, who refashions the world through his perceptions and renders it as a form of the imagination‖ (FREEDMAN, 1963, p. 271). Assim, assemelhando-se ao projeto do poeta, a narrativa braffiana revela a tentativa desesperada de captar-se a si mesma, reescrevendo os objetos e os seres, de modo que esses adquiram no texto uma nova forma:

Eu caminhava apressado e descontente, olhando às vezes para o céu com a sensação de que tinha caído numa armadilha de onde não conseguiria escapar jamais. O céu que me restava era apenas uma estreita faixa cinzenta de nuvens que se moviam sem direção definida, de maneira mais ou menos frenética. (BRAFF, 1999, p.75)

No conto em questão, o cenário ocupa uma posição de destaque no que tange aos efeitos

de sentido percorridos pelo narrador. Nas narrativas líricas, o espaço é parte integrante de uma

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dilatação interior marcada por imagens e percepções das personagens. Por meio das imagens suscitadas, há nestas narrativas uma significativa imagem do mundo e do ser, ou seja, a representação de espaços essencialmente simbólicos. Ao caracterizar a noção de espaço, Tadié discute tais questões:

L‘itinéraire, le voyage dans le récit poétique, représente ainsi la dernière étape dune évolution qui va du voyage extérieur au voyage intérieur, et du voyage intérieur à un voyage à travers ces grands espaces vacants que lês mots suffisent à engendrer . (TADIÈ, 1978, p. 67)

Na perspectiva lírica, o espaço ultrapassa os limites físicos e geográficos. Baseando-se em

descrições do cenário, o conto de Braff traz a construção de uma atmosfera sensorial e intimista, tão cara à técnica impressionista. Logo em seguida o leitor é surpreendido pela descrição de uma caixa de papelão que se encaminha para um bueiro. A caixa parece percorrer um itinerário inexorável e angustiante, como se houvesse uma espécie de embate:

Joguei todas as minhas esperanças no momento em que a caixa chegasse àquela boca escura: sua última oportunidade. Não demorou quase nada para que isso acontecesse. De repente, a caixa tornou-se magnífica em sua muda resistência. Ela cresceu ao pressentir o perigo. Ergueu-se, altaneira, as mãos e os pés fincados nas bordas, recusando-se a aceitar passivamente o próprio fim. A água insistiu violenta, brutal, mas a caixa, apesar de trêmula, não arredava pé, não se movia. (BRAFF, 1999, p.77-78)

Inegavelmente o conto de Menalton Braff é permeado por aspectos impressionistas, com

frases poéticas e descrições sensoriais. A escrita impressionista imobiliza o objeto, ou seja, a caixa de papelão, transformada pelo caráter lírico da cena.

O embate entre a caixa de papelão e o bueiro culmina no desaparecimento da moça, que é

levada por um ônibus e roubada da visão do narrador: Em pouco tempo a água já conseguira apagar seus lindos olhos negros, transformando a boca de lábios carnudos em um risco arroxeado, deformando testa e queixo, embrutecendo o que ainda há pouco era delicadeza e harmonia. (BRAFF, 1999, p. 75)

Semelhante a uma objetiva fotográfica, o olhar do narrador centra-se nos aspectos

disformes da moça, fazendo com que as manchas se definem, assumindo formas e contornos mais precisos. Mais uma vez a cena ganha ares de uma pintura impressionista, sugerindo o apagamento das formas, dos contornos da moça tal como o borrão de água nas cores de um quadro.

O desfecho do conto traduz o mundo circundante de que participa o narrador, situado na

hostilidade de uma rua industrial, mas antes de tudo situado também como ser-no-mundo, descobrindo sua solidão e seu isolamento. Resta somente ―uma parede encharcada e de reboco arruinado‖ (BRAFF, 1999, p.78 ). Desta forma, a experiência deste narrador dá-se pelo cenário no qual reage, uma rua industrial, que curiosamente ―[...] parecia há muito ter esquecido no abandono a própria aparência: charme nenhum‖ (BRAFF, 1999, p. 75).

É interessante observarmos uma espécie de circularidade presente neste final, uma vez que

a cena do desfecho é semelhante a do início, fato que remete ao constante re-início da escrita e da experiência, semelhante ao circuito do ―tempo serpente‖ que morde incessantemente sua própria cauda, em movimento de eterna busca, de conclusão impossível para o narrador. Este procedimento de circularidade também é encontrado na poesia, conforme salienta Octavio Paz: ―[...] apresenta-se como um círculo ou uma esfera – algo que se fecha sobre si mesmo, universo

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auto-suficiente no qual o fim é também o princípio [...]‖ (PAZ, 1995, p. 83). Ao sobrepor início e fim, o conto de Braff tem como resultado a abertura de um círculo que não se fecha sobre si mesmo, engendrando algo como um movimento espiralado, uma viagem que requer a participação do leitor pelos ―ínvios caminhos‖.

Conclusão

Este artigo procurou descrever e discutir a permanência de aspectos impressionistas no

conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, de Menalton Braff. Não pretendemos, com este trabalho, reduzir a obra braffiana como impressionista, haja vista a distância de temporalidade que a separa dos primeiros impressionistas. Mas procuramos realizar um trabalho crítico de natureza dialógica, pautando-nos na permanência impressionista sobretudo no conto escolhido para análise. Assim, a leitura crítica do texto braffiano poderá suscitar novas leituras, que com esta possam dialogar.

A construção do discurso foi analisada, de modo a revelar pontos comuns à técnica da

narrativa poética ou romance lírico na medida em que o autor projeta a interioridade do narrador ao observar, em uma hostil rua industrial, a moça debaixo da chuva. Com alma de poeta, este narrador busca-se a todo o momento na observação realizada: ―Ela me encarou, e seu jeito de me encarar era um pedido de socorro: seu vestido azul, marcas da chuva, grudara-se-lhe nas pernas, deixando de gesticular‖ (BRAFF, 1999, p. 76).

A imagem distorcida da moça remete a uma espécie de mancha ou borrão, possibilitando

ao conto de Braff o retorno à tradição impressionista do século XIX. Ao escritor impressionista interessa sobremaneira os estados de alma de seus personagens,

privilegiando a análise psicológica em detrimento da narrativa centrada em peripécias exteriores. Neste sentido, além do caráter impressionista salientado, o conto de Braff também apresenta pontos de contato com as narrativas poéticas ou romances líricos.

As narrativas poéticas procuram dar um sentido à vida, instaurando forças que o texto põe

em jogo, como a procura por uma identidade, a força expressiva do íntimo, possibilitando ao personagem, e consequentemente, ao leitor, a realização de uma trajetória pessoal através dos textos.

O narrador reconfigura o cenário nada atraente de uma rua industrial, mediante um

processo de exaltação dos seus sentidos. O resultado é a construção de uma narrativa essencialmente subjetiva, lírica, beirando as raias da poesia.

Referências bibliográficas ANDERSON, Janice. A arte dos impressionistas. Tradução Ruth Dutra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. BRAFF, M. Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos. In: À Sombra do Cipreste: contos. Ribeirão Preto, São Paulo: Fábrica do Livro, 1999. FREEDMAN, R. The lyrical novel: studies in Hermann Hesse, André Gide and Virginia Woolf. New Jersey: Princeton University Press, 1963. HAUSER , A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995. PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. RAIMOND, M. La crise du roman. 5. ed. Paris: José Corti, 1966. TADIÉ, J. Y. Le récit poétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1978. TODOROV, T. Um romance poético. In: ______.Os gêneros do discurso. Tradução Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 100-111. (Ensino Superior)

Enviado – 05/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA: IMAGENS VISIVAS

PROPOSTAS PELA ARTE

Patrícia Colavitti Braga Distassi Profª Drª Faceres/USP

Mary Julia Dietzsc Profª Drª /USP

Resumo: O presente artigo tem como objetivos ampliar a reflexão sobre a formação de educadores, bem como sobre a utilização da arte como mediadora da formação da identidade docente por meio de imagens fecundas que propiciam a criação de imagens visivas e, possibilitam ao futuro educador, ver-se educador, preparar-se e tornar-se educador, antes de o sê-lo na prática cotidiana em sala de aula. Palavras-chave: Formação de Professores; Identidade docente; Arte. Abstract: This article aims to broaden the debate on teacher training, as well as on the use of art as mediator of identitY formation teaching through images that provide the fertile creation of the visibles images, and enable the future educator, see themselves educator, and prepare to become and educator, before be it in everyday practice in the classroom. Keywords: Teacher; Teacher identity; Art.

O artigo“Formação de Mediadores de Leitura – Intersecção entre Linguagens” advém de nosso interesse pela investigação acerca da formação e da prática do professor que medeia processos de ensino-aprendizagem que visam à formação do leitor. Esse trabalho é proveniente de um percurso que se iniciou em 2003, por meio da pesquisa desenvolvida para a elaboração de nossa tese de doutorado intitulada Na estrada dos enigmas, Leituras e Linguagens: imagem e palavra em cena, a qual foi concluída em 2006. Em parte desse trabalho, empreendemos uma pesquisa de caráter teórico-prático, em que investigamos a exequilibilidade da utilização da Arte (Literatura, Pintura, Fotografia, Música, Cinema e Teatro) como mediadora dos estudos sobre a formação de professores).

Os resultados por ele propostos apresentaram-se de modo muito satisfatório e, além disso, os objetivos foram superados quando reencontramos os sujeitos da pesquisa em cursos de pós-graduação e esses nos relataram que transpuseram as estratégias didáticas que foram utilizadas para sua formação enquanto leitores e enquanto professores leitores (mediação dos processos de ensino-aprendizagem pela arte) para a sua prática docente no Ensino Fundamental (1º. a 5º. Anos) e obtiveram resultados excelentes.

Esse relato impulsionou-nos a dar continuidade a nossos estudos sobre a leitura e seus processos

constitutivos e instigou-nos a revisitar a pesquisa anterior, para nela nos aprofundarmos e, provavelmente, extrair novas conclusões que pudessem se estender a outros docentes e auxiliá-los em seu trabalho.

A fim de ilustrar e alinhavar o percurso reflexivo e investigativo que orientou a concepção desse

projeto faremos, inicialmente, um breve relato de um recorte da pesquisa que serviu como uma das bases de nosso doutoramento e das conclusões suscitadas referentes à formação docente mediada pela arte e à leitura e seus processos constitutivos, bem como apresentaremos as conclusões iniciais que já obtivemos no processo de revisitação da pesquisa. Relato da Experiência Inicial: A arte como mediadora da formação do educador

Uma das experiências pedagógicas que foram objeto de nosso estudo (e que influenciou a

construção desse artigo) teve início quando ministrávamos, na mesma turma do Primeiro ano do extinto

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curso Normal Superior, as Disciplinas de “Comunicação, Educação e Tecnologias”, e ―Didática” e, durante as aulas, uma situação começou a se tornar recorrente: os processos de ensino-aprendizagem na disciplina “Comunicação, Educação e Tecnologias” revelavam-se mais eficientes e eficazes do que se mostravam na Disciplina de Didática_ vale ressaltar que, em vários momentos, os conceitos trabalhados na disciplina “Comunicação, Educação e Tecnologias” apresentavam um grau maior de complexidade e eram mais distantes do cotidiano dos alunos e dos conhecimentos e concepções prévias que possuíam. Esse fato estimulou ainda mais nossa curiosidade e nos levou a constatar a necessidade de uma investigação mais cuidadosa, a qual se iniciou pela análise e pela reflexão acerca de nossa prática docente, pois, os alunos eram os mesmos, assim como o professor, sua identidade e ações que antecediam as aulas eram idênticas; desse modo, haveria que se investigar o que mudava e poderia estar produzindo resultados diferentes.

A hipótese mais provável era a diferença de recursos técnicos e metodológicos que empregávamos

para mediar os processos de ensino-aprendizagem, pois, a Disciplina “Didática” era mediada por meio de aulas expositivas, dialogadas, trabalhos em grupo, realizados a partir de atividades mobilizadoras de pesquisa, reflexões, debates e resolução de problemas que articulavam fundamentos teóricos e necessidades educativas práticas, assim como também por atividades individuais, envolvendo pesquisa, análise e produção de textos; enquanto, isso, até pela natureza da disciplina, quando ensinávamos “Comunicação, Educação e Tecnologias”, orientados pelos norteamentos teórico-práticos apresentados por Read (2001) e Vigotski (1999), mediávamos os processos de ensino-aprendizagem pelo viés da Educação pela Arte e pela Educação Estética e, por ser assim, havia uma constante articulação entre fundamentos teóricos e várias linguagens artísticas; as aulas eram elaboradas a partir da apresentação de fundamentos teóricos, que eram exemplificados pelas analogias realizadas por meio de textos de diversas linguagens artísticas (pintura, literatura, escultura, teatro, música, fotografia, cinema) e midiáticas e da relação intertextual existente entre elas, de modo que um texto se relacionava e interferia no universo de sentidos do outro texto e, isso, parecia estimular nos alunos um sentimento de pertença às aulas, talvez provocado pela experiência estética e pela mudança da percepção e da visão de mundo que ela propicia.

Sendo assim, a partir dessa hipótese, elaboramos um plano de trabalho que modificava nossa

prática pedagógica nas aulas de Didática, a fim de comprovar ou refutar tal hipótese. Nesse plano de trabalho, foi de fundamental importância a afirmação de Charlot (2000:68): Toda relação com o saber é uma relação consigo próprio: através do “aprender”, qualquer que seja a figura sob a qual se apresente, sempre está em jogo a construção de si mesmo e seu eco reflexivo, a imagem de si. (2000:72)

Então, pelo norteamento delineado por essas idéias e pelos efeitos que a arte tinha no processo de

ensino-aprendizagem de nossos alunos na disciplina de ―Comunicação, Educação e Tecnologias‖, decidimos por uma investigar a exequibilidade da implementação da arte como figura do aprender mediadora da construção das relações com o saber e com o aprender as ciências da educação.

Propôs-se, assim, a utilização da Pintura para se estudar, pensar e concretizar os estudos sobre a

formação de professores, pois, desde o início dos tempos, a pintura é utilizada para retratar o humano e suas ações, além disso, são importantes elementos de registro histórico e funcionaram como direção de conduta para as gerações vindouras. Manguel em O espectador comum: a imagem como narrativa explica que:

Antes das figuras de antílopes e mamutes, de homens a correr e de mulheres férteis, riscamos traços ou estampamos a palma das mãos nas paredes de nossas cavernas para assinalar nossa presença, para preencher um espaço vazio, para comunicar uma memória ou um aviso, para sermos humanos pela primeira vez (2001:30).

Essa prática envolveu a sistematização de um percurso13 que tinha como objetivo acrescentar às

leituras teóricas específicas sobre a formação de educadores, às reflexões delas advindas, o encontro com as

13 O resultado desse trabalho foi publicado pela Revista Querubim por meio do artigo: Formação de Professores – As Cores da Metáfora. Revista Querubim. Ano 02 No. 03 – 2006.

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artes que revelam a história social por meio de suas retóricas singulares14. É importante ressaltar que ao estabelecermos analogias entre as ciências da educação e a arte e realizarmos a leitura das obras de arte, enviesadas pela educação buscávamos a formação do homem integral, pois, para Bakthin O homem, na arte, é um homem considerado em sua integridade (2000:115) e, portanto, não pretendíamos limitar o exercício da descoberta ou do pensamento expondo conclusões particulares, bem como não nos propusemos explicar as imagens, já que, como afirma Manguel em sua obra Lendo imagens:

Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens ―Não explicamos imagens‖ comentou com sagacidade o historiador da arte Michael Baxandall ―explicamos comentários a respeito de imagens.‖ Se o mundo revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica. ―A forma‖,escreve Balzac, ―em suas representações, é aquilo que ela é em nós: apenas um artifício para comunicar idéias, sensações, uma vasta poesia. Toda imagem é um mundo, um retrato cujo modelo apareceu em uma visão sublime, banhada de luz, facultada por uma voz interior, posta a nu por um dedo celestial que aponta, no passado de uma vida inteira, para as próprias fontes da expressão (2001:29-30).

A apresentação das imagens tinha o propósito de ―fecundar‖ o processo de ensino-aprendizagem,

pois, para Gardner em sua obra Arte, Mente e Cérebro, na leitura, as imagens que emergem dos textos literários e que são reveladas pelas obras de arte podem se tornar ―representações de imagens fecundas‖ (1999:98) que fazem gerar o pensamento complexo, criativo, próprio daqueles que são ―homens integrais‖15, oriundos da Paideia platônica.

Constata-se que nas aulas em que a as imagens estão presentes, o educador compartilha suas imagens

fecundas e estimula a produção das imagens fecundas no aprendiz, o que, por conseguinte, gera uma leitura que estimula a percepção, permite a fruição, a criação, o conhecimento; enfim, uma leitura que transcende a condição de objeto de informação e transvasa em direção ao que, poderíamos, metaforicamente denominar ―gravidez de idéias‖ pedagógicas, a qual é, essencialmente, mediadora da construção da identidade, da formação e da prática docente.

No desenvolvimento de nossas investigações, constatamos que a arte, em suas várias manifestações,

propõe, sobretudo, espelhos nos quais os sujeitos se vislumbram, negam-se, criam e recriam-se e dispersam-se para dar voz a novas possibilidades, enfim, encontram-se, reconhecem-se e se superam.

Observamos que, com a utilização da arte tanto nos percursos de formação docente quanto no

exercício da prática pedagógica, o docente abre perspectivas consideráveis para o desenvolvimento e êxito das atividades de leitura e dos processos de ensino-aprendizagem. Isso porque segundo Charlot:

A relação com o saber é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros. É relação com o mundo como conjunto de significados, mas também como espaços de atividades, e se inscreve no tempo. Precisemos esses três pontos. O mundo é dado ao homem somente através do que ele percebe, imagina, pensa desse mundo, através do que ele deseja, do que ele sente: o mundo se oferece a ele como conjunto de significados, partilhados com outros homens. O homem só tem um mundo porque tem acesso ao universos dos significados, ao ―simbólico‖; e , nesse universo simbólico é que se estabelecem as relações entre o sujeito e os outros, entre o sujeito e ele

14Aristóteles em sua obra ―Arte Retórica‖ define retórica como a arte de se fazer acreditar. Nesse sentido, a obra pictórica é concebida por meio de um intenso processo de elaboração realizado a partir de cores, tons, sombras, formas, que constituem imagens, as quais sugerem múltiplos sentidos e significados que nos encantam, manipulam, convencem da verdade especial, única que projeta. 15 Platão define Paideia da seguinte forma "(...) a essência de toda a verdadeira educação ou Paideia é a que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento" (cit. in Jaeger, 1995: 147).

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mesmo. Assim, a relação com o saber, forma de relação com o mundo, é uma relação com sistemas simbólicos, notadamente, com a linguagem. (2008:78)

Notavelmente, a abordagem trouxe a análise de obras de arte para o espaço das aulas de formação de

professores e auxiliou no desenvolvimento da habilidade de estabelecer relações, separações, análises e sínteses, de compreender o eco das entrelinhas de um texto, a organicidade da linguagem, a pluralidade de significados, a importância e o espaço que existe para a diversidade, enfim, ―utilizou princípios organizadores que permitiram ligar os saberes e dar-lhes sentidos‖ (MORIN,2003:22), já que o trabalho que desenvolvemos com os alunos se iniciou com a ruptura de uma postura passiva e instigou, estimulou e despertou a curiosidade que muito frequentemente é aniquilada pela instrução. O objetivo desse espaço de atividades16 foi encorajar, instigar a aptidão interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época (MORIN,2003:22).

Esperava-se, com tal procedimento, que o professor que concebe sua formação nesses moldes

tivesse mais possibilidades de ensinar para a superação da fragmentação e da superficialidade, a fim de que os seus alunos pudessem ler o mundo e a si mesmos, entendendo a relação simbiótica entre as partes e o todo e, não como se tudo fosse constituído por partes esparsas, que não se relacionam, não se complementam e não interagem. Esperava-se também que ao se depararem com olhares e respostas inesperadas, inusitadas (frutos das leituras de seus alunos) aceitassem-nas, surpreendessem-se positivamente com elas e investigassem sua natureza incomum, especial, inusitada, criativa e, não raro, poética.

Esperava-se, ainda, que para esses alunos, a leitura lhes propiciasse o prazer da descoberta do jogo

poético, da vitória dos sentidos e, por isso, quisessem repeti-la e se habituar a ela e aos seus sabores, lembrando que segundo o pensamento de Benjamin a lei da repetição, a lei que rege o mundo dos brinquedos, é focalizada como a alma do jogo, o que dá prazer à criança; ―o mais uma vez‖ lhe dá a experiência e o retorno, e com isso, a sensação que impulsiona a vida: a busca por ter a felicidade nas mãos e a repetição, que funciona como o senhorio da experiência, permite o hábito do saboreamento das vitórias; aliás, para Benjamim Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis os hábitos.

A intenção pedagógica e estética de nosso trabalho caminhou em direção contrária a daqueles que,

movidos por uma visão limitada, cerceiam o leitor, sua curiosidade, sua capacidade investigativa, criativa e, portanto, sua formação integral, como bem ilustra o poema ―Vento‖ do autor Manoel de Barros:

Vento Se a gente jogar uma pedra no vento Ele nem olha para trás. Se a gente atacar o vento com enxada Ele nem sai sangue da bunda. Ele não dói nada. Vento não tem tripa. Se a gente enfiar uma faca no vento Ele nem faz ui. A gente estudou no Colégio que vento é o ar em movimento. E que o ar em movimento é vento. Eu quis uma vez implantar um costela no vento. A costela não parava nem. Hoje eu tasquei uma pedra no organismo

16 Termo apresentado por Bernard Charlot em sua obra Da relação com o saber, o qual se refere à ação de se mobilizar a aprender e a fazer, por que o que foi ensinado fez sentido, ou seja, promoveu, por meio do encontro entre razão e emoção, o desejo de saber algo que pareceu significante porque promoveu um diálogo interior e o interesse pelo saber exterior.

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do vento. Depois me ensinaram que vento não tem organismo. Fiquei estudado. (Manoel de Barros, em “Poemas Rupestres”)

Buscando caminhos possíveis para uma educação de qualidade, pretendíamos contribuir com os

resultados que obtivemos e com as conclusões que elaboramos ao longo do processo e não conceber um modelo de prática docente ou de educador.

Com base nisso, esse trabalho apresentou um diálogo entre arte e realidade do ensino, entre o

homem e a arte que ele cria e que também o recria, o sintetiza e, às vezes, o supera, ou ensina a superar, bem como entre a Prática Pedagógica, a Filosofia e a Didática, para que, assim se pudesse fazer a Paidéia _ e a Maiêutica de educadores e de leitores e a leitura que para Barthes aparece fundamentalmente como (re) escritura (Orlandi, 1993:41) figurasse como alicerce para a aprendizagem dos vários saberes que se põem em conjunção para a formação do ser social.

Em consonância com nossas intenções, tal qual foi referido anteriormente, há três anos, recebemos na condição de pós-graduandos, alguns dos sujeitos da pesquisa anterior e, alguns deles relataram que fazem a transposição do exercício referido para suas práticas docentes com crianças e obtém muito sucesso, pois, verificam o desenvolvimento de suas habilidades leitoras e de compreensão do universo em que estão inseridos, assim como também se tornam aptos a perceber e a estabelecer relações intertextuais; vários foram os relatos de superação de situações de fracasso escolar, utilizando a arte como mediadora.

Mas, do ponto de vista estético, como e por que isso ocorre? O questionamento instaurado nos chamou a atenção para a necessidade de contribuirmos, em uma dimensão mais ampla, a priori, nos processos de formação continuada de professores de nossa comunidade, a fim de oferecermos-lhes mais uma possibilidade de apropriação dos saberes e práticas sobre leitura.

Para tanto, iniciamos um trabalho de revisitação das conclusões da pesquisa, a fim de compreendê-la por outros prismas e tornar seus resultados mais abrangentes, eficientes e utilizáveis como embasamento e norteamento para pesquisas de outros estudiosos.

As Conclusões da Pesquisa e a Revisitação dos Resultados: novos olhares para a produção da leitura e do discurso Na revisitação às conclusões da pesquisa realizada, ao longo desses quatro anos que sucederam a produção da tese, seja por meio do exercício enquanto docente e estudiosa das questões referentes à leitura, ou por meio do contato direto com os alunos que foram sujeitos de pesquisa na graduação e voltaram para fazer cursos de pós-graduação lato-sensu, alguns questionamentos se propuseram e, com eles, a constatação da necessidade de aprofundamentos de estudos, sobretudo no que se refere aos processos de relações entre diferentes textos e entre tais textos e leitores.

A investigação tomou como ponto de partida a análise do discurso, e, como norteamento teórico, nos embasamos nos estudos de Orlandi apresentados nas obras: A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso (1983), Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico (1993) e Discurso Fundador (1993), pois

Do ponto de vista da significação, não há uma relação direta do homem com o mundo, ou melhor, a relação do homem com o pensamento, com a linguagem e com o mundo não é direta assim como a relação entre linguagem e pensamento, e linguagem e mundo tem também suas mediações. Daí a necessidade da noção de discurso para pensar essas relações mediadas. Mas ainda, é pelo discurso que melhor se compreende a relação linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais (concretas) dessa relação (1993:12).

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Sob esse embasamento teórico (e também de outros aos quais faremos alusão adiante), analisamos a prática pedagógica anteriormente descrita e, nas conclusões delineadas, observou-se que em nossas aulas, além do desenvolvimento da dimensão teórica, científica dos conteúdos, promovemos uma articulação entre os alunos (suas histórias e memórias) e os conteúdos, que foi realizada por meio da inserção de um universo simbólico, proposto pela arte, e essa relação se configurou em um espaço de abertura e encontro entre textos e leitores, no qual se davam a leitura, a interpretação, a constituição de sentidos e, consequentemente, a aprendizagem. Acerca dessa noção de ―abertura e encontro‖ entre linguagens, leitores e textos é importante estabelecer outro dialogo com Orlandi, pois, a estudiosa explica que

A esta abertura da linguagem, isto é, não há linguagem em si, soma-se o que temos concebido como a abertura ao simbólico. Antes de tudo porque a questão do sentido é uma questão aberta, pois como afirma P. Henry (1993), é uma questão filosófica que não se pode decidir categoricamente. Por outro lado, não há um sistema de signos só, mas muitos. Porque há muitos modos de significar e a matéria significante é plural. Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem como os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação diversos: pintura, imagem, música, escultura, escrita, etc. A matéria significante _ e/ou a sua percepção_ afeta o gesto de intepretação, dá forma a ele (1993:12).

Ao propiciarmos o encontro, a interferência, a intersecção entre textos teóricos e textos artísticos,

possibilitávamos aos alunos a compreensão e a vivência da definição de leitura de Orlandi: Ler, como temos dito, é saber que o sentido pode ser outro. Mesmo porque entender o funcionamento do texto enquanto objeto simbólico é entender o funcionamento da ideologia, vendo em todo texto a presença de um outro texto necessariamente excluído dele mas que o constitui (1993:138). Assim como também propiciamos a experiência da interpretação enquanto injunção; para Orlandi, em sua obra Discurso fundador, isso significa que face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de “dar” sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito que fala, é constituir sítios de significado (delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação(1993:64), enfim, a interpretação é constitutiva, ou seja, não há sentido sem interpretação (1993:125).

Analisando-se nosso trabalho sob essa perspectiva, entendemos que nas disciplinas ―Didática‖ e

―Comunicação, Educação e Tecnologias‖, os processos de leitura e interpretação eram mediados de formas consideravelmente distintas.

No desenvolvimento do trabalho da primeira disciplina, os processos de ensino-aprendizagem se

baseavam mais na decodificação da linguagem e na tradução dos sentidos do texto (aqueles percebidos pelo docente responsável) para os alunos, o que acaba por estimular o desenvolvimento do que Orlandi, no capítulo Leitura e Discurso Científico denomina repetição empírica e repetição formal e que abaixo definiremos:

(...) há: a) a repetição empírica (mnemônica), b) a repetição formal e c) a repetição histórica (Orlandi, 1994). Na repetição empírica só há a retomada mecânica do dizer. É o efeito ―papagaio‖. Na escola isso se dá quando o aluno repete sem entender, sem formular o que é dito pelo mestre. A repetição formal, por sua vez, já põe em jogo a formulação da forma lingüística. Mas para aí. Há até ―bons‖ alunos que na prática da repetição formal ganham o reconhecimento do mestre. A repetição histórica é a que produz realmente conhecimento. É aquela em que o aluno mergulha o dizer em sua memória, o significa, elaborando sentidos que não só respondem a uma situação imediata mas lhe permite formulações outras, em outras situações de linguagem e conhecimento. Nesse caso, não só há transformação do estado de saber do aluno como ele pode mesmo deslocar o saber na memória da ciência, produzir deslocamento no arquivo. Aí ele estará produzindo ciência e não apenas ―decorando‖, ―devolvendo‖ o que lhe foi dito.

Retomando-se a afirmação já referida, a fim de compreendê-la por esse mesmo prisma, podemos concluir também que a mediação dos processos de ensino-aprendizagem da disciplina ―Comunicação, Educação e Tecnologias‖ produzia resultados mais relevantes, porque nos apoiávamos nas relações e

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intersecções estabelecidas entre o texto científico, as linguagens artísticas e os efeitos metafóricos por essa interação produzidos e os efeitos metafóricos são a base da constituição do significar, já que este movimento de transferência permite que o sujeito, no deslizamento próprio dos sentidos, inscreva-se nos processos discursivos, filiando-se a redes de memória ao mesmo tempo em que se desloca (Orlandi, 2003:139) e também porque neles prevalecia a repetição histórica, a qual era mediada justamente pela injunção de linguagens.

Por meio desse trabalho de pesquisa, constatamos, ainda, que quando propomos aos aprendizes a vivência de processos de ensino-aprendizagem mediados por relações intertextuais entre arte, cultura do sujeito e teorias educacionais apresentamos-lhes uma zona de desenvolvimento proximal que os mobiliza por propiciar o encontro entre o estranho e o familiar (e, por isso, um estranho interessante e significativo).

Nesse momento de interação, ocorre a ação decisiva da mediação e o sujeito caminha para resolver

o problema utilizando a memória, a sensibilidade, sua história, bem como os reflexos que o artista propõe de si mesmo e de sua forma especial de ver, imaginar e conceber o mundo e, então, assume a qualidade de leitor e também de co-autor; referimos ao leitor desse modo porque o leitor empresta os saberes acima assinalados à interpretação dos textos e isso lhe alça a um status de ―co-autor‖. Com a finalidade de melhor elucidar esse processo de ―co-autoria‖, retomemos a afirmação de Bakthin, em sua obra Estética da Criação Verbal: Vivenciar o autor, na própria medida em que esse este expressou através de uma obra, não é participar de sua vida interior (suas alegrias, seus desejos, suas aspirações) no sentido que vivenciamos o herói, mas é participar do escopo que orienta sua atividade com relação ao objeto expresso, ou seja, é co-criar (2000:83).

Parece ser nesses espaços de encontro entre leitor e texto, de co-autoria, de co-criação

possibilitados pela mediação e pela utilização da arte como mediadora que os diferentes textos se encontram, fazem e produzem efeitos, e também, parece ser na fronteira entre o texto, o desejo17 de compreendê-lo, o ―afetamento‖, a experiência estética18 (que a linguagem artística propicia), o empréstimo de experiências sensíveis pessoais e a compreensão racional que a leitura faz sentido, torna-se significativa e possibilita a produção e a percepção dos efeitos estéticos e de sentido de texto. Acerca da significância da leitura e à construção de sentidos, é pertinente retomarmos a afirmação de Charlot, pois,

Um enunciado é significante se tiver um sentido (plano sintático, o da diferença), se disser algo sobre o mundo (plano semântico, o da referência) e se puder ser entendido em uma troca de interlocutores (plano pragmático, o da comunicabilidade). ―Significar é sempre significar algo a respeito do mundo, para alguém ou com alguém‖. Tem ―significação‖ o que tem sentido, que diz algo do mundo e se pode trocar com os outros. Que será o sentido, estritamente dito? É sempre o sentido de um enunciado, produzido pelas relações entre os signos que o constituem, signos esses que tem um valor diferencial em um sistema. Ao traduzir (muito livremente) essa análise, para utilizá-la fora de seu campo, o da linguagem e da interlocução, proporei uma tripla definição: tem sentido uma palavra, um enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros em um sistema, ou em um conjunto; faz sentido para um indivíduo algo que lhe acontece e que tem relações com outras coisas de sua vida, coisas que ele já pensou, questões que ele já propôs. É significante (ou aceitando-se essa ampliação, tem sentido) o que produz inteligibilidade sobre algo no mundo. É significante (ou, por ampliação novamente, tem sentido) o que é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo e com os outros. (2000:56)

17Charlot explica que ninguém poderá educar se o aprendiz não consentir e colaborar, pois, uma educação é impossível se o sujeito não investe pessoalmente em seu processo de educação. Para o autor, toda a educação é impossível se a criança (ou adulto) não encontra no mundo o que lhe permite construir-se e ―toda educação supõe o desejo, como força propulsionadora que alimenta o processo. 18 A experiência estética ocorre quando há o contato entre o sujeito e a obra de arte; esse contato, porém, é catártico, e, por isso, diante dele a visão de mundo do sujeito muda.

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Então, por estar diante de uma atividade significativa e que faz sentido, o leitor deseja se apropriar

do saber, dos sentidos do texto e, no processo de mobilização19, no ―oferecimento e encontro de si‖, mediado pela arte, o leitor compara, separa, faz análise e síntese entre o que a imagem sugere, entre o que o texto afirma e entre suas memórias, conhecimentos e concepções prévias; e, dessa forma, o leitor/aluno associa o real, o científico e o simbólico e, por meio do fazer e da fala, se reconhece como um ser singular e, ao mesmo tempo, social e, por intermédio disso, transforma-se em um ser que sabe, que aprendeu para ser.20; nesse entremeio, a arte cumpre seu papel de ―linguagem que o artista cria para definir-se em relação aos outros‖ (Lewwis Strauss apud Gardner, 1999:43) pois, por meio desse fazer do artista, o leitor aprende, se identifica e se define, por meio da fala, para si mesmo e em relação aos outros.

Em sua obra Pensamento e Linguagem (2000), Vigotski afirma que a relação entre literatura e imagem é

entendida como um problema que exige a interação com o objeto, assim como também exige a fala; ou seja, a partir da observação, da interação com o objeto de arte, o leitor tem sua percepção estimulada e, dessa forma, sensações, pensamentos, sentimentos, memórias são desencadeadas e se constroem como imagens mentais e, às vezes, táteis que precisam ser verbalizadas e divididas socialmente e que, ao mesmo tempo, singularizam cada leitor.

Para exemplificar essa afirmação, é pertinente retomarmos uma aula do curso de Metodologia do

Ensino de Artes, na qual propusemos o desenvolvimento da percepção musical, a partir da audição da obra e da leitura de fragmentos do libreto ―As quatro estações de Vivaldi‖; ouvimos trechos da Primavera, do Verão, mas quando da audição do início do Inverno, alguns alunos disseram: ―nossa, a sala ficou fria‖ e, outros, espantados disseram ―é mesmo‖, e, de fato, tivemos a relação tátil e sensível de incômodo, causada por um vento gelado, que nos pareceu ter entrado pela janela da sala, a qual estava aberta sem causar desconforto (sensação de frio) a ninguém, desde o início da sala.

Posteriormente, talvez em uma tentativa de dar ―senso‖ ao sensível, de organizar por meio de

explicações lógicas, essa experiência quase subjetiva, é que as afirmações ―nossa, a sala ficou fria‖... ―é mesmo‖! foram seguidas pela análise, por reflexões e por sínteses que visavam a explicar os ―motivos estéticos‖ e físicos que, propiciaram essa percepção e sensação.

À luz desse diálogo com Vigotski, pode-se afirmar que a análise literária, e, diríamos, artística, será

sempre um fazer acompanhado pela fala (ou mesmo pela escrita); pois, é preciso que aquilo que foi construído internamente, a experiência estética, os pensamentos advindos disso, sejam organizados e verbalizados e, isso, exige do leitor o desenvolvimento da retórica e, consequentemente, um emaranhamento ainda mais profundo no universo da obra, articulando emoção e razão para transformá-los em linguagem verbal, em discurso lógico e coerente, em repetição histórica.

Nesse exercício de leitura, o inusitado, ―o frio‖ do inverno de Vivaldi, aquilo que, a priori, funciona

como a ―pedra no caminho de Drummond‖, parece emergir, ―desenvolver-se‖ da obra, com leveza singular. Esse vento ―leve21‖ percebido, sentido pelo leitor e, depois, ―desenvolvido‖ por palavras, é criado, antes,

19 Para Charlot, ―mobilizar é por recursos em movimento (...) é reunir suas forças, para fazer uso de próprio recurso (...) é também engajar-se em uma atividade originada por móbiles (móbil entendido como ―razão de agir‖), por que existem ―boas razões‖ para fazê-lo. 20Para Charlot, o homem, por sua natureza prematura e inacabada precisa aprender para ser homem; e, isso ele o faz na relação com outros homens, sua existência, seus diálogos e suas criações. 21 Utilizando-se o conceito de ―Leveza‖ enunciado por Calvino em sua obra “Seis propostas para o novo milênio”, no capítulo Leveza ―A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório. Paul Valéry foi quem disse [É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma]. Servi-me de Cavalcanti para exemplicar a leveza em pelo menos três acepções distintas: 1 – Um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência. (...) 2 – A narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração. (...) 3 – Uma imagem figurativa da leva que assuma um valor emblemático, como, na histórica de Boccaccio, Cavalcanti volteando com suas pernas esquias por sobre a pedra tumular. Há invenções literárias que se impõem à memória mais pela sugestão verbal que pelas palavras‖ (2000:28-30).

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lingüística e sonoramente, como explica Calvino ao referir-se a Dante em ―A Divina Comédia‖ e à Cavalcanti:

(...) quando Dante quer exprimir leveza, até mesmo na Divina Comédia, ninguém sabe fazê-lo melhor que ele, mas sua genialidade se manifesta no sentido oposto, em extrair da língua todas as posibilidades sonoras e emocionais, tudo o que ela pode evocar de sensações; em capturar no verso o mundo em toda a variedade de seus níveis, formas e atributos; em transmitir a ideia de um mundo organizado num sistema, numa ordem, numa hierarquia em que tudo encontra o seu lugar. Forçando um pouco a oposição Poderíamos dizer que Dante empresta solidez corpórea até mesmo à mais abstrata especulação intelectual(...) (1990:28)

A formação do leitor e a leitura tem, entre seus caminhos e encruzilhadas, a direção busca da leveza;

ressaltando-se que busca da leveza não é a sinônimo de referencialização da linguagem; mas sim o seu contrário: a do saber maior, da amplitude da visão, da amplificação do sons, enfim, do ver e do ouvir maiores.

A leitura e a produção de imagens visivas

Com o propósito de discorrermos acerca de nossas conclusões acerca da leitura e da produção de imagens visivas que figurarão entre os alicerces para a concepção da identidade docente, faz-se necessário reportarmos, mais uma vez, às práticas de leitura que mediávamos, as quais procuravam aproximar os fundamentos teóricos sobre a formação docente à realidade dos alunos e isso era feito por meio de intersecções entre textos teóricos, textos literários e visuais.

Nesse processo de ensino-aprendizagem, a arte propunha-se como mediadora da leitura e da

formação dos graduandos, pois, por meio de tal estratégia, estimulávamos o que Calvino denomina ―imaginação visiva‖, e, então, esses futuros professores mobilizados pelos sentidos simbólicos propostos pelas obras de arte, antes de sê-lo, imaginavam-se professores, sonhavam-se professores. Como afirma Calvino, referindo-se à Shakespearre, ―somos feitos da mesma matéria de sonhos‖; dessa maneira, se nossos ―sonhos‖ são feitos da mesma substância, é na busca da leveza que ocorrem os encontros, a mobilização, que o ser deseja aprender, porque ―Há boas razões para fazê-lo.

Retomando a discussão acerca da formação do professor, é importante pontuar que a identidade

profissional, tal qual a prática docente, inicialmente, delineava-se e se alinhavava no campo da imaginação. E, esse é um lugar, segundo Dante, referido por Calvino (2000), no capítulo Visibilidade ―dentro do qual Chove‖. Calvino explica que o verso ―a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove‖ e que esse é um verso do ―Purgatório‖ de Dante; ―Estamos no círculo dos coléricos‖ e Dante contempla imagens que se formam diretamente em seu espírito (...)‖.

Acerca dessa fala de Dante, Calvino explica que ―Dante está falando das visões que se apresentam a ele (ao

personagem Dante) quase como projeções cinematográficas ou recepções televisivas num visor separado daquela que para ele é a realidade objetiva de sua viagem ultraterrena‖.

Tal imagem literária em muito se assemelha às ações mentais, imagéticas que são desenvolvidas aos

processos de mediação da construção da identidade e da prática docente de um aluno de graduação, pois (...) toda a viagem da personagem Dante é como essas visões; o poeta deve imaginar visualmente tanto o que seu personagem vê, quanto aquilo que acredita ver, ou que está sonhando, ou que recorda, ou que vê representado, ou que lhe é contado, assim como deve imaginar o conteúdo visual das metáforas de que se serve precisamente para facilitar essa evolução visiva. (2000:98)

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Segundo Calvino, podemos distinguir dois processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à

imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal (2000:99). Nos cursos de formação de professores, utilizam-se os processos referidos pelo autor e, portanto, entendemos ser pertinente citar que

(...) o primeiro processo é o que ocorre normalmente na leitura: lemos, por exemplo, uma cena de romance ou a reportagem de um acontecimento num jornal, e conformem a maior ou menor eficácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante de nossos olhos, se não toda cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto. No cinema, a imagem que vemos na tela passou por um texto escrito, foi primeiro ―vista‖ mentalmente pelo diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidadade num set (...) Esse ―cinema mental‖ funciona continuamente em nós _ e sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema_ e não cessa nunca de projetar imagens em nossa tela interior.

O autor alude, ainda, que num filme, o resultado de uma sucessão de etapas, imateriais e materiais

nas quais as imagens tomam forma; nesse processo, o ―cinema mental‖ desempenha um papel tão importante quanto o das fases de realização efetiva das sequências.

O segundo processo pode ser exemplificado pelo que foi realizado no catolicismo da Contra-

reforma por Loyola, por meio das sugestões emotivas da arte sacra, com o qual o fiel devia ascender aos significados segundo o ensinamento oral da igreja,

Tratava-se, no entanto, de partir sempre de uma dada imagem, proposta pela própria igreja (...) O que caracteriza o procedimento de Loyola (...) é a passagem da palavra à imaginação visiva, como via de acesso ao conhecimento dos significados profundos. Aqui também tanto o ponto de partida quando o de chegada, estão previamente determinados; entre os dois abre-se um campo de possibilidades infinitas de aplicações da fantasia individual, na figuração de fantasia individual (...) O próprio fiel é conclamado a pintar por si mesmo nas paredes de sua imaginação aos afrescos sobrecarregados de figuras, partindo das socilitações que a sua imaginação visiva consegue extrair de um enunciado teológico ou de um lacônico versículo bíblico (2000:102).

É interessante referir, por meio das avaliações institucionais realizadas no âmbito dos cursos de

licenciatura, que as aulas consideradas mais interessantes para os alunos (segundo seus relatos em avaliações do curso) funcionam como propulsoras desse cinema mental que é gerado seja por meio de ilustrações promovidas por filmes, imagens, música, pinturas ou exemplos do cotidiano pedagógico dos professores ou de colegas que relacionam as teorias que estão vivenciando nas escolas em que trabalham como estagiários ou professores; ou seja, eles se interessam e dizem aprender melhor naquelas que se mostram estimuladoras da imaginação visiva; que lhes propicia o vislumbramento do futuro, no qual planejarão projetos, aulas, sequências didáticas, processos de ensino-aprendizagem e avaliações. Apesar disso, quase sempre, as aulas se erigem sob a árida apresentação de teorias científicas, escritas com uma linguagem pouco familiar, em especial aos ingressantes, o que dificulta a criação de imagens mentais.

Para Calvino “Mesmo quando lemos o livro científico mais técnico ou o mais abstrato dos livros de filosofia,

podemos encontrar uma frase que inesperadamente serve de estímulo à fantasia figurativa” (1999:105). No entanto, quase sempre, o aluno não sabe, em sua experiência enquanto leitor, de tal possibilidade.

E, talvez, por isso, torna-se difícil compreender e conceber novos fundamentos teóricos. Além

disso, ao tentar aprender e executar os processos de compreensão, separação, análise, síntese, o futuro professor, não raro, tem dificuldades em relacionar suas experiências anteriores com a escola (que é em sua essência distinta da proposta atual) aos norteamentos de identidade e prática docente apresentados pelo curso de formação superior e, por isso, torna-se um desafio vivenciar uma aprendizagem significativa que lhe permita a superação da realidade anterior, é como se ―chovesse na fantasia‖ dos futuros professores e,

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isso lhes propiciasse a sensação ou a consciência da travessia do purgatório, assim como a dificuldade de nele permanecer, o que muitas vezes, os faz recorrer às velhas concepções e práticas, inadequadas para os contextos nos quais, hoje, estão inseridos. Considerações finais

A luz de nossos estudos teórico-práticos concluímos que é preciso lidar com a imaginação para que

ela leve ao conhecimento da realidade; mas é preciso ver a verdade, ainda que, às vezes, indiretamente, por meio de múltiplas lentes; é possível, por meio da arte, vê-la como que por um espelho, com certo afastamento e domínio racional, porque como nos lembra o próprio Calvino, ―Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho” (1990:16).

Esse exercício configura-se em um recurso relevante para o professor que tem a tarefa de ―traduzir‖

o material novo e não-existente (texto teórico) para a linguagem própria da experiência do aprendiz e futuro educador. A imagem artística, nesse caso, funciona como espelho e ―imagem fértil‖ para criação das imagens visivas de cada aluno e para a formação de sua identidade e de sua prática docente. Bibliografia BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. Galvão. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes,2000. BRAGA, P.C. Formação de Professores – As Cores da Metáfora. Revista Querubim. Ano 02 No. 03 – 2006. CALVINO. I. Seis propostas para o novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHARLOT, B. Da relação com o saber – elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à Prática Educativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2003. GARDNER,H. Arte, mente e cérebro – uma abordagem cognitiva da criatividade. V Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas,1999. MANGUEL, A. Uma História da Leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia da Letras,1997. 2ed. _____________. Lendo imagens. Trad. De Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Claudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras,2001. MORIN, E. A Cabeça bem-feita – repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2003. ORLANDI, E.P. A linguagem e seu funcionamento- as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1983 _____________. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2004. READ, H. A Educação pela arte. São Paulo, Martins Fontes, 1982. RIOS,T.A. Compreender e ensinar- por uma docência da melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2001. VYGOTSKI, L.S. Formação Social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____________.Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____________. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes,1999. _____________ Psicologia Pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed, 2003. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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PARA ALÉM DO CORPO FABRICADO:

POSSIBILIDADES DO DEVIR EM EDUCAÇÃO

Melissa Probst Mestre em Educação (FURB)

Graduanda em História – licenciatura (UNIASSELVI) Integrante do Grupo de Pesquisa ―Saberes de Si‖

(PPGE – Mestrado em Educação / FURB) Professora do Núcleo de Educação à Distância Departamento de Pedagogia – UNIASSELVI.

Resumo A palavra ―corpo‖ é tão utilizada no cotidiano que, aparentemente, não há necessidade de se refletir sobre o seu significado. Esse trabalho, que tem base na dissertação de mestrado ―Corpo, Devir e Educação‖ e das discussões realizadas junto ao Grupo de Pesquisa ―Saberes de Si‖ caracteriza-se como teórico e pretende, discutir algumas concepções de corpo forjadas ao longo da história, buscando compreendê-lo na prática pedagógica. Partindo do pressuposto de que o discurso escolar representa uma forma sutil de controlar e disciplinar o corpo, tem-se, como objetivos discutir os conceitos de corpo, rizoma e devir pensando possibilidades outras para a educação escolar. Palavras-chave: Corpo. Escola. Devir. Abstract The word "body" is so used in everyday life that, apparently, there is no need to reflect its meaning. This work, which is based on the dissertation "Corpo, Devir e Educação" and discussions with the research group ―Saberes de Si‖ is characterised as theorist and want to discuss some conceptions of forged body throughout history, seeking to understand him in pedagogical practice. On the assumption that the school speech represents a subtle form of control and disciplinary body, has as objective to discuss the concepts of body, rhizome, becoming and other possibilities for the thinking school education. Keywords: Body. School. Becoming

Introdução

O corpo tem sido, nos últimos tempos, objeto de estudo de diversas áreas do pensamento: educação, psicologia, antropologia, sociologia, etc. Essa temática tem despertado cada vez mais o interesse dos pesquisadores na intenção de conhecer o corpo para além do modo como foi concebido, ou o modo que nos permitimos conhecê-lo até o momento. Nesse sentido, esse texto, que é parte da dissertação de Mestrado intitulada ―Corpo, Devir e Educação‖ e das discussões realizadas junto ao grupo de pesquisa ―Saberes de Si‖ (PPEG/ Mestrado em Educação – FURB), visa resgatar os conhecimentos científicos, civilizadores e industriais do corpo, buscando compreendê-lo no âmbito da educação. A partir dessa compreensão inicial, objetiva-se refletir sobre o corpo na escola, a partir de outros pontos de vista que não o mecânico e utilitarista.

Parte-se do pressuposto de que o corpo que se possui desde o nascimento, que cresce e se

transforma ao longo dos anos, quase sempre passa a ser tratado como acessório biológico. O corpo que hoje se percebe, e sobre o qual a escola fundamenta seu trabalho, foi fabricado de modo adequado a certos regimes de produção e submissão. Nele muitas vezes não há espaço para o movimento, a criatividade, a vida. Ao contrário dessa concepção, defende-se aqui que o corpo, mais do que uma máquina produtiva ou biológica, é um espaço de relações, de experimentação. Assim, falar do corpo é um aventurar-se por um universo ambíguo, pois o ―existir no mundo‖ é essencialmente corpo. O corpo é um modo de ser no e com o mundo, desdobrando-se nas potencialidades da vida.

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Se pensar o corpo pode ser também pensar sobre as formas que o constituem, sobre

modos e costumes, sobre a história e a cultura, sobre o gosto, o dever e o prazer da vida. Colocar o corpo em perspectiva é correr o risco de descobri-lo para além do corpo convencional, manipulado, passível de conhecimento e de controle. É lançar-se na imprevisibilidade, em que o desmembramento do corpo e a exploração sistemática de suas substâncias podem não trazer as respostas esperadas.

Desse modo, pensar o corpo no espaço de educação escolar é pensar também nas

emoções, desejos, pulsões, subjetividades. Um bom exemplo é a criança da qual fala Malaguzzi (1999), que ao mesmo tempo em que é uma, é também cem, ou seja, uma criança pode ser feita de cem possibilidades de existência no mundo; com muitas mãos, pés e movimentos; com diversos jeitos de ouvir, falar e se expressar; cheia de sonhos e alegrias; com a possibilidade de descobrir inúmeros mundos e criar outros tantos; cheia de amor, fantasias, imaginação e pensamentos.

O corpo e suas múltiplas formas

Estamos tão acostumados ao nosso próprio corpo pelo uso que dele fazemos no cotidiano que, aparentemente, não sentimos necessidade de se refletir sobre o seu significado. Esse corpo, porém, pode ser compreendido de diferentes maneiras. Uma dessas maneiras é ver o corpo como um conjunto de aproximadamente duzentos e seis ossos, dois metros quadrados de pele que correspondem a cerca de dezesseis por cento do peso do corpo, cerca de cento e vinte e cento e cinquenta mil fios de cabelos, seiscentos e trinta e nove músculos que são a chave dos movimentos, diversos tendões, muitas vísceras, glândulas e órgãos (olhos, ouvidos, coração, fígado, rins, esôfago, baço, estômago, pulmões, intestinos, etc.)... O sangue (hemácias, linfócitos, etc.) percorre em média noventa e seis mil quilômetros de veias e artérias espalhadas pelo corpo. Há ainda o cérebro, que além de ser o responsável pelo raciocínio, é quem controla todas as reações do ser humano.

A compreensão mecanicista de corpo reduz o ser humano a uma estrutura anatômica, que

é complexa sem dúvida, mas apenas uma estrutura física. O corpo humano, nessa concepção é então visto como uma máquina que, em condições naturais, funciona perfeitamente. Quando algo não vai bem, deve ser alguma "peça", órgão ou tecido que não desempenha bem sua função no conjunto da perfeita ―máquina humana‖. Esse é o modelo de corpo advindo do pensamento cartesiano. Descartes pode ser considerado um dos melhores representantes desse modelo de pensamento, que se formou nos séculos XVI e XVII. Nesse pensamento o relógio tornou-se o modelo de funcionamento do mundo, resultando na concepção mecânica do universo. Acreditava-se que inclusive o Homem fosse uma espécie de máquina capaz de mover a si mesma, submetido às mesmas leis do movimento que o resto do universo:

[...] julguemos que o corpo de um homem vivo difere daquele de um morto como um relógio, ou outro autômato (ou seja, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi construído, com tudo o que se exige para a sua ação, distingue-se do mesmo relógio, ou de outra máquina, quando está quebrado e o princípio de movimento pára de atuar. (DESCARTES, 1999, p. 107)

Outro fator que incidiu sobre os modos de ver e pensar o corpo é, conforme nos lembra

Leão (2007), a criação do conceito de ―civilização‖, na França renascentista, época em que a adoção de boas maneiras e costumes sedimentaram os modos de conduzir a vida de toda uma sociedade. Esses comportamentos, embora nascidos em uma classe social específica, foram difundidos para todas as classes sociais através dos chamados de ―manuais de civilidade‖. As marcas do prestígio e do status requeriam o controle dos gestos e posturas, o abafamento dos sentimentos e as regras de

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etiqueta, não apenas dos nobres da corte, mas de todos aqueles que vivem próximos a eles. Aos poucos, os códigos de civilidade que regiam a vida dos cortesãos foram difundidos para os demais estratos da sociedade, pelo processo de imitação, mas também de educação.

Soares (1998) lembra que no contexto social da Europa do século XIX, o corpo tornou-se

cada vez mais objeto de estudos e cuidados; multiplicaram-se as pesquisas sobre o movimento e sua utilização na vida cotidiana, particularmente, no mundo do trabalho. Sendo, essa Europa o lugar da formação de um novo homem e uma nova sociedade, baseada nos princípios do capitalismo. Nesse sentido, também o discurso científico sobre o corpo influenciou sobremaneira, pois, conhecendo o corpo e o funcionamento de suas engrenagens, era possível realizar o trabalho sem que o corpo fosse incorretamente utilizado, ou seja, sem que se utilizasse a força física de forma desmedida, o que acarretaria num gasto excessivo de energia.

Era objetivo presente na sociedade a eficácia do movimento, para o domínio do corpo com

finalidades de aplicações precisas do gesto nas guerras e nas indústrias. O corpo passou a ser concebido sob a ótica da produtividade, com necessidade de ser preparado/adestrado para a indústria. Passou então a ser pensado a partir de composições musculares e funções orgânicas. Com o conhecimento correto acerca desses mecanismos era possível afirmar ações previsíveis e controladas, voltadas para o aproveitamento do corpo enquanto utilidade para a vida cotidiana.

Acredita-se, porém que essas formas (essencialmente biológicas, mecânicas ou dos

preceitos civilizadores) de compreender o corpo tiram-lhe as potencialidades, a sua vitalidade e sensibilidade. Nesses modos de pensamento, as pulsões, o devir, a experimentação não fazem sentido. Compreende-se o corpo como muito mais do que uma máquina biológica racional, mas como mítico, festivo, dançante, capaz de sentir e provocar êxtase, amor e guerra. Ou, como diz Najmanovich (2002, p. 94) ―O corpo humano não é somente um corpo físico, nem pura e simplesmente uma máquina fisiológica; é um organismo vivo capaz de dar sentido à experiência de si próprio‖. Nessa perspectiva, o corpo pode ser compreendido como condição indispensável para a existência humana no mundo. O corpo na escola

Para compreender o lugar do corpo na escola não basta localizá-lo simplesmente ―depositado‖ na escola, pois são os fatos históricos e culturais que determinaram as formas de conceber o corpo na ação pedagógica.

Pode-se dizer, que desde o seu princípio, a escola e as práticas pedagógicas vem se

constituindo como elementos de modulação do corpo. Não se trata, porém, de uma negação do corpo, no sentido de ignorar a sua existência, mas sim no intuito de percebê-lo nos seus detalhes, e, através de dispositivos de disciplinamento atuar sobre esse corpo para torná-lo obediente enquanto potencialidade, reforçá-lo no sentido de torná-lo produtivo, seguindo a lógica produtiva da sociedade. Sobre esse modelo escolar, Gonçalves (2007, p. 32) ressalta que:

As práticas escolares trazem a marca da cultura e do sistema dominante, que nelas imprimem as relações sociais que caracterizam a moderna sociedade capitalista. [...] A forma de a escola controlar e disciplinar o corpo está ligada aos mecanismos das estruturas de poder, resultantes do processo histórico da civilização ocidental.

De modo geral a compreensão do corpo sob a ótica do mecanicismo e utilitarismo no

processo educativo ainda é predominante. Nesse modelo convencional da escola, o corpo inteiro é disciplinado para que passe a seguir comandos e executar tarefas repetitivas, baseando-se ainda no modelo do capitalismo industrial. Esse complexo ritual do corpo que se efetiva no cotidiano da

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escolarização é conceituado por Foucault como método que permite o controle minucioso das operações do corpo, o regime disciplinar de poder.

A escola, ao privilegiar o disciplinamento do corpo, com seus sofisticados mecanismos de

controle, parece alcançar maior sucesso ainda no que diz respeito ao controle das ideias, da criatividade, das emoções, dos desejos e das pulsões, das subjetividades, enfim, da experimentação de si e do mundo que a criança realiza na experiência vivencial. Depois de escolarizada a criança sabe reproduzir, copiar, mas pouco lhe resta de capacidade crítica para pensar ou criar intelectualmente. Para Foucault (2007), a atuação da disciplina ocorre, prioritariamente, em lugares fechados, tais como escolas, hospitais, prisões, etc., que possuem uma arquitetura panóptica.

As primeiras escolas foram construídas com o modelo arquitetônico das prisões para ser

possível vigiar e controlar. Na contemporaneidade, mesmo que ―remodelada‖ em termos arquitetônicos, o ambiente escolar permanece favorável às práticas de vigilância: nas salas de aula as carteiras são dispostas em filas, há câmeras nos corredores e pátios, a utilização do tempo escolar (aulas de 40 ou 50 minutos, interrompidas pelo sinal, a quem todos devem responder prontamente), o currículo composto por disciplinas isoladas que obedecem a uma ordem crescente de complexidade e dificuldade intelectuais (controle sobre o que ensinar e aprender), etc. Essas tecnologias de poder disciplinar, tem como objetivo torná-lo produtivo.

O discurso escolar sobre o corpo da criança representa assim uma forma sutil de controlar

todas as manifestações do seu ser, com o objetivo de colocá-lo em conformidade com a ideologia vigente. A disciplina do corpo e a sua organização são elementos fundamentais utilizados para alcançar os objetivos pedagógicos. Na escola a criança é forçada, pelos dispositivos disciplinares, a tornar-se o sujeito da aprendizagem.

Na escola, segundo Freire (2007), aprende-se muito melhor o hábito de sentar, do que de

refletir, pois, a escola parece ser o lugar onde melhor se aprende a permanecer sentado. Compara assim, a escola com a prisão, a mesma a que Foucault faz referência. A escola, nesse caso, torna-se uma instituição panóptica. Assim, as crianças (prisioneiras da instituição escolar) tornam-se vigiadas e controladas e, aos poucos, perdem sua espontaneidade, deixam morrer seu lado criança e tornam-se ―alunos‖. O corpo precisa conformar-se (ou seja assumir a forma desejada) para que as idéias possam ser controladas. A escola depaupera as potencialidades da criança, seus desejos, sua autonomia, massificando-a em prol de uma coletividade. Para que se tornem ―inteligentes‖ e produtivas, é necessário que estejam confinadas, controladas, disciplinadas. Rizoma e devir: possibilidades outras

Segundo Deleuze (2002), já não sabemos mais o que pode o nosso próprio corpo. Afinal, o corpo ultrapassa sempre o conhecimento que dele temos, a potência do corpo está além das condições que nos são dadas pelo conhecimento e, por mais que tenhamos consciência de certo conhecimento das potências do corpo, as potências do espírito nos escaparão.

Nessa direção, Giacoia Jr. (2002) lembra da imensa ignorância que cada um tem acerca do

próprio corpo, ignorância na qual se tateia às cegas e então o corpo permanece estranho, desconhecido, desprezado. Segundo o autor, há uma carência de alargamento das fronteiras da consciência e do discernimento para que se desperte a curiosidade em relação ao próprio corpo. Pensar o corpo comparado à máquina apenas empobrece e torna demasiado grosseira a dinâmica dos processos corporais. A curiosidade, a vontade de conhecer leva aos abismos e segredos do corpo, leva à realização de uma aventura ousada pelos labirintos da alma, da qual o corpo é apenas fio condutor.

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Uma forte tendência do mundo contemporâneo é igualar, ou seja, estabelecer

homogeneidades padronizadas, adequadas às várias formas ―industrializadas‖ da relação com o corpo: indústria da moda, indústria da beleza, indústria da diversão, do turismo, etc. O efeito que essa ―industrialização do ser‖ produz é esvaziar de sentido cada uma das singularidades humanas. Deixamos de ser entes singulares para nos tornarmos indivíduos, cópias de um mesmo modelo, massa humana.

O rizoma constitui-se em uma linha de fuga possível ao achatamento e esvaziamento dos

modelos científicos predominantes em nosso tempo, os quais reduzem a vida a aspectos mecânicos de genética, pois, como dizem Deleuze; Guattari (2000), num rizoma não há começo e nem conclusão, o rizoma está sempre no meio, é conjunção, é perpendicular, é movimento transversal.

A partir do conceito de rizoma o corpo é pensado para além justaposição de órgãos e suas

funções isoláveis. Então, o corpo não é simples matéria, não é passividade diante do mundo: é condição humana, condição para a vida enquanto existencialidade.

Devir é, conforme anunciam Deleuze; Parnet (1998, p. 10)

jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. [...] Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela [...].

Nesse sentido, o corpo em devir, mesmo considerando-se sua estrutura biológica, é capaz

de surpreender sempre, pois é formado nas interações com o mundo, ávido por informações, dotado de imaginação criadora. O corpo não é cadáver, máquina ou objeto, mas espetáculo da vida, possibilidade de subjetividades, edifício de pulsões, desejos e afetos, potencialidade criadora. O corpo em devir é paradoxal, incerto, desafiador. Mais do que invólucro da alma, é magia, risco e alegria, é ausência de fixidez, é sonho e fluidez das emoções, é possibilidade de construção de saberes, experimentações e constituição de singularidades.

Pensando os conceitos de corpo rizoma e devir, temos ciência de que nem sempre é fácil

relacioná-los prática pedagógica, porém, arrisca-se o palpite de que que as crianças, antes de sua matrícula na instituição escolar, vivem de forma plena o devir corporal. Para a criança, o mundo é feito de fantasias, sorrisos e brincadeiras, é lugar de expressão dos sentimentos através do lúdico, de mãos dadas com a vida. Crianças estabelecem amizades com diversas pessoas sem fazer questão de saber os seus nomes, conhecem personagens imaginários e com eles estabelecem relações divertidíssimas, acreditam que no mundo tudo é possível, encarando a vida como um mar de possibilidades.

Defende-se então a ideia de que a escola poderia ser um espaço que possibilitasse uma

maior mobilidade das crianças, sem que isso trouxesse qualquer prejuízo à sua aprendizagem; ao contrário, que o movimento e os desafios de construir outras formas de aprender auxiliem a criança na construção da autonomia, da inteligência e da criatividade. Nesse sentido, Kohan (2010, p. 13) lembra que

Educar é passar um tempo, um conto, uma relação. A educação é questão de narrativa, não de didática. Contar não é repetir, mas restituir. Como emuma fábula. Um saber fabuloso e fabulado, que se maravilha da fábula e da vida e, nesse maravilhar-se, doa mundo à vida e vida ao mundo.

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E, embora não tendo uma receita preparada para ser aplicada imediatamente nas escolas,

concorda-se com Trigo (2003) quando afirma que a música de PinkFloyd: The Wall, consegue ser um ótimo exemplo daquilo que a escola ―não deveria ser‖:

Não se quer uma educação com controle mental, que significa livros escolares medíocres e censurados, aulas expositivas com restrições a apartes dos alunos e cerceamento de comportamento. Não se quer sarcasmos por parte dos educadores que vêem o aluno como um inferior, destinado a exclusivamente receber as informações como se estivesse fazendo um favor à plebe ignara. (TRIGO, 2003, p. 80)

Considerações finais

A escola, ao perseverar no trabalho de controle do corpo, parece alcançar sucesso no que diz respeito ao controle das idéias, da criatividade, das emoções, dos desejos e das subjetividades, enfim, da experimentação de si e do mundo que a criança realiza espontaneamente. Controlando o corpo com o objetivo de torná-lo produtivo, a escola nada tem feito além de contribuir para a concepção de homem-máquina, autômato. A idéia de corpo em devir talvez seja uma das possíveis alternativas à essa concepção... Para tanto, é preciso que a escola permita que os ―alunos‖ ali matriculados sejam ―pessoas‖, em totalidade e complexidade, capazes de ressignificar a vida como acontecimento corporal.

Talvez essa pensar nessa possibilidade como proposta seja um tanto ousado, comparado ao

que se tem como compreensão de corpo ao longo de séculos. Mas a vida enquanto acontecimento é além das regras que visam a generalização, o acontecimento da vida no corpo, pelo corpo e através do corpo, é construção, criação, emoções e razões, paixão e pulsão que abre à possibilidade da experimentação do mundo.

O corpo, na perspectiva dos conceitos de rizoma devir é pensado como um todo

integrado, que nunca está finalizando, mas que, nas interações consigo mesmo, com os outros e com a realidade que o cerca, está em contante transformação. No caso da escola, um corpo em devir refere-se ao fato de que aprender e sentir prazer não são termos opostos. É possível aprender em movimento, no contato com os outros, no espaço alheio à sala de aula, na aproximação com o mundo que existe além dos espaços de confinamento.

Nas noções de rizoma e devir não existem fórmulas prontas e nem a linearidade do

pensamento. Pensar nessa perspectiva significa compreender a criança na escola como um ser em constante desenvolvimento e aprendizado em constante interação com os outros, com as coisas, com o espaço. Ou seja, é compreender o corpo como mais do que instrumento, como possibilidade de ação e integração, o corpo como agente das potencialidades humanas. Tudo isso parece significativo para que a escola supere seus dilemas de ser uma instituição de seqüestro, mal suportada pelos que a freqüentam cotidianamente. Referências DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ________; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000. ________; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DESCARTES, René. As paixões da alma. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 34 ed. Petrópolis: Rio de Janeiro, 2007.

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FREIRE, João Batista. Métodos de confinamento e engorda (como fazer render mais porcos, galinhas, crianças...) In.: MOREIRA, Wagner Wey (org). Educação física & esportes: perspectivas para o século XXI. 14 ed. Campinas: Papirus, 2007. GIACOIA JÚNIOR. Oswaldo. Resposta a uma questão: o que pode um corpo? In.: LINS, Daniel; GADELHA, Sylvio (orgs). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. 10 ed. Campinas: Papirus, 2007. KOHAN, Walter Omar. Devir-criança da filosofia: infância da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. LEÃO, Andréa Borges. Norbert Elias & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. MALAGUZZI, Loris. Ao contrário, as cem existem. In.: EDWARDS, Carolyn; GANIDINI, Lella; FORMANN, George. As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Artmed, 1999. NAJMANOVICH, Denise. Pensar/viver a corporalidade para além do dualismo. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. SOARES, Carmen Lúcia. Imagens da educação no corpo. Campinas: Autores Associados: 1998. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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À LUZ DA FONOESTILÍSTICA: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA DO POEMA

BRASIL, DE RONALD CARVALHO

Patrícia de Brito Rocha Doutoranda em Estudos Linguísticos

Universiade Federal de Uberlânida Profª da rede pública e privada

Cidade de Patos de Minas

Resumo: Este artigo tem como objetivo verificar os recursos estilísticos, sobretudo os expressivos de natureza sonora que convergem na função poética. Para tal, será feito um breve estudo acerca das possibilidades de uso dos fonemas expressivos da língua. Posteriormente, verificar-se-á o emprego desses fonemas no texto Brasil, de Ronald de Carvalho, de modo a perceber a forma de construção de seu texto, bem como a importância que a Fonoestilística assumes nessa construção. Palavras-chave: Fonoestilística, função poética, construção textual Abstract: This article aims to determine the stylistic features, especially the expressive nature of sound that converge on the poetic function. This Will do a brief study of the possible uses of expressive language phonemes. Later, there would be the use of these phonemes in the text Brasil, Ronald de Carbalho, in order to understand how to build your text, and the importance that the phonostylistics assumes this constrution. Key-words: phonostylistics, poetic function, textual construction Considerações introdutórias

Um texto, sob a ótica dos estudos linguísticos, pode ser analisado sob diferentes vias, sendo, recentemente, as mais conhecidas e renomadas, a Linguística Textual e a Análise do Discurso. Diferentemente, dessas duas, um texto, principalmente, de natureza poética pode ser melhor compreendido pela Estilística, ou seja,

―Bally definiu deste modo a estilística: ―Estudo dos fatos de expressão da linguagem organizada do ponto de vista de seu conteúdo afetivo, isto é, expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e ação dos fatos de linguagem sobre a sensibilidade.‖ ― A estilística, ramo da linguística, consiste, portanto, num inventário de potencialidades estilísticas da língua (―efeitos de estilo‖) no sentido saussuriano, e não no estudo do estilo de tal autor, que é um ―emprego voluntário e consciente destes valores.‖ (Dubois et all, 2001: 237)

Diante da dimensão afetiva que envolve a produção de enunciados, mais especificamente

aqui um poema, buscar-se-á fazer um inventário das possibilidades expressivas reveladoras de afetividade e de expressão da sensibilidade pela

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A Fonoestilística e sua contribuição na construção e textos poéticos A Fonoestilística

A Estilística volta parte de seus estudos para os valores expressivos de natureza sonora das palavras e dos enunciados. A esses estudos dá-se o nome de Estilística do som ou Fonoestilística22, sendo que a sua principal preocupação é o estudo dos fonemas e prosodemas, tais como a altura, a intensidade e a duração.

Sabe-se que os sons da língua incitam muitas sensações, dentre elas agrado ou desagrado, além de sugerirem ideias e impressões. É interessante notar que para a Fonoestilística o que é importante é a ligação existente entre significado e significante23, ou seja, a existência de uma correspondência entre os sentimentos e os efeitos sensoriais produzidos pela linguagem.

Nessa perspectiva, Martins(1989) coloca que a distinção entre a neutralização de caráter arbitrário do som linguístico acontece em três aspectos. A primeira é a imitação sonora que se dá na onomatopeia, figura que se preocupa em traduzir sons variados através dos sons da língua. A segunda é a transferência sonora, que provoca sugestão de impressões sensoriais e auditivas através dos sons linguísticos. Por último, há a correspondência articulatória, que promove uma correspondência ente os movimentos articulatórios da produção do som e da ideia que ele exprime.

É notório que os estudos da Estilística do som convirjam para a explicação dos recursos poéticos usados pelos autores na construção dos textos e, por isso, explique, sobretudo, a função poética proposta por Jakobson . Então, o potencial expressivo das consoantes e das vogais ser considerado o pilar central na construção textual que se expressa de duas maneiras, convencional ou fisicamente.

As vogais24, além de outras propriedades, podem ser apontadas como vogais orais e vogais nasais. As primeiras são os fonemas mais sonoros e livres de nosso sistema fonológico. Sob essa perspectiva, o emprego do [a], em termos estilísticos, objetiva a tradução de sons fortes, nítidos e imprimem às consoantes que acompanham essas impressões, além de que sua sonoridade dá a idéia (convencional) de claridade, amplidão e brancura. A vogal [i], por sua vez, traduz um som agudo, estridente, muitas vezes explicada por sua presença em palavras como grito, pio, apito; enquanto que, por outro lado, é imprimido a ela a noção de estreiteza , agudez em palavras como fio, fino, mini. Por último, as vogais [o] e [u] prestam-se a imitação de sons cheios e graves e ideias de fechamento e ruídos surdos, além de remeterem a ideias lúgubres e soturnas. Ainda no âmbito das vogais há as vogais nasais que exprimem sons velados e prolongados, ao passo que dão a sugestão de distância e lentidão.

Continuando a tratar do potencial expressivo dos fonemas, passar-se-á agora às consoantes, que o próprio nome diz , soam junto com (as vogais).

As consoantes oclusivas, [p],[t],[k],[b],[gu], são marcadas, estilisticamente, por um traço explosivo que reproduz ruídos surdos, secos, bem como batidas. Já as consoantes constritivas, [f],[v], pelo seu traço contínuo sugerem duração, o que faz com que elas expressem sons soprados, ao mesmo tempo que têm valor expressivo em palavras como: vento, fala, fofoca. As consoantes

22 A Fonoestilística também é compreendida como ―(...) uma parte da fonologia que estuda os elementos fônicos que possuem na linguagem humana uma função expressiva(emotiva), ou apelativa (conativa), não não representativa (referencial).‖ (Dubois et all, 2001: 2283,284) 23 Aqui parte-se da dicotomia saussureana, mas há um encaminhamento diferente do proposto por Saussure. 24 No inventário aqui proposto, consoante a Martins (1989), não se pretende explorar outras características das vogais, tais como vozeamente/desvozeamento, duração, tensão. Para tanto, confira Silva(2003).

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labiodentais [s],[z] produzem sons sibilantes. As fricativas palatais expressas pelo [x],[ch] imitam sons chiados. Posteriormente, tem-se as constritivas laterais [l],[lh] e as vibrantes [R] e [r] dando idéia de deslizar, fluir e rolar. Mas, o [R] duplo também presta-se à noção de atrito, ranger, vibração, sentidos em vocábulos como roer, arranhar, arrastar. Por último, há as consoantes nasais [m], [n], [nh] que se associadas adequadamente ao texto dão a impressão de suavidade, doçura, delicadeza.

A partir do exposto acima, pode-se apontar que a expressividade não acontece por si só,

ela é a soma de muitos valores, dentre as quais se apontam a escolha correta dos fonemas pelo poeta, a disposição textual e o essencial, a interpretação do leitor. Em grande parte dos casos, o poeta para explorar o potencial fônico das consoantes e vogais faz um uso repetido dela, o que gera as chamadas figuras de linguagem. Diante disso, elencar-se-á: a assonância, a aliteração,o homeoteleuto, a rima, a anominação, a paranomásia e a onomatopéia.

Por aliteração entende-se o processo de repetição de consoantes, enquanto que a assonância é o processo de repetição vocálica, sendo bom salientar que elas a sua existência na Estilística está condicionada à expressão de uma ideia. Outros processos de repetição sonora são o homeoteleuto e a rima. O primeiro restringe-se à repetição do final de palavras próximas, principalmente numa mesma frase, ou seja, em um texto em prosa. O segundo, por sua vez, é um recurso usado com maior exclusividade na poesia em que os finais das palavras coincidem de forma regular no fim dos versos.

Interessante observar também os processos de construção denominados anominação e

paranomásia. A anominação ocorre quando existe a utilização de palavras com radical iguais (beija, beijando) numa mesma frase ou em frases próximas, já a paranomásia é uma figura que tem como objetivo aproximar palavras com sonoridades análogas (cumprido,comprido).

Por último, há a onomatopeia25 que se presta, muitas vezes, a repetir fonemas e, até mesmo, palavras inteiras. Seu intuito com isso é reproduzir foneticamante ruídos ou ―sons falados‖, ou seja, segundo Martins(1989) é a transposição para a língua articulada humana de gritos e ruídos inarticulados. A onomatopeia é dividida em três níveis: acidental, propriamente dita e lexicalizada.

Primeiramente, a onomatopeia acidental intenta a reprodução de um ruído, ou melhor, tentar imitar um ruído por um grupo de sons da língua. Tome-se, como exemplo, a reprodução do som do vento que leva em consideração a repetição das fricativas [f] e [v]. Além disso, a onomatopeia propriamente dita já é um objeto sonoro definido e com valor significativo dentro de uma comunidade linguística. Em textos em português, encontra-se ―au-au‖ como onomatopéia para o latido do cachorro; em inglês, a onomatopéia é ―barc-barc‖. Por último, há a onomatopéia lexicalizada, ou seja, aquela cujo significado já veicula numa frase como um termo sintático. Um exemplo clássico em português é a palavra ―bem-te-vi‖, em ―O bem-te-vi tem um belo canto.‖, onde ―bem-te-vi‖ assume posição sintática de sujeito.

Em consonância com o estudo acima empreendido segue-se a análise do poema ―Brasil‖ de Ronald Carvalho, buscando nele elucidar os aspectos ora levantados. A Fonoestilística e o poema Brasil, de Ronald Carvalho26

A temática do poema em questão é mostrar a diversidade existente no Brasil e, para isso, o poeta explora os sons e a expressividade advinda deles, buscando ressaltar as ―paisagens‖ brasileiras

25 A onomatopeia é alvo de discussões acerca da arbitrariedade da língua (confira Saussure()). 26 É válido ressaltar que, na análise aqui proposta, os recursos prosódicos não foram explorados devido a maior dificuldade de encontrá-los em um texto escrito sem marcas evidentes.

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através das palavras. Dessa forma, o poema constitui-se em um quadro dessa realidade contada a partir da percepção do poeta.

Como o poeta se propõe a mostrar o Brasil e isso ocorre através da construção sonora, ele coloca no início (da maioria) das estrofe a seguinte fala: ―Eu ouço(...)‖ e, logo a seguir, constrói os versos que remetem o leitor aos sons que ele ouve. Já na primeira estrofe, o poeta já explora um fenômeno estilístico que é a aliteração em [p], que remete à ideia de batida da palma e da pedra. Ainda nessa estrofe existe uma assonância em [a] que traduz a claridade dos raios solares, sendo que essa claridade é característica de um país tropical. Em vista disso, veja a seguinte estrofe:

Nesta hora de sol puro palmas paradas pedras polidas claridades faíscas cintilações (CARVALHO,1960:44)

Na segunda estrofe,

Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu correndo na ponta das rochas nuas, empinando-se no ar molhado, batendo com as patas de água na manhã de bolhas e pingos verdes; ( CARVALHO,1960:43)

há uma relevância sonora da palavra tropel, quando o poeta diz ouvir o som dos cavalos, pois essa palavra leva o leitor a ouvir o trotar dos cavalos, embora se o poeta tivesse substituído tal palavra por cavalgar, não teria alcançado nos leitores a mesma perspectiva. Em seguida, a melodia a que o poeta faz referência é o barulho do rio Amazonas:

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara e grave melodia, Amazonas, a melodia de tua onda lenta de óleo espesso, que se avoluma e se avoluma, lambe o barro das barrancas, morde raízes, puxa ilhas e empurra o oceano mole como um touro picado de farpas, varas, galhos e folhagens; ( CARVALHO,1960: 44)

No trecho supracitado, há uma exploração de sons nasalizados, que dão a ideia da longa

distância que o maior rio do Brasil percorre até chegar ao mar. Isso porque na oposição oral/nasal, as vogais nasais apresentam maior duração.

Após descrever esse ambiente da Região Norte do Brasil, o poeta passa a fazer a

descrição da Região Nordeste. Para exprimir a aridez dessa região e sua terra que estala ao sol ardente, o poeta explora o som da consoante [t] nas palavras terra, estala, ventre, quente que se associam em duas palavras (terra, estala) à vogal [a] , demonstrando, dessa forma, um ruído forte. Há a continuação da ideia de terra quente com a palavra ferve, que significa algo em estado muito quente, mesmo que em um contexto diferente do qual ela é usada. Além de ferver e estalar, a terra se levanta em torrões, que rolam pela estrada e pelo caminho, desfazendo-se:

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Eu ouço a terra que estala no ventre quente do nordeste, a terra que ferve na planta do pé de bronze do cangaceiro, a terra que se esboroa e rola em surdas bolas pelas estradas de Juazeiro, e quebra-se em crostas secas, esturricadas no Crato chato;( CARVALHO,1960: 44)

Uma outra imagem explorada sonoricamente dá uma impressão violenta conseguida pelo

emprego da aliteração dos sons surdos das oclusivas [k] e [t] empregadas com o intuito de expressar o quebrar das crostas. Anterior a isso, no verso ―que se esboroa e rola em surdas bolas‖, o poeta explora a assonância em [o] dando a noção de movimento circular das bolas de pedras e também a aliteração em [R] para contribuir na sonoridade do atrito delas com o chão.

A seguir, continua a exploração da sonoridade nordestina, só que agora se fala no chiar das

caatingas e, para tal, o poeta coloca um excessivo número de palavras com a vogal [i] exprimindo o som estridente dos animais, enquanto que a aliteração do [z] e do [s] produz o som do chiado:

Eu ouço o chiar das caatingas – trilos,pios, pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos que picam os bordões que ressoam retesos, tímpanos que vibram límpidos, papos

que estufam, asas que zinem, zinem, rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas longas, langues – caatingas debaixo do céu! (CARVALHO,1960:44)

Percebemos, então, a contraposição das duas estrofes estudadas anteriormente , visto que,

mesmo num lugar árduo e seco, há também sons cantantes de animais, como o pio e o cri-cri que, de certa forma, alegram-no. Para a construção desses sons de animais, nota-se a presença da onomatopeia em ―pio‖ (som de pássaros) e ―cri-cri‖ ( som do grilo).

Em ―Eu ouço os arroios que riem‖, a vibrante dupla [R] imita o barulho da possível risada

do pequeno riacho no seu curso e com a aliteração ―(...) limo das leiras e das locas‖ fica nítido o fluir do regato, exprimido pela consoante [ l].

A estrofe que se segue tem como base fônica as onomatopeias :

Eu ouço as moendas espremendo canas, o glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o tinir das tigelinhas nas seringueiras; e machados que disparam caminhos, e serras que toram roncos , e matilhas de ―Corta- Vento‖ , ―Rompe- Ferro‖, ―Faíscas‖ e ―Tubarões‖ acuando Suçuaranas e maçarocas, e mangues borbulhando na luz, e caititus tatalando as queixadas para os jacarés que dormem no tijuco morno dos iguapós...( CARVALHO, 1960:44)

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Fica claro o emprego de três onomatopeias lexicalizadas nas expressões: tinir das tigelinhas

(tinir), mangues borbulhando (borbulhar), caititus tatalando (tatalar) e uma onomatopeia propriamente dita: o glu-glu do mel ( glu-glu). Em vista disso, aponta-se que o emprego dessas onomatopeias dá evidência aos sons típicos do lugar descrito. Isso posto, em ―Eu ouço todo o Brasil, cantando, zumbindo, gritando, vociferando!‖, há um homeuteleuto, demonstrando, assim, os vários sons do Brasil, que mesmo tão diferentes, aos nossos ouvidos ecoa igual.

A próxima estrofe constrói-se na base de um paralelismo somado a uma construção que

coloca as palavras remetendo ao som que as caracterizam. Nos sete primeiros versos, há a forma SUBSTANTIVO+QUE+VERBOS, de modo que o substantivo é caracterizado sonoricamente pelo verbo. Veja na exposição abaixo:

SUBSTANTIVO VERBO SONORIDADE DO VERBO

Redes Balançam à – som nasalizado – dá a cadência de movimento.

Sereias Apitam I – som agudo – dá a noção do canto da seria e sua delicadeza.

Usina

Rangem

Martelam

Arfam

Estridulam

Ululam

Roncam

R- atrito- remete ao barulho das rodas das usinas.

T – batida – batidas constante dentro da usina.

F- sopro-movimento constantes dos pistões.

T – batida- som estridente.

U- uivo - som lúgubre.

R – vibração – dos motores.

Tubos Explodem P – explosão.

Rodas Batem B – batida dos martelos.

Trilhos Trepidam T – batida insistente.

Continuando a construção sonora do texto, o poeta coloca sons onomatopaicos

lexicalizados como relincho, aboiado e mugido para identificarem-se com os sons dos animais que

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ficam nas campinas. Além disso, coloca o repique dos sinos, que lembram as igrejas, e os estouros de foguetes que lembram as quermesses para associá-los aos sons das cidades e à sua religiosidade. Veja:

(...) repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro-Preto, Bahia, Congonhas, Sabará, vaias de Bolsas empinando número como papagaios, tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus, vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão! (CARVALHO,1960: 45)

Além de todos aspectos relacionados ao conteúdo afetivo, um último recurso identificado foi o de o poeta fazer o uso das reticências na seguinte estrofe: ― Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar...‖, em que ele as usa para indicar a amplidão e o alcance das conversas ali descritas. Considerações finais De acordo com o apresentado no trabalho, fica claro que, como não poderia ser diferente, a função poética utiliza-se dos recursos da Estilística do som para conseguir uma maior expressividade. Muitas vezes, o leitor não reconhece esses recursos, mas a sua percepção é aumentada quando o autor faz uso de recursos que o levem, sonoricamente, a determinados significados. Especificamente no poema ―Brasil‖, percebe-se a exploração da sonoridade pelo autor em pontos interessantes, tais como na introdução das estrofes com os dizeres: ―Eu ouço (...)‖ e, logo depois, com a inserção de palavras que remetem o leitor aos sons que ele diz ouvir, levando-o a ouvi-los também. Além disso, o emprego dos recursos Fonoestilísticos serviu também para que o poeta ressaltasse a sonoridade dos lugares do Brasil, como o norte, nordeste e sudeste, o que é visível para as pessoas que possuem um conhecimento sobre as mais diversas culturas brasileiras. Conclui-se, dessa forma, consoante à Bally, que a Estilística é a ―expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e ação dos fatos de linguagem sobre a sensibilidade.‖

Referências bibliograficas

CARVALHO, Ronald de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Agir, 1960.Coleção Novos Clássicos. pp.43-46. MARTINS, Nilse Sant‖Ana. Introdução à Estilística. São Paulo: Ática, 1989. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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LITERATURA, LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTUAL: INTERSECÇÕES

Patrícia Colavitti Braga Distassi Profa. Dra. FACERES/USP

Resumo: O artigo pretende mostrar que ensinar a produzir textos, longe da crença comum, não é simplesmente transmitir conhecimentos sobre definição de gêneros, modalidades e estrutura formal de produções discursivas; é sim um ato de extrema complexidade, pois exige que o leitor e, posteriormente, o produtor de textos, primeiramente, se emaranhe no tecido e na estrutura textual alheia para desvendá-los e, depois possa, finalmente, criar o próprio texto. Palavras-chave: Literatura; Mito; Ensino-aprendizagem Abstract: This article shows you how to produce texts, far from The common belief, is not simply to impart Knowledge about the definition of genres, modalities and formal structure of discursive production, but rather an act of extreme complexity, because it requires the reader and later, the producer of texts, primarily, is entangled in the fabric and textual structure unrelatde to unlock them and then can finally crete their own text. Keywords: Literature, Myth, Teaching and learning

Durante o desenvolvimento de nossa pesquisa, pudemos confirmar que ensinar a produzir textos,

longe da crença comum, não é simplesmente transmitir conhecimentos sobre definição de gêneros, modalidades e estrutura formal do discurso; é sim um ato de extrema complexidade, pois exige que o leitor e, posteriormente, produtor de textos, primeiramente, se emaranhe no tecido textual para desvendá-lo e, depois, finalmente, criá-lo e reconstruí-lo sob a luz de outras perspectivas propostas ou impostas pelas situações em que o sujeito precisa produzir textos e expressar seus pensamentos, imaginação e experiências estéticas.

Seguindo essas hipóteses, partimos do fato de que, para tanto, é preciso promulgar uma relação

dialética entre o conhecimento das produções artísticas da humanidade em sua multiplicidade de linguagens e processos de leitura complexa, vivência estética e convivência prática com as estruturas poéticas; produzidas nas várias dimensões da linguagem; além disso, também é necessário desenvolver o poder de recriação, de síntese e de superação da realidade; o que não é necessariamente nato e, portanto, pode ser desenvolvido.

Durante o desenvolvimento de nosso trabalho, aprendemos que ensinar a produzir textos é

ensinar ao indivíduo a perceber a si mesmo como ser integral, complexo, auxiliando-o a se conscientizar do seu papel enquanto ator social e a compreender que cada produção que proferir não será apenas o desenvolvimento de idéias ou fatos prenunciados por um título, será uma reação estética, cujo objetivo não é a repetição de qualquer situação real, mas a superação e o triunfo sobre ela (Vigotski, 2003:232). Enfim, compreendermos que utilizando a arte como mediadora do processo de ensino-aprendizagem é uma das maneiras de contribuir para despertar o interesse para a produção elaborada, pela compreensão de que o texto verbal (ou não) parece completar a vida e ampliar suas possibilidades, pois: A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida e o27 que está por trás dela (2003:313). E, ainda, de que seu uso se justifica pelo fato de que é um instrumento capaz de promover a superação da realidade, já que:

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Do ponto de vista psicológico, a arte é um mecanismo biológico permanente e indispensável de superação das estimulações não realizadas. As emoções não realizadas na vida encontram vazão e expressão na combinação arbitrária dos elementos da realidade, antes de tudo na arte. A arte não só dá vazão e expressão a emoções várias como sempre as resolve e liberta o psiquismo da sua influência obscura. (1999: XIV)

Sendo assim, compreendemos que ensinar a escrever ou criar qualquer outra forma de expressão

textual transcende o ato de colocar ―os sentimentos no papel‖ como muito já se alardeou e fez, pois isso seria minorar a importância da ação que surge inicialmente como o mais forte instrumento na luta pela existência, e não se pode admitir nem a idéia de que o seu papel se reduza a comunicar sentimentos e que ela não implique nenhum poder sobre esse sentimento (1999:310), pois ela os supera; assim, é necessário propor atividades que promovam a supremacia da catarse sobre o sentimento vivo e não direcionado para a criação e, por isso, estéril.

Aprendemos, ainda, que a educação norteada pelo viés artístico cumpre a função de permitir a

ampliação do pensamento e das habilidades de criação, pois ensina e incita o diálogo entre o real e o imaginário e a produção advinda desse trânsito que a criança faz. Aquele que experiencia a aprendizagem deve poder realizar sua própria síntese criativa, de modo a poder se inserir nos valores sociais de forma autônoma e inteira, destinando a totalidade do seu ser à construção social e coletiva.

Em sua obra Psicologia da Arte Vigotski afirma que embora ensinar o ato criador da arte seja

impossível, o educador deve contribuir para sua formação e manifestação. Vale lembrar que o conceito de produtor de arte, ou de artista, que utilizamos e pelo qual trabalhamos é o conceito de artista de Read, e, por isso, buscamos a formação de um sujeito capaz de fazer com competência aquilo que lhe foi proposto e, não necessariamente, alguém capaz de fazer com genialidade aquilo que lhe foi proposto. E isso ocorre se:

Através da consciência penetramos no inconsciente, de certo modo podemos organizar os processos conscientes de maneira a suscitar através deles os processos inconscientes, e todo o mundo sabe que qualquer ato artístico incorpora forçosamente como condição obrigatória os atos de conhecimento racional precedentes, as concepções, identificações, associações, etc. (...) S. Malojavi tem sua razão ao dizer que o ato artístico é ―o processo concluído, embora não acionado, da nossa reação a um fenômeno. Esse processo... amplia a personalidade, enriquece-a com novas possibilidades, predispõe para a reação concluída ao fenômeno, ou seja, para o comportamento, tem sua natureza um sentido educativo. (1999: 325).

Dessa maneira, é que perseguimos por anos, a concretização de uma prática a partir da reflexão e

de um percurso norteador do ensino de leitura e produção de textos, a partir dos sentidos da palavra educare. Para tanto, elegemos a arte, em especial a Literatura, como a mediadora dos primeiros sentidos de educare, que como já definimos anteriormente significa: alimentar, criar e fazer sair.

Assim, a Literatura figura como adjuvante do processo de produção do discurso verbal e não-

verbal e, por apresentar em seu produto (o texto literário) o processo criador da expressão da reação estética proporcionada pela relação de artistas com sua realidade. Dessa forma, é uma manifestação artística que também ensina, e o faz por intermédio de uma didática da ilustração e das técnicas de criação aventadas por procedimentos de leitura, podemos buscar, no diálogo entre as necessidades pessoais, a vivência estética, propiciada e provocada pela arte e as manifestações culturais e artísticas da humanidade, elementos norteadores para a concepção do ato criador. A Literatura será, então, o fio que ensina e se propõe a transcender o bastidor, no ritmo da história das criações humanas.

E, dessa maneira, por meio da interação e da mediação feita pelas artes, podemos encontrar o

―social em nós‖ e, agora, não somente por meio da mediação da Literatura, mas, principalmente por meio das artes cênicas e visuais, devemos colocar em prática o último sentido de educare, que corresponde a fazer sair, a promover a maiêutica, ou seja, trazer à luz o produto final da percepção sensorial e do despertar de

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uma atividade mais complexa:

(...) a transferência do acento principal para o momento de resposta da reação ante impressões sensoriais que chegam de fora. Nesse sentido, podemos dizer claramente que a vivência estética é estruturada conforme o modelo exato de uma reação comum, que necessariamente pressupõe a presença de três componentes: excitação, elaboração [processamento] e resposta (Vigotski-2003:229)

Marcações de cena para uma performance no real

Acreditamos que a produção textual é um ensaio para a produção das cenas da vida: cenas épicas, líricas e dramáticas, pois, personagens, eu-líricos e heróis constróem sua realidade por meio de seus pensamentos e de suas ações, bem como pela ausência deles, enfim, de um repertório que mescla visões promulgadas especialmente pela leitura, pelo real e pelo imaginário. Essa crença encontra fundamento no ensaio Itinerantes e Itinerários na Busca da Palavra de Dietzsch e Silva que afirmam:

Importa que a criança assuma e escute o eco de sua voz e aprenda que as palavras, inclusive as suas, podem fazer diferença no mundo, seja em termos políticos, estéticos ou científicos. Percebam ainda os alunos que a escrita dá voz ao escritor, ao poeta, ao historiador, ao cientista, ao advogado, ao ecologista. Vivendo nesse mundo onde ressoam vozes de tantas personagens e diferentes pessoas, a criança vai adquirindo autoridade para dialogar com outros textos e criar o seu próprio, partindo e ensaiando em sala de aula os muitos tons que poderá ter sua própria voz (1994:62-63).

A importância de se dominar os processos de composição textual assume dimensões muito

maiores quando a observamos dessa maneira, pois se o sujeito não tem habilidades para imaginar, estabelecer objetivos, lidar com desejos e pesadelos e construir formas de realização ou resolução desses, ficcionalmente, (o que seria uma forma de ensaio para o espetáculo da vida futura) será ele capaz de fazê-lo com excelência na sua estréia enquanto ser social, atuante em uma sociedade?

Criar um texto a partir de um tema ou de uma proposta se assemelha a criar soluções para se

resolver problemas em casa, no trabalho e em outras situações de atuação social. Por isso, acreditamos que um dos instrumentos mais valiosos que a escola pode oferecer para a formação e preparação do sujeito para desempenhar a sua cidadania, para evoluir enquanto homem e enquanto profissional seja a competência para ler e para produzir textos nas várias modalidades de linguagens e para torná-los ação prática para a vida. Tornar um texto ação prática significa dizer que o educador deve mostrar ao seu aluno que aquela produção tem um sentido prático, que é algo que ultrapassa o cumprimento de um objetivo e de um exercício lingüístico e atinge um sentido social. Mas, para isso, é necessário se construir um percurso em que se mescle conhecimento, sistematização, interesse, criatividade, identificação e necessidade, já que, segundo Clarice Lispector temos fome de saber de nós e grande urgência.

Em nossa experiência enquanto educadora nas áreas de Literatura e Produção Textual, nos

Ensino fundamental, Médio e Superior, pudemos observar que, muitas vezes, faltam, para os alunos, referências e fundamentos para o desenvolvimento da leitura e para concepção de textos verbais e não verbais. Os alunos, em grande parte das situações em que se propõe a construção textual, sentem-se compelidos_ talvez por conta de uma falsa idéia que o senso comum instaurou_ a esperar que a inspiração lhes derrame uma idéia, um texto pronto, sobre as suas cabeças.

Diante disso, embasados em estudos elaborados por teóricos da teoria literária, explanaremos a

sistemática de nosso trabalho, que se apresenta por meio de uma breve fundamentação teórica, extraída de exercícios de leitura, realizados em sala de aula e de estudos e da posterior produção de textos que relacionam arte e realidade.

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A Arte Flagrada em Nós O ato de se expressar se constituiu em um ―nó‖ no qual a humanidade está entranhada; é muito comum assistirmos a exibição do fracasso associada à falta de expressão, assim como também é muito comum, nós educadores, não nos responsabilizarmos por isso. Então, é precisamos antes de tudo, questionarmo-nos: como estamos desenvolvendo os processos pedagógicos estimuladores de ato do ato de expressão de nossos alunos? Quais são as linguagens que disponibilizamos para que eles construam e instalem as suas produções? Quantos leitores estamos possibilitando para apreciar suas produções a fim de estimula-los a produzir mais? Qual o sentido real, para os nossos alunos, de sua produção textual? Esses questionamentos são imprescindíveis, pois é importantíssimo para a estimulação do ato criador que haja a presença de espectadores para a obra, como podemos observar por meio das reflexões de estudiosos do ato criativo. Todo ato criador almeja encantar a platéia, a fim de corroborar essa afirmação citemos Manguel ao se referir às leituras dramáticas afirma que um dos benefícios da leitura dramática para o escritor do texto é saber que pelo menos não está falando para as paredes; e, por isso, talvez se estimule com a experiência e escreva mais. (291). O que também é afirmado por Geraldi em Unidades básicas do ensino de português:

É preciso lembrar que a produção de textos na escola foge totalmente ao sentido de uso da língua: os alunos escrevem para o professor (único leitor, quando lê os textos). A situação de emprego da língua é, pois, artificial. Afinal, qual a graça em escrever um texto que não será lido por ninguém ou que será lido apenas por uma pessoa (que por sinal corrigirá o texto e dará nota para ele)? (2001:65)

Assim sendo, um outro objetivo que perseguimos é dar destino a esses textos. No decorrer deste

trabalho, apresentaremos várias estratégias por nós utilizadas para fazê-lo. É válido dizer que dentre as várias linguagens que utilizamos para dar destino a esses textos, as artes cênicas tiveram um papel preponderante, tanto na sua forma pura, o teatro, quanto na sua forma híbrida: vídeo, performances, apresentações orais. Essa escolha se deve ao fato de que:

O gosto pela instrução depende então de muitos e variados fatores. Mas não obstante, há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e combativa. Não fora esta possibilidade de uma aprendizagem divertida, e o teatro, em que pese toda uma estrutura, não seria capaz de ensinar. O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde que seja bom teatro, diverte (Brecht,2005:69).

Além disso, sua função transcende a representação da realidade, pois é fruto de síntese, já que se o

teatro é capaz de mostrar a realidade, tem de ser, também, capaz de transformar a contemplação dessa realidade numa fruição (2005:.206)também promove sínteses por meio das experiências que desperta.

Sendo assim, o processo de leitura e produção de textos é infindável, pois a produção gera leitura,

fruição, expressão e, consequentemente, um novo texto, escrito ou interiorizado; um novo texto, alimento de um novo homem, capaz e motivado para produzir e para expressar a sua produção. Acreditamos que essa prática que, por um lado, é simples, talvez seja um adjuvante na transmutação social, pois, a democratização das habilidades de expressão, com certeza, gerará uma revolução cultural e. a sociedade, para sobreviver a ela, precisar se modificar.

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Um breve colóquio com Bakthin: a questão dos gêneros na literatura

“Tudo está em mudança; nada morre. O espírito vagueia, ora está aqui, ora ali, e ocupa o recipiente que lhe agradar...Pois o que existiu já não é, e o que não existiu começou a ser; e assim todo ciclo de movimento se reinicia.” (Ovídio)

Ao iniciarmos o desenvolvimento dessa metodologia de ensino de produção textual,

dialogávamos com os estudos de Motta em “Engenho e Arte da Narrativa (invenção e reinvenção de uma linguagem nas variações dos paradigmas do ideal e do real) 28 , que investiga e delineia o percurso da produção ficcional desde a sua origem, na antiguidade, até nossos dias. O trabalho de Motta tem por base teórica principal as obras A Natureza da Narrativa de Robert Scholes e Robert Kellog (1997) e Anatomia da Crítica Horthop Frye e constrói um estudo teórico que denominou ―árvore da narrativa‖; sintetizando de forma simplista, por meio ―dessa árvore‖, constituída por um percurso de estudos da história da literatura desde a antiguidade, o autor nos mostra como a narrativa surge e se ramifica e é recriada no decorrer da história literária. Concomitantemente, escrevíamos nossa dissertação de mestrado “Do mito à ficção romanesca: os motivos do amor e da morte e o arquétipo literário do amor imortal”. A partir desses estudos compreendemos a relação geradora que o mito estabelece com outras formas narrativas no decorrer da história da literatura. E, ao nos adentrarmos nos estudos desse processo de ramificação da criação literária e da composição da ―Árvore da Narrativa‖, observamos que poderíamos utilizar esse percurso como um caminho no ―bosque das possibilidades da escrita‖. Isso porque para Motta:

O criador de uma obra literária revive o mito paradisíaco de retirar do esqueleto da árvore- mãe uma costela para a formação de sua criatura, dando-lhe vida, ao dotá-la de parte da memória do gênero artístico, com o sopro da invenção. Se a tarefa de dar a uma obra literária o direito de se ver florindo e compondo a copa da árvore-mãe de seu gênero artístico é um trabalho de difícil realização, é revigoradora a experiência de se caminhar junto com essa obra em busca de uma parte da sua infância perdida, inclusive como forma de compreendê-la melhor. Cada obra revive o seu passado perdido no jardim edênico de sua infância. (2000:3)

Dessa forma, torna-se complexo e até mesmo ingênuo classificar e lidar com os textos segundo

uma tipologia única, fixa, pré-definida e denominada, segundo algumas características marcantes; o fato é que os textos promovem interações entre tempos, espaços e culturas em uma extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e, por isso, cria-se uma consequëntemente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado (Bakhtin:2000:281).

Sendo assim, a fim de não olharmos de maneira fragmentada e ingênua para a produção textual produzida no decorrer da história cultural da humanidade antes de iniciarmos a exposição alguns momentos do processo de desenvolvimento de nossa metodologia de leitura e produção textual é preciso compreender essa heterogenidade textual, segundo a teoria Bakhtiniana, que a compreende como formada por gêneros primários e secundários:

Importa, nesse ponto, levarem em consideração a diferença essencial entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do discurso _ o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc._ aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros

28 Tese de doutorado defendida na UNESP- São José do Rio Preto, 1998.

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primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea (2000:281).

O texto ―Cobra Norato‖, criado a partir de uma lenda amazônica, mostra-nos de modo brilhante esse diálogo entre o mítico, o maravilhoso e lendário pode ser articulado e conceber um poema e que não é possível olhar para esse texto como se ele não fosse híbrido, como se fosse a forma pura de um discurso. Essa idéia foi constantemente explorada e pontuada durante os processos de leitura que motivaram a produção textual. Buscamos ensinar aos alunos que embora muitos textos estejam classificados como determinado gênero do discurso, em função de predominância de certas características _ sua essência é híbrida, complexa e a sua criação ocorreu mediante percursos profundos nas raízes da narrativa.

Um outro exercício de leitura bastante interessante, tendo a observação dessa interação entre os

gêneros foi desenvolvido a partir da música ―Faroeste Caboclo‖, pois o seu enredo traz nuances de todos os momentos da história da narrativa de origem oral.

É importante aludir a esse processo de formação dos gêneros primários e secundários, a fim de

reforçar nossa idéia de que é preciso dissecar, com nossos alunos, por meio da leitura e da análise textual, o processo de produção textual oral e escrita utilizado por outros produtores de textos, e mostrar-lhes como os textos se constituíram e reconstituíram sob a luz de diálogos, recriações, ramificações e influências no decorrer dos tempos. Essa prática se justifica pelo fato de que precisamos fazer o aluno vivenciar o processo de produção alheia, para se espelhar, adquirir segurança para construir o seu próprio discurso ou simplesmente para desmistificar a escrita, enquanto algo proveniente do maravilhoso, fruto de inspiração ou talento nato, dom derramado por divindandes.

Nesse artigo, a fim de apresentarmos um recorte de nosso trabalho, descreveremos um plano de

trabalho que utilizou a narrativa mítica como suporte dos processos de ensino-aprendizagem da leitura e da produção textual; desse modo, pretendemos ilustrar a forma como o sistematizamos, para o melhor aprendizado de nossos alunos e, portanto, apresentaremos uma seqüência de ações práticas, seguindo uma ordem de eleição de textos que coincide com um uma linha de terminologias construídas, utilizadas e que fazem parte do cotidiano escolar, a qual define os textos segundo características dominantes. Essa linha, inspirada na árvore da narrativa de Motta, cria a seguinte seqüência tipológica da história da literatura oral e escrita: mito/ epopéia/ tragédia/ comédia/ lenda/ conto de fadas/ contos maravilhosos/ fábula/ apólogo/ romance de cavalaria e sua escolha se justifica pelo fato que:

Formada pela evolução de uma linguagem artística específica, com a contribuição das obras de muitas línguas nacionais, a árvore da narrativa será retratada para acompanharmos alguns aspectos da trajetória dessa linguagem, cuja especificidade conduziu a seiva da arte aos embriões que constituíram e mobilizaram os traços dos seus paradigmas formais. Capazes de encurtar as distâncias e reduzir os tempos, mas deixando sempre uma abertura para as diferenças histórico-culturais, esses indicadores formais, na sua evolução, ao mesmo tempo que permitem redesenhar a árvore, recuperando o seu perfil genealógico, possibilitam reencontrar os elos e os nutrientes básicos de um parentesco formal nas obras que seguiram destinos próprios no processo de construção de um paisagismo local (1998:2-3).

A metodologia segue, ainda, para o ensino de produção do texto narrativo contemporâneo, pelo

desenvolvimento da retórica do discurso objetivo, científico, jornalístico, dissertativo; porém, nesse artigo optamos por recortar o processo e apresentá-la somente na vertente ficcional, com raiz na oralidade, na modalidade discursiva nomeada mito.

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Um estudo sobre o mito e seu deslocamento na história da literatura

O percurso sistematizado para a produção do texto em prosa, na modalidade narrativa, teve início

com a mitologia, já que, segundo nossos estudos, essa é a forma embrionária da narrativa. A partir dela, outras formas narrativas (ou não) são concebidas segundo tempo, história, manifestações culturais e necessidades didáticas de um povo.

O mito nasce como uma narrativa de caráter sagrado, cuja finalidade é relatar acontecimentos

ocorridos em um tempo também sagrado, o tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio (1972:11) Essas histórias surgem para justificar ou explicar fatos que fugiam à plausibilidade, pois os mitos

narram como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, ―uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou apenas um fragmento do mundo: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição (Eliade, 1972:11).

Dessa forma, podemos afirmar que o mito será sempre a narrativa de uma “criação”, pois focaliza

o momento da concepção do objeto narrado, com um relato que se pauta no modo como algo surgiu ou foi produzido e iniciou uma existência que alcança nossos dias ou, pelo menos, que lhe insere suas marcas.

Na obra Aspectos do mito, o autor acima referido prossegue elucidando que a função do mito não se

condensa somente em revelar as origens dos seres humanos, animais, vegetais, minerais, mas, também, como se desencadearam os acontecimentos primordiais, os quais influenciaram a natureza humana e tornaram o homem aquilo que ele é hoje, ou seja, um ser mortal (1989:17).

Essa narrativa original cumpria uma função didática para o homem primitivo, à medida que, ao

ensinar-lhe as histórias primordiais, ensinava-lhe a ―repetir os gestos criadores dos Seres sobrenaturais e, por conseqüência, a assegurar a multiplicação de um animal ou de uma planta‖. (1989:18-19)

Assim sendo, segundo Eliade, a estrutura e a função dos mitos nas sociedades arcaicas

configuram-se da seguinte forma: constitui a História dos atos dos Seres sobrenaturais; essa História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada ( porque é obra dos Seres sobrenaturais); o mito se refere sempre a uma criação, conta como algo começou a existir, ou como um comportamento, uma instituição ou um modo de trabalhar foram fundados; é por isso que os mitos constituem paradigmas de todo ato humano significativo; Conhecendo-se o mito, conhece-se a ―origem‖ das coisas e, desse modo, é possível dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, e o ritual faz com que o homem relembre o mito e o perpetue, quer narrando cerimonialmente o mito, quer efetuando o ritual a que ele serve de justificativa; de uma maneira ou de outra, vive-se o mito no sentido em que se fica imbuído da força sagrada e exaltante dos acontecimentos evocados reatualizados. (1989:23).

É importante ressaltar que os mitos recordam constantemente que acontecimentos grandiosos

tiveram lugar na Terra; eles fazem com que os homens resgatem esses eventos e os revivam imaginariamente, recuperando, em parte, o passado glorioso de seus antepassados, imbuindo-se de sua força sagrada, pois lembrar o passado é fortalecer-se com sua força sagrada.

Malinowski afirma que nas comunidades primitivas, as histórias míticas exercem a mesma

influência que a história sagrada e cristã, a qual é vivenciada também ritualisticamente, exerce influencia moral, orienta a fé e controla a conduta.

Acerca dessa colocação, Mielietinski afirma que Malinowski enfoca o mito a partir da sua função

pragmática, ou seja, como instrumento de solução de problemas críticos atinentes ao bem-estar do indivíduo e da sociedade, e como instrumento de manutenção da harmonia com os fatos econômicos e sociais. Malinowski sugere que o mito não é apenas uma história narrada ou uma narrativa de significação

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alegórica, simbólica. Para o crítico, ―o mito é vivenciado pelos aborígenes como uma espécie de escritura sagrada verbal, de realidade que influencia o destino do mundo e dos homens.‖ (1987:40)

Lendo mitos Passado esse preâmbulo, iniciamos, junto aos alunos, em um processo dialógico, a leitura dos mitos para observar quais são seus elementos estruturais. Vale observar que nosso objetivo não é conceber um roteiro para a elaboração de um mito, mas sim de exercitar a leitura como um instrumento de investigação, de aquisição de conhecimento e de fundamentação da prática da escrita. O processo de leitura que elegemos como objeto para relatar nesse trabalho enfoca um mito cosmogônico, que nos conta como o cosmo começou a existir. No princípio reinava o caos, o fundamento do mundo, uma matéria informe. Segundo Lefreve Hesíodo descreve-o como um espaço aberto, uma extensão pura; mais tarde foi concebido como o “onde” primordial no qual todos os elementos da matéria já existiriam, embora latentes e desorganizados (1973:18) Nesse tempo primordial não havia tempo, nem espaço, nem seres, nem cheiros, nem luz, nada. Até que surge a primeira divindade sólida para organizar o universo. Como nos apontam os estudos sobre mitologia, a origem das histórias é oral, assim, muitas versões chegaram até nós transmitidas, de geração a geração, pela fala. A narrativa que escolhemos como instrumento de análise, mostra-se essencialmente dramática e, é composta por meio de uma linguagem muito poética, o que também foi levado em consideração, pois consideramos importante que o aluno tenha bastante contato com uma linguagem ―mais forte‖, como diria Bloom, pois essa oferece mais possibilidades de leitura, análise, bem como acaba por estimular a criatividade. É claro, que a mediação dessa leitura exige mais do educador, porém, as possibilidades de encantamento do leitor por meio do texto são muito mais latentes. Um outro elemento a se ressaltar é a ausência de uma delimitação temporal específica, há sempre a referência a um tempo antigo. Os elementos da natureza são personificados e divinizados nos mitos originais, como podemos observar na descrição dos referidos no texto em estudo: a Terra ―Gaia‖, a ―Noite, treva profunda, Érebro, morada das sombras‖, ―Urano, o céu estrelado‖, as ―Montanhas‖, as ―Ninfas‖ e ―Ponto, o Mar‖, Éter, luz que iluminaria os deuses nas mais altas regiões da atmosfera e ―Dia, claridade dos mortais, que, no espaço, se alterna com sua mãe para não cansá-la‖, Eros, o amor universal. Enquanto divindades são dotadas de um poder sobrenatural e a magia emana desse poder, os deuses não necessitam de objetos mágicos para desencadearem suas proezas, e cada um exerce uma função específica para a qual foi criado.

Neste mito original, há a junção de duas divindades ―Terra e Céu‖ para o povoamento da Terra. Podemos observar que o antagonismo que propulsionaria o universo aparece expresso já na relação entre Gaia (a mãe-Terra), base sólida de todas as coisas, e Eros (o Amor), tênue princípio de todo impulso gerador (Lefreve, 1973). E, assim, essas novas personagens, preparam-se para viver seu drama ―uma raça violenta‖ animaram, deram alma ―anima‖ ao ―Palco que é o mundo‖.

Vemos já nesse mito de criação a remissão à criação de personagens para encenar o drama da

vida, esse povo violento, os Titãs são descritos como criaturas disformes que metaforizam a natureza humana. São eles, os ciclopes ―monstros de um olho só‖ e os Hecatônquiros ―gigante de cem braços e cinqüenta cabeças‖ sempre colocam obstáculos à ordenação da vida, representam os cataclismos que transformaram a face do mundo, preparando-o para receber as diversas espécies animais e, muito mais tarde, o ser humano.

E a eles são delegadas muitas peripécias, como a façanha de Cronos, que corta os testículos do

pai, tal era a sua insatisfação com o fato de Gaia gerar infinitamente e de os filhos a devastarem. A arma

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usada por Cronos, que significa tempo, foi uma foice que a própria Terra gerou. Cronos é insaciável. O tempo devora tudo:seres, momentos, destinos. Sem piedade. Sem apego ao que passou. O que importa é construir o futuro.E como Urano não morre já que é imortal, outra característica dos deuses, o que morre é o seu reino, seu domínio.

Ao cairem sobre a Terra, os testículos se transformaram nas Irínias (ou Fúrias, símbolos da culpa de

Cronos), os Gigantes e as Melíades. Ao caírem no mar, os sêmen do deus forma uma branca espuma, da qual nasce Afrodite (Vênus), a deusa do amor e da beleza.

Neste trecho, podemos observar o germe da tragédia e da comédia, pois mãe e filho têm uma

relação singular e, o filho quer matar o pai, por não suportar a existência dos irmãos devastadores, mas também por que não suporta que a mãe continue gerando infinitamente e, assim, castra o pai, impedindo a união sexual da mãe com o pai; por outro lado, Gaia, mulher vingativa forja uma foice para destruir o império de Urano, assim como o fará Medeia, mais tarde. O cômico também tem seu espaço no momento em que emerge do ato trágico de Cronos, a Vênus, a deusa do amor.

Outro elemento a ser observado são as relações incestuosas existentes nos mistos cosmogônicos:

Urano é marido e filho de Gaia, bem como é pai e irmão de seus filhos; Cronos junta-se a sua irmã Réia. Depois, surge Zeus, filho de Cronos, pai de todos os deuses do Olimpo e ordena o universo

definidamente. E, dessa, forma: Zeus estabelecerá na Terra a base das relações entre todos os seres. Nem monstruosos, nem gigantescos, nem cegos como os primeiros filhos de GAia, os Olímpicos talvez correspondam miticamente, ao Homo Sapiens, na evolução das espécies. Ou seja: um ser consciente, falante, bípede e criador” (Lefreve,1973)

Depois do nascimento de Zeus, o Olímpo será a morada dos deuses. Deus que foram

concebidos à imagem e semelhança do homem, configura-se na personificação dos maiores anseios humanos: poder, imortalidade, perfeição das formas. É interessante notar que no Classicismo, apesar de ser um estilo em que a razão é predominante, os deuses aparecem poderosos, fulgurantes para representar o ideal de perfeição humana.

Um outro aspecto dos deuses pagãos é que assim como os mortais, concebem ações que oscilam

entre o bem e o mal.

Posteriormente à leitura desses textos partimos para a produção textual que leva em conta fases de um processo que implica em: familiarização com o tipo discursivo em questão; leitura e análise textual, com fins de investigar as estratégias discursivas dessa modalidade composição textual; reflexão sobre o deslocamento temporal da história; investigação de sua existência na realidade sob a forma de outras linguagens que não sejam convencionalmente orais ou escritas; estabelecimento de diálogos intertextuais.

Esse processo leva em consideração a necessidade de articulação dialética entre a cultura letrada e

a cultura do aprendiz; portanto, constantemente, buscamos em um primeiro momento mostrar ao aluno o quanto essa modalidade textual está presente em seu cotidiano e que, por isso, dominá-la, conhecê-la em profundidade, é importante para a inserção social, para o desenvolvimento da autonomia e para a construção de saberes complexos que tornarão ao sujeito apto a atingir seus objetivos.

Abaixo, apresentaremos uma seqüência de atividades propostas no percurso da produção textual,

utilizando-se a mitologia como motivação. Vale lembrar que essas são algumas das atividades utilizadas e selecionadas para a exposição nesse trabalho; dependendo da turma, outros exercícios foram desenvolvidos; o importante é que a proposta de produção textual esteja sempre norteada sempre por quatro limiares: a leitura do texto mítico, outras linguagens presentes no cotidiano do aprendiz, a vivência do texto produzido por ele e a exposição desse texto para a comunidade, por meio de linguagens verbais ou não-verbais, privilegiando situações que possam antecipar as linguagens que terão de ser criadas na representação de papéis sociais.

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Práticas de Produção Textual I – Observar e discutir a ocorrência desses mitos na realidade para reforçar a idéia que os mitos são uma alegorização dos acontecimentos da vida do homem. II – Colocar as conclusões em um ―blog‖ da turma. A elaboração desse blog poderia se apoiar no blog de Frederic Hartley (http://oceusobreberlim.blogspot.com), pois esse nos revela um análise critico-poética da realidade e sua concepção parece dialogar com nossa metodologia de trabalho. Nesse blog há um diálogo interdisciplinar que promove a interação entre as várias artes (cinema, música, pintura, fotografia), a pesquisa e a reflexão, a partir de uma visão essencialmente crítica e criativa dos acontecimentos cotidianos, que constituem a história social. Nele, também poderão ser colocadas as produções resultantes dos trabalhos abaixo propostos. III - Roda de histórias

Na obra Antropologia Estrutural Lewwis Strauss, ao relatar seus estudos em comunidades indígenas

refere-se à importância das histórias para algumas comunidades; o autor conta que, em algumas tribos, o poder do contador só está abaixo do poder delegado ao chefe da tribo e para ser o contador, às vezes, estuda-se por até quarenta anos, pois o ―eleito‖ precisará conhecer todas as histórias referentes àquela comunidade, desde os primeiros ancestrais. Além disso, o poder sobre a contação oficial da história está garantido somente a aquele membro, ou a alguém que esse, por honra e mérito, tenha dado o poder de contá-la perante os outros integrantes da tribo em situações formais, ritualísticas. Nessas tribos, a história torna-se, então, talvez, o bem mais precioso que se pode adquirir ou receber.

Inspirados nessa pesquisa antropológica, fizemos a inserção da contação de histórias em nosso

trabalho, pois uma estratégia interessante para estimular a leitura é propor uma roda de histórias em que os alunos trazem um mito grego ou romano impresso e o conta para a turma. Nessa apresentação, é interessante que se busque explorar algumas técnicas de contação de histórias, como oscilar a entonação da voz de acordo com os acontecimentos do texto; por exemplo, se o acontecimento focalizado por algo alegre que a voz revele isso, por meio da altura, do tom agudo, se for trágico, então, que ela seja mais densa, grave. A expressão facial também deve ser explorada nesse exercício, pois é fundamental que o leitor tenha a sensação de que a história realmente ocorreu, é como se o contador fosse uma testemunha ocular dos fatos e levasse o leitor para esse espaço testemunhal.

Em sua obra Contar Histórias: uma arte sem idade, Betty Coelho apresenta, sistematicamente,

várias técnicas de contação e, por isso, essa obra foi uma das principais norteadoras dessa prática. Contar histórias é também uma oportunidade para que o aluno possa trazer também outros elementos que dialoguem com a sua história, seja uma pintura, uma escultura, uma fotografia ou qualquer outra linguagem que proponha uma ilustração ou uma intertextualidade com a história. Assim, eles já estarão desenvolvendo o espírito da pesquisa tão necessário ao processo de aquisição do conhecimento, bem como os exercícios intertextuais.

É importante que ao propor esse tipo de exercício, o professor apresente para a sala a sua

pesquisa pessoal. Assim, os alunos percebem a relação que essas histórias têm, de fato, com a realidade e o quanto precisam desse conhecimento para ler e entender várias textos que são apresentados pela mídia; essa exposição aguça-lhes o interesse, bem como os desafia a construírem suas próprias descobertas e expô-las para a sala.

Vale ressaltar que como educador devemos sempre experimentar o exercício que propusemos ao

aluno, assim podemos, por conhecimento causal, convencê-los do quão instigante é esse tipo de trabalho. Enquanto pesquisadora, podemos afirmar o quanto aprendemos e sobre mitologia e como ela está

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recriada e entranhada na realidade quando ―navegamos pelo Ciber-Olimpo‖ e o quanto precisamos desse conhecimento para ler e compreender os textos veiculados pela mídia eletrônica.

Depois que cada aluno apresentar a sua história propõe-se que troquem os textos entre si, depois

os tragam novamente para a escola, para fazermos uma coletânea de textos que ficará acessível a todos, para o uso.

Abaixo, explanaremos alguns diálogos entre realidade e mitologia encontrados na internet, que nos

foram de grande valia, pois causaram curiosidade, ótimas discussões e mostraram aos alunos o quanto saber essas histórias é fazer parte da democratização do conhecimento e o quanto aqueles que não sabem estão excluídos do diálogo cultural, político, globalizado que os iniciados no universo letrado travam entre si. Produzinho a partir do mito na roda de histórias

Após a roda de histórias, pode-se propor várias atividades, cujos resultados serão expostos para a

turma e, dependendo a natureza, para toda a escola. É interessante usar essa técnica de propor várias atividades para que o aluno escolha uma para desenvolver, assim, ele se sente com autonomia para eleger o que quer fazer e, isso, provavelmente, o motivará. Dentre os exercícios podemos citar: A) Leitura dramática e novela de rádio

Depois da contação dos mitos, grupos se reúnem, escolhem um dos mitos e elaboram uma novela de rádio a partir da história. A produção dessa novela deve ser apresentada por meio da leitura dramática e da criação de sonoplastia para climatizar a história. Nos intervalos da novela, os alunos deverão criar propagandas que dialoguem com a história contada. B) Elaborar um poema a partir do mito que se contou e criar um sarau para que os poemas seja lidos ao som de música grega. C) Elaborar um desenho, uma história em quadrinhos ou uma releitura de uma pintura sobre mitologia. Posteriormente, deve-se digitalizá-la e transformá-la em um curta-metragem por meio do programa movie maker ou outro similar; D) Fazer esculturas de argilas ou massa de biscuit representando os personagens da história e seus vários movimentos. A partir dessas esculturas, a turma pode fazer um curta-metragem utilizando a técnica do ―stop motion‖, que consiste em tirar várias fotos dos personagens em posições distintas, como se estivessem interagindo segundo o enredo da histórias; depois, essas fotos são colocadas no computador e apresentadas em sequência rápida; isso pode ser feito em programas simples como Power point ou, então, no programa flash. E) Pintar vasinhos de cerâmica ilustrando uma das história dos deuses.

Esse exercício é interessante para se estudar, observar e construir as estruturas, os elementos e as seqüências do texto narrativo. Pois, para a pintura dos vasinhos será preciso estar os características principais da arte cerâmica grega e, posteriormente, dialogando com as concepções gregas de arte elencar os elementos como tempo, espaço, personagem, bem como a disposição dos mesmos no espaço concretizará a noção de início, desenvolvimento, clímax e desfecho e representará as seqüências. A prática deve ser iniciada por meio de uma exposição de gravuras de vasos antigos e da explicação da importância desses vasos como registro histórico-social, artístico e cultural. Uma ramificação da prática é que ao invés de fazerem a ilustração do mito original, que possam deslocá-lo para a atualidade, tal qual foi feito nos quadrinhos.

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F) Produção de propagandas a partir dos mitos A atividade de produção de propaganda tem como fundamento o mito do Minotauro e a análise das propagandas do ―Red Bull‖. Nesse exercício de leitura que se utiliza da teoria semiótica da imagem, analisamos as estratégias de manipulação e as ideologias promulgadas pela propaganda. Depois, pedimos para que os alunos escolham um dos mitos estudados e elaborem uma campanha publicitária para um produto que eles mesmos criarão. Essa campanha envolve: produção da embalagem do produto; estratégias de divulgação e observação da receptividade do produto pelo público – nesse item será necessário que elaborem ―gingos‖, propaganda para rádio, Tv, Jornais e Revistas, com linguagem adequada para cada tipo de mídia. G) Pesquisa e apresentação de seminário: o mito no cinema, na televisão e na música Para o desenvolvimento dessa atividade, utilizamos como motivação algumas cenas do filme ―Matrix‖, a música ―Sampa‖ de Caetano Veloso e uma passagem de novela ou qualquer outro programa de TV em cartaz que utilize elementos mitológicos em seus enredos, o que é extremamente comum. Após a leitura intertextual dessas obras, pedimos para que os alunos, em grupo, pesquisem outras obras do cinema, da televisão e da música que se utilizem da mitologia em sua composição e as apresentem para a turma. H) Produção de um mito, utilizando as divindades como personagens e realização leitura dramática I)Encenando o advento da filosofia: pensando a realidade a partir dos mitos

Essa prática tem como motivação a leitura e a reflexão do Mito de Prometeu e a apresentação de uma pesquisa em jornais e revistas feita pelo professor em conjunto com os alunos sobre: ―Outros Prometeus...‖. Ou seja, todos investigarão e refletirão sobre a existência de outros benfeitores da humanidade e quais são as conseqüências de seus atos e porque essas conseqüências existem. Após essa atividade, cada aluno escolhe a imagem de um ator social que é considerado um Prometeu e faz uma máscara representando-o. Posteriormente, deve fazer um exercício de empatia com essa personagem, e apresentar-se para o grupo como se fosse essa personagem. Para a apresentação, o educador pode estabelecer critérios para serem seguidos; nós pedimos para que os alunos falem basicamente características psicológicas, objetivos de vida e motivos da sua luta pessoal bem pelo da humanidade. Assim, a partir da análise desse mito, inicia-se a apresentação dos Prometeus da humanidade por meio de uma encenação com máscaras de papel machê. J) Livro de Mitos

Para encerrar o ciclo de prática de produção textual 1-Elaborar um mito sobre o surgimento da cidade em que moramos. 2-Elaborar um mito sobre o nome do aluno. 3-Juntar a turma em grupos, para que juntos, escrevam um mito, em forma de roteiro teatral, sobre o surgimento de algo que existe na realidade, esse roteiro deverá ser ensaiado e apresentado. No livro, estarão presentes todos os roteiros bem como as fotografias da peça.

I- Leitura intertextual a parti da proposta de diálogos estabelecidos entre:Arte, quadrinhos e fotografia

29 30

29 Criação de Adão, 1550, Michelangelo. Afresco na Capela Sistina, Cidade do Vaticano, Roma, Itália 30 A Criação do Cebolinha, 1994. Acrílico sobre tela

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31 V-Capas da Revista Veja No desenvolvimento dessa atividade nossa intenção inicial era observar como a arte que dialogava com a mitologia e era utilizada pela revista Veja, já que nos lembrávamos de uma capa da revista que focalizava a Vênus de Botticcelli e da capa apresentada na atividade anterior. Tal foi nossa surpresa ao observamos que desde 1969 (data inicial de publicação do corpus a que temos acesso) a revista Veja, anualmente, sem exceções, dialoga com as imagens míticas, lendárias, fabulosas e maravilhosas criadas pelos homens ao longo de suas histórias. A revista, como nós a propusemos em nossa prática, promove, em sua interação discursiva com o leitor, constantes intertextualidades entre os gêneros textuais, com origem na oralidade, como mitos orientais e ocidentais, tragédias, comédias, epopéias, contos de fadas, fábulas, apólogos, romance de cavalaria (que denominamos árvore da narrativa).

Assim, foi estimulante descobrir como a editoração da revista toma dos galhos da árvore da narrativa para produzir seus frutos, o que reforçou a necessidade de tornarmos esses textos acessíveis e domináveis para o leitor; pois, somente por meio do conhecimento profundo dessas histórias e do seu caráter didático, político, ideológico é que o leitor pode ser hábil, e enxergar as estratégias de manipulação da imprensa escrita; manipulação essa que nem sempre é promovida somente pelo texto verbal, mas o faz, principalmente por meio dos textos não-verbais nela contidos, tal qual podemos observar nas capas e também por meio da produção fotográfica que documenta as reportagens.

Além disso, auxiliou-nos na argumentação de que essa fundamentação teórica, literária e prática é

realmente de extrema importância na formação do produtor de textos. Esse percurso que a revista faz anualmente pela história da narrativa será delineado no decorrer

do trabalho e à medida em que expusemo-nas aos aprendizes.

(Veja 01/01/98) (Veja 07/04/04) (Veja 28/08/02) (Veja 30/05/01) (Veja 30/02/03)

31 Foto extraída do site: www.olhares.com

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(Veja 24/12/03) (Veja 31/10/01) (Veja 2/07/00) (Veja 30/05/01) Considerações Finais

Por meio de nossos estudos e experiência pedagógica, concluímos que a Literatura figura como adjuvante do processo de construção do discurso verbal e não-verbal, por apresentar em seu produto (o texto literário) o processo criador e a expressão da reação estética, proporcionada pela relação de artistas com sua realidade.

Dessa forma, a Literatura é uma manifestação artística que também ensina, e o faz por intermédio

de uma didática da ilustração e das técnicas de criação, que deverão ser aventadas por procedimentos de leitura e análise textual.

Sendo assim, neste trabalho, relatamos como utilizamos o texto mítico para nortear a concepção

do ato criador de nossos aprendizes, para assim, cumprir o último objetivo de educare, que é ―fazer sair‖ textos criativos e bem elaborados, a fim de que essa experiência possa funcionar como ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho dos professores responsáveis pelo desenvolvimento dos processos de leitura e de produção e, que possam fazê-lo a partir do mito ou de outros gêneros literários. Bibliografia: DIETZSCH,MJ. SILVA, M.A.S.S. Itinerantes e itinerários na busca da palavra. Cad. Pesq., São Paulo, n.88, p.55-63, fev.1994. _____________.(org.) Espaços da Linguagem na Educação. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,1999. ELIADE, M. Mito e Realidade. Trad.de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, l972. __________. Aspectos do mito. Trad. de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1989. FRYE, N. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973. GERALDI, J.W. (ORG.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,3ª. Ed, 2001. _____________. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MIELIETINSK, E. M. Os arquétipos Literários. Trad. Aurora F. Bernardini, Homero Feitas, Arlete Cavaliere. Cotia, São Paulo. Ateliê Editorial, 1998. _________________. A poética do mito. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1987. MOTTA, S. Engenho e Arte da Narrativa (invenção e reinvenção da linguagem nas variações dos paradigmas do ideal e do real. Tese de doutorado. São José do Rio Preto, 1998. READ, H. A Educação pela arte. São Paulo, Martins Fontes, 1982. SCHOLES R., KELLOG, R. A Natureza da Narrativa. Trad. Gert. Meyer. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1997. VYGOTSKI,L.S. Psicologia Pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed, 2003). Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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VALORES NA ESTRUTURA E NA ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO ESCOLAR:

ALGUNS PONTOS PARA REFLEXÃO

Pedro Braga Gomes32 Resumo: Este artigo consiste no objetivo de auxiliar na identificação do cotidiano social e escolar através de alguns pontos de reflexão da organização e das linhas condutoras da política em educação, ensino e aprendizagem que ocorrem na escola e fora dela. Palavras Chaves: Cotidiano social e escolar, política em Educação ensino e aprendizagem e avaliação. Abstract: This article consists at the reflection of availing at its detection from the everyday society and school right through a few points as of reflection in the organization of the lines bearer from the education, I school and apprentice plumber than it is to occurring at school and abroad from it. Key-words: Everyday society life and from the school, politics and apprentice and assessment.

―A EDUCAÇÃO é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam. A EDUCAÇÃO é permanente razão, de um lado da finitude do ser humano do outro, na consciência que ele tem de sua finitude. Mais ainda, pelo fato de, ao longo da História, ter incorporado à sua natureza não saber que vivia, mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A EDUCAÇÃO e a formação permanente se fundem (...), o ser humano jamais pára de Educar-se (...). A melhora na qualidade da EDUCAÇÃO implica na formação permanente dos Educadores. E a formação permanente se funde na pratica de analisar a prática. É pensando a sua prática que, naturalmente com a presença de pessoal altamente qualificado, que é possível perceber embutida na prática uma teoria não percebida ainda, pouco percebida ou já percebida, mas pouco assumida.‖ Paulo Freire – Política e Educação.

Neste começo da minha reflexão penso que é relevante uma digressão da história, pois assim ela mesma poderá eficazmente nos auxilia a apontar caminhos para o estudo da organização e autonomia da instituição escolar e diferentes métodos que foram adotados no ensino educacional brasileiro, inseridos nos binômios: sociedade – educação.

A sociedade grega exemplificou para nós do ocidente valores altamente significativos. A

Filosofia Grega é até hoje para nós mortais do mundo ocidental referência para os estudiosos da área das humanidades como um todo. A sua cultura nos vem mesmo a si impor ao domínio romano e se perpetuar de diferentes maneiras.

O pensamento de Platão influenciou grandemente a concepção teológica cristã. Sendo este traduzido para a Igreja pelo Santo Agostinho, partindo de uma concepção de dois mundos

32 Filósofo e Professor. Mestre em Educação. Membro do núcleo de estudo e pesquisa sobre a pedagogia do sujeito-NEPEPES (www.nepepes.com.br). Contato: [email protected].

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existentes no pensamento, a saber: através da gnosiologia, ele elaborou a sua filosofia e a fundamentou na existência de dois mundos que a denominou de dualismo ontológico. Esta filosofia permanece até o nosso tempo, em especial atenção para nós ocidentais.

A cultura grega é um marco histórico do saber e do conhecimento caracterizados, por vezes, até mesmo como erudição.

A Universidade ocidental é um exemplo destas expressões e teve sua origem na ―quadrivium‖ da idade média ou medieval: filosofia, direito, teologia e medicina.

As conquistas da Europa pelos bárbaros estabeleceram outra perspectiva: o poder dos aletrados, aqueles que não tiveram qualquer contato com o conhecimento, segundo a tradição grego-romana, mas que impuseram o seu modo de ver e de agir e alteraram os rumos de sociedade e de países.

A instrução e o ensino passaram então a ter algum sentido social, quando se iniciaram os fundamentos da economia e do Estado moderno. Na sociedade daquele tempo, onde o status advinha da hereditariedade, a instrução formal era considerada supérflua.

Com uma exceção inicialmente do clero, que, obrigava ao celibato, não poderia ter status abertamente hereditário. Faltando utilidade social, não havia porque ensinar a ler aos camponeses servos da gleba, ás mulheres, nem mesmo aos nobres. Só estudavam aqueles que iam dizer a missa em latim e que não teriam seus cargos definidos por serem filhos daqueles que já exerciam essa profissão.

De contra partida, os reis e potentados precisavam julgar, exercer o poder hoje atribuído ao judiciário. Necessitavam de pessoas que soubesse e fosse capaz de interpretar as leis a fazer contabilidade dos seus impostos. A escola como podemos perceber não tinha status social. Seu objetivo era criar uma linha de transmissão da ideologia que manteria a sociedade e o ―status quo‖ a serviço dos nobres senhores

As constantes mudanças históricas entre os séculos XV – XVI abalaram toda ordem instituída. O mercantilismo, os grandes descobrimentos e os inventos interferiram profundamente na organização da sociedade. Era necessário para a burguesia encontrar novos caminhos para a manutenção do ―Status quo.‖

Com as teses do liberalismo, como vimos anteriormente, de individualismo, liberdade, igualdade, oportunidades iguais, propriedades e democracia, foram eficientemente assumidas e perduraram revigoradas para o exercício do poder.

Na sociedade de hoje, a psicologia dos dons, nesta trilha justificou suficientemente a dominação ideológica mediante a teoria da diferenciação das aptidões e das capacidades individuais. Os indivíduos são naturalmente diferentes, por isso são destinados a exercícios de pápéis sociais também distintos. Neste particular o pensamento de Platão assumiu um papel de fundamental importância.

A diversificação das escolas para os ricos e outro modelo para a classe dos dominados, garantiu então a manutenção da hierarquia social. A descriminação escolar manteve e incrementou a segregação social. Dispositivos presentes na legislação expressam esta ideologia, a saber:

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―Somente a escola básica é pública e obrigatória‖ – o que vale dizer que somente a sub escola é direito de todos;

Ensino técnico para formar mão de obra braçal ou de exceção e o superior para formar cidadãos para a concepção;

Atividades reduzidas nas escolas e nos currículos escolares de modo a permitir que a diferenciação social se faça em estudos fora da escola.

Uma outra característica da época é a do uso do livro didático como veículo de transmissão

de conhecimento científico, aberto a todos os cidadãos que possam ler. As enciclopédias tentaram colocar toda a ciência como um músico tem a partitura. Mesmo sem saber compor uma partitura o músico pode reproduzi-la. O professor com um bom livro didático pode fazer uso seguindo-a como uma partitura, podendo-se assim ensinar qualquer coisa e chegar a um maior número possível alunos ao mesmo tempo.

A escola recebe os aspectos da fabrica de formação técnica e profissional e de escada de ascenção social. O professor como funcionário do Estado, deve repassar a ideologia das aptidões e selecionar os mais adequados para seguir adiante.

Com uma forte influência de uma educação européia, de maneira especial à francesa, até o inicio dos anos 60 do século passado, o Brasil passou a receber, a partir de então, influencia do ensino norte americano.

Com a formação da sociedade americana formada pela erradicação da sociedade européia, se constituíram numa unidade de vida. Tomando e ocupando a terra tomada aos índios podiam produzir a riqueza, desenvolvendo o trabalho árduo e mediante a exploração da mão de obra escravizada.

A necessidade de uma mão-de-obra especializada para o avanço da produção econômica, fez com que se criassem novas formas de agir. Os novos colonos recém chegados da mesma maneira que os primeiros tomaram as terras indígenas assumissem seus próprios negócios. Fez necessário instalar uma nova formação de tal forma que os novos colonos estivessem impedidos de exercer senão a de trabalhos nas fábricas e nas fazendas.

Uma escola de tempo integral devia abranger toda a população infantil, sem exceção de

ninguém, para que não ficasse semente da forma de vida anterior. Onde todas as crianças na escola, os seus genitores pudessem trabalhar nas fábricas. Todas estando estudando o dia todo aprenderiam a ser apenas operários e funcionários, empregados obedientes e servis.

Com relatos que nos chegam da época, os reformadores estabeleciam que:

―um dos mais importantes objetivos do sistema escolar centrado no Estado era formar a nova classe trabalhadora para o crescimento industrial. As escolas deveriam imbutir os padrões de comportamento relevantes para os trabalhos nas fábricas ao invés dos necessários ao trabalho nas fazendas e no artesanato‖. Antonio Maria Alves de Siqueira – História da Filosofia da Educação (1948, p. 25).

O padrão de relevância para o trabalho nas fábricas era o senso de tempo e de autoridade.

Os reformadores imaginaram que se as crianças pudessem ser doutrinadas a freqüentar as escolas regularmente e compreender a importância da pontualidade, poderia deste modo chegar no horário estabelecido ao trabalho. Se pudesse responder ao sistema de atribuição de pontos da sala de aula e submeter-se à autoridade do professor tornar-se-iam trabalhadores obedientes. A escola toma então a feição atual. É a sala de aula, é a recepção da fábrica.

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Esta influência chegou ao Brasil por várias portas. No final do século XIX e começo do

século XX, através de missões protestantes que fundaram escolas. Através de acordos de assistência técnica. Mas ela mesma se torna patente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961, com a queda do latim, a substituição do francês pelo inglês e introdução, ao menos formal, da orientação educacional.

O objetivo, não declarado, é o da linha de montagem. Professores rapidamente treinados

para repassar conhecimentos pré-estabelecidos em forma de planejamentos constituídos de objetivos estratégicos, técnicas e controle de comportamentos observáveis e mensuráveis.

O professor como o operário fabril, é uma peça na engrenagem pré-projetada por especialistas: execute sua função e será por ela remunerado. O professor-operário recebe cada vez menor salário, qualifica-se cada vez menos, faz greve é reprimido com corte do salário e pela polícia. É transferida para o empresário privado a tarefa de administrar essa mão-de-obra aviltada.

As ―melhores escolas‖ são freqüentadas pelos mais abastados. Freqüentar escola pública de ensino fundamental e médio é para proletários. Ser aluno de escola pública é ―passar recibo no atestado de pobreza, é o caminho seguro para o fracasso no vestibular e na vida‖.

Comparativamente a escola por sua vez se organiza e se estrutura dessa forma. As crianças ingressam na escola mais cedo. Os alunos ficam crescentemente mais tempo na escola, fazendo, sistematicamente as mesmas coisas. O calendário escolar tem sido prolongado, mesmo sem as condições mínimas de atuação de alunos e professores dentro das escolas.

Com isso aumentaram – se as exigências e controle de freqüência de alunos e professores e consequentemente a todos os demais servidores que nelas se integram. Aumento crescente da burocracia no sistema educacional dentro e fora da escola, o que vale dizer de hierarquia, subordinação, dependência e padronização.

Os regimes escolares, principalmente no ensino infantil, fundamental e médio, são padronizados, embora se anunciem que cada escola deva elaborar seu regimento interno conforme as suas necessidades; as verbas para escolas públicas para capital e custeio, manutenção e expansão do ensino e de atuação da escola cuidam de anular a autonomia apalavradamente concedida. Considerando tais elementos pode-se dizer que as instituições escolares ou chamadas de ensinos do pré-escolar à universidade têm similares referencias de organização e que as diferenças ficam por conta do nível das classes sociais atendidas e das atividades que exercem.

As Universidades e as Escolas Técnicas e outras têm níveis diferentes de autonomia se comparadas com as demais instituições públicas de ensino fundamental e médio, no entanto estão se integrando rapidamente à política governamental liberal expressa nos preceitos e conceitos de ―(dês) construção do patrimônio público‖ e de se fazer cada vez mais um ―Estado mínimo‖.

O incremento do empresariado no ensino a partir dos anos 60, principalmente, tem produzido instituições, redes de ensino e de escolas com novas facetas. A política governamental de forçar uma aposentadoria precocemente e da proibição de contratar docentes aposentados para estas instituições, principalmente as públicas, têm contribuído enormemente com as instituições privadas e empresas que contratam professores e pesquisadores aposentados, na sua grande maioria doutores com uma larga experiência internacional.

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Com isso o corpo docente das Universidades Públicas até este momento sobrepujou em

titulação e formação ao das instituições privadas, no entanto, não serão necessários mais do que alguns poucos anos para que este quadro se reverta com mais intensidade e o que é mais grave, sem qualquer custo para os cofres das instituições privadas. Será que esta foi à estratégia liberal? Penso que sim.

O capital, ou qualquer outro nome que se queira atribuir ao sistema em que a exploração, acumulação, concentração e empobrecimento da população são crescentes, e o liberalismo que conduz a descriminação e exclusão social, fragmentação do trabalho, hétero gestão e dominação constituem o ―ambiente‖ em que se vive, mas não são necessariamente determinantes da ação educativa.

A organização escolar, as metodologias e a avaliação em particular, ao mesmo tempo em que produzem a ideologia dominante e a reforçam, por sua vez, produzem e incrementam uma dimensão institucional que responde aos interesses imediatos de poderes que os dirigem e consequentemente, que predominam na sociedade.

Foram introduzidas avaliações na universidade, no ensino fundamental e médio respectivamente, que determinam de certa maneira as novas estruturas institucionais e da sua própria autonomia organizacional.

O Exame Nacional de Ensino Médio, comumente chamado de ENEM, cujos resultados estão sendo utilizados no ingresso do ensino superior e ENADE, aplicados aos graduados ao final do Curso de Graduação por amostragem, certamente acabarão por produzir uma nova modalidade de ensino, de curso, e de instituição de ensino médio e superior, conforme os dados divulgados recentemente pelo MEC (2011).

Os cursinhos, preparatórios para o concurso do vestibular influenciou profundamente a organização do ensino médio no Brasil. Certamente estas instituições criaram cursos preparatórios para estes fins, ―o ENADE‖ na graduação é só uma questão de tempo.

Cursos estes, que muito provável irão alterar a organização e o ensino de graduação, e irão ainda determinar a padronização do ensino fundamental, médio, em médios e longos prazos.

O resultado na minha avaliação é o da mediocrização mais ainda do ensino e da aprendizagem e muito contribuirão para a sujeição das instituições educacionais aos objetivos e metas econômicas e ―políticas assumidas‖, na feliz expressão do Professor João Gualberto Carvalho de Meneses, pelos nossos governantes.

Consequentemente o ensino médio deixará ainda mais de ter o seu objetivo próprio e passará a ser preparatório para a ―avaliação seriada‖, como tem sido preparatório para o concurso vestibular, visando ao ingresso no ensino superior. A perspectiva danosa de seleção, que criou o concurso vestibular, agora passa a ser natural.

Portanto, as discussões até aqui ditas, têm como objetivo principal auxiliar a identificação no cotidiano social e escolar a da sua autonomia e organização nas linhas condutoras da educação, do ensino e da aprendizagem que ocorrem na escola e fora dela. O cotidiano escolar, não somente os anúncios oficializados apresentam as finalidades e os objetivos que realmente estão sendo buscados na educação e no ensino nas instituições.

Carecemos da visão profética, da mesma de que teve Anísio Teixeira, Mario Pires Azanha, Paulo Freire, Caio Prado, Florestan Fernandes entre outros, que acreditaram na possibilidade de todos os homens serem capazes de conduzir a própria vida em sociedade como iguais em direitos.

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Por uma educação que possibilite aos jovens a iluminação necessária para conduzir o sentido humano da própria existência.

Isto não é diferente do que disse o nosso Mestre Jesus (apud GOMES, 2008, p.11):

―Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância‖ (Jo 10,10), ―vós sois a sal da terra e luz do mundo‖ (Mt5, 13 ss).

Não é humano e nem justo desconsiderar o futuro, não é cidadania, esquecer o destino da

nossa juventude. Como bem disse Padre Antônio Vieira, é o momento de reafirmar ―não vos peço mendigando, mas vos exijo raciocinando‖.

Conclamamos, pois, em nome do Estado Democrático de Direito, dos vinte e cinco anos quase da nossa Carta Magna de 1988, dos sessenta anos dos Direitos Humanos no Brasil e em nome da História, em nome da esperança que a todos nos alimenta, em nome da razão, conclamamos educadores e governo, administradores públicos e família, sociedade organizada e cidadãos, encontremos caminhos e projetos para cuidar da nossa juventude.

A educação não prepara para segui-la, mas preparam os escolhidos, os que nela se predisponham a cuidar e a colocar o outro, os indefesos e os menos favorecidos como prioridade de vida. Daquilo que não se conhece e não se abre a conhecer não se pode amar, assim nos ensinou SANTO AGOSTINHO. E que tempos mais tarde se tornou bandeira da grande humanista de que o século XX conheceu HANNAH ARENDT e que até bem pouco tempo esteve entre nós de ―pensar e agir pelo amor do mundo‖.

Ocupando boa parte de seu tempo na busca de experiências políticas, procurando as brechas que poderiam vir revolucionar a política da era moderna. Como ela mesma disse tempos depois: ―o poder começa onde o verdadeiro segredo e o oculto se apresentam ou se manifesta‖.

Este é o pacto primordial que padece de alguma enfermidade, é o de não ser objeto de afeição de cada morador desta terra abençoada por Deus. O país do futebol, do carnaval e da beleza natural entre outras. E neste sentido o autor de o Pequeno Príncipe nos deixou um grande ensinamento ―somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos‖. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF. 1997. Primeiro e Segundo ciclos do Ensino Fundamental; BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais; BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias – Filosofia, Sociologia e História. Brasília, MEC/SEB, 2006; MEC/SEF. 1997. Primeiro e Segundo ciclos do Ensino Fundamental. Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade – MEC – SEESP/Brasília/DF – 2007; BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Artigos: 5º; 37º ao 41º; 205º ao 214º; 227º ao 229º. Brasília. DF Senado 1988; Lei Federal nº 9.394, de 20/12/96 – Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional; Lei Federal nº 8.069, de 13/07/90 – Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Artigos 53 ao 59 e artigos 136 ao 137; SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o ensino de Filosofia para o Ensino Médio. São Paulo: SE, 2008 (www.rededosaber.sp.gov.br/portais/portals/18/arquivos/prop_filo_comp red_md_20_03.pdf), 10 de fevereiro de 2011; Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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O CINEMA E A CAVERNA: LUZES E SOMBRAS DA REALIDADE E DA EDUCAÇÃO

Patrícia Colavitti Braga Distassi

Profª Drª FACERES/USP Adalberto Miranda Distassi

Prof. Msc. FACERES Resumo: O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o cinema e seu papel mediador na sala de aula. Ao investigarmos o cinema, podemos observar que ele transcende a condição de narrativa verbo-visual e alcança patamares elevados dentro do universo da educação, da arte, da crítica, da comparação de situações e do espelhamento da realidade social. Para ilustrar essa afirmação, fizemos uma recorte do obra ―A Sociedade dos Poetas Mortos‖ e propusemos uma leitura comparada entre ela e o Mito da Caverna de Platão. Palavras-chave: Cinema; Sociedade dos Poetas Mortos; Mito da Caverna; Educação. Abstract: This paper presents a reflection on cinema and its mediating role in the classroom. By investigating the filme, we see that it transcends the verbal-visual narrative and reacjes high levels within the realm of education, art, criticism, and comparison situations mirroring social reality. To illustrate this afirmation , we made a CUT of the filme ―The Dead Poets Society‖ and proposed a comparative readinf betwenn it and the Myth of Plato´s Cave. Keywords: Cinema; Dead Poets SocietY; Myth of the Cave; Education. Um dueto de imagens: cinema e escola

Ao olharmos de maneira investigativa para o objeto ―cinema‖33, podemos observar que em

uma sociedade ele se revela de maneiras distintas, dependendo da situação em que está inserido ou que pretende representar ou refletir, possibilitando, dessa forma, visões didáticas, informativas, epistemológicas da realidade e da arte, as quais se configuram em possibilidades de conhecimento a partir de uma experiência dada.

Assim, segundo o Prof. Dr. Amaury C. Moraes34, o cinema pode ser compreendido como

objeto de arte, à medida que possibilita uma ―experiência estética‖, entendendo-se como tal, tudo aquilo que modifica o foco de nosso olhar para a realidade; enfim,a partir do contato com o objeto de arte, nossa percepção de mundo é transformada. Há também o cinema que se propõe a entreter; esse tipo de manifestação cinematográfica reproduz o mundo, não o sintetiza por meio da arte e, conseqüentemente, não nos possibilita um olhar especial para o universo que nos circunda. E, por fim, vale citar os filmes de entretenimento e arte, os quais, apesar da sugestão do entretenimento, propiciam a reflexão.

No contexto escolar, o sentido da inserção do cinema deve se construir pela consciência da

necessidade de se propiciar aos alunos uma experiência estética, pela necessidade de se apresentar e de se conhecer o mundo de forma diferente bem como pelo desejo de buscar o prazer no encontro dos sentidos implícitos e explícitos do filme.

Assistir a um filme e desvendá-lo é treinar o olhar de descoberta, é poder analisar a visão da

sociedade em relação ao flagrante do cotidiano que compõe o enredo, é poder se distanciar para observar que a cena que está fora do quadro ―realidade‖ influencia a cena que está dentro do quadro ―ficção‖; fora do quadro pode estar uma razão sociológica, psicológica ou poética, e dentro dele, está a concretude figurativa da sociologia, da psicologia, a própria poética.

33 Estamos nos referindo ao cinema que se constrói a partir de um processo de intensa elaboração. 34 MORAES, A.C. Anotações da aula do curso Linguagem, Cultura e Educação. São Paulo: USP, 2003.

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Por isso, o cinema se propõe não somente como fonte de entretenimento, reflexão ou

experiência estética, mas também como fonte de pesquisa, pois, o objeto de pesquisa deve referir-se a uma situação dada na realidade e o filme capta essa situação. Então, como objeto de pesquisa, ele pode ser utilizado como:

_ Tese: levar e comprovar a mensagem. _ Espelho: representação da realidade. _ Arte: síntese e superação da realidade. _ Crítica: pretensão de mudar uma situação. _ Comemoração: valorização de um tipo de educação. _ Comparação: educação comparada. No entanto, ainda hoje, cinema e televisão apresentam-se como objetos estranhos em sala de

aula, pois, apesar de terem (dependendo da escolha feita pelo professor) as funções intelectuais acima aludidas, não são entendidos pela sociedade como fonte importante de conhecimento epistemológico e ontológico.

Há, ainda, professores, que por falta de informação, utilizam o filme em sala de aula apenas

como entretenimento, gerando a idéia equivocada de que a escola se propõe a estender o divertimento e o entretenimento proporcionados, para o aluno, pela sua casa, para a sala de aula; assim, a ausência de um planejamento pedagógico em que se inclui o filme aleatoriamente, exclui-se a função didática ou epistemológica do diálogo que esse propõe com o real, gerando a insatisfação dos pais e o prejuízo do processo educacional.

Sendo assim, é válido ressaltar que é preciso fazer, antes da projeção do filme, a elaboração

de um plano de trabalho, com objetivos claros relacionados ao filme, utilizando-o como mediador do processo de ensino-aprendizagem de conteúdos específicos; deve-se expor para os alunos os objetivos didáticos da atividade, dentre eles, a necessidade do contato com a experiência estética e, por fim, uma avaliação, a qual pode se configurar em um trabalho de reflexão, a elaboração de um painel, a pintura de um quadro, a criação de uma obra de arte tendo o filme como motivo inspirador, a montagem de um documentário, enfim, uma estratégia de avaliação em que as informações e ideias geradas pela obra transfigurem-se em sabedoria e em ação prática por ela gerada.

Ao focalizarmos nosso olhar para a relação cinema X escola, alguns questionamentos são

suscitados: ―Como o imaginário social representa a escola?‖, ―Qual é a idéia de representação que esse imaginário social faz da escola?‖

Os filmes, inicialmente, configuram-se como ―reflexo‖ da visão que a sociedade tem da

escola, sobre o que ela é, ou deveria ser e, em um segundo momento, eles podem também propor ―influências‖, e, a partir daí, mudam a concepção, a percepção do receptor, possibilitam a ―experiência estética‖.

Há construções cinematográficas que pretendem ser mais reflexo e outras apresentam mais

possibilidades de influência, cabe ao professor analisar seus objetivos (levando em consideração as necessidades da transferência de sua cultura letrada e o universo do aluno) e o (s) filme (s) eleitos para seu trabalho e, somente a partir daí, propor uma relação dialética entre conteúdo teórico e o filme.

Essa relação dialética tem o filme como aliado para a complementação das aulas; para

motivação das discussões sobre as representações; para a utilização dele como elemento de análise; reflexão e posterior montagem de ―relatório de observação‖ de estágio; para trabalhar a filosofia da

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educação: ―Quais são os sentidos da educação‖? ―Quais são os motivos da tarefa docente? ‖, ―Qual é a educação que se espera?‖.

Dessa, forma, o cinema se propõe como um elemento facilitador e como importante

elemento de ilustração, investigação e análise científica; e sua contribuição para tanto para a formação do professor quanto para a do aprendiz tem importância singular, já que ele concretiza e expõe figurativamente as visões que a sociedade tem do universo. É função do professor, conhecer as finalidades desse elemento e utilizá-lo em sala de aula como recurso didático e não apenas como fim pedagógico sem objetivos específicos.

Sendo assim, pretendemos utilizar o filme ―Sociedade dos poetas mortos‖ como um

importante elemento para comprovar que as histórias cinematográficas podem exercer uma função didática e oferecer contribuições ao processo de formação do professor e do aprendiz.

É relevante dizer que não pretendemos fazer uma análise do filme e, sim, um recorte do

mesmo e observar como o cinema revela, por meio de uma retórica ilustrativa, a visão de uma sociedade sobre os atores do contexto escolar: professor, alunos, direção, ensino. Como poderemos observar, essa visão da sociedade revelada pelo filme termina por estabelecer uma relação dialógica, intertextual com o mito platônico, presente no livro VII da República de Platão, deslocando-o e apresentando-o sob novas nuances, porém, ilustrando a tese do filósofo.

Em 1959 na Welton Academy, uma escola em que a tradição é palavra e ato de ordem,

―templo‖ educacional que é freqüentado exclusivamente por rapazes, um ex-aluno, John Keating se torna o novo professor de literatura, mas, logo seus métodos não ortodoxos de incentivar os alunos a pensarem por si mesmos e perceberem que aprender pode ser um prazer, cria um choque com a direção do colégio.

Keanting fala aos seus alunos, por conta de uma motivação dos mesmos sobre a uma espécie

de sociedade secreta a "Sociedade dos Poetas Mortos", na qual se pode exercer o arquetípico ―Carpe Diem‖, lema que o professor ensina. Nessa sociedade, os jovens se reuniam habitualmente para ler versos e vivenciar, por meio da literatura, suas paixões e anseios. Os alunos, inspirados pela conduta do professor, reativam as reuniões em uma caverna indígena.

Dessa forma, ao ressuscitar esses hábitos, o professor incentiva os jovens a seguir os

próprios instintos, a conceber a autonomia para decidir seus destinos. Mas, habituados a ver a luz, os meninos resistem ao destino pleno de interdições que seus pais impõem. Um deles, por exemplo, pretende tornar-se ator de teatro, contrariando a vontade do pai, que o quer na advocacia.

No entanto, embora as novidades implementadas pelo mestre agradem a maior parte dos

alunos (como assistir às aulas ao ar livre, jogar futebol impulsionados pela força literária e arrancar dos livros didáticos as páginas consideradas inúteis ou prepotentes) as medidas não são bem recebidas pela direção da escola, que as castra exemplarmos.

O filme contrapõe o desejo e a instauração da liberdade de ser e de existir aos rígidos códigos

de conduta que regem as instituições educacionais tradicionais e retrógradas.

A sociedade da caverna Como já referimos anteriormente, o filme ―Sociedade dos poetas mortos‖ retoma o mito

platônico, mas o desloca para outros espaços e formas. No mito, o espaço em que ocorre a repressão é a caverna e fora dela estava a luz, a

liberdade de ser, sentir, pensar, enfim, de olhar a realidade, de conhecer o bem e a verdade. No

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entanto, no filme, há uma irônica inversão de sentidos, provocada pela configuração dos espaços, pois a caverna é reconfigurada e assume novas formas: a caverna é a tradicional escola ―Welton Academy‖, lugar onde deveriam estar a luz e a Verdade, o Conhecimento, o mundo das idéias; enquanto o espaço da libertação é a caverna indígena para onde os meninos vão, a fim de entrar em contato com o mundo das idéias e contemplar a luz do dia e da noite; dessa maneira, a caverna se reconfigura e deixa de ser somente uma caverna onde uma luz que vem do alto incide e ilumina o cabeça do personagem que está presidindo a reunião, para tornar-se a verdadeira realidade.

Dessa forma, se o espaço subterrâneo ―a caverna indígena‖ significa o espaço em que o

homem chegou após sua ascensão e que poderá exercer o direito ao ―carpe diem‖, a escola está num plano ainda mais inferior, é ela o mundo demoníaco, comprovado pelo trocadilho ―Infernooton‖ aludido pelos jovens.

O filme é iniciado por uma significativa seqüência de cenas: primeiro, o que se vê é

escuridão total, o que sugere que os sentidos sugeridos pelas trevas terão importância fundamental no enredo; depois, a escuridão é rompida por uma luz artificial, uma vela acesa protagoniza a imagem; uma luz que vai iluminar as sombras, figuras de meninos pintadas nas paredes do colégio, próxima imagem flagrada pela câmera; é interessante notar que essa imagem em harmonia com o som das vozes emitidas pelos meninos, dá verossilhança à cena, criando a sensação de que as sombras estão falando; e como é a câmera que se desloca pelo espaço, tem-se também a sensação de que os meninos pintados caminham.

Como não há luz maior, só se pode ver aquilo que é iluminado pela luz artificial, e nosso

olhar é dirigido pela lente, é como se estivéssemos presos por grilhões e só nos fosse permitido olhar para frente; nesse momento, uma visão panorâmica da situação que se apresenta e, então, ficamos concentrados, com o olhar fixo nas imagens e, percebemos que se funde, às gravuras da parede, uma cena protagonizada por um adulto que veste uma criança (um aluno da escola) exatamente como estão vestidos os desenhos na parede, e esse menino é um sujeito completamente passivo à sua condição.

Posteriormente, o filme nos apresenta um amplo e organizado salão em que os meninos

adentram; nesse espaço, configura-se, de fato, na alegoria da caverna, nele, os meninos são recebidos na escola e conhecem as quatro palavras de ordem: ―Tradição, Honra, Disciplina, Excelência‖, que compõem uma espécie de estigma que sofrerão: a necessidade de obedecer a dogmas que são transmitidos de geração a geração e desmontam sua individualidade, o que é corroborado pela imagem dos antigos acendendo a vela dos novos, parecendo metaforizar o sistema de hierarquia e de honrarias aludidas por Platão, bem como a doação da possibilidade de visão por meio de uma luz frágil e artificial; desse modo, os homens, de geração em geração são aprisionados e condenados a ver a partir de um ―sol artificial‖ (a vela) que ilumina sombras ao invés da imagem verdadeira das coisas.

Segundo nos diz Giddens, apud Hall (1997):

A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados nas práticas sociais recorrentes. (...) o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência das gerações.(p.15).

Essa massificação dos sujeitos por meio de um código de conduta gerido por essas palavras

de ordem, Hall (1997) denomina como uma "estratégia discursiva" em que:

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tradições que parecem ser antigas são muitas vezes de origem recente inventada (...); tradição inventada significa um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica que buscam inculcar valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado (p.58).

A essa estratégia discursiva não importa o quão diferentes seus membros possam ser em

termos de classe, gênero ou raça, pois, estarão representados como unidade de identidade através do exercício de diferentes formas de poder.

Posteriormente, o professor Keating é apresentado como um ex- aluno do colégio que agora

está entre os seus como mestre. Mas Keating é uma figura que se oporá à bandeira da interdição que, literalmente, é levantada nesse ritual de iniciação ao qual estamos aludindo: Tradição. Keating é um educador que não se enquadra enquanto formador, a partir de um conceito de educação desejada por esses pais que escolhem o colégio porque ele é, tradicionalmente, o melhor elemento de acesso à universidade. Para os pais, bem como para os diretores a idéia de educação pretendida é a que Durkheim, citado por Gadotti (1996) se refere:

(...)a educação se definia como a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontravam preparadas para a vida social. A educação tem por objetivo suscitar e desenvolver (...) certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança se destine.(p. 115).

Sua prática é baseada em modernos métodos de ensino de literatura, ele busca ensinar os

jovens a pensar, e, por meio da poesia, de novas formas de ver e de ouvir as imagens - aprendendo com elas, compreendendo a sua didática, ouvindo seus ensinamentos – como podemos observar na cena em que os meninos são apresentados às fotos dos que passaram pela escola; nesse momento, o professor conscientiza os meninos que as fotos são apenas imagens, imagens que ensinam ―Carpe Diem‖; o sentido especial dessas imagens é que elas propiciam ―experiência estética‖, elas visam a revelar e promover, nos que as vêem, o desejo de viver intensamente, desejo esse que já estava incrustados em suas almas e agora estão apenas tendo eco.

É como se o professor quisesse, por meio desse exercício, iniciar a transição dos jovens para uma nova compreensão do real; e, a voz que os meninos ouvem, não é o eco de suas próprias vozes, mas um chamamento que assume características sobrenaturais e se mescla à voz real do professor.

Dessa forma, Keating parece assumir para a maioria dos meninos uma condição divina, ele

parecerá, para esses, a entidade celestial que tira o homem da caverna e, por ser assim, sua conduta será a do líder, que alguns estudos compreendem como autoritarismo; mas que compreendemos como autoridade, dada por sua condição de ser superior, que tem como função conduzir e tirar da caverna aqueles que estão apegados a ela; e, como nos mostrou Platão, não há modos de se fazer isso sem uma certa força: “Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora”.

Depois dessa aula, um grupo de meninos vislumbra a possibilidade de ascensão e saem da

caverna em direção à ―Sociedade dos Poetas Mortos‖. Então, novamente, observa-se uma a presença de um diálogo com o mito: a sombras são novamente focalizadas e os meninos se libertam fugindo da escola e se embrenhando em um rito de passagem que se compõe pelo caminhar na escuridão da floresta “Fui à floresta porque queria viver profundamente”, pela passagem por um arco e pela chegada à caverna indígena, o espaço no qual os meninos compreenderão o que é sombra e saberão contemplar o real.

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O ápice da libertação é atingido quando um dos alunos, que conhecia o drama da interdição

provocada pela família e pela sombra do irmão genial, consegue superar a condição de não ter feito o poema e, portanto, vence a interdição que se instaurava em seu ser e consegue se expressar, compondo um poema diante dos amigos; momento em que o professor ajoelha-se diante do aluno, contemplando o momento ímpar de ter conduzido o jovem ao mundo das idéias.

No entanto, Neill, personagem romântico, queria ser ator, mas tem seu sonho castrado pelo

autoritarismo paterno, não resistindo à interdição do pai, suicida-se. Interditando a própria vida, o jovem revela que não soube sair da caverna como saíra o filósofo, pautando seus atos, ainda que transgressores, pela razão e acaba por um viés deturpado corroborar a afirmação do diretor: “É um risco encorajá-los a serem artistas”, o que se torna um pretexto para a interdição da visão da luz da noite e do dia para os meninos e para a demissão de Keating: “acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragar a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?‖ (p.321)

Considerações finais

Em síntese, concluiu-se que o filme ilustra o perigo salientado por Platão, pois, se para os jovens, o educador é o ―deus‖ que os tira da caverna, para a direção, ele é o filósofo que, ao voltar trazendo o que vira no mundo das idéias, será aniquilado pela mediocridade, pois, Keating, era um ex-aluno, era um ex - habitante da caverna, e como tal não era possível admitir sua ascensão; suas idéias sofreriam a deturpação, suas práticas, a interdição, e se isso não fosse o suficiente, sua morte talvez fosse necessária, a qual é ilustrada pela metáfora da demissão do professor. No entanto, alguns de seus alunos, percorrem o caminho ascendente e ―sobem nas carteiras‖ para protestar a demissão do mestre, mostrando que desenvolveram a faculdade do pensamento e do posicionamento como cidadãos, que saíram da caverna, objetivo maior de Platão, ao compor a alegoria que transcende tempo, espaço e concepções pedagógicas.

Dessa maneira, por meio do filme ―A Sociedade dos Poetas Mortos‖, podemos concluir que

o cinema, enquanto objeto de arte cumpre a sua função estética e promove a síntese e a superação do real; compara duas formas de educação, a tradicional e a inovadora; comemorando a última; porém, de modo crítico e educativo, reafirmando os perigos já salientados por Platão; desse modo, o filme também é utilizado como uma tese, pois, traz a comprova a mensagem platônica, que por, ser atemporal e universal, figura como espelho da realidade.

Bibliografia BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. Galvão. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes,2000. BARROS, D. P. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1998. ____________. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990. Translated by Richard Havard. New York: Pantheon Books, l963. CARRETO, C.C. Figuras do Silêncio. Editorial Estampa. Lisboa,1996. GADOTTI, M. História da Idéias Pedagógicas. São Paulo: Editora Àtica,1996. HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. LIMA, L. O. Mutações em educação segundo Mc Lulan. Petrópolis, Vozes,1991. LUBOCK, P. A técnica da ficção. São Paulo: Cultrix/Edusp. 1976. MANGUEL, A. Uma História da Leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia da Letras,1997. 2ed. _____________. Lendo imagens. Trad. De Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Claudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras,2001.

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MORAES, A.C. Anotações de Aula do Curso Linguagem, Cultura e Educação. São Paulo: USP,2003. OSTOWER,F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, vozes,1990. PLATÃO. Diálogos/ Platão; seleção de José Américo Motta Pessanha; trad. E notas de José Cavalcanti de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5a.ed. Nova Cultural, 1991. (coleção ―Os pensadores‖). RICOUER, P. Interpretações e Ideologias. Organização, tradução e apresentação de Hilton Jupiassu. Rio de janeiro: Ed. Guanabara, 1988. RIOS,T.A. Compreender e ensinar- por uma docência da melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2001. ROSENTHAL, E. T. O universo fragmentário. Trad. Marion Fleischer. São Paulo. Ed. Nacional/Edusp, 1975. SCHOLES R., KELLOG, R. A Natureza da Narrativa. Trad. Gert. Meyer. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1997. Sociedade dos poetas mortos Nome Original: Dead Poets Society Versão em Português: Sociedade dos Poetas Mortos Duração: 129 min. Direção: Peter Weir Roteiro: Tom Schulman Elenco: Robin Williams, Robert Sean Leonard, Ethan Hawke e Josh Charles Música: Maurice Jarre Fotografia: John Seale Gênero: Drama Ano: 1989 Enviado em 03/08 Avaliado em 15/10

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DO AUTORITÁRIO AO LÚDICO-CRÍTICO: O JORNAL

MEIA HORA EM SALA DE AULA

Phellipe Marcel da Silva Esteves

Precisamos das crianças como professoras, não como alunas. Elas têm muito a contribuir para a revolução lúdica porque sabem brincar melhor do que os adultos. Adultos e crianças não são idênticos, mas vão se tornar iguais por meio da interdependência. Somente a brincadeira pode acabar com o conflito de gerações. (BLACK, 2006, p. 44)

A proposta deste trabalho é uma intervenção prática e teórica no ensino de língua

portuguesa, tendo como fundamentação a Análise do Discurso Francesa (Pêcheux e Orlandi) — doravante AD. Partamos da epígrafe de Black: os colégios, segundo o autor, são reproduções adaptadas de edificações voltadas a trancafiar prisioneiros e loucos. Neles, não se desfruta da riqueza do material lúdico proporcionado e produzido pelas crianças, com suas controvérsias — no sentido de ser contra o verso, o verbo, a palavra —, dúvidas ao óbvio, xeque aos princípios. Não que o óbvio, o evidente e o ideológico não existam com a/na criança... eles estão lá, vivos, inconscientes, mobilizando escolhas, estruturando dizeres; mas o trabalho de divisão da interpretação do mundo ainda está incipiente.35 É mesmo difícil definir quem é ou quem não é criança, claro, e a discussão aqui não é essa. Caminhamos na seguinte premissa: o ludismo em potencial do ambiente escolar — considerando-se esse espaço discursivo como um aparelho ideológico em que se encontram tantas crianças, tantos interlocutores em contato com tantas e diverso(a)s mat(r)izes ideológico(a)s — se transforma em autoritarismo, numa relação de poder em que os efeitos de sentido se dão regidos por uma política de silenciamento. Esclareçamos que essa política de silenciamento (ORLANDI, 2007) não significa apenas um ―calar‖ da voz do outro, mas uma injunção ao dizer de determinada forma, ao dizer que suscita determinados sentidos: ―O autoritarismo poderia ser considerado (...) como uma espécie de ―narcísea social‖, já que deseja, procura impor (pelo poder, pela força) um sentido só para toda a sociedade. (...) se obriga a dizer ―x‖ para não deixar dizer ―y‖‖ (ORLANDI, 2007, p. 80-81). Nesse sentido, ainda que reconheçamos a sugestão de Freire como fundamental, ela se mostra insuficiente para uma maior circulação de sentidos no espaço escolar:

(...) reconhecer nos outros — não importa se alfabetizandos ou participantes de cursos universitários; se alunos de escolas do primeiro grau ou se membros de uma assembléia popular — o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de falar a que corresponde o nosso dever de escutá-los. (...) Mas, como escutar implica falar também, ao dever de escutá-los corresponde o direito que igualmente temos de falar a eles (...), falar com eles (...). Dizer-lhes sempre a nossa palavra, sem jamais nos expormos e nos oferecermos à deles, arrogantemente convencidos de que estamos aqui para salvá-los, é uma boa maneira que temos de afirmar o nosso elitismo, sempre autoritário. (FREIRE, 2009, 26)

Não se trata apenas de permitir que os alunos falem e os professores os escutem, trocando

ideias. Isso inclusive é permitido num contexto autoritário. O silenciamento não se dá apenas no calar absoluto, mas no exigir falar aquilo que se deve falar. Em um artigo precisamente sobre o discurso pedagógico, Orlandi (1996, p. 15) considera que ele se trata de um discurso autoritário —

35 Os muitos ―por quê‖s são exemplos bem claros disso, assim como as constantes questões em relação às circunstâncias que um adulto consideraria óbvias: ―Mamãe, a Disney é legal?‖ ―É claro que sim, meu filho.‖ Mas por quê? Por que não é possível a Disney não ser legal?

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de polissemia36 contida, ou seja, em que não se permite, inconscientemente, o benefício da metáfora, do deslizar de sentidos. Na tipologia de discursos elaborada por Orlandi, existem ainda dois outros discursos: o polêmico, cuja polissemia é controlada; e o lúdico, cuja polissemia é aberta. Ainda que os planos lúdicos em Orlandi e Black sejam diferentes — respectivamente, um é relativo a uma maior possibilidade de circulação de sentidos, com injunções reduzidas e o ―diferente‖ atravessando o discurso; o outro é relativo à própria brincadeira, lato sensu, que se contrapõe ao trabalho —, iremos aqui aproximá-los, com o objetivo de aprofundar uma proposta de Orlandi:

Em uma sociedade como a nossa, tenho observado que o lúdico é o desejável, é o que vaza, pois o uso da linguagem por si mesma, ou seja, pelo prazer — atestado pela linguagem e não pelo psicológico —, entra em contraste com o uso para finalidades mais imediatas, comprometidas com a idéia de eficiência e resultados práticos. No lúdico, a informação e a comunicação dão lugar à função poética e à fática. Assim, em nossa sociedade, segundo o que temos considerado, o lúdico é a ruptura, ocupa um lugar marginal, ao contrário do polêmico e do autoritário (ORLANDI, 1996, p. 84)

Isso não significa dizer que, com essa ruptura promovida pelo lúdico, ter-se-á uma solução

a todos os problemas político-ideológicos do plano socioeconômico brasileiro, nem mesmo do plano educacional. Ganha-se, no entanto, uma circulação maior de sentidos controversos, contra-hegemônicos; em oposição, em co-ocorrência. Seria a tal polissemia aberta, diametralmente oposta ao autoritarismo promovido pelo espaço tradicional da escola.

Segundo Pêcheux, Haroche & Henry (2008), a inscrição dos sujeitos nas formações

discursivas — as matrizes de sentido que constituem semanticamente nossas palavras — existentes numa formação social se dá através de mecanismos inconscientes: ―as palavras ―mudam de sentido‖ ao passar de uma formação discursiva a outra‖ (PÊCHEUX, HAROCHE & HENRY, 2008). Embora tentemos controlar o sentido daquilo que dizemos, algo escapa, algo que se relaciona a uma memória daquilo que já foi dito e daquilo que já foi silenciado. A tomada de posição pelo sujeito não é livre de sua inscrição nas formações discursivas constantes de sua formação social, embora se tenha a impressão de que se é a origem do dizer, de que o sujeito é a origem de si mesmo no processo interlocutório.

A noção de ―ato de linguagem‖ traduz, de fato, o desconhecimento da determinação do sujeito no discurso. Permite, ainda, dizer que, na verdade, a tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um ―ato originário‖ do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-tranverso, isto é, o efeito da ―exterioridade‖ do real ideológico-discursivo, na medida em que ela ―se volta sobre si mesma‖ para atravessar. Nessas condições, a tomada de posição resulta de um retorno do ―Sujeito‖ no sujeito, de modo que a não-coincidência subjetiva que caracteriza a dualidade sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa daquilo de que ele ―toma consciência‖ e a propósito do que ele toma posição, é fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se identifica consigo mesmo, com seus ―semelhantes‖ e com o ―Sujeito‖. O ―desdobramento‖ do sujeito — como ―tomada de consciência‖ de seus ―objetos‖ — é uma reduplicação da identificação, precisamente na medida em que ele designa o engodo dessa impossível construção da exterioridade no próprio interior do sujeito. (PÊCHEUX, 2009, p. 159-160)

36 Lembrando que o conceito de polissemia, em Orlandi, não significa apenas a capacidade de uma palavra ter vários sentidos, mas a possibilidade de instauração de um outro sentido, não dominante, no discurso: ―O Diferente: nas mesmas condições de produção imediatas (locutores e situação) há no entanto um deslocamento, um deslizamento de sentidos (Polissemia). (ORLANDI, 1998, p. 15)‖

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Sendo assim, embora nossa a estruturação de um texto possa se dar, até certo ponto, de

forma consciente, não é possível se assenhorar, domar os sentidos de tudo aquilo que dizemos, falamos, escrevemos. Visto dessa maneira, não é possível que se simplesmente escolha a que rede de sentidos se filiar e a que filiar a materialidade linguística produzida subjetivamente — esse é um processo que, embora envolva escolhas, sim, do sujeito, é estruturado sobre uma malha de dizeres outros, muitas vezes inacessíveis, e que constituirão o sentido. É preciso, no entanto, que se combata frontalmente, na figura de educadores, um Discurso Pedagógico cercado de circularidades, de axiomas, de ―é porque é‖, e assim deve ser. Em outras palavras, a crítica teórica a esse modelo de ensino tradicional com que estamos acostumados já é uma forma prática de se estimular a diferença de opiniões e o aflorar de novos sentidos para o fazer educativo.

Para isso, nossa primeira proposta — que deriva de uma pesquisa feita a partir de 2008 —

37 é inserir no âmbito escolar a leitura daquilo que se considera como jornalismo popular: aquele voltado às classes populares imaginadas como tal. Enfatizamos que o objetivo aqui não é encontrar acriticamente o artigo 32º da Lei de Diretrizes e Bases, que determina que no ensino fundamental se deve conquistar ―o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo‖ (BRASIL, 2010; negrito nosso). A leitura não é entendida, na Análise do Discurso, como uma capacidade adquirida e dominada/domada durante o percurso escolar, mas como um efeito-leitor, ou seja: a articulação entre as diferentes memórias — a discursiva, que são todos os dizeres já formulados; a institucional, que circunscreve os arquivos que recuperam e materializam a memória discursiva, de forma a algumas coisas não serem esquecidas; e a metálica, que tem a ver com a quantificação eletrônica de dados sem historicidade, apenas armazenados — de forma a os sentidos serem definidos ideologicamente (ORLANDI, 2001) nos interlocutores, em suas distintas posições-sujeito.

A leitura do jornal Meia Hora de Notícias — escolhido nessa pesquisa de 2008 — em sala de

aula proporcionaria, portanto, uma circulação de sentidos sobre aquilo que se fala sobre determinadas classes sociais, a saber, aquelas relacionadas a um imaginário de povo. Por isso, esse projeto — de fato, essa nossa proposta de intervenção escolar pela Análise do Discurso — pode ser implantado tanto em colégios da rede pública quando da rede particular, visto que os dizeres sobre a sociedade afetam qualquer estudante, nessa fase de profundo alinhamento ao aparelho ideológico de Estado que é a escola. Com essa intervenção no discurso pedagógico, não se busca o que é unânime e ―ponto-morto‖ na palavra dos alunos, mas um discurso escolar lúdico-crítico, com polissemia aberta; ou seja: o ―imexível‖ e os ―vespeiros‖ deixam de ser monossêmicos e passam a ter várias possibilidades de sentido. O ensino formal prevê que o aluno faça leituras sobre o que são classe sociais, o que é democracia, o que é povo, e não raro essas categorias são apresentadas como conteúdos fechados, caixas trancadas que não cabem ser abertas pelos estudantes. Contudo, dentro dessa repetição de sentidos, dessa monovalência, pode vir a romper o diferente.38 Assim, admite-se aquilo que Orlandi chama de plural: ―O plural, o que varia, não é o que tem defeito, o que não é correto. É o cerne mesmo da nossa capacidade de linguagem. Estamos sempre às voltas com versões. Por que uma e não outra? Eis a questão‖ (BARRETO & ORLANDI, 2006).

Para se chegar a essa pluralidade de sentidos, a AD faz um percurso das condições de

produção de determinado discurso; no caso, o discurso jornalístico do jornal Meia Hora de Notícias. É através desse percurso que será possível compreender o funcionamento da ideologia nesse jornal.

37 Denominada A translação de sentidos entre língua e classe social, contemplada com uma bolsa Capes, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e orientada por Vanise Gomes de Medeiros. 38 Lembrando que a Análise do Discurso Francesa não trabalha com a palavra como se ela tivesse um sentido imanente, mas em suas possibilidades e injunções semânticas. Em outras palavras, como já foi mencionado, a palavra só ganha seu sentido dentro de determinada formação discursiva, que é a base material da ideologia por excelência.

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E, tendo em mãos/mente39 as condições de produção de um discurso, podemos enveredar pela análise do funcionamento até mesmo das formas gramaticais de um discurso. Não se trata, entretanto, de se fazer uma análise sintática tradicional, formal e descritiva, explicitando, por exemplo, uma oração subordinada adverbial e sua oração principal. Trata-se, sim, de entender os sentidos sendo constituídos por meio dessas funções sintáticas, e de que forma a subordinação, mais uma vez por exemplo, constitui já um processo ideológico, e não apenas gramatical — na verdade, o gramatical já é ideológico, e não há exterior e interior nesse caso: um é constituído mutuamente pelo outro. Meia Hora de Notícias; memória de sentidos

Todo jornal é produzido relativamente a um leitor imaginário, inscrito. É buscando se

aproximar dele que o jornal mobiliza seus recursos; entre eles, os linguísticos: (...) a instituição jornalística não funciona sem leitores, e se ela busca atraí-los como consumidores, há que se considerar que todo jornal noticia para segmentos determinados da sociedade, produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento. Esta imagem, por sua vez, pode ser depreendida, na própria prática do discurso jornalístico: no „como se diz‟ já se encontra embutido o „quem vai ler‟. (MARIANI, 1998, p. 57) [negritos nossos]

Segundo Mariani, a forma como a língua será mobilizada já diz muito sobre a imagem

daquele que, imagina-se, lerá o jornal. Ao mesmo tempo que na instituição jornalística fala-se ao leitor com determinada língua, vão sendo veiculados, circulados, produzidos os sentidos sobre esse sujeito-leitor; aquele que imaginariamente corresponde ao público-alvo de determinado veículo de comunicação. Trata-se, logo, de um teatro de imagens, em que instituição e leitor cambiam sentidos a todo momento. Esse teatro de imagens que envolve os leitores leva em conta, entre outros quesitos, dois âmbitos abordados por Antonio Gramsci:

Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista principais: 1) como elementos ideológicos, ―transformáveis‖ filosoficamente, capazes, dúcteis, maleáveis à transformação; 2) como elementos ―econômicos‖, capazes de adquirir as publicações e de fazê-las adquirir por outros. Os dois elementos, na realidade, nem sempre são separáveis, na medida em que o elemento ideológico é um estímulo ao ato econômico da aquisição e da divulgação. (2006, p. 246)

Sendo assim, entre as características de leitor imaginadas pela instituição jornalística, estão

as questões de valores e ideias — lembrando que ideologia, para Gramsci, significa conjunto de ideias representativas de dado grupo social, o que não diverge totalmente da noção de ideologia formulada no âmbito da AD, a saber: ideologia é o conjunto de sentidos que se apresentam em dadas formações discursivas como evidentes, como inevitáveis e naturais, embora sejam frutos de gestos interpretativos — que conduzem a classe, e as questões econômicas. Trocando em miúdos, a forma como a instituição jornalística imagina seus leitores leva em conta, entre tantos outros sentidos, os surpostos valores e o esperado poder aquisitivo. A classe social, assim, é um fator primordial no leitor inscrito em qualquer jornal: faz-se o jornal para um público imaginário específico que não corresponde à formação social, mas ao que se imagina ser determinado grupo social. Se um jornal como o Meia Hora de Notícias se afirma como popular — conforme veremos na primeira sequência à frente —, ele se enquadra num tipo de discurso, o do jornalismo popular. Para a Análise do Discurso, um tipo de discurso não é uma forma autônoma com determinado fim sociocomunicativo estável, mas uma dada materialidade que ao longo de sua historicidade vai cristalizando seu funcionamento. Segundo Orlandi, ―A consideração do tipo como parte das condições de produção é fundamental (...) a relevância dos fatores que constituem as condições de significação de qualquer dizer é determinada pelo tipo de discurso‖ (ORLANDI, 1996, p. 198). Para

39 Nessa brincadeira entre as palavras mão e mente, preconizamos que o trabalho intelectual não precisa ser distante do trabalho corpóreo, como defendia o próprio Antonio Gramsci em seus Quaderni.

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se analisar, portanto, o Meia Hora de Notícias, deve-se lembrar que, entre suas condições de produção, entra o tipo de jornalismo em que se enquadra. Comecemos a analisar de que forma o tipo de discurso jornalismo popular cristaliza seu funcionamento, a partir do anúncio da primeira edição do jornal Meia Hora feito no site de sua empresa mantenedora, a mesma do jornal O Dia:

SD1: Uma publicação popular, agradável e moderna Ainda segundo Gigi Carvalho, MEIA HORA chega com um objetivo muito definido. ―Já temos um grande jornal, O DIA, publicação qualificada e respeitada. Queríamos expandir nossos negócios e democratizar a informação. A partir desse desejo, surgiu MEIA HORA‖, explica. O diretor de mídia impressa, Eucimar de Oliveira, acrescenta: ―O novo jornal, embora seja popular, traz um grau de qualidade de informação pouco comum em publicações do gênero. Tanto do ponto de vista gráfico como de texto. Teremos um jornal absolutamente útil, interativo, moderno, vibrante e companheiro do leitor. Tudo isso apresentado de maneira agradável e moderna‖, garante Eucimar. (O DIA ON-LINE, 2009)

As orações subordinadas adverbiais concessivas apresentam uma peculiaridade importante na constituição de sentidos dos discursos. Elas são o encontro, no fio discursivo, de uma memória do dizer tal, não negando-a totalmente, mas permitindo-a materialmente: ―O enunciado concessivo‖ estabelece um vínculo ―entre um exterior do discurso e o discurso em vias de se constituir, relação que a análise do discurso problematizou por meio das noções de pré-construído, de interdiscurso, de saberes partilhados e de estereótipo discursivo‖ (GARNIER & SITRI, 2008, p. 93), sem que a concessão fosse encarada como um procedimento ―estratégico‖ de construção textual de um jornal ou de um site. Ao contrário: a concessão — embora possa ter sido escolhida pelo autor como forma de se escrever determinado texto — aponta para um construto ideológico que não é transparente, mas opaco em toda a sua extensão semântica. Sendo assim, o trecho destacado na sequência discursiva40 1 aponta para uma memória do que seja um jornal popular, e mesmo para o que seja a categoria de nomes qualificados por ―popular‖: coisas de baixa qualidade, resumindo. Esse sentido de jornal popular ressoa um prévio, no manual de redação jornalística do jornal O Dia:

SD2: Uma base sólida o suficiente para garantir um retorno sem maiores danos à principal de nossas vocações: o jornal popular, com todas as características e conceitos éticos agregados ultimamente. Popular no sentido de ser feito para o povo. O que não significa ser vulgar, trivial, ordinário. Muito ao contrário. Paulinho da Viola, Chico Buarque, Martinho da Vila e Caetano são populares. Mas de talento inconteste. O Corsa é um carro popular, mas com injeção eletrônica e outros recursos de que mesmo alguns carros mais luxuosos ainda não dispõem. Como os fãs dos compositores e os admiradores do carrinho, os leitores do DIA estão em todas as classes sociais. Mas o jornal conserva seu compromisso com a massa popular, devendo, portanto, aprimorar suas características gráficas e linguagem específica. (O DIA, 1996, p. 10) [sublinhas e negritos meus]

Ao se dizer ―O que não significa ser vulgar, trivial, ordinário‖, novamente remete-se a uma memória discursiva de que remete-se, o sentido de popular a essas características, ainda que se as negando nessa sequência. Entendendo: se há a necessidade de negar, é porque esses são sentidos afirmados. Tais qualificações são ressaltadas pela conjunção ―mas‖, que funciona de forma análoga (ainda que com diferenças) às construções concessivas. Tanto o caso de oração coordenada (SD2) quanto o de subordinada (SD1) apresentam um modelo de argumentação baseado em evidências ideologicamente apresentadas: de que o que é popular é ruim, de má qualidade — tanto que, na sd2,

40 Na tradição da AD, as sequências discursivas são abreviadas como SD.

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há a necessidade de se mencionarem exemplos de coisas populares ―boas‖. Caso um professor quisesse trabalhar essas sequências em sala de aula, ele deveria tomar cuidado com dois aspectos distintos: a) não é o jornalista, nem mesmo a instituição jornalística, que procura vincular esses sentidos a palavras como ―popular‖, entre outras — o jornalista escolhe como escrever, ele de fato atua na materialidade linguística, mas alho lhe escapa —; b) o sentido negado pela concessiva e pela adversativa não é aquilo que alguns chamam de ―normal‖, mas filiado a uma conclusão, como já dissemos, ideologicamente evidente, aparentemente natural: ―A ―normalidade‖ seria o reflexo de um saber partilhado, ―de uma visão preestabelecida da relação entre os elementos confrontados‖, isto é, um dado não-lingüístico comumente apreendido pela noção de tópos (lugar comum/verdade geral)‖ (GARNIER & SITRI, 2008, p. 96). Além de tudo, a imagem institucional do Meia Hora sobre seus leitores (populares) pressupõe uma ―linguagem específica‖, conforme negritado na SD1, uma língua diferente. Isso também entra no imaginário do que vem a ser ―popular‖ para o jornal em análise.

Amaral (2005), também ancorada na Análise do Discurso, defende que

no processo de a imprensa se fazer popular, ela adota formas culturais consagradas historicamente como populares, que trabalham com uma determinada visão sobre quem são as camadas populares, o que gostam, como vivem e o que consomem. (2005, p. 7; 9) [negritos meus]

Esse imaginário consagrado sobre o que é popular agrega não apenas o como se diz, ou seja, a forma linguística de tratamento do leitor, mas também os gostos, os costumes e os atos de consumo que, conforme Garnier e Sitri, constituem um ―saber partilhado‖ por todos, um consenso ideológico sobre o que vem a ser popular: um gesto de interpretação sobre o sujeito que se imagina como popular, sobre uma classe social e sobre uma língua que se imagina ser dessa classe social. Essa autoria, já desde o anúncio da chegada do jornal Meia Hora, promove, como defende Orlandi, diferentes modos de leitura: ―O sujeito e o sentido, ao se constituírem, o fazem na relação entre o mundo e a língua, exostos ao acaso e ao jogo, mas também à memória e à regra‖ (ORLANDI, 2004, p. 141).

Pois bem: se a regra faz parte do funcionamento discursivo da maioria dos jornais, o jogo

talvez marque o funcionamento do Meia Hora. Em suas capas, o humor é muito mais do que um recurso, que uma estratégia de vendas — como determinada pragmática poderia preferir —: o humor é o modus operandi de uma materialidade repleta de sentidos ora afirmados, ora negados. E de onde vem esse jornal, um fenômeno de vendas do grupo O Dia?

Em 17 de setembro de 2005, o grupo de comunicação O Dia o lança. Até 1998, O Dia era a

única publicação autodenominada popular com grande circulação no Rio de Janeiro. Em 1996, esse jornal sofreu uma reforma gráfica e ―de conteúdo‖,41 que procurava desvincular a antiga imagem que os cariocas faziam do diário, que perdurava desde 1990 (ano em que O Dia foi comprado por um novo proprietário), segundo seu manual de redação.

Acontece que, em 1998, O Globo assume que vinha perdendo compradores das classes B, C

e D para o jornal O Dia, e decide lançar um rival que atuasse no mesmo segmento de mercado que seu concorrente. Então surge o jornal Extra, depois de uma pesada campanha de publicidade televisiva, marcada por uma pesquisa de mercado aberta ao público em que se indagava do leitor qual o nome que ele gostaria de dar ao seu jornal. Depois de selecionados — pela empresa controladora do jornal, o Infoglobo — os títulos finalistas, eles foram colocados numa votação novamente aberta, e Extra saiu vencedor. Assim, surgiu a publicação com o lema ―O jornal que

41 Entre aspas porque é o termo utilizado pela própria imprensa. Uma reforma gráfica e de conteúdo sugere uma suposta mudança na relação imaginária que os leitores e os jornalistas fazem da instituição jornalística.

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você escolheu‖. O sentido de democracia, de liberdade de escolha, predomina na campanha do jornal. Por sete anos, o Extra dividiu a liderança do segmento de mercado com O Dia, até que, numa nova jogada de marketing, a empresa controladora deste último jornal lançou o Meia Hora de Notícias, como forma não apenas de competir com o Extra, mas de trazer uma proposta ―agradável e moderna‖, como vimos na SD1, ao mercado midiático carioca e de expandir os lucros da empresa — o Meia Hora é sensivelmente mais barato que O Dia e que o Extra, o que o torna consumível por mais faixas de mercado.

O Meia Hora constrói um leitor imaginário que se relaciona parafrasticamente ao leitor

imaginário anos antes construído no manual de redação de seu predecessor, o jornal O Dia — que, meses depois, ainda em 2005, sofre uma outra reforma e passa a competir com os ―jornais de referência‖ cariocas: O Globo, Jornal do Brasil etc —, um leitor popular que recebe ao mesmo tempo sentidos de ―merecedor‖ de uma qualidade que é trazida pelos jornais, e ao mesmo tempo essa qualidade não é esperada, como vimos nas marcas adversativas e concessivas. Esse funcionamento do jornalismo popular é significativo de uma produção em que circulam alguns sentidos negativos que dizem respeito a classe social, a povo, uma vez que, para se predicarem qualidades positivas a ele, é necessário que um conectivo adversativo ou concessivo seja incluído no fio discursivo, delimitando um contraste entre o que há de bom no popular e aquilo que já se espera, ainda que inconscientemente, dele: sentido impresso no já-dito, numa relação interdiscursiva.

Segundo Mariani (1998), cabe ao

discurso jornalístico organizar e ordenar cotidianamente os acontecimentos, de modo a mostrar que pode haver mais de uma opinião/explicação para o fato em questão, mas nunca um fato diferente do que foi relatado. § Em uma palavra, a imprensa deve desambigüizar o mundo. Assim, nos jornais se reassegura a continuidade do presente ao se produzirem explicações, ao se estabelecerem causas e conseqüências, enfim, como já dissemos anteriormente, ao se didatizar o ‗mundo‘ exterior e o tempo em que os fatos acontecem. (MARIANI, 1998, p. 63)

Desambiguizar. Essa é a palavra-chave para o funcionamento do discurso jornalístico, para Mariani. A didatização do mundo, o explicar os fatos como se fossem eles providos de um sentido único e claro; como se os acontecimentos jornalísticos fossem apriorísticos; como se, por si mesmos, eles fossem passíveis de publicação em jornal; como se tivessem um mérito diferencial no continuum espaço-tempo. Essa naturalidade, quando o professor de língua portuguesa leva o jornal Meia Hora para a sala de aula, por exemplo, pode instaurar um autoritarismo, visto que, nas condições de produção do Discurso Pedagógico, o certo é o que marca. E o jornal pode funcionar como a instância do certo em sala de aula, o que é perigoso:

O ―certo‖ se torna ―verdadeiro‖ na consciência da criança. Mas a consciência da criança não é algo ―individual‖ (e muito menos individualizado): é o reflexo da fração de sociedade civil da qual a criança participa, das relações sociais tais como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc. (GRAMSCI, 2006, p. 44)

O sujeito, para Pêcheux, é imerso num teatro da consciência, de onde afirma ―eu vejo, eu

penso, eu falo, eu te vejo, eu te falo‖, mas, junto a esses movimentos, existe todo um falar do sujeito, um falar ao sujeito (PÊCHEUX, 2009, p. 140). Assim, em Gramsci42 se percebe bem que esse ―certo‖ que é ofertado à criança já na sala de aula — estamos lendo discursivamente o autor italiano —, quando deslocado parafrasticamente para ―verdadeiro‖, não é fruto individual e

42 Esclareçamos que Antonio Gramsci não foi um analista do discurso, mas um jornalista e pensador marxista que muito contribui aos estudos sociais.

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originário da consciência da criança, mas resultado da inscrição em dada formação discursiva. Esse funcionamento se repete diariamente nas escolas e instituiões fundamentais, médias e superiores. Assim, se um professor lê de forma acrítica o jornal Meia Hora em sala de aula, alguns de seus ―certos‖ sobre o que é popular — como as classes sociais populares não contarem com grande qualidade, independentemente de quê — acabam se tornando verdades: como já explicamos, o funcionamento da ideologia promove a crença de que aquilo que é construto social é evidente, natural, imutável.

Adentrando um outro aspecto: olhando as manchetes e as promoções do Meia Hora,

perpetua-se um outro sentido de popular, num imaginário de que agrada ao popular/povo certos objetos de consumo. Na pesquisa alentada aqui, em que as edições dos meses de julho a setembro de 2008 foram analisadas, o Meia Hora periodicamente abre aos seus leitores a oportunidade de participar de campanhas em que brindes são ganhados mediante a compra de tantos exemplares de jornal e a coleção de selos numerados em cada edição. As promoções do jornal fazem parte da imagem que o Meia Hora, como instituição, faz de seu público-leitor, e indicam o que o veículo de comunicação imagina ser desejado pelos seus compradores. A partir disso podemos reconhecer alguns sentidos desse imaginário. Nos três meses de análise, a maior parte dos brindes das promoções foi relacionado a um sentido de pornografia, às vezes aliada a alguma comicidade (Gatas do Baralho foi uma promoção repetida duas vezes no período pesquisado, e ainda teve uma variação: Gata da Hora Playboyzinhas), de família (merendeira + kit lanche, concomitante, por um bom tempo, à segunda edição da promoção das Gatas do Baralho), esporte (Boné das Olimpíadas), consumo de eletrônicos (celular grátis, com a promoção Sua cartela vale a pena), estímulo à educação (promoção Meia Bolsa, em convênio com a universidade Unicarioca). Como Mariani (1998) e Gramsci (2006) já ressaltaram, o fato de que os leitores são consumidores não pode ser ignorado, portanto, os sentidos sobre o consumo também devem ser levados em conta. O consumidor popular imaginado pelo Meia Hora se interessa por pornografia, família, esportes, formação profissional. E em geral há uma preocupação em atrelar também as promoções a um caráter jocoso, de chiste, de trocadilho, como no nome da promoção Gatas do Baralho, em paronímia com ―gatas do caralho‖. Essa mesma comicidade é o que marca também as manchetes do Meia Hora, em seu funcionamento discursivo — na tipologia de discursos enumerada por Orlandi (1996) e já mencionada neste trabalho, o discurso do Meia Hora é do tipo polêmico, já que abre suas manchetes com várias possibilidades de sentido, mas as controla nos subtítulos, como na sequência a seguir:

SD3: Vai te catar (manchete de 15 de julho de 2008)

Está em jogo aqui a homofonia entre as palavras ―catar‖ e ―Qatar‖, o que remete a dois campos semânticos distintos e também implica um imaginário sobre o leitor do Meia Hora. Começamos aqui a entender o procedimento de mobilização da ―linguagem específica‖ da ―massa popular‖, como proposto na SD2.

No dicionário Houaiss,43 na definição da expressão ―ir-se catar‖, se a categoriza como de

uso ―informal‖. Seria o modo ―informal‖ de pedir que outrem não amole ou que vá embora. A

43 Em visita a redações de jornais, assessorias de imprensa e editoras, foi percebido que esse é o dicionário mais usado entre os profissionais. Não poderíamos abandonar esse feito, visto que pensar no Houaiss (impresso ou eletrônico) enquanto dicionário que é consultado como forma de os jornalistas reconhecerem as formas linguísticas e os sentidos dominantes é entendê-lo como tecnologia de gramatização equiparada aos próprios manuais de jornalismo no espaço discursivo do jornal. É o dicionário que, como os manuais, dá as diretrizes a serem seguidas na redação jornalística. Através de suas definições e categorizações, encontraremos alguns dos sentidos que vão-se imbricando de forma a ―editar‖ com que língua o jornalismo popular escreve, levando-o a um leitor popular imaginário. Não afirmo aqui que a cada manchete o jornalista consulte o dicionário Houaiss em busca de determinadas categorias de palavras, mas essas mesmas categorias, essas rubricas, bem como os significados, vão caucionando um imaginário da ―linguagem específica‖ das ―massas populares‖.

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linguagem das massas populares é dotada de uma informalidade, para o jornalismo popular — informalidade, assistematicidade, desorganização etc.. Segue a essa manchete, contudo, um subtítulo (SD4), que retorna à manchete como um ilusório fixador de sentidos, solucionador da ambiguidade (que seria, na ética–norma–jornalística, um problema):

SD4: Caio Júnior esnobou os dólares que os árabes ofereceram para tirá-lo da Gávea e preferiu lutar pelo hexa do Brasileirão com o Mengão. Fla agora tenta segurar artilheiro Marcinho (subtítulo da manchete de 15 de julho de 2008, negrito meu)

Podemos ao menos propor perguntas, de forma analítica e crítica, a partir de algumas manchetes — perguntas que poderiam ser feitas por um professor em sala de aula, tornando novamente cheio de sentidos, e não monossêmico, o discurso pedagógico... e mesmo o jornalístico, cujo funcionamento é desambiguizar o mundo, conforme Mariani (1998) discute. Então vejamos mais um caso em que, a partir da materialidade linguística, temos um vislumbre do imaginário de popular e de uma memória discriminatória que condena não apenas a homossexualidade, mas torna a violência banal.

Num sentido de desaprovação da relação sexual homossexual, a edição do Meia Hora de 11

de julho de 2008 faz uso de um recurso: um balão com aspecto explosivo. A partir desse balão, chegamos à SD5.

SD5: Pelo menos não eram travecos (balão da matéria principal de 11 de julho de 2008, negrito meu)

O jogador de futebol Marcinho havia, segundo o jornal, participado de uma orgia e não pretendia usar proteção sexual com as prostitutas, tendo agredido uma das mulheres. Há, em SD5, a construção discursiva do referente Marcinho através da figura não silenciada e explícita do jogador Ronaldinho, que fora parar nos meios de comunicação tempos antes por supostamente ter se envolvido com transexuais que se prostituíam. Ameniza-se, com a expressão ―pelo menos‖, a agressão de Marcinho, personagem da manchete: embora ele tenha participado da orgia e tenha ido parar na delegacia por comportamento violento, pelo menos não havia tido parte em nenhuma relação homossexual. Em toda capa do Meia Hora, vai-se formando a imagem de um leitor e também a imagem de seus ―valores‖ culturais, de suas discriminações: dos sentidos que se opõem a outras formações discursivas e ideológicas. Aqui entra em jogo a discriminação sexual. A homossexualidade seria, para as massas populares imaginadas na instituição jornalística, mais condenável que a agressão física. E a violência, em todo caso, não é condenada, ao contrário de uma suposta homossexualidade. E por que, podemos perguntar aos alunos, essa violência é silenciada em detrimento ? Por que, indo mais além, o que explode na manchete (por meio de um recurso gráfico) é a discriminação contra o homossexualidade, e não a condenação da violência a quaiquer que seja a categoria profissional, gênero, sexo? Na Análise do Discurso, é importante não apenas adentrar no que foi dito e nos implícitos, como também no que deixou de ser dito em detrimento daquilo que foi parar no dizer material: assim podemos averiguar o funcionamento da ideologia no discurso, em sua dominância.

Lendo o Meia Hora de Notícias, com seu funcionamento de comicidade e mesmo de riso,

podemos perceber que ser engraçado não basta para que um discurso seja lúdico. A polissemia aberta, a imensa e transbordante possibilidade de sentidos na construção discursiva dos referentes, passa, sim, por uma brincadeira — sempre inevitável quando se trabalha nos vários sentidos possíveis para as palavras, nos devires das formações ideológicas —, mas esse é apenas o estágio incipiente. Do riso ao deslindar das (supostas) evidências ideológicas, questões devem ser feitas, em meio ao cômico, à brincadeira, mas também a muita crítica.

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Trabalhar com o Meia Hora em sala de aula é um procedimento extremamente válido, tal

como com poemas, músicas e romances. O jornalismo integra a esfera em que vivemos, e é um campo discursivo repleto de sentidos que se podem nos apresentar como únicos e indubitáveis. Por isso mesmo a inserção de um veículo como esses na escola se faz não apenas útil, como necessário não a uma compreensão, mas a uma perspectiva crítica da realidade daquilo que chamamos de Brasil. Interlocutor em um discurso hegemonicamente autoritário, o professor toma um veículo de grande circulação carioca (o jornal Meia Hora tem preço baixo e uma campanha de divulgação extremamente bem-sucedida) e transforma o discurso pedagógico não num dizer meramente brincalhão — lúdico nos sentidos lidos na epígrafe de Black —, mas num discurso lúdico-crítico, abrindo uma miríade de possibilidades de leitura e de compreensão de como as classes sociais, principalmente as populares — que não são uma só nem homogêneas, a despeito do imaginário jornalístico —, são pensadas, identificadas e rechaçadas. Muitas vezes, com a desculpa de fazer o leitor rir, o rechaço acaba fazendo parte da produção de sentidos do jornal, e nem mesmo o percebemos em meio às gargalhadas, o que indica o funcionamento mais do que bem-sucedido da ideologia. O maior perigo é cair fascismo do riso, que pode matar a poesia aos tiros, às facadas, às porradas... Bibliografia AMARAL, Márcia Franz. ―Lugares de fala do leitor no Diário Gaúcho‖. In: E-Compós: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Disponível em www.compos.com.br/e-compos, agosto de 2005. BARRETO, Raquel Goular; ORLANDI, Eni P. ―Análise do discurso: conversa com Eni Orlandi‖. In: TEIAS n. 13-14. Rio de Janeiro: 2006. BLACK, Bob. Groucho-marxismo. Tradução: Michele de Aguiar Vartuli. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases. Acesso em junho de 2010. DUTRA, Alexandre Freire Ramos et alii. Jornalismo popular e sensacionalismo: Uma análise comparativa entre Aqui e Super Notícia. Belo Horizonte: UFMG, 2007. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 50. ed. São Paulo: Cortez, 2009. GARNIER, Sylvie & SITRI, Frédérique. ―Problemas epistemológicos em Análise do Discurso: o caso do enunciado concessivo‖. Trad.: Roberto Leiser Baronas e Fabiana Komesu. In: BARONAS, Roberto Leiser & KOMESU, Fabiana (orgs.). Homenagem a Michel Pêcheux: 25 anos de presença na Análise do Discurso. Campinas: Mercado das Letras, 2008. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 2: Os intelectuais. 4. ed. O princípio educativo. Jornalismo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. O PCB e a imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. Rio de Janeiro: Editora Revan, Campinas: Editora Unicamp, 1998. O DIA. Manual de redação e texto jornalístico O Dia. Rio de Janeiro: Editora O Dia, 1996. O DIA ON-LINE. ―Jornal Meia Hora: útil, vibrante, interativo, moderno e companheiro dos leitores. Tudo por apenas R$0,50‖. Portal de informações sobre o lançamento do jornal Meia Hora de Notícias. Acessível em http://odia.terra.com.br/especial/outros/meiahora/lancamento.htm. Acessado em outubro de 2009. ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: As formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996. ______. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2007. ______. Discurso e texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2001. ______. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 4. ed. Campinas: Pontes, 2004. ______. ―Paráfrase e Polissemia. A fluidez nos limites do simbólico‖. In: Rua n. 4. Campinas: Unicamp, 1998. PÊCHEUX, Michel. ―Delimitações, inversões, deslocamentos‖. Trad. José Horta Nunes. In: Caderno de estudos lingüísticos, v. 19. Campinas: 1990.

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______. ―Ler o arquivo hoje‖. In ORLANDI, Eni P et al. (orgs.). Gestos de leitura. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1982. p. 55-66. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento. 4. ed. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2006. ______. ―O mecanismo do (des)conhecimento ideológico‖. In: ŽIŽEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. ______. Semântica e discurso. Trad. Eni P. Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, Silvana Mabel Serrani. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. ______. ―Sobre a desconstrução das teorias lingüísticas‖. In: Línguas e instrumentos lingüísticos. N. 2. Campinas: Pontes, 1999. PÊCHEUX, Michel, HAROCHE, Claudine; HENRY, Paul. ―A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso‖. Trad. Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro. In: Linguasagem. 3. ed. São Carlos: UFSCar, 2008. Recebido – 19/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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DESENVOLVENDO A COMPREENSÃO LEITORA

DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

Priscilla Vichinieski

Acadêmica do curso de Letras Universidade Estadual do Centro-Oeste

UNICENTRO Irati PR

Cristiane Malinoski Pianaro Angelo Mestre em Estudos Lingüísticos

Universidade Estadual do Centro-Oeste UNICENTRO – Irati PR

Resumo: Atualmente, questiona-se muito a respeito das práticas de leitura em sala de aula, as quais geralmente se fundamentam na concepção de que ler é extrair significados expostos na superfície do texto. Partindo desse pressuposto, este artigo tem por objetivo elaborar e discutir uma proposta para o desenvolvimento de leitura crítica no Ensino Médio a partir da noção bakhtiniana de compreensão responsiva ativa Palavras -chave: Leitura crítica. Compreensão responsiva ativa. Capacidade leitora. Resumen: En la actualidad existen dudas sobre la propia práctica de la lectura en el aula, que por lo general se basan en el concepto de que la lectura es la de extraer significados expuestos en la superficie del texto. Con base en este supuesto, este trabajo tiene como objetivo elaborar y discutir una propuesta para el desarrollo de la lectura crítica en la escuela secundaria de la noción bajtiniana de entendimiento sensible activos Palabras clave: lectura crítica. Comprensión de respuesta activa. La capacidad de los lectores. Introdução Muitas são as teorias que afirmam que o ato de ler está além de uma simples decodificação do texto. No entanto, no dia a dia da sala de aula isso não ocorre, ao contrario, o que observamos são alunos cada vez mais desmotivados, devido ao fato de que quando há o ensino de leitura no espaço escolar, ele é realizado de maneira ineficaz, visto que é praticado apenas como uma meta a ser preenchida pelo currículo da escola, e neste geralmente consta a leitura como algo que deve ser somente decifrado, sem levar em consideração a diversidade da leitura, a qual certamente conduzirá o aluno à variadas interpretações, contextualizando-as, de maneira que ele consiga não apenas decodificar as palavras como também ampliar a sua visão de mundo, sendo assim, um leitor ativo que dá sentido ao texto. Partindo desse pressupostos acima, esta pesquisa será baseada nas teorias de Bakhtin (2003); Rojo(2002) e Solé (1996), os quais enfatizam a leitura como um dos fundamentos na construção de um leitor eficiente e na formação de um cidadão crítico, formador de opiniões, o qual está vinculado a realidade como um todo, enfim a sociedade com a qual nos defrontamos. A natureza responsiva ativa da compreensão A leitura é considerada uma atividade fundamental a ser desenvolvida pela escola. É por meia dessa prática que há a possibilidade de constituição de um cidadão crítico, participante ativo da sociedade. Por isso, torna-se fundamental que as aulas de leitura instiguem o aluno a não só

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apreender as informações contidas na superfície do texto, mas também a refletir, a avaliar e a emitir um juízo de valor acerca do que é veiculado no texto. Sendo conduzida dessa maneira, a leitura permite que o indivíduo conheça o mundo e atue sobre ele, em busca de uma transformação. De acordo com Silva:

Estabelecida a relação de conhecimento entre o homem e o mundo, deve-se investir no crescimento individual do sujeito-leitor com vistas à formação do leitor adulto ou maduro. Por leitor maduro, entende-se aquele que não somente decodifica e parafraseia um texto, mas o lê ativa e criticamente (1997, p.86).

Assim, formar um leitor ―maduro‖ é um desafio para a escola de hoje, ainda arraigada em práticas de leitura como decodificação e extração de significados do texto. Nessa perspectiva, documentos oficiais como os PCN's – Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) e as DCE's – Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná (PARANÁ, 2008) e diversas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Linguística Aplicada vêm demonstrando que os estudos de Bakhtin sobre a compreensão responsiva podem inspirar novos contornos para as práticas leitoras no contexto da sala de aula de modo a propiciar o desenvolvimento do aluno-leitor. Bakhtin (2003, p 54) afirma que ―toda compreensão de um texto falado ou escrito implica uma responsividade e um juízo de valor‖. Assim sendo, o leitor sempre oferece uma réplica ao texto, avaliando, refletindo, comparando, discutindo, concordando ou não com as ideias e pontos de vista do autor. Ainda para Bakhtin:

Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é nossa compreensão(2003, p.136).

Em estudos sobre a compreensão responsiva bakhtiniana, Angelo e Menegassi afirmam que

Bakhtin/Volochinov, ao estabelecerem a compreensão como necessariamente ativa, evidenciam com isso que toda atitude responsiva é ativa e trazem novos dados para os estudos sobre a prática leitora, postulando ser ela ativa, postura associada à visão de língua em sua totalidade, ou seja, no interior das relações sociais (2011).

Assim, entendemos que na leitura ativa o leitor dialoga com o texto lido, formando as contrapalavras, isto é, toma as palavras do autor (suas ideias, suas visões de mundo, seus conhecimentos) para a constituição das palavras próprias (as ideias, as visões de mundo, os conhecimentos próprios). ―A compreensão é uma forma de diálogo, ela está para a enunciação assim como a réplica está para a outra no diálogo, compreender é opor à palavra uma contrapalavra.(BAKHTIN, 2003, p.98)‖. Portanto, ler significa apresentar uma contrapalavra ao texto; esta encontra-se vinculada à compreensão responsiva ativa, visto que é através da união de ambas que se tem a oportunidade de construir um cidadão crítico, ativo que participa das relações sociais, um indivíduo que toma uma atitude responsiva em relação a si e às situações cotidianas.

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Observamos que as noções bakhtinianas de compreensão responsiva ativa vêm

repercutindo nos documentos oficiais e nas propostas de ensino de leitura nas escolas. De acordo com as DCE's,

(...) a leitura é vista como um ato dialógico, interlocutivo. O leitor, nesse contexto, tem um papel ativo no processo de leitura, e para se efetivar como co-produtor, procura pistas formais, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita conclusões, usa estratégias baseadas no seu conhecimento linguístico, nas suas experiências e na sua vivência sociocultural (PARANÁ, 2008, p.71).

Com esse pressuposto, pode-se afirmar que um dos aspectos necessários para que se constitua a leitura réplica é que leitor se torne co-produtor, ao usar sua bagagem de conhecimentos prévios para interagir com o texto, procurando pistas, levantando e analisando hipóteses, avaliando/ formando pontos de vista e opiniões diversos. De modo semelhante, nos PCN's destaca-se a leitura como ―um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua‖ (BRASIL, 1998, p.41) Assim, um dos deveres da escola é formar um leitor ativo, que interaja segundo suas próprias diretrizes, com relação direta ao mundo. Diversos estudiosos da Linguística Aplicada, ao tomarem os pressupostos bakhtinianos, discutem a necessidade de a escola desenvolver a leitura réplica. Rojo afirma que:

(...)ler é escapar da literalidade dos textos e interpretá-los, colocando-os em relação com outros textos e discursos, de maneira situada na realidade social, é discutir com os textos, avaliando posições e ideologias que constituem seus sentidos, é enfim trazer o texto para a vida e colocá-lo em relação com ela. (ROJO, 2002, p.36)

Dessa forma, é possível visualizar a leitura por um outro viés, no qual o sujeito, passa a ser

não somente um leitor de textos escritos, como também um leitor de mundo. Para Angelo e Menegassi, é preciso que a escola ensine o leitor a assumir uma postura

responsiva ativa:

Nesse caso, o leitor vai além das linhas, para julgar, questionar o que foi lido e compreendido, estabelecendo a noção de leitura réplica (Rojo, 2009; Menegassi, 2010a). No contexto escolar, a formação e o desenvolvimento desse tipo de leitor pressupõem atividades que instiguem o aluno à reflexão, que lhe possibilitem produzir, avaliar, debater as visões e ideias do mundo a partir da interação com o autor, via texto (2011).

Partindo dessas discussões, chega-se à conclusão de que a escola precisa criar caminhos alternativos para que o leitor em formação aprenda a discutir, avaliar e apresentar contrapalavras aos pontos de vista e visões da realidade a partir do diálogo ativo com o autor e o texto. A leitura, assim, torna-se fonte de informação e formação cultural, na qual constituímos nossos próprios valores e visões sobre o mundo com o qual nos defrontamos. Desenvolvendo a leitura ativa no Ensino Médio Para que haja a constituição de leitores ativos e ―maduros‖, como diz Silva (1997), é preciso que o leitor coloque toda a sua bagagem de conhecimentos prévios para que, interagindo com as pistas apresentadas pelo texto, seja capaz de perceber e refletir sobre as ideias e valores defendidos

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pelo autor, constituindo as palavras próprias. Para tanto, defendemos que o trabalho com os textos deve envolver três momentos: antes da leitura, durante a leitura e após a leitura. Como ilustração dessa proposta, sugerimos alguns encaminhamentos de leitura para o poema O Bicho de Manuel Bandeira.

As atividades antes da leitura têm por objetivo relacionar o conhecimento prévio dos alunos com as informações explícitas no texto a ser lido, bem como motivar o aluno para a leitura, visando, assim, a uma prática que reverta os padrões de ensino de leitura utilizados pela maioria das escolas atualmente, em que o aluno não encontra estímulo para ler. De acordo com Taglieber e Pereira, é necessário:

(...) que antes de fazer a leitura propriamente dita, o professor explique de uma forma geral sobre o tema do texto, chame a atenção do aluno para certos aspectos do texto, tais como: figuras, título, gênero textual...; incentive os alunos a falarem o que já sabem por meio de questões que busquem informações acerca da vida cotidiana. (1997,p.47)

Para Solé, tudo que pode ser feito antes da leitura tem a finalidade de:

(…) suscitar a necessidade de ler, ajudando-o a descobrir as diversas utilidades da leitura em situações que promovam sua aprendizagem significativa. Proporcionar-lhe os recursos necessários para que possa enfrentar com segurança, confiança e interesse a atividade de leitura. Transformá-lo em todos os momentos em leitor ativo, isto é, em alguém que sabe por que lê e que assume sua responsabilidade ante a leitura, aportando seus conhecimentos e experiências, suas expectativas e questionamentos. (SOLÉ, 1996, p.114)

Além disso, consideramos que antes mesmo de o aluno ter um primeiro contato com o texto, ele já seja estimulado a construir uma opinião crítica, refletindo sobre aspectos da sociedade, pois para Kleiman(2010,p.13) ―a compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conehcimento adquirido ao longo se sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo‖ Para tanto, sugerimos que o professor apresente as seguintes imagens para o aluno:

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Após os alunos visualizarem as imagens, propõem-se atividades que gerem questionamentos em relação à sociedade, que instiguem o aluno a inferir melhores críticas ao tema estudado, visto que as mesmas representam uma ―imagem de mundo‖. Através das gravuras, propõe-se dar continuidade as atividades de leitura crítica, incorporando ao aluno mais conhecimento e formação cultural: Em que lugar você acha que essas imagens aparecem? Qual a temática das imagens? O que é mostrado nas imagens? O que está acontecendo na sua opinião? Baseando-se nas respostas 1,2 e 3, responda as seguintes questões: a) Que valores as imagens transmitem? b) Para que as imagens sejam de fácil compreensão, que conhecimento prévio é necessário para que isso ocorra? c) Há diferenças e semelhanças com alguma outra imagem que você já viu? Para dar seguimento, sugerimos um encaminhamento de atividades durante a leitura, em busca da constituição de leitores responsivos ativos e críticos. Como proposta de trabalho, através do poema O Bicho, de Manuel Bandeira, será explorado a formação de leitores críticos, com o intuito de mudar a visão atual sobre a leitura, e esclarecer que o ato de ler não é uma atividade linear que visa basicamente observar o que está visível no texto, pois de acordo com Rangel(2007, p.28) ―a leitura está inserida na esfera social, histórica e ideológica, não se restringindo as ferramentas decodificadoras da palavra, vinculada na escola como objeto de conquista de uma prática social.‖ Propõe-se portanto, explicar aos alunos o que será lido e por que será feita essa leitura, pois de acordo com Solé (1996, p.111), essa explicação ―manterá os alunos absortos da história, o que contribuíra para melhorar sua compreensão‖ Assim, em um primeiro momento realizar apenas a leitura do começo do poema, pois dessa forma os alunos terão que debater sobre o final do mesmo, questionando-se sobre que bicho o poema retrata. O bicho Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. Durante a leitura, pretende-se que cada verso do poema, se recapitule, para que se estabeleça pressuposições e se formulem perguntas, pois para Solé (1996, p.118) o leitor é o responsável por ―estabelecer previsões coerentes sobre o que está lendo, que as verifique e se envolva em um processo ativo de compreensão.‖ Realizar então, questões orais: 1. A que bicho vocês acham que o autor se refere? 2. Que local provavelmente ele vive? 3. Quais efeitos de sentidos as palavras “imundície”, “catando” e “voracidade” evocam?

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Assim, podemos afirmar que há uma interação entre leitor e texto, e está poderá ser mais produtível, desde que haja estratégias de leitura que possibilitem ao leitor, ter uma maior compreensão do que será lido, pois de acordo com Kleiman(2010, p.53) ―quando falamos de estratégias de leitura, estamos falando de operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de resposta que ele dá a perguntas sobre o texto.‖ Após, realizar a leitura completa do poema, a qual pode ser compartilhada professor/aluno, tanto em voz alta como silenciosa, verifica-se, que este é um poema que pode gerar grande criticidade dentro da sala de aula, pois é de cunho social, relata o que acontece na sociedade em que vivemos, possibilitando aos alunos uma interpretação mais ampla, não apenas decifração de códigos, mas sim, inferências e aprimoramento da leitura, visando também ao que está implícito no poema, pois Silva(1993, p.25) afirma que ―o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo.‖ O bicho Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era uma rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Manuel Bandeira

Após as atividades ―durante a leitura‖, serão realizadas perguntas de compreensão e interpretação, nas quais ficará enfatizada a relação do texto lido com o real, pois de acordo com Micheletti (2000, p.16), ―é da leitura que brota a construção do real... o leitor salta para a vida e para o real na medida em que a leitura da palavra escrita pode conduzi-lo a uma interpretação do mundo.‖

Dessa forma, a partir da interação entre conhecimento de mundo e leitura, é possível executar atividades de pós-leitura, pois como afirma Isabél Solé (1998, p.161) ―depois da leitura continuamos aprendendo e compreendendo. Propõe -se portanto, desempenhar atividades de compreensão e levar os alunos a construírem o sentido do poema com criticidade:

1. Existe alguma relação entre o poema O bicho e a realidade humana? Se sim, qual? 2. Qual o tema abordado no poema? 3. Baseando-se nas respostas “a” e “b”, quais aspectos no poema indicam seu caráter crítico? 4. De acordo com suas respostas anteriores, responda: a) Por que tal título? b) Na sua opinião, por que se abandonou o homem? c) Por que o pátio era imundo? d) Qual a relação entre os animais citados no poema com a sociedade atual? Quais efeitos de sentido eles provocam? e) Quem ganha com tudo isso? f) Há algum modo de mudar o pensamento da sociedade? Qual?

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Para finalizar, propor atividades, nas quais será checado o que os alunos compreenderam e

recordam de um determinado texto, desenvolvendo um maior questionamento em relação a nossa sociedade. Para Solé (1996, p.155) ―o leitor capaz de responder perguntas pertinentes sobre o texto, está mais capacitado para regular seu processo de leitura e, portanto, poderá torná-lo mais eficaz.‖ 1. Como são as crianças e/ou adultos representados no poema e nas imagens? 2. Por que são retratados dessa maneira? 3. Como as leituras exploradas, instigam o leitor a pensar? 4. Haveria outras interpretações possíveis? Quais? 5. Que relações, comportamentos e valores são demonstrados tanto no poema como nas imagens? São positivas ou negativas? Explique: 6. Que tipo de proximidade entre leitor, imagens e poema são estabelecidas? Como pode-se observar, todas as atividades estão pautadas na formação de um leitor crítico, nas quais o aluno não só busca as respostas explícitas como também aquelas que estão inferidas, o leitor precisa das pistas deixadas no texto para que possa compreendê-lo e chegar as respostas das perguntas. Dessa forma, como afirma Bakhtin, o aluno ativa seus conhecimentos prévios acerca da sociedade que está inserido e estes conhecimentos são ligados as informações contidas no texto, fazendo com que o mesmo construa seus próprios conceitos e pontos de vista sobre a realidade humana, implicando assim, uma responsividade e um juízo de valor ao texto lido.

Portanto, podemos considerar que tanto o poema de Manuel bandeira quanto as imagens, apontam referências com o que está descrito nas DCE's e nos PCN‘s, ambas fazem com que o aluno formule e reformule hipóteses de interpretação textual e visual, relacionando-as com sua vivência sociocultural.

Assim, o leitor diante de suas reflexões e julgamentos leva a temática do poema e da gravura para sua experiência de vida, produzindo o seu próprio texto, ou seja, o texto do leitor, no qual podemos considerar, como foi observado nas afirmações de Bakhtin, uma réplica das leituras, pois usou-se de um discurso anterior para formar um discurso resposta, e este, deu existência à compreensão responsiva ativa, na qual há a possibilidade de construir um cidadão crítico, que enxerga a sua frente, e que toma atitudes em relação a si e para com a sua sociedade. Conclusão Conclui-se que a leitura crítica tem grande importância no contexto escolar, visto que é através desta que pode-se formar cidadão críticos dentro de nossa sociedade, assim, o leitor passa de decifrador de códigos para um leitor ativo, o qual, além de ler, entende e opina sobre o que foi lido. E desse modo, a leitura revela-se como um mecanismo de transformação da realidade, em que o ato de ler torna-se uma atividade de conhecimento e prazer, pois a partir desta, o aluno consegue uma transformação pessoal, na qual transforma-se em um leitor crítico, opinando sobre e si e sobre o que o rodeia. Referências MICHELETTI, Guaraciaba. Leitura e construção do real: o lugar da poesia e da ficcao . Sao Paulo: Cortez. 2000 SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed., Porto Alegre: Artmed, 1998. KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor. Aspectos Cognitivos da Leitura. 3..ed.Campinas: Pontes, 2010 Kleiman, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 3ed. Campinas: Pontes, 2010. Bandeira, Manuel. O Bicho. Rio, 27 de dezembro de 1947

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ROJO,Roxane. A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: ―Ler é melhor do que estudar‖. In M. T. A. Freitas & S. R. Costa (orgs) Leitura e Escrita na Formação de Professores. 2002.UFJF ANGELO, C.M.P.; MENEGASSI, R. Manifestações de compreensão responsiva em avaliação de leitura. Revista Linguagem & Ensino. v. 13, 2011. (no prelo) BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos. Brasília, DF, 1998. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para os Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio: Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008. SILVA, O. R. K. da. O espaço para a formação do leitor crítico. In: Revista UNIMAR 19 (I): 85-109, 1997. TAGLIEBER, L. K. PEREIRA C. M. Atividades de pré-leituras. Gragoatá, Niterói. 1.sem.,1997 SILVA, Ezequiel Theodoro. Leitura na biblioteca e na escola. 4.ed. São Paulo: Papirus, 1993. Enviado – 22/07/2011 Avaliado – 15/10/2011

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O PESQUISADOR E SEU LUGAR EXTERIOR: EXOTOPIA E

RESPONSI(A)BILIDADE

Rodrigo Acosta Pereira44 José Agostinho Barbosa de Souza45

Resumo: O presente estudo objetiva apresentar uma breve discussão teórica acerca da visão do Círculo de Bakhtin acerca da metodologia em Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo, assim como de seus interlocutores contemporâneos no campo da Educação e da Linguística Aplicada. O estudo apresenta-se relevante, à medida que contribui para as discussões atuais sobre a análise do agir humano, dos discursos e dos sujeitos em suas práticas interacionais da vida social. Palavras-chave: Ciências Humanas; metodologia; Círculo de Bakhtin. Abstract: The present essay aims at introducing a brief discussion concerning the Bakhtin‘s Circle view about the Human Science methodology. To do so, we review the Circle‘s postulations as well as the contemporary researches‘ texts about this theme. The study is relevant because it contributes to the investigation of human act, the analysis of human discourse and social interaction practices. Key-words: Human Science; methodology; Bakhtin‘s Circle. Introdução

O objetivo do estudo é apresentar uma revisão teórica a respeito do posicionamento do Círculo de Bakhtin acerca da metodologia nas Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo, procurando relacionar suas discussões sobre a epistemologia nas Ciências Humanas, com as explicações sobre a compreensão, a exotopia, a responsabilidade e a responsibilidade.

O trabalho organiza-se da seguinte forma: na primeira seção, discutimos a respeito da epistemologia das Ciências Humanas sob o olhar bakhtiniano; na segunda seção, revisitamos os estudos dos interlocutores do Círculo a respeito do tema aqui proposto e, ao fim, em nossa terceira seção, apresentamos discussões sobre o conceito de exotopia e sua relação com o pesquisar em Ciências Humanas. As Ciências Humanas sob o olhar do Círculo de Bakhtin

Bakhtin vinculava-se a um pensamento que se construia a partir da distinção entre as ciências naturais e as ciências humanas. Para Faraco (2009), esse vínculo parece ter se construído a partir das leituras de Bakhtin e o Círculo dos trabalhos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), pensador alemão que se encontrava no centro dos debates sobre o estatuto das Ciências Humanas e Sociais no início do século XIX. Dilthey posicinou-se entre os pensadores de sua época que se colocavam contra o objetivo positivista de se reduzir as ciências em ciências da natureza. Como explica Faraco (2009) a respeito,

44 Professor de Linguística/Língua Portuguesa do curso de Letras da UFRN. Coordenador adjunto do GEID – Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Discursos (UFRN-CERES-DCSH-PROEX). Pesquisador integrante das bases de pesquisa Letramento e etnografia (UFRN-PPGel) e Práticas linguísticas diferenciadas (UFRN-CERES-DCSH). 45 Acadêmico do Programa de Pós-graduação em Turismo da UFRN. Bacharel em Turismo pela UNIVALI (SC).

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Segundo Dilthey, o objeto das ciências da natureza (os fenômenos naturais) é estranho ao sujeito cognoscente no sentido de que o ser humano não pode conhecê-lo por dentro, a partir do interior; já o objeto das ciências do espeírito (o mundo da cultura) não é estranho ao sujeito. É por ser o mundo da cultura a expressão de uma vivência humana que o sujeito cognoscente pode aqui conhecer de dentro o objeto, isto é, o sujeito, por pertencer ao mundo da cultura, pode senti-lo por dentro, pode ter dele uma percepção íntima, pode reviver e reproduzir a experiência dos outros seres humanos, pode penetrar em seus significados (FARACO, 2009, p. 41).

Assim, enquanto o ideal metodológico das ciências da natureza é a explicação (e a relação

objetiva entre os fenômenos), o das ciências do espírito (em termos diltheyianos) é a compreensão (o significado das ações humanas). Ou como discute Bakhtin (2003, p. 393), o conhecimento da coisa e o conhecimento do homem, dois limites distintos. Para o autor, a epistemologia das Ciências Humanas reside sob o âmbito do conhecimento do indivíduo, isto é, ―a ideia de Deus em presença de Deus‖ (p. 394), a ciência do espírito, em termos diltheyianos. De acordo com Bakhtin (2003), o objeto das Ciências Humanas é o ser expressivo e falante; é o estudo da necessidade livre e emotivo-volitiva do indivíduo. Nesta persectiva, o critério metodológico não está na exatidão objetiva e lógica do conhecimento, mas na profundidade da compreensão do eu para o outro. As Ciências Humanas remetem-se, dessa forma, à ―complexidade do ato bilateral de conhecimento-penetração‖ (BAKHTIN, 2003, p. 394).

A ideia de conhecimento-penetração é entendida por Bakhtin (2003) como a capacidade do sujeito conhecer e exprimir a si mesmo, estando, por conseguinte, diante da expressão e da compreensão da expressão, resultando na complexa dialética entre o interior e o exterior. Essa dialética, segundo o autor, se constitui, à medida que o sujeito não tem mais apenas o horizonte do meio, mas também seu horizonte próprio. É o que bakhtinianamente podemos entender como ―a interação do horizonte cognoscente com o horizonte cognoscível.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 394). Para que ocorra essa construção dialética de conhecimento-penetração, processo comum das Ciências Humanas, nos elementos da expressão se entrecruzam e se combinam duas consciências, a consciência do eu e a do outro. Assim, Bakhtin chega à sua proposição central de que o objeto das Ciências Humanas é o homem e sua expressividade nos atos do exitir-singular (BAKHTIN, 2010).

Considerando o homem enquanto objeto das Ciências Humanas, Bakhtin (2003; 2010) ratifica que este, de maneira alguma, coincide consigo mesmo e é por esta razão que se encontra inesgotável em seu sentido. A formação do ser, nos diz Bakhtin, é uma formação livre, posto que a liberdade é inerente a toda expressão. No entanto, retoma o autor, o ser da expressão é bilateral: ―só se realiza na interação de duas consciências; a penetração mútua com manutenção da distância; é o campo de encontro de duas consciências, a zona de contato interior entre elas.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 395-396). É, dessa forma, que se constitui a ideia de conhecimento-penetração.

Sob essa perspectiva, Bakhtin (2010, p. 42) apresenta suas explicações sobre o teoricismo grosseiro que busca incluir o mundo da cognição teórica no existir único. Para o autor, uma caraterística comum do pensamento teórico nas Ciências Naturais é que estas estabelecem uma separação entre o conteúdo-sentido (a responsabilidade especial) de um determinado ato-atividade e a realidade histórico-cultural de seu existir, ―sua vivência realmente irrepetível‖. Por consequência, segundo o autor, o ato acaba por perder o seu valor (sua expressividade), a sua unidade de vivo (sua responsabilidade moral). Bakhtin (2010) busca entender o ato na sua totalidade.

Por essa totalidade, Bakhtin (2010) entende que, o ato singular do existir único reflete-se em ambas as direções, ocorrendo a bilateralidade acima mencionada, à medida que o ato se reflete seja em relação ao conteúdo (o que o autor denomina de responsabilidade especial) e em relação ao seu existir (denominado pelo autor de responsabilidade moral). Assim, a responsabilidade especial deve ser

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um momento incorporado de responsabilidade moral do sujeito único em seu ato singular. ―Somente assim se pode superar a separação entre construir a mútua penetrabilidade entre o mundo da cultura (o mundo teórico) e o mundo da vida (o mundo das ações humanas situadas).

Bakhtin (2010) claramente observa que o mundo de teorias autônomas, abstratas e alheias à historicidade vivida e singular permanecem fechadas em si mesmas em suas fronteiras rigidamente limitadas e em sua autonomia justificada e inviolável, à medida que seu objeto é desvozeado, ahistórico, coisa. Entretanto, para o autor, o mundo como objeto de conhecimento teórico, busca a concretude e sua totalidade, procura pela compreensão do ato e seu valor histórico único, o que o autor entenderia como uma filosofia da compreensão (BAKHTIN, 2003, p. 396).

A compreensão é vista por Bakhtin (2003) como visão do sentido, ―não uma visão fenomênica e sim uma visão do sentido vivo da vivência da expressão, uma visão do fenômeno internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido.‖ (p. 396). Uma filosofia da expressão, a expressão como campo dialógico de encontro de duas consciências.

A compreensão entendida como o entendimento de seu desdobramento em atos particulares, posto que, para Bakhtin (2003; 2010), na compreensão efetiva, os atos reais e concretos se fundem à compreensão de forma indissolúvel em um processo único, mesmo que, cada ato tenha sua autonomia semântica. De acordo com o autor, a compreensão, em seu contexto dialógico-valorativo, se constitui em quatro momentos: (i) a perecepção meramente psicofisiológica do signo físico (a palavra, sua forma, seus atributos); (ii) seu reconhecimento e, portanto, seu significado reprodutível na língua; (iii) a compreensão do significado em dado contexto (imediato e amplo) e (iv) a compreensão ativo-dialógica (e sua consequente expressividade).

Com isso, entendemos que a compreeensão em Bakhtin (2003) está sob a égide do sentido, entendido aqui como um potencial de sentidos (BAKHTIN, 2003, p.404), isto é, o sentido em seu contexto dialógico e valorativo, em toda sua profundidade e complexidade (BAKHTIN, 2003, p. 398). O sentido a partir da antecipação do contexto e sua relação com a totalidade: os ―já-ditos‖ preenchidos e as possibilidades antecipadas e, portanto, a relação dialógica com outros sentidos. Em outras palavras, o sentido, em termos de gestos interpretativos em correlação com outros gestos, e sua consequente reacentuação em um novo contexto, de fato, etapas de movimento dialógico de interpretação: ―o ponto de partida – um dado texto, o movimento retrospectivo – contextos do passado, movimento prospectivo – antecipação (e início) do futuro contexto.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 401). É o que Bakhtin (2003) entende como a índole dialógica da interpretação, posto que, para o autor, ―toda a interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos.‖ (p. 400).

Assim, diferentemente das Ciências Exatas e Naturais como formas monológicas do saber, as Ciências Humanas apresentam-se como ciências do discurso (AMORIM, 2004), e por consequencia, essencialmente dialógicas. Bakhtin (2003) explica:

As ciências exatas são uma forma monológica do saber: o intelecto contempla uma coisa e emite enucniado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente (contemplador) e o falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa, porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; consequentemente o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (BAKHTIN, 2003, p. 400, grifos do autor).

Bakhtin (2003) discorre sobre esse ativismo dialógico do sujeito cognoscível que se pressupõe nas Ciências Humanas (ciências do espírito), entendendo que a coisa e o sujeito como os limites do conhecimento. Sob essa questão, Bakhtin entende que, ao estudar o sujeito e não a coisa,

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estamos procurando entender o pensamento sobre o mundo e o pensamento no mundo, isto é, o acontecimento do sujeito no mundo, sua participação nele e, por sua vez, sua avaliação, esta ―como momento indispensável do conhecimento dialógico.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 400).

Quanto à avaliação, Bakhtin (2003) entende como um tom, uma entonação acentuadamente

expressiva, capaz de estender e deslocar-se a quaisquer palavras e expressões, determinando a tonalidade de cada consciência, ―tonalidade que serve de contexto axiológico-emocional na nossa interpretação; o que revela e se revela por meio do potencial de sentidos. Trata-se ―de fazer o meio material [...] começar a falar, isto é, descobrir nesse meio a palavra em potencial e o tom, de transformá-lo no contexto semântico do indivíduo pensante [...]. (BAKHTIN, 2003, p. 404). Além disso, para o autor, em qualquer momento do desenvolvimento da compreensão, há sentidos esquecidos de forma ilimitada, contudo, em determinados momentos sucessivos, tais sentido são recuperados e reacentudaos, vivendo em novos contextos. Como bem observa o autor: ―não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 410).

Assim, após retomarmos os escritos bakhtinianos sobre a relação entre as ciências da coisa e

as ciências do homem, procuramos construir um diálogo com interlocutores contemporâneos de Bakhtin para apresentarmos discussões outras sobre a perspectiva bakhtinana nas Ciências Humanas e sua posição sócio-histórico-cultural de entender o homem e seu discurso. Um diálogo com os “já-ditos” sobre a epistemologia nas Ciências Humanas

À luz da perspectiva bakhtiniana, diferentes pesquisadores têm questionado as orientações positivistas de pesquisa em Ciências Humanas como requisito de asseguridade científica (AMORIM, 2003; 2006; FREITAS, 2003; GERALDI, 2003; PONZIO, 2009; ROJO, 2006). Em oposição a uma postura positivista, a visão sócio-histórica-cultural entende que o saber teórico, instituído epistemologicamente na esfera da ciência, precisa dialogar com concepções construídas nas práticas e relações sociais cotidianas, ―possibilitando uma permanente troca entre visões de mundo que se expressam através de registros de linguagem e de gêneros discursivos distintos‖ (FREITAS et al., 2003, p. 7-8). Como pontuam as autoras:

Os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica, cada vez mais elaborada, sobre a experiência humana, na medida em que são capazes de permitir que os diferentes gêneros do discurso (desde o discurso acadêmico até as formas cotidianas de expressão, através de ações, opiniões e representações sociais) possam interagir, transformando e ressignificando mutuamente as concepções, sobre o conhecimento e a experiência humanas que circulam entre as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento histórico. (FREITAS et al., 2003, p. 8).

Assim, na presente pesquisa, entendemos que as visões de homem, de língua e de conhecimento presentes numa determinada abordagem epistemológica demarcam sua organização, de forma geral, metodológica e conceitual. Com isso, a posição sócio-histórico-cultural e dialógica de Bakhtin nos apresenta mudanças significativas de compreensão e desenvolvimento de estudos no campo das Ciências Humanas. Concordamos com Amorim (2003; 2004) quando a autora considera que nas Ciências Humanas se conjugam as dimensões ética e estética para resultar em outra dimensão, que é a epistemológica.

Assim, situando Bakhtin nas Ciências Humanas e revisitando os estudos de Freitas (2003),

entendemos que as pesquisas qualitativas de ordem sócio-histórico-cultural e dialógica pressupoem passos metodológicas que seguem as seguintes características (FREITAS, 2003, p. 27):

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(a) a fonte dos dados são os textos, compreendidos em sua situação (imediata e ampla) de interlocução, isto é, entendidos no acontecimento no qual emergem, vistos como enunciados, no sentido bakhtiniano da expressão. Em outras palavras, ―procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto‖ (FREITAS, 2003, p. 27); (b) as questões de pesquisa não são dadas a priori, nem estabelecida a partir de variaveis quantificadas, mas surgem da complexidade particular dos fenômenos sócio-historicamente situados46. ―Isto é, não se cria artificialmente uma situação para ser pesquisada, mas vai-se ao encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento‖ (FREITAS, 2003, p. 28). (c) o percurso da coleta é caracterizado pela compreensão de índole dialógica, ―valendo-se da explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do indivduo com o social‖ (FREITAS, 2003, p. 28); (d) ―A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e de seu desenvolvimento‖ (FREITAS, 2003, p. 28); (e) a pesquisa deve propiciar um espaço de integração, no qual ―o pesquisador e o pesquisado tenham a oportunidade para refletir, para aprender e, por conseguinte, ressignificar-se no processo de investigação.

Para Bakhtin (2003), o objeto de estudo das Ciências Humanas é o homem e seu discurso, isto é, não um sujeito abstraído de seus textos, de sua fala. ―Isto é, o homem sempre se expressa através de seu texto virtual ou real que requer uma resposta, uma compreensão. Se não há texto, não há objeto para investigação e para pensamento‖ (FREITAS, 2003, p. 29). Partindo dessas postualções sobre o metodo sócio-histórico nas Ciências Humanas e procurando relacioná-los aos achados de Bakhtin, passamos a revisiar os escritos do Círculo a respeito da exotopia, o situar-se em lugar exterior e o papel do pesquisador e seu excedente de visão. A exotopia e o distanciamento do pesquisador

Levando em consideração o campo da pesquisa qualitativa, podemos entender que o pesquisador contempla o outro sob um determinado excedente de visão, isto é, o pesquisador procura entender outrem a partir de seu lugar no mundo, de sua posição singular e insubstituível. É o seu lugar definido a partir do qual emite suas apreciações e age. Bakhtin (2003) esclarece que o excedente de visão em relação ao outro, essa instância exótopica que se constrói entre mim e o outro, é sempre condicionado pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo, à medida que nesse espaço-tempo, em que me coloco como único em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. Com isso, essa constitutividade exotópica entre mim e o outro, isto é, o excedente da minha visão condicionado pelo outro em relação a ele mesmo, determinam as ações que pratico e os julgamentos que faço em relação a outrem.

Além disso, essas ações éticas e juízos de valor não podem abstrair a singularidade concreta

da posição que o sujeito, ao qual destino meus atos e os juízos, ocupa na existência, contudo, este outro, para quem minhas ações éticas se destinam, condiciona certa intensidade de minha atividade. Com isso, ―o excedente de minha visão em relação ao outro condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas e externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim [...].‖ (BAKHTIN, 2003, p. 23). Para Bakhtin,

46 Sobre a análise de gêneros, à luz da teoria bakhtiniana, Rojo, a esse respeito, esclarece: ―será sempre um estilo de trabalho mais top-down e de idas e vindas da situação ao texto e nunca um estilo bottom-up de descrição exaustiva [...]‖ (ROJO, 2005, p. 199, grifos da autora).

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O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ela desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha visão complete o horizonte do outro indivíduo contemplando sem perder a originalidade deste. (BAKHTIN, 2003, p. 23).

Segundo o autor, devemos entrar em certa empatia com o outro, entendermos e vermos o real axiologicamente da forma como o outro o vê, colocarmo-nos no lugar do outro, e, após termos retornado ao nosso lugar, completar o horizonte do outro por meio do excedente de visão que do nosso lugar se descortina fora do lugar de outrem, criar para este outro um ambiente concludente a partir do nosso próprio excedente de visão, do nosso conhecimento e da nossa vontade.

Bakhtin (2003, p. 24) ainda explica que muitas das atitudes e estados vitais do outro podem motivar-nos a atos éticos, como uma ajuda, um acolhimento, uma atenção, uma consolação. Contudo, ressalta o autor, todo o ato ético em relação ao outro deve ser naturalmente seguido de um retorno a nós mesmos, ao nosso lugar, pois, caso contrário, estaríamos, por assim dizer, vivenciando o sofrimento do outro como se fosse o nosso próprio. ―Quando me compenetro dos sofrimentos do outro, eu os vivencio precisamente como sofrimentos dele, na categoria do outro [...].‖ (BAKHTIN, 2003, p. 24, grifos do autor). Após as explicações sobre a exotopia, passemos às considerações finais. Considerações finais O presente estudo procurou discutir teoricamente as considerações bakhtinianas a cerca das pesquisas em Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo de Bakhtin, em especial seus escritos sobre o método nas Ciências Humanas, questões sobre a compreensão e exotopia, além dos estudos de seus interlocutores contemporâneos sobre esses temas. Entendemos que o trabalho de pesquisa qualitativa, principalmente aquele construído à luz da relação dialógica entre o pesquisador e o pesquisado, pressupõe, por natureza, uma arena conflituosa de sentidos. Em outras palavras, como bem explica Amorim (2003, p. 12), ―assumir esse caráter conflitual e problemático da pesquisa em Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto do seu próprio discurso.‖ Neste trabalho, procuramos compreender uma faceta desses conflitos dos diferentes lugares sociais de onde discursos são produzidos e ressignificados. Referências AMORIM, M. A Contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências Humanas e Pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. ______ . O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: MUSA, 2004. ______ . Cronotopia e exotopia. In: BRAIT, B (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _________ . Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. FARACO, C.A. Linguagem e Diálogo: as ideias do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção de conhecimento. In: In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências Humanas e Pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.

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GERALDI, J.W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção da ética e da estética. In: In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências Humanas e Pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2009. ROJO, R. Gêneros do Discurso e Gêneros Textuais: Questões Teóricas e Aplicadas. IN: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola Editorial. 2005. p. 184-207. _____. Fazer Lingüística Aplicada em Perspectiva Sócio-histórica: Privação Sofrida e Leveza de Pensamento. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 253-274. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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PARAOLIMPÍADAS E POLÍTICAS DE INCLUSÃO:

NOVAS FORMAS DE GOVERNO DOS CORPOS

Roseli Belmonte Machado Mestrado em Educação – ULBRA/Canoas RS

Professora do Instituto Santa Luzia Porto Alegre RS

Professora e coordenadora pedagógica da SEDUC/RS

Resumo: Este trabalho resulta de uma investigação que tem por objeto de estudo as Paraolimpíadas, entendendo-as como articuladas a políticas de inclusão. Como desdobramento, também foi possível problematizar os processos de inclusão e exclusão como uma unidade e perceber as relações de imanência entre os discursos sobre Paraolimpíadas e inclusão e seus efeitos sobre sujeitos que possuem relação com esses significados. Para essa análise, vali-me das ferramentas teórico-metodológicas dos Estudos Foucaultianos, analisando como esses discursos governam os corpos dos atletas. Ao mesmo tempo, pude perceber as Paraolimpíadas como uma estratégia para incluir os sujeitos nas normas da governamentalidade neoliberal. Palavras-chave: Paraolimpíadas; inclusão; governamento Abstract: This work results of an investigation which has for aim the study of Paraolympics, understanding them as articulated to the inclusion policy. As a result, it was also possible to difficult the process of inclusion and exclusion as a unit and realize the relations of two genders between the speeches about Paraolympics and the inclusion and its effects on people who have relation with these meanings. For this analysis, I took advantages of those theoretical-methodological tools of the Foucaudian perspectives, analysing how these speeches demand the athletes‘s bodies. At the same time, I could realize that the Paraolympics as an strategy to include the people inside the rules of the neo-liberal governmentality. Keywords: Paraolympics; inclusion; government O início do jogo

Antes de começar o jogo – que aqui estou significando como o desenvolvimento deste trabalho –, penso que é necessário esclarecer um ponto. Minha pretensão não é descobrir verdades ou mostrar como as coisas ―realmente aconteceram‖. Espero, contudo, que as questões que ponho em discussão colaborem para que as suspeitas sejam mantidas ou ―para desvendar as armadilhas do discurso inclusivo e experimentar possibilidades de pensar uma educação que, de fato, possa tratar com as diferenças [...]‖ (GALLO, 2009, p.11).

No final da década de 1980 e no início da década de 1990, vários países passaram a integrar

em suas leis formas de atender aos direitos e às necessidades das pessoas com algum tipo de deficiência. Em um âmbito geral, as duas Declarações que impulsionaram a ascensão das Políticas de Inclusão foram a Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, de 1990, e a Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, de 1994. Essas propostas, no entanto, não podem deixar de ser olhadas de outra maneira. O crescente interesse pela vontade de colocar todos na mesma rede e na mesma lógica e a iniciativa de sensibilização de alguns países em relação às condições de vida e aos direitos das pessoas com deficiência estão ancorados também em outras situações. Lavergne (2009) traz algumas reflexões sobre isso, expondo que os grandes difusores de todo esse discurso a respeito de ―diversidade‖, ―respeito às diferenças‖, são as grandes agências internacionais, tais como OMS, UNESCO, FMI e Banco Mundial, que operam dentro de uma forma de economia política neoliberal. Aqui, porém, quero fazer a ressalva de que não é o caso

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de apontar as ―instituições como vilãs de uma conspiração‖. O que estou propondo é olhar pelo avesso esse discurso das políticas de inclusão já naturalizado. Para isso, utilizo as Paraolimpíadas e seus efeitos sobre alunos que possuem deficiência como foco de análise.

Desse modo, esta pesquisa, que teve como objetivo central pensar nas Paraolimpíadas

como parte das políticas de inclusão, foi desenvolvida sobre três focos de análise: a história dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, reportagens do jornal Zero Hora47 dos meses de agosto e setembro do ano de 2008 e o desenvolvimento de um estudo diretamente com alunos que participam de jogos paradesportivos em uma escola dita inclusiva, através da utilização da metodologia de grupos focais. A possibilidade de realizar a análise que me propus a fazer advém da utilização de alguns conceitos chave da teorização de Michel Foucault: poder, governamento, biopoder, norma e seus correlatos.

Olimpíadas e Paraolimpíadas: significados ao longo da história

―... nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim‖ (FOUCAULT, 1995, p. 256).

A apresentação da história dos Jogos busca, além de situar o leitor nas questões que estou discutindo, propiciar um panorama geral de como os discursos que hoje fomentam e legitimam alguns enunciados sobre essas competições foram sendo constituídos. Segundo Bujes (2003), inspirada em Foucault, as relações discursivas não unem entre si objetos e palavras, mas oferecem objetos aos discursos, definindo do que eles podem falar e quais são as relações que podem ser efetuadas ao se falar desse objeto. Reafirmo também que estou me valendo de um conceito de discurso da teorização de Michel Foucault, como expõe o autor:

Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoie na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de relações de existência (FOUCAULT, 2002, p.135).

De uma forma resumida, é importante destacar sobre a história das Olimpíadas, da Grécia

Antiga até os dias de hoje, duas questões: uma é o fato de os campeões na Olimpíada da Grécia Antiga serem comparados aos deuses venerados naquela época e, assim, passarem a ser considerados perfeitos; a outra é a regulamentação e a fiscalização imposta aos corpos dos atletas desde então, principalmente através de índices estabelecidos. O estímulo para superar os limites pessoais e os limites do outro é o que irá balizar os Jogos Olímpicos. Há uma recorrência discursiva presente nos Jogos Olímpicos na sua constituição histórica e na sua regulamentação. Refiro-me à acentuada referência à perfeição dos sujeitos. Na Grécia Antiga, isso acontecia pela representatividade que um atleta vencedor tinha: era comparado a um deus. Nas Olimpíadas modernas, está presente na exaltação aos ganhadores, que são sempre estimulados a estar no topo.

Assim, ser olímpico é bem mais do que competir, representar seu país, fazer parte de um

evento de confraternização mundial ou participar do esporte de que se gosta e que se está habituado a praticar. Ser olímpico é fazer parte de toda uma rede historicamente constituída que engloba os atletas olímpicos, os marca, os define e os designa como superiores ou como perfeitos. Ser olímpico, hoje, ainda parece implicar as marcas de heroísmo e endeusamento que justificaram as Olimpíadas na Grécia Antiga, prosseguindo com a proximidade ao divino.

47 Jornal produzido e editado em Porto Alegre/RS e de grande circulação na região sul.

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Em uma análise histórica, o primeiro registro de esportes que incluíram pessoas com

deficiência remonta ao ano de 1918, na Alemanha. No entanto, a grande expansão aconteceu com o final da Segunda Guerra Mundial, pois inúmeros ex-combatentes de guerra ficaram mutilados ou com lesões na coluna vertebral. A maior parte desses combatentes era tratada no Centro Nacional de Lesionados Medulares, em Stoke Mandeville, na Inglaterra. Nesse centro, o neurocirurgião alemão Ludwig Gutmann iniciou um tratamento com seus pacientes que incluía o esporte como uma alternativa de reabilitação. Posteriormente, no ano de 1948, aconteceu a primeira competição para atletas com deficiência, a qual coincidiu com as Olimpíadas, que estavam ocorrendo em Londres. Já a partir do ano de 1960, os jogos para pessoas com deficiência passaram a acontecer na mesma cidade das Olimpíadas, porém sempre após os Jogos Olímpicos já terem ocorrido48. O surgimento dessa competição está diretamente marcado por uma significação de superação, pois, na medida em que os competidores são doentes em reabilitação, o fato de conseguirem praticar um esporte é considerado um sinal de ―ultrapassar o esperado‖ para as suas condições. Aqui, o conceito de superação é diferente do que significa para um atleta olímpico, que é narrado como aquele que supera seus limites de ser humano e se torna perfeito ou superior. Nas Paraolimpíadas, o que é recorrente é que os atletas estão em um lugar que até então parecia estar vedado para eles. Talvez esse seja um dos motivos que fazem com que as Paraolimpíadas estejam no ―jogo‖, mas em um lugar desvalorizado, um lugar de outro, um lugar de anormalidade.

Mídia e discurso

Na seção anterior, procurei mostrar como se engendraram historicamente os discursos em que esses Jogos estão envolvidos. Já nesta parte busco discutir o papel e a repercussão social dessas competições nos dias de hoje, em que os significados de perfeição para os olímpicos e de superação para os paraolímpicos é cada vez mais marcado. Para isso, trago a mídia, em especial as reportagens jornalísticas, como um dos focos de análise de minha pesquisa, entendendo sua função como produtora de saberes e de sujeitos (FISCHER, 2002b). Tenciono instigar uma reflexão sobre a abordagem diferenciada que essas duas competições recebem da mídia, a qual, ao mesmo tempo em que produz as formas de pensar dos sujeitos, legitima e reforça o caráter de diferença entre esses Jogos.

[...] a mídia se faz num espaço de reduplicação dos discursos, dos enunciados de uma época. Mais do que inventar ou produzir um discurso, a mídia o reduplicaria, porém, sempre a seu modo, na sua linguagem, na sua forma de tratar aquilo que deve ser visto ou ouvido (FISCHER, 2002a, p.86).

Para essa parte da análise trago para discussão reportagens do Caderno de Esportes do

jornal Zero Hora, fazendo um apanhado entre os dias 08/08/2008 e 24/08/2008 (época das últimas Olimpíadas) e entre os dias 06/09/2008 e 17/09/2008 (época das últimas Paraolimpíadas). Acredito que, para o tipo de análise que me propus a fazer, a seleção desse material foi pertinente, pois é representativa do que circulou nos meios de comunicação na época. As análises realizadas foram de duas ordens: a primeira, quantitativa; a segunda, qualitativa. Na abordagem quantitativa, centrei-me no número de páginas, reportagens e notas que esse jornal apresentou no momento em que estava ocorrendo cada uma das competições. Para a análise qualitativa, verifiquei os tipos de enunciados relativos a cada competição, entendendo-os como parte do discurso que, para mim, acaba por legitimar as segregações e as representações atuais que as duas competições carregam.

O que busco mostrar, dessa forma, é que as reportagens (grandes ou pequenas), as

entrevistas, os textos e as imagens veiculadas no corpus analítico selecionado do jornal Zero Hora têm uma estreita relação com questões de poder e regimes de verdade. ―Se um enunciado exclui [...]

48 De acordo com o Comitê Paraolímpico Brasileiro. Disponível em www.cpb.org.br. Acesso em 14 de junho de 2009.

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é porque o regime de verdade do qual faz parte esse enunciado se estabeleceu para atender a determinada vontade de verdade‖ (VEIGA-NETO, 2007, p105).

Ao me aproximar do material escolhido, logo de início percebi as diferenças de tratamento

que o jornal Zero Hora dispensou aos Jogos Olímpicos e posteriormente aos Jogos Paraolímpicos. A primeira questão analítica é o número de páginas destinadas à cobertura dessas competições. Para as Olimpíadas, foi reservada, diariamente, uma média de cinco páginas trazendo todas as notícias consideradas relevantes para o leitor a quem esta mídia se endereça49. Além disso, na época, esse jornal criou um caderno especial50 com cerca de dez páginas sobre o evento que estava ocorrendo. Entretanto, esse mesmo jornal, ao realizar a cobertura das Paraolimpíadas no mesmo ano, trouxe apenas uma página diária sobre esse evento, e, muitas vezes, havia apenas uma nota em um canto de página51.

A segunda análise comparou os diversos enunciados que foram trazidos no jornal Zero

Hora, os quais diferiram muito na apresentação das duas competições. Observemos como exemplo, estes dois recortes:

―Com a expectativa de conquistar até oito medalhas de ouro nos Jogos de Pequim – tornando-se o nadador com o maior número de vitórias em uma única edição olímpica –, o nadador norte-americano Michael Phelps, 23 anos, já começou arrasando nas piscinas chinesas‖ (ZH, n. 15688, p.10, 10/08/2008). ―Superar limites é com eles mesmos. Feiten ficou tetraplégico depois de sofrer um acidente [...]. Até aí improvável pensar que esse jovem seria grande esportista [...]. Hoje, empurra a própria cadeira de rodas, consegue dirigir e é o 11° no ranking brasileiro de natação na categoria geral‖ (ZH, n. 15713, p.51, 06/09/2008).

Esses recortes fazem parte, respectivamente, das reportagens sobre Olimpíadas e

Paraolimpíadas. Ambos se referem a atletas de natação. Há neles, no entanto, peculiaridades que acredito merecerem uma maior atenção, tendo em vista que são representativas de um tipo de enunciado presente nas demais notícias que verifiquei. O primeiro excerto relata como está o desempenho do nadador olímpico Phelps, expondo sucintamente que se trata de um atleta vitorioso, de um campeão. Já o segundo recorte traz uma reportagem sobre o nadador paraolímpico Feiten. Até esse ponto, poderíamos afirmar que são notícias equivalentes; no entanto, é na narrativa presente no segundo excerto que estão marcadas as diferenças. A intenção inicial da reportagem não está em divulgar como o atleta está se saindo nas últimas competições de que participou; ao contrário, seu propósito é expor a deficiência daquele indivíduo, tecendo comentários de como seria improvável a sua participação em um esporte. Apenas depois de caracterizar o atleta – marcar sua anormalidade – é que há uma referência ao seu desempenho no esporte.

Os recortes apresentados ilustram o discurso que é recorrente na maioria das reportagens

analisadas, que reafirmam a posição de cada uma das competições na história. As palavras têm força e legitimidade no momento em que estão inseridas em uma lógica e uma ordem que já possuem significados estabelecidos. Ao mesmo tempo em que reproduzem um discurso existente, elas o reforçam e o ampliam: os olímpicos são os perfeitos, os capazes, os ilustres, os que se aproximam do divino; os paraolímpicos são os que superam as suas dificuldades. Ambos estão no ―jogo‖, mas em lugares diferenciados e marcados.

49 Informação obtida ao analisar os números 15684 até 15700 do ano de 2008 do Jornal Zero Hora. 50 Jornal de Pequim. 51 Informação obtida ao analisar os números 15713 até 15724 do ano de 2008 do Jornal Zero Hora.

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Conversações: os sujeitos entram no jogo

Para analisar os aspectos referentes às relações que se estabelecem entre os discursos e os sujeitos, utilizei a técnica de grupo focal, entendida como ―um conjunto de pessoas selecionadas e reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto de pesquisa, a partir de sua experiência pessoal‖ (POWELL e SINGLE apud GATTI, 2005, p. 7). A abordagem que realizei possibilitou os aportes necessários para esta investigação, pois, através da técnica de investigação do grupo focal, foi possível uma multiplicidade de pontos de vista oriundos do próprio processo de interação entre o grupo.

A escolha dos participantes teve relação com seu grau de conhecimento e de

envolvimento com o meu objeto de análise. Com base nisso, selecionei, na escola em que realizei a pesquisa52, nove alunos que julgava terem as condições necessárias para participar das discussões propostas para os grupos focais: todos possuem deficiência visual, são participantes de jogos paradesportivos na escola inclusiva em que estudam e estão em uma faixa etária aproximada, entre 15 e 20 anos. As sessões dos grupos focais foram realizadas dentro da escola à qual os escolares estão vinculados. Foram realizados três momentos de discussão, com intervalos de uma semana de um encontro para o outro e com duração de cerca de 50 minutos cada um. Para a coleta de dados, foi utilizado um gravador de voz de um aparelho de MP3. Após, as sessões foram transcritas e analisadas. O que fiz foi identificar como, em suas manifestações, esses alunos (sujeitos da investigação) se posicionam em relação às questões que permeavam esta pesquisa. Em cada sessão, um tipo de material referente às Olimpíadas e às Paraolimpíadas serviu como apoio: Na primeira foram reportagens escritas, na segunda foram comerciais de TV e na terceira foi a presença de um atleta paraolímpico.

Um dos temas que mereceu maior consideração dos alunos foi a mídia. Sobre esse assunto,

destacaram-se falas que tinham como tema principal as diferenças de espaço midiático, tratamento e cobertura entre as competições. Ao mesmo tempo, relacionaram-se a este aspecto outros temas, como o consumo e o patrocínio. Poderia afirmar, em uma análise superficial, que se tratou de um assunto recorrente que produziu um grande volume de conversas e considerações, chegando-se ao consenso de que as Paraolimpíadas são menos valorizadas do que as Olimpíadas.

Demonstração de bravura. Determinação. Superação de obstáculos. Show de superação. Essas palavras e

expressões foram fortemente enfatizadas e repetidas pelos sujeitos da pesquisa no decorrer dos grupos focais. A cada momento em que eram discutidas características ou diferenças entre as Olimpíadas e as Paraolimpíadas, esses enunciados eram relacionados aos atletas paraolímpicos. Porém, em princípio, ao se analisarem apenas os enunciados, não há nada que indique que se dirigem aos atletas paraolímpicos, embora a palavra superação nos acenda um alerta, pois está presente nos discursos que se referem a esses sujeitos e passa a ser vista como ―colada‖ a eles. ―[...] anormais não são, em si ou ontologicamente, isso ou aquilo; nem mesmo eles se instituem em função do que se poderia chamar de desvio natural em relação a uma suposta essência normal‖ (VEIGA-NETO, 2001, p.106). Localizá-los como anormais, resulta, no caso dos atletas paraolímpicos, de operações de ordenação, de estratégias de poder – à custa de ―oposições, exclusões, violência‖.

As políticas de inclusão atuam na intenção de incluir o outro que já foi nomeado,

especificado e narrado dessa maneira. Para essa lógica, não há relativização sobre esses outros, suas posições são fixas: são os deficientes, os sindrômicos, loucos, etc. – aqueles que a Modernidade vem inventando (VEIGA-NETO, 2001). Esse lugar determinado de quem são os outros, essa posição fixa de quem deve ser incluído, move táticas que governam os sujeitos que são constituídos por tal processo – sujeitos da inclusão –, que passam a se reconhecer dessa maneira estabelecida:

52 A pesquisa foi realizada no Instituto Santa Luzia em Porto Alegre.

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são os outros. Um exemplo disso foram as narrativas dos alunos que participaram desta pesquisa. Suas manifestações em relação a esse pertencimento ou a essa outridade que lhes é atribuída aconteceram no decorrer de todas as sessões. Do mesmo modo, várias situações no decorrer das sessões mostram que esses alunos (sujeitos da inclusão, anormais) se percebem excluídos e/ou dignos de vergonha pela sua condição. ―Não basta ter uma deficiência para ser diferente. É a forma como os outros me olham, me significam e como me enredo nas tramas sociais que me faz ser o que o outro não é‖ (LOPES, 2007, p.29).

Tal situação, no entanto, pode ser resolvida, segundo os sujeitos da pesquisa, se as outras

pessoas se acostumarem com as suas deficiências e com as suas condições de anormalidade. A fórmula para esses alunos parece simples:

Nesse aspecto, no entanto, os alunos desconhecem que as políticas de inclusão, embora

pareçam estar tentando tornar invisíveis as anormalidades, continuam marcando os sujeitos de outros modos. Paraolimpíadas e inclusão

No decorrer do texto, muitas foram as diferenças expostas em relação aos Jogos Olímpicos e aos Jogos Paraolímpicos, desde a representação histórica de cada uma até os discursos que as representam. Não obstante, essas não são as únicas diferenças percebidas nessas competições, pois, por outro lado, cada uma delas se move segundo táticas e estratégias diversas. As Olimpíadas vendem as últimas tecnologias de roupas e equipamentos, colocam em destaque o país sede e suas conquistas atuais, fomentam o desenvolvimento de uma região e servem para mostrar o ―congraçamento dos povos‖, destacando como todos, apesar das diferenças étnicas e econômicas, estão ―aptos a competir‖ (ainda que o quadro de medalhas mostre as diferenças gritantes sob essa aparente democracia esportiva). Já as Paraolimpíadas propõem-se a mostrar o poder humano de superar limites, indicam que o esforço pessoal depende do mérito de cada um, vendem produtos específicos para essa população e divulgam os direitos e as capacidades relativas das pessoas com deficiência. Porém, percebe-se que, embora a atuação de cada uma delas seja realizada através de estratégias diferenciadas, ambas trabalham na lógica do neoliberalismo – racionalidade centrada no consumo e na competição, em que a liberdade maximizada é condição para sua sujeição (VEIGA-NETO, 2000; SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009).

Meu segundo entendimento foi o de que, ao analisar esse discurso, percebo que ele age

sobre os sujeitos numa operação que governa os corpos (FOUCAULT, 2008), localizando-os e designando-os em posições sociais diversas. É uma forma de governamento que age incluindo-os e excluindo-os simultaneamente. Essa minha observação foi confirmada quando fui a campo pesquisar os sujeitos que participam ou que, de certa maneira, estão envolvidos com as competições. Conversar com eles nos grupos focais fez-me perceber o quanto esse governamento atua de diversas formas sobre esses indivíduos: ora fazendo-os reproduzir o discurso circulante, ora fazendo com que se percebam como pessoas com deficiência e anormais que reivindicam condições de igualdade e mesmos direitos. Também é notável o quanto esses sujeitos governados pelos diversos discursos, por vezes, não percebem outras vontades agindo e responsabilizam-se pela sua posição de ―anormais‖ (FOUCAULT, 2001), ou seja, tendem a procurar qual é a sua parcela de culpa e responsabilidade por isso tudo.

Assim, a partir desses entendimentos iniciais, passei a refletir de uma terceira forma:

consegui compreender como esse discurso que foi constituído na história dessas competições e a forma como ele atinge os sujeitos fazem parte das políticas de inclusão da governamentalidade neoliberal que vivenciamos. Entendo que as Paraolimpíadas são uma estratégia utilizada para trazer os indivíduos para essa lógica, que pretende atingir a todos, pois há a necessidade de que os sujeitos se percebam com as mesmas condições de atuar e consumir, bem como que tenham desejo de

Inclusão valorização das diferenças + direitos iguais invisibilidade da condição de anormalidade

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permanecer nesse jogo. As Paraolimpíadas fazem parte da lógica do mercado, visto que os atletas que participam dessas competições estão em sintonia com as questões que têm valor atualmente: consomem diversos artefatos – como bolas, uniformes, cadeiras especiais –, vendem jornais, conseguem patrocínio, ocupam um espaço na mídia, etc. e se sentem inclusos, pois têm a possibilidade de ―jogar o jogo neoliberal‖. ―Inclusão na contemporaneidade passou a ser uma das formas que os Estados, em um mundo globalizado, encontraram para manter o controle da informação e da economia‖ (LOPES, 2009, p. 129).

Todavia, o que acredito ser o mais importante é perceber que esses sujeitos que foram

subjetivados pela lógica neoliberal são incluídos, mas não são tomados como normais. Ainda que sejam atletas, possuem outro tratamento. Para eles, ainda são destinados lugares e posições sociais diferenciadas ou de menor valor, como analisado em diversas passagens deste trabalho. Por isso, esse fervor a respeito da inclusão que acontece hoje deve ser sempre colocado sob suspeita. Não são poucas as formas pelas quais a vontade de incluir ainda carrega consigo diversas maneiras de excluir. Meu intuito aqui foi o de pensar e mostrar alguns exemplos dessa in/exclusão.

Acredito que seja necessário novamente esclarecer que não sou contra o processo de

inclusão das pessoas com deficiência ou contra as Paraolimpíadas. Se a questão fosse apenas emitir minha opinião (sem considerar as leituras e análises já feitas), como professora de Educação Física, diria que essa competição é extremamente válida para as pessoas que possuem deficiência, pois, além de possibilitar o acesso às atividades e exercícios físicos, também colabora para que sejam pensadas melhores condições de vida para esses sujeitos: são pensadas formas de acessibilidade, são criadas cadeiras de rodas e próteses mais adequadas, elaboram-se materiais em Braille, investe-se em cursos de Libras, etc. Porém, o que acontece é que não posso desconsiderar as leituras e análises realizadas até aqui e, assim, vejo funcionando, nos processos que ―garantem‖ melhores condições de vida para as pessoas com deficiência, a lógica insidiosa e totalizante da governamentalidade neoliberal. Referências BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e Maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. FISCHER, Rosa Bueno. Problematizações sobre o exercício de ver: mídia e pesquisa em educação. In: Revista Brasileira de Educação, n° 20. Campinas: Editores Associados/ANPEd, maio/junho/julgo/agosto, 2002a, p.83 – 94. FISCHER, Rosa Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.28, n. 1, 2002b, p. 151-162. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; RABINOW, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6.ed. RJ: Forense Universitária, 2002. FOUCAULT. Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GALLO, Silvio. Uma apresentação: diferenças e educação, governamento e resistência. In: LOPES, Maura Corcini; HATTGE, Morgana Domênica. Inclusão Escolar: conjunto de práticas que governam. Belo Horizonte, Autêntica, 2009, p. 7- 12. GATTI, Bernadete Angelina. Grupo Focal na Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Série pesquisa em Educação, v.10. Brasília, 2005. LAVERGNE, Rémi Fernand. A vontade de incluir: Regime de verdade, recomposição das práticas e estratégias de apropriação a partir de um dispositivo de inclusão escolar em Fortaleza. Tese. (Doutorado em Educação). – UFC, Ceará, 2009. LOPES, Maura Corcini. Inclusão escolar, currículo, diferença e identidade. In: LOPES, Maura Corcini; DAL‘IGNA, Maria Claudia (orgs.). In/Exclusão nas tramas da escola. Canoas: Ulbra, 2007, p. 11- 33.

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SUJEITOS RAVE: ONDE O NEOTRIBAL ENCONTRA O ELETRÔNICO Sandro Bortolazzo53 Resumo: Inspirado nos Estudos Culturais, este artigo investiga as relações entre a cultura rave e a produção de certos tipos de sujeitos jovens contemporâneos. A cultura rave pode ser definida pelo conjunto de manifestações associadas à música eletrônica envolvendo componentes visuais, redes tecnológicas de comunicação, consumo de drogas e a formação de tribos. O conceito de neotribalismo proposto por Michel Maffesoli é central para pensar as tribos urbanas. A investigação contemplou uma aproximação do universo rave e a identificação dos processos de subjetivação presente nos ambientes festivos. Os jovens conectados à cultura rave absorvem uma série de artefatos, inscritos em comunidades virtuais, músicas, e são tantos os estímulos que povoam os lugares que foi possível perceber que pedagogias são praticadas para que um jovem se torne um sujeito rave. Palavras-chave: cultura rave – neotribalismo – subject Abstract: Inspired by Cultural Studies, this article investigates the relation between rave culture and the production of certain types of contemponous young subjects´. Rave culture can be defined as the set of events associated with electronic music involving visual components, communications technology networks, drug use and the formation of tribes. Neotribalism concept proposed by Michel Maffesoli is central to think about urban tribes. The reasearch completaples an approach with rave universe and the identification of subjectitivy process present in the festive atmosphere. Young people conected to rave culture absorb a number os artifacts enrolled in virtual communities, musics and there are so many stimulies that populate a lot of places thar it was possible to verify that pedagogies are practiced for a young person becames a rave subjetc. Keywords: rave culture – neotribalism – subject Introdução

Você já se imaginou dançando por quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e por até vinte horas seguidas? O fôlego requerido para muitas horas de exercício já é suficiente para sugerir uma reflexão sobre o volume de energia despendido por sujeitos (das mais variadas idades e de distintos lugares do mundo) que, nos finais de semana, ao som da música eletrônica, festejam o carpe-diem54 contemporâneo. Eis o ponto de partida deste estudo: o universo da cultura rave.

Autores que discutem o cenário rave, entre eles Saunders (1997), Reynolds (1998) e Fritz

(1999), partem do entendimento de que a cultura rave se define por um conjunto de manifestações associadas à música eletrônica, envolvendo componentes visuais e identitários, redes tecnológicas

53 Jornalista, Mestre em Educação na linha de Estudos Culturais em Educação pela Universidade Luterana do Brasil e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 54 Carpe Diem é uma frase em Latim de um poema de Horacio (poeta lírico e satírico romano, além de filósofo). Carpe Diem é popularmente traduzido para colha o dia ou aproveite o momento. É também utilizada como uma expressão para solicitar que se evite gastar o tempo com coisas inúteis ou como uma justificativa para o prazer imediato.

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de comunicação, consumo de drogas, variados estilos de sons, formação de tribos e itens de consumo.

Este artigo investiga as relações entre a cultura rave e a produção de certos tipos de sujeitos

jovens contemporâneos. O estudo procurou identificar as diversas pedagogias que convocam os jovens a participar e permanecer na cultura rave. O trabalho consiste também numa tentativa de tradução dos elementos inscritos em uma das culturas contemporâneas que mobilizam jovens de vários países.

O caminho investivagativo da pesquisa iniciou com uma aproximação do universo rave,

descrevendo-a e discutindo-a como uma movimentação pós-moderna, a partir da literatura

especializada sobre o assunto, especialmente focado em dois autores o inglês Simon Reynolds (1998) e o canadense Jimi Fritz (1999). Um segundo passo na investigação levou em conta a identifação das convocações e as pedagogias direcionadas aos jovens que acabam transformando-se em aficionados pela cultura rave. O conceito de neotribalismo do sociólogo francês Michel Maffesoli é utilizado para pensar a formação das tribos urbanas contemporâneas. E como forma de aproximação desse reduto, frequentei seis festas rave, registrando e observando como se dão as interações entre os jovens. A conjunção entre música eletrônica, drogas, aparatos tecnológicos e uma multidão participando de uma espécie de transe coletivo hedonista caracteriza os eventos rave. A rave é uma festa realizada, usualmente, longe dos centros urbanos, em sítios ou armazéns em desuso, abandonados. O evento tem longa duração, variando de doze horas até sete dias. Embora a pesquisa tenha contemplado outros espaços onde a cultura rave circula, pretende-se aqui olhar para um dos elementos constituintes deste universo – as festas – já que elas representam a celebração máxima de uma cultura apresssada, instantênea e efêmera.

Diversão na rave: uma cena globalizada

As características da cultura rave apresentam muitas similaridades em suas manifestações, pois eventos rave que ocorrem no Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Argentina, na Austrália, nos países africanos ou mesmo nas nações asiáticas compartilham uma imensa gama de elementos comuns. Parece que a configuração do que hoje se nomeia cultura rave só tem sido possível porque temos vivenciado uma era plena da globalização onde os fenômenos culturais (de qualquer ordem) repercutem em diversos lugares do planeta. Com Canclini (2006), afirmo que os processos globalizadores não se encontram inscritos somente na esfera econômica, a globalização é também política, tecnológica, musical e cultural.

A abertura da economia de cada país aos mercados globais e a processos de integração regional foi reduzindo o papel das culturas nacionais. A transacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais diminuiu a importância dos referentes tradicionais de identidade. Nas redes globalizadas de produção e circulação simbólica se estabelecem as tendências e os estilos das artes, das linhas editoriais, da publicidade e da moda. Grande parte do que se produz e se vê nos países periféricos é projetada e decidida nas galerias de arte e nas cadeias de televisão, nas editorias e nas agências de notícias dos Estados Unidos e da Europa (CANCLINI, 2006, p.164-165).

Diante dos processos globalizadores, constato a presença de uma parcela da juventude, que

penso poder denominar de pós-moderna, marcada pelo compartilhamento de uma cultura global onde as fronteiras geográficas se revelam insignificantes ou mesmo inexistentes. Talvez uma das razões desse borramento seja o fato de que a aceleração tecnológica e o surgimento das mídias digitais foram capazes de promover uma aproximação entre os indivíduos mediante ferramentas virtuais.

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A origem das festas rave e o surgimento de uma cultura atrelada a ela geram muita

controvérsia, incluindo, no mínimo, três variantes. Uma versão explica que, no final dos anos 60, na ilha de Goa (Índia), o movimento foi iniciado por hippies que escutavam na praia uma espécie de embrião da música eletrônica misturada aos elementos musicais locais. As festas realizadas em Goa tocavam uma mistura do rock psicodélico do início dos anos 70 com a música típica dos hippies. Outra versão, talvez mais aceita e comentada, é de que as raves passaram a existir a partir da segunda metade da década de 80, quando jovens se reuniam para dançar por várias horas na região portuária de Londres, na Inglaterra.

De acordo com Fritz (1999):

A música tocada era o acid house e as festas eram conhecidas como acid house parties. Esses eventos passaram a realizar-se a céu aberto a partir do verão de 1987, marcando o nascimento do free party movement, uma progressão natural do free festival movement que era prevalente na Inglaterra naquele período [grifos meus] (p. 32).

As festas eram consideradas ilegais e se propagavam através do boca-a-boca ou por flyers

improvisados. No início dos anos 90, as raves foram criminalizadas, uma vez que estavam intimamente ligadas ao consumo de drogas. Este fato contribui para a difusão da ideia do evento rave como festa marginal. Mais uma versão ainda surge para marcar o início das raves. Verão de 1987, Ibiza (Espanha). De acordo com Saunders (1997), entre o final de 1987 e o começo de 1988, um estilo de celebração começou a se popularizar em Ibiza — o ensolarado paraíso espanhol da elite londrina. Era uma música cheia de energia que as pessoas gostavam de dançar noite adentro sob a influência de uma droga de laboratório, o Ecstasy. O chamado ―verão do amor‖ inaugurou um momento em que se misturavam pistas de dança ao ar livre, Ecstasy e música eletrônica. Portanto, é a partir de episódios simultâneos, ocorridos em diversas partes do mundo, e com características semelhantes, que uma cultura foi sendo inventada, esboçada. Não uma cultura local, mas uma cultura híbrida, digitalizada. Em suma, uma cultura que se poderia denominar de globalizada. Pedagogias rave Ao optar pelo campo dos Estudos Culturais, adoto como ferramenta teórica o conceito de Pedagogia Cultural para pensar o movimento rave. Entendo pedagogias culturais como aquelas que atravessam a vida dos indivíduos para além das pedagogias escolares tradicionais ou das pedagogias religiosas e familiares. O ensinar e o aprender vão sendo vistos como praticados nos mais diversos lugares, não estando somente a cargo das instituições educativas tradicionais. É no entrecruzamento entre os artefatos culturais e a Educação que as Pedagogias Culturais começam a ser percebidas e consideradas um reduto de investigação (COSTA, 2000).

Nas palavras de Costa (2000):

Hoje, estou entendendo que programas de TV, catálogos de propaganda,

revistas, literatura, jornal e cinema para citar apenas alguns exemplos dentre a

parafernália de produtos culturais circulantes no nosso universo cotidiano são textos culturais que operam constitutivamente em relação aos objetos, sujeitos e verdades de seu tempo (p.37).

Podemos considerar como instâncias educativas a mídia impressa, os programas de

televisão, os filmes, os desenhos animados, os espaços de entretenimento e lazer. Educativos porque nos ensinam determinadas formas de ver o mundo, de pensar e agir sobre as coisas ao nosso redor. Pedagógicos porque as produções culturais, ao difundirem representações, elas mesmas vão construindo identidades, internalizando valores e condutas. Embora o universo da

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cultura rave não se encontre implicado usualmente dentro do espectro de atividades da Educação, ao considerá-lo um espaço cultural que atrai e movimenta uma grande parcela de jovens, pode-se pensar em uma determinada pedagogia que aciona mecanismos que fascinam e convocam os jovens a participar e a se comportar de determinadas formas.

As aspirações, os deleites e a busca pelo bem-estar são elementos que fazem parte da cena rave, montada e composta para forjar e comportar determinados modos de ser. É dentro dessa ótica que se pode pensar em estratégias pedagógicas peculiares. Podemos enxergar as festas como um espaço pedagógico no sentido de que os sujeitos são forjados a partir de uma série de convocações próprias da cultura rave: a música, as drogas, o imperativo do gozo, a velocidade, o espetáculo e a tecnologia.

Na batida eletrônica

O som eletrônico nasce nos anos 50, sendo produzido em laboratório junto à evolução da microinformática. A música dita eletrônica mescla timbres, batidas, ritmos e melodia. Com a consolidação do estilo musical nas pistas de dança, surge o papel dos DJs. Principal artista da cena55 musical eletrônica, o DJ explora elementos subjetivos como espacialidade, ambientação, atmosfera, movimento, modulação. A batida eletrônica também busca levar as pessoas a percepções físicas e corporais que ―induzem‖ sensações próximas à batida do coração e ao pulsar dos músculos. O autor italiano Massimo Canevacci consegue descrever, de forma breve, o que o som eletrônico pode proporcionar.

A música que altera. A música de novos transes, não mais homologáveis – de acordo com metodologias passadistas empoeiradas – aos transes folclóricos e menos ainda aos transes étnicos. Os novos movimentos techno da música constroem um corpo que se altera e que é atravessado por sons, por batidas por minuto, por ruídos pós- industriais e orquestras pós-fordistas. A rave é a morte da polis. A rave ganha da metrópole. A rave faz pulsar os corpos metrópoles (CANEVACCI, 2005, p. 54).

A música eletrônica pode ser classificada de diversas maneiras e há inúmeras ramificações dentro de cada estilo e estas categorias não são, de forma alguma, absolutas. Cada estilo apresenta uma história, um formato e o respectivo desenvolvimento ao longo dos anos. Meu propósito não é engendrar por dentro dessas categorias e sim tratá-las como uma grande corrente, a eletrônica.

Na obra A condição pós-moderna, Lyotard caracteriza os tempos pós-modernos pelo fim, ou melhor, pela incredulidade nas metanarrativas. Os esquemas explicativos totalizantes parecem não dar mais conta de um mundo transformado pelo novo capitalismo e pela ótica consumista. A música eletrônica, como um dos ícones centrais da cultura rave, é concebida pela montagem e (re) composição de amostras de outras músicas. De certo modo, dissolve o esquema das narrativas, fugindo do padrão início-refrão-meio-refrão-fim. O som eletrônico concentra-se em ciclos, e a estrutura repetitiva é considerada um elemento da estética eletrônica. Observando a música eletrônica enquanto construção, pode-se percebê-la como reveladora de uma condição pós-moderna. Seu som repetitivo é produzido por meios binários, ou seja, a partir da microinformática, logo, sua concepção se dá com base no uso das tecnologias digitais. E estas mesmas tecnologias são sua condição de possibilidade.

55 Termo usado para denotar o conjunto das manifestações que estão acontecendo. Pode se referir à totalidade do movimento (a cena da música eletrônica), como especificar um estilo dentro dela (a cena techno, a cena trance, etc.)

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A droga e a festa

Muito embora as drogas estejam presentes, e pude observar isso quando frequentei alguns eventos, as festas rave começaram a ser associadas ao consumo de drogas como o Ecstasy porque no início as festas eram chamadas de acid parties. O acid era um estilo de música que despontava no final da década de 80 e como estava intimamente ligado à ideia de psicodelia, fazia alusão ao consumo de drogas. Na visão de Reynolds (1998), a palavra rave (que significa delirar, falar com euforia) começa a despontar no início dos anos 90, reforçando uma relação da música eletrônica com o Ecstasy e práticas hedonistas. Trata-se de uma criação da mídia inglesa da época para caracterizar uma grande festa onde se reuniam milhares de pessoas. Esse movimento foi essencialmente marcado pelo consumo do Ecstasy, uma droga sintética a exemplo do LSD. A droga possui o efeito de otimizar o clima de hedonismo nas festas. A ação da droga ocorre sobre os neurotransmissores químicos do cérebro, como a serotonina, a qual é responsável pela sensação de prazer. O Ecstasy passou a receber o apelido de ―droga do amor‖ porque tem o efeito de promover uma abertura empática em relação aos demais. A própria música eletrônica discotecada nas raves, com uma textura sinestésica e seus ritmos excitantes, aumenta o efeito da droga, facilitando a libertação do corpo e um desprendimento da fala. Reynolds (1998) assim descreve alguns dos efeitos do Ecstasy.

O efeito da droga é aumentar drasticamente a disponibilidade de dopamina e serotonina, neurotransmissores que conduzem impulsos eletroquímicos entre as células do cérebro. Excesso de dopamina estimula a atividade motora, aumenta o metabolismo e cria euforia. A serotonina é geralmente a reguladora do humor e do senso de bem-estar, mas em excesso, pode intensificar estímulos sensoriais e fazer com que as percepções se tornem mais vívidas, algumas vezes, ao ponto de alucinação (p.83). 56

Para Saunders (1997), que contextualiza brevemente o consumo de drogas, os hippies, por

exemplo, eram consumidores de maconha, droga que causava um efeito ao estilo calmante. Os punks, por sua vez, já eram adeptos do álcool e de ―drogas rápidas‖, como a cocaína e os derivados da anfetamina, responsáveis pela aceleração do metabolismo. O MDMA57 já está totalmente ligado aos ravers, uma vez que proporciona energia, motivação e entusiasmo. Os estudos sobre o consumo de drogas entre os jovens (mas não só entre eles) causam uma certa curiosidade entre os cientistas sociais. Para os usuários, a urgência ou a necessidade do uso das drogas é simplesmente parte da diversão. As drogas representam, sem dúvida, um dos pontos mais críticos e o de maior entrave da cultura rave, e seu consumo é o aspecto mais comentado e o mais visível pela publicação em notícias nos meios midiáticos. Alguns artigos, assim como retratos dessa cultura realizados pelos meios de comunicação de massa, sugerem que o tecido moral da sociedade esteja em risco. Os frequentadores são descritos como se vivessem fora das fronteiras dos estados de ―normalidade‖, ―saúde‖ e ―moralidade‖. Neotribo Rave

Analisando a Cultura Rave como parte das manifestações culturais da juventude, utiliza-se o conceito de neotribalismo do sociólogo francês Michel Maffesoli (2006) para corroborar a presença do ethos de pertencimento. O autor recorre ao termo neotribalismo com o intuito de identificar os

56 Do original: The drug´s effect is to dramatically increase the availability of dopamine and serotonin, neurotransmitters that conduct electrochemical impulses between brain cells. Excess dopamine stimulates locomotors activity, revs up the metabolism, and creates euphoria. Serotonin usually regulates mood and the sense of well being, but in excess it intensifies sensory stimuli and makes perceptions more vivid, sometimes to the point of hallucination. (REYNOLDS, 1998, p.83) 57 MDMA (metilenodioxidometanfetamina) é um composto derivado da anfetamina que possui uma molécula semelhante a um alucinógeno com efeitos moderados que variam entre a sensação de alucinação provocada pelo LSD (ácido lisérgico) e a de excitação criada pela cocaína. Disponível em: http://www.pragatecno.com.br. Acesso em: 20/02/09

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inúmeros grupamentos da sociedade. Maffesoli (2006), quando se refere à constituição de grupos, procura salientar a ―partilha‖ de um ―sentimento‖ e suas relações de afinidades como características presente no âmbito social. O ―estar-junto‖, segundo o autor, constitui o verdadeiro cimento societal.

É para dar conta desse conjunto complexo que proponho usar, como metáfora, os termos de ―tribo‖ ou de ―tribalismo‖. Sem adorná-los, cada vez, de aspas, pretendo insistir no aspecto ―coesivo‖ da partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos (localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas experiências sociais (MAFFESOLI, 2006, p. 28).

O universo das festas conhecidas como raves estão inseridas dentro de um ambiente onde o

―compartilhar sentimentos e emoções‖ é reconhecer-se através (e junto) do outro. Não se inscreve em qualquer projeto político, não se inscreve em nenhuma finalidade e tem como única razão de ser a preocupação com um presente vivido coletivamente (MAFFESOLI, 2006).

A experiência coletiva no modo de festejar dentro das festas rave estabelece relações típicas de caráter neotribal. As afinidades ali estabelecidas não se encontram baseadas em vínculos biológicos, institucionalizados, fixos ou mesmo permanentes. A reunião tribal típica do século XXI vivenciada nos eventos rave se dissolve ao término da festa, podendo ser reeditada num próximo acontecimento, com os mesmos ou com outros participantes. Consequentemente, é preciso atentar ao fato de que, mesmo sendo um agrupamento tribal disperso e móvel, ele permanece vivo ainda por algum tempo. Os jovens conectados à cultura rave, quando navegam pela internet através das comunidades virtuais e pelos sites especializados em música eletrônica, estão, de certa forma, dando continuidade à festividade e celebrando aspectos dessa cultura. Seja para tecer comentários sobre a festa, seja para planejar o próximo evento ou mesmo para baixar as fotografias e as músicas dos Djs, a reunião neotribal do tipo rave ocorre num espaço delimitado, e parece durar um tempo desejado, mas este tempo é movediço porque, às vezes, sobrevive em outros ambientes.

O que tenho analisado é que esses festejos coletivos são episódios transitórios, locais e efêmeros, realizados nos finais de semana e organizados para que os indivíduos vivam aquele universo durante um período e numa esfera com sua própria orientação. A cultura rave ensina aos seus frequentadores que o prazer da dança e da celebração hedonista não pode ser adiado. A cultura rave ensina também que o espetáculo da tecnologia está a nossa disposição para ser usado, vivido, consumido, e logo depois, descartado, sem arrependimentos.

Para mostrar a produção do jovem contemporâneo imerso na cultura rave, Reynolds (1998) garante que a movimentação das festas rave está em concordância com algumas características da sociedade contemporânea: a velocidade, o imediatismo, o espetáculo, o cosumo, entre tantas outras. Stephen Bertman (apud Bauman 2007) cunhou o termo ―cultura agorista‖ e ―cultura apressada‖ para demonstrar a forma como vivemos em nossa sociedade. Revela também que a ideia de juventude está estreitamente ligada ao conceito de velocidade.

O amor pela juventude, como o próprio poder do agora, está relacionado à ideia de velocidade. Como um tempo de vida com grande vigor, a juventude é o período de maior capacidade de mobilidade. Para simplificar, quando se é jovem, pode-se mover mais rápido do que quando se é velho e lento. E mover-se é precisamente um valor da sociedade sincrônica (BERTMAN, 1998, p.50). 58

58 No original: The love of youthfulness, like now´s own power, is related to the idea of speed. As the time of life with the greatest vigor, youth is the period most capable of motion. To put it simply, when we are young, we can “keep up” more readily then when we are old and slow. And “keeping up” is precisely a synchronous society values (BERTMAN, 1998, p.50).

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Portanto, nas festas que celebram a cultura rave, os fluxos de linguagens variadas como a da

música, a iluminação, a moda e as performances em geral, se cruzam, vão tecendo afinidades eletivas, dão vida a espaços e configuram territórios existenciais. Territórios não perenes, mas provisórios, compostos na linha de uma cultura viajante, em movimento, e que a própria civilização legou à contemporaneidade.

Aprendendo com a cena rave

Inspirado em Jameson (1996), parto do pressuposto de que se existe uma cultura pós-moderna, uma economia pós-moderna, uma sociedade pós-moderna, também devem existir sujeitos pós-modernos. Portanto, foi olhando para um tipo de sujeito imerso e formatado na cena contemporânea que me voltei para a cultura e para as festas rave e, logo, também aos sujeitos que frequentam esses eventos.Quando os jovens conectados à cultura rave absorvem uma série de artefatos inscritos em roupas, imagens, músicas, comunidades virtuais, etc, eles estão mostrando que pertencem àquela cultura. Também nos revelam que estão de acordo com os códigos, tanto visuais como materiais, que compõe aquele universo. Esses jovens têm revelado suas marcas de identificação por inúmeros espaços onde esta cultura circula. É nas redes sociais online, nos festivais de música eletrônica, nas lojas especializadas, nos shopping centers, dentre inúmeros outros lugares.

Como pesquisador, ao tentar me aproximar da cultura rave, fui alvo de suas interpelações e de suas pedagogias, e pude experimentar um lugar de aprendiz. Foi quando percebi que pedagogias precisam ser praticadas para que um sujeito se torne um raver. E são tantos os estímulos que povoam as festas que torna-se difícil desvinciliar-se das convoações. A cultura rave está inserida em um mundo multiplicado de incertezas, no cotidiano fragmentado em instantes efêmeros e prontos a uma satisfação do ―agora‖. Há um imperativo do gozo intenso e instantâneo, aproveitável durante o momento da festa-espetáculo e só naquele momento. Jovens que podem, com rapidez, mover-se, seduzidos pela propaganda, pelo desejo, moldado para viver sensações. ―O antigo lema carpe diem adquiriu um sentido totalmente diferente e leva uma nova mensagem: colha seus créditos agora, pensar no amanhã é perda de tempo‖ (BAUMAN, 2003, p.209). Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt . Vida para consumo: transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. _________. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BERTMAN, Stephen. Hyperculture: the human cost of speed. Westport: Praeger Publishers, 1998 CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas. Mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. COSTA, Marisa V (Org.). Escola Básica na virada do século: cultura, política e currículo. 2 ed., São Paulo: Cortez, 2000. FRITZ, Jimi. Rave culture, an insider's overview. Canada: Smallefry Press, 1999. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. MAFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 2006. REYNOLDS, Simon. Generation ecstasy: into the world of techno and rave culture. New York: Little, Brown and Company, 1998. SAUNDERS, Nicholas. Ecstasy e a cultura dance. São Paulo: Publisher Brasil, 1997. Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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ESTADO, EDUCAÇÃO E DOMINAÇÃO SOCIAL SOB O OLHAR DE GRAMSCI,

ALTUSSER E POULANTZAS: UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA

Severina Alves de Almeida59 Maria José de Pinho60

Francisco Edviges Albuquerque 61 Resumo: Este ensaio reflete sobre Estado, Educação e Dominação Social a partir das teorias de Gramsci, Altusser e Poulantzas. O ponto de partida foi um estudo da obra de Martin Carnoy ―Educação, Economia e Estado: Base e Superestrutura, Relações e Mediações‖, entendendo que, mesmo se acreditássemos que um sistema educacional de um País não tem nada a ver com o poder na sociedade, ainda assim seríamos forçados a discutir o Sistema de Governo para poder entender como se dá a educação, uma vez que nos séculos XIX e XX esta tem se tornado, indubitavelmente, uma prerrogativa do Estado. Palavras-chave: Estado; Educação. Dominação Social; Superestrutura. Abstract: This paper reflects on the State, Education and Social Domination from the theories of Gramsci, Altusser and Poulantzas. The starting point was a study of the work of Martin Carnoy, "Education, Economy and State: Base and Superstructure, Relations and Mediation, understanding that even if one believed that the educational system of a Country has nothing to do with power in society, yet we would be forced to discuss the system of government in order to understand how is education, since in the nineteenth and twentieth centuries, this has become, undoubtedly, a prerogative of the State. Keywords: State; Education. Social Dominance; Superstructure Introdução

O objetivo deste ensaio é fazer um estudo sobre o papel do Estado e da educação ofertada sob sua gerência, bem como a dominação social que daí emerge. O ponto de partida são as ideias de Gramsci, Altusser e Poulantzas a partir dos estudos de Martin Carnoy (1990).

Visto sob a ótica desses autores o Estado assume o papel de promotor das políticas que irão determinar o modelo de educação na sociedade, e apontam o teor ideológico que reveste a escola bem como a dominação que procede a partir de sua atuação. Além disso, apresentam a educação como forma de dominação social, alertando para o fato de que esta privilegia os já privilegiados, pois, segundo eles, pelo simples fato der não precisar conciliar trabalho e estudo, os filhos e filhas das famílias ―bem sucedidas‖ dedicam tempo integral aos estudos, além de ―pagar‖ por uma escolarização de melhor qualidade. Estado, ideologia & educação

Martin Carnoy (1990), analisando o papel do Estado e a Educação, reporta-se a teóricos

como Marx, Engels, Gramsci, Altusser e Poulantzas, entendendo que atualmente o debate que se

59 Pedagoga. Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras no MELL - Mestrado em Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins – UFT – e Profª. Tutora do Curso de Biologia a Distância da UFT Campus Araguaina. e-mail: [email protected]. 60 Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Palmas, e do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaina. e-mail: [email protected]. 61 Professor Adjunto da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaina, e do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaina. e-mail: [email protected].

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trava entre marxistas dá-se a respeito da atuação do Estado, uma vez que ―por razões práticas, qualquer estudo do sistema educacional não pode ser separado de alguma análise implícita ou explícita dos propósitos e do funcionamento do setor governamental‖ (p. 19), e mais: a partir do momento que o poder se consolida através do sistema político de determinada sociedade, qualquer tentativa de desenvolver um modelo de mudança educacional deve, necessariamente, ter como suporte uma criteriosa reflexão e uma teoria precisa sobre o funcionamento de governo, o que o autor chama de ―Teoria do Estado‖ (IBID, p. 20).

Com efeito, Carnoy nos diz que, mesmo que acreditássemos que um o sistema educacional

de um País não tem nada a ver com o poder na sociedade, ainda assim seríamos forçados a discutir o sistema de governo para poder entender como se dá a educação, uma vez que nos séculos XIX e XX, esta tem se tornado, indubitavelmente, uma prerrogativa do Estado.

Nesse sentido, antagonicamente se apresentam duas visões de estrutura da sociedade, uma

liberal e ou neoliberal e outra marxista. A primeira se apresenta como campo de gravitação das forças produtivas detentora do capital que, por defender os interesses da classe hegemônica (burguesia), busca passar a imagem de um Estado que está a ―serviço‖ de todos. A segunda, que detém a força de trabalho, aglutina a imensa maioria da população – operários, estudantes, etc., - diz ser o Estado o representante legítimo de uma classe social específica, a burguesa e que por isso legisla em causa própria.

Carnoy (1990) adverte que Marx, diferentemente de Hegel, argumentava que o Estado,

produto das relações de produção, não representa o bem comum. Antes, é expressão política e ideológica da classe dominante, isto é, o Estado capitalista nada mais é do que a resposta à necessidade de mediar o conflito de classes e manter a ordem, desde que reproduz o domínio econômico da burguesia. Segundo o autor, Engels desenvolveu um conceito análogo ao dizer que o Estado tem sua origem na necessidade de controle das lutas sociais entre os diferentes interesses econômicos, e este controle é exercido pela classe hegemônica na sociedade.

Portanto, o cenário que se apresenta é o de uma educação feita pela e para a classe

dominante, assumindo a escola, enquanto instituição social, o papel de aparelho ideológico do Estado que irá atender, necessariamente, aos interesses do grupo que detém o poder.

Nessa perspectiva Gramsci, apud Carnoy (1990), nos apresenta duas concepções de

sociedade no centro das relações de produção do Estado capitalista: a sociedade civil e a sociedade política. A sociedade civil ele determina de ―superestrutura‖ da qual fazem parte as instituições sociais: igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação de massa, etc. Já a estrutura seria formada pelo governo: tribunais, exércitos, polícia, etc. O Estado aparece, então, como articulador dos (antagônicos) interesses desses dois pólos de sustentação da sociedade.

Segundo Carnoy:

Embora para Marx e Gramsci a natureza da sociedade civil seja a chave para a compreensão do desenvolvimento capitalista, na definição de Marx a sociedade civil é a estrutura (relações de produção), e para Gramsci a sociedade civil é a também a superestrutura representado um fator ativo e positivo no desenvolvimento histórico; é o conjunto das relações culturais e ideológicas, da vida intelectual e espiritual e a expressão política daquelas relações (CARNOY, 1990:26). (GRIFO DO AUTOR).

Nota-se que o papel do Estado está diretamente vinculado ao funcionamento das

instituições políticas que o sustentam, quais sejam, os poderes executivo, legislativo e judiciário, ou seja, a estrutura social. Já em relação à superestrutura, a atuação está nas instituições sociais, as quais

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estão a serviço de todos, independentemente de sua classificação na hierarquia social. Dessa forma o Estado apresenta-se como um aparelho coercitivo a serviço da classe dominante e, sendo ele a estrutura, prevalece também sobre a superestrutura.

Carnoy, (ibid) entende que a importância do Estado como aparelho da hegemonia

apresenta-se para Gramsci, cristalizada na estrutura de classe, sendo esta definida pelas relações de produção e vinculada a estas mesmas relações. Ademais, o Estado, como instrumento da dominação burguesa, deve ser um participante ativo da luta que se trava ente as duas concepções de sociedade, política e civil.

A hegemonia é para Gramsci apud Carnoy (1990) o substrato da burguesia, a qual se

sustenta mediante a ação do ―intelectual orgânico tradicional‖, ou seja, aquele indivíduo que se infiltra nas instituições – tanto políticas como sociais – e trabalha para que as coisas permaneçam imutáveis. Segundo Gramsci (ibidem) este ―intelectual orgânico tradicional‖ tanto pode ser produzido no seio da classe dominante quanto da trabalhadora. Entretanto, o autor acena com a necessidade de se construir uma contra-hegemonia que cerque o Estado e estabeleça um contra ponto. Então, esta seria uma hegemonia advinda das lutas sociais, nascida da organização da classe trabalhadora, através da ação dos diferentes componentes de algumas instituições sociais, como por exemplo, os sindicatos.

Com isso seria possível se produzir um ―intelectual orgânico‖, não tradicional, aquele que,

criado no âmago da classe subalterna, se infiltraria nos átrios dos poderes políticos e lá defenderia os interesses de sua classe de origem. É claro que se corre o risco de esse ―intelectual orgânico‖ transformar-se num ―intelectual orgânico tradicional‖ passando a defender os interesses da classe hegemônica. Contudo, não se deve cair no determinismo e parar de lutar. Antes, deve-se trabalhar no sentido de se produzir outros ―intelectuais orgânicos‖, mesmo que para isso tenha que se fazer uso dos instrumentos que a burguesia dispõe, quais sejam, os aparelhos ideológicos do Estado, como é o caso da Escola.

Segundo Carnoy (1990) a base estratégica de Gramsci, na verdade, não era organizar as

classes trabalhadora e campesina para engajar-se num ataque frontal ao Estado, e sim promover mecanismos de organização dessas mesmas classes, como fundamento de uma nova ordem cultural, para viabilizar os fundamentos de normas e valores no seio de uma sociedade proletária.

Para ele:

Essa hegemonia proletária confrontaria a hegemonia burguesa em uma guerra de posições – até que a nova superestrutura tivesse cercado a antiga, incluindo o aparelho do Estado. Somente nesse momento teria sentido assumir o poder do Estado, desde que somente a classe trabalhadora controlasse, de fato, os valores e normas sociais a ponto de poder construir uma nova sociedade, usando o aparelho do Estado (CARNOY, 1990:29).

No âmbito da educação – sendo esta considerada um dos aparelhos ideológicos do Estado

- dentro de uma sociedade marcada pela divisão de classes, a política educacional irá se manifestar por meio dos elementos da superestrutura, visando à infra-estrutura, procurando assegurar a produção do capital bem como as relações de trabalho e de produção que a sustenta. Aí se encontra a ação sistemática dos ―intelectuais orgânicos", tanto os ―tradicionais‖, quanto ―orgânicos‖.

Carnoy (1990) assegura que é a partir da maneira como atuam estes ―intelectuais‖ que

Gramsci irá discorrer acerca da escola pública. O autor acredita que para Gramsci o papel do sistema educacional burguês tradicional é desenvolver ―intelectuais orgânicos tradicionais‖ da classe dominante, infiltrando-os nas classes populares para cooptar um contingente adicional de intelectuais que dêem homogeneidade ao grupo dominante.

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Nesse sentido, a educação, a qual se traveste como democrática (SAVIANI, 2003)

apresenta-se para a classe trabalhadora diferentemente daquela destinada às crianças da classe burguesa. ―O sistema escolar tem por base a divisão de classe social, a despeito da impressão que dá de que produz mobilidade ascendente, isto é, de que é democrática‖ (CARNOY, 1990:31).

O autor retoma o pensamento de Gramsci ao advertir para o fato de que a escolarização

ofertada pelo Estado é revestida de uma estrutura classista, sendo parte integrante do aparelho ideológico do Estado Burguês, e apresenta-se como um dos sustentáculos da hegemonia burguesa, e mais: o sistema educacional produz intelectuais que dão à burguesia ―homogeneidade e uma consciência de sua própria função, não somente quanto ao aspecto econômico, mas também nos campos político e social‖ (GRAMSCI, 1971:5) apud (CARNOY, 1990:31).

Nessa perspectiva Gramsci deixa claro que a educação é uma forma de dominação social.

Todavia, acredita que nem tudo está perdido e acena com a possibilidade de que, por meio da educação, a classe trabalhadora, se não puder mudar a ordem social vigente, pode, pelo menos, amenizar a situação. Carnoy (ibid) afirna que Gramsci, assim como Lênin, entende que o Partido tem vital importância na conscientização da classe operária. Porém, diferentemente de Lênin, Gramsci não aceita que as escolas públicas tivessem pequena importância no esquema de dominação da burguesia. Daí a necessidade de se construir uma contra-ideologia, a qual desenvolveria uma resistência à ideologia inculcada pelas escolas do Estado, abalando, assim a hegemonia da classe dominante.

Já Altusser, conforme estudos de Carnoy (1990) leva adiante as ideias de Gramsci sobre o

Estado, enfatizando os aspectos superestruturais e culturais da dominação burguesa sobre os aspectos econômicos. Consequentemente, sua concepção ―destaca o Estado Capitalista como aparelho repressivo e como aparelho ideológico da burguesia, estando, este último, intimamente relacionado com o sistema educacional‖ (CARNOY, 1999:34).

Importante lembrar ainda que de acordo com esse autor, a concepção de Altusser sobre a

reprodução das relações de produção é quase idêntica ao conceito de hegemonia em Gramsci, e que a mais importante instituição do Estado usada para levar adiante tal reprodução é a escola. O Estado, portanto, tem sua origem na base, sendo também a máquina de repressão que possibilita que a burguesia assegure sua dominação sobre a classe trabalhadora.

Falando sobre a educação no seio da sociedade classista Altusser, diferentemente de

Gramsci, acredita que a escola – parte integrante da superestrutura - não tem o poder de transformação, Assim, Altusser argumenta que:

[...] a escola fornece à formação social capitalista dois dos mais importantes elementos para a reprodução de suas habilidades e a reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, isto é, a reprodução da submissão dos trabalhadores à ideologia dominante e a reprodução da habilidade de manipular corretamente a ideologia por parte dos agentes de exploração e da repressão, de tal maneira que esses agentes colaborem ―com palavras‖ para a dominação da classe superior (ALTUSSER, 1971:132-3) apud (CARNOY, 1990:38).

Nesse sentido a escola aparece com a dupla missão de reprodução da força de trabalho ao

mesmo tempo em que contribui para a reprodução das relações de produção. ―É o aparelho ideológico do Estado que certamente tem o papel dominante nesta reprodução‖ (ALTUSSER:155-7) apud (CARNOY, 1990:38).(Grifo do autor).

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Dentre os teóricos estudados por Carnoy para desvendar as concepções de ―Estado‖ e de

―educação‖ encontra-se Poulantzas, o qual provém da tradição gramsciniana que eleva a superestrutura além da compreensão da estrutura, fazendo uma leitura importante de uma teoria de sociedade.

Nesse sentido Carnoy (1990) informa que para Poulantzas o papel dos aparelhos Estado

(superestrutura) é manter a unidade social, legitimando a dominação de classe, reproduzindo as relações de poder e, consequentemente, as relações de classes. ―As relações ideológicas e políticas são materializadas e incorporadas, como práticas materiais, nesses aparelhos‖ (Ibid, p. 39). Desse modo, as classes sociais se definem por suas relações com os aparelhos econômicos – o lugar da produção - e os aparelhos do Estado. ―Ao mesmo tempo, o aparelho de Estado é inerentemente marcado pela luta de classes – luta de classes e aparelho do estado não podem ser separados‖ (IBIDEM).

Poulantzas entende que no capitalismo monopolista o Estado assume funções econômicas

que não existiam no estágio competitivo, adverte Carnoy, e mais: Poulantzas vê o Estado Capitalista diferentemente de Gramsci em dois pontos importantes. Primeiramente o Estado assume a tarefa de planejar a economia – produção - e, simultaneamente, exerce as funções ideológico-repressivas – reprodução.

Em se tratando da educação, Poulantzas, segundo Carnoy (1990), admite que esta seja

naturalmente parte dos aparelhos do Estado, visto sob a perspectiva de sua relação com a estrutura de classes. Consequentemente, para entender o papel da educação na sociedade capitalista, torna-se necessário entender a formação social desta mesma sociedade. ―E, uma vez que essa formação se altera – passando do capitalismo competitivo para o monopolista, e deste para o atual estágio ―monopolista avançado‖ – o papel da educação deve também mudar‖ (IBID, p. 46).

Carnoy acrescenta ainda que Poulantzas, assim como Altusser, acredita que os aparelhos

ideológicos não criam necessariamente uma ideologia, e muito menos são eles próprios os únicos e/ou principais fatores na reprodução das relações de subordinação e da dominação ideológica. No entanto Poulantzas diverge de Altusser quando se trata da divisão dos aparelhos em: econômicos, ideológicos e repressivos. ―De certo modo, todas as instituições sociais são ideológicas― (POULANTZAS, 1978:32) apud (CARNOY, 1990:46).

Já a educação, segundo Carnoy (ibid), além de contribuir para a reprodução da estrutura de

classe e para a reprodução das relações – via inculcação ideológica dos valores burgueses, fornece as habilidades técnicas e o “know-how” necessários à acumulação progressiva do capital. Em outras palavras, o autor está nos dizendo que os trabalhadores pagam para a educação de seus filhos e filhas e parte do retorno desses gastos serve para manter o nível da mais-valia62, para subsidiar a taxa de lucro. Desta forma a escola não apenas distribui o conhecimento, ela o produz. Considerações finais

Neste ensaio refletimos sobre Estado, Educação e Dominação Social, tendo como base teórica o pensamento de Gramsci, Altusser e Poulantzas visto sob o olhar de Martin Carnoy. A partir de uma revisão crítica sobre o legado desses teóricos, foi possível identificar o papel da escola diante da manipulação do Estado. Outra constatação é o caráter ideológico da educação, apresentando-se mesmo como fator determinante para disseminar/perpetuar a ordem hegemônica, sempre sob o prisma do controle burguês.

62 Na economia marxista, o suplemento do trabalho não remunerado e que é, pois, fonte de lucro capitalista. (Dicionário Encarta, CD Rom, 2000).

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Ademais, no campo educativo, a ideologia desempenha papel crucial, aspecto corroborado

por Paulo Freire (2007:125), ao dizer textualmente que ―a educação é ideológica‖. Com efeito, Freire, um contumaz opositor da globalização e do neoliberalismo denuncia o

caráter ideológico aí implícito, e vem nos advertir para o fato de que o discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual todos devemos lutar bravamente, se optamos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de sua eficácia e malvadez (FREIRE, 2007:128).

Observa-se, portanto, que o autor denuncia o caráter excludente da globalização e, assim

como Gramsci, Altusser e Poulantzas aponta também as mazelas impostas pelo capitalismo que favorece toda forma de conjugação do ser humano. Entretanto ele diverge desses teóricos quando se trata das metodologias que possibilitam interferir visando a uma mudança na estrutura social.

Diante disso, podemos concluir que alguma coisa precisa ser feita com urgência, o que nos

leva a admitir também nossa parcela de responsabilidade, pois, conforme evidencia Gramsci, só depende de nós, classe subalterna, criarmos os ―intelectuais orgânicos‖ para se infiltrarem nos átrios da classe hegemônica, e a partir daí, criar condições para que a ordem social por ela imposta, possa efetivamente ser revista e quem sabe, modificada. Referências bibliográficas ALMEIDA, Severina Alves de, NEIVA, Sonia Maria de Sousa Fabrício. A Dialética da Globalização e seus feitos na Educação. PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – PIBIC. UFT Arraias: 2007. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A canção das sete cores. São Paulo: Contexto, 2005. CARNOY, Martin. Educação, economia e Estado: base e superestrutura: relações e mediações, pg.. 19 a51. São Paulo: Cortez:Autores Associados, 1990. ENCARTA, Dicionário Enciclopédia Microsoft. CD Rom, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 35ª edição. São Paulo: Paz e terra, 2007. FIFCHMAN, Gustavo. Representando a docência: jogando com o bom, o mau, e o ambíguo. IN: SILVA, Luiz Heron. (Org). a Escola Cidadã no Contexto da Globalização. 5ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. FRIGOTTO, Gaudêncio. A educação e formação técnico-profissional frente à globalização excludente e o desemprego estrutural. IN: SILVA, Luiz Heron. (Org). a Escola Cidadã no Contexto da Globalização. 5ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. VIII SIMPOSIUM DE EDUCACION - Catedra ―Paulo Freire‖ Título: ―Educar para construir el sueño: ética y conocimimento en la transformación social‖ - Departamento de Educacion y Valores – ITESO - Guadalajara, México – 23 a 26/02/2000. Disponível na internet: www.paulofreire.org. Acesso 15/01/2007. _________________. Boniteza de um sonho Ensinar-e-aprender com sentido. 2004. Disponível na internet www.paulofreire.org. Acesso dia 08/12/2006. LIBÂNEO, José Carlos. Et all. Educação escolar: política, estrutura e organização.. São Paulo: Cortez, 2003. SANTOS, Robinson dos e ANDREOLI, Antônio Inácio. Educação, globalização e neoliberalismo: o debate precisa continuar! http://www.rieoei.org/presentar.php OEI - Revista Iberoamericana de Educación . Acesso: 15/01/2007 SAVIANI, Demerval.. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 2003.

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PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: CONCEPÇÕES E INTERFACES DE

MONITORAMENTO COM O PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS

Sheila Cristina Monteiro Matos63

Resumo Este trabalho discute as interfaces do Programa Mais Educação do governo federal, por meio do acompanhamento e monitoramento das ações e subações empreendidas pelo Plano de Ações Articuladas em Duque de Caxias-RJ. Nas considerações finais, infere-se que garantir a centralidade da escola no planejamento das ações pedagógicas implementadas pelo Programa Mais Educação é tarefa precípua para resgatar a identidade e o clima organizacional na esfera escolar. Palavras-chave: Educação Integral. Plano de Ação Articulada. Programa Mais Educação. Resumen Este documento analiza las interfaces Programa Más Educación del gobierno federal, mediante el seguimiento y monitoreo de las acciones y sub-acciones emprendidas por el Plan de Acciones Articuladas en Duque de Caxias-RJ. En síntesis, se infiere que garantizar la centralidad de la escuela en la planificación de acciones pedagógicas implementadas por el Programa Más Educación debe ser la tarea principal para rescatar la identidad y el clima organizacional en el ámbito escolar. Palabras clave: Educación Integral. Plan de Acciones Articuladas. Programa Más Educación. Introdução

O Programa Mais Educação (PME) foi inicialmente normatizado pela Portaria Interministerial Nr 17-2007 e tornou-se institucionalizado pelo Decreto 7.083, em 27/01/2010 (BRASIL, 2010). Integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e é compreendido como uma estratégia do governo federal para induzir a ampliação da jornada escolar para 7 horas e a organização curricular, na perspectiva da educação integral (BRASIL, 2007b).

A política de educação integral focada nesse programa tem sido compreendida na

necessidade de ampliar os espaços, os tempos e as oportunidades educativas. Para tal, firmam-se parcerias com pessoas e/ ou instituições do entorno da escola, estimulando o cooperativismo e o compartilhamento de tarefas no processo de educar.

As ações do PDE são fomentadas por transferências de verbas para a educação básica e,

ainda, por uma assistência técnica do Ministério da Educação (MEC), por meio da adesão dos Estados, Municípios e Distrito Federal ao Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (BRASIL, 2009). Isso é consubstanciado pelo acompanhamento e pelo monitoramento das ações e subações do Plano de Ações Articuladas (PAR).

O Decreto nº 6.094/2007, que trata desse Plano de Metas Compromisso Todos pela

Educação, instituiu o PAR como:

Art 9º O PAR é o conjunto articulado de ações, apoiado técnica ou financeiramente pelo Ministério da Educação, que visa o cumprimento do Compromisso e a observância das suas diretrizes.(...) Art. 10 O PAR será a base

63 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Foi Técnica de Campo do Monitoramento do Plano de Ações Articuladas no Estado do Rio de Janeiro nos anos de 2009 e 2010. e-mail: [email protected]

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para o termo de convênio ou cooperação, firmado entre o Ministério da Educação e o ente apoiado (BRASIL, 2007a).

Dessa forma, constatamos que, por meio das ações do PAR, o governo pretende propor

assistências financeiras e assessoria técnica aos Estados e municípios com o intuito de monitorar as diretrizes propostas pelo compromisso que visam à melhoria da qualidade da educação básica.

Algumas questões de estudo se fazem nesse contexto: qual é a concepção ideológica do

Programa Mais Educação? O que o PAR delineia sobre o monitoramento do Programa Mais Educação? Empreendemos, portanto, este ensaio para fins de discussão no leque abrangente que perpassa a política educacional no país.

Assim, este ensaio tem por objetivo discutir as interfaces do Programa Mais Educação do

governo federal, por meio do acompanhamento e monitoramento das ações e sub-ações empreendidas pelo Plano de Ações Articuladas em Duque de Caxias-RJ.

Para tal, o estudo foi delimitado ao Município de Duque de Caxias - RJ, por ser um dos

municípios que adotou o Programa Mais Educação desde setembro de 2009, e por ser monitorado pelo PAR, desde 2008.

Nesse sentido, foram utilizadas como metodologias a análise documental e o estudo de

caso. A análise documental, baseada em documentos oficiais, serviu para descrever o Programa Mais educação, descrever o Plano de Ações Articuladas, bem como inferir sobre as concepções ideológicas imbricadas. O estudo de caso, tendo como amostra os dados do Sistema de Monitoramento do Plano de Ações Articuladas (SIMEC), permitiu analisar as interfaces entre o PME e o PAR. Concepção ideológica do Programa Mais Educação

As concepções político-ideológicas conservadoras, socialistas e liberais do Século XX subsidiaram o pensamento educacional no que concerne a visões sociais de mundo (COELHO, 2009). Essas concepções são traduzidas entre si ora emblemáticas, ora dinâmicas. Entretanto, carregam em si pontos contraditórios que possivelmente serão engendrados nas práticas pedagógicas que configuram a política educacional.

Dentro dessa perspectiva, o PME reflete algumas desses matizes ideológicos no atual século,

com novas conjecturas e ressignificações. Para a concepção conservadora (com base no integralismo), a educação integral remetia a

postulados cívicos, higienistas e políticos conservadores em que o que interessava era manter a ordem e o controle social para uma infância moralmente abandonada (KUHLMANN apud PORTILHO, 2006). Verificamos também que o interesse religioso se fazia presente para manter o status quo dentro de uma política assistencialista, legitimando ações paternalistas do Estado.

Nesse ensejo, a evidência de uma construção de educação integral vinculada ao movimento

integralista, apontava para uma valorização dos espaços não-formais de educação (COELHO, 2005). Nessa assertiva, evidenciamos uma singularidade desse entendimento em relação ao PME, tendo em vista que as ações socioeducativas podem ser realizadas em vários espaços educativos (BRASIL, 2008c), fossem estes formais ou não-formais de ensino.

Para a concepção socialista, a educação integral recai sobre aspectos de igualdade, autonomia

e liberdade humana (COELHO, 2009). O PME valoriza aspectos ligados a esta concepção, como a valorização de saberes diferenciados, que são potencializados na compreensão do significado social

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(BRASIL, 2008b). Percebe-se, portanto, o resgate do valor da cultura do ―outro‖ na escola, propiciada por meio de projetos pedagógicos que valorizam a autonomia no pensar, no agir e no planejar as ações da jornada ampliada. Essas características podem ser indutoras para entender a autonomia e a liberdade humana.

Já na concepção liberal, a educação integral defende o propósito de uma educação pública,

perpassando por uma formação completa do ser humano (COELHO, 2009). Além disso, essa concepção entende que a formação completa da criança, via educação, teria como meta a construção de um adulto civilizado, pronto para o progresso e para o desenvolvimento da sociedade.

Evidenciando algumas características dessa concepção no Programa Mais Educação,

podemos sinalizar que a busca por um adulto civilizado é articulado por meio das proposições que configuram as práticas pedagógicas diferenciadas no contraturno, tangenciado a ampliação do tempo, espaços e conteúdos defendidos como alternativa para assegurar a formação integral do indivíduo na sociedade (BRASIL, 2008a). Vale ressaltar, ainda, que o enfoque sobre a comunidade de aprendizagem, que delineia uma rearticulação da escola juntamente com outros atores sociais (BRASIL, 2008c), é pertinente para compreender o atrelamento da educação integral refinada ao progresso e ao desenvolvimento da sociedade.

Além disso, os discursos que permeiam os referenciais do programa, os quais utilizam

expressões como: protagonismo juvenil, novos espaços educativos, teia social, parcerias, intersetorialidade, dentre outros, denotam questões político-filosóficas que deveriam desvelar criticamente o verdadeiro posicionamento do mesmo. Identificamos ainda neste programa que o paradigma da formação integral com a educação integral em suas interfaces (GUARÁ, 2009) vem subsidiando as ações sócio-educativas de proteção no contraturno.

Verificamos, assim, que as concepções político-filosóficas que delineiam o PME perpassam

por uma hibridização que ora evidencia características liberais, ora socialistas, ora político-conservadoras. Portanto, ressignificar o que há de positivo no liberalismo, no conservadorismo e no socialismo é a tese precípua para que se entenda o desenho do Programa Mais Educação.

O Plano de Ações Articuladas e suas interfaces com o Programa Mais Educação.

O PAR pode ser compreendido como um planejamento de caráter plurianual, com duração prevista, inicialmente, até 2011. Esse plano iniciou com 1.016 municípios e, posteriormente, chegou há 1.827. O perfil que adequava os municípios para esse primeiro momento de execução do plano inseria aqueles com 200.000 habitantes, localizados nas capitais ou região metropolitana e com IDEB abaixo de 2,9.

Esse plano organizou as diretrizes do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação

em quatro dimensões: (1) Gestão Educacional, (2) Formação de Professores e Profissionais de Serviço e Apoio Escolar, (3) Práticas pedagógicas e avaliação, (4) Infraestrutura física e recursos pedagógicos (BRASIL, 2009).

A seguir, um exemplo de monitoramento do PAR em Duque de Caxias que pontua a

educação integral:

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PAR - Plano de Metas

Monitoramento do PAR

Duque de Caxias – RJ

Dimensão : 1. Gestão Educacional

Área :

2. Desenvolvimento da Educação Básica: ações que visem a sua universalização, a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem assegurando a eqüidade nas condições de acesso e permanência e conclusão na idade adequada

Indicador : 2. Existência de atividades no contraturno

Programa : SECAD - Programa Mais Educação (kit informativo)

Ação : Expandir as atividades de contraturno nas escolas da rede, observando a articulação das atividades com o PP de cada escola.

Período Inicial : 24/03/2008

Período Final : 16/12/2011

Resultado Esperado :

Ampliação gradativa do projeto de implantação de atividades no contraturno.

Descrição Subação :

1.2.2 - 2 Qualificar a equipe da SME para a implantação de atividades no turno complementar (educação integral e integrada).

Estratégia de Implementação :

Estudo do material informativo do Programa Mais Educação da Secad/MEC.

Dados da subação

Unidade de medida :

kit(s) de material Forma de execução :

Assistência técnica do MEC

Início : 8/2008 Fim : 8/2008

Status : Aprovada pela Comissão

Execução da subação

1º Semestre de 2008 2º Semestre de 2008 Previsto Executado % Exec.

1 1 100

Quadro Nr 01: Interfaces do PME com o monitoramento do PAR. Fonte: www.simec.gov.br. Acesso em: 10 mar. 2010.

Analisando as dimensões (3) e (4) do PAR em Duque de Caxias (SIMEC, 2010),

observamos que as ações e sub-ações se materializam em diversas direções que vão ao encontro do desenho do PME. Elas enfatizam ações que subtendem desde a ampliação gradativa de atividades nos contraturnos nas escolas do município, tão quanto a qualificação dos gestores e o pessoal da secretaria de educação.

Além dessas ações e sub-ações mencionadas, verificamos também outras que estão ligadas

tanto ao estabelecimento de parcerias para a implementação do Programa Rádio escola, como a implementação de atendimento de alunos com dificuldades de aprendizagem, com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento ou altas habilidades/super dotação.

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Vale ressaltar ainda que o oferecimento da formação de Comissões de Meio Ambiente e

Qualidade de Vida (Com-Vidas) e implementação da agenda 21 nas escolas (SIMEC, 2010) são metas a serem concretizada em Duque de Caxias, o que denota perspectivas em favor da proteção integral.

Tecendo algumas consideraçôes

Este trabalho considerou a concepção de educação integral que permeia o Programa Mais

Educação e, por conseguinte, utilizou do PAR como estratégia gerencial para fundamentar algumas análises e ponderações.

Quanto ao PAR, este tem se tornado um mecanismo de gestão administrativa, perfazendo

um sentido regulatório diante do desenho das políticas públicas gestadas no âmbito do governo federal. Embora afirmemos tal situação, o PAR tem apontado avanços que vão ao encontro de estratégias de gestão participativa, tendo em vista melhorar o redimensionamento de verbas para a Educação Básica, verificando, com mais cautela, se as mesmas foram destinadas conforme o planejamento das metas.

Não obstante, o desafio está posto nas políticas educacionais cujos vieses ideológicos se

distanciam de uma educação que vislumbre os verdadeiros sentidos sócio-históricos dos conhecimentos produzidos pela sociedade civil. Assim, garantir a centralidade da escola no planejamento dessas novas práticas pedagógicas do PME é tarefa precípua para resgatar a identidade e o clima organizacional na esfera escolar. Referências BRASIL. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Brasília, DF, 2007a. ______. Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010. Institucionaliza o Programa Mais Educação. Brasília, DF, 2010. ______. Portaria Interministerial Nr 17, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa Mais Educação. Brasília, DF, 2007b. ______. Ministério da Educação. Orientações gerais para elaboração do Plano de Ações Articuladas (PAR) dos municípios. Versão revisada e ampliada. Brasília, DF, nov. 2009. ______. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Gestão Intersetorial do Território. Coleção Mais Educação. 1. ed. Brasília, DF, MEC, 2008a. ______. Rede de saberes mais educação: pressupostos para projetos pedagógicos de educação integral: caderno para professores e diretores de escola. 1. ed. Brasília, DF: MEC, 2008b. ______. Texto referência para o debate nacional. Série Mais Educação. Educação Integral. ed. Brasília, DF, MEC, 2008c. COELHO, L. M. C. C. História(s) da educação integral. Em Aberto. Brasília, v. 22, nr 80, p.83-96, abr 2009. ______. Integralismo, anos 30: Uma concepção de educação integral. In: V Jornada do HISTEDBR - História, Sociedade e Educação no Brasil. Instituições escolares brasileiras: História, historiografia e práticas. Sorocaba, 2005. p. 180-180. GUARÁ, Isa. Educação e desenvolvimento integral: articulando saberes na escola e além da escola. Em Aberto. Brasília, v. 22, nr 80, p.65-81, abr 2009. PORTILHO, D. B. Releitura da concepção de educação integral dos CIEPS: para além das caricaturas ideológicas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. SISTEMA DE MONITORAMENTO DO PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS (SIMEC). Compromisso todos pela educação. Relatório Público do Município de Duque de Caxias. Disponível em: < http://simec.mec.gov.br/>. Acesso em: 10 mar. 2010.

Enviado – 21/08/2011 Avaliado – 15/10/2011

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ENVELHECÊNCIA: UM CONCEITO A SER REFLETIDO

Tania Scuro Mendes Doutora em Educação- UFRGS

Pesquisadora e professora na graduação e pós-graduação Universidade Luterana do Brasil

Participa do Grupo de Pesquisa: Gestão do Cuidado Humano, junto ao CNPq

Resumo Dados do censo brasileiro de 2010 apontam que a população que está envelhecendo aumentou, na última década, em 25%. As novas gerações que experimentam essa etapa vital não trazem necessariamente como características a aposentadoria e o afastamento do convívio sócio-cultural, mas passam a reivindicar reais e dinâmicas participações como sujeitos sociais. O Estatuto do Idoso, de 2003, representa um avanço democrático na construção da cidadania dessa categoria. Porém, o próprio conceito de idoso está se transformando, fazendo surgir um novo modo de compreender a pessoa em processo de envelhecimento. Daí a necessidade de se refletir sobre o conceito de envelhecência. Palavras-chave: Desenvolvimento Humano; Envelhecimento Humano; Envelhecência

Abstract Data from the Brazilian census of 2010 indicate that the aging population has increased in the last decade, by 25%. The new generation who experience this vital step as characteristics do not necessarily bring the retirement and removal of socio-cultural interaction, but start to claim real and dynamic as social equity. The Elderly Statute, 2003, represents a breakthrough in the construction of democratic citizenship in this category. However, the very concept of elderly is changing, giving rise to a new way of understanding the person in the process of aging. Hence the need to reflect on the concept of envelhecência. Key words: Human Development; Human Aging; Envelhecência

A população brasileira com idade superior a sessenta anos vem aumentando consideravelmente. Diferentemente de gerações anteriores, cujo perfil era aliar ao processo de envelhecimento a aposentadoria e o afastamento gradativo do convívio social, gerações que ora estão experimentando essa fase continuam em plena atividade social, cultural e, não raro, em razão dos baixos proventos oriundos da aposentadoria do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), exercendo funções como profissionais de caráter informal e formal. Parte significativa delas tem maior instrução e participa, mais do que antes, de processos de educação continuada.

Tais características podem ser justificadas por dados do IBGE64 (2010) relativos à

expectativa de vida da população brasileira, a qual é, em média, de 72,8 anos. Vale a ressalva de que tal expectativa em relação à população feminina é 76,7 anos e de que os estados das regiões sul, sudeste e centro-oeste apresentam expectativa de vida maior do que a média nacional, o que pode ser devido especialmente às desigualdades sociais e econômicas que são a origem da diferença desse indicador social entre as regiões brasileiras. Ao par disso, o Censo de 2010 indica que, na última década, a população com 65 anos ou mais passou de 5,9% para 7,4%, o que corresponde a um aumento de 25% dessa faixa etária. Assim, está aumentando a quantidade de pessoas que estão ficando mais tempo de vida em processo de envelhecimento e, dessa forma, precisam buscar novos modos de convivência e de atuação.

64 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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O Estatuto do Idoso, de 2003, pode representar um avanço democrático na construção da

cidadania da pessoa a partir de sessenta anos de idade, especialmente no que se refere a proposições de direitos a serem respeitados. Porém, o próprio conceito e a construção social e discursiva de idoso estão se transformando, fazendo surgir modos diferenciados de compreender a pessoa nessa etapa vital, que passa a reivindicar sua real e dinâmica participação.

Há que se considerar, apoiando-se em Foucault (1981), que a formação de conceitos tem

lugar nos discursos e acaba, longe de ser produzida nas consciências e mentalidades individuais, impondo-se aos que tentam falar no campo discursivo. Então, os processos conceituais são produções sociais articuladas por representações culturais presentes em contextos específicos, os quais dão substrato às posições que os sujeitos ocupam na enunciação de seus discursos.

Se já não são suficientes, para estes e aos novos sujeitos instruídos que brevemente

engrossarão o caldo social dessa categoria, os grupos de encontro ou os bailes ―das pantufas dançantes‖, provavelmente é porque está em circulação na cultura uma construção discursiva, segundo Hall (1997), que regula condutas e a própria construção de identidades enquanto subjetividades, tendo em vista que o indivíduo é criado no social.

Entre as condições sociais decorrentes dessas regularidades discursivas pode-se destacar que as pessoas em processo de envelhecimento almejam mais: sentem necessidade de aprender e continuar aprendendo65, ter direito a lazer cultural e esportivo, atuar efetivamente em entidades, fazer parte de comunidades virtuais, defender suas causas político-sociais, de ser, sobretudo, cidadãos. Esses aspectos demandam um novo perfil de pessoa em envelhecimento que se distancie de velho (fora do prazo de validade?) e de idoso (ido; aquele que já foi?), o que implica adaptações psicossociais que se operam sobre as subjetividades.

Se tais definições, velho e idoso, são problematizadas ou mesmo desprezadas no âmbito discursivo, mas presentes na configuração da vida social, novos discursos se articulam no processo de fabricação de conceitos tidos ou pretendidos como desprovidos de preconceitos.

Nesse quadro de referências é produzido o conceito de envelhescente, que vem sendo veiculado no cenário atual, especialmente em fenômenos midiáticos, como peças publicitárias e novelas, que situam a pessoa, outrora considerada anciã, como ―moderninha‖, ―mais jovial‖, sintonizada com a juventude. Desse modo, artefatos culturais, como televisão, rádio, internet, estabelecem produções de relações que especificam como o envelhescente deve pensar, agir, ser, instituindo, como explica Hall (2003), sua identidade por mediações culturais.

Envelhecência ou envelhescência? Quais discursos as distinguem?

O ciclo vital humano que culmina no envelhecimento implica que a criança, o adolescente,

o jovem adulto, o adulto de meia idade coexistam nessa etapa que, enquanto processo sempre em construção, revisita, reelabora e ressignifica tais estados estruturados e estruturantes da identidade biológica e também cultural de envelhecente, conceito este derivado, nesta acepção, de envelhecer (e, por isso, sem a escrita com SC).

Assim, a criança, o adolescente e o adulto, encontrando eco nas palavras de Mendes (2010), nunca são abandonados em lugares e tempos de passados pelos quais o envelhecente transitou. Estão presentes nas novas aprendizagens e conflitos que a pessoa em processo de envelhecimento

65 Veja-se o caso de universidades abertas a idosos, tais como as da PUCSP e do Centro Universitário FIEO, que direcionam trabalhos a pessoas com mais de 45 anos de idade, para discussão de variados assuntos.

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experimenta. Eterna aprendiz, tal pessoa pode reencontrar-se consigo, com seus medos, com seus anseios, bem como com sua esperança de ser enquanto perdurar sua existência.

O desenvolvimento humano prossegue adentrando as elipses das espirais de cada etapa

vital. Sem pedir licença, as rugas e os desequilíbrios, gradativos ou adoecidos, tornam evidente a perda do viço pela propriedade dos sistemas químicos pouco estáveis que vão se transformando no tempo. Com eles, a degeneração, inevitável e indesejada. Mais do que nunca, o poder de adaptação é condição de sobrevivência. A ambivalência entre a sabedoria elaborada no transcorrer de sua história e a diminuição das aptidões, especialmente físicas, solicitam, de formas diferenciadas, a capacidade de resiliência66. Eis o desafio de envelhecer com qualidade de vida.

Importa explicar, no entanto, que o desenvolvimento humano não implica necessariamente evolução, e sim um processo de reconstruções de etapas que se sucedem e se integram. Se conflitos e frustrações são vencidos em etapas anteriores, não significa que estejam absolutamente resolvidos na atual. O trânsito à envelhecência tem seus percalços. Embora em outro patamar da existência, a pessoa precisa experimentar situações que, talvez, já tenha suplantado, parcial ou totalmente, na sua juventude, tendo em vista, como explicita Bauman (2005), a liquidez da vida, que interage e se confunde com a cultura, sempre em movimento.

Mas é com os olhos do presente que o envelhecente enxerga, como diria Pessoa (1980), os seus Eus profundos, com a ressalva de que não são individuais senão produtos de conexões entre a pessoa e a cultura contemporânea, ou, como diria Foucault (1985) a vida implica diferentes processos de subjetivação e, por isso, pode-se complementar, distende-se em processos fluidos e híbridos. Nesse sentido, esse olhar está povoado de lembranças que a memória - interativa, dinâmica e cultural - vai peneirando entre os discursos, constitutivos de significados. Essa cultura da memória pode tornar a vida mais ―viável‖ e menos sofrível, pelo menos do ponto de vista da subjetividade, que escapa da psicologização. São freqüentes as condutas de pessoas lembrarem o que desejam lembrar, mesmo que, para isso, seja necessário reinventar o enredo, a trama, as soluções na dimensão da história atual. Assim, partes do passado podem ser reconstruídas à luz do presente, permitindo-se que a trajetória seja mais suave, ou mais inteligente, ou mais emocionante, ou mais..., configurando-se, na articulação teórica de Sarlo (2000; 1997), no ―império dos sentimentos‖ em ―paisagens imaginárias‖, orientadas, pode-se aclarar, pelos discursos que circulam sobre um modo mais adaptável de bem-viver.

Essa possibilidade humana de intervir na própria história, dando toques e retoques de

emoção, é que pode convergir para a integridade do Eu contra a desesperança do sentir-se velho, ultrapassado e, conforme complementa Ariès (1988), à deriva e perante a morte, com o mal-estar de se encontrar, na acepção de Bauman (2004), como mais uma das vidas desperdiçadas.

Apesar dos impasses, conflitos, frustrações que mesclam a existência humana, com tal

sentimento de integridade pode-se compreender que, apesar de tudo, valeu e está valendo a pena

66 Buscando auxílio no Aurélio (nosso amigo dicionário!), resiliência significa: ―propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica”. Esse termo é originário da física e foi adaptado ao campo das ciências da saúde, sendo relacionado inicialmente à capacidade de regeneração, flexibilidade e adaptação de pessoas que se recuperavam de doenças, situações traumáticas, catástrofes, guerras, sendo tais situações consideradas de alto risco. Observando e analisando que algumas pessoas, apesar de traumas sofridos na infância ou na fase adulta, conseguiam adaptações satisfatórias na vida, casos esses considerados exceções, é que a resiliência passou a ser motivo de estudos e pesquisas com enfoques em comportamentos de crianças, adolescentes e adultos nas mais diversas condições. No campo da psicologia, os primeiros estudos publicados envolvendo a abordagem da resiliência datam da década de 70 do século XX.

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viver. A generatividade dos seus trabalhos familiar, profissional e social fica no legado das marcas percorridas e compensa qualquer degeneração física. O passado, com suas agruras e conquistas, está presente em tais marcas. Esse ir e vir no trânsito dos tempos líquidos consoantes às premissas de Bauman (2006), as avaliações que suscitam, os posicionamentos atitudinais que sinalizam, podem contribuir para que a pessoa envelhecente, e jamais absolutamente envelhecida, reconheça-se metaforicamente na fluidez da água, que pode se deparar com obstáculos, mas sempre encontra caminhos para escoar e, assim, contornando ou se infiltrando, sua jornada prossegue...

Pensando nos processos de fabricação da socialização, o infiltrar-se, no sentido de

estabelecer seu pertencimento a grupos, é mais complexo do que o contornar ou, ainda, o retirar-se de cena. Mais do que abdicar de certas pseudo-convicções, exige a aceitação do novo, que é o diferente, o qual precisa ser descoberto, e do Outro, que pode ser de outra geração de idéias, que precisa ser compreendido. Não se trata de renunciar às pseudo-próprias convicções, deixando-se absorver, ilusoriamente, pela novidade ou tentar viver no presente tudo o que não se experimentou nas fases anteriores. O envelhecente não é um adolescente e, portanto, um envelhescente (agora escrito com SC), egocêntrico e imaturo, que precisa negar o presente e tentar voltar-se e voltar ao passado no afã de se apressar e viver intensamente o ainda não vivido, como, por exemplo, ser um ficante (ou seja, ficar como os jovens) em relacionamentos amorosos, ou transar (ter relações sexuais), muitas vezes sem proteção, para se sentir atualizado e atuante. E aqui vale o parêntesis explicativo: determinada categoria de homens e mulheres acima de sessenta anos constituem-se, hoje, como um dos grupos de risco em contaminação do vírus HIV. Além disso, é uma porcentagem de homens dessa idade que morrem devido a implicações cardíacas provocadas pelo uso inadequado de medicamentos que deveriam ser destinados à disfunção erétil.

Por isso, é necessário problematizar o termo e os discursos sobre envelhescência, conforme

textos jornalísticos e fenômenos midiáticos propõem, com a denotação de comparativo à adolescência, no sentido de reeditar comportamentos e atitudes dessa fase.

Importa explicar que, até início dos anos 90, categorizava-se as fases da vida humana como a infância (até 12 anos); a adolescência (dos 12 aos 19 anos), idade adulta (dos 20 aos 59 anos) e a velhice (mais de 60 anos). Ao se reconhecer que o envelhecimento é um processo contínuo, pesquisadores, particularmente da área da psicologia e mais precisamente da psicanálise, foram constituindo uma nova categoria, entre os 45 e 59 anos: a envelhescência, a qual pode perdurar mais tempo, uma vez que essa demarcação cronológica não pode ser tão estanque e precisa.

A terminologia envelhescência foi cunhada no Brasil por Berlinck na década de 90 a partir de estudos sobre a Psicopatologia Fundamental67, sendo tomada como significante da circunstância psíquica dada no desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo, que é âmbito da temporalidade, ou, dito de outro modo, pelo encontro da alma sem idade com o corpo que envelhece. Pode-se, então, dizer que o corpo, o social e a subjetividade apresentam uma discrepância na formação da envelhscência. Segundo Soares (2006), a envelhescência constitui-se no trabalho psíquico de recriar a vivência da velhice e de pensar sobre ela, sendo um ato de subjetivação, pois, ao ser considerada como significante, pode circular por diversas significações, estabelecendo distintas saídas psíquicas para o sujeito da velhice.

67 A Psicopatologia Fundamental é uma disciplina criada por Pierre Fédida, na Universidade de Paris VII – Denis Diderot, na década de 1970. Articula-se à noção de subjetividade, que prescinde da noção de sujeito enquanto ente, ou seja, como entidade concreta e agente, uma vez que, nessa abordagem, é inerente ao logos, à linguagem e esta é anterior à qualquer concepção de sujeito. Assim, a subjetividade é propriedade da própria linguagem (logos), o que escapa da objetividade. Não haveria o sujeito personalizado, ou, na visão psicanalítica, a psicologia do ego como regente do inconsciente.

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A revisão e reconstrução da história pessoal, segundo Berlinck (2000), apresentam função organizadora da subjetividade devido à possibilidade de reaparecimento de suportes referenciais para o que foi conquistado pela pessoa no transcorrer da vida e que acabou se empobrecendo no processo de envelhecimento. Esse caráter discursivo, oriundo da herança psicanalítica, agrega, como produção simbólica, as contingências do social na construção subjetiva da envelhescência.

Não obstante e fora do alcance academicista, a circulação do termo envelhescente, no Brasil, é atribuída ao dramaturgo Mário Prata, que o teria utilizado, em agosto de 1993, em artigo para o Jornal O Estado de São Paulo68. No texto, aponta-se um paralelismo entre adolescência e envelhescência nos seguintes termos:

A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade. Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência. E, se você está em plena envelhescência, já notou como ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso: (...) Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhescentes, também mudamos o nosso ritmo de falar, o nosso timbre. (...) Ninguém entende os adolescentes... Ninguém entende os envelhescentes... Ambos são irritadiços, se enervam com pouco. Acham que já sabem de tudo e não querem palpites nas suas vidas. (...) Os adolescentes não entendem os adultos e acham que ninguém os entende. Nós, envelhescentes, também não entendemos eles. "Ninguém me entende" é uma frase típica de envelhescentes.(...) O adolescente ama assistir a um show de um artista envelhescente (Caetano, Chico, Mick Jagger). O envelhescente ama assistir a um show de um artista adolescente (...) Daqui a alguns anos, quando insistirmos em não sair da envelhescência para entrar na velhice, vão dizer: — É um eterno envelhescente! Mário Prata

Se envelhescentes são situados na mesma perspectiva que adolescentes, podem se

manifestar imaturos, impulsivos, afoitos por descobertas, ávidos por paixões talvez mal resolvidas, e tudo em uma atmosfera de naturalidade fabricada. Essa comparação enunciada nesse discurso, pulverizado pelo poder da imprensa, acaba produzindo novas subjetividades nas redes de significados que são amplificadas pelo padrão do que é considerado moda pensar e se portar. E, alimentados pela mídia, mulheres e homens que estão envelhecendo ganham nova roupagem de envelhescentes ―descolados‖, mas que aderem à esteriotipia, concebidas suas subjetividades à imagem do olhar desejante que busca um lugar no desejo do(s) Outro(s), pelo enlaçamento da necessidade de aceitação social.

De modo diferenciado dessa abordagem conceitual, no processo natural do envelhecimento

humano, pode-se aludir a adolescência dentro da envelhecência, sendo esta mais abrangente que aquela, pois o envelhecente já experimentou decorrências das fases adultas, adolescente e infantil nas espirais elípticas do desenvolvimento.

Então, como pensar o desenvolvimento humano em novas perspectivas ao se reconstruir a

infância, a adolescência e a adultez na envelhecência (e não envelhescência!), com a maturidade elaborada nos processos espiralados do tempo, o que caracteriza a competência de ser resiliente e, com isso, adaptável e resistente aos desafios atuais?

68 E publicado, posteriormente, no livro "100 Crônicas", Cartaz Editorial/Jornal O Estado de São Paulo, conforme referências bibliográficas.

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Refletindo sobre o conceito de envelhecência

O envelhecer biológico é um processo natural, mas o envelhecer social é um fenômeno

cultural contaminado pelo que é considerado adequado, benéfico ou saudável em dado contexto histórico. Se na área da saúde, relativamente às fases da vida adulta, existem definições cronológicas e caracterizações precisas69, nos tempos e espaços psicossociais tudo é relativizado.

O envelhecente pode viver o paradoxo de experimentar novas incapacidades e

possibilidades, necessitando elaborar mudanças atitudinais e comportamentais orquestradas na dinâmica cultural, a qual tem provocado transformações das representações sociais e dos significados do que é o processo de envelhecimento humano. Essas aprendizagens culturais podem ensinar que, a despeito do peso social a que foram subjugados, os envelhecentes (e não necessariamente envelhescentes!) podem ter vidas socialmente mais saudáveis.

Tal processo argumentativo aponta para a necessidade de se compreender as novas

gerações que transitam pela envelhecência.

Referências Bibliográficas ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte I. Sintra: Europa-América, 1988 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004 _____ . Vida líquida. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005 ____ . Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2006 BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatalogia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000. BRASIL Lei. nº 10.741 de 2003. Estatuto do Idoso, Brasília, 2003 _____ . Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Expectativa de vida no Brasil. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-expectativa-de-vida-no-brasil-chega-aos-728-anos,474856,0.htm. Acesso em 30 de junho de 2010. Censo 2010 aponta envelhecimento da população brasileira. Disponível em http://brasilnewsbrasil.blogspot.com/2011/04/censo-2010-aponta-envelhecimento-da.html. Acesso em 2 de julho de 2011 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981 _____ . Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985 HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997 _____ . Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003 MENDES, Tania Maria Scuro. A resiliência na envelhecência. Caderno Universitário de Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem: adolescência e vida adulta. Canoas: Edulbra, 2010 PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 PRATA, Mário. 100 Crônicas. Cartaz Editorial/Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 1997, pág. 13. SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. Trad. de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EDUSP, 1997 _____ . El império de los sentimientos. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2000 SOARES, Flávia Envelhescência: do social ao intrapsíquico. Disponível em http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4,42.3.3.htm. Acesso em 14 de janeiro de 2011

Enviado – 28/07/2011 Avaliado – 15/10/2011

69 Exemplo: é recomendável que mulheres tenham o primeiro filho até os trinta e cinco anos; homens devem fazer exames periódicos de próstata a partir de quarenta anos, etc.

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APRENDIZADO DA LINGUA INGLESA ATRAVÉS DAS REDES SOCIAIS: UMA OBSERVAÇÃO NO SITE INGLES VERDE E AMARELO

Vânia Carvalho de Castro Graduada em Letras Inglês e Literatura inglesa

Universidade Federal do Piauí

Resumo O presente trabalho apresenta resultados de uma análise do processo de aprendizagem da língua inglesa através das redes sociais com foco no website Inglês Verde e Amarelo, uma rede na qual brasileiros aprendem inglês com falantes nativos. Sabendo que os softwares virtuais apresentam novas possibilidades interativas de aprendizagem, para melhor qualificar essa pesquisa, foi feita uma observação da prática de aprendizagem da língua inglesa através da realização de um questionário com 10 usuários, além da análise das respostas e das ferramentas dessa rede social. Palavras-chaves: Aprendizagem, Língua Inglesa, redes sociais. Abstract This study aims to analyze the practice of learning English as a second language through the website called Inglês Verde e Amarelo, a social network in which Brazilian people learn English from native speakers. This software introduces new virtual interactive possibilities of learning. *In order to qualify this research, it was made an observation of practice of English language skills by conducting a questionnaire with 10 users, beyond the analysis of responses and the tools of social network. Keywords: Learning, English Language, network. Introdução

A Internet disponibiliza um universo muito amplo de interação em todos os campos, como também na aprendizagem de língua estrangeira. Sabendo que as pessoas estão cada vez mais integradas no mundo virtual e que as redes sociais já fazem parte da rotina de muitos seres humanos, esse meio oferece um ambiente de comunicação livre, interativa e espontânea.

Em relação ao processo de aprendizagem da língua inglesa, Warschauer aponta cinco principais razões para o uso da Internet no ensino da língua: contextos autênticos e significativos; aumento do letramento através da leitura, escrita e oportunidades de publicação na Internet; interação (uma das melhores formas de se adquirir uma língua); vitalidade obtida pela comunicação em um meio flexível e de multimídia e empowerment, pois o domínio das ferramentas da Internet torna os alunos autônomos ao longo da vida.

Os softwares educacionais têm objetivo pedagógico, apresentam novas formas de interagir e

socializar com outros humanos e com informações, além disso, instigam os estudantes de segunda língua a descobertas constantes. Dillenbourg, Scheider e Synteta (2002) afirmam que um ambiente de aprendizagem não pode ser qualquer website educacional, e acrescenta que este pode ser um espaço que integra tecnologias heterogêneas e múltiplas abordagens pedagógicas e que pode ser utilizado pra enriquecer atividades de sala de aula ou até mesmo substituir a sala de aula.

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Nesse estudo proponho analisar e caracterizar a maneira como o site Inglês Verde e

Amarelo se manifesta em relação ao aprendizado da língua alvo, identificando alguns aspectos que podem tornar o aprimoramento do idioma mais acessível e como os usuários a adquirem. Essa rede social foi escolhida para o desenvolvimento da pesquisa por apresentar um contexto rico, diversificado e crescente de recursos na língua inglesa.

Para tanto, tive como base o suporte teórico da doutora pesquisadora e consultora de

mídias sociais Raquel Recuero (2009) e outros importantes teóricos da área, além disso, procurei tecer considerações e esboçar reflexões sobre essa forma inovadora de aprendizagem desse idioma.

As redes sociais

Segundo Raquel Recuero, assistimos a um crescimento espantoso das chamadas tecnologias de comunicação nos últimos anos. Essas tecnologias tornaram-se mais rápidas, mais populares e mais instrumentalizadas no cotidiano de milhares de pessoas em todo o mundo. As redes sociais ou comunidades virtuais como denomina Raquel Recuero (2009) proporcionam um ambiente de comunicação espontânea e possuem um número de usuários que cresce acentuadamente. Elas surgem a cada dia, sempre aumentando as possibilidades de interação e das pessoas se relacionarem por meio da Internet.

Os sítios virtuais como Orkut, Facebook, Twitter e outros foram desenvolvidos para girar

em torno das pessoas e são um espaço amplo de circulação de informações e proporcionam um ambiente de comunicação e interação. Eles permitem o encontro entre os usuários da rede internacional de computadores e alcançaram grande popularidade entre os usuários brasileiros.

Ainda segundo a pesquisadora Recuero (2009), as redes sociais não são utilizadas do

mesmo modo, grupos diferentes criam sentidos diferentes para as ferramentas. Assim surgem os softwares educacionais de aprendizagem de língua inglesa, os quais apresentam ferramentas de comunicação com internautas do mundo inteiro em situações reais com foco no ensino e no uso da língua inglesa promovendo integração entre diversas áreas. O site inglês verde e amarelo e suas ferramentas

Na Internet há sítios que disponibilizam um vasto campo para o ensino e aprendizagem de

língua estrangeira. O website http://verdeamarelo.ning.com/ (Acesso em: 26/06/2011) criado pelo americano Christopher O'Donnell em é uma rede social diferenciada, apresenta visual moderno e de fácil manuseio é destinada a brasileiros de qualquer nível de conhecimento da língua inglesa que querem aprender ou aprimorar seu inglês, o site propõe o aprendizado da língua com falantes nativos.

Registrar no site é bem simples, basta o usuário criar uma conta incluindo além de algumas

informações pessoais, o email e o nível de conhecimento da língua inglesa (iniciante, básico, intermediário, avançado ou nativo).

Utilizando as ferramentas do website é possível convidar membros, postar fotos, assistir

vídeos com conteúdos em língua inglesa (muitos feitos pelo próprio criador do site) e participar de bate-papo em inglês. Ao clicar na ferramenta conexões o usuário pode postar conteúdo no Twitter, segundo Tadeu Carmona (2010) um misto de rede social e de microblogging no qual os internautas enviam e leem mensagens curtas conhecidas como tweets.

A ferramenta Blog, localizada também na barra de menu do site permite acesso a postagens

de todos os blogs conectados ao Inglês Verde e Amarelo. Através desta é possível ―curtir‖ e publicar

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na pagina do site de rede social Facebook, um sistema que segundo Recuero (2009) funciona através de perfis e comunidades.

Ao clicar no link Grupos, o internauta pode escolher qual grupo de atividade online ou

temática gostaria de participar, por exemplo, se escolher o grupo Aula de Pronúncia o participante pode gravar vídeos com sua pronúncia em inglês com webcam e microfone utilizando a ferramenta Eyejot, o estudante clica na palavra Reply, e há uma pequena gravação feita pelo criador da rede explicando os procedimentos, depois ao clicar na palavra Play, logo começa a gravação online. O criador do site Christopher O'Donnell gravava outros vídeos resposta com comentários a cerca da pronúncia dos estudantes enfatizando as palavras que eles tiveram mais dificuldade, os incentiva a continuar tentado e sugeria formas de melhorar.

Além disso, o aprendiz pode participar de fórum de discussões sobre vários conteúdos na

língua alvo. Aspectos da observação

Sabe-se que o site Inglês Verde e Amarelo apresenta uma metodologia de aprendizagem da

língua inglesa através do contato online com nativos e outros falantes de língua inglesa. Para analisar melhor as ferramentas, o envolvimento dos usuários e o processo de aprendizagem, foram enviadas três perguntas a 11 participantes ativos através do próprio site: “Do you think it is possible to learn English through the website Inglês Verde e Amarelo?”, “How much have you learned ever since you first signed up?” e “What tool from this website you use the most?”.

Após a análise das respostas dos internautas, verificou-se que é possível sim aprender inglês

pelo site Inglês verde e amarelo, mas a aprendizagem depende do próprio esforço e da pessoa que quer aprender. Observei que algumas das respostas apresentaram com alguns erros gramaticais e de digitação Vejamos algumas respostas:

Usuário1: [21:44 – 02/07/2011]I think don´t so, It is posible dy yourself if you want!! Usuário2: [19:41 – 02/07/2011]Learn no, just improve and practice. Usuário3: [13:02 – 03/07/2011] I thinks is possible too improve but for new comers they need to effort themselves (…). Usuário4: [22:55 – 03/07/2011] Yes, I do. Verde e Amarelo has been a great tool for English learners. (…).People can learn from videos, chats, and blogging. However, I think it would be interesting if people could sign up more often. People should participate more effectively in the chats.

As ferramentas permitem a realização de interações entre os participantes com a língua alvo nessa comunidade virtual. Quando perguntei qual ferramenta eles mais utilizavam a maioria respondeu o ―Chat‖, o bate-papo que o site oferece na tela principal. Apenas dois dos entrevistados mencionaram os vídeos, um respondeu que utiliza mais o blog. Acredito que a ferramenta ―chat‖ ou bate-papo ajuda o aluno a melhorar sua habilidade de conversação. Usuário1: [23:52 – 01/07/2011] if the chat count as a tool, is the one I've used so far! Usuário2: [19:45 – 02/07/2011] the chat platform. Usuário3: [23:16 – 03/07/2011] I usually use the chat and the blog, where I can post my articles and read about some topics that interest me the most. Usuário4: [19:45 – 01/07/2011]The chat.

Através de observações gerais, percebi que pelos perfis os internautas e pelas suas respostas que eles se sentem bastante motivados a aprender a língua. Com as respostas apresentadas, eles

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aprenderam mais pronúncia, expressões da língua e vocabulário. Apenas um usuário respondeu que prefere estudar na escola ou procurar outras opções.

Usuário1: [19:44 – 02/07/2011] I learned few expressions but no much(…). Usuário2: [23:03 – 02/07/2011]as I said before this site is a good place to learn english, i've learnt some expressions and also some vocabulary too. Usuário3: [23:09 – 03/07/2011] I have learned a lot about pronunciation and the use of English itself. In addition, I have learned some other teaching techniques. For me, as a teacher, I can assure it is a meaningful website and it helps a lot. Usuário4: [21:51 – 03/07/2011] it's no easy but, I prefer study at school and looking for another options.

Percebi ainda que usuários que tem um nível iniciante de inglês postam mensagens em português ao adicionar outro membro da comunidade, já os que têm um nível a partir do básico, usam apenas o idioma estudado ao escrever mensagens.

Considerações finais

As redes sociais como recurso de aprendizagem de língua estrangeira vinculada a Internet se tomam um instrumento bastante privilegiado. Pois apresentam uma diversidade de matérias muito rica, proporcionando aos usuários situações da língua em uso em conversações reais resultando num crescimento interativo do seu conhecimento.

Observou-se no presente estudo que é possível o aprendizado do idioma inglês no Inglês

Verde Amarelo utilizando as quatro habilidades linguísticas, seja interagindo com as diferentes culturas através do bate-papo que o site oferece, com o contato online com falantes nativos, professores ou outros aprendizes, através da realização das atividades de vídeo com feedback, dos fóruns de discussões, ou até mesmo com a conexão com outras redes sociais.

O ambiente virtual de aprendizado da língua elimina o tradicional sistema de ensino de

idiomas, o aluno aprende o novo idioma sem sair de casa criando um sistema de ensino de línguas estrangeiras mediado por computador, além disso, funciona como um motivador para brasileiros que querem aprender a língua inglesa.

Considerando que a língua é dinâmica, essa pesquisa abre um leque para novos

questionamentos e que estudiosos de Linguística Aplicada, áreas afins e outros possam dar continuidade a pesquisas sobre as comunidades virtuais de aprendizado de língua estrangeira. Referências BLOCK, D. The social turn in second language acquisition. Washington, D.C.: Georgetown University Press, 2003. CARMONA, Tadeu. Tudo que você precisa saber sobre Twitter. São Paulo: Digerati Books, 2010. COSCARELLI, C.; RIBEIRO, A. E. (Org.) Letramento Digital: aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. PAULIUKONIS, M. A. L.; GAVAZZI, S. Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. WARSCHAUER, M. Digital literacy studies: Progress and prospects. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Eds.). The future of literacy studies. Basingstoke, UK: Palgrave Macmillan, 2010, p. 123-140. http://www.jornalistasdaweb.com.br/index.php?pag=displayConteudo&idConteudo=3964 Acesso em: 28/06/2011

Enviado – 30/08/2011 Aavaliado – 15/10/2011

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APLICAÇÃO DA TÉCNICA SWOT PARA DETERMINAR A INSERÇÃO DO SETOR DE GESTÃO DOCUMENTAL NO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DA UNISUL

Vera Lúcia da Rosa Fernandes UNISUL – SC

Resumo O estudo apresenta a aplicação da técnica SWOT no Setor de Gestão Documental da Unisul. Relaciona conceitos da literatura e mostra que os arquivos visam servir, acima de tudo, os interesses da economia, da ciência, da cultura e da preservação da memória. As informações contidas nos documentos representam instrumentos estratégicos que fornecem dados para o planejamento e para a tomada de decisão. A rapidez e a efetividade da transformação da informação em conhecimento constituem fatores decisivos de competitividade, atreladas esse conceito, as cinco forças competitivas de Porter (1986) na determinação da intensidade da concorrência, sendo que as mais acentuadas predominam e se tornam cruciais do ponto de vista da formulação de estratégias. Para dar ação à pesquisa foi determinado como objetivo geral examinar a aplicação da técnica SWOT visando determinar a inserção do Setor de Gestão Documental no planejamento estratégico da Unisul. Palavras-chave: Arquivo. Informação. Planejamento estratégico. Análise SWOT. Resumen El estudio presenta la aplicación de la técnica SWOT en el sector de gestión de documentos Unisul. Conceptos y programas de la literatura relacionada con los archivos de la intención de servir, sobre todo, los intereses de la economía, la ciencia, la cultura y la preservación de la memoria. La información contenida en los documentos son instrumentos que proporcionan datos para la planificación estratégica y la toma de decisiones. La velocidad y la eficacia de la transformación de la información en conocimiento son factores clave de la competitividad, vinculado este concepto, las cinco fuerzas competitivas de Porter (1986) en la determinación de la intensidad de la competencia, con la más aguda predominan y son cruciales desde el punto de vista la formulación de estrategias. Para compartir la investigación, dado el objetivo general de examinar la aplicación de la técnica SWOT para determinar la inserción de la industria de gestión de documentos en Unisul de planificación estratégica. Palabras claves: Archivo. De la información. La planificación estratégica. Análisis SWOT Introdução

A preocupação com a estratégia empresarial e com a eficiência no gerenciamento da informação documental que vai impactar na percepção de valor nos serviços prestados por uma organização tem aumentado a cada dia. Desse modo, empresas e pessoas inseridas na sociedade do conhecimento tem se preocupado com a gestão da informação documental elevando-a ao status de vantagem competitiva no mercado em que atuam.

A gestão documental é um dos pilares para as soluções e sistemas de gerenciamento da

informação. Ela atua em todo o ciclo de vida do documento, propicia os meios que regem a produção, o processamento técnico, a manutenção e a disponibilização dos documentos de arquivo.

A gestão documental propicia as condições necessárias para o correto tratamento a ser dispensado à informação. Diante dessa discussão, revela-se a importância do entendimento por

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parte dos gestores sobre a relevância da gestão da informação documental como diferencial competitivo para a organização.

A partir da avaliação no ambiente interno e externo que envolve a produção e disseminação da informação documental de uma instituição de ensino superior é possível apresentar um diagnóstico da gestão da informação que permita o desenvolvimento de estratégias para a melhoria da atividade. É com base nas iniciativas e riscos envolvidos na gestão da informação que se pretende nesse trabalho demonstrar que a aplicação da técnica SWOT pode revelar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças internas e externas em uma Unidade de Informação e como esses resultados podem ser utilizados para inserir referia Unidade no planejamento estratégico da Instituição.

Nesse norte, o estudo toma como referência o Setor de Gestão Documental da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e busca responder ao seguinte problema de pesquisa: A aplicação da técnica SWOT permite determinar a inserção do Setor de Gestão Documental no planejamento estratégico da Unisul?

A motivação para investigar o assunto tematizado também se vincula à importância do

tema, notadamente porque o planejamento estratégico é um instrumento de gestão utilizado na Unisul, estabelecendo parâmetros para sua eficiência e fornecendo aos gestores a linha de condução que resultam em liderança e controle no desenvolvimento de suas funções e atribuições.

. Referencial teórico Arquivo centro ativo de informação

O arquivo tem sob sua guarda documentos acumulados organicamente, produzidos de forma natural, no decorrer da execução de funções e atividades desempenhadas por entidades ou pessoas, independentemente da natureza ou do suporte da informação que se caracterizam por sua unicidade. É um órgão receptor, ou seja, os documentos chegam a ele por passagem natural e obrigatória e pode também ser definido como a entidade ou órgão administrativo responsável pela custódia, pelo tratamento documental e pela utilização dos arquivos sob sua jurisdição. Sua organização segue princípios gerais e se baseia na trajetória especifica de cada entidade ou pessoa, portanto exige-se conhecimento da relação entre os documentos e a estrutura/funções da entidade/pessoa.

Arquivo é o conjunto de documentos que, independentemente da natureza ou do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. Ou, ainda, arquivo é o conjunto de documentos produzidos e/ou recebidos por uma organização, entidade ou pessoa no exercício de suas competências e atribuições. (BELLOTTO, 2004).

Segundo Lopes (1996, p. 32) na perspectiva de valorização do conteúdo informacional dos

documentos, pode-se definir o termo arquivos, no sentido de informações registradas, do seguinte modo:

a) acervos compostos por informações orgânicas originais, contidas em documentos registrados em suporte convencional (atômicos) ou em suportes que permitam gravação eletrônica, mensurável pela ordem binária (bits); e

b) produzidos ou recebidos por pessoa física ou jurídica, decorrentes do desenvolvimento de suas atividades, sejam elas de caráter administrativo, técnico ou científico, independentemente da idade ou valores intrínsecos.

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Os arquivos visam servir, acima de tudo, os interesses da economia, da ciência e da cultura.

O Conselho Internacional de Arquivos estabelece que, dentre os seus princípios, cumpre aos arquivos facilitar o estabelecimento de políticas, procedimentos, sistemas, normas e práticas para assistir os produtores de documentos a criar e a manter documentos arquivísticos fidedignos, autênticos, preserváveis e acessíveis. Histórico da gestão documental na Unisul

O tratamento técnico referente aos arquivos de caráter corrente, intermediário e permanente da Unisul foi iniciado em 1995 na Secretaria Acadêmica. Métodos foram modificados, novas técnicas foram criadas, houve um movimento para a melhoria das condições de arquivamento, conservação e disponibilização dos documentos.

Em 2001, com a implantação do Setor de Gestão Documental – SGDoc todos os campi e

unidades foram atendidos no que tange ao tratamento, organização, e acondicionamento dos documentos de segunda e terceira idades, visando à recuperação rápida e precisa da informação para atender à tomada de decisões administrativas, bem como a prova de direitos e raízes históricas.

Compete ao SGDoc planejar e executar todas as atividades concernentes à área de arquivos

no âmbito da Unisul. Destarte, deve manter a custódia, a conservação, o arranjo e a divulgação de todo o acervo documental estabelecendo e executar uma política arquivística voltada para a eficiência administrativa, avaliar e selecionar os documentos, dentro das normas legais, a fim de acondicionar e preservar a massa documental de segunda e terceira idades e, respectivamente, definir o arranjo70, o calendário de recolhimento e as formas de empréstimo dos documentos com base nos princípios da Arquivologia. Documento como fonte de informação Conceito de documento

Por vezes, o conceito de documento não está bem explícito para as pessoas. Para alguns,

documentos são papéis que medeiam a vida do indivíduo na esfera pública, para outros podem ser objetos, uma proposta de trabalho ou uma correspondência. Enfim, documentos são todos os registros de atividades e funções desenvolvidas em empresas, instituições, corporações, etc. Segundo Belloto (2004) documento é informação registrada em algum tipo de suporte71. Pode-se dizer que a pesquisa, na sua essência, é realizada em documentos.

As informações contidas nos documentos representam instrumentos estratégicos que

fornecem dados para o planejamento, tomada de decisões, acompanhamento, controle e viabilidade das atividades junto às empresas. Conceito de informação

Segundo Tarapanoff (2001), a informação, seja no plano científico, técnico, tecnológico ou

econômico é produzida de forma cada vez mais rápida. Além da gestão, os processos de criação se tornam preponderantes. Diante disso, a gestão da informação e sua utilização para produção de conhecimento se tornam elementos básicos para o desenvolvimento estratégico nas organizações.

70 Denominação tradicionalmente atribuída à classificação nos arquivos permanentes. (BELLOTTO &

CAMARGO, 1996). 71 Suporte é o material sobre o qual as informações são registradas. São exemplos de suporte: fita magnética,

papel, cd-rom, etc. (BELLOTTO & CAMARGO, 1996).

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A informação constitui a principal matéria-prima para o conhecimento, trata-se de insumo

comparável à energia que alimenta um sistema. No entanto, deve estar registrada ou materializada em algum tipo de suporte, seja o papel, o disquete, o disco óptico ou um banco de dados, pois, arquivos não são compostos apenas de documentos físicos, neles encontramos todos os tipos de suporte que devem estar organizados e acessíveis.

No contexto de um arquivo, a informação é gerenciada como um bem ou recurso

econômico e estratégico consubstanciado em seu valor primário72 e secundário73. O valor secundário é adquirido posteriormente ou, noutros termos, ao término do ciclo de vida primária, sendo que alguns documentos devem ser preservados pelo seu valor histórico e informativo e servirão, nesse estágio, para a história, a memória e a pesquisa científica.

Informação orgânica

A informação se constitui em base para a competitividade entre as empresas, é um ativo

que necessita ser gerenciado. Entretanto, significativa parte das informações que vão desempenhar função importante na estratégia das organizações é produzida por elas mesmas. Eis que nascem na mente dos profissionais que nelas atuam e são transformadas em projetos, propostas, programas, pareceres, resoluções, manuais, informativos etc., os quais são materializados sob forma de documentos que carregam em seu bojo informações estratégicas e imprescindíveis à tomada de decisão.

Informação orgânica é aquela produzida dentro da organização, de forma sistemática e

consistentemente, no desenvolvimento das atividades para a qual a organização foi criada. Essas informações se movimentam pela empresa e movimentam a empresa, são a mola propulsora para o seu funcionamento, estão registradas em algum tipo de suporte, geralmente o papel, configuradas em documentos, os quais são armazenados em arquivos.

Para Rosseau e Couture (1994), a informação orgânica como estratégica é essencial para o

desenvolvimento de qualquer organização ou, mesmo, pessoa física. Neste sentido, Lopes (1996) se posiciona dizendo que se a informação é estratégica,

consiste num bem. Seguindo-se esta idéia, ela tem, como os demais bens, um valor de uso e um de troca. Uma parcela da informação produzida ou recebida pelas organizações é fundamental para o gerenciamento das mesmas; portanto, estratégica.

A outra parte importante de informações para a organização são triadas, da produção

externa, ou seja, criadas em sistemas ulteriores à empresa que também tem papel importante, indubitavelmente.

Para McGee e Prusak (1994) a informação não se deprecia da mesma forma que os bens de

capital. Em algumas circunstâncias o valor da informação é eterno: ela será tão valiosa amanhã quanto hoje. Em outras circunstâncias, o valor de alguns tipos de informação pode cair à zero quase que instantaneamente quando determinados eventos ocorrem. A expressão ―tão útil quanto às notícias de ontem‖ tem neste contexto um significado real.

72 Valor primário: relaciona-se às razões de sua própria produção, considerando seu uso para fins

administrativos, legais e fiscais. (BELLOTO, 2004) 73 Valor secundário: diz respeito à potencialidade do documento como prova ou fonte de informação para

pesquisa. (BELLOTO, 2004)

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Planejamento estratégico

Segundo Fichmann e Almeida (1991) planejamento estratégico é uma técnica administrativa que, através da análise do ambiente de uma organização, cria a consciência das suas oportunidades e ameaças dos seus pontos fortes e fracos para o cumprimento da sua missão e, através dessa consciência, estabelece o propósito de direção que a organização deverá seguir para aproveitar as oportunidades. Análise do ambiente interno Universidade/Setor de Gestão Documental

O mundo está em constante processo de transformações que, ao seu turno, colocam as empresas diante da necessidade de se adaptarem a um novo ambiente bastante competitivo, veloz e permeado por incertezas, ameaças e oportunidades. O conhecimento hoje é o fator de produção mais importante, deixando para trás o capital e a mão-de-obra.

Diante disso, as organizações vêem-se obrigadas a alterar sua forma de atuação para

responder ao mercado. Isso se reflete no crescente investimento das empresas em treinamento de seus profissionais, no planejamento estratégico, oferecendo a compreensão do ambiente externo da organização e do ambiente interno que essa mesma organização produz.

As universidades contemporâneas envolvidas em seus processos educacionais precisam

estar atentas às transformações que ocorrem em seu ambiente de negócio para se adaptar às mudanças que ocorrem a sua volta. Essa percepção implica monitorar o ambiente interno e externo a ela e, para tanto, é fundamental que a Instituição tenha claro seus propósitos e objetivos fixados em sua missão.

Para isso, a Unisul realiza todos os anos o planejamento estratégico. Nesse sentido, vale

observar que, segundo Porter (1986), a essência da formulação de uma estratégia competitiva é relacionar uma companhia ao seu ambiente.

Ciente de que precisa estar atenta às mudanças e preparada para a competitividade, a

UNISUL está considera que precisa gerenciar a informação documental que produz e faz circular interna e externamente. E, foi com esse propósito que criou o Setor de Gestão Documental, o qual pode ser considerado como um fator de competitividade, pois tem como missão:

Gestão integral e inteligente da informação documental a curto prazo para tomada de decisão e ao longo do tempo como fonte de pesquisa e preservação da história e da memória da Unisul.

Os serviços representam um significativo potencial, um importante diferencial de mercado

que tem âncora no contato direto entre as organizações e seus clientes, uma realidade que os negócios de início do século XXI vieram a demonstrar em todas as economias. Esse papel central que os serviços tem assumido mostra a crescente importância da qualidade da atividade prestacional como fator chave à competitividade. Destarte, vale destacar, o serviço de seleção, organização e disponibilização da informação documental dá suporte à ação administrativa e ao planejamento estratégico.

Diante disso, foram traçados os objetivos do Setor de Gestão Documental da Unisul para

atingir sua meta, cujo direcionamento é: • suprir a Instituição de todas as informações necessárias ao processo de análise e tomada

de decisão, de forma eficaz e econômica;

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• garantir a implementação política de avaliação de documentos para que tenham

destinação adequada, uma vez cumpridos os fins para os quais foram criados; • organizar a massa documental acumulada; • liberar e reduzir o custo de espaço físico; • recuperar rápida e eficazmente a informação; • reduzir indenizações indevidas pela não localização de documento; • preservar o fundo documental da Unisul como parte integrante de sua história. As funções do Setor de Gestão Documental incluem a organização e disponibilização da

informação, o estabelecimento das normas gerais de trabalho visando manter a uniformização de procedimentos, bem como orientar a seleção dos documentos de acordo com os critérios e prazos estabelecidos na Tabela de Temporalidade de Documentos, e ainda:

• arquivar os documentos dentro de um plano de classificação funcional; • manter a informação documental em segurança; • prestar informações aos usuários relativas a documentos custodiados; • definir critérios de consulta e empréstimo de documentos do acervo; • elaborar instrumentos de pesquisa para tornar os documentos acessíveis à consulta e

pesquisas; • disponibilizar a informação documental eletronicamente dentro de um plano de

conversão dos documentos físicos em documentos eletrônicos. O Setor de Gestão Documental da Unisul, como um fator de estratégia competitiva, deve

ser analisado sob os conceitos de Porter (1986) que afirma: a essência da estratégia competitiva é relacionar uma companhia ao seu meio ambiente. Embora o meio ambiente relevante seja conisderavelmente amplo, eis que abrange as forças sociais e econômicas. Nesse caso, os pricipais aspectos do meio ambiente da empesa é a indústria ou as indústrias com as quais compete. Trazendo esta afirmação de Porter para a realidade do ensino superior, percebe-se que o conceito de Porter é perfeitamente aplicável.

O mesmo autor afirma, ainda, que o conhecimento dos pontos fortes e fracos de uma

organização dirigem a concorrência. Não obstante, apresenta cinco forças competitivas, quais sejam:

• entrada; • ameaça de substituição; • poder de negociação dos compradores; • poder de negociação dos fornecedores; e • rivalidade entre os concorrentes. Essas cinco forças competitivas determinam a intensidade da concorrência, sendo que as

mais acentuadas predominam e tornam-se cruciais do ponto de vista da formulação de estratégias. As cinco forças apontadas por Porter seguem representadas na figura 1.

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Figura 1 – As cinco forças competitivas de Porter. Fonte: PORTER, 1986.

Para analisar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças como fatores que determinam a

competitividade do Setor de Gestão Documental, optou-se por aplicar a técnica SWOT. Aplicação da análise swot no setor de gestão documental da Unisul

A técnica SWOT é uma ferramenta utilizada para analisar o cenário (ou ambiente) como base para gestão e planejamento estratégico nas empresas, mas podendo, devido a sua simplicidade, ser utilizada para qualquer tipo de análise de cenário, desde a criação de um blog à gestão de uma multinacional.

Esse é um sistema simples para posicionar ou verificar a posicionamento estratégico da

empresa no ambiente em questão. A técnica é creditada a Albert Humphrey, que liderou um projeto de pesquisa na Universidade de Stanford nas décadas de 1960 e 1970 usando dados da revista Fortune das 500 maiores corporações.

Por outro lado, TARAPANOFF (2001) indica que a ideia da análise SWOT já era utilizada

há mais de três mil anos quando cita em uma epígrafe um conselho de Sun Tzu (500 a.C).: ―Concentre-se nos pontos fortes, reconheça as fraquezas, agarre as oportunidades e proteja-se contra as ameaças‖. Diagrama SWOT

O termo SWOT é uma sigla oriunda do idioma inglês, e é um acrônimo de Forças (Strengths), Fraquezas (Weaknesses), Oportunidades (Opportunities) e Ameaças (Threats).

Nessa perspectiva, a partir da análise ambiental e da determinação da missão e dos

objetivos da Unidade de Informação em questão é possível aplicar a análise SWOT. Essa análise tem por objetivo identificar forças, fraquezas, oportunidades e ameaças para proposição do planejamento estratégico da Unidade de Informação, cujos benefícios de sua aplicação são: simplicidade, baixo custo, flexibilidade, integração e colaboração. Observe-se que essa técnica está baseada em dois conceitos: interno x externo e positivo x negativo. Forças e fraquezas do Setor de Gestão Documental da Unisul

Referem-se ao perfil de ativos da organização e suas qualificações em relação à concorrência, incluindo recursos financeiros, tecnológicos e identificação com a marca. Essas forças e fraquezas existem dentro de todas as empresas ou em seus principais relacionamentos com

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fornecedores e clientes. Apresentam-se significativas quando orientam ou impedem a organização de satisfazer o consumidor, pois deve estar focada nos processos gerenciais ou soluções que sejam importantes para atender as necessidades do consumidor.

Forças internas: • boa experiência na disponibilização da informação; • boa imagem perante o usuário; • competências técnicas; • comprometimento com o usuário. • credibilidade reconhecida pelo usuário; • custo baixo; • dificuldade na disponibilização da informação; • falta de direção estratégica; • imagem fraca, pouco conhecida; • limitação para expansão física; • linha de serviço pouco flexível; • não atingimento no cumprimento de todas as suas atribuições; • número considerável de estagiários sem experiência técnica. • número reduzido de funcionários; • parceria com outras empresas; • processos mapeados e bem definidos; • qualidade nos serviços; • recursos financeiros satisfatórios; • uso da tecnologia de GED; Fraquezas internas: • falta de direção estratégica; • não atingimento no cumprimento de todas as suas atribuições; • linha de serviço pouco flexível; • dificuldade na disponibilização da informação; • imagem fraca, pouco conhecida; • número reduzido de funcionários; • limitação para expansão física; • número considerável de estagiários sem experiência técnica.

Oportunidades e ameaças

As ameaças e as oportunidades definem o meio competitivo com seus riscos consequentes e recompensas potenciais. Essa situação se apresenta de certa forma fora de controle da empresa, pois, as oportunidades e ameaças envolvem assuntos que ocorrem nos ambientes externos à organização. Tanto as ameaças quanto as oportunidades não devem ser ignorados, podem ocorrer nos ambientes competitivos, sociocultural, político-legal ou interno da empresa.

Ameaças externas: • novos usos para a informação documental; • novas tecnologias; • oferta de terceirização dos serviços de arquivo; • legislação pouco flexível.

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Ameaças internas: • boicote na transferência de documentos para o Setor de Gestão Documental; • criação de arquivos paralelos; • solicitação do serviço em declínio; • adoção de novas estratégias de guarda da informação documental nos arquivos correntes; • desempenho insatisfatório dos técnicos. Oportunidades internas: • desenvolvimento de uma base informacional acadêmico-administrativa que garanta

acessibilidade à informação; • aperfeiçoamento do fluxo de informação administrativa e acadêmica por meio da

aplicação do programa de métodos e técnicas da Arquivologia e do gerenciamento eletrônico de documentos;

• desenvolvimento da estrutura informacional acadêmica que garanta a sua operação, guarda e disponibilização;

• manipulação eficientemente dos recursos institucionais de informação, a fim de aumentar o seu valor para a instituição;

• disponibilizar a informação para um número infinito de usuários internos e externos. Oportunidades externas: • o Setor de Gestão Documental da Unisul se apresenta como modelo para a comunidade

universitária em nível estadual e nacional; • prestação de consultoria para arquivos de outras instituições. A avaliação das forças e fraquezas do Setor de Gestão Documental envolve a percepção

para além dos serviços atuais, sob a ótica da avaliação dos processos gerenciais que são importantes para atender as necessidades dos clientes. A chave para o sucesso no cumprimento das metas e objetivos da Unidade de Informação depende da habilidade dessa Unidade em transformar forças em importantes capacidades, as quais são equiparadas às oportunidades do ambiente. Essas capacidades podem se tornar vantagens competitivas se proporcionarem maior valor para os usuários do que as ofertas concorrentes. Para isso, é necessário que o Setor de Gestão Documental entre no plano de estratégias da Universidade. Considerações finais

Perante toda a análise feita sobre a importância da gestão da informação documental e

apresentando-a como diferencial competitivo; e considerando que esta Unidade de Informação é parte integrante de uma Instituição de ensino superior, pode-se afirmar que a análise do ambiente interno e externo da U. I. revela a necessidade de inclusão desta no plano estratégico maior para que se possa aproveitar suas oportunidades, entender e gerenciar as ameaças, solidificar seus pontos fortes e agir de forma a corrigir fraquezas. Destarte, observe-se que a aplicação da análise SWOT permite com que se obtenha esse panorama.

De forma geral, a análise do ambiente interno e externo mostra-se equilibrada sem

predominâncias de nenhum dos pontos. O diagnóstico com o uso da análise SWOT, neste caso, foi capaz de além do conhecimento do ambiente demonstrar que a Unidade de Informação deve ser parte integrante do planejamento estratégico da Instituição, notadamente porque lida com informações gerenciais necessárias ao processo de tomada de decisão.

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O GAÚCHO E OS ANIMAIS SOB O PROCESSO DE DICIONARIZAÇÃO

Verônica Franciele Seidel Graduanda do curso de Bacharelado em Letras - Português/Literaturas

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Resumo Este estudo procura refletir sobre a constituição e a instituição de sentidos capazes de revelar o imaginário sobre sujeito, língua e história através de dicionários de Língua Portuguesa e de Regionalismos Gaúchos. Consideramos o dicionário como um objeto discursivo inserido no espaço-tempo, de modo que suas evidências de sentidos são questionadas a fim de mostrar seus processos históricos de constituição, explicitando os gestos de interpretação que subjazem às formulações dos verbetes. Rastreamos as relações entre a figura do gaúcho e os animais que o circundam, como o boi e o cavalo, que podem ser visualizadas através do processo dicionarístico. Palavras-chave: dicionários, gaúcho, mito Abstract This study intends to reflect about the constitution and institution of the meanings able to reveal the imaginary about the subject, language and history through Portuguese and Regionalisms Gauchos dictionaries. In it, we consider the dictionary as a discursive object inserted in the space-time, so that their senses evidences are questioned in order to show its historical processes of constitution, explaining the gestures of interpretation that come with the formulation of the entries. We look for the relationships between the gaucho and the animals that surround him, like the ox and horse, that can be viewed by the dicionaristic process. Key-words: dictionary, gaucho, myth

Introdução

Este estudo procura refletir sobre a constituição e a instituição de sentidos capazes de

revelar o imaginário sobre o sujeito, a língua e a história através de dicionários de Língua Portuguesa e de Regionalismos Gaúchos. Os princípios teóricos e metodológicos são baseados na Análise de Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux, e na História das Ideias Linguísticas, representada por Sylvain Auroux, tal como são desenvolvidos no Brasil, especialmente por Eni Orlandi e José Horta Nunes.

A partir dessa perspectiva, o dicionário é considerado como um objeto discursivo inserido

no espaço-tempo, de modo que as evidências de sentidos dos dicionários são questionadas a fim de mostrar seus processos históricos de constituição, explicitando os gestos de interpretação que subjazem às formulações dos verbetes. Nestes, podemos observar efeitos das práticas sócio-históricas ao mesmo tempo em que, de certo modo, constroem a sociedade, tendo em vista que o dicionário apresenta um horizonte de prospecção, o que caracteriza seu potencial transformador quando inserido em um espaço linguístico-histórico. Desse modo, é possível observar nos verbetes uma imagem da sociedade, imagem construída e parcial, que produz identificações e silenciamentos e que se projeta em um espaço-tempo.

Para este estudo, os instrumentos linguísticos selecionados são o Dicionário de Regionalismos

do Rio Grande do Sul, de Rui Cardoso Nunes e Zeno Cardoso Nunes (doravante Nunes), o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (doravante Aurélio), e o Nôvo Dicionário da Língua Portuguêsa, de Candido de Figueiredo (doravante Figueiredo). No intuito de

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refletir sobre a produção dos efeitos de sentidos nas relações entre língua e sujeito, observáveis no dicionário, selecionamos os verbetes que designam os principais animais que fazem parte do meio social do Rio Grande do Sul, sobretudo na área rural, tais como boi e cavalo, que auxiliam na constituição da imagem do gaúcho.

A partir da análise dessas acepções nos diferentes dicionários, pretende-se a explicitação do

processo de transformação que vem ocorrendo nas relações de sentido que cada verbete carrega, desde a língua colonial (Figueiredo), passando pela Língua Portuguesa do Brasil (Aurélio) até chegar à língua regionalista rio-grandense (Nunes), sendo que através das semelhanças e diferenças entre eles, é possível revelar parte da história sócio-ideológica constitutiva desses discursos. Tal percurso permite verificar de que modo as acepções contidas no dicionário de regionalismos revelam traços da formação social do gaúcho unido aos animais que o circundam desde sua origem.

Tendo em vista a interface entre a sociedade e a literatura, esse processo também pode ser

evidenciado no discurso literário, já que a literatura ao mesmo tempo em que é influenciada pela sociedade pode exercer influência sobre ela, modificando-a. A fim de mostrar o gaúcho em sua relação com os animais via literatura, trazemos também à tona a análise de Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto. O jogo entre definições e sentidos

Inicialmente é importante ressaltar que o interesse por tal estudo surgiu justamente da análise do próprio verbete gaúcho contido no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Nunes. A definição desse verbete relaciona a significação primitiva do termo gaúcho ao "roubo de gado ou contrabando" e apresenta os gaúchos, primitivamente, como "arrebanhadores de gado e de cavalos". Quanto às diferentes hipóteses para a etimologia do termo, a primeira delas faz menção ao vocábulo boi:

Gaúcho. - Do ár. gaûch, proveniente do persa gauchi, boizinho, formado de gau-, "boi ou vaca", mais -chi, sifixo diminutivo, e que, por sua vez, veio do sânscrito gaúch-, "boi, gado vaccum"; este, por seu turno, é oriundo da raiz indo-européia gwo-, gwow-, "boi, vaca". Cast. ant. chaucho, com sentido equivalente (do ár. châuch, de chauoûch, "tropeiro"), a par de gauche; e este, que se documentou primeiro (séc. XVIII, foi também, ao que nos parece, a primeira transcrição árabe na forma genitiva, seguindo-se-lhe a nominativa, que prevaleceu: gaucho.

Assim, a partir da importância que a acepção do verbete confere, de maneira mais incisiva,

ao boi (definição e etimologia) e, de forma mais tênue, ao cavalo (definição), fez-se um levantamento de todos os verbetes no dicionário de Nunes que definissem boi ou cavalo, animais mencionados na definição de gaúcho, sendo que se consideraram apenas substantivos masculinos no singular, incluindo aumentativos e diminutivos. Como resultado, encontraram-se 23 verbetes definindo boi e 49 verbetes definindo cavalo.

Após o levantamento inicial dos verbetes designativos de boi e de cavalo no dicionário de

Nunes, foram selecionados para análise alguns dentre esses verbetes que estivessem também presentes em Aurélio e em Figueiredo. Desse modo, dos 21 verbetes designativos de cavalo presentes nos três dicionários, foram selecionados quatro: animal, petiço, noviço e senador, e dos oito verbetes designativos de boi presentes nos três dicionários, foram selecionados dois: munício e touro. Observa-se aqui que no levantamento dos verbetes designativos de boi foram considerados também aqueles que designassem gado, já que no dicionário de regionalismos o gado é especificado e determinado como vacum: "Gado, s. O gado vacum. Quando o rio-grandense quer referir-se a outro gado que não seja o vacum, ele o especifica, chamando-o gado lanígero, asinino, muar, cavalar etc." (p. 199).

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Inicia-se então a análise dos verbetes designativos de boi/gado. Em Figueiredo, a definição

que se tem de munício como um "brasileirismo" definido como "pão ordinário, que faz parte do rancho dos soldados" é retomada em Aurélio exatamente com a mesma definição, sendo que agora o "brasileirismo" é definido como a segunda acepção do verbete: "O gado de provisão alimentar da tropa ou do exército". Já em Nunes, a definição de munício apresenta apenas a acepção de Aurélio tida como "brasileirismo", ou seja, "gado de corte que segue as forças, para alimentação dos soldados". Por meio de tal definição, acentua-se a relação estreita que se dá entre o gaúcho e o boi, já evidenciada na etimologia de gaúcho, mencionada anteriormente. Percebe-se a importância que o gado adquire na alimentação do povo gaúcho, de modo que o pão presente na alimentação dos soldados passa a ser substituído pelo gado.

A importância da relação entre boi/gado e gaúcho também pode ser atestada observando-

se o trecho que segue a definição de gado em Nunes, oriundo de Antônio Carlos Machado, Vozes da Querência, p. 29:

Ao contrário do resto do Brasil, cuja colonização assentou na base da exploração agrícola, o Rio Grande do Sul nasceu e se formou à custa do gado. Tornou-se a criação desde o início, o eixo de sua vida coletiva. Já dissemos em outro lugar que a formação gaúcha sob inúmeros aspectos apresenta-se como obra exclusiva do pastoreio, da gadocracia.

A definição de touro em Figueiredo e em Aurélio é bastante semelhante, sendo que os dois

dicionários trazem as mesmas possibilidades de sentido para o termo: boi que não é castrado, boi bravo; homem robusto e fogoso; um dos signos do zodíaco. Em Nunes, o único sentido que permanece é o primeiro, o de boi não castrado. A essa definição segue-se uma observação: "Tanto no Rio Grande do Sul como nas Repúblicas do Prata o touro é um símbolo de força, de coragem, de valor. As brigas de touros são espetáculos soberbos que têm inspirado belas páginas na literatura gauchesca". Tal passagem reitera o laço entre o gaúcho e o animal, denotando a importância de que esse animal é investido pelo povo gaúcho: mais que um boi bravo ou não castrado, o touro aparece como um "símbolo" que auxilia na formação da cultura e das tradições gaúchas.

Feita a análise dos verbetes relativos a boi, passa-se à análise dos verbetes referentes a cavalo.

O vocábulo animal é definido em Figueiredo como "sêr organizado, que tem sensibilidade e movimento próprio; sêr vivo, irracional; pessoa estúpida". Tal definição é retomada em Aurélio com alguns acréscimos de sentido, a saber, "cavalo" e/ou "animal cavalar", sendo que essas acepções são apresentadas como "brasileirismos". A definição de "animal cavalar, principalmente o macho" é retomada em Nunes como "animal cavalar, especialmente o macho". Nunes especifica ainda que "ver um animal significa ver um cavalo, uma égua, um garanhão, e não um muar ou um bovino" e que o verbete "é muito empregado também na sua verdadeira acepção". Disso, depreende-se, primeiramente, que o cavalo ganha para si a acepção de animal em detrimento de outros animais tais como "muar" ou "bovino" e, depois, que haveria uma "verdadeira acepção" para o termo, ou seja, de animal no sentido genérico, como designativo de um animal qualquer. Torna-se interessante observar que é concebida, pelo próprio dicionarista, a existência de uma acepção verdadeira que não aquela apresentada por ele, trazendo à tona a consciência de uma "verdade local", de modo que o sentido funciona "localmente" e não universalmente (Foucault, 1979). Como explica Petri (2004), tratar o sentido localmente implica considerar as contradições que lhe são inerentes e constitutivas, tais como: a multiplicidade de significados que advêm de um mesmo significante e as relações entre o mesmo (continuidade) e o diferente (descontinuidade).

Quanto à definição de noviço, tanto Figueiredo como Aurélio apresentam três acepções para

o termo: homem que se prepara para professar numa ordem religiosa; aprendiz; inexperiente. Já Nunes apresenta como primeira acepção para o termo a de "cavalo novo" e apenas como segunda

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acepção a de "pessoa inexperiente". Percebe-se aqui o deslocamento de sentido de um termo que era usado para designar pessoas e passa a ser designativo, primeiramente, de cavalos e, apenas secundariamente, de pessoas. Tal deslocamento aponta novamente para a importância que a cultura gaúcha confere ao cavalo, animal que circunda seu meio social.

A definição de petiço em Figueiredo, identificado como um "brasileirismo", que significa

"cavalo de pernas curtas", em Aurélio também é identificado como um "brasileirismo" e significa "cavalo pequeno, curto, baixo" e "por extensão, pessoa de pequena estatura". Essa definição é retomada exatamente com as mesmas palavras em Nunes, o que aponta para o fato da existência de uma língua peculiar do sul, mas que não deixa de ser formada com base na língua nacional. O dicionário de Aurélio funcionaria, devido à posição que ocupa de "discurso fundador", como o detentor do discurso responsável pela construção de uma memória nacional, que inevitavelmente constitui também a memória do povo gaúcho, visto que este é parte integrante da nação. Como explica Orlandi (1993), "em relação à história de um país, os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país".

O mesmo processo pode ser encontrado no verbete senador. Figueiredo define o termo

como "membro do senado", sendo que tal definição aparece da mesma forma em Aurélio, que acrescenta como segunda acepção um "brasileirismo" do Rio Grande do Sul com sentido de "cavalo muito idoso". Nunes apresenta apenas a segunda acepção de Aurélio, substituindo somente o vocábulo "idoso" por "velho".

Refração e reflexão do discurso dicionarístico

Através da análise exposta, evidencia-se parte das tomadas de posição dos sujeitos

envolvidos na produção das obras em questão. Tais tomadas de posição revelam por sua vez diferentes modos de inscrição do sujeito na língua, sendo que se faz necessário considerar, como explica Orlandi (2002), que não existe neutralidade do sujeito e que a ideologia se revela funcionando na própria forma de organização do objeto discursivo em análise.

Observando os mesmos verbetes no dicionário de Figueiredo, de Aurélio e de Nunes,

percebe-se que muitas definições são retomadas, atualizando, reproduzindo e deslocando alguns sentidos. Tornam-se explícitos aqui os processos parafrásticos e os polissêmicos, norteadores do discurso. Enquanto a paráfrase baseia-se no que se mantém no dizer, trazendo estabilização, como ocorre nos verbetes munício, touro e noviço, a polissemia assenta-se na ruptura dos processos de significação trazendo, por sua vez, deslocamento, sustentando o processo de construção de sentido de petiço e senador. É essa tensão entre o mesmo e o diferente que permite a transformação dos sujeitos e dos sentidos. Por isso, Orlandi (2009) diz que "a incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos, nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados".

O dicionário é resultado de um processo de seleção, recorte, reformulação e retomada de

questões sobre o já-dito, é a recuperação de uma memória discursiva. Segundo Orlandi (2002), o dicionário representa a completude remetendo a um verbete que, por sua vez, remete a outros, e estabelece, assim, um ―circuito fechado".

O dicionário de Aurélio apresenta-se como um discurso fundador, de modo que mantém

uma relação muito particular com a filiação, sustentando o sentido que surge e se sustentando nele, o que produz o efeito de sentido evidente "só poderia ser assim". Há todo um imaginário social e histórico que nos dá a conhecer a língua do Brasil, a língua nacional e oficial, a língua portuguesa, considerando que ela ―está estruturalmente ligada à constituição da forma histórica do sujeito sociopolítico, que se define assim na relação com a formação do país, da nação, do Estado‖ (Orlandi, 2002, p. 21). É assim que se explicita o contraponto de se ter línguas no interior de uma língua, são línguas que promovem a heterogeneidade no interior de uma língua com o suposto

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―poder‖ de homogeneização, servindo à administração do Estado, mas, também à necessidade de administração dos saberes (Petri, 2009).

Os dicionários regionalistas, como é o caso do dicionário de Nunes, segundo Horta Nunes

(2006), são considerados dicionários populares, que se caracterizam por serem parciais, de modo que propõem descrever a língua dos sujeitos rurais ou regionais, em uma linguagem "diferenciada da língua erudita". Apresentam-se assim como um objeto de consulta, mas funcionam, sobretudo, como referencial de tradicionalismo e não como acúmulo de saber atualizado. São marcados pela "especificidade de um grupo social; pela crença de que haveria uma nação imaginária (no interior de outra nação)". A língua funcionaria aqui como a expressão maior de um grupo social tão específico, que se identifica como diferente no interior do mesmo (Petri, 2008). Os verbetes que estão no dicionário regionalista podem ser ou não contemplados pelo dicionário nacional, já que a língua é portuguesa no e do Brasil, plena em especificidades de várias ordens, dentre as quais estão os regionalismos (Petri, 2009).

A análise em questão permite visualizar a relação que há entre o gaúcho e os animais, assim

como a importância que o cavalo adquiriu no meio social do gaúcho. É importante observar que, apesar de o termo gaúcho em sua definição estar mais relacionado com boi e de este animal fazer parte da alimentação do povo gaúcho de uma maneira bastante marcante, nota-se que no dicionário em questão os verbetes designativos de cavalo são mais abundantes (23 para boi e 49 para cavalo), o que se possa justificar, talvez, justamente, pela importância que este animal tem no meio social do gaúcho. Isso se torna mais evidente quando se evoca o mito do "centauro pampeano", presente na cultura gaúcha, que atualmente recupera a união do homem com o cavalo não como um ser monstruoso, mas como um ente sobrenatural, dotado de poderes específicos, de modo que o cavaleiro (gaúcho que anda a cavalo) simboliza o centauro. O centauro pampeano constitui-se dos dois seres, homem e cavalo, que unidos constituem um centauro na sua forma simbológica e não fisiológica (Petri, 2004). Observe-se a definição de centauro no dicionário de Nunes: "denominação dada, no Rio Grande do Sul, aos gaúchos que, nas revoluções, peleavam a cavalo.// Hábil cavaleiro". A essa definição segue-se uma passagem de O cavalo e o gaúcho, de Roque Calage, que explicita o mito em questão:

Por isso, amalgamados, esculpidos como num bloco único, o cavalo e o homem, que o tem preso ao tenteio das rédeas, reatam na coxilha, na mais surpreendente das realidades, a existência mitológica dos Centauros.

O boi, animal que embasa a fundação do próprio termo gaúcho cedeu lugar ao cavalo, em

uma relação de união em que um define e é definido pelo outro através do mito do centauro. Pode-se dizer que tal mito transforma o próprio gaúcho numa figura mitológica, de modo que o sujeito produz o mito e se reproduz nele. Ao levar em conta que a criação do mito se dá como resposta à necessidade de sobrevivência de um grupo social numa determinada época e num determinado espaço, é possível evocar a etimologia do termo centauro, segundo Mestica (1993), em kéntauri, aquele que mata touros, ou em Spalding (1965), picadores de cavalo e matadores de touros, e, assim, relacionar a etimologia com a formação histórica do Rio Grande do Sul. Observe-se para isso o seguinte trecho já mencionado do dicionário de Nunes: "o Rio Grande do Sul nasceu e se formou à custa do gado". O centauro seria um ser que caça e abate o gado para sua própria subsistência.

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Sociedade e literatura: o boi em Contos Gauchescos

Considerando o encontro que há entre mito e literatura e que João Simões Lopes Neto ocupa um lugar de fundação do gaúcho mitológico, torna-se possível relacionar sua obra Contos Gauchescos, que teve sua primeira edição em 1912, e o estudo em questão, a fim de mostrar a figura mitológica do gaúcho em sua relação com os animais via literatura. Um dos contos desse livro, O Boi Velho, reflete a postura do gaúcho em relação ao boi, com a ressalva de que as relações entre mundo social e mundo ficcional são produtoras de "efeitos de real" no discurso literário, de modo que a representação das formas de subjetivação "revelam traços significativos da constituição identitária do gaúcho, não como um reflexo da realidade empírica, mas como um modo possível de se olhar para o mundo social e de se ouvir os "rumores" que ele produz" (Petri, 2004, p. 252).

Observem-se as sequências discursivas a seguir retiradas do conto O Boi Velho:

Já vê... o banheiro não era longe, podia-se bem ir lá de a pé mas a família ia sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras-donas e tocados com uma rama por qualquer das crianças. Pois veja vancê... Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e gente miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão. Então, um notou a magreza do boi... achou que era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia um prejuízo certo, no couro perdido. ...os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá para mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guajubis!... -Veja vancê, que desgraçados; tão ricos... e por um mixe couro de boi velho!... Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem!

O conto narra a história de um boi que após ter servido à família durante anos, quando

velho, é morto pelo dono que não quer ter o prejuízo econômico de perder o couro do animal, única parte que ainda teria valor comerciável. Após a narração da história do conto, têm-se as duas orações finais que são trazidas na voz do narrador e que expressam um juízo de valor negativo em relação ao homem: "que desgraçados... é mesmo bicho mau, o homem!". Apesar de tal juízo de valor, a atitude do dono do boi é justificada e apoia-se no mito, na figura mitológica do gaúcho que em sua história sempre se utilizou do gado para sobreviver, vendo-o somente como um objeto que serve para se chegar a determinado fim, no caso, econômico. Esse ente mitológico, o gaúcho, que aparece através da figura do centauro representaria o conflito do homem com seus próprios instintos animais, colocando em voga as contradições entre o animal e o humano. O próprio narrador designa o homem como bicho mau, instaurando um conflito entre a natureza humana, que deveria ser constituída de benevolência, piedade e indulgência, e a natureza animal, de modo que um animal, por ser irracional, não pode ser bom ou mau, justamente por agir instintivamente. Há assim, na oração "é mesmo bicho mau, o homem!", uma transferência de sentidos que confere características humanas ao animal (a maldade) e confere características do animal ao homem (o instinto), caracterizando o misto de animal e humano que o centauro carrega. É necessário levar em conta que o mito revela modelos de uma sociedade, sendo que sua presença não garante bondade ou maldade, moralidade ou imoralidade (Eliade, 1972), como no conto em questão, em que, segundo o julgamento do narrador, depreende-se uma atitude que é considerada má. Porém, o mito assegura a não imoralidade do ato, já que esses seriam

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costumes aceitos segundo preceitos estabelecidos por determinado grupo social, em que a utilização de um animal como o boi objetivando fins econômicos é normal.

Considerações finais

O dicionário, se considerado como um objeto discursivo inserido em um tempo e espaço

determinados, pode ser utilizado a fim de evidenciar os efeitos das práticas sócio-históricas que subjazem às formulações dos verbetes nele contidos. Ao mesmo tempo em que as práticas em questão refletem no dicionário, este atua refletindo e refratando as relações de sentido que se estabelecem na sociedade.

Tendo isso em vista, as relações entre a figura do gaúcho e os animais que o circundam, como o

boi e o cavalo, podem ser amplamente visualizadas pelo processo dicionarístico. Primeiramente temos o boi com sua importância evidenciada pela própria definição do termo gaúcho. Após, aparece o cavalo, mitificado através do centauro pampeano e que acaba se sobressaindo e assumindo um papel fundamental para a constituição do gaúcho, o que é tido quando analisamos a predominância de verbetes para designá-lo quando comparado ao boi, por exemplo. Assim, uma memória discursiva mostra que o cavalo sempre permaneceu junto do gaúcho, auxiliando-o na realização de suas tarefas, inclusive na apreensão do gado, e constituindo uma parte mesmo do que podemos denominar imagem do gaúcho. Já o boi sempre representou um meio de crescimento econômico apenas, um artefato para alimentação, o que pode ser notado também através da literatura, como no conto O boi velho, em que após cumprir um fim utilitário, é descartado pelo gaúcho. A partir disso, é possível afirmar que as relações entre memória e atualidade de um grupo social são representadas tanto via o discurso dicionarístico quanto via o discurso literário. Ambos trazem à tona um intrincado processo em que sociedade, história e língua são imprescindíveis para a compreensão da constituição e instituição de sentidos. Referências bibliográficas ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975. FIGUEIREDO, C. Nôvo Dicionário da Língua Portuguêsa. Lisboa: Livraria Editôra Tavares Cardoso & Irmão, 1899. FOUCAULT, M. A microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. LOPES NETO, J. S. Contos Gauchescos. Nova Edição. Porto Alegre; Martins Livreiro, 1996. MESTICA, G. S. Diccionario de Mitología Universal. Trad. de Marie-Pierre Bouyssou e Marco Virgilio García Quintela. Madrid: Akal, 1993. NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas: Pontes. São Paulo: Fapesp; São José do rio Preto: Faperp, 2006. NUNES, R. C.; NUNES, Z. C. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. 3 ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8ª ed, São Paulo: Pontes, 2009. ORLANDI, E. P. (Org.) Discurso fundador. São Paulo: Pontes, 1993. ORLANDI, E. P. Lexicografia discursiva. In: ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento lingüístico. São Paulo: Cortez, 2002, p. 101–119. PETRI, Verli. Imaginário sobre o gaúcho no discurso literário: da representação do mito em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, à desmistificação em Porteira Fechada, de Cyro Martins. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2004. PETRI, V. Reflexões acerca do funcionamento das noções de língua e de sujeito no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Línguas e instrumentos lingüísticos, nº 23/24, p.25-36, 2009. PETRI, V. F. A produção de efeitos de sentidos nas relações entre língua e sujeito: um estudo discursivo da dicionarização do ―gaúcho‖. Letras, Santa Maria, v. 18, n. 2, p. 227–243, jul./dez. 2008.

Enviado – 29/08/2011 Avaliado – 15/10/2011 .

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RESENHA RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010

Márcia Moreira Pereira Pós-graduação lato sensu em Tradução: Inglês-Português

Universidade Nove de Julho

Em Como corrigir redações na escola, a autora trata de aspectos relacionados – como o título sugere – à correção de redações e temas afins. Contudo, o título do livro poderia contar com uma interrogação, afinal uma das tarefas mais intrigantes na prática da escrita em sala de aula é a correção de redações. Como fazer? Como abordar de forma eficaz os erros e os acertos dos alunos, já que a redação implica discutir habilidades importantes para desenvolver a escrita?

Eliana Ruiz procura responder a essas questões nesta obra que resultou de sua dissertação de

mestrado. Por meio de exemplos práticos, a autora mostra caminhos considerados certos ou errados nessa difícil missão: corrigir redações de forma que o aluno se interesse pela escrita e possa desenvolvê-la.

Com um grupo de professores e seus alunos, a autora buscou relacionar alguns tipos de

correções e procurou entendê-las, utilizando sua experiência como docente, procurando fazer uma diferenciação entre redação e produção de texto e ressaltando a importância da correção pelo professor, que desempenha o papel de leitor, na medida em que o aluno desempenha o de escritor: ―correção é, pois, o texto que o professor faz por escrito no (e de modo sobreposto ao) texto do aluno, para falar desse mesmo texto‖ (p. 19). Não poderia faltar, é claro, a relevância da leitura na produção das redações: ―falar em problema de redação significa falar, necessariamente, em problema de leitura‖ (p. 20).

Mas para que serve a correção? Será que o aluno compreenderá aqueles rabiscos de caneta

vermelha passeando sobre seu texto? Mais uma vez a autora entra em cena: ―o trabalho de correção tem o objetivo de chamar a atenção do aluno para os problemas do texto. A tarefa de corrigir é, assim, uma espécie de ‗caça erros‘, já que o professor, quando intervém por escrito, em geral dirige a sua atenção para o que o texto tem de ‗ruim‘, e não de ‗bom‘‖ (p.33). E completa: ―por essa razão, pode-se sem sombra de dúvidas dizer que a leitura feita pelo professor, via correção, não é a mesma que a leitura realizada por um leitor comum‖ (p. 33).

O livro sugere outros questionamentos possíveis nessa complexa tarefa de corrigir redações: o

que significam aqueles rabiscos nas redações de nossos alunos? Seriam somente rabiscos? Segundo a autora, a forma em que circulamos, riscamos, colorimos as redações são de grande importância para a compreensão do aluno, pois, por meio delas, ele pode verificar onde e como errou e, principalmente, como consertar, como aprender e como desenvolver a escrita de forma clara e precisa, tornando-se, assim, um verdadeiro ―escritor‖.

Baseando-se na obra de Maria Teresa Serafini (Como Escrever Textos), a autora classifica as

correções em três tipos: a indicativa, a resolutiva e a classificatória. A primeira, indicativa, consiste, segundo suas palavras, em ―marcar junto à margem as palavras, as frases e os períodos inteiros que apresentam erros ou são pouco claros. Nas correções desse tipo, o professor freqüentemente se limita à indicação do erro e altera muito pouco; há somente correções ocasionais, geralmente limitadas a erros localizados, como os ortográficos e lexicais‖ (p. 36). A segunda, resolutiva, consiste em ―corrigir todos os erros, reescrevendo palavras, frases e períodos inteiros. O professor realiza uma delicada operação que requer tempo e empenho, isto é, procura separar tudo o que no texto é aceitável e interpretar as intenções do aluno sobre trechos que exigem uma correção; reescreve depois tais partes fornecendo um texto correto‖ (p. 41). Finalmente, a terceira, classificatória, consiste na ―identificação não ambígua dos erros através de

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uma classificação. Em alguns desses casos, o próprio professor sugere modificações, mas é mais comum que ele proponha ao aluno que corrija sozinho seu erro‖ (p.45). A autora ainda elenca outro tipo de correção: a textual interativa, que seriam os chamados ―bilhetes‖, aqueles que escrevemos ao nosso aluno no final de sua redação: ―quando o professor se dá conta de que, em função de uma serie de fatores (...) não basta interferir resolutiva, classificatória ou indicativamente (...), ele parte para a produção de um bilhete‖ (p. 138).

Um aspecto das correções ressaltado pela autora é a importância da clareza por parte do

professor na hora da correção, que deve apontar os caminhos à revisão do texto de forma clara: ―o aluno pode ou não alterar seu texto, mas, se não o fizer, por certo, será por dificuldade na execução da tarefa, ou por dificuldade na compreensão da própria correção realizada pelo professor. (p. 66).

Enfim, todas essas questões e muitas outras, como a condição do professor no meio aluno-

redação-correção-escola são abordados neste livro que, por isso mesmo, torna-se um instrumento necessário tanto aos professores quanto aos pesquisadores do controverso tema das redações e suas correções.

Enviado – 30/08/2011 Avaliado – 15/10/2011