Zanetic Física e Cultura 2005

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  2 1 F Í S I C A  / A R T I G O S FÍSICA E CUL TURA João Zanetic Q uando se fala em cultura, raramente a física compa- rece na argumentação. Cultura é quase sempre e v o - caç ão de ob ra literária, sinfoni a ou pi ntura ; cultu ra erudita, enfim. Tal cultura, internacional ou nacio- nal, traz à mente um quadro de Picasso ou de Ta r- sila, uma sinfonia de Be e t h oven ou de Villa Lobos, um romance de Dostoiévski ou de Machado de Assis, enquanto que a cultura popu- lar faz pen sar em cap oeir a, num samba de Noel ou num tan go de Gardel. Dificilmente, porém, cultu ra se liga ao teorema de Godel ou às equações de Maxwell! Sugerindo abordagens para modificar essa situação, este texto exa- mina o tema “Física e Cultura” na escola, no contexto social e, prin - cipalmente, na literatura, vinculando-o à figura de Alber t Einstein (1879-1955) no centenário de seu annus mirabilis . FÍSICA E CULTURA NA ESCOLA Um cidadão contem- porâneo é ensinado que a física é esotérica, que nada tem a ver com a vida atual e que não faz parte da cul- tura. Com exceção de experiência s isoladas que pro- fessores levam para suas salas de aula, muitas vezes decorrentes da pesquisa em ensino de física desen- volvida no país, no geral a física é mal ensinada nas escolas. O ensino de física dominante se restringe à memori zação de fórmula s aplic adas na soluç ão de exe r cios típicos de exames ve s t i b u l a r e s. Par a mudar esse quadro o ensino de física não pode pres- cindir, além de um número mínimo de aulas, da conceituação teó- rica, da experimentação, da história da física, da filosofia da ciência e de sua ligação com a sociedade e com outras áreas da cultura. Isso f a v o rec eri a a cons truç ão de uma educação prob lemati zadora, crí- tica, ativa, engajada na luta pela transformação social. Um fat or determinante no encaminhame nto de um jovem para o encantamento com o conhecimento, para o estabelecimento de um diálogo inteligente com o mundo, para a problematização cons- ciente de temas e saberes, é a vivência de um ambiente escolar e cul- tural rico e estimulador, que possibilite o desabrochar da curiosidade epistemológica . Como ensinava Paulo Freire: “Não é a curiosidade espontânea que viabiliza a tomada de distância epistemol ógica. Essa tarefa cabe à curiosi dade e pistemológ ica – supe rando a cu rios idad e ing ênua, ela s e fa z mais metod ica mente rigorosa. Essa rigorosidade metódica é que faz a passagem do conhe- cimento ao nível do senso comum para o conhecimento científico. Não é o conhecimento científico que é rigoroso. A rigorosidade se acha no método de aproximação do objeto”. (1) No mais im portante documento autobiográfico, escrito por volta de 1946, quando Einstein se apro x i m a v a dos 70 anos, encontramo s e xemplo s de suas curio sidad es epist emológi cas – a agulh a da bús- sola, aos 5 anos, a geometria plana de Euclides, aos 12 anos, e a per- seg uiç ão a um rai o lumin oso, a os 16 anos – que o est imula ram a explorar o mundo do conhecimento e lhe imprimiram na mente a convicção de que “devia haver algo escondido nas profundezas das coisas”. (2) Nessa mesma autobiografia, Einstein apresentava uma crítica à edu- cação, ainda válida para hoje e para o futuro: “(...) como estudantes, éramos obrigados a acumular essas noções em nossas mentes para os exames. Esse tipo de coerção tinha (para mim) um efeito frustrante. (...) Na verdade, é quase um milagre que os métodos modernos de instrução não tenham exterminado com- pletamente a sagrada sede de saber, pois essa planta frágil da curiosi- dade científica necessita , além de estímulo, especialmente de liber- dade; sem ela, fenece e morre. É um grave erro supor que a satisfação de observar e pesquisar pode ser promovida por meio da coerção e da noção de dever.” (3) FÍSICA E CULTURA NO CONTEXTO SOCIAL No período histórico que se seguiu aos ef eitos soc iai s e econôm icosdecorrentes dasgrandes n a vegações, ao contr ário do queocorreu no período feudal que prescindia da ciência, o desen- volvimento da física foi marcante para a nascente burgues ia merc antil. Esse cenário influiu t ambém na forma de trabalho e comunicação entre os cien- ti st as desse período, provocando uma brusc a  mudança na pr áti ca ci entí fic a. Se até a época de Ke pler (1571-1630) e Gali le u (1564 -1642) os cientistas tro c a v am poucas informações entre si, com o advento das sociedades científicas uma ver- dadeira revolução na troca de informações, nas dis- cussões , nos des afi os, alterou profu nda mente o re laci onamento entre os ci entistas. As cnc ias natura is, pa rtic ula rmente a si ca, começaram a se transformar numa verdadeira instituição social, se bem que ainda longe do status que os cientistas iriam atingir a partir do século XIX. Robert Merton (1910-2003) considera determinante a relação entre a físic a e a econom ia na Inglat erra do século XVII. Men ciona qu e alg uns do s nomes mais ilustres da ciê nci a daq uele s écu lo est av a m interessados no “cultivo da teoria e da prática”, entendida esta última como a solução de problemas práticos que se traduziam nas “inova- ções que pudessem melhorar o comércio, a mineralogia e a técnica m i l i t a r ”. E n tre os inúmeros cient ista s d esse perí odo dest acam -se B o yle (1627-1691), Huyghe ns (1629-1695 ) e Ne wton (1642- 1727). Merton destaca os problemas relacionados com os meios de transporte, vitais para a proliferação e o crescimento das empresas do capitalismo nascente. Com o aumento das viagens por mar, a deter- minação precisa da latitude e longitude tornava-se de importância c rucial. A indústria da mineração aplicou o estudo das máquinas simples para a elevação do minério para a superfície e a hidrostática para o bombeamento de água do fundo das minas. A indústria mili- tar depend ia do domínio da mecânica dos projét eis, do estudo da resistência dos materiais e do movimento nos meios resistentes. (4) A INDÚSTRIA MILITAR DEPENDIA DO DOMÍNIO DA MECÂNICA DOS PROJÉTEIS...

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    FSICA E CULTURA

    Joo Zanetic

    Quando se fala em cultura, raramente a fsica compa-rece na argumentao. Cultura quase sempre e vo-cao de obra literria, sinfonia ou pintura; culturaerudita, enfim. Tal cultura, internacional ou nacio-nal, traz mente um quadro de Picasso ou de Ta r-

    sila, uma sinfonia de Be e t h oven ou de Villa Lobos, um romance deDostoivski ou de Machado de Assis, enquanto que a cultura popu-lar faz pensar em capoeira, num samba de Noel ou num tango deGardel. Dificilmente, porm, cultura se liga ao teorema de Godel ous equaes de Maxwell! Sugerindo abordagens para modificar essa situao, este texto exa-mina o tema Fsica e Cultura na escola, no contexto social e, prin-cipalmente, na literatura, vinculando-o figura de Albert Einstein(1879-1955) no centenrio de seu annus mirabilis.

    FSICA E CULTURA NA ESCOLA Um cidado contem-porneo ensinado que a fsica esotrica, que nadatem a ver com a vida atual e que no faz parte da cul-tura. Com exceo de experincias isoladas que pro-fessores levam para suas salas de aula, muitas vezesdecorrentes da pesquisa em ensino de fsica desen-volvida no pas, no geral a fsica mal ensinada nasescolas. O ensino de fsica dominante se restringe memorizao de frmulas aplicadas na soluo dee xe rccios tpicos de exames ve s t i b u l a res. Pa r amudar esse quadro o ensino de fsica no pode pres-cindir, alm de um nmero mnimo de aulas, da conceituao te-rica, da experimentao, da histria da fsica, da filosofia da cinciae de sua ligao com a sociedade e com outras reas da cultura. Issof a vo receria a construo de uma educao problematizadora, cr-tica, ativa, engajada na luta pela transformao social. Um fator determinante no encaminhamento de um jovem para oencantamento com o conhecimento, para o estabelecimento de umdilogo inteligente com o mundo, para a problematizao cons-ciente de temas e saberes, a vivncia de um ambiente escolar e cul-tural rico e estimulador, que possibilite o desabrochar da curiosidadeepistemolgica. Como ensinava Paulo Freire:No a curiosidade espontnea que viabiliza a tomada de distnciaepistemolgica. Essa tarefa cabe curiosidade epistemolgica superando a curiosidade ingnua, ela se faz mais metodicamenterigorosa. Essa rigorosidade metdica que faz a passagem do conhe-cimento ao nvel do senso comum para o conhecimento cientfico.No o conhecimento cientfico que rigoroso. A rigorosidade seacha no mtodo de aproximao do objeto. (1)No mais importante documento autobiogrfico, escrito por volta de1946, quando Einstein se aprox i m a va dos 70 anos, encontramos

    e xemplos de suas curiosidades epistemolgicas a agulha da bs-sola, aos 5 anos, a geometria plana de Euclides, aos 12 anos, e a per-seguio a um raio luminoso, aos 16 anos que o estimularam aexplorar o mundo do conhecimento e lhe imprimiram na mente aconvico de que devia haver algo escondido nas profundezas dascoisas. (2) Nessa mesma autobiografia, Einstein apresentava uma crtica edu-cao, ainda vlida para hoje e para o futuro:(...) como estudantes, ramos obrigados a acumular essas noesem nossas mentes para os exames. Esse tipo de coero tinha (paramim) um efeito frustrante. (...) Na verdade, quase um milagre queos mtodos modernos de instruo no tenham exterminado com-pletamente a sagrada sede de saber, pois essa planta frgil da curiosi-dade cientfica necessita, alm de estmulo, especialmente de liber-dade; sem ela, fenece e morre. um grave erro supor que a satisfaode observar e pesquisar pode ser promovida por meio da coero eda noo de dever. (3)

    FSICA E CULTURA NO CONTEXTO SOCIAL No perodo histrico quese seguiu aos efeitos sociais e econmicos decorrentes das grandes

    n a vegaes, ao contrrio do que ocorreu noperodo feudal que prescindia da cincia, o desen-volvimento da fsica foi marcante para a nascenteburguesia mercantil. Esse cenrio influiu tambmna forma de trabalho e comunicao entre os cien-tistas desse perodo, provocando uma bru s c amudana na prtica cientfica. Se at a poca deKepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642) oscientistas tro c a vam poucas informaes entre si,com o advento das sociedades cientficas uma ver-dadeira revoluo na troca de informaes, nas dis-cusses, nos desafios, alterou profundamente orelacionamento entre os cientistas. As cincias

    naturais, particularmente a fsica, comearam a se transformarnuma verdadeira instituio social, se bem que ainda longe do statusque os cientistas iriam atingir a partir do sculo XIX. Robert Merton (1910-2003) considera determinante a relao entrea fsica e a economia na Inglaterra do sculo XVII. Menciona quealguns dos nomes mais ilustres da cincia daquele sculo estava minteressados no cultivo da teoria e da prtica, entendida esta ltimacomo a soluo de problemas prticos que se traduziam nas inova-es que pudessem melhorar o comrcio, a mineralogia e a tcnicam i l i t a r. En t re os inmeros cientistas desse perodo destacam-seB oyle (1627-1691), Huyghens (1629-1695) e Newton (1642-1727). Merton destaca os problemas relacionados com os meios detransporte, vitais para a proliferao e o crescimento das empresas docapitalismo nascente. Com o aumento das viagens por mar, a deter-minao precisa da latitude e longitude tornava-se de importnciac rucial. A indstria da minerao aplicou o estudo das mquinassimples para a elevao do minrio para a superfcie e a hidrostticapara o bombeamento de gua do fundo das minas. A indstria mili-tar dependia do domnio da mecnica dos projteis, do estudo daresistncia dos materiais e do movimento nos meios resistentes. (4)

    A INDSTRIAMILITAR

    DEPENDIA DODOMNIO DA

    MECNICA DOSPROJTEIS...

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    Paralelos semelhantes so encontrados ao longo da Re vo l u oIndustrial dos sculos XVIII e XIX, sem esquecer o incrvel papelque a fsica desempenhou nas transformaes ao longo do sculoXX. Tudo isso levou Merton a afirmar o seguinte: fcil constatar que a cincia uma fora dinmica de mudanasocial, embora nem sempre de mudanas previstas ou desejadas. Devez em quando at os fsicos saram dos seus laboratrios para re c o-n h e c e r, com orgulho e surpresa, ou para re p u d i a r, com horror e ve r-gonha, as conseqncias sociais de seu trabalho. A exploso da pri-meira bomba atmica sobre Hi roshima nadamais fez quecomprova ro que todo o mundo sabia. A cincia tem conseqncias sociais. (5)Embora a ligao da cincia com a base econmica e social seja cru-cial para a compreenso do seu papel cultural, no cabe neste artigoaprofundar essa temtica mas to somente problematiz-la, no sen-tido de sua utilizao em um ensino de fsica que seja crtico e ins-trumental conforme mencionado anteriormente. Vale a pena fecharesta seo com mais uma lembrana a Einstein que, em 1948, devidoaos armamentos nucleares, escreveu:Ns cientistas, cujo trgico destino tem sido ajudar a pro d u z i rmtodos de aniquilamento cada vez mais horrveis e eficazes, preci-samos considerar que tambm nosso solene e transcendente deverfazer tudo que pudermos para evitar que essas armas sejam usadas nobrutal propsito para o qual foram inventadas. (6)

    F S I CAE CU LT U RANA LITERAT U RA Um precursor da aprox i m a oe n t refsica e literatura foi o fsico e escritor ingls Charles P. Sn ow(1905-1980) que, h cerca de 40 anos, sugeria que a separaoe n t re as comunidades de cientistas e escritores dificultava a solu-o de diversos problemas que envolviam a humanidade suapoca. Ele salientava que essa separao trazia implicaes de natu-reza tica, epistemolgica e educacional. Embora muitas das pre-missas do seu ensaio precisem ser re a valiadas em funo do desen-volvimento das ltimas quatro dcadas, creio que part es i g n i f i c a t i va de suas idias deve permanecer na agenda de educa-d o res, cientistas e humanistas. Sn ow argumentava que uma apro-ximao entre as duas culturas era essencial para possibilitar umeficaz dilogo inteligente com o mundo. (7)Para estabelecer esse dilogo preciso que o leitor domine de formacompetente a leitura e a escrita, portanto a literatura deve ter umpapel de destaque na formao do cidado contemporneo. Recen-tes avaliaes internacionais do nvel de leitura e escrita situaram oBrasil numa posio bastante lamentvel. (8) A crise de leitura afetatambm os pases desenvolvidos, como exemplifica pesquisa re a l i-zada, em 2002, nos Estados Unidos, pela National Endowment forthe Arts, que concluiu: Pela primeira vez na histria moderna,menos da metade da populao adulta l literatura. (9)Todo professor, independente da disciplina que ensina, professorde leitura e esta pode ser transformada numa atividade interdiscipli-nar envolvendo os professores de fsica, portugus e histria. O his-toriador da cincia David Knight sugere a histria da cincia comoa cola para acoplar as duas culturas. (10) No perodo histrico queantecedeu de alguns sculos a poca de Kepler e Galileu, quando aviso cientfica dominante era baseada na cincia aristotlica, des-

    taca-se o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) com seupoema A divina comdia. O para s o de Dante formado por novecus concntricos girando em torno da Terra imvel no centro dou n i verso, segundo o paradigma aristotlico-ptolomaico. Umextrato do canto XXVII ilustra essa influncia:

    As partes deste cu so to uniformes,que eu no posso dizer qual Beatriz

    escolheu para meu lugar.Mas ela, que via o meu desejo de saber,

    comeou, sorrindo to alegre, que no seu rostoparecia regozijar-se o prprio Deus:

    deste cu comea a natureza do mundo como do seu princpio, fazendo que a Terra seja firme no centro

    do universo e as outras partes em torno se movam. (11)

    A mesma influncia aristotlico-ptolomaica encontramos no poemaOs lusadas, de Cames, escrito na segunda metade do sculo XVI.(12) J na obra do poeta e professor de cincias ingls John Milton(1608-1674) comparece tanto a presena da viso de mundo geo-cntrica aristotlica quanto da heliocntrica copernicana, ainda emdisputa naquela poca. Milton foi influenciado pela cultura italianado Renascimento, tendo contato com Galileu, em 1638, quandoeste esteve preso a mando da In q u i s i o.No seu poema O para s op e rd i d o, publicado em 1667, Milton apresenta sua viso re l i g i o s a ,poltica, social e cientfica do mundo. A interao entre Galileu eMilton pode fornecer uma rica fonte de recursos de contedos cien-tficos, literrios e histricos para uma atividade interdisciplinar naescola. Hugh Henderson destaca que ambos foram atacados, censu-rados e condenados pelos donos do poder: Galileu pelos seguidoresdo papa Urbano VIII e pela Inquisio e Milton pela monarquia epela censura inglesa. Ambos tiveram seus escritos proibidos e foramp resos, Galileu por nove anos e Milton por alguns meses. (13) Ei sum exemplo do poema, extrado do livroVII, onde o anjo Rafael res-ponde a Ado a respeito do movimento dos cus:

    Mas que essas coisas sejam ou no assim; que o Sol, dominando o cu, se erga sobre a Terra, ou que a Terra seerga sobre o Sol; que o Sol comece no oriente o seu cursoardente, ou que a Terra avance do ocidente a sua carreirasilenciosa, com passos inofensivos, e durma no seu eixosuave enquanto caminha num passo igual a ti transporta

    delicadamente, com a atmosfera tranqila (...). (14)

    Vrios escritores e estudiosos da linguagem, da literatura e da semi-tica se preocupam em entender essa impregnao mtua entre fsicae literatura. So significativos os estudos de Edgar Allan Poe (1809-1849), mile Zola (1840-1902) e Umberto Eco, entre outros, quesero mencionados a seguir.Eco, ao analisar o perodo correspondente aos sculos XVI-XVII,caracterizado pelo desenvolvimento da fsica de Kepler e Ga l i l e u ,afirma que (...) a potica do Ba r roco reage a uma nova viso docosmo introduzida pela revoluo copernicana, sugerida quase em

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    termos figurativos pela descoberta da elipticidade das rbitas plane-trias por Kepler descoberta que pe em crise a posio privile-giada do crculo como smbolo de perfeio csmica. Assim como apluriperspectiva da construo barroca se ressente desta concepo no mais geocntrica e, portanto, no mais antropocntrica deum universo ampliado rumo ao infinito (...). (15)Embora Kepler tenha um texto publicado postumamente, em1634, trs dcadas antes de O paraso perd i d o, cabe mencion-loaqui como o precursor da fico cientfica, que influenciaria in-m e ros escritores aps o sculo XVII, e tambm porque incorpo-rou idias cientficas mais avanadas do que aquelas utilizadas porMilton. Assim, Ke p l e r, alm de produzir as importantes contri-buies ao nascimento da fsica clssica, particularmente as leisplanetrias e o papel do Sol no movimento dos planetas, que aju-daram na construo da ousada teoria gravitacional de New t o n ,foi autor de uma novela denominada Sonho ou astronomia da Lu a.Ele foi influenciado nessa iniciativa pelas descobertas de Ga l i l e uatravs da luneta, como tambm por suas prprias idias a re s-peito da gravidade. Ke p l e r, um cientista com veia literria, des-c re ve emS o n h o uma viagem Lua, como podemos perceber poreste bre ve tre c h o :O choque inicial [de acelerao] o pior, pois o viajante atiradopara cima como numa exploso de plvora (...) Deve, portanto, serentorpecido por narcticos, tendo os membros cuidadosamenteprotegidos para no serem arrancados e para que o recuo se distribuapor todas as partes do corpo (...) Quando a primeira parte da viageme s t i ver terminada, ser mais fcil, porque em jornada to longa ocorpo escapa indubitavelmente fora magntica da Terra e penetrana da Lua, de modo que esta vence. (...) visto que tanto a fora mag-ntica da Terra como a da Lua atrai o corpo e o mantm suspenso, oefeito como se nenhuma delas o atrasse. No fim, a sua massa, porsi prpria, se voltar para a Lua. (16)Nessa aproximao entre as duas culturas e na seqncia histricaaqui apresentada, o zologo e escritor Richard Dawkins aborda odescontentamento dos poetas Keats (1795-1821) e Goethe (1749-1832), entre outros, com o desenvolvimento da fsica clssica, par-ticularmente com os trabalhos de Newton. Enquanto Goethe rejei-tava a ptica newtoniana, Keats acusava Newton de ter destrudo apoesia do arco-ris ao t-lo explicado. Eis alguns versos do poemaLamia, escrito por Keats em 1820:

    Havia um formidvel arco-ris no cu de outrora:Vimos a sua trama, a textura; ele agoraConsta do catlogo das coisas vulgares.Filosofia, a asa de um anjo vais cortar,

    Conquistar os mistrios com rgua e trao,Esvaziar a mina de gnomos, o ar do feitio

    Desvendar o arco-ris (...) (17)

    Dawkins atribui parte dessa manifestao polarizao entre as duasculturas, destacando que esses poetas no se dispuseram a entendera mensagem construda pela cincia. Diz que se esses poetas tivessemuma educao cientfica compatvel com a sua forma de dialogar

    com o mundo, suas poesias contemplariam favoravelmente as con-quistas cientficas de sua poca. Pouco posterior ao perodo vivido por esses poetas e caminhandonuma direo contrria deles, como que antecipando a sugesto deDawkins, o escritor francs mile Zola, sob a influncia do pensa-mento do mdico e filsofo Claude Bernard (1813-1878), preten-dia impregnar o romance e o texto teatral com o determinismo posi-tivista da fsica clssica desse perodo. Ele dizia:No somos nem qumicos, nem fsicos, nem fisilogos; somos sim-plesmente romancistas que nos apoiamos nas cincias. (...) o roman-cista experimentador nada mais seno um cientista especial queemprega o instrumento dos outros cientistas, a observao e a an-lise. (...) O artista parte do mesmo ponto que o cientista; ele se colocadiante da natureza, tem uma idia a priori e trabalha segundo estaidia. Ele s se separa do cientista se levar sua idia at o fim, sem veri-ficar a sua exatido pela observao e experincia. (18)Em oposio a essa viso de mundo, ancorada no determinismo cls-sico caracterstico da fsica newtoniana, ainda dominante poca deZola, e numa espcie de anteviso daquilo que ocorreria a partir de1905, com o desenvolvimento da fsica contempornea, principal-mente devido aos trabalhos de Einstein, outros escritores parecemprever o desenvolvimento cientfico que viria. Eco afirma que se aarte reflete a realidade, fato que a reflete com muita antecipao.(19) No final sculo XIX encontramos dois exemplos dessa anteci-pao. O escritor russo F. Dostoivski (1821-1881) expressava, emOs irmos Karamazov, uma idia cientfica que j estava no ar, por-tanto, um quarto de sculo antes de sua formulao por Einstein, asaber, a de que a geometria euclideana no servia mais ao propsitode explicao do mundo fsico. A linha de mundo j habitava oespao-tempo de Dostoivski. J no romance A mquina do tempo,escrito entre 1887 e 1894, o ingls H. G. Wells (1866-1946) refleteo ambiente cultural do advento da geometria no-euclidiana: Sabem, naturalmente, que uma linha matemtica, uma linha deespessura ze ro, no tem existncia real. (...) Tambm um cubo,tendo apenas comprimento, largura e altura, no pode ter existn-cia real. (...) No h dvida continuou o Viajante do tempo que todo corporeal deve estender-se por quatro dimenses: deve ter Comprimento,Largura, Altura e ... Durao. Mas, por uma natural imperfeio dacarne, que logo lhes explicarei, somos inclinados a desprezar essefato. H realmente quatro dimenses, trs das quais so chamadas ostrs planos do Espao, e uma quarta, o Tempo. Existe, no entanto,uma tendncia a estabelecer uma distino irreal entre aquelas trsdimenses e a ltima (...) Realmente isso o que significa a QuartaDimenso, embora algumas pessoas quando falam na quart adimenso no saibam o que esto dizendo. apenas outra maneirade encarar o Tempo. (20)Eco, que entende essa aproximao como uma metfora epistemo-l g i c a, no identifica a imaginao potica com a racionalidadecientfica. Ele separa as duas culturas mas, ao mesmo tempo, sabeque elas se complementam pro d u t i vamente. At Edgar Allan Po e ,no incio do seu poema/ensaio Heureka, onde aborda o mtodo detrabalho seguido por Kepler, as noes gravitacionais de Newton e

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    discute as mais variadas idias sobre os planetas e a galxia, adverte:apresento esta composio como um simples produto artstico ... apenas como um poema que desejo que este trabalho seja julgado.(21) Ou seja, as operaes culturais desses dois campos do conheci-mento literatura e cincia acabam se cruzando e, talvez, apresen-tando uma certa complementaridade de construo sobre a re a l i-dade. Afinal: Os conceitos fsicos so livres criaes da mente humana, nosendo, por mais que paream, determinados unicamente pelomundo externo. (22)

    Joo Za n e t i c professor doutor do De p a rtamento de Fsica Experimental do Instituto de Fsicada USP.Atua no Pro g rama dePs-Graduao In t e runidadesdeEnsino de Cincias, do qual faze mp a rte os institutos de Fsica e Qumica e a Faculdade de Educao da Un i versidade de So Pa u l o.

    NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1. Freire, P. sombra desta mangueira. So Paulo, Editora Olho dgua,

    2 edio, p. 78. 1995.

    2. Einstein, A. Notas autobiogrficas. Rio de Janeiro, Editora Nova Fron-

    teira, pp. 18, 19, 55. 1982. Esse texto altamente recomendvel para

    t ravar co nta to com o dese nvo l v i m e nto inte l e c tual de Einstein, se u

    c redo episte m o l g i co, suas crticas educa o, e sua viso da

    fsica.

    3. Einstein, A. Notas autobiogrficas. Rio de Janeiro, Editora Nova Fron-

    teira, pp. 25/26. 1982.

    4. Merton, R.K. Sociologia, teoria e estrutura. So Paulo, Editora Mestre

    Jou, pp. 711/718. 1970.

    5. Merton, R.K. Sociologia, teoria e estrutura. So Paulo, Editora Mestre

    Jou, p. 631. 1970.

    6. Calaprice, A. (ed.). Assim falou Einstein. Rio de Janeiro, Editora Civili-

    zao Brasileira, 1998, pp. 140/141.

    7. S n ow, C. P. As duas cu l tu ra s. So Pa u l o, Ed i to ra da Unive rsidade de

    So Paulo. 1997. (Edio original, 1959).

    8. E nt re essas ava l i a es, desta ca - se o estud o PISA (P rog ramme fo r

    I nternational Stu d e nt Assess m e nt), da Org a n i zao pa ra Co o p e ra-

    o e Dese nvo l v i m e nto Eco n m i co, que est disponvel no site

    www.pisa.oecd.org.

    9. Gioia, D. Prefcio. In: Research Division Report # 46. Washington:

    National Endow m e nt for the Arts, june 20 0 4, p. vii. Esse re l a t r i o

    pode ser obtido em: http://www.nea.gov/pub/ReadingAtRisk.pdf.

    10. K n i g ht, D. Wo rking in the glare of two cu l tu res. Inte rd i sc i p l i n a r y

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    11. Alighieri, D. A divina co m d i a. Lisboa, Liv. S da Costa Ed i t., pp.

    287/288. 1958.

    12. Te i xe i ra, I. Lus de Ca m es, Os lusadas. So Pa u l o, Ateli Ed i to r i a l .

    1 9 9 9. Livro com ex p l i ca es das fo ntes e refe r n c i a s, inclusive as

    cientficas, que Cames utilizou para construir seu poema.

    13. Henderson, H. A dialogue in paradise: John Miltons visist with Gali-

    leo. Physics Teacher, 39, 179-183. 2001.

    14. Milton, J. O paraso perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, p.167.

    1 5. Eco,U.O b raaberta.SoPa u l o,Ed i to raPe rs p e c t i va,8edio,p. 157. 1 9 91 .

    16. C i tado por Arthur Ko est l e r, Os so n m b u l os. So Pa u l o, Ibra sa, pg.

    289. (Edio original, 1959). Edio de 1991, com um novo ttulo em

    portugus: O homem e o universo.

    17. C i tado por Richard Daw k i n s. D esve ndando o arco - r i s. So Pa u l o,

    Companhia das Letras, p. 64. 2000.

    18. Zola, E. O Ro m a n ce ex p e r i m e ntal e o natu ralismo no tea t ro. So

    Paulo, Editora Perspectiva, pp. 61/62. 1982.

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