Z UMBI A PARE CEU N A C O O V ER M E L H A P ORT … · Celene Fonseca, Suely Santos redação...

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N OO ER EL A A C R A V M H UMBI A ARECEU Z P O R T O S E G U R , S N T A R U C B Á L I A A R I L D E 2 0 0 P O A C Z A R , B 0

Transcript of Z UMBI A PARE CEU N A C O O V ER M E L H A P ORT … · Celene Fonseca, Suely Santos redação...

N O O ER EL AA C R A V M HUMBI A ARECEU Z P

ORTO SEGUR , S NTA RU C B ÁLIA A RIL DE 2 00P O A C Z A R , B 0

Patrocínio

��������CEPAIA - Centro de Estudos dos Povos

Afro-Índio-Americanos/UNEB

Associação de PesquisadoresNegros da Bahia

ProPonEntE

aPoio

coordenação Geral do Projeto Celene Fonseca, Suely Santos

redação Final Celene Fonseca – [email protected]

Pesquisa iconográfica Suely Santos, Celene Fonseca, Jorge Eumawilyê

revisãoMaria Nazaré Mota de Lima

Design (Projeto Gráfico, capa e Diagramação)Jonaire Mendonça | Leo Barros

imagens da capaAgressão a Gildo Terena - Crédito: Ag. A TARDE

Agressão a Edmilton Cerqueira - Crédito: AP

impressãoGráfica Santa Bárbara

tiragem5.000 exemplares

ProponenteMovimento Negro Unificado - [email protected]

PatrocínioPetrobras – Petróleo Brasileiro S.A

CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviços

apoioCEPAIA - Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos/UNEB

APNB – Associação de Pesquisadores Negros da BahiaCooperativa Mista de Produtos em Corte e Costura, Instrumentos Musicais e Serigrafia do Bairro da Paz (Salvador-

BA)

agradecimentosA todas as pessoas e entidades que se empenharam em seus comitês estaduais e nacional para que o Movimento Brasil Outros 500 tivesse repercussão e sucesso. E, também a: Adson Rodrigues, deputado federal Luiz Alberto, Edenice Santana, Edmilton Cerqueira, Edson Miranda, Eduardo Almeida, Egon Heck, Helena Argolo, Ivonei

Pires, Jacira Mendes, José Renato da Silva (mestre Pedra), Lúcia Barbosa, Luciana Mota, Raimundo Bujão, Regina Lúcia, Sumário Santana e Wilson Santos.

Salvador - Ba2010

ZUMBI APARECEUNA COROA VERMELHA

PORTO SEGURO, SANTA CRUZ CABRÁLIA, ABRIL DE 2000

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ZUMBI APARECEUNA COROA VERMELHA

PORTO SEGURO, SANTA CRUZ CABRÁLIA, ABRIL DE 2000

ZUMB APARECEU NA C ROA ERMELHAI O V

SU ÁRIOM

introDUÇÃo

i. BataLHa DoS 500 anoS• Coroa Vermelha, entre os rios Jardim e Mutari• A caminho de Porto Seguro• Eunápolis: protesto e decepção na estrada ii. MarcHa nacionaL BraSiL oUtroS 500:todos convergem para Porto Seguro • Marcha Indígena• Marcha Negra e Popular• Marcha dos Sem Terra

iii. LocaiS DE concEntraÇÃo/acaMPaMEntoS• Conferência Indígena • Quilombo Palmares

iV. ZUMBi aParEcEU na coroa VErMELHa V. articULaÇÃo Do MoViMEnto BraSiL oUtroS 500• Articulação continental• Crítica ao MADE• Articulação nacional Vi. UMa noVa HiStÓria, oS oUtroS 500

anEXo: ManiFESto – 500 anoS DE rESiStência rEFErênciaS

O Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas.Marçal de Souza Tupã’i, líder guarani

(Manaus, 10/07/1980, discurso durante visita do papa João Paulo II)

A História do Brasil começa com um descobrimento que não houve.Centro de Cultura Negra (Maranhão, 13/05/1999, cartilha).

introDUÇÃo

Há dez anos, em 22 de abril do ano 2000, Zumbi veio se juntar aos índios para fazer face à festa dos “500 Anos do Descobrimento do Brasil”. Os povos indígenas, sozinhos, dificilmente conseguiriam frear o assédio do governo no sentido de compor o quadro da (falsa) har-monia entre portugueses, brasileiros e índios. Foi preciso que o mo-vimento negro, aliado a movimentos populares, fizesse sua aparição. Para isto, foi criado um espaço denominado “Quilombo Palmares” nas imediações de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália. Desse quilombo sairia a maioria dos manifestantes rechaçados pela polícia em três diferentes momentos, em um mesmo dia, evento que mudou o significado da data.

Boa parte dos manifestantes vestia camisas vermelhas com a frase “Quem disse que fomos descobertos? É ruim, hein!” Era uma ma-neira irônica de questionar o evento fundador da história escrita do

camiseta dos outros 500

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Foram várias as fontes utilizadas: impressas, eletrônicas, iconográficas e audiovisuais, principalmente jor-nais da época, documentos do Movimento Outros 500 e algumas revistas; muitas fotografias também. O texto foi escrito por pessoas que estiveram lá, viveram os acontecimentos de dentro, por terem partici-pado da Marcha Negra e Popular e da construção do Quilombo Palmares.

*

o que aconteceu naquele 22 de abril de 2000?

Forças policiais atacaram manifestantes do Movimento Brasil Outros 500 em três ocasiões, evento que, por evocar o embate entre forças contrárias, chamamos de Batalha dos 500 anos

2. Foi assim que vários

jornais e revistas da época definiram o acontecimento: “Batalha na festa dos 500” foi a manchete do jornal o Globo (23/04/2000); “A batalha não-terminada pela democracia racial”, a da revista inglesa The Economist (citada pela Folha de São Paulo em 25/04/2000). Diversos outros jornais e revistas falaram em “guerra”, em “violência” e em “conflito”. A idéia de batalha nos remete também a todo o questionamento político/ideológico e às ações que deram suporte e antecederam o choque físico propriamente dito.

Os policiais usaram bombas de efeito moral, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e cassetetes. Os manifestantes estavam desarmados. A repercussão no Brasil e no mundo foi enorme; tanto na mídia impressa, quanto na eletrônica e na televisiva. Logo depois do primeiro ataque, imagens já corriam o mundo via internet. A surpresa foi grande: no suposto aniversário do país, parte dos “aniversariantes” foi agredida! De tão inusitada, a situação deixou a maioria do povo chocada. A imagem do Brasil foi arranhada.

As imagens da violência se sobrepuseram às das cerimônias oficiais, e a festa terminou em vexame, houve até mesmo vaias. Os eventos governamentais, que ainda teimaram em ser realizados, perderam o espe-

Brasil. Em outras palavras, os índios não poderiam ser confundidos com as matas, os animais ou aci-dentes geográficos. Enfim, reafirmava-se a humani-dade dos índios que o conceito do “descobrimento” negava. A terra não era virgem de seres humanos e de história, era o que Zumbi falava pela voz do movimento negro e popular.

De um só fôlego, tirava-se da garganta uma dor de 500 anos! A dor dos que tinham sido ofendidos em sua dignidade, considerados sub-humanos, seres in-feriores. A dor dos que tinham sido invadidos. Essas dores se juntaram, eram agora uma só: a dor dos “vencidos”1 de ontem, que são os excluídos de hoje.

*O objetivo desta publicação é trazer à memória os acontecimentos de abril de 2000 explicando, em linhas gerais, a atuação dos três segmentos do Movi-mento Brasil Outros 500: Resistência Indígena, Ne-gra e Popular – especialmente o papel do Quilombo Palmares - e o significado do evento para a história do Brasil. A finalidade é estimular a reflexão sobre os aspectos simbólicos da luta contra o racismo no Brasil. Em outras palavras, é estimular as pessoas a mudarem de mentalidade: do eurocentrismo, para uma visão pluralista, mais completa e mais racional sobre o Brasil. É importante que esta história seja lida e recontada em todos os cantos desse imenso território, pois ela diz respeito às principais concep-ções sobre a brasilidade, razão de ser do país.

2 Mesmo entendendo que o Brasil não tem apenas 500 anos, optamos pela referência a este número por considerarmos que a “batalha” foi também uma luta pela releitura dos 500 anos de colonização do país.

repercussão internacional “ “navegar não é mais preciso.O fiasco da nau capitânia indica que velas, cordas e âncoras não são o nosso forte. A maioria de nós já estava na terra ou viajava nos porões.Panfleto do Movimento Brasil Outros 500, fevereiro 2001

1 Vencidos nas guerras de conquista do território e não no sentido definitivo. Os índios não se consideram vencidos, os negros tampouco. “Reduzidos sim, Vencidos nunca!” era a faixa que encabeçava a segunda manifestação ocorrida naquele dia.

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rado brilho e o entusiasmo. Assim aconteceu com os eventos realizados em Porto Seguro: Espetáculo Cênico com Show Pirotécnico “O dia em que o Brasil nasceu”; a parada naval que ia refazer o percurso da esquadra de Cabral, desde o ponto do avistamento da terra até a Baía de Cabrália; a inauguração do Centro Cultural e de Eventos do Descobrimento (Centro de Convenções) etc. O prosaico plantio de uma muda de pau brasil pelos presidentes brasileiro e português foi a imagem que mais se destacou. Em Salvador, no dia seguinte, o Desfile Brasil 500 Anos perdeu a graça. Para completar o fiasco, por problemas técnicos, até mesmo a réplica da nau capitânia não navegou.

A extensão desse retumbante fracasso ainda vai ser avaliada pelos historiadores, mas todos sabem que o núme-ro de eventos associados à marca “500 anos” era (e tinha sido) gigantesco, beirava a intoxicação. O mais aguardado era a chegada da Regata Internacional Oceânica (também chamada “Frota do Azeite”, porque patrocinada pela Casa do Azeite de Portugal) com mais de 70 barcos, entre os quais o navio-escola Sagres, o veleiro Cisne Branco, uma réplica de caravela do século XVI denominada “Esperança”; também a famosa réplica da nau capitânia da esquadra de Cabral, que custou 3,5 a 4,0 milhões de reais. Autoridades patetica-mente vestidas à moda de 1500 fariam parte da tripulação. O ponto alto dos festejos seria realizado em Coroa Vermelha e valia como encenação da chegada dos portugueses, ato de “nascimento do país”. A regata/parada naval aconteceu em parte, mas todos os eventos de Coroa Vermelha foram cancelados, inclusive a inauguração de diversas obras. Para além do fato de a nau capitânia não ter navegado, a Coroa Vermelha tinha sido palco de uma batalha, o que fez com que o Presidente da República desistisse de comparecer ao local.

Por que tudo isto aconteceu?

Não conhecemos ao certo a razão imediata da decisão governamental de atacar os manifestantes, mas certa-mente não foi apenas para garantir as exigências do aparato de segurança da Presidência da República e de seu convidado, o presidente de Portugal, como se alardeou. A motivação deve ter variado ligeiramente em relação a cada ataque, mas uma coisa é certa: a expulsão dos manifestantes, se fosse totalmente concretizada, abriria espaço para os eventos de Coroa Vermelha, ou seja, o caminho estaria aberto para a demonstração de um Brasil supostamente coeso e unânime quanto ao “início” de sua história. Essa era uma tradição dos suces-sivos governos e a força do hábito deve ter funcionado também. Trocando em miúdos: o que estava posto eram duas visões antagônicas de mundo. Na verdade, a batalha representa o confronto entre essas duas visões materializadas no espaço:

. De um lado, o governo, setores da mídia e empresários querendo celebrar os “500 Anos do Desco-brimento do Brasil”. Em foco: o “herói civilizador” português. Tudo teria começado em 1500. Trata-se da visão de um Brasil como reflexo e apêndice da Europa; ou seja, de um país-menino de apenas 500 anos. É uma visão “de fora”, como se os brasileiros, europeus fossem (eurocentrismo). No corpo a corpo propriamente dito, eles tinham à disposição forças policiais para fazerem o serviço no lugar deles. . De outro, movimentos étnicos e sociais reunidos no Movimento Brasil Outros 500: Resistência Indígena, Negra e Popular querendo reafirmar a resistência ao invasor. Em foco: os “500 Anos de Mas-sacre” - uma nova história, Outros 500. 1500 simbolizava o início da colonização e suas consequências para a maioria dos brasileiros: desenraizamento, escravidão, genocídio, etnocídio, racismo, exclusão. Trata-se da visão de um Brasil milenar, com profundidade histórica (40 mil anos); ou seja, um Brasil que incorpora seus primeiros habitantes, parentes e antepassados de parte significativa – senão da maioria – do povo brasileiro. É a idéia de um Brasil centrado em seu próprio eixo e inserido no contexto global da história humana.

Apesar da radicalidade da divergência, não se esperava que ela terminasse em guerra aberta, porque o contexto era de redemocratização do país - não se esperava uma festa sem povo. Além disso, o presidente era sociólogo e a primeira-dama era antropóloga, ou seja, pessoas bastante capacitadas a entender os movimentos étnicos e sociais. E também não se tratava de uma data qualquer, ela dizia respeito a todos os brasileiros e não apenas a um segmento da sociedade. O contexto de globalização das informações também desautorizava a insolente exclusão da maioria da população; o povo estava ficando cada vez mais bem informado, apesar de o eurocentrismo continuar a direcionar a ação governamental, e das elites, fazendo com que o Brasil permanecesse como uma espécie de colônia de exploração - um negócio rentável para poucos.

“ “Foi a maior demarcação de espaço com insurgência, no novo milênio, e de importância singular para o Movimento Negro Brasileiro. À história, lançamos e enviamos o pen-samento do verdadeiro movimento popular do Brasil. Jorge (Eumawilyê) S. de Jesus - Pérola Negra Afro Centro - Instituto Denegrir Brasil - Negritude Socialista Brasileira

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UM PaíS DiViDiDo

Em 1500 vivam no Brasil cerca de 5 a 6 milhões de índios e mais 900 povos indígenas; muitos povos foram extintos; outros viveram na clandestinidade e quando acharam oportunidade res-surgiram – mais de 50 estão neste caso. Na região de Porto Seguro viviam os Tupiniquim3, da grande família dos antigos Tupi da Costa, também conhecidos como Tupinambá. Hoje aí vivem os Pataxó; algumas famílias de origem tupiniquim vivem entre eles (Fonte: CIMI/ 2001 e outros).

Hoje são 734 mil índios (IBGE, 2000), metade deles aldeados, cerca de 230 povos e 180 línguas.

Muitos índios morrem ainda hoje, todos os anos, na luta pela terra; outros são presos e de-monizados como se bandidos fossem. Mais da metade dos territórios indígenas ainda estão por ser regularizados; alguns povos vivem em faixas de terra minúsculas e até em beira de estradas, em situação de extrema penúria.

Os africanos, de diversas etnias, começaram a chegar ao Brasil por volta de 1534. Cerca de 4 milhões foram transportados em porões de navios. Muitos morreram.

O tráfico negreiro classificava os escravos utilizando vários termos como Nagôs, Jejes, Mina, Angolas, Congos e Fulas, os quais se referem mais propriamente à região de origem do que a nações e culturas. Cada um destes termos inclui, portanto, diferentes etnias. Muitas vezes os escravos eram classificados pelo tráfico negreiro de acordo com a língua que falavam ou enten-diam como, por exemplo, Nagôs (língua iorubá) e Haúças (que entendiam a língua hauça).

Hoje, negros e pardos são metade da população (IBGE, PNAD 2005). A maioria vive nas periferias urbanas e favelas. Cerca de 70 % dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza são negros (Henriques, 2001). Pobreza no Brasil tem cor.

Os europeus começaram a chegar ao Brasil a partir de 1500. Às sucessivas vagas de coloniza-dores portugueses (mais de 2.250.000 pessoas, de 1500 a 1991, segundo o IBGE) se seguiu a imigração de italianos, espanhóis e alemães, largamente subsidiada, aos quais vieram se juntar outros povos da Ásia e do Oriente Médio, quase 3 milhões e meio de pessoas. O objetivo das elites era substituir a mão de obra escrava e branquear a população (uma espécie de limpeza étnica).

Hoje, os brancos e os descendentes de imigrantes são quase a metade da população. A maioria controla os principais setores econômicos e espaços de poder e renda. Riqueza no Brasil tem cor.

Mas o governo agiu quase como um autômato. Montou um excessivo esquema de segurança, noticiado por todos os grandes jornais do país nos dias que antecederam a data, e sitiou Porto Seguro, na vã es-perança de intimidar os militantes do Movimento Brasil Outros 500, a quem chamou de baderneiros. E persistiu no seu intuito de homenagear o descobridor/colonizador, quase dois séculos após a Inde-pendência do Brasil - ou seja, insistiu na celebração de uma brasilidade subalterna que, trocando em miúdos, é pura lusitanidade. E isto diante dos descendentes daqueles que sofreram as consequências da colonização. O governo esperava contar até mesmo com uma figuração indígena, pois investiu for-temente na cooptação de algumas lideranças, a fim de fazê-las participar das cerimônias. Era como se os assassinos quisessem fazer festa na casa dos parentes do morto. Isto constituía insulto grave e exigia uma resposta à altura.

O Movimento Brasil Outros 500 saiu vitorioso na medida em que conseguiu dizer NÃO à festa gover-namental. Foi uma vitória triste, devido à agressão sofrida e à confirmação de que o Brasil não era uma nação coesa e democrática, e sim um país dividido – um verdadeiro apartheid, mesmo que não inscrito nas leis. O povo era considerado intruso.

Se não fosse a ação do movimento, o país seria totalmente desmoralizado. Até mesmo em Portugal, políticos e intelectuais mostraram-se constrangidos com o colonizado que homenageia o colonizador. Frases pinçadas em jornais portugueses da época dão conta disso. Uma reportagem do jornal O Público (24/04/2000, Lisboa), por exemplo, fala em “aspectos caricatos”, cheios de “clichés”, “uma comemora-ção carregada de referências a um passado colonialista que só não pode ser acusada de ideologicamente retrógrada e de politicamente anacrônica por partir da iniciativa do colonizado.”

como tudo isto aconteceu?

É o que vamos ver nesta publicação. O assunto é apresentado na linha decrescente do tempo: primeiro, o acontecimento de maior impacto, a batalha; depois, as condições imediatamente antecedentes que pos-sibilitaram a ocorrência das manifestações: a Marcha Nacional Brasil Outros 500 e a concentração dos militantes em Coroa Vermelha; em seguida, a articulação do Movimento Brasil Outros 500 e suas prin-cipais atividades; e, por fim, de forma conclusiva, uma análise do simbolismo da batalha para a história do Brasil – o que ela representa.

3 Os antropólogos preferem não grafar no plural os nomes indígenas para não torná-los híbridos, já que a maioria das línguas indígenas não usava forma correspondente ao português.

14 154 Mesmo rio utilizado por Cabral para abastecer as naus da sua esquadra, em 1500.5 Número estimado de pessoas que se encontravam no Quilombo na manhã do dia 22. Trata-se de estimativa feita por jornais e por militantes. Este e outros números mencionados nesta publicação são sempre aproximativos, pois há inconsistências entre as fontes.

i BataLHa DoS 500 anoS

No dia 22 de abril do ano 2000, sábado de Aleluia, em Coroa Vermelha e suas imediações, e também em Eunápolis, policiais atacaram manifestantes do Movimento Brasil Outros 500 que protestavam contra as comemorações colonialistas programadas pelo governo. O choque entre policiais e manifes-tantes aconteceu em três diferentes momentos e repercutiu na mídia como uma batalha.

Foram três batalhas em uma. Elas se articulavam em torno de um objetivo comum – dizer NÃO à festa do governo e celebrar a resistência indígena, negra e popular –, mesmo que para realizá-lo tenha sido necessário proceder à segmentação operacional da Marcha Nacional Brasil Outros 500 e dos locais de concentração dos militantes, como veremos adiante.

Há mais de uma semana a região de Porto Seguro/Santa Cruz Cabrália era controlada por uma força policial de cerca de 6.500 homens: 1.300 do Exército e 5.147 da Polícia Militar da Bahia. Os acessos a cidade de Porto Seguro eram vigiados de maneira tal que até ônibus de passageiros estavam sendo vistoriados, alguns deles retidos; por precaução, alguns militantes se muniram de habeas corpus pre-ventivo antes de empreenderem a viagem. Havia cerca de seis a oito barreiras policiais no trecho da BR-367, que liga Porto Seguro a Eunápolis. Ainda assim, às vésperas da Batalha, a cidade de Porto Seguro fervilhava de gente vinda de todos os cantos do Brasil, algumas do exterior. Vejamos sucintamente o que aconteceu.

coroa Vermelha, entre os rios Jardim e Mutari

Por volta de 8h, Av. Beira Mar (BR-367), entre os rios Jardim e Mutari4, em Coroa Vermelha. O ataque policial se portou contra cerca de 2 mil manifestantes5 saídos do acampamento Quilombo Palmares que se dirigiam, em passeata, para o acampamento da Conferência Indígena. Os militantes portavam faixas e bandeiras e entoavam hi-

cerco e contenção de 141 militantes

nos. O plano, decidido em plenária realizada na véspera, era se juntar aos índios, realizar uma cerimônia em Coroa Vermelha, e seguir para Porto Seguro a fim de celebrar a “Noite da Resistência”.

Calcula-se em 200 o número de policiais envolvidos diretamente no ataque; eram da tropa de choque da Polícia Militar da Bahia. Sem armas, alguns integrantes do movimento anarcopunk se serviram de pedras para revidar. Alguns militantes deram-se as mãos e formaram uma fileira similar à dos polici-ais; estes gritavam “dispersar”, ao que os militantes respondiam “negociar”; quando a distância entre uma fileira e outra era de 10 m, a polícia voltou a atacar. Houve espancamentos, vários feridos, muitas prisões, cerco e contenção de grande número de pessoas (141 militantes), dispersão e fuga do maior contingente em direção ao Centro Cultural Pataxó, praias, bares, restaurantes e até casas de moradores. Cenas de medo, desespero e franca indignação foram registradas; alguns feridos foram atendidos em postos de saúde e outros em hospitais da região.

No local havia poucos repórteres, mas mesmo assim as imagens dessa primeira batalha - cujo ícone é

1ª Passeata, coroa Vermelha abr/2000

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o espancamento de um militante do movimento negro - ganharam rapidamente a internet e, depois, os principais jornais no Brasil e no exterior. Naquele momento, dois militantes do movimento negro foram espancados: Edmilton Cerqueira, então coordenador nacional do Movimento Negro Unificado, foi arrastado pelos cabelos e ficou desaparecido cerca de 16 h; Luciana Mota, integrante do movimento Agente de Pastoral Negra, interveio para defendê-lo, sendo também agredida.

O sentimento de surpresa e impotência estava estampado no rosto dos militantes. A surpresa maior, porém, estava por vir: alguns índios ajudaram a PM a expulsar manifestantes em fuga, alegando defesa do território indígena, o que deixou muita gente perplexa. Mas os sinais dessa colaboração já eram vi-síveis nos dias que antecederam o ataque. Eles tinham sido convencidos a agir assim durante um tenaz processo de cooptação empreendido pelo governo. Era a posse da terra que conferia esse poder aos índios anfitriões. Ora, essa posse só foi garantida porque indigenistas, pessoas e entidades vinculadas ao nascente Movimento Brasil Outros 500 lutaram bravamente, ao lado dos Pataxó, para tornar letra morta a lei que desapropriou essa terra indígena – ver adiante Crítica ao MADE.

Depois dessa primeira batalha houve um período de relativa calma: os feridos recebiam cuidados, par-lamentares da oposição negociavam a libertação dos presos, militantes distribuíam panfletos e faziam a articulação com os índios da Conferência Indígena, a fim de retomar as manifestações, agora reduzidas à marcha para Porto Seguro e à Noite da Resistência no final do percurso, pois a Coroa Vermelha estava sitiada.

a caminho de Porto Seguro

Cerca de meio dia, na confluência dos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, Avenida Beira Mar (BR-367), praia de Mutá, ainda nas imediações de Coroa Vermelha, houve o segundo ataque

policial contra manifestantes do Movimento Brasil Outros 500, que se dirigiam, em marcha ráp-ida, para Porto Seguro (distante 15 km). A manifestação tinha tomado a forma de uma passea-ta, só que agora o colorido era outro, devido aos cocares e out-ros adereços indígenas; o ritmo também era diverso: mais rápi-do e cadenciado; somente os índios portavam faixas, já que as outras tinham sido apreendi-das. Uma maré humana se for-mou atrás do pelotão de van-guarda formado pelos índios; quem olhava para trás não via o final da multidão – talvez hou-

vesse ali cerca de 5 mil pessoas. O ataque só ocorreu quando os manifestantes dispersos na primeira batalha conseguiram se juntar aos índios para cumprir parte do que havia sido acordado. Chovia no momento e a fumaça das bombas cobria o cenário como um nevoeiro.

Desarmados, os manifestantes recuaram; alguns poucos, que ficaram à frente da tropa de choque, pre-tendiam continuar a marcha, mas foram impedidos. A maioria dos índios retornou para o seu acampa-mento, atônitos e indignados. Cenas inacreditáveis foram registradas: Gildo Terena tentando dialogar, sendo agredido e “pisoteado” por policiais da tropa de choque; os Kayapó, inconformados, rasgando suas roupas; guerreiros xavante, revoltados e silenciosos passando ao lado de policiais etc. Muitos negros e populares conseguiram também retornar ao Quilombo e a bares/restaurantes locais; alguns índios, juntamente com negros, populares e autoridades eclesiásticas, se refugiaram em um hotel, onde foram encurralados; aos índios foi permitido retorno à Conferência Indígena, mas os outros manifestantes só puderam sair no final do dia, após uma longa negociação. Ao que parece não houve mais prisões, mas

reduzidos sim, vencidos nunca! índios, negros e populares marcham para Porto Seguro

Fui tomado de um sentimento de impotência, que virou desespero, quando soube que nossos militantes estavam tirando a camisa do “Brasil Outros 500” com medo de serem assassinados.Wilson Santos - à época, membro do Núcleo Cultural Niger Okan e Advogado Coordenador do Disque Racismo Bahia.

“ “

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houve feridos (de 30 a 70 nas duas batalhas); o índio xukuru-kariri José Carlos Araújo Ferreira foi o ferido mais grave, com dois tornozelos e a perna esquerda atingidos por bomba.

Dessa vez, havia muitos repórteres no local (atraídos pela primeira batalha), e as imagens correram o mundo; as que mais sobressaíram foram as da agressão aos índios, especialmente a Gildo Terena.

Eunápolis: protesto e decepção na estrada

Ao longo do dia 22, nas proximidades do entroncamento entre as BRs 367 e 101, em Eunápolis, a 62 km de Porto Seguro, houve conflitos entre policiais militares, de um lado, e, de outro, membros do MST - Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, negros e populares integrantes de entidades que compunham o Movimento Brasil Outros 500 e que foram barrados pela polícia ao se dirigirem para Porto Seguro. Até cidadãos comuns e turistas, cujos ônibus e carros foram também blo-queados na estrada, aderiram, em parte, às manifestações. Na verdade, os conflitos começaram desde o dia 20 e acirraram-se no dia 22.

Devido a essas barreiras policiais, que praticamente trancaram o acesso a Porto Seguro no final do dia 21 e durante quase todo o dia 22, o número de manifestantes se avolumou, chegando a ser estimado entre 7 e 15 mil, incluindo aí 2.500 a 3.000 sem terra; haveria mais de 150 ônibus e 1.000 carros blo-queados. A cidade de Porto Seguro foi isolada do mundo.

A tensão foi grande, sobretudo porque os sem terra, acampados em frente ao prédio da Justiça do Tra-balho, próximo ao já referido entroncamento e à rodoviária (BR-367), tentavam, há dias, retornar para Porto Seguro, cidade que eles haviam deixado logo após o ato de rememoração do Massacre de Eldo-rado do Carajás (dia 17), e foram impedidos de fazê-lo. Para pressionar o governo, os sem terra chega-ram a parar o trânsito da BR-101 durante 20 minutos, no final da tarde do dia 20. Na manhã do dia 21, os sem terra reagiram à presença da tropa de choque da PM; anarcopunks e outros integrantes do Movimento Brasil Outros 500 também participaram da ação; os policiais saíram do local, desarmando o conflito. Os sem terra fizeram planos de retorno a Porto Seguro até a manhã do dia 22, mas o governo não cedeu. Todavia, alguns membros do MST se juntaram aos companheiros do Quilombo Palmares, em Coroa Vermelha, na madrugada do dia 22. Não se sabe ao certo como chegaram lá; talvez através

de vias alternativas ou, aos poucos, usando carros particulares.

O fato é que, nesta parte da cidade de Eunápolis, a movimentação foi constante. Militantes e cidadãos comuns tentaram furar o cerco, mas foram duramente impedidos pela polícia. Algumas pessoas chega-ram a alguns quilômetros de Porto Seguro e se dispuseram a prosseguir a pé, mas foram obrigadas a retornar. A revolta foi geral. O desapontamento também foi grande. O desconforto era quase insupor-tável, pois as pessoas ficaram praticamente restritas a usar o bar de um posto de gasolina próximo ao lo-cal; se não fossem os vendedores ambulantes, que acorreram em grande número, teriam passado fome. O direito de ir e vir, garantido pela Constituição, era assiduamente invocado; o direito de “ver história” ou “fazer história” insuflava as mentes – a indignação tomou conta de todos.

Essas tensões resultaram em conflito aberto por volta das 17h30 do dia 22, durante cerca de 40 minu-tos. O ataque policial ocorreu após manifestação pelas ruas da cidade. A BR 101 foi interditada por meia hora. Em torno de 500 soldados atacaram grande número de manifestantes. O local virou praça de guerra. Não se sabe exatamente o número de prisões e feridos, contudo uma menina negra de 14 anos de idade, Ana Paula Santos da Cruz, foi vítima de parada cardíaca ao chegar correndo em casa, fugindo das bombas lançadas pela PM (A TARDE, 26/04/2000).

“ “O dia 22 de abril será marcado para sempre. Nunca pensei viver tanta violência por parte daqueles que deveriam nos salvar e guardar.

Roberjane Ribeiro – diretora do Centro Afro de Promoção e Defesa da Vida

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ii MarcHa nacionaL BraSiL oUtroS 500: todos convergem para Porto Seguro

Saídos de todas as regiões do país, representantes de três grandes segmentos da sociedade brasileira – ín-dio, negro e popular -, organizados em caravanas, se moveram em direção a Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, no extremo sul da Bahia para cumprir uma agenda de lutas do Movimento Brasil Outros 500. Foi mais por motivo operacional que político, que esses três segmentos realizaram cada um sua própria marcha. A finalidade era única: alcançar o ponto do litoral onde os portugueses chegaram, a área onde simbolicamente começou a invasão, conquista e colonização do país. O local seria usado pelo governo para comemorar os 500 anos da chegada do colonizador e, para fazer o contraponto a essa incongruente homenagem, seria preciso garantir ali a presença de militantes do movimento.

A Marcha Indígena foi a mais organizada e a que teve melhor cobertura do território nacional; ela contou com maior volume de recursos e com a assessoria do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - Igreja Católica). Por outro lado, o fato de os povos indígenas habitarem em locais bem definidos e em relativa igualdade de condições – em comunidades rurais – facilitou a operacionalização da marcha. A concentração dos militantes em áreas comuns e sob direção hierarquizada facilitou também a realização da Marcha do Sem Terra; estes integravam a categoria “popular”, mas sua dimensão e especificidade lhes autorizava a fazer marcha à parte. Por habitarem em meio urbano, em locais distantes uns dos outros e pertencerem a agremiações bastante diversas, os mili-tantes dos movimentos negros e de outros movimentos populares encontraram mais dificuldade para se pôr em marcha; por serem, em sua maioria, assalariados, eles tampouco puderam antecipar a viagem.

De qualquer forma, as marchas, cada uma a seu modo, foram importantes momentos de mobilização e conscientização. Não por acaso elas ocorreram sob forte clima de vigilância policial, sendo frequent-emente interceptadas pela polícia, ainda nas estradas.

Marcha indígena

A idéia era fazer um movimento simbólico de retomada do Brasil por parte dos povos indígenas, fazendo um percurso inverso ao da invasão européia, ou seja, vindo do interior para o ponto do litoral, onde a

história da colonização portuguesa começou. Essa idéia estava casada com a de um grande encontro no final do percurso, que levou o nome de Conferência Indígena e que teria início alguns dias antes do dia 22. Essas idéias surgiram em 1998, em uma reunião da COIAB – Coordenação das Organizações In-dígenas da Amazônia Brasileira e tomou corpo com a rearticulação do Movimento Brasil Outros 500, também em 1998. Em setembro de 1999, em Porto Seguro, em um encontro com a presença de mais de 100 lideranças indígenas, a organização da Marcha Indígena foi decidida. Em novembro do mesmo ano, algumas lideranças indígenas e representantes do CIMI fizeram uma viagem à Europa em busca de apoio internacional para o projeto. Em janeiro de 2000 foi criado o Comitê de Santa Cruz Cabrália, composto por representantes do CIMI e lideranças indígenas; um escritório foi instalado no local.

A marcha foi subdividida em seis grandes caravanas agrupadas por região: Caravana do Norte; Cara-vana da Amazônia Ocidental; Caravana do Mato Grosso do Sul; Caravana do Sul; Caravana do Les-te; Caravana do Nordeste. Data da Partida: fim de março, para algumas delas; início de abril, para a maioria. Data de Chegada a Coroa Vermelha: para a maioria, no final do dia 17 de abril, após a pré-conferência do Monte Pascoal; alguns ônibus erra-ram o caminho, entrando para Porto Seguro, sem passar antes no Monte Pascoal.

As caravanas percorreram milhares de quilômet-ros e realizaram manifestações e atos públicos em 34 cidades, particularmente nas capitais. Ao todo eram cerca de 150 povos e 3.600 índios. O meio de transporte utilizado foi, principalmente, o ônibus,

mas também canoas e barcos. Várias etnias inte- gravam a mesma caravana, possibilitando um raro momento de encontro, em clima de grande emoção e engrandecimento.

Rigorosas vistorias de veículos e de passageiros, na divisa da Bahia com os estados de Minas Gerais e de

Saída da caravana indígena de Manaus

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TeféManaus

Parintins

Porto VelhoRio Branco

Cuiabá

Rondonópolis

Campo Grande

Dourados

Chapecó

Florianópolis

Porto Alegre

Belo HorizonteAracruz

Santa Cruz CabráliaTeófilo Otoni

Porto SeguroMonte PascoalVitória da Conquista

SalvadorBom Jesus da Lapa

MaceióArco Verde

CabrobóPesqueira Recife

Fortaleza

Imperatriz

Palmas

Brasília

Goiânia

Santarém

Belém

Macapá

Marcha Indígena:Cidades onde ocorreram manifestações

Goiás, atrasaram a chegada de algumas caravanas ao Monte Pascoal, prevista para o dia 15. A Caravana do Sul, por exemplo, ficou retida na cidade de Teixeira de Freitas por quase um dia. No dia 17, as cara-vanas que saíram do Monte Pascoal foram impedidas de entrar na cidade de Porto Seguro, onde iriam participar da manifestação em Memória dos Mártires de Eldorado do Carajás, juntamente com os sem terra.

Durante a marcha, três grandes atos foram muito importantes: em Brasília, dia 13; Salvador, dia 17; e a chamada Pré-Conferência Indígena, 15 a 17 de abril, no Monte Pascoal. No ato de Brasília, mais de 100 povos estavam presentes. Houve manifestações na praça da Torre de TV e no Congresso Nacional,

onde foi registrada uma altercação entre o Presidente do Congresso, Antônio Carlos Magalhães, e o índio Henrique Suruí, que exigia votação de projetos de lei relativos aos índios; uma comitiva de treze índios foi recebida pelo Presidente da República. Realizou-se um ato muito comum, quase obrigatório, em to-das as paradas das caravanas: o Relógio da Globo foi flechado, por fazer a contagem regressiva da “farsa do descobrimento”; na cidade de Belém houve até um ato simbólico de “julgamento dos 500 Anos”, ao pé do Relógio – como a lembrar o ritual católico da Mal-hação de Judas. Em algumas cidades, placas e monu-mentos registraram a passagem da marcha.

A tônica do discurso indígena era o de demonstrar que, apesar dos “500 Anos de massacre”, os índios es-tavam vivos, atuantes e presentes em todo o território nacional. Eles também disseram NÃO ao “descobri-mento” e às mentiras sobre os 500 Anos do Brasil. Eles reafirmaram que o Brasil tinha sido invadido e suas terras roubadas; eles denunciaram as violências sofridas ao longo desses cinco séculos.

índio desafia relógio dos 500 anos, em Manaus, 03-04/04/2000

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MontE PaScoaL inDíGEna

O Parque Nacional do Monte Pascoal tinha sido retomado pelos Pataxó em agosto de 1999 e foi escolhido como local de encontro (Pré-Conferência) e cerimônia no âmbito da Marcha Indígena, devido, claro, ao simbolismo desse acidente geográfico para a História do Brasil. Assim foi montado um acampamento para receber cerca de 1500 índios no período do 15 ao 17 de abril de 2000. No dia 15, os Pataxó acolheram os visitantes com falas, danças, torés e reafirmando que o Monte Pascoal era “a terra reconquistada para todos os povos do Brasil”. Outros povos também se apresentaram. Os visitantes subiram o Monte Pascoal, onde fizeram orações, pajelanças e torés. No dia 17 houve a cerimônia final; os índios levantaram acampamento e se dirigiram a Coroa Vermelha.

A Marcha Indígena foi muito mais do que um meio para atingir um destino, o local da Conferência Indígena em Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália. Foi um meio de divulgação, debate e entusiasmo popular sobre um aspecto fundamental da concepção de brasilidade: por onde passaram os índios foram geralmente vistos como os brasileiros mais referenciados à data, devido, certamente, à sua precedência na terra, ao fato de serem os primeiros brasileiros. Multidões solidárias e emocionadas agi-ram, em cada parada das caravanas indígenas, como se celebrassem o verdadeiro Dia do Índio. A Marcha Indígena foi aclamada por gente curiosa, eufórica e comovida, a exemplo de jovens estudantes, crianças e população em geral, de Vitória da Conquista-BA, em 14/04/2000. Eles gritavam:

OS ÍNDIOS SÃO MEUS AMIGOS, MExEU COM ELES, MExEU COMIGO. CIMI, Marcha e Conferência Indígena, 2000, p. 62.

Segundo a mesma publicação do CIMI, “quem conseguia aproximar-se dos participantes das caravanas saía todo feliz. Era como realizar um grande sonho!” Parecia que a proximidade dos índios conferia às pessoas poderes especiais; elas aparentavam querer comungar da essência indígena. “Caminhando é que se faz história” é uma expressão que resume bem a grandeza dessa marcha (CIMI, 2000, p.24).

Marcha negra e Popular

Negros e Populares partiram também de vários pon-tos do país para se encontrar em Coroa Vermelha, no acampamento intitulado Quilombo Palmares. É difícil calcular o número de caravanas que par-ticiparam da marcha; sabe-se que, pelo menos, 20 estados estavam aí representados, sendo os baianos os mais numerosos. Estima-se que cerca de 60 ôni-bus sairiam de vários estados da federação. Especi-ficamente de Salvador e de outras cidades baianas sairiam de 20 a 50 caravanas. Integravam as mesmas militantes de diversas categorias: movimentos ne-gros, coletivos de mulheres, sindicatos, movimentos estudantis, anarquistas, anarcopunks, religiosos etc. Avalia-se a participação de 6.500 militantes, soma-dos os que chegaram ao quilombo e os que ficaram retidos na estrada, em Eunápolis; não houve articu-lação política suficiente para trazer quantos queriam vir, o número era grande em todas as regiões.

O meio de transporte preferido foi o ônibus, mas houve quem viesse de avião ou carro próprio. A data de partida das caravanas variou muito em função da distância dos seus locais de origem. O perfil de profissional assalariado da maioria dos militantes determinou uma chegada mais tardia, principalmente na antevéspera e véspera do dia 22. Resultado: as caravanas encontraram mais barreiras policiais na estrada, muitas foram impedidas de seguir viagem e ficaram paradas na BR-367, em Eunápolis. Mili-tantes do Quilombo que foram ver o que se passava também ficaram retidos.

Entrevista coletiva realizada no Quilombo

A Batalha dos 500 anos foi o desabrochar de uma verdadeira busca de brasili-dade. Eu me senti cidadão pela primeira vez, naquele dia. Raimundo Bujão, militante do Movimento Negro e bacharel em filosofia.“ “

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A história dessa marcha, do número real de participantes, dos percalços que encontraram pelo caminho, das possíveis manifestações realizadas etc., ainda está por ser construída. Sabe-se que o clima era ani-mado, mas permanecia no ar um certo nervosismo, devido ao assédio policial e à falta de conhecimento do terreno – muitos vinham a Porto Seguro pela primeira vez. Havia também muita curiosidade e exci-tação, certamente pela possibilidade de se aproximar dos índios e pela chance de “fazer história” em um local tão carregado de simbolismo.

Marcha dos Sem terra

Para o MST, a participação na agenda de lutas do Movimento Brasil Outros 500 se configurava como uma extensão das atividades do chamado Abril Vermelho: série de ocupações e atos públicos, realizados a cada ano, em Memória dos Mártires de Eldorado do Carajás - uma homenagem aos 19 sem terra mortos pela Polícia Militar do Pará, em 17 de abril de 1996. Ocorre que, por coincidência, o primeiro

Marcha dos Sem terra para Porto Seguro, 16/04/2000

ato do Abril Vermelho foi um protesto contra o governo, em 22 de abril de 1996, logo após o massacre: o MST se juntou aos Pataxó, indigenistas e populares para realizarem, em Porto Seguro, a primeira grande manifestação contra as comemorações colonialistas preparadas pelo governo (ver adiante Museu Aberto). Ou seja, para além da ligação com a história do Brasil, o movimento tinha uma vinculação recente com a data. Assim, o MST decidiu realizar o principal ato em memória dos seus mortos nova-mente dentro de Porto Seguro, dessa vez no dia 17 de abril de 2000.

Os sem terra puseram-se em marcha, então, bem mais cedo que os outros movimentos populares – desde o dia 14. As caravanas partiram do Recôncavo da Baía de Todos os Santos (Santo Amaro e região), de acampamentos do extremo sul e de outros pontos do estado da Bahia; 2.500 a 3.000 pessoas as integravam. O meio de transporte utilizado foi o ônibus, mas também havia caminhões e carros de apoio. Durante o percurso, as caravanas foram tenazmente assediadas pela polícia. O incidente mais grave ocorreu em Itabuna, sul da Bahia, no dia 14, com sete ônibus e cerca de 300 sem terra: impedi-dos de prosseguir viagem, os sem terra bloquearam os acessos rodoviários da cidade; a polícia atacou, prendeu nove pessoas e perseguiu o grupo que se refugiou no centro da cidade. Houve muita correria e tensão, parecia uma guerra.

As caravanas tiveram que parar na barreira policial da cidade de Eunápolis. A caravana do sudoeste da Bahia se instalou na praça da Matriz, onde houve manifestações. Para que o acesso a Porto Seguro lhe fosse franqueado, o MST se viu na contingência de fazer um acordo com o Governo da Bahia, garantindo a evacuação da cidade, logo após a realização do ato de memória que pretendiam realizar. Foi o que realmente aconteceu, mas para o MST o acerto constituía tática momentânea; o movimento não abandonou completamente a idéia de retornar a Porto Seguro para participar dos protestos do dia 22. Logo, o que se viu a seguir foi uma série de manobras em que os sem terra condicionavam sua per-manência em Eunápolis à realização de uma audiência com o ministro do Desenvolvimento Agrário ou

Conseguimos fazer com que o mundo enxergasse não o Brasil pintado lá fora e sim o Brasil das desigualdades sociais; a marca de um povo que se mantém firme, resistindo.Vera Lucia Barbosa, Direção Nacional do MST/BA“ “

Ag. A

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com o ministro da Agricultura, ou ainda, no último momento, com o presidente da República, já em Porto Seguro; caso contrário, furariam o cerco. Nada disso teve resultado, e os sem terra, em represália, foram os principais protagonistas dos conflitos de Eunápolis. Dessa forma, no dia 22 de abril, o MST se encontrava a 78 km de distância de Coroa Vermelha.

O ponto alto dessa marcha foi a efetiva realização, no dia 17, do ato em Memória dos Mártires de Eldo-rado do Carajás, diante do Fórum Dr. Osório Borges de Menezes, em Porto Seguro. Foi impressionante a entrada dos sem terra na cidade. O ato foi tenso e carregado de emoção, apesar de os índios terem sido impedidos de participar. No mesmo dia o MST saiu da cidade, retornando a Eunápolis.

Paralelamente a esta marcha para Porto Seguro, os sem terra realizaram cerca de 132 ocupações de terra em treze estados, com destaque para o estado de Pernambuco, cujo número chegaria a 79. Os jornais divulgavam que a meta era chegar a 500 ocupações e isto, associado aos incidentes entre os sem terra e policiais na estrada, contribuiu para uma tentativa de demonização desse movimento pelo governo. O fato é que o espectro da “ameaça” dos sem terra dominou o noticiário durante toda a semana anterior ao dia 22. Isto só foi, em parte, amenizado pelas notícias da empolgante marcha indígena que atraves-sava todo o Brasil.

iii LocaiS DE concEntraÇÃo / acaMPaMEntoS

Também por questões operacionais, os três segmentos do Movimento Brasil Outros 500 que fizeram a mar-cha em separado montaram acampamentos em três locais diferentes. Como dito acima, somente o MST não montou acampamento em Porto Seguro, mas sim em Eunápolis. Restaram dois acampamentos: o Quilombo Palmares e a Conferência Indígena. A distância entre um e outro era de cerca de 3 km.

conferência indígena

A Conferencia Indígena foi instalada em terreno da Gleba 1, antigo loteamento retomado pelos Pataxó, às margens da Avenida Beira Mar (BR 367), próximo à foz do Rio Mutari, em Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália.

O local foi preparado com bastante antecedência pela equipe do CIMI e por indígenas. Uma casa de alve-naria, existente no local, foi usada como escritório central; um grande anfiteatro coberto de lona foi armado para a realização das plenárias e uma grande tenda serviu de dormitório; havia também barracas, sanitários químicos e locais para banho espalhados pelo local.

o Que aconteceu ali

Ali foram abrigados cerca de 150 povos e 3.600 índios durante seis dias. Como o nome indica, eles partici-param de uma grande conferência dos povos indígenas, do dia 18 a 21 de abril. Foi a maior conferência do gênero realizada até então.

Na chegada, a emoção do encontro com os parentes, diferentes nas vestimentas, nas cores, nos rituais, nas idéias, mas semelhantes no sofrimento de quem teve a terra invadida. Parecia um sonho.

A riqueza das celebrações e rituais de cada povo tomava a atenção de todos, participantes e visitantes. Todas as noites eram realizadas manifestações culturais e religiosas, em vários locais, à beira do mar, ao redor da Cruz, em torno das fogueiras acesas no terreiro do local onde se realizava a Conferência.CIMI. Marcha e Conferência Indígena. Abril de 2000, p. 90.

O que vimos em Porto Seguro naquele 22 de abril foi, mais vez, uma tenta-tiva de calar todos que tentaram ao longo desses 500 anos contar a verdadeira história do Brasil.Helena Argolo, técnica administrativa da UFBa.

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2º ataquepolicial

1º ataquepolicial

36BR 7

Os trabalhos começaram. Foram muitas as discussões e debates em torno das principais reivindicações do movimento indígena, nos trabalhos em grupo e nas votações. Como era de esperar, muitos discursos asso-ciavam a situação atual com as perdas durante a colonização. O resultado dessas discussões está resumido em um Documento Final, contendo 20 propostas e exigências. O documento foi amplamente divulgado em publicações do CIMI e, depois, comunicado às autoridades competentes.

À parte essas reivindicações concretas, um assunto dominou os espíritos: a negociação em torno da par-ticipação de uma comitiva de índios em um encontro com o presidente da República, no dia 22. Houve

comitê outros 500 instalado em Santa cruz cabrália

“ “Foi a maior reunião indígena de todos os tempos. Fizemos muitos esforços para vê-la realizada e recebemos como resposta a violência. Para a civilização indígena aquilo não tem nada de civilizado.Nailton Pataxó, presidente do Conselho de Caciques Pataxó (BA), A TARDE, 30/04/2000.

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momentos de tensão e dificuldades: um grupo formado por lideranças da Amazônia se retirou do plenário, mas a proposta foi rejeitada, pois a maioria sabia que o encontro seria usado politicamente como de monstração de harmonia entre o governo e os índios. A tensão não diminuiu porque diversos atores, a serviço do governo, continuaram tentado desestabilizar e cooptar lideranças indígenas, especialmente de Coroa Vermelha, que eram as anfitriãs. Circulava a notícia de que um convite formal endereçado ao presi-dente tinha sido feito por alguns índios; depois verificou-se que se tratava de documento elaborado por um assessor do ministro do Esporte e Turismo, ao qual foi justaposto uma lista de assinaturas (A TARDE, 16 e 17/04/2000).

A pressão sobre essas lideranças foi brutal. Como parte desse processo de “convencimento”, por exemplo, o governo enviou sanitários químicos, colchonetes, cobertores e alimentação (quentinhas) à Conferência. Alguns militantes do Movimento Brasil Outros 500, que a tudo assistiam, não deixaram de associar esses objetos com os espelhos, tesouras e miçangas, enfim, com as quinquilharias usadas como moeda de troca no início da colonização.

conferência indígena

Enquanto isto, manifestantes do Quilombo Pal-mares iam e vinham à Conferência, dando força e coragem para os índios resistentes. Indigenistas, políticos, jornalistas e outros cidadãos também manifestaram sua solidariedade.

No dia 19, Dia do Índio, os índios se reuniram em Coroa Vermelha para um protesto em memória a Galdino Pataxó, queimado vivo anos antes em Brasília, e contra o ataque sofrido pelos índios pataxó que haviam ocupado, quinze dias atrás, uma fazenda na barra do rio Cahy, no município do Prado. Eles desprezaram a cruz de aço inox-idável recém instalada pelo governo no local.

Também nesse dia, à noite, um evento enlutou a Conferência: a morte de Dom Quitito Fernando Vilhalva, líder Guarani-Kaiowá de Cerro Maran-

gatu, no Mato Grosso do Sul. Vítima de pancreatite, ele morreu em um hospital de Porto Seguro, às 22h. Ele pediu à sua filha Léia que levasse uma mensagem à aldeia: “diga a eles que não volto mais como saí. Peça que continuem a luta pela demarcação de nossa terra”. O líder foi homenageado pelos Guarani Kaiowá no dia seguinte, na Conferência.

No dia 21, uma delegação indígena visitou o Quilombo, a fim de preparar, conjuntamente, a jornada de lutas do dia seguinte. No dia 22, eles souberam do ataque a negros e populares e se prepararam para dar cumprimento à agenda anteriormente combinada. Por volta das 11h30 da manhã, debaixo de uma fina garoa, eles saíram da Conferência em direção a Porto Seguro. Foram aplaudidos e receberam adesões dos militantes negros e populares dispersos na primeira batalha, sendo interceptados pela polícia cerca de três mil metros adiante. Perplexos com as agressões sofridas, eles retornaram ao acampamento e providencia-ram o retorno imediato às suas aldeias.

conferência indígena

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Quilombo Palmares

O Quilombo Palmares foi instalado na Rua do Telégrafo, s/n, paralela à Avenida Beira Mar (BR 367), em Coroa Vermelha, margem direita do Rio Jardim, no município de Santa Cruz Cabrália. A área, de 8.000 m2, foi cedida por um dono de uma imobiliária e local.

Tratava-se de lote de terreno sem beneficia-mento. Uma quinzena antes do dia 22 foi feita roçagem, limpeza do local e montada uma infraestrutura mínima de acampamento: um pequeno escritório fechado por madeirite com varanda justaposta e coberta de eternit; várias espaçosas tendas cobertas por lonas plásticas pretas foram erguidas; dez chuveiros e dez sanitários químicos foram instalados no local; gambiarras ga-rantiam a iluminação durante a noite, mas muitos acenderam fogueiras. Um campo de futebol vizinho também foi usado para a instalação de barracas de camping - o local passou a ser chamado de “Qui-lombinho”. Depois da batalha, os materiais usados na construção do Quilombo foram reaproveitados, mediante doação, pelos índios Pataxó.

Dada a situação de excepcionalidade e ao ambiente de efervescência, a precariedade da infraestrutura não mereceu destaque por parte dos militantes. Todavia, o Quilombo sofreu sério problema de abastecimento, na medida em que o sindicato encarregado do suprimento de alimentos no local desistiu repentinamente de fazê-lo. O problema só não foi maior porque ambulantes se dirigiram ou foram conduzidos até lá.

o Que aconteceu ali

O Quilombo Palmares abrigou parte substancial dos militantes negros e de movimentos populares, que marcharam para Porto Seguro, durante cerca de quatro dias. O número de hóspedes do Quilombo não

Faixa colocada na entrada da rua do telégrafo

foi contabilizado mas, segundo estimativas feitas por militantes e por jornalistas, haveria entre 1.500 a 2.000 pessoas no local, sem contar a população flutuante que estava hospedada em hotéis, pousa-das ou casa de amigos. Sabe-se que pelo menos 20 estados estavam aí representados; havia delegações das várias regiões do país, inclusive de extremos limites do território nacional.

O arco de entidades presentes era bastante diverso, como dissemos ao nos referir à Marcha Negra e Popular. Dois eventos foram organizados no Qui-lombo, no dia 21: uma entrevista coletiva (manhã)

e uma plenária (à noite); a Conferência Indígena mandou representantes. Tamanho era o trânsito entre a Conferência e o Quilombo, que chamou a atenção da imprensa nacional e internacional, fazendo com que estas passassem a freqüentar o local. Ali foi traçada a estratégia da jornada de lutas do dia seguinte, como dito acima: passeata até o local da Conferência, ato em Coroa Vermelha e marcha para Porto Se-guro, com concentração na praça das Pitangueiras, onde seria realizada a “Noite da Resistência”. As dis-cussões foram acaloradas, houve muita tensão devido, em parte, ao cerco policial.

O Quilombo viveu uma noite de terror, cercado por terra e ar. Helicópteros o sobrevoavam sem cessar e, na noite do dia 21 para o dia 22, carros da polícia circulavam sem parar, com faróis e giroflex ligados. A Polícia Militar tentava quebrar o ânimo dos militantes, de modo a fazer com que desistissem das mani-festações do dia seguinte. Houve início de pânico, por suspeita de que a polícia fosse invadir o local. A tensão e o medo eram palpáveis, o Quilombo praticamente não dormiu. Cânticos foram entoados para desanuviar o ambiente.

o acampamento Quilombo Palmares, 19 a 22/04/2000

Este movimento foi fruto da luta, da ousadia, da resistência; não tivemos medo frente à máquina estatal.Edenice Santana – integrante do Quilombo Obirim Dudu e coordenadora pedagógica do Centro Educacional Edgard Santos (Salvador-BA)“ “

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No dia 22 bem cedo os militantes saíram em pas-seata na direção da Conferência Indígena e foram interceptados pela polícia, conforme relatado na primeira batalha. A maioria só retornou ao Qui-lombo após a segunda batalha; vieram pegar os seus pertences a fim de retornarem para suas cidades de origem. Descobriu-se, a esta altura, que dois dos ônibus utilizados na Marcha Negra e Popular tin-ham sido apreendidos pela PM e estavam sendo usados no transporte da tropa. Um dos objetivos dessa operação, soubemos depois, era reter os doc-umentos dos veículos, impedindo os militantes de

voltar para Salvador a tempo de protestar contra o Desfile Brasil 500 Anos, na noite do dia 23.

Apesar das divergências políticas, no calor do cerco policial, predominou no Quilombo o espírito de confraternização e de coesão, como se todos tivessem consciência da ruptura histórica que se processava. Foram momentos extraordinários, de pura exaltação.

Quando os movimentos sociais se reúnem e deixam as divergências de lado é possível criar fatos políticos e estremecer as estruturas.

Ivonei Pires – Movimento Negro Unificado “ “

iV. ZUMBi aParEcEU na coroa VErMELHa

O Quilombo Palmares fez a diferença. Não apenas pelo seu simbolismo, mas também pelo seu ativis-mo. Sua simples presença no local já incitava à reflexão. E atiçava a imaginação. Sua composição plurié-tnica lembrava o quilombo homenageado: o histórico Quilombo dos Palmares, que existiu em terras

alagoanas durante quase um século e onde também viviam índios, mestiços e até alguns brancos - seu líder mais conhecido, Zumbi, foi morto em 20 de novembro de 1695. A incansável atividade militante de seus integrantes, indo e vindo à Conferência In-dígena, juntando forças e mostrando entusiasmo pela resistência, foi fundamental para o desfecho da luta. O Quilombo funcionou como reserva moral da nação. Sem ele, não haveria batalha.

São três as razões que dão suporte a esta afirmação.

1.O governo apostou na repetição da imagem idíli-ca do contato entre portugueses e índios, conforme se supunha ter acontecido em 1500. Esse simula-cro de harmonia permitiria a associação mental en-tre aquele passado inaugural e a atualidade, o que convinha ao governo: a idéia de coesão nacional, de país tranquilo e sem problemas seria reforçada. O governo desejava ardentemente fazer uso político do evento, manipular mentalidades. Então, para

isto, ele tomou uma série de medidas: trouxe para a região o Presidente de Portugal; fez esforços ex-traordinários para que os índios fossem ao seu encontro, assediando-os intensamente com promessas e tratamento preferencial de algumas lideranças; deu apoio material à Conferência Indígena, como vi-mos; e, se nos basearmos no que diz o principal comandante da operação policial, Coronel Wellington Muller, tampouco havia intenção de atacar os índios:

Monumento a Zumbi dosPalmares Salvador/Ba, 2008

o acampamento Quilombo Palmares, 19 a 22/04/2000

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Os índios são nossos amigos, não poderíamos agredi-los. Os policiais agiram contra as pessoas que vieram de fora para provocar arruaça [...] e manipular os índios. Tanto estávamos do lado dos índios que não houve um deles detido sequer.O Globo, 24/04/2000.

A intenção era real, mas o coronel extrapola, pois houve feridos entre os índios e o que aconteceu com Gildo Terena descarta qualquer “amizade”. No entanto, em diversas ocasiões, o coronel deu garantias de que os índios não seriam atacados; de tal maneira que algumas autoridades eclesiásticas e até go vernamentais – a exemplo do presidente da FUNAI- Fundação Nacional do Índio – não recearam em integrar a passeata encabeçada pelos índios, que só foi atacada depois que militantes negros e populares os acompanharam.

2. O alvo preferencial das ações policiais foi o Quilombo e seus manifestantes. No contexto idílico, a presença indígena era dada como essencial e suficiente, o Quilombo era anomalia – pela ausência de negros na cena inaugural de 1500. Na verdade, o Quilombo simbolizava a pluralidade étnica e política, a força numérica do povo brasileiro. O fato é que o governo foi extremamente belicoso em relação ao Quilombo e seus manifestantes: atacou-os na estrada, impedindo-os de chegarem até Coroa Vermelha; cercou-os por todos os lados, manteve-os em cárcere ao ar livre e em um hotel6; lhes deu combate em três batalhas.

A guerra sem quartel era contra o Quilombo, pois algumas autoridades alardeavam haverem firmado acordos com os índios e com os sem terra, diziam que eles haviam, de certa forma, “fumado o cachimbo da paz” (Eliane Cantanhêde, FSP, 20/04/2000). Como vimos, não foi exatamente o que aconteceu, mas isto dá uma boa idéia de onde o governo supunha morar o perigo. Um assessor especial da Presidência da República chegou a sondar os militantes do Quilombo sobre a possibilidade de um acordo, mas estes se recusaram terminantemente a colaborar.

3.O Quilombo serviu como força reserva, de resistência, ao lado dos indígenas. A presença do Qui-lombo, concreta e palpável, ali pertinho, evocando o nome do legendário Quilombo dos Palmares, certamente agiu sobre o imaginário dos índios, reforçando-os no propósito de não ceder à cooptação governamental. Era como se toda a nação estivesse lá, de olhos postos na Conferência Indígena, dando

1500 taMBéM é Data Da DiáSPora nEGra7 ?

Não exatamente, mas poderia ser. Os negros não presenciaram a chegada dos portugueses ao Brasil, mas estiveram presentes em todas as fases da colonização, cujo início tem como símbolo o evento de 1500. Havia também similitude de condição (subalterna) entre negros e índios. Mas, para os sucessivos governos brasileiros, sempre foi extremamente conveniente a ausência dos negros de uma cena inaugural que em tudo lhes dizia respeito; interessava ao governo mostrar uma dualidade original, a suposta harmonia entre duas das três raças forma-doras da nacionalidade. Essa visão parcial dos fatos lhe permitia separar os dois grupos que lhe podiam fazer oposição e cultivar a imagem de um Brasil sem conflitos. No ano 2000, os negros não se contentaram em dar procuração aos índios para celebrar a resistência. Eles es-tiveram lá, de corpo presente. O governo não contava com esta nova leitura da realidade.

apoio aos índios. Mais do que isto, os militantes do Quilombo agiram diretamente, indo e vindo à Conferência portando palavras de incentivo à resistência. Ou seja, caso a colaboração se ampliasse, o Quilombo seria o único espaço a representar a resistência ao invasor, como se os negros primeiros donos da terra fossem; havia o perigo da sobreposição. Essas coisas aparecem no espírito mesmo sem querer; ou seja, os fatos suscitam, eles mesmos, seus desdobramentos lógicos.

A prova da tenacidade dos militantes do Quilombo veio logo a seguir: mesmo depois de atacados na primeira batalha, eles não esmoreceram: continuaram panfletando e esperando a saída dos índios, a fim de seguirem juntos até Porto Seguro. Foram novamente atacados e só não prosseguiram na luta porque foram impedidos de fazê-lo, inclusive grande parte ficou cercada até o entardecer. Os que ficaram reti-dos em Eunápolis também foram incansáveis; mesmo impedidos de chegarem ao Quilombo, protago-nizaram, juntamente com os sem terra, uma outra batalha.

*Mais do que linguagem figurada, a presença de Zumbi na Coroa Vermelha marca um grande momento de protagonismo negro, indígena e popular. Um momento excepcionalmente forte que em tudo lembra uma ruptura na história do Brasil.7 Diáspora negra: migração forçada de negros africanos; desenraizamento provocado pela escravidão, seguido da reelaboração da cultura africana fora da África.

6A quantidade de presos (141 só na primeira batalha) indica que o critério era tirar o maior número possível de militantes de circulação.

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Sul

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EuropaEspanha

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Bahia

1500 Cabral

V articULaÇÃo Do MoViMEnto BraSiL oUtroS 500 articulação continental

O Movimento Brasil Outros 500: Resistência Indígena, Negra e Popular, se insere no contexto das lutas dos povos da América contra o invasor/colonizador. É a versão brasileira de um esforço de resistência contra comemorações triunfalistas que teve seu momento máximo em 1992, ano em que a Europa festejou 500 anos do “descobrimento” da América por Cristóvão Colombo - ninguém permitiu que se festejasse Colombo sobre o território americano, a grande festa aconteceu em Sevilha, na Espanha. O movimento negro e indígena brasileiro participou dessa articulação continental de resistência iniciada em 1989 em Bogotá (Colômbia), continuada em 1991, em xelaju (Guatemala), e, em 1992, na Nica-rágua; como fruto desses encontros, foi realizado em São Paulo, em 1995, o I Encontro Continental dos Povos Negros das Américas.

Por conseguinte, as comemorações que o governo brasileiro, setores da mídia e do empresariado nacio-nal programaram para o ano 2000, em Porto Seguro/Cabrália, já nasceram, digamos, com validade ven-cida. Os movimentos negros e indígenas, associados a setores “populares” (sindicatos, estudantes, sem terra etc.) tiveram que se rearticular para fazer face a algo um tanto quanto fora de propósito: não sendo o Brasil uma ilha, não fazia sentido tomar como parâmetro uma data de “descobrimento” em separado. Isto deixou claro o caráter ideológico desse “descobrimento” e do desejo de festejá-lo: dar sustentação simbólica à situação colonial, pela entronização do colonizador, e de seus herdeiros, como principais, senão os únicos, benfeitores do país e heróis da pátria. Urgia frear o ânimo festeiro do governo. Além de despropositada, essa festa era um acinte para a memória da maioria dos brasileiros.

Por uma série de razões não foi possível restabelecer, no ano 2000, a articulação continental de 1992. Uma delas foi certamente o fato de a “descoberta” portuguesa ser secundária em relação à espanhola, enfim, ser uma espécie de farsa. Outra, talvez, tenha sido o pouco interesse na questão demonstrado por setores que apoiam financeiramente os movimentos étnicos. Com uma ressalva: o tema dos 500 Anos de Resistência figurou como painel especial do II Encontro Americano pela Humanidade e Con-tra o Neoliberalismo, realizado em Belém (06 a 11 dezembro de 1999). Enfim, o Brasil poderia ter aproveitado a oportunidade para estreitar os laços com os povos da América, da Abya Yala8 indígena, mas não o fez.

Cabe esclarecer: a categoria “popular” foi criada para abrigar os movimentos sociais que se pautavam pela solidariedade de classe, mas que possuíam vínculos políticos com os movimentos étnicos.

crítica ao MaDE

No Brasil, a resistência às comemorações triunfalistas começou com a crítica de uma antropóloga (Ce-

A palavra “descobrimento” é uma expressão racista.Rael, índio tapirapé (MT), ATARDE, 17/04/2000.“ “8 Terra madura, terra viva ou em florescimento. É o nome dado ao continente americano pelos povos Kuna (Panamá e Colômbia) e que foi adotado por

outros povos indígenas da América.

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lene Fonseca) e de uma entidade indigenista (ANAI – Associação Nacional de Ação Indigenista) ao principal projeto governamental para os 500 anos, o chamado MADE - Museu Aberto do Descobri-mento (manifestos da ANAI, 21 e 24/03/1996). O estopim foi a ameaça de desapropriação de Coroa Vermelha. Em janeiro de 1996, o governo da Bahia baixou uma lei desapropriando esta terra indígena para a implantação do projeto. A retirada dos índios era dada como certa. Só depois de muita luta a medida foi revertida em regularização da área como território indígena.

Por este começo, já se percebe que o MADE era um projeto arcaico, colonialista, e, particularmente, lusocêntrico, ou seja, adepto de um tipo de eurocentrismo que coloca Portugal como centro e padrão de análise da realidade. A série de equipamentos histórico-culturais que integravam o projeto voltava-se, por exemplo, para a homenagem à colonização portuguesa. Havia até um Museu do Donatário e um Portal do Avistamento (da Terra) construído no meio do mar, de maneira a cristalizar a visão “de fora” do Brasil.

Para completar o descaso para com o povo, em termos técnicos o nome do projeto era equivocado. Museus ao ar livre estão associados a sítios arqueológicos e a grandes monumentos que não podem ser aprisionados em museus convencionais; a participação da população em todo o processo é fundamen-tal. Ora, o MADE seria implantado9 em uma área imensa (1,2 mil Km2), onde fica difícil visualizar um conjunto entre casario colonial, diversos ecossistemas e (escassos) sítios arqueológicos; a população tampouco foi consultada. A região vivia em plena efervescência turística, o que de certa forma excluía a idéia de “santuário ecológico” que o projeto pretendia emplacar. Um dos muitos loteamentos locais foi, inclusive, associado ao projeto poucos dias após seu lançamento (Istoé, 15/05/1996). A imprensa ironizou chamando o MADE de “Museu Aberto dos Loteamentos”.

Essas críticas ganharam a mídia no momento do lançamento do projeto pelo presidente da República (Porto Seguro, 22/04/1996). Previamente avisados, movimentos sociais da região, inclusive o MST, fizeram uma aguerrida manifestação de repúdio ao projeto – havia apenas quatro dias que 19 sem terra tinham sido massacrados no Pará. Um jornal baiano se posicionou através de editorial (A festa dos genocidas, A TARDE), publicado no mesmo dia.

Neste clima escaldante, a referida antropóloga deu início à publicação em vários jornais do país, de uma

Passeata campo Grande-Pelourinho, 19/04/1999

série de artigos que colocavam em xeque o conceito do “descobrimento”, entre outras noções lusocên-tricas/eurocêntricas. Apesar da dissimulação, no final de 1997 percebia-se que o governo recuava e isto valeu à antropóloga um processo judicial, por suposto delito de opinião, perpetrado pelo empresário que idealizou o MADE; o processo só foi arquivado em novembro de 2004.

articulação nacional

Nos anos 1996/1997 perduraram essas iniciativas de caráter indigenista de combate ao projeto de desapropriação de Coroa Vermelha e ao MADE. Em 1998 o movimento negro passou a se acercar da querela, mas essa movimentação inicial continuava basicamente restrita à Bahia. Na sua feição nacional, o Movimento Brasil Outros 500 só tomou corpo no final de 1998, início de 1999. Reuniões foram realizadas na Bahia e em São Paulo nos meses de setembro a novembro de 1998. O manifesto do mo-

9 Em termos cartoriais, o MADE existe, porém ele não se materializou no espaço. Apenas parte desfigurada do seu subprojeto para Coroa Vermelha foi mantida.

Ag. A

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vimento foi lançado em dezembro do mesmo ano – ver anexo. Comitês de preparação formaram-se nas diversas regiões do país. O Comitê da Bahia fez sua primeira reunião oficial em 17 de dezembro de 1998, na sede de uma das entidades-membro; mais tarde, ele se estabeleceu na rua Moacyr Leão, 33, Politeama de Cima, Salvador-BA, em casa cedida pelo SINTSEF-Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Publico Federal; reuniões frequentes aconteciam ali; panfletagens e participações em diversos eventos eram organizadas a partir dali.

Muitas entidades compuseram o movimento. Para citá-las aqui teríamos que fazer um exaustivo levan-tamento em cada estado da federação e isto não foi possível, no momento. Sua quantidade tornaria inviável também a publicação em uma cartilha, como a que ora apresentamos. Citamos apenas as grandes centrais de movimentos étnicos e sociais, além de alguns movimentos de grande notoriedade, que estavam presentes: CAPOIB (hoje APIB)– Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indí-genas do Brasil; MNU- Movimento Negro Unificado; CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras, CMP– Central de Movimentos Populares; MST– Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; CUT – Central Única dos Trabalhadores; UNE– União Nacional dos Estudantes; CIMI– Conselho Indigenista Missionário; CPT- Comissão Pastoral da Terra; APOINME- Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo; APN - Agentes de Pastoral Negros; ACR- Anarquistas Contra o Racismo.

Por ser sede do evento, o núcleo da Bahia passou a conduzir os trabalhos tendo o movimento negro ba-iano um papel preponderante. Por habitarem em várias localidades da zona rural e devido a dificuldades de ordem financeira, era difícil a reunião de índios na capital, o que não acontecia com os negros, que são maioria absoluta na cidade de Salvador.

Por se tratar de assunto que toca nossos sentimentos mais profundos – a definição de nossa identidade étnica e da identidade nacional -, o Movimento Brasil Outros 500 padeceu de uma série de divergências

e tensões no seio do movimento indígena, como vimos, e no interior dos movimentos negros. Houve divergências conceituais e de condução da luta.

A qualidade e intensidade do engajamento dos movimentos negros e populares padeceram também da indefinição quanto à prevalência do modelo explicativo da realidade no campo da esquerda: a cen-tralidade da economia e luta de classes ou a centralidade da etnia. Falava-se muito na conciliação entre os dois modelos, mas havia tradições bem demarcadas. Tradições que estavam bem vivas, apesar da ir-rupção – após a derrocada da União Soviética – da questão étnica no centro do debate político, o que desarmou os defensores da classe social.

O fato é que o Movimento Brasil Outros 500 enfatizava mais as questões étnicas e simbólicas, e a es-querda, à qual os movimentos negros estão vinculados, focalizava as já bastante comuns reivindicações do movimento social. Neste sentido, houve certa divergência e desorientação em relação à condução da luta. Para completar, pairava sobre o todo a força do hábito do eurocentrismo. Ele parecia se sobrepor às convicções políticas. Desse modo, antes dos manifestos sobre o MADE e durante toda a movimen-tação em torno dos Outros 500 (até o dia 22 de abril no intervalo entre duas batalhas!) parecia vigorar um acordo tácito, não-dito, para deixar as comemorações acontecerem – como se isto fosse algo dado e imutável. A situação era bem complexa, o que tornava os movimentos negros relativamente reticentes quanto a sua participação na luta.

Os momentos e manifestações mais importantes do movimento antes dos acontecimentos de abril de 2000 foram os seguintes:

• Lançamento da Campanha Nacional 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular. Incluiu uma passeata em Salvador (do Campo Grande ao Pelourinho), em 19/04/1999, e manifestação em Porto Seguro (trevo de Cabral), em 22/04/1999. A destacar, em Salvador: além do grande número de manifestantes, as frases das faixas e cartazes, bem ilustrativas da ruptura que se propunha: “Não so-mos portugueses, seria preciso lembrar?”, “Naus à Vista e não Terra à Vista!”, “É preciso descolonizar o Brasil!”, entre outras. A destacar, em Porto Seguro: a sabotagem (miguelitos na pista) ao ônibus da delegação que havia partido de Salvador; apesar disso, os veementes protestos dos Pataxó marcaram as festividades oficiais.

O governo precisa saber que índio também tem espírito. É gente.Sílvia Campos, etnia terena (MS), A TARDE, 17/04/2000.“ “

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• A retomada pataxó do Parque Nacional de Monte Pascoal, em agosto/1999. O ato foi altamente simbólico e de grande emoção para todo o movimento, especialmente para os Pataxó, que reocupavam seu antigo território, do qual necessitavam para sua sobrevivência. A mídia local e nacional noticiou largamente o assunto, afinal, o Monte Pascoal foi a primeira porção do território brasileiro avistada por Cabral.

• Reunião nacional em fevereiro de 2000, em Porto Seguro. Houve maior integração entre os movi-mentos negro e indígena, alguns vindos de muito longe. Ficou decidido que as manifestações de abril se resumiriam em três grandes atividades:

- Marcha Nacional Brasil Outros 500 e acampamentos específicos para três segmentos: indígena, negro-popular, sem terra.- Passeata de protesto em Coroa Vermelha/Ritual em torno da cruz- Noite da Resistência em Porto Seguro

• Preparativos finais para os acontecimentos de abril. Consistiu na captação emergencial de recursos10 e na ida antecipada de três integrantes do movimento a Porto Seguro, a fim de tomar providências para a instalação do acampamento Quilombo Palmares em Coroa Vermelha. Os preparativos para acolher os índios eram realizados por um comitê que mantinha escritório em Santa Cruz Cabrália, como foi dito. Neste período, índios pataxó, auxiliados por um educador social oriundo do País de Gales, deram início à construção de um Monumento da resistência, em Coroa Vermelha, mas ele foi destruído na noite do dia 04 de abril, pela polícia. Um índio pataxó, Crispim, começou imediatamente a construção de outro monumento na Coroa Vermelha.

Compreendo que o movimento “Brasil Outros 500” representou para a história do Brasil um momento de virada civilizatória. O ganho simbólico foi fundamental: daquele mo-mento em diante, tudo teria que ser diferente. Edson Miranda Borges - Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal- Sintsef /Bahia

“ “

Depois da Batalha dos 500 Anos, o movimento realizou alguns atos, reuniões de avaliação, panfleta-gens e deu depoimentos a entidades que apuravam os fatos. Foram muitos eventos, a lista a seguir não é exaustiva.

• No calor da hora, entidades estudantis realizaram atos de repúdio aos relógios de contagem regres-siva da Rede Globo, que ainda estavam intactos; foram queimados e depredados relógios em Salvador, Porto Alegre, Recife e Florianópolis, e, ao que parece, em outros locais também. Índios Tuxá, da ilha de Assunção, no rio São Francisco, derrubaram uma torre de transmissão da Coelba, a fim de exigir retratação pública do presidente da República, e também o pagamento das indenizações dos posseiros que habitavam a área indígena.

• A Missa dos 500 anos, realizada quatro dias depois, no dia 26, em Coroa Vermelha, repercutiu tam-bém o acontecido: além da tensão, latente, ela foi marcada pelo dis-curso do jovem índio pataxó Jerry Matalawê, que denunciou o des-respeito à “casa” onde os ouvintes se encontravam, sua terra, e exigiu punição para os culpados. . Pouco depois, uma grande re-união de avaliação foi realizada pelo comitê de Salvador. Uma Pós-Conferência dos Povos Indígenas, para avaliar os acontecimentos de abril, foi realizada na terra indíge-

na xukuru, Pernambuco, de 18 a 20 de maio de 2000.

• Dossiês foram elaborados por diversas entidades, a exemplo do Conselho Indigenista Missionário e do ENZP – Escritório Nacional Zumbi dos Palmares; a Anistia Internacional foi acionada e produziu

Protesto na Missa dos 500 anos, 26/04/2000

10 Recursos financeiros foram captados pelo MNU junto à CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviços, CERIS - Centro de Estatística Religiosa e Inves-tigações Sociais e FASE- Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. O Movimento de Defesa de Porto Seguro, o Sindicato dos Químicos e Petroleiros e o MST deram apoio à construção e montagem das barracas.

Ag. A

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um relatório.

• Para apurar o ocorrido, a Ordem dos Advogados do Brasil – seção Ba-hia promoveu uma audiência pública; a Câmara dos Deputados, em Brasília, e a Câmara de Vereadores de Salvador fizeram sessões especiais; um inquérito policial foi aberto.

• Ao longo do ano 2000 e parte do ano de 2001, o movimento participou das principais festas populares, manifesta-ções políticas e culturais de Salvador, realizando, inclusive, panfletagens. A Batalha dos 500 Anos injetou novo sopro de vida nos movimentos sociais, que passaram por uma fase de mais vigor, com manifestações poderosas, a exemplo do 01 de maio, imediata-mente subsequente em Salvador. De-pois de 2002, o movimento pratica-mente acabou; preferimos dizer que ele tornou-se latente, como força em eterna vigilância.

“ “O 22 de abril marcou uma mudança na forma como a diplomacia mundial enxergava o gov-erno FHC. Foi passado para o mundo todo imagens de repressão a uma manifestação pacifica de indígenas, movimento negro e movimentos sociais.Regina Lúcia – Movimento Negro Unificado

Manifestantes atacam relógio da Globo em Salvador, 25/04/2000

Vi. UMa noVa HiStÓria, oS oUtroS 500

A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido.Steve Biko (1946-1977)

O Movimento Brasil Outros 500 deu visibilidade instantânea ao abismo de desigualdade sociorracial existente no país. A Batalha dos 500 Anos é o retrato do país dividido. A homenagem ao colonizador, di-ante dos descendentes dos colonizados, ex-plicitou por demais a lógica da domina-ção: a inferiorização sistemática da maioria dos brasileiros – uma exclusão de origem, operada na base. E isto aconteceu na virada do milênio, em meio a um extraordinário fluxo de informações produzido pelas novas tecnologias. A revolta e o confron-to com manifestantes era quase inevitável. Poderia ter sido mais ameno se o governo decidisse deixar livre curso aos protestos. Mas não estava na sua natureza profunda permitir isto. Sua arrogância era velha de 500 anos. Além disso, o governo teve que lidar com um fato novo: no final do século XX, a presença de negros e populares reunidos em parceria histórica com índios, em território demarcado com o nome do Quilombo Palmares. Ele não contava com a atitude negra em

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Marcha Zumbi +10, Brasília 2005

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tomar a si a data de 1500. A bem da verdade, quase ninguém acreditava nisso. Por isso, a Batalha dos 500 Anos pare-ceu ser uma surpresa para muita gente. O fato é que essa visibilidade da batalha cola-borou para produzir rupturas na história do Brasil. Mesmo que as mudanças não sejam instantâneas elas estão ocorrendo nas mentes das pessoas. A principal delas diz respeito à destruição do mito fundador da brasilidade, o “Descobrimento do Brasil”. Antes, seria brasileiro quem se reconhecesse como “filho” do herói civilizador português, que chegou em 1500. No ano 2000, negros, índios e popu-lares afirmaram em alto e bom som que não se reconheciam como tal. De imediato, o desco-brimento português foi reduzido à sua verda-

deira dimensão: para a diplomacia portuguesa da época, um ato de posse das novas terras que tinham sido divididas pelo Tratado de Tordesilhas (1494); para a nova história do Brasil, um ato que simboliza o início da colonização.

Rompeu-se, assim, com o lusocentrismo e, por decorrência, com o eurocentrismo, ou seja, a atitude de tomar a ex-metrópole, Portugal, e o continente europeu como a medida de todas as coisas.

Essa mudança suscitou uma outra igualmente importante: a inserção do Brasil no contexto global da história humana. A humanização dos índios conduz à inclusão do passado indígena na História do Brasil. Logo, o Brasil passa a ter uma história milenar (cerca de 40 mil anos); passa a considerar-se parte da América indígena; e passa a olhar, ainda sem entender bem, para a origem asiática dos índios e para a origem africana da humanidade. É como se o Brasil tivesse nascido de novo, tivesse renascido, recontando sua própria história – uma OUTRA HISTÓRIA.

Movimento negro na luta por cotas nas Universidades, 13/05/2004

Essas mudanças levam a outras duas que têm efeitos práticos sobre a vida cotidiana das pessoas: a am-pliação da democracia e o entendimento do Brasil como um país verdadeiramente pluriétnico. Essas duas noções eram frequentemente afirmadas, mas não eram de fato consideradas, pois o evento único e exemplar de 1500 – “O Descobrimento do Brasil” – homogeneizava a todos. Todos eram “filhos” desse Portugal original, detentor de nossas origens. Agora, a HISTÓRIA É OUTRA: reconhece-se, de fato, a pluralidade de origens e de situações devido ao tratamento recebido durante a colonização. A imagem paradigmática é a de negros e índios se visitando no Quilombo Palmares e na Conferência Indígena, em Coroa Vermelha; entendendo, na prática, que a reabilitação dos índios seria estendida também àqueles que, junto com eles, sofreram as agruras da colonização. Fugazes contatos, porém prometedores... portadores da boa nova história. A ampliação da democracia não só fortalece o Brasil no cenário mundial como traz efeitos práticos no

Vigília da águas - pelo fim da violência contra a mulher - março/2010

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acesso a bens e serviços para toda a população. Ela exige que se trate desigualmente os desiguais. Não se pode mais considerar que pessoas ou grupos que sofreram com a usurpação secular de direitos dis-putem, em pé de igualdade, com outros que sempre foram privilegiados. Quem apostaria numa corrida tão desigual? É preciso colocar todos no mesmo páreo; tratar os concorrentes para que eles se equalizem, antes de zerar o cronômetro. Ou seja, para buscar o equilíbrio e a igualdade de oportunidades para to-dos, é preciso disciplinar as regras do jogo.

As Políticas de Ação Afirmativa, que estabelecem cotas de acesso e permanência para grupos historica-mente excluídos das principais atividades econômicas, espaços de poder e renda, foi a solução até agora encontrada. Mas elas são ainda tímidas e insuficientes.

A III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, en-quadrou o tráfico transatlântico como crime contra a humanidade. No Brasil, último país a erradicar a escravidão, a ideologia decorrente daquele crime produz até hoje níveis de desigualdades tamanhos que somente um projeto de reestruturação completa da sociedade brasileira poderá sanar o problema. Neste contexto se insere o debate sobre a urgência da Reparação. Reparar significa assumir formas mais radicais de combate ao racismo brasileiro. É exigir mais verbas orçamentárias para a área social; pro-gramas de ação na área de saúde, contemplando a diversidade étnica; escola pública de qualidade, com metodologia vinculada à pluralidade etnicorracial, demarcação de territórios indígenas e quilombolas. Enfim, é realizar um esforço nacional com suporte em um volume considerável de recursos, a exemplo do que aconteceu em outros continentes, com populações que sofreram os horrores da guerra. Aqui, negros, índios e seus descendentes padecem em uma guerra intestina que já dura mais de 500 anos, por-tanto, nada mais justo que suas reivindicações sejam atendidas. Só assim o Brasil se consolidará como Estado Nacional Moderno. Isto equivaleria a deixar de ser uma eterna nau desgovernada em busca de um porto seguro. Nós já estamos, há milênios, com os pés fincados em terra.

Aproxima-se a data – 22 de abril de 2000 – que nos fará refletir sobre o dia, 500 anos atrás, em que um grupo armado de portugueses desembarcou nestas terras, com a meta de anexá-las como ter-ritório colonial.

Aqui viviam, há mais de 40 mil anos, mais de 5 milhões de pessoas pertencentes a cerca de 970 diferentes povos. Eram os legítimos donos destas terras, possuidores de tudo – menos de anticorpos para doenças européias, de armas mortais à base de pólvora e chumbo, nem do impulso de violên-cia, exploração, depredação e saque. Disto, eram portadores privilegiados aquele grupo de homens maltrapilhos e doentes que desceu na praia da hoje Cabrália, sul da Bahia, cinco séculos atrás, di-zendo que estavam “descobrindo um Novo Mundo” e que para estas terras trariam seus ideais de civilização, progresso e evangelização.

Naquele dia foi dado início à expansão do Velho Mundo nestas terras, através da sua brutalidade le-tal e organizada, pronta para projetar-se contra tudo e contra todos que estivessem em seu caminho. Aquele 22 de abril de 1500 foi um dia mítico, matriz de uma história violenta e desumana que

continua até os nossos dias.

nossa leitura histórica

Nós, povos indígenas, movimento negro, movimentos soci-ais e entidades articulados no movimento Brasil: 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular, fazemos uma leitura da nossa história a partir de um lugar bem definido – dos que sofreram e lutaram contra a espoliação colonial e a exploração de classe, dos condenados da terra, das periferias da cidade e da história oficial.

BraSiL: 500 anoS DE rESiStência inDíGEna, nEGra E PoPULar

ManiFESto

Não acreditamos numa história escrita pelas classes dominantes, em que estas se colocam como pro-tagonistas únicas e vencedores incontestes, tendo seus personagens guindados à posição de heróis de uma versão mistificadora e falsa do processo histórico. Pretendemos, através do nosso movimento, desmistificar a construção da mentira oficial e revelar a verdade histórica vivida pelos povos indígenas, pelos povos negros escravizados, pelas classes sociais e setores populares explorados e excluídos: a ver-dade dos povos indígenas que, ao longo destes cinco séculos, vêm sofrendo um processo contínuo de extermínio e abandono, não obstante as lutas heróicas e desiguais que sempre travaram – e continuam travando – para preservar seus territórios, suas culturas, suas identidades, suas religiões, seus projetos de vida; a verdade dos povos africanos que, aprisionados, arrancados violentamente de suas terras e seqüestrados, para cá foram trazidos. Durante quase 400 anos, viveram neste país a afronta de um sistema de produção então já condenado pela história. Protagonistas de gestos também heróicos, fun-daram aqui territórios livres – os quilombos – provas vivas da afirmação da dignidade humana e das lutas mantidas até os dias de hoje pelas entidades negras frente a um poder todavia infame e a verdade dos setores populares que, durante toda nossa história, lutaram para mudar o seu curso, na busca da constituição de uma sociedade justa e fraterna.

Os setores populares foram os protagonistas maiores da nossa recente luta contra a ditadura militar e contra a implantação entre nós do modelo neoliberal. Hoje, a luta pela reforma agrária e a luta contra o desemprego em massa são dois de seus combates maiores no rumo da construção de uma nova so-ciedade.

Durante a difícil constituição da sociedade brasileira nestes 500 anos, a violência sempre permaneceu, mudando sempre de forma. De igual maneira os exemplos de generosidade, criatividade e de vontade de construir um território livre e independente e uma sociedade justa e humana sempre existiram e quem os legou a nós foram os povos indígenas, os povos negros escravizados e os setores populares. São estes, também, os que nos dias de hoje continuam a nos dar exemplos constantes de que é possível transformar a vida e a sociedade, em benefício de todos.

Pretendemos, através do nosso movimento, expor nossa divergência clara e transparente com relação às comemorações oficiais. Estas irão comemorar os 500 anos da construção de uma nação supostamente

unida e harmônica, erguida, na sua visão, com a “contribuição voluntária” dos povos indígenas, dos africanos “trasladados” para estas terras e dos brancos europeus. Para as comemorações oficiais, inexiste a noção de conflito, hoje como no passado. Para nós, pelo contrário, a noção de conflito é central na história como no presente, projetando-se no futuro.

A brutalidade do genocídio indígena capitaneado pela empresa colonial e responsável pela extinção de povos inteiros, a barbárie da sociedade escravocrata que espoliou os povos africanos sacrificando e de-sagregando famílias e comunidades, a crueldade atroz, que vitimou e vitima cotidianamente os setores populares, marca uma das sociedades mais desiguais do planeta: a sociedade brasileira até os dias de hoje. Todas essas realidades históricas não podem ser compreendidas sem a noção central do conflito – con-flito entre povos, entre classes, entre ideologias, entre concepções de vida, de mundo, do humano, da própria história.

nossas celebrações

Nosso movimento Brasil: 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular pretende celebrar sim, mas celebrar as vitórias conquistadas ao longo dos séculos, através das lutas coletivas, através das iniciativas populares, plenas de heróis anônimos, que nunca terão seus nomes inscritos nos livros de história. Vamos celebrar sim, as vitórias que nos custaram tanto sangue e tantos mártires, tanto sofrimento e esperança nos corações de gente que nada tinha para lutar, senão a sua fé num mundo menos desumano.

Vamos celebrar sim, as vitórias e derrotas de uma luta sempre desigual: de um lado a riqueza, o poder, as armas, o desprezo pela vida e a arrogância de classe, de outro lado, a vida coletiva, o trabalho humano, os despossuídos de tudo, a solidariedade de classe, a humildade e generosidade anônimas, a infinita esperança.

No marco destes 500 anos, vamos celebrar também o futuro. Herdeiros de um passado de resistência e luta, trazemos a certeza de que, apesar de tantas desigualdades e injustiças que permanecem, constru-iremos uma sociedade livre e justa, marcada pela igualdade e pela fraternidade, sociedade que tanto buscamos e que tantos buscaram antes de nós.

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nossas ações

Para atingir nossos objetivos de refletir e celebrar a Resistência Indígena, Negra e Popular nestes 500 anos de história brasileira, nos comprometemos com as seguintes ações: Desencadear, em todos os movimentos e entidades nas quais participamos, o processo de reflexão, atividades culturais e de luta que tenham como referência a questão dos 500 anos; Lançar durante a semana de 18 a 24 de abril de 1999, de forma simultânea e articulada, em todo o país, por parte de todos os movimentos sociais que se engajarem, o movimento Brasil: 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular;

Durante o mês de abril do ano 2000, realizar diversas ações no extremo sul da Bahia – marcha con-junta, ato ecumênico e ato cultural – para estimular a sociedade brasileira a refletir sobre o significado destes 500 anos de história do ponto de vista indígena, negro e popular e;

Articular nosso movimento com as lutas sociais já existentes em âmbito local, regional e nacional e projetá-lo no âmbito internacional, tanto na América Latina como na Europa, particularmente em Portugal.

Dezembro de 1998.

CONEN - Coordenação Nacional de Entidades Negras; MNU -Movimento Negro Unificado; CMP -Central de Movimentos Populares; CIMI – Conselho Indigenista Missionário; CPT – Comissão Pastoral da Terra; GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico; Comitê 500 Anos de Re-sistência Indígena, Negra e Popular – Salvador-BA; Fórum 500 Anos de Campinas, SP; CAPOIB – Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil; COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira; FORAM- Fórum Permanente de Debates da Amazônia; APOINME – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo; Articulação de Mulheres Negras Lélia Gonzalez – Salvador-BA; CEPIS – Centro de Educa-ção Popular do Instituto Sedes Sapientiae; ACR – Anarquistas Contra o Racismo; Equipe Palmares de Rio Claro, SP; Coletivo 500 Anos de Araras, SP; SINPRO – Sindicato dos Professores da Rede Particular do ABC, SP; Comitê de Solidariedade às Comunidades Zapatistas – SP.

rEFErênciaS

Anai – Associação Nacional de Ação Indigenista. “Manifesto-Denúncia: a farsa do Museu Aberto do Descobrimento”, 24/03/1996 (mimeo).

Cimi - Conselho Indigenista Missionário. • Conferência dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil. Coroa Vermelha, 18 a 21 de abril de 2000 – Documento Final. 16 p.• Marcha e Conferência Indígena. Abril/2000, 133 p.• Construindo uma Nova História. São Paulo: Editora Salesiana, 2001. 256 p.

Fonseca, Celene.• “O descobrimento que não houve”. A Tarde, 01/04/1997 e outros jornais.• “Costa da Perplexidade. Revista Amazônia”, 21 nº 4, 17/01/2000.

Hazard, Damien e Hazard, Domitille. “Brésil: le demi-millénaire de la grande fracture”. [Brasil: o meio milênio da grande fratura] Le Monde, 22 de abril de 2000, p.16

Henriques, Ricardo. Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. Brasília: Ipea, 2001. http://desafios2.ipea.gov.br/pub/td/2001/td_0807.pdf

Movimento Brasil Outros 500. Manifestações de Abril de 2000: a Batalha dos 500 anos – Relatório de Atividades. Abril/2001, 71p. (mimeo).

Olhares e Registros daquele 22 de abril. Apoio: Associação dos Pós-Graduandos da PUC-SP. Campi-nas, maio de 2000, 55p.

Lei n. 6.941/96 – autoriza a desapropriação de área de terra para implantação do projeto Coroa Ver-melha [integrante do MADE]. DOE, 25/01/1996.

Rampinelli, Waldir José & Ouriques, Nildo Domingos (Orgs.). Os 500 Anos, a Conquista Inter-

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minável. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Jornais/revistas:

Agência Estado (www.ae.com.br). “Borges: MST só fica até segunda na BA”, 16/04/2000.Agência Estado (www.ae.com.br). “Greca deve deixar o ministério”; “Festa do colonizado para homenagear o colonizador”, 25/04/2000.A Tarde (Salvador). “Violência na comemoração dos 500 anos”. 23/04/2000.A Tarde (Salvador). “Menina pode ser a primeira vítima da PM”, 26/04/2000, p. 3.Correio do Povo (Porto Alegre). “Protestos atrapalham festa dos 500 anos”, 23/04/2000.Estado de Minas. “Cabrália vira praça de guerra”, 23/04/2000.Folha de São Paulo (FSP). “Comemorações chamam a atenção pela violência”; “FHC vê dano à ima-gem do país”, 25/04/2000.Folha de São Paulo (FSP). “Comemoração custa 11 vezes o gasto com índio”, 22/04/2000.Istoé. “Um vexame inacreditável”. N. 1596, 03/05/2000.O Globo (RJ). “Batalha na Festa dos 500”; “Barreiras da Polícia Militar impedem o acesso de milhares a Porto Seguro”, 23/04/2000.

índio Suruí desafia senador em Brasília, 13/04/2000

Estamos cobrando o que é nosso. Muitos pensam que somos exóti-cos, se esquecendo que somos brasileiros como os brasileiros e donos dessa amada terra.

Mariano, índio xavante (MT), A TARDE, 16/04/2000

O Globo (RJ). “ACM defende atuação da PM, mas OAB critica a violência contra índios”, 24/04/2000.O Público (Portugal). “Comemorações do Império Sitiadas”, 24/04/2000.Veja. “O retumbante fracasso da festa dos 500 Anos”, 03/05/2000.

Filmes

• Brasil, 500 Anos de Resistência. Movimento Brasil Outros 500, 2001, 26 min.• O relógio & a Bomba: e os Outros 500 – Memória de uma viagem a Porto Seguro. Verbo Filmes, 2000, 22 min.• Povos Indigenas do Brasil: 500 Anos de Resistência. CIMI, 2000. 24 min.

t o l d , o o

A redemocratização do Brasil r uxe a gumas mu anças mas não mud u o eix da

e ó en c i i o e

xclusão. Quase 200 anos ap s a indep dên ia, o Bras l cont nua send um n gócio

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rentável para p ucos. O eurocentrismo continua a dire onar a aç go namenta e

d e e t an 0 z g das lites. N ste con exto, no o 2 00, o governo tentou fa er uma ran e festa para

c l o e d ó e oe ebrar o c lonizador. Os xcluí os se levantaram. Na l gica do qu h uve nas

m 9 Mo OA éricas em 19 2, rearticularam o vimento Brasil utros 500: Resistência

g N p r a ma tIndí ena, egra e Popular e se repa aram para f zer nifestações con rárias no

on s c o local de eria en enado “descobrimento” e a suposta harmonia entre duas das

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ermino em vexam . As imagens correram o mundo ficou f io para o governo

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ag edir os “aniver ariantes”. icou patente e o Brasil ão h via coesão nac ona .

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Entre anto, uma mensagem de r pt a saiu daí: neg os, índios e se s d sc dente ,

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maioria do povo brasileiro, es avam decididos a ser protagon stas – a ass ir o país,

e t u icom çando por recon ar s a histór a.

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