Yvonne Maggie - O Debate Sobre a Propriedade Dos Objetos Sob a Guarda de Museus

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O debate sobre a propriedade dos objetos sob a guarda de museus a Antiguidade, a Grécia e os terreiros de candomblé e umbanda no Brasil Por Yvonne Maggie, in A vida como ela parece ser COLUNA G1 Neste final de ano, visitei o museu Pergamon no centro de Berlim, na famosa ilha dos museus. Entre as maravilhas ali expostas está o famoso altar Pergamon, magnífica estrutura dedicada a Zeus, originalmente construída no século II a.C. na cidade grega de Pergamon (atual Bergama, na Turquia). As ruínas do altar foram escavadas no final do século XIX e suas peças enviadas à Alemanha pela expedição arqueológica liderada por Carl Humann. Na época, o império Germânico reagrupado procurava aumentar seu poder na competição entre as empresas coloniais e fez um acordo com o império Otomano pelo qual tinha o direito de propriedade de 30% dos achados nas escavações. O altar foi reconstruído em uma imensa sala, a primeira do museu, e ali os visitantes podem imaginar a grandeza da era anterior a Cristo e conhecer parte da mitologia grega pelos relevos que adornam o templo. Andando pelas enormes e altas galerias do museu pode-se ainda ver relíquias da Babilônia, de Troia e do mundo islâmico, entre outras. Enquanto admirava a beleza e grandiosidade das obras, muito bem explicadas pelo guia eletrônico, a conversa entre os amigos que me acompanhavam nessa maravilhosa aventura voltou-se para a questão da propriedade dos objetos ali expostos e seus significados. Procurando me informar sobre tudo o que via fiquei um pouco frustrada de enveredar pelo debate que tem se imposto ao mundo pós-colonial. Mesmo querendo me deleitar com a beleza da Antiguidade fui obrigada a discutir o tema do momento. “Esses objetos não pertencem aos europeus, são propriedade dos povos colonizados, deveriam ser devolvidos”, disse uma amiga. De fato, toda essa grandeza que, principalmente no século XIX, foi desterrada de seus lugares de origem, e pode ser admirada por milhares de europeus e turistas de todo o mundo, está sendo reclamada pelo governo turco. Os turcos, assim como os gregos, pretendem retomar os objetos considerados fruto da razia e do roubo dos colonizadores.

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Yvonne Maggie - O Debate Sobre a Propriedade Dos Objetos Sob a Guarda de Museus

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  • O debate sobre a propriedade dos objetos sob a guarda de museus a Antiguidade, a Grcia e os terreiros de candombl e umbanda no Brasil

    Por Yvonne Maggie, in A vida como ela parece ser COLUNA G1

    Neste final de ano, visitei o museu Pergamon no centro de Berlim, na famosa ilha dos

    museus. Entre as maravilhas ali expostas est o famoso altar Pergamon, magnfica

    estrutura dedicada a Zeus, originalmente construda no sculo II a.C. na cidade grega

    de Pergamon (atual Bergama, na Turquia). As runas do altar foram escavadas no final

    do sculo XIX e suas peas enviadas Alemanha pela expedio arqueolgica

    liderada por Carl Humann. Na poca, o imprio Germnico reagrupado procurava

    aumentar seu poder na competio entre as empresas coloniais e fez um acordo com

    o imprio Otomano pelo qual tinha o direito de propriedade de 30% dos achados nas

    escavaes. O altar foi reconstrudo em uma imensa sala, a primeira do museu, e ali

    os visitantes podem imaginar a grandeza da era anterior a Cristo e conhecer parte da

    mitologia grega pelos relevos que adornam o templo.

    Andando pelas enormes e altas galerias do museu pode-se ainda ver relquias da

    Babilnia, de Troia e do mundo islmico, entre outras.

    Enquanto admirava a beleza e grandiosidade das obras, muito bem explicadas pelo

    guia eletrnico, a conversa entre os amigos que me acompanhavam nessa

    maravilhosa aventura voltou-se para a questo da propriedade dos objetos ali

    expostos e seus significados. Procurando me informar sobre tudo o que via fiquei um

    pouco frustrada de enveredar pelo debate que tem se imposto ao mundo ps-colonial.

    Mesmo querendo me deleitar com a beleza da Antiguidade fui obrigada a discutir o

    tema do momento. Esses objetos no pertencem aos europeus, so propriedade dos

    povos colonizados, deveriam ser devolvidos, disse uma amiga.

    De fato, toda essa grandeza que, principalmente no sculo XIX, foi desterrada de seus

    lugares de origem, e pode ser admirada por milhares de europeus e turistas de todo o

    mundo, est sendo reclamada pelo governo turco. Os turcos, assim como os gregos,

    pretendem retomar os objetos considerados fruto da razia e do roubo dos

    colonizadores.

  • A escultura do Partenon centauro e lpita relevo em mrmore, que se encontra no

    Museu Britnico, por exemplo, um dos objetos no centro desse debate.

    Sei que h argumentos fortes dos dois lados da disputa, mas essa discusso, que me

    levou a sair da minha contemplao Antiguidade, me fez lembrar uma situao

    anloga que vivi no Brasil.

    Nos anos 1980, um grupo de antroplogos baianos iniciou um movimento para que os

    objetos rituais dos cultos afro-brasileiros que se encontravam no Instituto Mdico Legal

    da Bahia, o Museu Estcio de Lima, fossem devolvidos aos seus proprietrios

    originais. Aqueles objetos haviam sido, em grande parte, obtidos a partir da represso

    policial aos terreiros e alguns deles eram da coleo particular do mdico e

    antroplogo Raimundo Nina Rodrigues. O debate em torno da questo foi grande. O

    movimento cresceu com a participao de um chefe de culto que fez uma demanda ao

    Ministrio Pblico para que os objetos fossem devolvidos aos seus donos ou

    colocados em um museu apropriado.

    Eu havia visitado o Museu Estcio de Lima. Os objetos rituais ali guardados eram

    magnficos, mas vistos por muitos, inclusive pelos funcionrios da casa, como

    carregados de feitio, e no possuam qualquer identificao.

    Naquele tempo eu estava estudando colees de objetos rituais apreendidos pela

    polcia e tambm analisando processos criminais referentes a pessoas acusadas de

    praticar a feitiaria no Rio de Janeiro da Belle poque, pesquisando a coleo no

    Museu da Polcia Civil do Rio de Janeiro. Os objetos apreendidos foram uma porta de

    entrada para entender o significado da relao entre o Estado brasileiro e a crena na

    capacidade dos seres humanos usarem seus poderes espirituais para o bem ou para o

    mal. Os objetos sob a guarda do Museu da Polcia no Rio de Janeiro, do Museu

    Estcio de Lima na Bahia e de outros museus semelhantes foram parar ali por fora

    da crena na feitiaria e da ao da polcia incumbida de perseguir os feiticeiros. A

    maior parte dessas colees, desgraadamente, no identifica as peas e, assim, no

    se sabe nada sobre sua origem. Uma exceo a Coleo Perseverana do Instituto

    Histrico e Geogrfico de Alagoas (IHGAL), fruto de uma perseguio de outro tipo,

    pois nesse caso, foi o conflito entre setores da elite poltica que gerou a invaso aos

    terreiros de Xang, em Macei, e sua destruio.

  • Mais de trinta anos se passaram quando, voltando Bahia em 2012, fui visitar o

    Museu Afro-Brasileiro (Mafro) da UFBA e, graas generosidade de sua curadora,

    pude ver a coleo de objetos rituais do Museu Estcio de Lima sendo restaurada.

    Fiquei impactada com o cuidado com que as peas estavam sendo tratadas e o novo

    significado que adquiriram desde que, por fora da ao do Ministrio Pblico foram

    depositadas no Mafro. Li recentemente que as peas j esto em exposio.

    Os museus so espaos de representao. A histria da coleo de objetos rituais que

    primeiro foram arrolados, como peas de feitiaria, e retirados de terreiros por fora da

    ao da polcia na Bahia, e hoje esto sob a guarda de um museu universitrio, revela

    exatamente os muitos lados e significados que adquirem as coisas ao longo da

    histria.

    Esse um aspecto extraordinrio dos objetos, como por exemplo o prprio Partenon

    que significou muitas coisas diferentes para pessoas diferentes em momentos

    diferentes. Concebido como templo de Atena, a virgem, durante sculos ele foi a

    catedral crist da Virgem Maria e mais tarde tornou-se uma mesquita. No fim do

    sculo XVIII, era uma runa negligenciada em uma Atenas degradada, governada por

    turcos. Contudo, nas dcadas de 1820 e 1830, os gregos conquistaram a

    independncia e receberam um rei alemo, um de seus aliados europeus. O novo

    Estado precisava definir que tipo de sociedade desejava ser, diz o autor do livro A

    histria do mundo atravs de 100 objetos, Neil MacGregor, diretor do Museu Britnico.

    Ele cita ainda a historiadora Olga Palagia que analisa como o Partenon acabou se

    identificando com a Grcia A Grcia foi ressuscitada por volta de 1830. Tivemos um

    rei alemo que veio da Baviera para a Grcia, e os alemes decidiram que

    ressuscitariam a Atenas de Pricles. Acredito que isso tenha iniciado a identificao

    perene da nova nao grega com o Partenon. Portanto, ns o estamos restaurando

    desde 1834 Assim, a semente que os alemes plantaram em 1834 cresceu,

    transformando-se em algo muito grande e importante.

    Ainda segundo Neil MacGregor, o Partenon, essa grandiosa construo, adquiriu mais

    outro significado alm daquele dado pelos gregos: Foi um emblema familiar para

    todos os europeus instrudos, por meio de esculturas no British Museum que estiveram

    expostas desde 1817.

    Entre os museus europeus e os brasileiros aqui citados h uma grande distncia, mas

    a questo permanece a mesma. Como seria possvel conhecer o passado magnfico

  • dos gregos e babilnios ou dos terreiros de candombl da Bahia e do Rio de Janeiro

    sem a ao daqueles que primeiro guardaram os objetos que encantam o mundo?

    Altar Pergamon

    Relevos do Altar Pergamon - Museu Pergamon

  • Mafro - Imagem de So Jorge

    Mafro - Vaso de cermica

    Mafro - Figa com adornos em prata