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Yuval Ne'eman e o Grupo de Simetria dos Quarks

(Yuval Ne'eman and the Symmetry Group of Quarks)

Tereza Mendes, Attilio Cucchieri, Tiago B. Moraes

Instituto de Física de São Carlos, Universidade de São Paulo,Caixa Postal 369, 13560-970, São Carlos, SP, Brasil

20 de março de 2019

Resumo

Neste artigo apresentamos um ensaio sobre a vida e a obra de um dos físicos mais surpreendentes do nosso tempo.

Yuval Ne'eman, além de ter sido um dos precursores da teoria dos quarks, foi também político e militar, tendo

inspirado o personagem que leva o seu nome no romance de espionagem O dossiê Odessa, de Frederick Forsyth.

O esquema descoberto por ele para classicação dos hádrons demonstrou a importância da teoria de grupos para a

física de partículas e permitiu a elaboração do modelo de quarks, que completa 55 anos em 2019.

Palavras-chave: partículas elementares, hádrons, interação forte, grupo de simetria, quarks

In this article we present an essay about the life and work of one of the most surprising physicists of our time.

Yuval Ne'eman, beside being one of the precursors of the theory of quarks, was also a statesman and a soldier,

having inspired the character named after him in the espionage novel The Odessa File, by Frederick Forsyth. The

scheme discovered by him for the classication of hadrons demonstrated the importance of group theory for particle

physics and allowed the formulation of the quark model, which celebrates 55 years in 2019.

Keywords: elementary particles, hadrons, strong interaction, symmetry group, quarks

1 Introdução

Há cerca de treze anos morreu Yuval Ne'eman (Fig. 1),físico internacionalmente conhecido por suas contribui-ções à teoria das interações fundamentais entre partícu-las elementares. Ne'eman nasceu em Tel Aviv, Israel, em14 de maio de 1925, e morreu na mesma cidade em 26 deabril de 2006, após um derrame cerebral. No início dosanos 60, ele desenvolveu (independentemente de MurrayGell-Mann) as bases para o modelo de quarks, sugerindoque os hádrons hoje reconhecidos como estados liga-dos de quarks fossem dados por representações dogrupo de simetria SU(3), uma propriedade que foi maistarde associada à simetria em relação aos três tipos (ousabores) de quarks de menor massa: up, down e estra-nho. Dessa maneira, foi possível explicar a partir de umesquema simples o grande número de partículas obser-vadas em aceleradores na época, posteriormente conr-mando e estabelecendo o modelo de quarks. Ao mesmotempo, cou clara a importância da teoria de grupospara o estudo teórico da física de partículas. Os quarks,inicialmente introduzidos como um artifício matemático,

foram observados experimentalmente no nal dos anos60 e mais tarde incorporados como os campos de matériana teoria quântica de campos que descreve as interações(nucleares) fortes, a cromodinâmica quântica, ou QCD.Maiores detalhes sobre o modelo de quarks e suas sime-trias, assim como alguns aspectos das interações fortes,são discutidos mais abaixo. Uma excelente introduçãodidática à física de partículas elementares incluindoo modelo de quarks e também tópicos modernos em te-orias quânticas de campos pode ser encontrada nolivro The Particle Hunters, de Yuval Ne'eman e Yo-ram Kirsh [1].

Além de físico, Ne'eman foi também militar e político,tendo se tornado um personagem de importância centralna história de seu país [2, 3]. De fato, a lista de suasparticipações na ciência e na política israelense é notá-vel. Em 1965 ele fundou o Departamento de Física e As-tronomia da Universidade de Tel-Aviv, sendo mais tardepresidente da Universidade (de 1971 a 1975) e diretor deseu Instituto de Estudos Avançados (de 1979 a 1997).Em 1983 fundou a Agência Espacial de Israel, a qualpresidiu quase até sua morte. Serviu na Comissão de

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Figura 1: Yuval Ne'eman (19252006). Foto por cortesiada revista eletrônica israelense PhysicaPlus.

Energia Atômica de Israel (de 1965 a 1984) e presidiu-ade 1982 a 1984. Foi Diretor Cientíco do Centro de Pes-quisas Nucleares Nahal Soreq e envolveu-se fortementeno desenvolvimento de armas nucleares para Israel. Foio primeiro Ministro de Ciência e Desenvolvimento dopaís (de 1982 a 1984) e novamente em 199092, quandofoi também Ministro da Energia. Em particular, esteveà frente do projeto Med-Dead, que propõe a constru-ção de um canal ligando o Mar Morto ao Mediterrâneopara suprimento de água e energia para o Oriente Médio.(Este projeto não foi realizado devido a seu alto custo[4], mas é ainda hoje discutido.) Foi Cientista-Chefe doMinistério da Defesa de Israel (197476) e fundador dopartido político Tehiya (um desdobramento de direitado partido Likud) no nal dos anos 70. Atuou no Knes-set (o parlamento Israelense) até 1990. Ne'eman dizia-seateu, mas identicava-se muito fortemente com o povojudeu e com seu país [5]. (Relatos interessantes a esserespeito encontram-se também no obituário escrito porseu lho, Teddy Ne'eman [6].) Ele denia sua visão polí-tica como pró-Israel, e não anti-árabe. Porém, algumasde suas opiniões sobre o Estado de Israel incluindoseus planos para a expansão do território nacional e suaoposição a tratados de paz claramente criaram ten-são, tendo ocasionado vários atentados contra sua vida.

2 Um Coronel na Física

Ne'eman iniciou sua carreira como militar, ingressandona Haganá (exército de resistência israelense, precursordas Forças Armadas de Israel) com apenas 15 anos. Du-

rante o ano que teve que esperar para iniciar o curso deengenharia pois a idade mínima era de 16 anos etambém durante a faculdade, continuou a se dedicar in-tensamente ao trabalho no exército, tornando-se ocialem 1945. Ao mesmo tempo, seu grande interesse pelaciência e pela matemática voltou-se para a física, prin-cipalmente após cursar uma matéria de física quântica(na qual foi o único aluno) oferecida por um professorde eletrotécnica de sua faculdade. Após completar seusestudos de engenharia em 1945, apesar do interesse pelafísica moderna, seguiu seu plano inicial de trabalhar nafábrica dirigida por seus familiares, projetando bombashidráulicas para irrigação. Entretanto, já na metade de1946 ele se encontrava inteiramente engajado em ativi-dades militares, incluindo a luta para a instalação dejudeus refugiados na Palestina, a proteção e construçãode novos assentamentos, e esforços para impedir açõesde organizações clandestinas que pudessem ferir civis.A partir do início da guerra de independência de Israel,em novembro de 1947, ele combateu no campo como o-cial, chegando a comandar a prestigiosa Brigada Givati,um destacamento de elite das Forças Armadas Israelen-ses existente ainda hoje. Enquanto militar, Ne'emandestacou-se como estrategista, tendo um papel impor-tante tanto na guerra de independência quanto na crisedo canal de Suez em 1956 e, mais tarde, na Guerra dosSeis Dias (em 1967). Sua atuação nesta última moti-vou a conexão de seu nome a personagens de livros deespionagem [7, 8], como o cientista israelense YouvelNeeman do best-seller O Dossiê Odessa, de FrederickForsyth. De fato, há diversos relatos (ver, por exemplo,[9]) sobre sua participação crucial como vice-chefe daAman, a Inteligência Militar Israelense, para a vitóriade Israel na Guerra dos Seis Dias. Em particular, eleteria criado uma base de dados com informações errô-neas (para que fossem interceptadas) sobre a situaçãodas forças israelenses, ajudando assim a destruir a forçaaérea egípcia ainda em terra. Ne'eman, porém, agiacomo se tais aspectos tivessem sido exagerados. Comoele próprio escreveu [10]:

Ganhei reputação como planejador, especial-mente após julho de 1948, quando arquiteteiuma manobra bastante original sobre nossoanco leste, e depois em outubro pelo desen-volvimento de uma nova técnica operacional,adaptada a nossas condições especiais. Essesplanos foram postos em prática em outubronovembro de 1948, resultando no sucesso dacampanha no Sul. Após a Guerra de 194749, fui nomeado Chefe da Seção Operacionale Vice-Chefe do Departamento de Operaçõesdo Quartel-General das Forças Armadas (Ge-neral Rabin, o futuro Primeiro Ministro, era oChefe). Em 195152 frequentei a École d'État

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Major [em Paris] e fui então nomeado Dire-tor de Planejamento, uma tarefa que incluíuvários aspectos civis e a elaboração da estra-tégia básica que seguimos até a Guerra dosSeis Dias em 1967. Nesse meio tempo, em1955, fui transferido para servir como Vice-Chefe da Inteligência Militar, após o colapso deuma rede no Egito e as subsequentes mudançasno comando. Nessa posição desenvolvi algu-mas ideias novas. O principal impulso, porém,foi o estreitamento de relações com a França,de acordo com os interesses da França e de Is-rael. Isto incluíu elementos que de algum modovazaram e passaram por amplicações ima-ginosas, resultando na criação de alguns per-sonagens (com meu nome completo!) em ro-mances sobre o Oriente Médio ou livros sobreo Serviço Secreto.

(A tradução é nossa.)

Durante todos esses anos de atividades militares,Ne'eman manteve a esperança de ainda seguir a carreiraacadêmica. Ele fez planos para seu retorno à ciência em1948, mas esqueceu-se deles em meio às batalhas. Em1950 ele aprendeu relatividade geral sozinho e em 195152 tentou conseguir uma licença para estudar física naFrança, sob orientação de Louis de Broglie. Ao invésdisso, acabou indo aprimorar seus conhecimentos mili-tares na École d'État Major (parte da renomada ÉcoleSuperieure de Guerre), em Paris. Em 1957, já com 32anos e com a patente de Coronel, conseguiu nalmentededicar-se (parcialmente) aos estudos de física, iniciandoseu doutoramento. Mais precisamente, Ne'eman recebeua proposta de conciliar seus estudos com serviços milita-res na embaixada de Israel em Londres. De 1958 a 1960,ele foi ao mesmo tempo representante das Forças Arma-das de Israel na Embaixada Israelense do Reino Unidoe Países Escandinavos e estudante de pós-graduação doImperial College, da Universidade de Londres, no grupode pesquisa de Abdus Salam. Esta situação deu ori-gem a alguns episódios curiosos. Como narrado por seucolega de doutoramento, Raymond F. Streater [11]:

Ne'eman juntou-se a nós no nal do primeirosemestre do ano escolar de 19571958, e ti-nha perdido o início de todos os cursos. Elepediu para copiar minhas notas de aula. Eu -quei em dúvida, com medo de não vê-las nuncamais, mas ele as devolveu no dia seguinte. Eunão conseguia entender como ele as tinha copi-ado tão depressa, precisaria ter passado a noiteinteira escrevendo. Então ele me contou seusegredo: ele tinha usado uma fotocopiadora,um luxo de que eu nunca tinha ouvido falar.

...Algumas vezes, Yuval tinha que sair maiscedo de nossos seminários; isso era para parti-cipar de recepções diplomáticas, o que era partede suas tarefas [na embaixada].

...[Abdus] Salam sugeriu que nós o usássemos[o dinheiro que tinha sobrado da coleta anualpara os chás do grupo de pesquisa, no valorde 30 xelins] para uma festa de natal. Devidoao alto imposto sobre bebidas alcoólicas, deci-dimos pedir mais 2 xelins a cada membro dogrupo que fosse participar da festa. Yuval en-tão ofereceu-se para comprar as bebidas, poistinha contatos na embaixada israelense. Nodia da festa, uma limusine preta estacionou naentrada do velho Departamento de Matemáticado Imperial College. Ne'eman pulou de dentro,e abriu o porta-malas. Retiramos dali caixas emais caixas de bebidas alcoólicas, todas para afesta. Quando ele estava indo embora, disse:por sinal, eu não usei todo o dinheiro, aqui es-tão 35 xelins de troco.

(A tradução é nossa.)

A partir de Julho de 1958, após uma rebelião no Ira-que, as responsabilidades de Ne'eman aumentaram, di-cultando sua dedicação aos estudos de física. Ele teve,por exemplo, que negociar a compra de 50 tanques deguerra e dos dois primeiros submarinos de Israel. Destaforma, em 1960, ele renunciou às atividades militares.(Porém, seria chamado novamente a servir em 1967,tornando-se conselheiro do Ministro da Defesa em 1970,197374 e 1975.) Seu último compromisso como militarem 1960 foi um discurso sobre as estratégias militaresde Israel, apresentado na Noruega. Como descrito porNe'eman [10]:

Finalmente libertei-me e tornei-me um es-tudante em tempo integral em 1 de maio de1960 embora ainda tivesse que viajar maisuma vez à Noruega em outubro para apresentaruma palestra que tinha prometido sobre estra-tégias militares israelenses, no Círculo Militarde Oslo, com a presença e ativa participaçãode Sua Majestade o Rei Olaf V. A essa altura,eu já tinha conseguido me aprofundar no pro-blema de física que tinha escolhido, portanto otexto desta palestra foi publicado mais ou me-nos na mesma época que meu artigo sobre [asimetria] SU(3).

(A tradução é nossa.)

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3 Learn it in Depth!

Em Londres, a princípio, Ne'eman pretendia estudar te-oria da gravitação no King's College, com o astrofísicoHermann Bondi. Entretanto, devido à longa distânciaentre a embaixada israelense e a universidade, ele aca-bou se instalando no Imperial College, que cava a cincominutos de caminhada da embaixada.No Imperial College, juntou-se ao grupo de Abdus Sa-

lam no Departamento de Matemática, onde se estudavateoria quântica de campos. Salam inicialmente estra-nhou o interesse do coronel pela física, relutando emaceitá-lo como estudante. (Ne'eman apresentou-se far-dado com o uniforme das forças armadas israelenses.)Acabou aceitando-o por um período de experiência, maispor seu diploma universitário do conceituado Technion(Instituto Tecnológico de Israel) do que por sua cartade recomendação, escrita pelo General Moshe Dayan.Durante o período de experiência no curso de Salam,Ne'eman entrou pela primeira vez em contato com ateoria de grupos, cando fascinado pelo tema. A apli-cação de teoria de grupos à classicação das partículaselementares e representação de suas simetrias era umverdadeiro desao na época e ele se decidiu por esse tó-pico de pesquisa para o doutoramento. À medida queNe'eman apresentava suas ideias a Salam [1, 10], estecontava-lhe que outro físico já havia tentado desenvol-ver aquela mesma ideia alguns anos antes, sem sucesso.Ne'eman então apresentava outras propostas, que Sa-lam dizia terem sido testadas há menos tempo. Issofez com que Ne'eman ganhasse conança e buscasse no-vas soluções, pois sentia que estava se aproximando dopresente. Além disso, sentiu-se motivado por chegaràs mesmas propostas que os importantes físicos citadospor Salam, entre os quais estava o brasileiro Jayme Ti-omno. Salam, porém, mostrou-se impaciente e disse-lhe que queria transferi-lo a um problema mais simples,para que o trabalho de doutorado fosse terminado den-tro do prazo.1 Devido à insistência de Ne'eman, Salamnalmente concordou com seu projeto de estudo, masaconselhou [5, 10, 13]:

Você está embarcando em uma pesquisa alta-mente especulativa; entretanto, se você insiste,vá em frente com ela, mas faça-o seriamente.Não se satisfaça com o pouco de teoria de gru-pos que lhe ensinei, que é o que eu conheço.

1Curiosamente, o problema teórico mais simples sugerido porSalam só foi resolvido por Peter Higgs em 1964, resul-tando na proposta do bóson de Higgs; a busca por esta partículatornou-se um dos maiores desaos experimentais da física de altasenergias e foi a principal motivação para construção do acelera-dor de partículas LHC, no CERN [12]. Primeiras evidênciais daexistência do bóson de Higgs foram anunciadas em 2012, quase50 anos após sua proposta teórica. Peter Higgs recebeu o prêmioNobel de física de 2013, juntamente com François Englert.

Aprenda o assunto com profundidade! (Learnit in depth!)

(A tradução é nossa.)

Ne'eman então estudou arduamente teoria de grupos esua utilização para classicar as partículas elementares.Na época, os experimentos em aceleradores de partícu-las tinham permitido a descoberta de um grande númerode hádrons, i.e. partículas que interagem pela chamadaforça forte (como os prótons e os nêutrons). Clara-mente, cogitava-se que essas partículas não poderiamser todas elementares e que portanto deviam estar re-lacionadas umas às outras. Tentava-se então encontrarum esquema simples para classicação dos diversos há-drons, de forma que fossem evidenciadas as proprieda-des comuns a cada classe de partículas. No ano de 1961,Ne'eman propôs a organização dos hádrons de acordocom o grupo de simetria SU(3) [14, 15]. A proposta feita independentemente também por Murray Gell-Mann [15, 16] permitiu a classicação dos hádronsconhecidos na época e a previsão de novas partículas esuas propriedades, motivando a proposta e, alguns anosmais tarde, a aceitação do modelo de quarks. Na Se-ção 4 mais abaixo discutimos o modelo de quarks, osprincipais aspectos da força forte e algumas proprieda-des dos hádrons. Vejamos primeiramente, a seguir, umpouco sobre a teoria de grupos, tentando entender comoas contribuições de Yuval Ne'eman e de seus contempo-râneos zeram com que esse tópico deixasse de ser umramo da matemática quase desconhecido pelos físicos epassasse a ocupar uma posição central na física das in-terações fundamentais.

3.1 Teoria de Grupos e a Física

A busca por simetrias é de suma importância na física.De fato, pode-se explorar a simetria de um problemapara a obtenção de simplicações consideráveis ou de umacompreensão mais profunda do mesmo. A teoria de gru-pos permite o estudo matemático de simetrias, que estãogeralmente associadas a alguma propriedade invariantede um sistema físico. Mais precisamente, podemos de-nir simetria [17] como a qualidade de um objeto ou sis-tema que faz com que o mesmo não se altere de maneiraperceptível quando uma determinanda transformação éaplicada a ele. Por exemplo, a simetria entre lado es-querdo e direito do corpo humano equivale à invariânciasob reexão em relação ao plano vertical que separa osdois lados do corpo. A transformação nesse caso corres-ponde à inversão das coordenadas espaciais dos pontosdo sistema em relação ao plano de simetria. Esta deni-ção geral em termos de transformações estende a noçãousual que temos de simetria de um objeto associada aregularidade, harmonia, beleza podendo ser aplicada

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também às equações que denem o comportamento deum sistema. Em particular, são importantes as simetriasda interação que age sobre as partículas que o compõem.O conjunto de transformações que preserva uma dada

propriedade de um sistema (ou de uma interação) cons-titui o chamado grupo de simetria associado a essa pro-priedade. No caso da simetria por reexão em relaçãoa um plano, a transformação é única. Note tambémque após duas aplicações sucessivas dessa transforma-ção recupera-se a situação inicial, para qualquer sistema.Por outro lado, se considerarmos a simetria por rota-ção ao redor de um eixo, o número de transformaçõespossíveis é innito, pois podemos realizar rotações porângulos arbitrários em um contínuo de valores. Nos doiscasos, o conjunto de transformações associado à propri-edade de invariância (ou simetria) constitui um grupo.A noção de grupo originou-se nos estudos de equações

polinomiais pelo matemático francês Évariste Galois que morreu tragicamente (aos vinte anos de idade) emconsequência de um duelo, em 1832 e foi consoli-dada por volta de 1870, após o trabalho de Camille Jor-dan [18]. Para a relação com simetrias na física, sãoespecialmente importantes os chamados grupos de Lie,usados na descrição de transformações contínuas, como:as rotações, as transformações de Lorentz e as trans-formações associadas às simetrias de gauge, presentesnas teorias que constituem o Modelo Padrão das inte-rações fundamentais. (A cromodinâmica quântica ouQCD, que descreve a interação forte entre quarks, é umadessas teorias.)

Em linhas gerais [19], um grupo é uma coleção de ope-rações ou transformações satisfazendo à seguinte condi-ção:

A operação obtida pela combinação (i.e. a apli-cação sucessiva, ou produto) de duas operaçõespertencentes ao grupo também deve pertencera ele.

O grupo deve ainda exibir a propriedade associativa parao produto, deve incluir um elemento neutro ou opera-ção identidade, e deve conter para cada elemento o seuelemento inverso, de forma que o produto dos dois sejaa identidade.As condições acima são claramente satisfeitas pelas

rotações, que podem ser representadas por matrizes or-togonais, i.e. matrizes cuja inversa coincide com a suamatriz transposta. Note porém que a rotação (em trêsdimensões) resultante do produto de duas rotações aoredor de um ponto, diferentemente da rotação ao redorde um eixo, pode depender da ordem em que elas sãoaplicadas. Ou seja, nesse caso, o produto não é comu-tativo. Tal grupo é dito não-abeliano. No caso dasreexões em relação a um plano, o grupo é abeliano

e contém apenas dois elementos, que podem ser repre-sentados pelos números −1 (correspondendo à inversãodas coordenadas) e 1 (correspondendo à operação iden-tidade).

Uma vez identicado o grupo de simetria de um pro-blema, podem ser utilizados resultados de teoria de gru-pos para previsão e classicação dos possíveis estados fí-sicos do sistema considerado. Em particular, de acordocom o teorema de Noether enunciado em 1918 pelabrilhante matemática alemã Emmy Noether pode-seassociar a invariância sob uma certa transformação so-frida por um sistema a uma grandeza conservada, o quesimplica a descrição desse sistema. Por exemplo, a in-variância por translação das equações de movimento deuma partícula livre implica a conservação de sua quanti-dade de movimento (ou momento linear) e, portanto, aconservação de sua velocidade, que é a lei da inércia. Ainvariância por rotações, por sua vez, leva à conservaçãodo momento angular L, um conceito de grande impor-tância em mecânica clássica (que explica, por exemplo,a rotação dos planetas) cuja extensão quântica é igual-mente importante, já que está associada a propriedadescomo o spin das partículas. É claro, então, que a percep-ção de simetrias como invariâncias por transformaçõesintroduz naturalmente na física a linguagem de teoria degrupos. Além disso, o interesse na descrição por meiode teoria de grupos deve ser maior na física quânticado que na física clássica, já que no mundo microscópicoos objetos de mesmo tipo considerados (e.g. elétrons,átomos, moléculas) são realmente idênticos entre si eportanto indistinguíveis, o que aumenta a simetria nosproblemas estudados.

De fato, na física de partículas, além das grande-zas conservadas classicamente (energia, momento linear,momento angular e carga elétrica), observações experi-mentais permitiram a denição de outros números quân-ticos conservados, como os números leptônico, bariônico,estranheza e isospin (que serão vistos na Seção 4). Essasleis de conservação têm um papel fundamental nas inte-rações entre as partículas elementares, permitindo dis-criminar entre processos elementares que podem acon-tecer e aqueles que são proibidos. (Para a física de par-tículas, saber o que não pode acontecer torna-se muitoimportante!) Assim, no limite em que a física é gover-nada pela leis probabilísticas da mecânica quântica, sãoos números (quânticos) conservados que estabelecem aidentidade das partículas sub-atômicas e, de certa forma,assumem o papel da cinemática clássica, determinandoa evolução do sistema [1]. Em particular, nesse limite,uma partícula não será mais descrita por sua posição noespaço, mas por uma função de estado, com determina-das propriedades de simetria. É a essas propriedades, enão às coordenadas espaciais e temporais, que podemosatribuir signicado. São as leis de conservação (decor-

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rentes das simetrias) que conferem realidade e objetivi-dade ao mundo microscópico. Nesse contexto, onde? equando? são perguntas relativamente irrelevantes [20].Apesar da grande importância que atribuímos hoje

aos grupos de simetria das interações fundamentais, aaceitação das ideias de teoria de grupos na física quân-tica não foi algo suave, como discutido em detalhe naReferência [21] e descrito brevemente a seguir.No início do século XX quando foi formulada a base

matemática da mecânica quântica (incluindo por exem-plo o cálculo matricial, que não era usado pelos físicosna época) a descrição em termos de teoria de grupose suas representações foi introduzida na física quânticapor Hermann Weyl, no contexto da chamada simetriade gauge, inspirada no eletromagnetismo. Essas ideiasforam adotadas por Eugene Wigner, entre outros, e apli-cadas com sucesso ao estudo de espectros de energiaatômicos, tendo como base as representações do grupode rotações em três dimensões [22]. Mais precisamente,os valores para a energia (i.e. o espectro) de átomos emoléculas dependem dos estados físicos possíveis para osistema; esses estados são descritos por funções com si-metria bem denida, o que permite a sua classicação ea determinação de propriedades físicas (como regras deseleção para transições entre estados) a partir do grupode simetria envolvido.Ao mesmo tempo, o formalismo foi considerado obs-

curo e desnecessariamente complexo por vários físicos,tendo sido ironizado e chamado de a peste dos grupos(do alemão Gruppenpest) por Paul Ehrenfest em 1928,em uma carta enviada pelo mesmo a Wolfgang Pauli.O termo tornou-se popular entre os físicos da época, emuitos caram aliviados quando, em 1929, John Slaterdemonstrou que a descrição dos espectros de energia atô-micos podia também ser obtida sem o emprego de teoriade grupos. Dizia-se então que Slater tinha exterminadoa peste dos grupos. Nas décadas seguintes o empregode teoria de grupos praticamente desapareceu da físicae foi somente em 1949, com o trabalho de Giulio (Yoel)Racah, que a teoria de grupos se tornou parte aceitada descrição da espectroscopia atômica. Mesmo assim,essa ferramenta teórica não era ainda utilizada de ma-neira sistemática no estudo da física de partículas, comoilustrado na próxima seção.

3.2 A Contribuição de Ne'eman

Nesta seção discutimos a participação de Ne'eman naidenticação do grupo de simetria por trás do modelode quarks. São descritos apenas brevemente os aspectosmatemáticos ligados à teoria de grupos. (Alguns dessesaspectos estão discutidos com mais detalhes e exempli-cados no Apêndice.) A explicação de conceitos físi-cos como isospin, estranheza e hipercarga, assim como

a discussão das propriedades de bárions e mésons, serádeixada para a Seção 4.1 abaixo.As primeiras tentativas para classicar e explicar as

dezenas de partículas elementares conhecidas a partirda década de 50 eram baseadas na chamada simetriade isospin ou spin isotópico e suas possíveis generali-zações [23]. Essa simetria permite agrupar hádrons demassas aproximadamente iguais (mas com cargas elétri-cas diferentes) em multipletos, como o dubleto formadopelos núcleons, i.e. prótons p e nêutrons n, ou o tri-pleto dos píons: π+, π0, π−. Com a grande proliferaçãode novas partículas incluindo as chamadas partícu-las estranhas, também agrupadas em multipletos espe-cícos era natural procurar por uma simetria maisalta, que englobasse vários multipletos. Alguns dessesestudos utilizavam teoria de grupos, buscando descre-ver os estados observados de hádrons como represen-tações de algum grupo. (Chama-se de representação auma maneira concreta de exprimir um grupo, como arepresentação em termos de matrizes ortogonais para ogrupo das rotações; os multipletos, que contêm estadosde certa forma equivalentes, correspondem a representa-ções irredutíveis.) Como descrito a seguir, procurou-seinicialmente identicar o grupo de simetria dos hádronsem manifestações da sua representação fundamental, apartir da qual podem ser construídas todas as outrasrepresentações do grupo.2 No caso dos grupos SU(N),isto signica uma representação com dimensão N , ouseja N objetos elementares dos quais os hádrons fossemformados.Nessa época, receberam bastante atenção as ideias ba-

seadas no modelo proposto em 1956 por Shoichi Sakata[24], no qual todos os hádrons eram considerados comocombinação de prótons, nêutrons e da partícula Λ0. Astrês partículas fundamentais do modelo de Sakata foramassociadas (por sugestão de I. Yukawa [5]) a uma repre-sentação tridimensional do grupo SU(3) por M. Ikeda,S. Ogawa e Y. Ohnuki [25], que desta forma calcula-ram o espectro completo para os hádrons conhecidosaté então. Um pouco mais tarde, R. E. Behrends e A.Sirlin [26] consideraram o grupo G(2), sugerindo a as-sociação de uma representação (de dimensão 7) de umde seus subgrupos aos multipletos de isospin dados pe-los conjuntos de partículas N = (p, n), Ξ = (Ξ0,Ξ−) eΣ = (Σ+,Σ0,Σ−). As rotações nesse espaço de dimen-são 7 permitiam misturar as sete partículas. Tentava-se, desta forma, adivinhar quais dos hádrons eram ver-dadeiramente elementares, supondo-se que todos os ou-tros seriam formados a partir deles. Note que todas aspartículas enumeradas acima, exceto os píons, são bári-ons, ou seja, hádrons semelhantes aos núcleons. Na no-

2Como exemplo, ilustramos no Apêndice a obtenção das repre-sentações singleto e tripleto a partir do produto direto de cópiasda representação fundamental do grupo SU(2).

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tação aqui utilizada, os índices superiores correspondemà carga elétrica das várias partículas. As anti-partículas,que possuem mesma massa e números quânticos opostosaos das partículas, são denotadas com uma barra, e.g. ppara o anti-próton.

A ideia de que todos os hádrons sejam formados apartir de um pequeno número deles mesmos pode pa-recer absurda hoje em dia, mas teve grande aceitaçãona época. Em particular, uma versão anterior dessaideia tinha sido sugerida em 1949 por E. Fermi e C.N.Yang [27] para descrição dos mésons π como estadoscompostos de núcleons e anti-núcleons. De acordo comeste esquema, partículas de carga negativa podem serformadas por um nêutron e um anti-próton, que pos-sui carga inversa à do próton, e assim por diante. Esseesquema pode ser entendido em termos de representa-ções do grupo SU(2) para a simetria de isospin, a partirda representação fundamental (p, n) e da representaçãocorrespondente para os anti-núcleons (p, n). (A constru-ção de representações de SU(2) está exemplicada noApêndice.) Na generalização introduzida por Sakata, ainclusão da partícula Λ0 na representação fundamentaltornou-se necessária devido à propriedade de estranhezavericada para alguns hádrons. Não havia, porém, umaexplicação para o fato de a partícula Λ0, um bárion es-tranho, ocupar uma posição privilegiada no modelo emrelação aos outros bárions estranhos.

Os esquemas de classicação baseados no modelo deSakata foram posteriormente descartados com base ex-perimental, à medida que foram descobertos novos há-drons, mas sua inuência no início dos anos 60 era muitoforte (ver e.g. [28]). Como veremos abaixo, até que fosseconrmada a classicação introduzida por Ne'eman, eraesse o principal modelo para descrição dos hádrons.Nesse período havia dúvidas crescentes em relação aopróprio conceito de partículas quando aplicado aos há-drons. Em particular, não se acreditava que o trata-mento de teorias quânticas de campos, que fora tãobem sucedido na eletrodinâmica quântica (ou QED, ateoria que descreve as interações eletromagnéticas), pu-desse ser aplicado à interação forte e aos hádrons. Oimpasse levou a propostas bastante criativas [20], comoo chamado modelo bootstrap, em que todas as partícu-las eram consideradas fundamentais e formadas a partirdelas mesmas, em um tratamento que deixava de ladoa explicação da origem fundamental das simetrias ob-servadas. A principal ênfase desse modelo era a buscade regras para descrição da matriz de espalhamento(ou matriz S), ligando estados iniciais e nais de re-ações envolvendo as partículas, não importando quaisfossem fundamentais. O método, introduzido por Ge-orey Chew, era motivado pelo cenário batizado porele de democracia nuclear. Vê-se portanto como es-tava confusa a situação da classicação dos hádrons na

época, e que ideias de teorias de grupo começavam aser utilizadas, mas de maneira ainda errática, buscandosempre uma associação entre famílias de multipletos ea chamada representação fundamental de algum grupo.Voltemos agora ao caminho utilizado por Ne'eman paratratar do problema.

Como dito anteriormente, Ne'eman foi aconselhadopor Salam a aprofundar seus conhecimentos de teoriade grupos. Desta forma, ele procurou [1, 10, 13] apren-der a classicação das álgebras de Lie em trabalhos domatemático russo Eugene B. Dynkin, traduzidos pelaAmerican Mathematical Society e sugeridos por Salam.Na época, a teoria relacionada aos grupos de Lie de-senvolvida quase 100 anos antes pelo matemático norue-guês Sophus Lie não era bem conhecida pelos físicos,e tinha sido aplicada somente a problemas envolvendosimetrias de cristais. Na Referência [13], Ne'eman contacomo foi difícil chegar aos trabalhos de Dynkin, e comocou surpreso em saber que um dos maiores especialistasem teoria de grupos de Lie da época era Giulio Racah, is-raelense como ele. Hoje em dia a teoria de grupos de Liepode ser vista em cursos de graduação e pós-graduaçãoem física e é coberta em detalhe em diversos livros deteoria de grupos com aplicações na física (ver por exem-plo [29, 30, 31]). Uma referência introdutória bastantedetalhada e útil é o livro [32]. A Referência [33], emportuguês, trata em detalhes o problema da classica-ção dos hádrons. No Apêndice, apresentamos uma des-crição geral sobre grupos de Lie, ilustrada pelo exemplodas rotações (tridimensionais) em mecânica quântica epelo caso de momento angular de spin. Utilizando entãoas regras para adição de momentos angulares, exempli-camos a obtenção de representações para a simetriaSU(2) de spin, que pode ser generalizada para descriçãoda propriedade de isospin mencionada acima.

A aplicação de teoria de grupos aos casos das rota-ções e do spin representa uma complementação do es-tudo usual desses tópicos, que é normalmente feito semreferência às propriedades de simetria explicitamente.Porém, vemos que a análise sob o ponto de vista dassimetrias é mais clara e concisa, permitindo maior gene-ralidade. Além disso, para problemas cuja solução não éainda entendida, tentar associar estados físicos observa-dos a representações pode ajudar muito na identicaçãodo grupo de simetria envolvido, levando à classicaçãosistemática de tais estados e, potencialmente, à identi-cação da teoria por trás das interações que dão ori-gem a tais estados. Mais especicamente, a observaçãode estados multipletos pode estar relacionada a dege-nerescências dentro de uma representação irredutível, eportanto podem-se observar padrões obtidos no experi-mento e tentar associá-los aos multipletos de uma dadarepresentação de um grupo. A tarefa importante nessecaso é identicar quais grupos tem a estrutura obser-

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vada, com esses padrões bem denidos [38]. Este foi ocaso do modelo de quarks. Era necessário ir além dadescrição da propriedade de isospin mencionada acima,baseada na simetria SU(2), e considerar uma classica-ção em que os hádrons se estruturassem de acordo comuma simetria de ordem mais alta, que não estaria ligadaa um conjunto de hádrons mais fundamentais. A obten-ção dessa descrição foi a contribuição de Ne'eman paraclassicação dos hádrons.

Note que, no casos do momento angular e spin (dis-cutidos no Apêndice), respectivamente associados aosgrupos SO(3) e SU(2), temos grupos de dimensão 3 eposto 1. O posto de um grupo de Lie é igual ao númerode grandezas conservadas (números quânticos) para osistema físico. Um passo muito importante dado porNe'eman foi intuir a necessidade de considerar gruposde Lie de posto 2, devido à conservação da hipercargaY e da componente z do isospin I3. (Essas grandezas se-rão descritas na Seção 4.1 abaixo; notemos, porém, queequivalentemente podem-se utilizar as grandezas estra-nheza, que mencionamos acima, e carga elétrica.) Aomesmo tempo, ele não se limitou à representação funda-mental do grupo, o que seria mais tarde uma indicaçãoda presença de uma sub-estrutura para os hádrons, quasão formados por quarks.Na Ref. [10] Ne'eman relata os estágios nais de seu

estudo e a coincidência de ter chegado à descrição cor-reta praticamente ao mesmo tempo que o físico ameri-cano Murray Gell-Mann:

...Eu percebi que apenas cinco grupos eram pos-síveis, e comecei a examinar cada um deles se-paradamente. Recordo-me que um desses gru-pos [chamado G(2)] levava a diagramas com aforma da estrela de Davi,3 e torci para que essefosse o grupo correto, mas não era. Por ou-tro lado, SU(3) ajustou-se perfeitamente! Euterminei meu trabalho em dezembro de 1960,e discuti sobre ele com Salam. Então eu en-viei um artigo para publicação no início deFevereiro de 1961, que foi publicado logo de-pois. Murray Gell-Mann do Caltech estava tra-balhando no mesmo problema ao mesmo tempoe tinha chegado à mesma conclusão.

(A tradução é nossa.)

Assim, enquanto Ne'eman concluía seu trabalho, Mur-ray Gellmann, nos Estados Unidos, também encaixavapedaços do quebra-cabeça para descrição dos estadoshadrônicos. Gell-Mann, que foi responsável por diver-sos avanços teóricos para a física de partículas e era já

3O diagrama correspondente ao grupo G(2) é ilustrado na Se-ção 5.

um dos pesquisadores mais importantes na área, identi-cou (independentemente de Ne'eman) o grupo SU(3)para classicação dos hádrons. O esquema foi chamadopor ele de caminho óctuplo (eightfold way em inglês),devido à presença de multipletos com oito objetos. É cu-rioso notar que ele tampouco possuía familiaridade comteoria de grupos [21]:

Murray Gell-Mann teve que ser informado porum matemático no outono de 1960 de que osobjetos bonitinhos com que ele estava brin-cando no desenvolvimento inicial da álgebra decorrentes eram bem conhecidos pelos matemá-ticos como grupos de Lie e possuíuam uma ela-borada teoria.

(A tradução é nossa.)

Como veremos,4 o esquema baseado no grupo SU(3)para classicação dos hádrons foi o primeiro passo paraidenticação dos quarks como sub-estrutura por trás doshádrons. O modelo de quarks, introduzido por Gell-Mann em 1964, incorpora o esquema SU(3) e explicaas representações observadas a partir do produto diretodas representações fundamentais baseadas em três ti-pos de quarks. É preciso notar, porém, que o esquemaSU(3) teve conrmação e aceitação relativamente rá-pidas (como descrito no nal da Seção 4.1), enquantoque o modelo de quarks permaneceu um tópico contro-verso por muitos anos, sendo aceito nalmente apenasem 1974 (ver Seção 4.2). De fato, embora hoje possa pa-recer mais importante a identicação dos quarks comosub-estrutura dos hádrons do que sua classicação re-sultante segundo o grupo SU(3), essa última era certa-mente melhor estabelecida na época, e foi a principalrazão para a atribuição do prêmio Nobel de 1969 a Gell-Mann (ver e.g. [39]). Alguns aspectos do relacionamentopessoal entre Ne'eman e Gell-Mann estão discutidos naSeção 5 abaixo.Podemos avaliar o impacto da descoberta de Ne'eman

a partir do seguinte trecho, assinado por amigos de Yu-val, publicado no CERN Courier [65]:

De acordo com os multipletos SU(3) de Gell-Mann e Ne'eman, os núcleons eram membrosde uma representação octeto, em vez de per-tencerem ao tripleto fundamental. Além do oc-teto, multipletos de massas mais altas tambémcontinham vários estados ainda não descober-tos, incluindo a ilustre partícula Ω− no decu-pleto.5 Sua descoberta em 1964 com as pro-priedades previstas forneceu uma corroboração

4Na Seção 4.1 é ilustrada a classicação SU(3) de Ne'eman eGell-Mann e são descritos os acontecimentos que levaram à suaaceitação.

5Ver nal da Seção 4.1.

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triunfal do esquema de classicação SU(3) efísicos de partículas correram então a estudarteoria de grupos.

(A tradução é nossa.)

Portanto, a contribuição de Ne'eman para a compre-ensão dos estados hadrônicos, baseada na utilização deteoria de grupos de maneira não trivial indo além daideia de alguns bárions privilegiados na representaçãofundamental de um grupo teve como consequência avalorização do próprio estudo de teoria de grupos. Veja-mos esse aspecto com maior detalhe. O papel do grupoSU(3) no modelo de Sakata estava ligado à extensão douso da representação fundamental do grupo SU(2) deisospin, adicionando-se a partícula Λ0 ao próton e aonêutron. (Exemplos da formação de partículas segundoesse modelo são dados na Referência [33].) Apesar de tersido usado como exemplo de aplicação de teoria de gru-pos e como referência para seus aspectos técnicos [34],podemos dizer que a ênfase do modelo não era nas pos-síveis representações do grupo SU(3), mas nos três ob-jetos que deniam a representação fundamental. Taisobjetos, as partículas (p, n,Λ0) e suas anti-partículas,eram os constituintes de todos os hádrons, ou seja omodelo satisfazia a ideia ou dogma, como dito maistarde por Ne'eman [5] de pequenos tijolos sólidos ebásicos no coração da matéria. Por outro lado, a classi-cação de Ne'eman parecia ignorar a questão dos cons-tituintes da matéria, já que os multipletos reetiam asrepresentações de ordem mais alta do grupo, sem incluira representação fundamental com três objetos. Comoenfatizado em [23]: a natureza parece preferir a simpli-cidade, mas tinha ignorado o três fundamental em favordo oito, ou será que não?A proposta de uma sub-estrutura, os quarks, por trás

da classicação SU(3) será discutida mais abaixo (Se-ção 4.2), incluindo a sugestão anterior à propostade Gell-Mann feita por Ne'eman e Goldberg parainterpretação da classicação como decorrente de trêsconstituintes fundamentais.

Podemos ver como o interesse por teoria de gruposcresceu enormemente do início para a metade dos anos60 e como o assunto não era conhecido anteriormente.Como exemplo, consideremos um curso de teoria de gru-pos ministrado por G. Racah no Instituto de EstudosAvançados em Princeton em 1951, frequentado por Gell-Mann e Salam, entre outros. No curso foram aborda-das as representações do grupo SU(3) como rotações emum espaço tridimensional complexo, além das rotaçõesusuais, mas isso não foi lembrado por eles mais tarde,quando apenas descrições baseadas nas rotações usuaisforam tentadas para a descrição inicial dos hádrons [1].Como lembrou Abraham Pais [23]:

Desde o início cou evidente que aqui nós, físi-cos, estávamos aprendendo a verdadeira arte.

...Porém na época eu, assim como os outros,não fui capaz de destilar as partes essenciaisdessas aulas que, mais tarde, seriam úteis nafísica de partículas.

(A tradução é nossa.)

Na metade dos anos sessenta essa situação já tinhamudado, tendo surgido artigos de revisão com ferramen-tas de teoria de grupos em física de partículas para ex-perimentais e não-especialistas, como [38]. Pouco tempodepois da proposta de Ne'eman e Gell-Mann, a classi-cação SU(3) foi obtida também por D. Speiser e J.Tarski [35] como parte de um estudo detalhado em queforam analisados todos os grupos possíveis para a clas-sicação de forma sistemática, em um tratamento maisgeral. Observamos que os dois pesquisadores, do Insti-tuto de Estudos Avançados em Princeton, iniciaram seuestudo em 1961, independentemente de Ne'eman e Gell-Mann. Como descrito em [36], contrariamente a seuscontemporâneos, David Speiser tinha bastante familia-ridade com teoria de grupos tendo caído dentro [docaldeirão] quando pequeno, como o mítico gaulês Obe-lix além de um conhecimento extenso em ciênciashumanas, que lhe permitiu dar contribuições em temasinterdisciplinares como a história da arquitetura e a his-tória da ciência. Em conclusão, a iniciativa dos autoresda classicação SU(3) mudou profundamente a maneiracomo era vista a teoria de grupos na época. É inte-ressante notar a estória contada pelo físico matemáticoFreeman Dyson, reproduzida em [37]:

No início do século passado o matemáticoOswald Veblen e o físico James Jeans estavamdiscutindo a reforma do currículo matemáticoda Universidade de Princeton. Jeans argumen-tou que a teoria de grupos deveria ser omitida,alegando que teoria de grupos era um assuntoque jamais seria útil na física. Veblen deve tervencido a discussão pois a teoria de grupos con-tinuou a ser lecionada. É de fato irônico quea teoria de grupos não só se tornou um dostemas centrais da física, mas grande parte dapesquisa inovadora [na área] foi desenvolvidajustamente em Princeton!

(A tradução é nossa.)

4 O Modelo de Quarks

Descrevemos nesta seção os aspectos principais do mo-delo de quarks, da introdução do conceito de forçaforte até o estabelecimento da teoria da Cromodinâmica

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Quântica (QCD). Como dito anteriormente na Introdu-ção, um ótimo livro didático sobre o assunto, em nívelbastante introdutório, é a Ref. [1], de Ne'eman e Kirsh.(Duas boas referências em nível um pouco mais avan-çado são [44] e [45].) Um bom texto de divulgação podeser encontrado em [46]. Aspectos históricos envolvendoa introdução e descoberta dos quarks são discutidos emdetalhe em [20], [23] e em [47], que também discute as-pectos sociológicos. Mencionamos também as seguintesreferências originalmente em português: o livro [48] so-bre a história da física de partículas e os artigos [41] e[42], respectivamente apresentando uma introdução di-dática à estrutura matemática dos estados ligados dequarks e uma discussão de questões epistemológicas li-gadas à proposta dos quarks como partículas elementa-res.

4.1 Interação Forte e Simetria

Quando estudantes se deparam pela primeira vez com omodelo atômico de Rutherford-Bohr, uma questão na-tural é: Como podem os prótons permanecer ligados nonúcleo atômico, sendo que eles possuem cargas elétricasde mesmo sinal e portanto deveriam se repelir? Essaquestão é resolvida postulando-se uma nova força, achamada força forte. Tal interação deve agir também so-bre os nêutrons, que não possuem carga elétrica. Comoo próprio nome diz, essa interação é de tal modo intensaque consegue manter ligadas as partículas no núcleo atô-mico, apesar da repulsão coulombiana entre os prótons.Por outro lado, a nova força deve possuir curto alcance,restringindo-se ao tamanho do núcleo, pois do contráriosua ação seria percebida em escalas maiores.Em 1935, o físico japonês Hideki Yukawa propôs uma

teoria [49] em que a força nuclear forte seria intermedi-ada por certas partículas massivas, mais tarde chamadasmésons π, ou píons. Segundo essa teoria, quando ocorreinteração pela força forte os núcleons trocam píons en-tre si, sendo o alcance da força determinado pela massados píons. A associação de uma interação com a trocade partículas (chamadas mediadoras) é natural na vi-são quantizada de campo, e dizemos, por exemplo, quea interação eletromagnética é intermediada por fótons.O alcance da interação está inversamente relacionadoà massa da partícula mediadora; no caso dos fótons amassa é zero e o alcance é innito. No caso da forçaforte, sabendo que o alcance é da ordem do tamanhodo núcleo, foi possível estimar a massa prevista para ospíons. Os mesmos foram chamados mésons porque suamassa está entre as massas altas dos núcleons (classi-cados como bárions) e a massa baixa dos elétrons (clas-sicados como léptons). Os píons só foram descobertosem 1947, por nosso compatriota César Lattes, em cola-boração com Giuseppe Occhialini e Cecil F. Powell [50].

A explicação da interação forte como troca de píonsfornece uma teoria efetiva que descreve bastante bemalguns aspectos gerais da força nuclear forte, mas foientendido posteriormente que a verdadeira interaçãoforte ocorre em um nível mais fundamental, entre osquarks, que compõem os hádrons, através da trocade glúons (análogos aos fótons no eletromagnetismo).Desta forma, a força que mantém prótons e nêutronsligados no núcleo atômico é dada por resquícios da in-teração entre os quarks; de maneira análoga, as forçasde van der Waals entre moléculas são resquícios da forçaelétrica entre prótons e elétrons no interior dos átomos.Nem todas as partículas interagem pela força forte.

O elétron e os neutrinos, por exemplo, não sentem essainteração. Assim, podemos dividir as partículas (semconsiderar as partículas mediadoras das interações) en-tre as que interagem pela força forte, chamadas de há-drons, e as que não interagem, os léptons. A proposta domodelo dos quarks engloba unicamente os hádrons, quepor sua vez são divididos em: bárions e.g. prótons enêutrons e mésons. Aos bárions pode ser associadoo chamado número bariônico, que é conservado nos pro-cessos envolvendo a força forte. Já o número de mésonsnão é necessariamente conservado em tais processos. Porexemplo, um próton pode absorver energia e dar origema um píon e um nêutron, como veremos mais abaixo naSeção 4.2. Neste caso é conservado o número bariônico(igual a 1 para o próton e para o nêutron) e é criado umméson, ou seja o número de mésons aumentou de 0 para1 no processo.Esse comportamento distinto de bárions e mésons está

indiretamente relacionado ao spin dessas partículas. Jáque o spin, assim como suas generalizações, constituium número quântico muito importante na classicaçãodas partículas elementares, descrevemos brevemente al-gumas de suas propriedades a seguir. (Maiores detalhessobre o spin e sobre o momento angular em geral podemser encontrados no Apêndice.) Em mecânica clássica ochamado momento angular de rotação uma impor-tante grandeza conservada quando não há aplicação detorques externos está associado à revolução do corpoao redor de um certo eixo. O spin, ou momento angularintrínseco de uma partícula, não possui uma explicaçãoclássica desse tipo, mas pode ser previsto teoricamentena mecânica quântica relativística, a partir da equaçãode Dirac. É comum apresentar o spin como um análogoquântico de rotação da partícula ao redor de seu eixointerno.6 De fato, partículas com spin podem apresen-tar um momento de dipolo magnético µ (proporcionalao valor s do spin), como seria esperado na física clás-sica para uma carga em movimento de rotação. No caso

6É preciso enfatizar que esta é apenas uma analogia já que,como discutido no Apêndice, o momento angular de spin não cor-responde a uma rotação física.

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de um momento magnético não nulo, o spin tende a sealinhar com um campo magnético externo e este ali-nhamento pode ser observado experimentalmente. Talefeito parece natural no caso de partículas que possuemcarga elétrica, como o elétron, mas foi observado tam-bém para o nêutron; essa observação experimental foiuma das primeiras indicações de que o nêutron não erauma partícula realmente elementar, apresentando umaestrutura interna.7

Os spins podem ser pensados como vetores de móduloh√s(s+ 1), onde h é a constante de Planck racionali-

zada e s é quantizado, podendo ser apenas um númerointeiro ou semi-inteiro. Da mesma forma, as projeçõesdo spin (por exemplo na direção do campo magnético)podem assumir apenas certos valores quantizados. Maisprecisamente, no caso de um spin s temos 2s+1 possíveisprojeções, dadas por

−hs, h(−s+ 1), . . . , h(s− 1), hs .

Ou seja, as projeções também são quantizadas.No caso de spin inteiro a partícula é chamada de bó-

son e no caso semi-inteiro de férmion. Os elétrons, porexemplo, são férmions e tem spin igual a 1/2, podendoportanto apresentar 2 × 1/2 + 1 = 2 valores para ascomponentes ou projeções: spin apontando para cimaou para baixo. Quanto aos hádrons, vemos que os bá-rions apresentam spin semi-inteiro, isto é, são férmions,enquanto que os mésons são bósons. Há uma diferençacrucial de comportamento entre férmions e bósons, asso-ciada ao Princípio de Exclusão de Pauli, discutido Seção4.3.Outra grandeza importante para a classicação dos

hádrons é a hipercarga Y dada por

Y = B + S , (1)

onde B é o número bariônico descrito acima (i.e. 1 parabárions e 0 para mésons) e S é a estranheza, que tam-bém é conservada em processos envolvendo a força forte.A estranheza associada a um número quântico S foi introduzida por Murray Gell-Mann em 1953 para ex-plicar o curioso fato de que, nas reações observadas emaceleradores, alguns hádrons eram produzidos apenasaos pares, apresentando depois um tempo de decaimentomuito maior do que o esperado. Dizia-se então que aspartículas com essa propriedade possuíam estranheza.Note que a conservação da estranheza explica que par-tículas estranhas sejam criadas aos pares, por exemplocom S = 1 e S = −1 de forma que a estranheza totalseja 0, como na situação inicial. Fica também claro porque o decaimento dessas partículas é lento se supusermos

7NOTE: momento magnetico do neutrino, devido `amassa, vem de correcoes radiativas (e' minusculo)

que a estranheza não seja conservada pela interação res-ponsável pelo decaimento de uma partícula estranha emuma não-estranha. De fato, a interação forte conserva aestranheza e portanto tal decaimento deve ocorrer poração da força fraca, o que determina o tempo de vidamais longo para tais partículas.

ph

p p

K-

K0

_

0- +

K+Y

I3

-1

0

1

-1 0 1

K0

rw

r r

K -K

0_

0- +

K+

I3-1 0 1

K0

* *

* *

O pctetoSpin 0

O rctetoSpin 1

0

Figura 2: Diagramas (hexágonos) representando mésonsno plano I3Y . Cada octeto é formado por partículasde mesmo spin (respectivamente 0 e 1). Nos dois casos,temos B = 0.

Como já mencionado na Seção 3.2, uma grandeza cen-tral na classicação dos hádrons é o isospin. Ela foiintroduzida por Werner Heisenberg em 1932 para repre-sentar próton e nêutron que possuem praticamentea mesma massa como dois estados diferentes de umaúnica partícula, o núcleon. Assim, por analogia como spin, o isospin I do núcleon foi tomado igual a 1/2,de forma que os estados próton e nêutron podem serassociados aos dois valores permitidos para a projeçãodo isospin na direção espacial z (por exemplo), indicadacom I3. Temos assim os valores I3 = 1/2 (correspon-dendo ao próton) e −1/2 (correspondendo ao nêutron).O isospin é conservado nas interações fortes, o que podeser associado a uma invariância por rotações no espaçode isospin. Isto implica que a interação forte não distin-gue entre prótons e nêutrons e, consequentemente, nãoestá relacionada à carga elétrica. Note que a simetriaassociada ao isospin não é perfeita na natureza, já queé respeitada pela força forte mas quebrada pela forçaelétrica. (Este é porém um efeito pequeno, já que a in-tensidade da força elétrica é pequena comparada com ada força forte.)acabar com citacao de Fermi 1951, em Pais (p. 495)

sobre fato de que proton/neutron/pion nao eram os com-ponentes elementares da materia hadronica, ver geneticO conceito de isospin pode ser generalizado para gru-

pos de partículas com massas aproximadamente iguais,que também podem ser pensadas como versões dife-rentes da mesma partícula. Vemos que dentro de um

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multipleto de partículas a carga elétrica varia de umapara outra por uma unidade, o que pode ser associado àprojeção I3 do isospin, de forma que as 2I + 1 projeçõespara a componente I3 do isospin com valor I represen-tem as partículas do multipleto, que possuem mesmonúmero bariônico e spin. Temos assim por exemplo omultipleto de isospin formado pelos três píons (citadoacima na Seção 3.2): (π+, π0, π−), com I = 1 (i.e. 3partículas), s = 0, B = 0 e também para as partículas∆: (∆++, ∆+, ∆0, ∆−), com I = 3/2 (i.e. 4 partícu-las), s = 3/2, B = 1. Vejamos agora a organização doshádrons de acordo com as grandezas Y e I3. Note queesta classicação pode ser feita de maneira equivalenteem termos da estranheza e da carga elétrica.Se inicialmente dividirmos os hádrons em quatro gru-

pos, de spin 0, 1/2, 1 e 3/2, e posteriormente os distri-buirmos num diagrama de hipercarga Y versus I3, ob-teremos os quatro diagramas das Figs. 2 e 3. Como ditoacima, partículas com mesma hipercarga Y e isospin Iformam multipletos (um por linha nas guras), cujaspartículas possuem aproximadamente a mesma massa esão indexadas pelos valores de I3, correspondendo a dife-rentes valores para a carga elétrica. Como dito acima, onúmero de elementos de cada multipleto é igual a 2I+1,sendo I3 = −I,−I+1, . . . , I−1, I. Assim, as partículasde um dado multipleto possuem carga elétrica média Qdada por Q = Y/2. (Observe que, xado o isospin I, ovalor médio de I3 é sempre zero.) A carga elétrica Q daspartículas é dada pela formula de Gell-Mann-Nishijima[1]

Q = I3 +1

2Y = I3 +

B + S

2. (2)

Isso implica que Y = 2(Q − I3). Essas relações po-dem facilmente ser vericadas nas Figs. 2 e 3 e foram degrande importância na organização das partículas co-nhecidas inicialmente e na previsão de novas partículashadrônicas.Claramente, a organização dos multipletos de isospin

da forma mostrada acima sugere uma forte simetria ea possibilidade de empregar teoria de grupos no estudodas propriedades das partículas. Porém é importantelembrar que na época dos trabalhos de Ne'eman e Gell-Mann ainda não se haviam observado todas as partículaspresentes nos diagramas das Figs. 2 e 3, de modo quenão estava clara a maneira de agrupar os vários hádrons,além de não se saber qual o grupo de simetria corretoa se aplicar. Como explicado na Seção 3.2 acima, ostrabalhos de Ne'eman [14] e de Gell-Mann [16] permiti-ram identicar o grupo de simetria SU(3), que admiterepresentações na forma de octeto e decupleto.Posteriormente, Gell-Mann e Ne'eman publicaram

juntos uma coleção de artigos sobre o esquema SU(3)[15].A descoberta da particula Ξ∗(1530), cuja massa estava

SL

S S

X-

X0

0

- +

I3-1 0 1

I3-1 0 1

0

n pY

-1

0

1

-2W-

X-

X* *

U-* U U

* *+0

D0

D D D- + ++

0

OctetoSpin 1/2

N DecupletoSpin 3/2

D

Figura 3: Diagramas representando bárions no planoI3Y . No octeto as partículas possuem spin 1/2 e nodecupleto as partículas possuem spin 3/2. Nos dois casosB = 1.

de acordo com a fórmula de Gell-Mann-Okubo, permitiua previsão teórica de uma nova partícula [53], chamadana epoca de Z− e hoje conhecida como Ω−. Esses novosresultados levaram à aceitação do modelo de Gell-Manne Ne'eman. Goldberg e Ne'eman. hunters pg 201206, Dynkin 205, Racah 201

A propósito, é interessante a discussão recente deHarry J. Lipkin [34] sobre a importância de uma cor-reta interpretação dos dados experimentais para a com-provação de uma teoria. Neste caso tal interpretaçãopermitiu demonstrar, corretamente, o desacordo entreas previsões do modelo de Sakata e a natureza. Por ou-tro lado, como descrito nessa referência, experimentosmal interpretados conduziram inicialmente à incorretaconclusão ...Na próxima sub-seção discutimos como foi conciliada

a identicação do grupo de simetria das interações fortescom a proposta de que os hádrons fossem compostos departículas mais elementares, os quarks.

4.2 Introduzindo os Quarks

Apesar do ótimo acordo dos diagramas das Figs. 2 e 3com a proposta de uma simetria SU(3), restava enten-der por que a simetria era manifestada na forma de octe-tos (que pertencem à chamada representação adjunta dogrupo) e não pela representação fundamental, que cor-responderia a 3 objetos. see hargittai pg 47; ver Lipkin,outras refs? (refs 9, 11 de hargittai??)Em 1962, trabalhando juntamente com Haim Gold-

berg (que tinha sido estudante de Giulio Racah em Is-rael), Ne'eman buscou compreender a origem desta si-metria. Esse trabalho [51] resultou na proposta pioneira

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Tabela 1: Propriedades dos três quarks mais leves. Ascolunas representam a carga elétrica Q, o número bari-ônico B, a componente I3 do isospin e a estranheza S.Os quarks possuem spin 1/2.

Quark (sabor) Q B I3 Su 2/3 1/3 1/2 0d -1/3 1/3 -1/2 0s -1/3 1/3 0 -1

de um modelo no qual os hádrons não seriam mais vis-tos como verdadeiras partículas elementares, mas simcomo estados ligados de constituintes fundamentais comnúmero bariônico 1/3, explicando a contabilidade dosestados de bárions, número bariônico B = 1/3 × 3 = 1e mésons, com B = 1/3 − 1/3 = 0. Mais precisa-mente, Ne'eman e Goldberg sugeriram que cada par-tícula do octeto de bárions (como prótons e nêutrons)fosse composta por três dessas componentes fundamen-tais [51, 52]. Essa nova teoria não teve destaque imedi-ato. Em boa parte isso foi devido a resultados experi-mentais errados [34]. Como consequência, as ideias deGoldberg e Ne'eman foram consideradas em desacordocom os experimentos e temporariamente esquecidas.A propósito, é interessante a discussão recente de

Harry J. Lipkin [34] sobre a importância de uma cor-reta interpretação dos dados experimentais para a com-provação de uma teoria. Neste caso tal interpretaçãopermitiu demonstrar, corretamente, o desacordo entreas previsões do modelo de Sakata e a natureza. Por ou-tro lado, como descrito nessa referência, experimentosmal interpretados conduziram inicialmente à incorretaconclusão ...Porém, no ano de 1964 Murray Gell-Mann [52] e Ge-

orge Zweig [54] apresentaram trabalhos individuais inde-pendentes explicitando maiores detalhes de uma teoriasemelhante, na qual Gell-Mann denominava as três par-tículas com número bariônico 1/3 de quarks. O nome foitomado por Gell-Mann da frase Three quarks for Mus-ter Mark! do livro Finnegan's Wake de James Joyce.Devido à descoberta em 1964 nos Laboratórios de Bro-okhaven da partícula Ω− [55], prevista pela teoria, aclassicação SU(3) ganhou popularidade rapidamente.(O episódio da ligação da descoberta da partícula aomodelo de quarks é discutido na Seção abaixo.)No modelo de Gell-Mann, a proposta da simetria

SU(3) para os hádrons corresponde aos três tipos ou sabores de quarks de menor massa (o sucientepara explicar os hádrons conhecidos na época), chama-dos up (u), down (d) e estranho (s). Os quarks têm spin1/2. Propriedades desses quarks são dadas na Tabela1. Note que para cada quark há um anti-quark, com

números quânticos opostos. De acordo com o modelodos quarks, os mésons são formados por um quark e umanti-quark e os bárions por três quarks. Prótons e nêu-trons, por exemplo, são formados apenas por quarks ue d. Consideremos o decupleto da Fig. 3. Pelo modelodos quarks, as partículas são constituídas pela combi-nação dos quarks up, down e estranho, como ilustradona Fig. 4. Os estados ligados (hádrons) seriam forma-dos a partir do chamado produto direto de objetos narepresentação fundamental, de forma que a composiçãode três quarks leve a 1 singleto, 2 octetos e 1 decupletopara os estados ligados, o que é representado como

3× 3× 3 = 1 + 8 + 8 + 10 .

Da mesma forma, a combinação de um quark com umanti-quark leva a

3× 3 = 1 + 8 .

Na Fig. 4 apresentamos como ilustração o conteúdo dequarks para as partículas do decupleto de bárions daFig. 3.Pode-se vericar prontamente a equivalência da pro-

posta de quarks com as conservações de números quânti-cos discutidas na seção anterior. Por exemplo, comovemos na Fig. 4, a partícula Ω− é constituída por trêsquarks s. Como é denido que cada quark s possui carga-1/3, estranheza -1, e número bariônico 1/3, a soma totalde suas propriedades confere exatamente com o forne-cido pela nossa Fig. 3. Por exemplo, usando a Equação(1) temos Y = 3 ∗ 1/3− 3 ∗ 1 = −2.Apesar do sucesso do modelo em explicar as classes

de hádrons, não houve, por um bom tempo, consenso arespeito da verdadeira existência dos quarks. O próprioGell-Mann escreveu em 1964 sobre a possibilidade deessas entidades serem realmente partículas físicas [15,52]:

É divertido especular sobre como os quarks secomportariam se fossem partículas físicas demassa nita (ao invés de entidades puramentematemáticas como elas seriam no limite demassa innita).

(A tradução é nossa.)

Alguns defendiam que essas entidades eram apenasferramentas matemáticas, usando como argumento a au-sência de sua observação direta. Tal observação aparen-temente seria simples, pois bastaria encontrar partículascom carga elétrica fracionária (ver Tabela 1). Citandomais uma vez Gell-Mann [15, 52]:

Uma busca por quarks estáveis de carga -1/3ou +2/3 ... nos aceleradores de maior energia

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(uuu) D

XU

W(uud)

(udd)

(ddd)

(uus)

(uds)

(dds)

(uss)

(dss)(sss)D

D

D

U

U

X*

++

+

-

0

*

*+

-

0

*-

*0

-

Figura 4: O decupleto da Fig. 3 acima, mas agora mos-trando os conteúdos de quarks para cada bárion. colo-car I=3/2, etc nas verticais na gura!!

ajudaria a nos assegurar da não-existência dequarks reais.

(A tradução é nossa.)

Podemos supor que Gell-Mann relutasse em defenderdiretamente a existência dos quarks. Note também queo artigo inicial de Ne'eman [51] não foi incluído no livroThe Eightfold Way, de 1964. nem o de Gell-Mann...

Tal resistência pode talvez ser comparada à que seobservou quando foram propostos os átomos. De fatoainda no início do seculo XX [56] químicos como Wi-lhelm Ostwald (prêmio Nobel em 1901) e físicos comoErnst Mach falavam de átomos e de moléculas como deuma hipótese articial não necessária para o entendi-mento dos processos físicos e químicos. Mach chegou acomparar os átomos a símbolos algébricos. Claramenteuma das principais objeções à teoria atômica era a im-possibilidade de ver um átomo. Os resultados nega-tivos dos experimentos para a procura de quarks livresproduziram pontos de vista parecidos. Assim, nos anossessenta e no começo dos anos setenta do século XX,muitos físicos importantes não acreditavam no modelode quarks [1]. Entre eles, Werner Heisenberg (prêmioNobel de física em 1932) considerava o problema da es-trutura das partículas elementares como um problemade losoa e não de física.Hoje há amplas evidências para a existência dos

quarks, apesar dos resultados negativos da busca porquarks livres [57]. A possível explicação da ausência deobservação de um quark livre viria do que chamamos deconnamento dos quarks [1]. De fato, os experimentosmostram que a força entre dois quarks muito próximosé pequena, o que é chamado de liberdade assintótica.Quando tentamos afastar dois quarks, a força entre elesaumenta de tal modo que, quando a ligação se rompe,há energia suciente para a produção de um novo parquark-antiquark (veja a Fig. 5). Consequentemente, nãoé permitido que um quark seja detetado sozinho, o quenos leva à proposta do connamento dos quarks. O en-tendimento dessa propriedade é um dos maiores desaosda QCD Na próxima sub-seção discutimos uma outrainconsistência do modelo inicial de quarks, que levou à

d

u

u

u

du u

u

dd

d_

(a) (b) (c)

Figura 5: Os três quarks inicias (uud) representam umpróton. Em (a) iniciamos a forçar um quark up a seseparar dos demais. Finalmente em (b) a ligação serompe, porém imediatamente em (c) vemos a forma-ção de um quark down e um anti-down com a energiaprovinda da ligação, de modo que acabamos observandoum píon positivo e um nêutron, mas não um quark livre.Fig. adaptada de [1].

introdução de um novo número quântico relacionado àinteração forte.

4.3 Dos Quarks à QCD

Mencionamos anteriormente que há uma distinção cru-cial entre férmions que possuem spin semi-inteiro eobedecem ao princípio de Pauli e bósons, que pos-suem spin inteiro e não obedecem a esse princípio. OPrincípio da Exclusão de Pauli, de modo simplista,diz que férmions iguais não podem coexistir no mesmoestado quântico. Podemos entender a importância desseprincípio se notarmos que é devido a ele que o elétron(que é um férmion) só pode ocupar um estado de ener-gia que já contenha um outro elétron se os dois tive-rem projeções opostas do spin. Desta forma, os estadosde energia do átomo, chamados orbitais, podem conterapenas dois elétrons cada um, o que dá origem à ela-borada estrutura de camadas dos elétrons nos átomosque formam os diversos elementos, determinando suaspropriedades químicas.Logo após a proposta do modelo dos quarks, vários fí-

sicos chamaram a atenção para o fato de que, nesse mo-delo, dois ou três quarks em um hádron teriam que ocu-par o mesmo estado quântico. Em particular, tomava-secomo exemplo a partícula ∆++, que apresenta spin 3/2e é formada por três quarks up (ver Figs. 3 e 4). Isto sóé possível, no estado de momento angular L = 0 [1], seos três quarks (idênticos) tiverem spins paralelos, o queviolaria o Princípio de Pauli, sendo os quarks férmionsidênticos de spin 1/2. De fato, o princípio de Pauli já nãopermite que haja dois férmions nesta situação, mas apa-rentemente temos três! (A mesma crítica pode ser feita aoutras partículas dos multipletos descritos acima.) Esseproblema foi resolvido por Moo-Young Han e YoichiroNambu [58], que propuseram a existência de mais umnúmero quântico, que poderia apresentar três diferentes

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valores para cada quark. No caso do ∆++, os três quarksu poderiam apresentar números quânticos idênticos paraspin, número bariônico, estranheza, carga elétrica, masdiferente para o novo número quântico, que foi chamadode cor. A partícula Ω−, formada por três quarks s,poderia ser explicada de forma análoga. O nome cor foisugerido porque, em analogia com a teoria das cores deNewton, a combinação de três quarks de cores (primá-rias) diferentes (e.g. vermelho, verde e azul), assim comoa combinação de um quark com uma determinada core um anti-quark com sua correspondente anti-cor, for-mariam uma partícula branca, sem carga de cor. Essasseriam todas as partículas observadas. Assim, um im-portante princípio associado às cargas de cor é que todosos mésons e bárions são brancos. Logo antes do traba-lho de Han e Nambu, Oscar W. Greenberg [59] tentouexplicar a aparente violação do Princípio de Pauli intro-duzindo a chamada para-estatística, i.e. permitindo queun dado estado físico fosse ocupado por três partículas.A equivalência entre a solução apresentada por Green-berg e a teoria de cores de Nambu e Han foi demonstradano artigo [60].

A ideia mais interessante [23] apresentada no traba-lho de Han e Nambu [58] foi a introdução de uma novasimetria SU(3), relacionada à carga de cor e por isso in-dicada como SU(3)c. Ao mesmo tempo, essa simetria decor foi associada à força forte e à formação dos estadosligados de quarks, i.e. os hádrons. Juntamente com a si-metria SU(3)c, foram também introduzidos oito camposde gauge de spin 1, correspondentes ao oito geradores dogrupo SU(3)c, chamados (quando?) de glúons Na ver-dade, a ideia de Han e Nambu passou despercebida em1965 [23]. Mais tarde, nos anos setenta, a ideia de umasimetria de gauge baseada no grupo de cores SU(3)c vol-tou a ser considerada, culminando na chamada Cromo-dinâmica Quântica (QCD). A QCD é uma teoria quân-tica de campos de tipo Yang-Mills [61, 62] que descreveas partículas que interagem pela força forte, todas com-postas por quarks, através da troca de glúons. (Note quea simetria proposta por Ne'eman e Gell-Mann era ape-nas aproximada, enquanto que a simetria de cor na QCDé exata.) O grande sucesso da QCD foi a demonstraçãopara esta teoria da propriedade de liberdade assintótica(ver Seção 4 acima) por Gross, Wilczek e Politzer em1973 [63].

Com a grande evolução na detecção de partículas nosanos seguintes, evidenciaram-se vários novos hádronscom diferentes propriedades, criando-se a necessidade deacrescentar mais três sabores de quarks à teoria: charm,bottom e top. Atualmente, no Modelo Padrão [1], todaa matéria conhecida é explicada em termos dos seis sa-bores de quarks, dos seis léptons e das respectivas anti-partículas. A simetria SU(3) de sabor introduzida porNe'eman e Gell-Mann permanece como uma simetria

aproximada da QCD para os hádrons leves (compos-tos pelos três quarks mais leves). As transições entreesses sabores ocorrem pela interação fraca, descrita demaneira geral pela chamada matriz CKM, introduzidapor Cabibbo para os 3 sabores mais leves de quarks emais tarde generalizada para todos os 6 sabores por Ko-bayashi e Maskawa, em um estudo que recebeu o prêmioNobel de física de 2008.

5 Nirvana e Intervenção Divina

Descrevemos nesta seção alguns aspectos da personali-dade de Ne'eman e de seu relacionamento com algunsoutros físicos.No ano de 1969, Gell-Mann recebeu sozinho o prê-

mio Nobel, por suas contribuições e descobertas relativasà classicação das partículas elementares e suas intera-ções. A ausência da citação de Yuval Ne'eman para apremiação deixou muitos membros da comunidade cien-tíca descontentes, tendo em vista suas importantes e pi-oneiras contribuições na área. Como mencionado ante-riormente e descrito em maior detalhe a seguir, Ne'emanfez a sua proposta da simetria SU(3) ao mesmo tempoque Gell-Mann. Ele também propôs uma forma prelimi-nar de modelo de três componentes bariônicos dois anosantes do modelo de quarks de Gell-Mann e Zweig. É in-teressante notar, porém, que não houve uma verdadeirarivalidade entre os dois cientistas.De fato, Ne'eman enfatizava que os dois eram amigos,

tendo organizado juntos a publicação dos artigos relaci-onados à simetria SU(3) para os hádrons no livro TheEightfold Way [15] e tendo chegado juntos à conclusãode que a descoberta da partícula Ω− conrmava o mo-delo proposto por ambos para classicação dos hádrons[20].Como vimos, Murray Gell-Mann divulgou em Janeiro

1961 o artigo The eightfold way: a theory of strong inte-raction symmetry [16], em que expôs com detalhes suautilização do grupo SU(3) para descrição dos hádrons.(Na verdade, o manuscrito acabou não sendo publicadoocialmente.) A expressão eightfold way (via óctupla)foi sugerida devido à existência de multipletos com oitocomponentes associados à simetria SU(3) das interaçõesfortes8 por associação ao nobre caminho óctuplo da re-ligião budista (o caminho que as pessoas devem seguir,de acordo com oitos preceitos dados pelo budismo, paraatingir a plenitude espiritual ou nirvana). No mês se-guinte, Ne'eman publicou o artigo Derivation of stronginteraction from a gauge invariance [15], onde expõeideias semelhantes. Como descrito na Seção 3.2, antesde escolher o grupo SU(3), Ne'eman tentou associar os

8Como discutido anteriormente, essa simetria, relativa aos trêssabores de quarks de menor massa, é apenas aproximada.

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Figura 6: Diagrama associado a representações do grupoG(2).

estados ligados de quarks a outro grupo, cujas repre-sentações obedeciam diagramas na forma da Estrela deDavi (ver Fig. 6). Sua relutância em abandonar essegrupo como possibilidade acabou atrasando a publica-ção de seus resultados. Há um relato seu a respeito desseepisódio [1]:

...como podia ser visto diretamente do dia-grama de Dynkin, o G(2) era um dos cincoexcepcionais; eu tive que reconstruí-lo a par-tir do diagrama de Dynkin para saber o queele poderia fazer e acontece que era a es-trela de seis pontas de David!! Se eu fosse umdevoto ou um místico, teria interpretado o fatocomo uma intervenção divina. Não tendo essamentalidade, veriquei as previsões do G(2) evi que elas não estavam de acordo com as ob-servações.

(A tradução é nossa.)

É curioso notar que houve grande rivalidade entreGell-Mann e Feynman, mas que Ne'eman e Feynmaneram amigos.No ano de 1963, Ne'eman obteve uma bolsa de dois

anos de estudos no Caltech, onde veio a conhecer etornar-se um grande amigo do famoso físico americanoRichard Feynman, professor do Caltech desde 1954. Noartigo intitulado The Elvis Presley of Science [64],Ne'eman descreve suas experiências pessoais com Feyn-man, comentando sobre a enorme popularidade deste:

...Feyman foi o único que atingiu verdadeirafama durante sua vida, e desde a sua morteele é o único físico com exceção talvez de Al-bert Einstein e Stephen Hawking a ser acla-mado pelo público fora da comunidade cientí-

ca. Em nossos dias, Feyman é praticamenteo Elvis Presley da ciência o rei.

(A tradução é nossa.)

Episódio dos três juntos [64]

Quando me ausentei do Caltech por uma se-mana em Outubro de 1964 para a inauguraçãodo campus da Universidade de Tel Aviv, Feyn-man, Gell-Mann e eu jantamos juntos e o as-sunto Israel e os judeus veio à tona. Por quepreservar esse fóssil? perguntou-me Feynmanà mesa, referindo-se ao povo judeu. Não seriamelhor acelerar a assimilação? Como eu ten-tasse enumerar as inúmeras contribuições queos judeus zeram à humanidade, incluindo con-quistas na ciência moderna, ele me cortou. Ju-deus na ciência? compare isso com os húnga-ros! olhe o impacto que eles tiveram! ao queGell-Mann respondeu: Mas você não sabe quetodos esses húngaros eram judeus? E aparen-temente, ele não sabia.

(A tradução é nossa.)

ver: Cosmic anger (bookmarks), livro sobre Salamturbante em StockolmoNa Referência [40], Michael J. Du que também

foi estudante de Abdus Salam recorda como foi visi-onária a posição de Ne'eman e também a de Salam, queo aceitou como estudante:

...Talvez porque suas próprias ideias beirassemo absurdo, ele [Abdus Salam] era tão toleranteem relação à excentricidade dos outros; ele eracapaz de reconhecer pérolas de sabedoria ondeo resto de nós via apenas irritantes grãos deareia. Um exemplo disso foi o adido militar daembaixada israelense em Londres que apareceuum dia com suas ideias sobre física de partí-culas. Salam cou sucientemente impressio-nado com ele para tomá-lo sob sua tutela. Ohomem era Yuval Ne'eman e o resultado foi [asimetria] SU(3) de sabor.

(A tradução é nossa.)

6 Conclusão

A história dos quarks envolveu períodos de grande in-certeza, e as conquistas foram devidas à persistência depessoas como Ne'emanApesar de não ter ganho o prêmio Nobel, Ne'eman

recebeu diversas premiações nacionais e internacionais,como o Prêmio Israel (1969), a Medalha Einstein (1970),a Medalha Wigner (1982) e o prêmio EMET (2003).

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Ne'eman teve um papel importante na divulgação dafísica, tendo deixado um ótimo texto introdutório so-bre física de partículas, escrito em conjunto com YoramKirsh [1].

Além das contribuições descritas na Introdução parao estabelecimento de instituições cientícas em Israel,Ne'eman fundou o Center for Particles and Fields daUniversidade do Texas (Austin) em 1968.

Pode-se dizer que a iniciativa de Ne'eman foi surpre-endente, considerando como se apresentava caótica a si-tuação na época e dado que ele estava apenas iniciandoseus estudos de física de partículas, como descrito nasSeções 2 e 3 acima.

Na Referência [2], Shlomo Sternberg (matemático bri-tânico) conta-nos que conheceu Ne'eman no ano de 1962,atendendo ao pedido de que apresentasse algumas aulassobre Topologia dos Grupos de Lie para o grupo de pes-quisa de Ne'eman. Inicialmente, Sternberg não compre-endeu qual o interesse do grupo de físicos nessa área damatemática, mas posteriormente conheceu a utilizaçãodo grupo SU(3) para descrição dos hádrons. Essas pou-cas aulas acabaram originando 43 anos de colaboração.O último trabalho em conjunto foi publicado no PhysicsReports em 2005.

It is hard to explain how one person could suc-cessfully perform so many tasks. Obviously hehad an enormous capacity for hard work andwas extremely well organized. Two other traitsthat I could observe rst hand were: He alwayshad his mind on the big picture: he did get in-volved in the details but was always able torelate them to the overall goal. A second traitwas his personal charm combined with an abi-lity to delegate authority. Once he trusted so-meone's ability to do a job, he inspired thatperson to charge ahead while keeping himselfinformed of the progress. This is a rare trait oftrue leadership.

7 Agradecimentos

Agradecemos a C.C.B. dos Santos e T.M. Schlittler porsugestões e comentários e a A. Manes, editor da revistaeletrônica PhysicaPlus, pelo uso da fotograa na Fig.1. T.B.M. agradece ao CNPq pelo apoio nanceiro (aelaboração de uma versão preliminar deste manuscritofez parte de seu projeto de Iniciação Cientíca). A.C. eT.M. agradecem à Fapesp e ao CNPq por apoio nan-ceiro parcial.

8 Apêndice

Neste Apêndice descrevemos alguns aspectos gerais dosgrupos de Lie. Tomamos inicialmente o exemplo dasrotações (tridimensionais) em mecânica quântica, dadascomo representações do grupo SO(3) associado ao mo-mento angular. A descrição do spin do elétron em ter-mos de representações do grupo SU(2) segue por ana-logia. Utilizando as regras para adição de momentosangulares, demonstramos então a obtenção de represen-tações para a simetria SU(2) de isospin, mencionada nasSeções 3.2 e 4.1.Os grupos de Lie descrevem transformações associa-

das a simetrias contínuas, como dito na Seção 3.1 acima.Nesse caso, o grupo pode ser associado a sua álgebra deLie, dada pelo espaço das transformações innitesimaisdo grupo. Essas são transformações pequenas, próxi-mas da operação identidade, por exemplo uma rotaçãopor um ângulo innitesimal. O fato de que os gruposde Lie são (quase completamente) especicados por suaálgebra, que por sua vez depende somente das caracte-rísticas locais do grupo (i.e. relativas às transformaçõesinnitesimais) constitui uma grande vantagem. Em par-ticular, a álgebra constitui um espaço linear i.e. umespaço usual, que contém as somas de seus elementose a multiplicação deles por constantes com estruturadada por comutadores dos chamados geradores do grupo(ver exemplo abaixo). A análise de tal espaço é bemmais simples do que a do respectivo grupo, o que emgeral envolveria operações não-lineares.Um exemplo familiar em mecânica quântica é o grupo

SO(3), associado à simetria por rotações em três di-mensões, cujos geradores podem ser identicados com ascomponentes cartesianas Lx, Ly, Lz do vetor momentoangular (orbital) L. Assim como ocorre para a energia epara o momento linear, temos no caso quântico que Lx,Ly, Lz são operadores, atuando na função que descreveo estado (quântico) do sistema, a função de onda. Veja-mos primeiramente como estão relacionadas entre si ascomponentes de L. Analogamente à expressão clássica,temos L = r×p, ou seja L é dado pelo produto vetorialda posição r pelo momento linear p = mv. (Por exem-plo, no caso clássico de movimento circular uniforme emuma órbita de raio r para um corpo de massa m e velo-cidade v, o momento angular é um vetor de módulo mvre direção perpendicular ao plano que contém o círculo.)O produto vetorial mistura as componentes x, y, z dosvetores envolvidos, sendo e.g. a componente z de L dadaem termos das componentes x e y dos vetores r e p por

Lz = xpy − ypx .

Por sua vez, as componentes do operador momento li-near são dadas, no caso quântico, por derivadas espaci-ais, e.g. px = −ih∂/∂x, sendo h a constante de Planck

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racionalizada. No caso do operador Lz podemos aplicara uma função de x, y e z as operações denidas pelaexpressão de px (e suas formas análogas para as coorde-nadas y e z) e obter

Lz = −ih ∂

∂φ,

onde φ é o ângulo ao redor do eixo z.9 Isto signicaque uma rotação por um ângulo innitesimal δφ estaráassociada à operação I + δφLz, onde I é a identidade.(O resultado decorre diretamente da expansão de Taylorda função de onda do sistema em relação à variável φ.)Como em mecânica clássica, L é uma grandeza con-

servada para sistemas isolados, em consequência da in-variância por rotação. Em particular, isto vale paracada componente de L. No estudo do caso quân-tico, porém, devemos considerar as relações de comu-tação entre os operadores envolvidos, ou seja, o fato deque, para dois operadores A e B gerais, o comutador[A,B] ≡ AB − BA não será nulo. No caso da posiçãoe momento linear na direção x, temos

[x, px] = xpx − pxx = ih .

Tais relações são consistentes com o princípio da incer-teza de Heisenberg, que limita o conhecimento simul-tâneo da posição e do momento de uma partícula [1].Para as componentes de L, obtemos assim as relaçõesde comutação

[Lx, Ly] = ihLz, [Ly, Lz] = ihLx, [Lz, Lx] = ihLy .

Como para o caso de momento linear e posição vistoacima, o fato de duas componentes de L não comutarem(i.e. terem comutador não-nulo) implica que há uma im-precisão ou incerteza da ordem de h na medidasimultânea dessas grandezas. Ou seja, não será possívelconhecer ao mesmo tempo mais do que uma das com-ponentes do vetor L. Por outro lado, podemos notarque o operador L2 = L2

x + L2y + L2

z comuta com todasas componentes de L, o que signica que os estados dosistema podem ser descritos por uma das componentesdo momento angular, por exemplo Lz, e pelo módulo dovetor L, relacionado ao operador L2.Além disso, as relações de comutação acima determi-

nam a quantização do momento angular, ou seja o fatode que apenas certos valores sejam permitidos para ascomponentes de L. Mais precisamente, pode-se escrevera função de onda do sistema em termos das autofunçõesou autoestados dos operadores L2 e Lz, i.e. um con-junto de funções (em comum para os dois operadores)

9Note que, utilizando a regra da cadeia e as expressões dascoordenadas x e y em termos de φ, podemos escrever ∂/∂φ =x∂/∂y − y∂/∂x.

que não se alteram sob ação desses operadores, excetopela multiplicação por um valor constante, ou autova-lor. Os autovalores associados a L2 e Lz são indexadosrespectivamente pelas constantes l e m. Utilizando asrelações de comutação e impondo que a função que des-creve o estado do sistema não se altere por uma rotaçãode 360, verica-se que l e m podem assumir apenas va-lores inteiros. Em particular, l deve ser inteiro e podeser tomado positivo. Para cada valor xo de l, temos2l+1 valores possíveis para as projeções m, dados pelosnúmeros inteiros entre −l e l. Em resumo, o sistemaserá descrito pelos números quânticos l e m, associadosrespectivamente ao módulo do momento angular e à suacomponente Lz, com valores

l = 0, 1, 2, . . . e m = −l, −l + 1, . . . , l − 1, l .

As regras acima podem ser aplicadas também à adiçãode momentos angulares, como para o momento angulartotal conservado de um sistema de partículas interagen-tes. Dessa forma, pode ser identicado um momento an-gular intrínseco (independente de L) para as partículaselementares, o spin S. Mais precisamente, observa-se acombinação de L com o operador de spin S, cujas com-ponentes obedecem a relações de comutação análogas àsdo momento angular orbital vistas acima. Portanto, aspropriedades resultantes dessas relações, como a quan-tização dos autovalores dos operadores S2 e Sz, serão asmesmas que para o operador L. Note porém que nessecaso não há uma correspondência clássica, como haviapara o vetor L (dado por r × p), e o número quânticos associado ao módulo de S (o equivalente de l acima)poderá assumir valores semi-inteiros além de inteiros, oque determina algumas propriedades peculiares do spin.Por exemplo, o estado de uma partícula com númeroquântico de spin 1/2, como o elétron, não permaneceinalterado após uma rotação de 360 de suas coorde-nadas, mas será multiplicado por um fator global -1.Tal fator não pode ser detetado diretamente, mas trazconsequências dramáticas para a diferença de compor-tamento entre partículas com spin inteiro e semi-inteiro,como discutido na Seção 4.1.Claramente, na discussão acima, não houve a neces-

sidade de invocar a teoria de grupos. Por outro lado,vimos que as relações de comutação associadas ao mo-mento angular no caso quântico são exatamente as rela-ções entre os geradores das rotações innitesimais, quedeterminam a álgebra para a representação do grupoSO(3) por matrizes ortogonais 3 × 3. De fato, comovisto acima, o gerador de rotações innitesiamis ao re-dor do eixo z pode ser identicado com Lz e assim pordiante. Assim, apenas pela análise de teoria de grupospoderíamos saber de antemão, por exemplo, os núme-ros quânticos permitidos para o momento angular L deum sistema com simetria rotacional, e poderíamos as-

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sociar os estados físicos desse sistema às representaçõesdo grupo das rotações. De fato, a linguagem de trans-formações de simetria é tão poderosa que a simples ob-servação de que um problema com potencial central i.e. no qual a força depende apenas da distância r dapartícula até a origem, e não da posição dela possuisimetria esférica (i.e. simetria por rotação) permite a de-terminação da estrutura dos níveis quânticos de energiapara o sistema. Uma ilustração disso para o átomo dehidrogênio é feita a seguir.Notemos que os geradores da operação de simetria,

Lx, Ly, Lz, comutam com a hamiltoniana H do sis-tema, um operador formado pelo termo cinético p2/2me

e pelo termo potencial de interação coulombiana entre opróton e o elétron. (Nossa descrição da evolução do sis-tema é feita para o movimento do elétron apenas, já queo próton é muito mais massivo e pode ser consideradoem repouso.) Lembrando que as rotações serão obtidasa partir dos geradores do grupo10, temos que o operadorassociado a qualquer rotação comuta com a hamiltoni-ana do sistema. Ao mesmo tempo, a energia do sistemaé obtida pela aplicação da hamiltoniana, já que o estadoquântico é dado como combinação de autofunções de H,ou seja funções Ψ para as quais vale

H |Ψ〉 = E |Ψ〉 ,

i.e. a ação do operador H sobre o autoestado Ψ (repre-sentado na notação usual de mecânica quântica por |Ψ〉)é multiplicar o estado por sua energia E.Portanto, o estado quântico rodado do sistema terá

a mesma energia que o estado original, o que implicaque os estados quânticos do sistema serão dados porfunções radiais (i.e. que dependem apenas de r) multi-plicadas por funções angulares, representações irredutí-veis do grupo SO(3). Essas funções são indexadas pelosnúmeros quânticos l e m vistos acima. As autofunçõesdo problema, obtidas da multiplicação das partes radiale angular, serão portanto Ψn,l,m, onde n é o númeroquântico associado à parte radial. Note que, em princí-pio, apenas estados com mesmo valor de l são degene-rados, i.e. têm a mesma energia. No entanto, no casodo átomo de hidrogênio, estados de l diferente podemter a mesma energia se tiverem o mesmo valor de n.Esta degenerescência adicional está relacionada ao ope-rador excentricidade [32]. Uma descrição mais completados níveis de energia do átomo de hidrogênio deve in-cluir os efeitos relativos ao spin do elétron. Tais efeitossurgem levando-se em conta interações adicionais no sis-tema, e.g. a interação do spin do elétron com o campomagnético produzido pela rotação do próton vista noreferencial do elétron, o chamado efeito spin-órbita.

10Mais precisamente, o operador rotação será obtido pela expo-nencial de combinações lineares dos geradores do grupo.

As propriedades associadas ao spin do elétron podemser obtidas, de forma análoga ao procedimento acima,a partir das representações do grupo SU(2). Em par-ticular, temos dois autoestados para a componente Sz

(análogo a Lz acima) do operador de spin 1/2, com auto-valores +h/2 e −h/2. Tais estados correspondem a spinpara cima e para baixo em relação ao eixo z e podemser escritos como vetores unitários, respectivamente

χ+ =

(10

)e χ− =

(01

).

Isto signica que o estado do sistema de spin 1/2 seráuma mistura dos dois posíveis autoestados χ+ e χ−,i.e. uma soma dos dois vetores, com coecientes c± com-plexos: c+ χ+ + c− χ−. Uma medida experimental dospin ao longo do eixo z dará +h/2 ou −h/2 com proba-bilidade dada em termos11 dos coecientes c±. A ope-ração de simetria por reexão dos spins é gerada pelaschamadas matrizes de Pauli

σx =

(0 11 0

), σy =

(0 −ii 0

), σz =

(1 00 −1

),

geradores do grupo SU(2) de matrizes 2× 2 complexasunitárias. As componentes do operador S podem seridenticadas com as matrizes acima multiplicadas pelofator h/2. Em particular, a componente Sz, associadaà reexão em relação ao eixo z, é obtida de σz, cujosautovalores são 1 e −1, associados aos autoestados χ+

e χ− introduzidos acima. Da mesma forma, as relaçõesde comutação entre as componentes de S seguem dasrelações para as matrizes σ. Como esperado, essas rela-ções são as mesmas que para o momento angular L, jáque a álgebra do grupo SU(2) é a mesma que a do grupoSO(3). Como consequência, as representações de SU(2)são também representações de SO(3), mas com valoresduplos no caso de spin semi-inteiro. [A cada elementode SO(3) serão associados dois objetos da representaçãode SU(2), com sinais opostos.]

Vejamos agora como podem ser obtidas representa-ções de ordens mais altas partir de combinações de ob-jetos na representação fundamental, no caso do spin 1/2.O resultado da adição de dois momentos angulares despin 1/2, por exemplo a combinação dos spins de doiselétrons, é um operador vetorial com as mesmas rela-ções de comutação dos spins individuais, como pode servisto escrevendo as somas para as componentes x, y, z.Os números quânticos associados ao novo operador sãoobtidos a partir dos valores permitidos para as compo-nentes, e.g. a soma das componentes Sz para os doisspins pode assumir os valores −1, 0, 1. Como tínhamos

11Em geral considera-se uma combinação normalizada, i.e. com|c+|2 + |c−|2 = 1, de forma que as probabilidades de uma medidadar +h/2 ou −h/2 serão respectivamente |c+|2 e |c−|2.

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quatro combinações possíveis dos autoestados χ+ e χ−de cada elétron, temos uma representação de dimensãoquatro, que será agora indexada pelos autovalores dospin total, cujo autovalor s pode ser 0 ou 1, já que sãoesses os valores do módulo do spin que correspondemàs projeções possíveis. Em particular, o caso s = 0 cor-responde a uma única projeção possível, m = 0, e o casos = 1 a três projeções, −1, 0, 1. Vemos portanto queos autoestados serão quatro, como esperado. Em outraspalavras, a partir da combinação, ou produto direto deduas representações de dimensão dois, obtivemos umarepresentação de dimensão quatro, soma direta de re-presentações irredutíveis de dimensão 1 (no caso s = 0)e 3 (caso s = 1), o que é geralmente representado sim-bolicamente como

2 ⊗ 2 = 1 ⊕ 3 .

A representação resultante é associada ao operador ob-tido pela soma dos spins, e seus autoestados serão dadospor combinações dos autoestados individuais χ+ e χ−para cada elétron. Por exemplo o estado com projeçãoSz máxima (presente no caso s = 1) corresponde a teros dois spins no autoestado χ+, e pode ser representadopor χ+(1) ⊗ χ+(2). O caso de projeção −1 é análogo,e corresponde a χ−(1) ⊗ χ−(2). Já o caso de projeção0, presente tanto para s = 1 quanto para s = 0, en-volve combinações de χ+(1)⊗χ−(2) e χ−(1)⊗χ+(2), jáque essas duas congurações possuem projeção Sz iguala zero. Mais precisamente, a combinação referente aocaso s = 1 é dada por[

χ+(1)⊗ χ−(2) + χ−(1)⊗ χ+(2)]/√

2 ,

enquanto que o caso s = 0 corresponde a[χ+(1)⊗ χ−(2) − χ−(1)⊗ χ+(2)

]/√

2 .

Podemos notar que os três autoestados relativos a s = 1tem a propriedade de simetria por troca dos spins, i.e.trocando o estado da partícula 1 pelo da 2 nas ex-pressões acima. O caso s = 0, por sua vez, é antissimé-trico em relação a essa operação, ou seja ca multipli-cado por um fator −1. As três combinações referentes as = 1 formam o chamado tripleto e a referente a s = 0 échamada de singleto.Vimos portanto que a análise de teoria de grupos auxi-

lia na compreensão de problemas de mecânica quântica,além de proporcionar uma metodologia para catalogaras representações de um dado grupo de simetria. Oprocedimento demonstrado acima para obtenção de re-presentações do grupo SU(2) pode ser estendido paraprodutos diretos de um número arbitrário de objetos,e as representações resultantes são características dessegrupo. O conceito de spin como representação de SU(2)foi generalizado para a descrição inicial de hádrons como

representações associadas à simetria de isospin, comodescrito na Seção 3.2. Tal descrição era incompleta,mas serviu de inspiração para o esquema introduzidomais tarde por Ne'eman e Gell-Mann, que era baseadonas representações do grupo SU(3), levando em contatanto a simetria de isospin quanto a hipercarga.

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[12] http://home.web.cern.ch/topics/large-hadron-collider.

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[63] Ver, por exemplo, o site http://nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/2004/index.

html.

[64] Y. Ne'eman, The Elvis Presley of Science, no jornaldiário israelense Haaretz em 8 de outubro de 1999.

[65] http://cerncourier.com/cws/article/cern/29667/6.

[66] ??? non citato ??? A. Kantorovich e Y. Ne'eman,Serendipity as a Source of Evolutionary Progressin Science, Studies in History and Philosophy ofScience 20, 505 (1989).

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