YURI DE ANDRADE MAGALHÃES A TRAVESSIA DO ......Yuri de Andrade Magalhães...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS YURI DE ANDRADE MAGALHÃES A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO DE ARIANO SUASSUNA NATAL/RN 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

YURI DE ANDRADE MAGALHÃES

A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO

ROMANCE D’A PEDRA DO REINO

DE ARIANO SUASSUNA

NATAL/RN

2013

Yuri de Andrade Magalhães

A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO ROMANCE D’ A PEDRA DO REINO DE ARIANO SUASSUNA

Natal/RN

2013

Yuri de Andrade Magalhães

A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO ROMANCE D’ A PEDRA DO REINO DE ARIANO SUASSUNA

Dissertação de mestrado submetida como requisito para a obtenção de título de Mestre em Artes Cênicas, na linha de pesquisa Linguagens da Cena: Memória, Cultura e Gênero no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN – PPGArC, sob orientação do professor Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

Natal/RN

2013

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Magalhães, Yuri de Andrade. A travessia do trágico no romance d’A Pedra do Reino de Ariano

Suassuna / Yuri de Andrade Magalhães. – 2013. 131 f. - Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2013. Orientador: Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

1. Teatro. 2. Romance brasileiro. 3. Brasil, Nordeste. 4. A Pedra do Reino – Suassuna, Ariano, 1927- I. Cavalcante, Alex Beigui de Paiva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 792

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a pessoa de meu orientador, o professor

Alex Beigui, que no decorrer desse tempo se mostrou, além de um competente orientador,

um grande amigo que durante horas do dia, muitas vezes adentrando pela noite, me

orientou e auxiliou-me na escrita deste trabalho. Um orientador que não mediu esforços

para me ajudar a superar os obstáculos e desafios que me foram impostos, não permitindo

que eu me deixasse abater diante das dificuldades. Desse modo, toda forma de

agradecimento é insuficiente frente ao empenho de um orientador que mergulhou junto a

seu orientando neste trabalho de dissertação.

Agradeço também a outra pessoa cuja ajuda foi de fundamental importância para a

realização deste trabalho, a professora Maria Helena Braga e Vaz da Costa que, além de

me auxiliar na disciplina Seminário de Dissertação I, também se mostrou uma grande

pessoa, além de uma grande amiga, ao nos acompanhar na entrevista com Ariano

Suassuna, nos conduzir e nos guiar pela rizomática cidade de Recife, agradeço também por

revisar este trabalho. Manifesto também meus sinceros agradecimentos à Dona Solange,

mãe da professora Maria Helena, por nos acolher em sua residência em Recife.

Aos professores Milton Marques Júnior e Rubén Figaredo Fernandez - agradeço a

oportunidade que me foi dada para aprofundar este trabalho, bem como as sugestões de

alterações que, creio eu, foram fundamentais para a maturação das ideias-chave da

pesquisa.

Ao escritor Ariano Suassuna que, além de escrever tão fantástica obra, gentilmente

nos acolheu em sua residência na cidade de Recife, proporcionando-nos um formidável

diálogo sobre o Romance d’ A Pedra do Reino.

À minha familia, nas pessoas de minha mãe e minha irmã, que foram minha fortaleza

em diversas ocasiões.

À profa. Maria de Lurdes Barros da Paixão pelas palavras de apoio, encorajamento, e

por sua amizade sincera.

À Suame Medeiros e aos bons amigos Fernando de Paiva e James Beasley que

sempre me acompanham, apóiam e aconselham.

Aos bons amigos que cultivei no decorrer do curso de mestrado.

Aos professores e alunos da Universidade Regional do Cariri (Juazeiro do

Norte/CE), onde atualmente trabalho como professor substituto, que me compreenderam e

me deram todo suporte nas vezes que precisei me ausentar da Universidade em razão do

mestrado. Agradecimento especial aos colegas de trabalho e também amigos: Jerônimo

Vieira, Cleber Lima, Wellington Rodrigues, João Dantas, Cecília Raiffer, Luiz Renato,

Alysson Amancio e Jorge Ney Batista.

À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior - pelo

auxilio financeiro durante o curso de mestrado por meio da bolsa.

RESUMO

Este trabalho busca investigar e discorrer sobre a influência dos elementos contidos na Tragédia Grega, dialogando diretamente com aspectos míticos, épicos, poéticos e romanescos, no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna. A obra tem como protagonista o sertanejo Pedro Dinis Quaderna que é um personagem simultaneamente popular, enigmático, ingênuo, e um intelectual dotado de uma notável erudição. Quaderna é um personagem que busca, por meio da Literatura, restabelecer um reino outrora perdido no sertão nordestino, onde ele seria herdeiro. Buscando constantemente exaltar o nordeste brasileiro como se fosse uma nação aparte. Na impressão de um caráter nacional ao nordeste brasileiro, Quaderna busca tornar-se um poeta epopeico tal qual Homero, apontando assim para uma forte influência da Epopeia. Assim como diversos personagens da Tragédia Grega, Quaderna possui um passado repleto de desgraças no seio familiar, e os fatos sucedidos a seus familiares como a morte brutal de seu tio Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o desaparecimento de seu primo Sinésio, e a disputa entre os irmãos Arésio e Sinésio, remete-nos, dentre outros aspectos, a notáveis influências, além das epopéias, das tragédias clássicas. Ao decorrer da leitura da obra podemos notar que as semelhanças entre o percurso de Quaderna e os heróis da tragédia grega são diversas. Para fins de análise acerca do fenômeno trágico na obra de Suassuna, o diálogo com diversos teóricos que discorreram acerca do trágico é uma constante neste trabalho, bem como a comparação de diversas passagens do romance com textos e personagens clássicos da tragédia grega. Nos capítulos desta dissertação busca-se proporcionar noções elementares da forma romanesca, bem como noções de tragicidade, o diálogo com o mítico, e a aplicabilidade dos aspectos trágicos e epopeicos na obra de Suassuna.

Palavras-chave: Pedra do Reino – Tragédia – Romance.

ABSTRACT

The present work seeks to investigate and discuss about the Greek Tragedy’s elements at Ariano Suassuna’s romance called τ Romance d’ A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai e Volta, connecting it directly to mythic, epic, poetic, and romances aspects at his work. The romance has as the protagonist the backcountry Pedro Dinis Quaderna. Quaderna is a character which is simultaneously popular, elitist, enigmatic, naive, and an intellectual man that has a great erudition. Quaderna is a character that seeks, by using the Literature, to reestablish a Brazilian backcountry kingdom which he’s supposedly the king, always trying to empathizes the Brazilian northeast region like if it was a nation apart. By impressing a national personality to the Brazilian northeast , Quaderna tries to become an epic poet just like Homer, denoting a strong influence of the Epopee. Quaderna, just like many characters of Greek Tragedy, has at his family past time a lot of tragic circumstances. These facts that ocurred to his relativos like the your uncle Pedro Sebastião Garcia Barreto’s death, the disappearement of his cousin Sinésio, and the contest between the brothers Arésio and Sinésio, and others aspects, remind us remarkable influences, beyond the Epopee, of the Greek Tragedy. By reading the romance we may notice many similarities between Quaderna’s trajectory and Greek Tragedy heroes. To make an analysis about the tragic aspects at Suassuna’s work, we need to dialogue with many theoreticals that have written about the tragic and comparate with many parts of Suassuna’s with classics character’s texts of Greek Tragedy. At the following chapters we seek to provide romance’s elementaries notions, as well as tragic notions, the dialogue with mythics aspects and the tragic and epic aplicability at Suassuna’s work.

Keywords: Pedra do Reino – Tragédia – Romance.

SUMÁRIO

I - Introdução ....................................................................................................... 10 II – Capítulo 1 Entre o Épico e o Romanesco: Limites e Fronteiras ..............................................15 III – Capítulo 2

Noções de Tragicidade ...........................................................................................34

IV – Capítulo 3

Categorias do Trágico ............................................................................................55

V – Capítulo 4

Desdobramentos Pós-Aristotélicos: Aspectos míticos e místicos no jogo

trágico ....................................................................................................................85

VI – Considerações Finais .................................................................................109

VII – Bibliografia ................................................................................................114

VIII – Anexo ........................................................................................................119

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I - INTRODUÇÃO

Então, como era que eu podia fazer minha escolha? Se ao menos houvesse uma coerência, uma garantia! Acresce que eu achava ambas as bandeiras bonitas: o azul era tranqüilo e fraterno, mas

o vermelho era festivo e corajoso, eu gostava era de todos dois! (SUASSUNA, 2007, p.100).

Analisar o trágico nesta obra de Ariano Suassuna constitui um grande desafio, pois

como bem disse Aristóteles, o poeta não tem obrigação de representar o mundo tal qual ele

é, pois esta seria a função do historiador, cabe então ao poeta a representação de um mundo

possível, um mundo “verossímil”. Nesta perspectiva, o Romance d’A Pedra do Reino

constitui um mundo de diversas possibilidades, sendo ela considerada a mais complexa

obra do autor por estudiosos mais antigos como Maurice van Woensel (1978). O próprio

autor Ariano Suassuna classifica sua obra como a “menos imperfeita”.1

O Romance d’A Pedra do Reino é uma obra ímpar de Ariano Suassuna, nela o autor é

capaz de demonstrar seu grande conhecimento acerca da cultura dos romances populares,

cantados pelo sertão nordestino, bem como se mostra capaz de se apropriar da matriz

estética europeia medieval, no que concerne aos famosos romances de cavalarias,

totalmente alheias ao seu contexto cultural, e “transplantá-las” para o sertão nordestino ao

ponto de, ironicamente, reverter os valores, tratando como “farsa” a família real portuguesa,

a Dinastia dos Bragança, e como “autêntica” a Dinastia dos Ferreira-Quaderna,

ficcionalmente localizada na divisa da Paraíba com Pernambuco, no sertão do Pajeú

Sobressai o caráter irônico da obra, já observado pela crítica, paralelamente, a um

conjunto de referências que colocam no limite aspectos históricos e aspectos ficcionais,

além do uso da metalinguagem como forma de pensar o romance e a narrativa dentro

mesmo da matéria prima da ficção. É importante perceber que na corrente moderna do

pensamento literário, o autor enfatiza o hibridismo de gênero, fazendo uso, ainda que em

níveis diferentes do lírico, do épico e do dramático. Com relação a este último, abre-se o

1 Declaração feita pelo autor em uma de suas entrevistas para a televisão.

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espaço para diversas formas de teatralidade,2 advindas, sobretudo, da influência trágica e

dos aspectos da oralidade presentes em sua forma de conceber a escritura, isto é, como

manifestação da permanente tensão entre a fala e a escrita, o popular e o erudito, o cômico

e o trágico. Formas que se manifestam através de um permanente dualismo estrutural na

obra.

O romance de Ariano Suassuna é tida, pelo senso comum, como uma das obras

menos lidas do autor, e isto se verifica facilmente quando o leitor se depara com as 742

páginas que compõem o livro de sua 9ª edição do ano de 2007. O autor levou doze anos

para concluir a obra, o que demonstra uma permanente revisão dos manuscritos, em tempos

diferentes, além de uma permanente preocupação com a forma. Na linha das obras épicas, o

narrador assume a influência da tradição, perpassando por obras que mesclam o universal e

o particular, com claro intuito de não atribuir uma visão hegemônica de determinada

cultura. Nesse sentido, é importante diferenciar a História Tradicional e a Nova História,

uma vez que o narrador trabalha não apenas na perspectiva de narrar os fatos

(acontecimentos), mas analisar a estrutura e a conjuntura (contexto, aspectos sociais,

políticos) por meio das quais o próprio ato de narrar se faz possível. Não podemos

simplesmente dizer que se trata apenas de um romance, mas de uma crônica, de um

compêndio, de um arrazoado, ou até mesmo uma coletânea de vários textos numa só obra.

Trata-se antes de um dispositivo poético, cujos elementos apontam para uma construção

consciente dos processos formais em jogo.

Obra híbrida, talvez seja este o termo que melhor se aproxime de uma definição do

Romance d’ A Pedra do Reino, e é justamente este termo que a maioria dos estudiosos da

obra utiliza para caracterizá-la. É uma obra que logra com grande maestria unir a

linguagem popular e a linguagem acadêmica no discurso de seu protagonista, Pedro Dinis

Quaderna. Em razão das estratégias interdisciplinares que permeiam a obra em seus

diferentes deslocamentos semânticos, sintáticos e morfológicos, o romance, muitas vezes,

exige um leitor avisado, no sentido de Umberto Eco. Não se trata de prolixidade, mas de

domínio de um repertório que facilita a construção, por parte do leitor, das analogias que

emanam da obra em suas partes e em seu conjunto.

As análises existentes da obra parecem, muitas vezes, se limitar a analisar as 2 O termo discutido por Sílvia Fernandes aponta para uma potência contida na tensão entre texto e cena: “Ou uma categoria que se apaga sob formas outras de performatividade, descobrindo campos extracênicos, culturais, antropológicos, éticos. Ou a capacidade de mudar de escala, de sugerir e fabricar o real com a voz, a palavra, o som e a imagem” (FERNANDES, 2010, p.102).

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influências da literatura de cordel, do sebastianismo, da própria vida pessoal do autor que se

confunde com a vida do protagonista da obra, além de análises referentes à minissérie que

foi transmitida pela Rede Globo de Televisão no ano de 2007. Relativamente poucas

pesquisas e produções (artigos, dissertações, teses, entre outros), ressaltam o fenômeno

trágico da obra, seus aspectos na estrutura do romance, bem como sua relação com o

tragicômico, aspecto responsável por grande parte da trama. Em verdade, a ironia, o tom

farsesco e picaresco que impera no romance, muitas vezes obscurece ou mesmo parece

eliminar os aspectos trágicos na obra.

Dessa forma a dissertação busca suscitar questionamentos e problemas a partir da

obra sob a luz da influência e da presença dos aspectos trágicos no romance. O fato de o

autor classificar sua obra como “picaresca” induz muitos pesquisadores a analisá-la sob a

perspectiva da comédia. O próprio autor, Ariano Suassuna, é frequentemente mais pensado

pela ótica da comédia. Relativamente poucos têm consciência do conhecimento do autor

acerca de estética filosófica, e da literatura mundial, e não sabem que suas obras são

notórias “apropriações” dessas diversas referências que o mesmo detém. É por esse meio

que Ariano Suassuna logra o raro trunfo de dialogar com o meio acadêmico, e de ser

facilmente compreendido no meio popular. Êxito logrado por poucos que se adentram no

universo da ficção e da literatura.

O que impulsiona esta pesquisa, primeiramente é o fato de perceber que os aspectos

trágicos no Romance d’A Pedra do Reino merecem melhor atenção por parte da crítica;

posteriormente, é melhor compreender os modos em que o trágico se presentifica na

construção narrativa, criando com essa um diálogo intermitente.

Esta dissertação se divide em quatro capítulos. No primeiro capítulo buscamos

entender o romance em sua estrutura a partir da leitura do Edwin Muir (1928) e Georg

Lukács (1962), visando situar a obra dentro das categorias próprias do gênero romanesco.

Faz parte ainda desse capítulo, problematizar o gênero épico a partir da estrutura do

Romance d’A Pedra do Reino, tomando como ponto de partida as estratégias narrativas do

autor, bem como os diferentes modos de ferir o épico e o “narrar”, através da irrupção do

trágico e da teatralidade.

Para proporcionar este alicerce, iniciamos o segundo capítulo explicando os

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principais elementos que compõem o trágico, tomando por base A Poética de Aristóteles. A

referência ao estagirita justifica-se pela atualidade de alguns princípios pertinentes e

presentes na estrutura do romance. É importante observar que as categorias apontadas além

de norteadoras do gênero trágico na Tragédia Ática, assumem, ao longo do romance,

elementos estruturantes e formais de suas partes (tempo, ação, espaço e personagem). Vale

ressaltar que os princípios trágicos e teatrais na obra de Suassuna extrapolam a mera

utilização desses elementos, uma vez que o narrador desloca e insere em sua matriz irônica

e metaficcional, a reescritura e subversão das unidades, através do fluxo de consciência que

opera uma desestabilização na leitura da obra. Rompe-se com a linearidade narrativa,

inserindo o leitor em uma tessitura discursiva, ora presente, ora passada, ora vivida, ora

narrada. Esse movimento revela-se, sobretudo, na teatralização da linguagem. Quaderna

vive e narra sua experiência, ao mesmo tempo em que problematiza questões de ordem

estrutural no gênero épico, passando da narratividade à tragicidade, o herói imprime à

construção do seu discurso, modulações do fazer e da composição literária.

No terceiro e quarto capítulo, buscamos entender como as categorias do trágico,

incluindo a abordagem mítica, são apropriadas e redimensionadas no romance. Partimos de

um diálogo entre os elementos elencados e a sua dessacralização na obra. Desta forma, é

mister destacar o modo polifônico e carnavalesco com que tais elementos são

reconfigurados pelo autor. Nesse sentido, o mito se configura como citação dentro da

fábula. A citação como recurso, em Ariano Suassuna, nunca ocorre como forma de

sustentação do argumento, mas como modo de hipercodificar a alegoria. Nesta fase, as

referências ao medievo e suas categorias formais, possibilitam a dessacralização do trágico,

através da passagem do trágico ao messiânico, sem, contudo, abandoná-lo. Faz-se

necessário pensar o romance em analogia com os textos trágicos, não apenas para

demonstrar a presença desses textos na obra, mas para ratificar o deslocamento com que o

autor por meio do narrador-personagem realiza. A partir do redimensionamento irônico da

referência trágica, a obra é contaminada pela referência judaico-cristã de base medieval. A

mistura dessas referências de culturas distintas poderia criar uma falha estrutural no

romance, não fosse a habilidade irônica do autor que, através do protagonista, assume a

referência como espaço dinâmico de experimentação rumo ao monumento poético

vislumbrado. O encontro com elementos do trágico na obra, mesclados com as formas de

representação próprias da Idade Média, levou-nos à necessidade de dialogar com a crítica

pós-aristotélica no quarto capítulo, apontando uma linha de evolução da noção de

tragicidade. Entre eles, destacamos: Nietzsche (1972), Schopenhauer (2012), Horácio

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(2005), Hegel (1993), Schiller (1964), Cleise Mendes (2008) e Sandra Luna (2005 /2009).

Nessa direção, é importante observar que a unidade e a verossimilhança nesta obra de

Suassuna parecem compor termos bastante conflitantes, uma vez que o próprio autor em

diversas ocasiões parece não demonstrar fidelidade às unidades aristotélicas, em especial a

unidade de ação, que consiste na ideia de que a obra deve ser linear contendo começo,

meio, e fim, tampouco à estrutura dos autos e dos mistérios, gêneros oriundos da Idade

Média, cuja estrutura assimétrica e aberta permite maior variação formal. Já através da

verossimilhança, Ariano Suassuna parece se apropriar dos fatos narrados com rígida

intencionalidade, pois seu protagonista Pedro Dinis Quaderna se mostra capaz de relatar e

recriar a realidade sertaneja em que vive de múltiplas formas, através de uma síntese entre o

“estilo erudito” e direitista do Dr. Samuel Wandernes e o “estilo popular” e esquerdista do

Professor Clemente.

O dialógico no Romance d’ A Pedra do Reino aponta para uma teatralidade frente à

discussão sobre a concepção literária e filosófica da linguagem. Nesse sentido, Quaderna

trabalha na dupla natureza do teatro apontada por Anne Übersfeld: constrói seu discurso

para encená-lo como síntese.3 A posição do protagonista é fundamental para o

aprofundamento do tema trágico na obra, uma vez que ele congrega, em sua própria

concepção, o elemento fundante do gênero dramático: a dialética. Todo o romance se ergue

na justaposição de valores: ideológicos, simbólicos entre outros. O fato de não excluir

posições de naturezas distintas facilita o modo de compreensão do épico e do trágico, do

narrativo e do dramático na obra de Suassuna.

3 Para Ü e sfeld: á espe ifi idade da es itu a teat al pode ia e o t a a ui seu ito de apli aç o.

Tentaremos mostrar como a teatralidade inscreve-se desde o nível das macroestruturas textuais do teatro: a

pluralidade de modelos actanciais, combinação e transformação desses modelos, tais são as principais

características que permitem ao texto de teatro preparar a construção de sistemas significantes plurais e

espacializados. De resto, não nos cansaremos de repetir, a teatralidade em um texto de teatro é sempre

vi tual e elativa, a ú i a teat alidade o eta a da ep ese taç o; o se ü ia: ada i pede de faze teat o de tudo, a edida e ue a es a plu alidade de odelos a ta iais pode se e o t ada e textos o a es os ou at es o po ti os . (ÜBERSFELD, 2005, p.32-33)

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II - CAPÍTULO 1

ENTRE O ÉPICO E O ROMANESCO: LIMITES E FRONTEIRAS Como o senhor deve saber, existem seis qualidades de Poeta e a maioria deles ou pertence a uma qualidade ou a outra. Os melhores pertencem a duas categorias ao mesmo tempo. Mas

somente os maiores de todos, os grandes, os “raros do Povo”, pertencem, ao mesmo tempo, às seis categorias! Meu pai, que Deus guarde, era Poeta de sangue e ciência. Mas eu, modéstia à parte,

sou dos poucos, dos raros, dos grandes, porque sou, ao mesmo tempo, Poeta de cavalgação e reinaço, Poeta de sangue, Poeta de ciência, Poeta de pacto, de estradas e encruzilhadas, Poeta de

memória e Poeta de planeta! Mesmo porém tendo sido mais completo do que ele, grande foi a influência que recebi, das qualidades de Poeta, historiador, Astrólogo e genealogista Sertanejo de

meu pai! (SUASSUNA, 2007, p.368). A teoria do romance, de Georg Lukács, aponta para inúmeras perspectivas críticas.

Tratamos aqui de um gênero aberto cuja estrutura possibilita a inserção de vários elementos

de outros gêneros para além daqueles definidos pela tradição literária. Nele, incluem-se

documentários, aspectos biográficos, crônica, folhetins, novela; enfim, um espaço poroso e

repleto de tentáculos que impossibilita, muitas vezes, aportar em uma única direção.

Talvez, o gênero romanesco enseje o espaço de escritura carnavalesco por excelência à

medida que não só rompe com as delimitações formais, como também não se detém à

constituição de uma unidade. A heteroglossia presente no Romance d’A Pedra do Reino

permite-nos pensar a obra como mosaico de funções para além das literárias e dos campos

que encerram a sua estrutura em ficção. Para Edwin Muir (1928), o romance desse tipo

pode ser classificado como “romance dramático”, uma vez que enredo e personagem

entrelaçam-se, sendo a personagem responsável pela intensificação da ação. O autor

esclarece:

Num romance deste tipo, a correspondência entre a ação e os personagens é tão essencial que mal se pode encontrar termos para descrevê-la sem parecer exagerar; poder-se-ia dizer que uma mudança na situação sempre envolve uma mudança nos personagens, enquanto toda a mudança, dramática ou psicológica, externa ou interna, ou é causada ou é configurada por alguma coisa existente em ambos. Sob este aspecto, o romance dramático se coloca à margem tanto do romance de ação como do de personagem. Nos dois há um hiato entre e os personagens; no romance dramático não deveria haver nenhum. Seu enredo é parte de seu significado. (MUIR, 1928, p.24)

Pedro Dinis Quaderna, o protagonista do romance de Ariano Suassuna busca

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constantemente, em suas ideias, se tornar uma síntese que reúne os pensamentos

diametralmente opostos de seus dois grandes mestres; o Professor Clemente e o Dr. Samuel

Wandernes. Após um longo debate com esses mestres sobre o “Gênio da Raça”, em que o

Professor Clemente defende que o gênio da raça deveria vir da filosofia, enquanto seu

opositor, Dr. Samuel Wandernes, defende que tal gênio deveria vir da literatura. O

protagonista conclui que o “Gênio da Raça” é aquele que logra condensar em sua obra as

características fundamentais de seu tempo. Nesta perspectiva, Quaderna termina por

concordar com o Dr. Samuel Wandernes que o gênio da raça deveria ser alguém

proveniente da literatura uma vez que, para Quaderna, a literatura enquanto forma de

expressão consegue condensar a história e a cultura de seu tempo, tomando como exemplo

o próprio Homero.

Não podemos esquecer que se trata de obra maturada, com fortes traços que apontam

para a problemática da escrita e do ato de criação, a partir de aspectos da estética proposta

por Suassuna. O romance abre-se ao leitor como dialética, confirmando sua tendência ao

drama, principalmente como gênero capaz de absorver dentro de um mesmo movimento

tradição e contradição. Embora a narrativa aporte em determinadas certezas que a

personagem assume, abre-se espaço para a disposição dos argumentos contrários ao longo

dos acontecimentos narrativos. A figura dos dois mestres apresenta-se como “coro” na

tragédia grega, ou seja, vias alternativas para a abertura das reflexões acerca do

posicionamento do herói.

Contudo, uma vez concordando que o gênio da raça deveria ser um escritor ou poeta,

surge outra questão, desta vez de ordem metadiscursiva, a saber: “Qual gênero literário seria mais adequado para unir o lirismo de seu mestre Wandernes à filosofia de seu mestre

Clemente?” E eis que, Quaderna, após muitas delongas, conclui: “O romance!”. Na obra de Ariano Suassuna, podemos observar que Quaderna optou pelo romance

após ser constantemente “barrado” por seus mestres que sempre arguiam sobre a maneira

correta de se escrever uma poesia ou uma epopeia. Em verdade, o protagonista marca um

diferencial na constituição do pensamento moderno. Podemos inferir que Ariano Suassuna

ironizou, em seu romance, a própria ideia de composição clássica do gênero romanesco, ao

relacionar a ação crítica presente na obra, em tom quixotesco, com elementos da

composição literária, o personagem estabelece a ilusão de ruptura com as regras e com a

tradição. É importante ressaltar que uma questão é a ruptura temática que aflora no discurso

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do personagem, outra questão é o plano de elaboração proposto pelo narrador-autor,

plenamente ciente das regras que permeiam a construção do romance. O excesso de regras

estilísticas das formas literárias que Quaderna cogitava, o conduziu a escolher o romance

(ou pelo menos fazer seus mestres acreditarem que ele fez essa escolha) em razão de seu

caráter híbrido e imprecisão da forma. Apenas através do romance Quaderna conseguiria

escrever uma obra que reunisse os ensinamentos de seus dois mestres; expressar a sua

subjetividade no texto, além de (talvez) condensar as características fundamentais de seu

tempo e espaço, imprimindo assim uma “totalidade” de seu mundo, como fizeram Homero

e Virgilio em suas respectivas epopeias.

A força do romance encontra-se exatamente nesse modo de teatralizar a linguagem.

Por um lado Quaderna responde e age de acordo com o enredo, trama; por outro, não

podemos esquecer a sua função narrativa, espécie de duplo4 do autor. A duplicação também

própria do gênero dramático, responde e divide a narrativa em dois planos, exigindo do

leitor atenção redobrada. Se por um lado, somos levados pela personagem, por outro, há

sempre indícios das estratégias de composição literária em voga. O movimento de

duplicação das personas (autor/narrador) fica claro em algumas partes do texto em que

ambas aparecem:

Entretanto, é deste relato que depende a minha sorte e ninguém é tão fanático a ponto de fazer Literatura em troca de cadeia. Devo ser exato: e infelizmente, num mesmo instante em que consigo arrumar tudo, tenho que desarrumar tudo de novo. Porque, naquele dia, quando a Cavalgada vinha perto do legendário Riacho de Cosme Pinto, ela mesma foi desarrumada por um incidente sujo e oncístico, que causou alguns rasgões raposos na bandeira da frente, sujou homens e cavalos de suor e poeira e chegou mesmo a derramar sangue, se bem que esta última parte ainda possa ser considerada taperista e heráldica, pois houve tiros e reluzir de facas nos riscos de Sol – o que não deixa de ser armorial. (SUASSUNA, 2007, p. 51).

4 A duplicação aponta, no caso de Quaderna, para um heroi de natureza dupla, trickster e picaresco. “É por

isso também que esse conjunto encontram-se igualmente as raízes remotas do motivo do duplo e da duplicidade, que passará a ser estudado em profundidade somentenos séculos XIX-XX, a partir dos românticos (Chamisso, Hoffman, E. A. Poe, Gógol, Dostoiévski, O. Wilde etc.” (MELETINSKI, 1998, p.98). Dessa forma: “a coexistência do herói cultural e do trickster numa única personalidade ou no aspecto de dois irmãos é a mais antiga forma de duplicidade. Nesta base surgiram formas mais tardias de duplicidade, exploradas amplamente, em particular na literatura do romantismo alemão (em Chamisso, Hoffman e outros).” (MELETINSKI, 1998, p.201). Nesse sentido, Sinésio e Arésio representam uma continuidade dessa tradição, tradição também detectada em Eteócles e Polinices, relação que mais à frente daremos melhor atenção.

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A estrutura da obra, in medias res,5 facilita o deslocamento dos papeis dos agentes da

escrita, dificultando ao leitor decifrar as pistas que distinguem seus diversos modos de

justaposição. É possível falar de uma prosa artística que é tecida ao longo do romance. O

autor, paralelamente, à ação do personagem desconfia das certezas impostas pelo modo de

criação poética, pautadas exclusivamente nas regras de estilo.

Apontando para uma provável influência da épica, entendemos aqui que Ariano

Suassuna indiretamente se refere às epopéias homéricas, Ilíada e Odisseia, nas falas de Dr.

Samuel Wandernes, que por sua vez parece traduzir, consciente ou inconscientemente6,

parte do pensamento do ensaísta Georg Lukács em sua Teoria do Romance, quando este

indica que Homero condensou a totalidade do mundo grego em seus dois grandes

monumentos poéticos. Desta forma, podemos observar a totalidade do mundo grego na

Ilíada, em especial no Canto II, quando é feita uma detalhada descrição de todos os

monarcas gregos (Agamêmnon, Menelau, Odisseu, Nestor, os dois Ajax, Aquiles, dentre

outros). A citação aos monarcas imprime um caráter de totalidade nacional à epopéia. É

preciso distinguir que mesmo sendo possível, no gênero romanesco, abrir mão do caráter

nacional, há uma exploração dos elementos épicos e nacionais daquilo que seria uma

epopeia a ser escrita pelo personagem Pedro Dinis Quaderna; A Nordestíada. No entanto,

tal propósito a todo o momento é cortado pela ironia com que as questões nacionais e de

importação do estrangeiro são problematizadas.

A forma híbrida com que o Romance d’A Peda do Reino evolui pode ser pensada

historicamente, dentro da perspectiva do gênero romanesco, no final do século XVII de

nossa era; com a consolidação e a unificação política das nações, a epopeia encontra-se em

decadência, sendo substituída pelo romance. Dentro desta perspectiva, a afirmação dos

valores nacionais (tal qual ocorria em Homero) perdia a necessidade de existência.

Podemos então supor que Ariano Suassuna utilizou seu protagonista como uma forma de

representação metafórica da inadequação da epopeia nos tempos modernos. Ao observar

5 Técnica literária onde a narrativa começa no meio da história, em vez do começo. Os personagens, cenários e conflitos são frequentemente introduzidos através de uma série de flashbacks ou através de que discorrem entre si sobre eventos passados. Obras clássicas como a Eneida e a Ilíada começam no meio da história: “O escritor sempre avança em direção às falas e em direção às coisas médias (os acontecimentos no meio da narrativa) e igualmente conhecidas, assim captura do auditório, o ouvinte.” (HORÁCIO, Arte Poética, 148) 6 Ariano Suassuna, em entrevista realizada por mim, em 19 de agosto de 2013, afirmou não ser familiarizado com o pensamento de Georg Lukács sobre o romance. Contudo, ainda que seja desconhecedor da teoria do romance de Lukács, podemos notar semelhanças entre o pensamento do filósofo húngaro e do personagem do romance; o Dr. Samuel Wandernes, uma vez que entre o ensaísta e o poeta-personagem, percebemos que a escritura do romance/da epopeia aporta na condensação dos elementos que permeiam o contexto da obra.

19

que o romance de Suassuna aponta Quaderna como um homem nascido em 1897; podemos

constatar que Suassuna transfere para seu personagem a ideia, já apresentada por Georg

Lukács de “inadequação da alma em relação à realidade objetiva”: Que Deus tenha abandonado o mundo, vê-mo-lo pela inadequação entre a alma e a obra, entre a interioridade e a aventura, pois que nenhum esforço humano se insere já numa ordem transcendental. Esta inadequação apresenta, por junto, dois tipos: conforme é mais estreita ou mais larga do que o mundo exterior que lhe é designado como teatro e como substracto dos seus actos, a alma encolhe ou alarga. (LUKÁCS, 1962, p. 99)

No Canto II da Ilíada a totalidade do mundo grego se revela na maneira como

Homero enfatiza, em sua obra, valores nacionais determinados pela união de vários reinos

sob um único comando, o de Agamêmnon. Também em suas obras podemos observar a

defesa de valores como o espírito de nobreza, a amizade, o respeito à família e às tradições

pátrias, sendo fatores que contribuem para a impressão da totalidade. Em contrapartida, na

Pedra do Reino, tais elementos, quando aparecem, passam por um processo de

dessacralização. Nesse sentido, o gênero romanesco passa a se distanciar em grau de

estrutura e de composição de sua matriz epopeica, abrindo-se para um campo de ausência

de padrão formal, o que também é explorado pelo duplo da linguagem autor/personagem. É

na miscigenação das formas e não nos modelos tomados como referência que observamos

surgir do Romance d’A Pedra do Reino, submodelos: romance-poema, romance-ensaio,

romance de personagem, entre outros.

No caso da Odisseia nos deparamos com um único herói (Odisseu) que transita pela

totalidade do mundo grego ao passar dez anos errando pelos mares na tentativa de retornar

a sua terra natal onde era o governante, Ítaca. Essa viagem permite que o herói tenha

contato com diversas culturas, além de enfrentar e dialogar com seres mitológicos como o

ciclope Polifemo, a feiticeira Circe, a Cila, a ninfa Calipso, a descida ao Hades para

encontrar Tirésias, dentre outros. Dentro desta perspectiva podemos inferir que a totalidade

do mundo grego na Odisséia se encontra nessa travessia de Odisseu pela via mitológica.

Em argüição, o professor Milton Marques Júnior acresce que, na realidade, a viagem de

Odisseu representa a expansão do mundo grego para o ocidente.

Ainda que o objetivo de Quaderna seja imprimir à região nordeste um caráter heróico

ao modo e estilo de Homero, seu projeto visionário finda naquilo a que se pretende. A

falibilidade, neste caso, é uma das pistas para entender os mecanismos de duplicação

exercidos por Ariano Suassuna. O duplo funciona como espaço intervelar entre criatura

(Quaderna) e o criador (autor). Nada no romance parece apontar para uma atitude heróica,

20

diferentemente da atitude dos heróis trágicos e epopeicos. Por mais megalomaníaca com

que esteja configurada a personalidade do protagonista, o narrador procura criar um

descompasso entre a ficção e a realidade, visando atingir o leitor. Tentativa de alertar sobre

a hiper codificação do real, satirizando a escrita e hiperbolizando a mimese. O campo

narrativo dialoga com o campo dramático à medida que o romance se estrutura em

“Folhetos”, espaço que se aproxima da concepção de “cenas” teatrais. Cada um dos oitenta

e cinco folhetos se apresenta ao leitor como forma não apenas de divisão, uma vez que o

fluxo narrativo não se perde, mas como forma de “flashback”, reminiscência que funciona

como estratégia de criar uma ilusão do tempo presente, imediato, curto, perecível e

independente, como se fosse possível ler o romance separadamente, em atos. Contudo, o

leitor não consegue percorrer a trama separadamente, ainda que seja possível facilmente

identificar as partes da tragédia em sua estrutura: prólogo, párodo, episódios, estásimo,

clímax e êxodo (desfecho). A construção in medias res favorece a junção do prólogo com o

êxodo, cujo espaço em comum entre ambos é o da cadeia. A parte do párodo funciona

como um coro, cujo ponto de partida no romance é a descrição da primeira Cavalgada

(SUASSUNA, 2007, p. 35-49), forma de abertura para a inserção de citações de outros

poetas e escritores, com os quais Quaderna dialoga. Cada episódio, Folheto, é cortado por

párodos e estásimos citacionais, reforçando a intertextualidade e interdiscursividade

dialógica. A narração é sempre entrecortada por enxertos, através dos quais tanto o

personagem principal quanto o autor estabelecem diálogo com a tradição literária,

dramatizando-a.

Ao tratar do contexto ficcional, exemplificando inclusive a partir da visão interior e

exterior da personagem de ficção (estreitamento ampliação da alma em relação sua

exterioridade), Lukács possibilita entendermos Quaderna sob dois prismas:

No primeiro caso percebe-se melhor do que no segundo o caráter demoníaco do indivíduo problemático que parte à aventura mas, ao mesmo tempo, a sua problemática interna manifesta-se com menos clareza; à primeira vista, parece que o seu fracasso diante da realidade se mantém puramente exterior. O demonismo que corresponde a este encurtamento da alma é o do idealismo abstracto. É a aptidão interior que impede necessariamente todo acesso imediato e direto à realização do ideal; que na sua cegueira demoníaca esquece toda distância entre o ideal e a idéia, entre o espírito universal e a alma individual. (LUKÁCS, 1962, p. 99)

21

A obra que Pedro Dinis Quaderna pretende escrever possui três eixos norteadores da

trama: A morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o desaparecimento de seu filho caçula

Sinésio, logo após a morte do pai, e o retorno de Sinésio montado em um cavalo branco.

Estrutura aparentemente linear. A divisão simétrica é cortada pelos dois tipos de visões as

quais se refere Lukács, Quaderna pode ser apresentado tanto como personagem fechado no

seu imaginário, projetando uma aventura quixotesca, quanto como personagem condutor

dessa aventura, condição que é, a todo o momento, complexa, refletida, posta sob suspeita.

Reforçando a ideia do hibridismo, acima apontada, observamos que Quaderna

vislumbra a escritura de uma obra simultaneamente lírica, épica e dramática para abarcar

tudo o que ele pretende contar em sua obra. A riqueza de sua narrativa, para tornar-se uma

epopeia aos moldes de Homero, deveria ser escrita em versos hexâmetros. Quaderna, ao

constatar a sua limitação em relação à escrita de uma epopeia nos moldes de Homero,

decide que sua obra será um romance. Podemos aqui observar que a ironia e a sátira

permeiam constantemente o romance de Suassuna, pois no depoimento prestado por

Quaderna ao juiz-corregedor, Suassuna ironiza essa inadequação da epopeia nos tempos

modernos no relato em que Quaderna explica ao corregedor que não consegue escrever

uma epopeia em razão de um osso protuberante localizado próximo às nádegas que o

impede de sentar e escrever, o vulgo “cotoco”. Sendo o gênero romântico oriundo da

inadequação da epopeia aos tempos modernos, cabe-nos apontar na obra alguns momentos

em que, na narrativa, o romance como gênero é problematizado.

É ao constatar a impossibilidade de se manter fiel à sua ideia primeira que, à luz da

metacrítica acerca do gênero romanesco, Quaderna oferece ao leitor campo de investigação

acerca dos elementos formais que constituem a sua narrativa trágica e a arte de narrar. Para

Quaderna: “E é aí que eu, apesar de partir da realidade rasa e cruel do mundo como Clemente, dou também razão a Samuel, quando diz que, na Arte, a gente tem que ajeitar um

pouco a realidade que, de outra forma não caberia bem nas metas da Poesia.” (SUASSUNA, 2007, p. 54).

Nesse sentido, é mister discorrer sobre alguns aspectos da teoria do romance, uma vez

que a obra de Suassuna, inclusive respeitando a escolha do projeto do personagem, é um

romance. Relacionando com o pensamento de Lukács (1962), a visão de Quaderna se

enquadraria dentro de uma nostalgia filosófica, a partir de uma laceração entre a

subjetividade do sujeito e a realidade objetiva.

22

O transcendental teria, na visão de Lukács, função determinante através da qual os

impulsos devem ser ordenados rumo à construção de uma forma que lhe é desconhecida, mas

que lhe é uma forma simbólica libertadora, sendo a “paixão” o caminho pré-determinado pela

razão para a perfeita adequação de si própria. Neste sentido, Quaderna é um exemplo singular

dessa busca, uma vez que seu mundo interior molda a realidade externa e por ela é moldado.

Isso faz, dentro do pensamento de Lukács, com que sua alma parta em busca de aventuras,

ignorando os perigos reais dessa busca e de suas descobertas, fluxo que permite ao leitor um

duplo movimento: o do imaginário da obra e o da metaficção crítica do romance. Exemplo

máximo do plano metaficcional nos é dado ao corregedor e por tabela ao Leitor que, a todo

tempo, é convocado para testemunhar dados e fontes: “Pronto, nobres senhores e belas Damas

de peitos macios! Estava descoberto o meu grande crime, aquela culpa que eu vinha procurando

ocultar tão cuidadosamente, desde que se iniciara o depoimento.” (SUASSUNA, 2007, p. 457),

ou ainda de modo mais enfático: “Li então para o Corregedor toda aquela história que Vossas

Excelências já conhecem, nobres Senhores e belas Damas.” (SUASSUNA, 2007, p. 464).

Ao leitor é atribuída a função de testemunha ocular dos fatos narrados, o que permite

intensificar o suspense provocado pelo estilo, assumidamente, do romance policial. A

receita é posta a partir do argumento de citação da escritora Albertina Bertha:

Modernamente, diz ela que é importante ‘o romance inspirado pelos novos métodos de instrução criminal’. Olhem, copiei, no livro, essa parte da receita, e vou lê-la. Diz ela que nesses ‘romances de instrução criminal’, o enredo para a pista do assassino ‘se faz sempre pelo grande Decifrador’ e a história termina sempre com ‘a Virtude recompensada e com crime punido. (SUASSUNA, 2007, p. 236).

O diálogo do romance com a epopeia permanece como elo de tensão que se

encaminha para o trágico e para o drama. Lukács entende que na epopeia a alma é desconhecedora de abismos dentro de si, abismos estes que podem conduzi-la tanto para o auge quanto para a decadência. Entende, o autor, que não há ação que não seja um vestuário para a alma, e numa perspectiva estóica aponta que o Ser e o Destino, Aventura e Acabamento, Existência e Essência, a partir de noções idênticas entre si, uma vez que a interrogação básica que movimenta a epopeia, segundo o crítico, é: “Como pode a vida tornar-se essencial?” (LUKÁCKS, 1962, p.22).

No caso da tragédia, ela responde pelo modo de como o essencial se torna vital ao

herói. O crítico ajuda-nos a compreender as razões pelas quais Homero se mantém

referência até os dias atuais.

23

Segundo Lukács, a dialética entre a subjetividade do autor e a realidade objetiva eram

elementos potenciais para a elaboração de um romance. Entendemos por subjetividade as

razões intrínsecas do autor, que podem ser moldadas pela realidade objetiva, como pode,

também, moldar a mesma. Pedro Dinis Quaderna tanto molda como se deixa moldar pela

exterioridade.7

Considerando que o repúdio à guerra e à sociedade burguesa da época era algo

puramente utópico, Lukács esclarece que não havia nela nenhuma mediação entre a tomada

de posição subjetiva e a realidade objetiva. Em razão disso, o filósofo não sentia qualquer

necessidade de avaliação crítica acerca de sua concepção do mundo, o método de seu

trabalho científico, etc. Pretendia assim, o ensaísta, “passar” da perspectiva de Immanuel

Kant (que buscava compreender a fundamento e a motivação dos fenômenos e objetos)

para Hegel (que considerava absoluta apenas a investigação cientifica que também

abarcasse as contradições do objeto de estudo) sem modificar sua ligação com os métodos

das ciências do espírito. Lukács se considerava influenciado pelos trabalhos de Dilthey, de

Simmel e de Max Weber. Desta forma, a Pedra do Reino, constitui-se em mosaico de

referências e de influências: históricas, sociais, religiosas, míticas e literárias. No que diz

respeito, às referências biográficas, ainda que nesse estudo elas não sejam a questão

principal, vale o seguinte registro de Ariano Suassuna:

Olhe, eu vou lhe dizer, na verdade já tem relatos por aí. Na verdade, A Pedra do Reino surgiu de dois fracassos meus. Eu, nos anos 50, tentei escrever uma biografia do meu pai. Mas eu não consegui levar adiante, aquilo era como se eu estivesse mexendo numa ferida numa cicatrizada, não consegui. Aí eu tive o primeiro fracasso, que eu não consegui fazer essa biografia. Depois eu tentei fazer um longo poema épico sobre ele que se chamaria Cantar do Potro Castanho, mas eu também não conseguia. A poesia dava um distanciamento maior mesmo, mas mesmo assim eu não conseguia. Então eu deixei pra lá, e disse: “Eu não vou tentar mais nada nessa

7 Partindo de um exemplo prático da vida do próprio Georg Lukács, podemos observar que o advento da

Primeira Guerra Mundial o impeliu a escrever sua teoria do romance. Naquela ocasião da guerra de 1914, Lukács encontrava-se destituído de um posicionamento claro em relação à guerra. Mostrando-se, a principio, veemente contrário, Lukács também pôde isolar do “todo” da guerra aspectos que lhe poderiam ser, relativamente, benéficos e maléficos. No prefácio à Teoria do romance, Lukács esclarece: “Quando, nessa época, tentava tomar mais claramente consciência da minha posição que era puramente afectiva, eis, mais ou menos, as conclusões a que chegava: as potências centrais vencerão verossimilmente a Rússia, o resultado do facto será talvez a queda do czarismo – de acordo. Há uma certa probabilidade de que as potências ocidentais vençam a Alemanha; se a vitória levar à queda dos Hohenzollern e dos Habsburgos, também estarei de acordo quanto a este ponto. Mas a questão está em saber quem salvará a civilização ocidental. (A perspectiva de uma vitória definitiva da Alemanha de então fazia-me o efeito de um pesadelo).” (LUKACS, 1962, p. 08)

24

vida não.”, em 1958, depois de eu ter deixado isso pra lá, comecei a querer escrever um romance que terminaria sendo o Romance d’A Pedra do Reino. E sem eu perceber; a Pedra do Reino terminou sendo o substituto ficcional do romance, da biografia e do romance, e do poema que eu não tinha conseguido escrever.8

Os diversos níveis de deslocamentos (históricos, culturais, literários, biográficos entre

outros), presentes na narrativa, condiz com uma estrutura móvel que permite várias

entradas no texto. Daí a importância de perceber os aspectos formais e variacionais do

romance em diálogo, sempre que possível, com o conjunto de referências presentes na obra.

Tais deslocamentos estão anunciados já no longo título dado ao romance: Romance d’A

Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta. O movimento de ir e vir sugerido,

já no título, exige que o leitor se desloque em meio a dados cuja fonte documental está

sempre sob suspeita.

Dessa forma, em substituição aos deuses da mitologia greco-romana, Suassuna evoca

escritores da tradição universal e regional, criando um elo de forças que se estende por toda

a obra. Dante, Euclides da Cunha, Goethe, Camões, José de Alencar, Machado de Assis,

Augusto dos Anjos, Alexandre Dumas, dentre outros.

Segundo Lukács, a perda dessa relação com o mítico faz com que as formas artísticas

se submetam a uma dialética histórico-filosófica; acrescentamos a histórico-filosófica, no

caso de Suassuna, a literária, tendo resultados diferentes de acordo com a origem dos

gêneros específicos. Mais uma vez, Suassuna supre a evocação aos deuses, pela citação

explícita a escritores. Lukács aponta que o romance é uma expressão do desabrigo

transcendental, ou seja, o romance vem traduzir a perda dessa “inocência mítica”. Dentro

dessa perspectiva, A Divina Comédia de Dante, segundo Lukács vem a constituir uma

transição histórico-filosófica da epopeia para o romance em razão de seus personagens

serem indivíduos que resistem a uma realidade que a eles se fecha, apesar de possuírem a

completude e ausência de distância inerente ao herói épico, e nessa oposição se tornam

verdadeiras personalidades. Quaderna pode ser analisado como sendo uma experiência

radical desse movimento.

Sabemos que na Grécia o destino do individuo estava diretamente conectado à

coletividade a qual era pertencente, enquanto na Modernidade o destino do individuo não se

8 Cit. Entrevista.

25

encontra conectado com a coletividade, havendo assim uma maior ênfase na

individualidade. Nesta perspectiva, Lúkacs identifica no poema épico de Dante, nas peças

de Shakespeare e no Dom Quixote de Cervantes o caminho que configurou o romance

ocidental.

O tom memorialista, no romance, está reforçado pela função do rapsodo,

imprescindível para a compreensão dos estágios cíclicos da obra em questão. A literatura

clássica compreende respectivamente três períodos: o arcaico, o clássico e o alexandrino.

No período arcaico são produzidas as mais significativas obras literárias da humanidade: a

Ilíada e a Odisseia. Marques Júnior (2008) nos esclarece que o período arcaico marca o

principio do fato literário, em que a escrita é resgatada, uma vez que se encontrava

desaparecida durante um período de quatrocentos anos entre os séculos XII e VIII a.C.

Apesar da escrita, a tradição oral nessa época era forte, sendo os aedos (ou rapsodos) os

principais responsáveis pela difusão da poesia oral. Tanto a Ilíada quanto a Odisseia foram

mantidas e repassadas por gerações durante duzentos anos até que, no século VI a.C, o

tirano de Atenas, Psístrato, ordenou o registro escrito dessas obras atribuídas a Homero.9

Aqui, é importante enfatizar a desconfiança da existência ou não de Homero, explorada por

Quaderna, como modo de questionamento do lugar da autoria dos textos e de suas matrizes

orais.

No período clássico da Grécia (V e IV a.C) o foco da literatura se transfere do mundo

ligado à natureza para o mundo da polis. Conforme nos esclarece Marques Júnior, nesse

período a filosofia busca a explicação lógica para os fenômenos, por meio do discurso

racional. É nesse contexto que surge os textos da tragédia grega que buscam refletir acerca

da condição humana expondo a sua fragilidade. Já no período alexandrino (IV e III a.C),

ocorre a expansão da influência grega por meio da expansão territorial do império de

Alexandre, o Grande.

Acerca desses gêneros literários vigentes na Antiguidade, Rosenfeld (2009) nos traz

distinções a fim de que possamos identificar as características peculiares do lírico, do épico

e do dramático. Sobre o gênero lírico, Rosenfeld nos esclarece que esse gênero enfatiza o

aspecto emocional, ressaltando a musicalidade dos versos, além de possuir um notável

9 Para um maior aprofundamento ver “Canto XXII da Ilíada: O teatro da morte, do ultraje e da dor”. In:

MARQUES JÚNIOR, Milton. O teatro da morte, da humilhação e da dor: análise e tradução do canto XXII da Ilíada, de Homero. João Pessoa-PB: Zarinha Edições, 2007.

26

caráter de pessoalidade em relação ao eu lírico. Já no gênero épico introduz-se a descrição,

podendo-se observar um caráter mais impessoal do narrador, uma vez que o texto épico,

com relativa freqüência, expõe fatos históricos que também podem ser ficcionalizados. Já

no gênero dramático se insere o texto dialógico, que tem como eixo central o conflito, a

solução de problemas. Na qualidade de suposto poeta visionário, Suassuna, através do

personagem Quaderna, problematiza todos esses lugares do discurso, atenuando suas

diferenças por meio da constante indecisão do lugar do narrador.

Nesta perspectiva, Anatol Rosenfeld em seu trabalho cita exemplos de possíveis

nomenclaturas para textos dramáticos que se utilizam de elementos líricos e épicos como o

“drama lírico” e o “drama épico”. A perda dessa unidade faz com que ela seja

constantemente buscada na Modernidade, não havendo assim uma “totalidade espontânea

do ser”, o herói no romance está sempre em busca de si mesmo. Através da perda da

totalidade e da unidade, bem como da ausência de divindades, a psicologia do herói no

romance, segundo Lukács, se torna “demoníaca”. Essa psicologia demoníaca seria a

percepção e realização na escrita de que o herói do romance não é capaz de penetrar

inteiramente na realidade.

A constatação de Lukács, em A Teoria do Romance, é de que o romance é a forma necessária da modernidade. Esta modernidade se caracteriza pela consciência da cisão, que se constata por ser incontornável pela necessidade da busca do sentido e, a também necessária descoberta da sua impossibilidade neste mundo prosaico, pela presença viva do elemento demoníaco. A sensação permanente de desabrigo da alma. “O romance é uma construção ‘problemática’, emblema de uma modernidade que perdeu o sentido da vida” (MARTINS, 2008, p.269).

Paralelamente à “perda do sentido da vida”, da “hibridização” patente no romance, é

possível apontar elementos teatrais e dramáticos na obra, antes de entrarmos nos elementos

trágicos propriamente ditos. Entre eles, destacamos a presença implícita de didascálias em

todo o texto, ora para descrever o cenário em que as cenas são narradas e a indumentária,

ora como recurso para balizar a potência teatral do texto. Tais didascálias funcionam como

um segundo texto no interior da narrativa. Coaduna com esta assertiva, a caracterização do

personagem doutor Pedro Gouveia, sobreposta aos fatos contados:

O Doutor Pedro Gouveia trazia paletó preto com debruns de seda na gola, uma rosa vermelha à botoeira, colete cinza com relógio e correntão de ouro, calças justas, riscadas de negro e cinza, botinas negro-pardas, abotoadas de lado por uma fieira de botões, e polainas brancas. Com uma das mãos, segurava as rédeas do

27

cavalo. Com a outra, sobraçava um meio-termo de pasta-de-documentos e maleta de viagem. Como logo descobriríamos depois, ali, naquela pasta, é que vinha todos os papéis de documentos que terminariam causando tanta complicação, tantas mortes e tantos infortúnios. Amarrada ao pescoço por uma fita branca e amarela –“as cores do Papa”, como ele mesmo nos explicou – o Doutor carregava uma espécie de condecoração, “uma Cruz semelhante à da Ordem de Cristo, mas com esmaltes diferentes, pois era de ouro e goles – ou de amarelo e vermelho, para os não traquejados na Heráldica. No dedo anular da mão esquerda, o Doutor usava um anel brasonado. No indicador da direita, uma pedra-de-grau de Licenciado em Direito, um enorme rubi, cercado por pequenos diamantes encravados em chuveiro (SUASSUNA, 2007, p. 44)

Paralelamente à presença das didascálias implícitas no romance, detectamos a

metáfora do teatro como forma enfática de dramatizar os atos narrativos: “... era teatro de

constantes desordens e conflitos...” (SUASSUNA, 2007, p. 72); “Aquele anfiteatro antigo e

bruto parecia exigir que eu misturasse meu sangue às pedras...” (SUASSUNA, 2007, p.

146). Nítida, portanto, é a teatralidade da linguagem trabalhada pelo autor. No campo da

intertextualidade, o diálogo com a tradição encena uma escrita “fáustica”, cujo Ser

encontra- se e perde-se na linguagem, tal qual a noção do narrador como dramaturgo que

organiza as cenas em que participa, através de um constante debate, personificado nos

inúmeros dualismos postos em discussão, dentre eles destacamos os mais marcantes, a

saber: o “Oncismo” e o “Tapirismo”. É a partir dessas duas posições antagônicas, que o

herói Quaderna estabelece a sua narrativa dialógica.

Acerca desse “demonismo” proposto por Lukács, Martins (2008) segue seu artigo

explicando que o herói no “idealismo abstrato” atua psicologicamente, impedindo assim

qualquer problemática da alma, qualquer impulso de ordem sentimental. Diferentemente do

herói trágico, o herói do romance tende a ser aventureiro em vez de contemplativo. Os

valores que o impelem à ação não vêm necessariamente da exterioridade, como na Ilíada e

na Odisseia, ele já possui esses valores intrínsecos. Dom Quixote, por exemplo, nesta

perspectiva, representa o ápice do “distanciamento”. Sendo concebido como uma paródia

dos romances de cavalaria, Dom Quixote demonstra a impossibilidade desse tipo de

romance se perpetuar na forma que se encontrava naquele contexto. O herói do romance de

Cervantes age em defesa da honra e da justiça, contudo esse valor (a interioridade

transformada em ação) se mostra inadequada e desconexa do contexto que se apresenta. O

modelo de Dom Quixote é o exemplo da inadequação da alma em razão de seu

estreitamento em relação à realidade.

28

Pedro Dinis Quaderna, apenas parcialmente se distancia da realidade, uma vez que é a

própria realidade, ou referência a ela que conduz o imaginário poético do personagem. Em

contraposição a essa perspectiva quixotesca apresentada por Martins, Lúkacs aponta que no

século XIX surge o “romance da desilusão”, nesse tipo de romance a inadequação da alma

se dá por ela ser demasiadamente ampla em relação à realidade, sendo mais vasta que os

destinos que a realidade pode lhe oferecer. O problema central dessa forma de romance é a

perda do simbolismo épico, a renúncia da vida, e a necessidade de um mundo

completamente regido pela convenção. Nesse sentido, Suassuna recria a realidade a partir

do elemento primordial da consciência sobre a forma poética e a forma estética. Dentro das

possibilidades da linguagem, é o elemento da convenção que estrutura o romance.

A partir do modelo proustiano, a “duração” torna-se a categoria que caracteriza o

romance de desilusão, ocorre uma constante “luta contra o poder do tempo”. O tempo nesse

romance passa a ser, o “princípio depravador” sendo ele o responsável pelo definhamento

da essência. O nome “desilusão” se dá em razão de o herói ser frustrado na busca de

estabelecer sentido à vida, tão somente pelos fatos cronológicos, tornando-se assim, o herói

ou personagem, um desiludido frente a fusão entre o tempo e a subjetividade.

Pedro Dinis Quaderna situa-se no intervalo entre o “idealismo abstrato” e o “romance

de desilusão”. Desta forma, Ariano Suassuna cria um personagem que transita entre as

modalidades apresentadas por Lukács. Pois a perspectiva quixotesca é latente em

Quaderna, a partir do momento que o personagem se propõe a restabelecer um reino

outrora extinto no sertão brasileiro, podendo-se observar, no plano da diégese, uma total

desconexão do herói, tal qual ocorre no idealismo abstrato. Todavia, do ponto de vista da

construção da ação, Quaderna é uma criação dotada de notória introspecção e isso coincide

com a ideia de “alma enriquecida de interioridade”.

Conforme já mencionamos anteriormente, Rosenfeld (2009) esclarece-nos que a

ausência da necessidade de uma exaltação de caráter nacional faz com que o romance

substitua a epopeia. Nesta perspectiva, quando Quaderna opta pelo romance em vez da

epopeia, podemos entender que Ariano Suassuna utiliza o personagem principal como

“personificação” da transição entre o romance e a epopeia, adequando a problemática ao próprio intuito de problematizar as matrizes da cultura nacional na Pedra do Reino.

29

Tomando por base essa cesura entre o épico e romanesco, observamos uma espécie

de ética da escrita que envolve tanto o plano da enunciação quanto o plano do enunciado.

Podemos apontar que não só a obra do romance aqui estudado, mas toda obra artística, se

desenvolve a partir de três conjunturas: poética, técnica e estética. Assim, a obra se

constitui entre os elementos que tencionam a relação entre a produção e o produto. Daí,

podermos observar que em obras metaliterárias, como a de Suassuna, ocorre a justaposição

dos planos poéticos e técnicos. Resta ao leitor, buscar identificá-los do ponto de vista da

estética. Ainda sobre aquilo que denominamos acima “ética da escrita”, Ana Cotrim em

estudo dedicado ao romance discorre:

Diverso é o papel que a ética desempenha na constituição da forma do romance, antes de mais nada, porque o desenvolvimento para além do “mundo fechado” do período heróico leva ao rompimento da unidade existente entre interioridade e o mundo exterior, entre individuo e todo social, e com isso leva à dissolução do laço ético. O mundo moderno se caracteriza pela elevação da interioridade subjetiva muito acima dos limites da cultura fechada, e encontra uma manifestação privilegiada no alto grau de individuação. É um mundo de riqueza subjetiva, interior, que, contudo, não encontra respaldo para existir ativamente da esfera do mundo exterior (COTRIM, 2009, p. 573-574).

Nessa segunda fase de sua vida, a do idealismo objetivo, ainda segundo Cotrim,

Lukács entende que o romance é um gênero capaz de configurar a totalidade extensiva da

vida, o que de certa forma justifica o pensamento de Quaderna ao mudar da epopeia para o

romance.

Mas não é uma Epopéia o que eu quero fazer mais não, Clemente! A princípio, pensei nisso, tendo como assunto a Pedra do Reino e como figura central meu bisavô, o Rei João Ferreira Quaderna! Mas acabo de desistir, depois que eu ouvi Carlos Dias Fernandes provar que as Epopéias estão ultrapassadas! De fato, eu já andava meio cismado, porque o Senador Augusto Meira, Poeta épico pelo Rio Grande do Norte, já escreveu o Brasileis – Epopéia Nacional Brasileira, em catorze cantos, maior, portanto, do que Os Lusíadas, que só tem dez! Sendo assim, o que é que eu iria fazer mais, nesse campo da Epopéia brasileira? Por isso, mudei de ideia, e o que eu quero, agora, é escrever um “romance”! (SUASSUNA, 2007, p.235).

Com base no pensamento de Lukács, Ana Cotrim observa em sua dissertação que o

romance se configura como o gênero épico da modernidade, herdando da epopeia clássica a

sua finalidade na totalidade extensiva da vida, podemos também apontar aqui essa

semelhança com a transição literária de Quaderna. Contudo, apesar de herdeira, Cotrim

aponta que o romance se desenvolve também como uma forma oposta à epopeia clássica,

30

uma vez que na epopeia a realidade parece ser construída de maneira totalmente subjetiva

por meio da inspiração do autor, enquanto no romance (dentro do um entendimento

hegeliano) existe uma estrutura empírica exterior. Hegel, em verdade, refere-se à

perspectiva histórica. Na obra de Suassuna, contudo, os limites da construção histórica são

postos em acordo com a perspectiva da Nova história, Peter Burke compreende que:

Visões retrospectivas, cortes e a alternância entre cena e história: essas são técnicas cinemáticas (ou na verdade literárias) que podem ser utilizadas de uma maneira superficial, antes para ofuscar do que para iluminar, mas podem também ajudar os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o relacionamento entre os acontecimentos e as estruturas e apresentar pontos de vista múltiplos. Desenvolvimentos desse tipo, se continuarem, podem reivindicar ser vistos, não apenas como mero ‘renascimento’ da narrativa, como denominou Stone, mas como forma de regeneração. (BURKE, 1992, p. 348).

É possível entender essa mudança de paradigma a partir da relação estabelecida entre

o afastamento da visão coletiva (epopeia) para a visão individual (romance) ao longo do

desenvolvimento da narrativa. Lúkacs nos explica que há uma “totalidade ética”, onde a

vida, o mundo, a realidade objetiva, é penetrada pela substância espiritual interior (a nossa

subjetividade). Em razão disso os indivíduos da epopeia clássica pouco se diferenciam

entre si e o coletivo, a busca individual do herói compreende a busca de todo o povo.

Sendo um gênero híbrido, o romance é um herdeiro direto de outros gêneros

literários, dentre eles a epopeia e a tragédia, gênero que abordaremos em detalhes

posteriormente. Desta forma, o herói do romance se encontra em alto grau de individuação.

Podemos pensar que a tentativa de Quaderna em construir algo original baseia-se na busca

de uma singularidade que culmina com a individualidade do herói romanesco.

Lukács, então, compreende a modernidade como o tempo da ruptura e do abismo

entre a subjetividade e a objetividade, ou seja, a perda da totalidade que era indispensável à

epopeia clássica. Entende-se então que o mundo exterior perde sua substância, ou

importância, e o sujeito (a alma) perde o seu substrato de ação. O personagem no romance

parece estar em constante busca de si mesmo, e isso parece bastante evidente em Pedro

Dinis Quaderna e em todo o romance de Ariano Suassuna, onde metaforicamente busca-se

a restituição de um reino supostamente perdido como forma de encontro com sua

identidade. Com base nisto, podemos concordar com o entendimento de entendimento de

31

Lukács que consiste no fato de que o romance tem a função de recriar a totalidade perdida.

Nesse esforço de recriação, Ariano Suassuna reconstrói parte da história de um período. Em

suas palavras:

Depois eu fiz várias versões, eu faço sempre várias versões depois que eu escrevo. Numa das versões, que dei por terminada, que eu pensei que estava terminada, e veio uma irmã que eu tenho chamada Germana que cuja opinião eu levo muito a sério, aí ela disse pra mim assim: “__Ariano, você percebeu que a morte do padrinho de Quaderna é a morte de João Dantas?” Eu lembro que era um fato pessoal ligado à minha família. Aí eu fui olhar: “__ E é mesmo!”. João Dantas foi encontrado morto com a garganta cortada no dia 06 de Outubro de 1930 na detenção aqui do Recife, que é hoje a Casa da Cultura, num aposento elevado e tava trancado por fora, então, aí eu vi que era mesmo. Inconscientemente eu tinha recriado a morte de João Dantas na Pedra do Reino como fato ficcional, mas tinha uma origem (inclusive) autobiográfica minha muito forte!10

O processo de edição e montagem, revelado pelo autor imprime à obra uma clara

noção de convencionalidade. A luta do herói Quaderna em recuperar a totalidade perdida se

dá em razão de, inclusive, problematizar a relação entre a história e a literatura. O narrador

memorialista, recupera dados de toda ordem; antropológica, social, biográfica, literária,

geográfica, filosófica, política, para não falar das microestruturas que compõem o romance,

gastronômica, religiosa, ecológica, além das descrições, em abundância, da flora e da fauna

da região. Narrativa em mosaico, o Romance d’A Pedra do Reino permite várias portas de

entrada, incluindo a análise documental. No entanto, frisamos a importância de alicerçar as

referências na obra ao próprio tom satírico, irônico e crítico com os quais, o autor elabora

seu processo criativo. Cabe, ainda, enfatizar, o modo como o autor encara a cultura dita

popular e suas contradições frente à cultura erudita, dita estrangeira. Há no romance uma

tese implícita acerca do caráter nacional e da miscigenação entre as culturas: “Lembro que

o genial poeta Nicolau Fagundes Varela adverte todos nós, Brasileiros, de que ‘os irônicos

estrangeiros’ vivem sempre vigilantes, sempre à espreita do menor deslize nosso para,

então, ‘ridicularizar’ o pátrio pensamento.” (SUASSUNA, 2007, p.60)

Conclui-se que no romance o narrador pode assumir duas posturas em relação à

exterioridade; a postura descritiva e a narrativa. Assinala Cotrim:

No romance, a representação corpórea dos homens também adquire

10

Cit. Entrevista.

32

significação poética apenas na relação ativa com os demais, “na influência que exerce sobre eles”. Assim, mais uma vez tomando os traços épicos que vinculam Homero aos grandes romancistas realistas, nosso autor aponta o modo como se fazem sentir nas obras a beleza de Helena e de Ana Karenina. Valendo-se mais uma vez da apreensão de Lessing, nosso autor afirma que, tal como Homero caracteriza a beleza de Helena pelos efeitos sobre os homens e a sua influência na ação humana, também Tolstói figura a beleza de Ana como elemento vivo das relações e destinos humanos. (COTRIM, 2009, p. 587-588)

O romance representa a totalidade contraditória pela figuração de indivíduos em luta

na sociedade. Outro aspecto que não podemos deixar de perceber é o da demarcação dos

gêneros a partir de sua relação direta com as fases do homem. A fim de demarcar o

surgimento do romance, Lukács estabelece uma divisão da literatura épica em duas partes:

uma se encontra na “infância” do homem ocidental em que o homem está fadado à unidade

comunitária por meio da “fé” em suas divindades, e a outra parte se encontra na

“maturidade viril” desse homem que se encontra na crise dos valores que agora, na

ausência de deuses, passa a se distinguir de sua comunidade, vendo-se obrigado a encontrar

sua própria identidade. Desta forma o romance é oriundo dessa maturidade viril, onde se

busca saber como a existência se torna singular, individual e intransferível. Nessa linha de

raciocínio, cabe identificar onde o drama se localiza enquanto forma de emancipação da

expressão do homem. Essa “maturidade” que ocasiona o desaparecimento da essência na

íntegra inviabiliza a escritura da épica, nesta perspectiva o romance surge como uma forma

de suprir essa deficiência da épica. Desta forma, o romance passa a lidar com a

multiplicidade de experiências, uma vez que não há mais uma relação hierárquica entre

essência e existência.

Da tragédia, o romance se apropria da relação do herói com o seu destino, e da épica,

da relação do herói com a comunidade. Mesmo sabendo que na epopeia a narração indica

um extenso intervalo de anos ou décadas, e na tragédia o tempo de um dia; vale ressaltar

que o tempo (seja na tragédia ou na epopeia) encontra-se em suspensão, pois a duração do

tempo nessas duas formas literárias não possui caráter determinante na ação nem na idade

de seus personagens. Personagens épicos, como Odisseu, e trágicos, como Édipo, parecem

não sofrer qualquer ação do tempo, ainda que seus feitos sejam plenamente realizados. O

que importa na epopeia são os feitos heroicos, e na tragédia as ações que conduzem o herói

ao seu destino. Já no romance, identificamos um exercício de adiamento da ação,

culminando com uma derrisão temporal, o que justifica penetrarmos na influência do

33

trágico na estruturação do Romance d’A Pedra do Reino. Aspectos e elementos que

passamos a pormenorizar.

34

III – CAPÍTULO 2

“Só depois, quando comecei a entender melhor as coisas, a estudar mais o estilo epopeico e

profético, foi que me certifiquei de que a patranha é uma das características indispensáveis às Tragédias...” (SUASSUNA, 2007, p.147).

NOÇÕES DE TRAGICIDADE

O texto da tragédia, considerado dentro da tradição crítica, pertencente ao gênero

dramático, é entrecortado por momentos líricos na entrada do coro, párodo, estásimos, e por

momentos épicos como a narração inicial feita no prólogo por deuses como Afrodite em

Hipólito de Eurípedes e o sentinela em Agamenon de Ésquilo. A tragédia grega, no decorrer

de toda a história, exerceu grande influência junto à produção filosófica, literária e

intelectual. O uso da tragédia grega estende-se aos diversos ramos das ciências humanas, a

exemplo da Psicanálise, como podemos ver em Sigmund Freud ao forjar o termo

“Complexo de Édipo”, e de Carl Jung ao forjar o termo “Complexo de Electra”, versão

feminina do complexo de Édipo. Exemplos também fortemente difundidos no imaginário

do senso comum. A constatação dessas influências permite-nos pensar a tragédia não

apenas do seu ponto de vista formal, mas dos princípios que circundam seus mitos literários

e relações simbólicas em um conjunto infindável de produções. O processo de

intertextualidade transpõe, no caso da tragédia, inclusive, as linguagens não verbais,

plásticas, espetaculares, visuais etc.

A tragédia grega também tem sido apropriada e adaptada por diversos autores no

decorrer dos séculos subsequentes. Dentre eles podemos destacar a possível semelhança

entre a Oréstia de Ésquilo e Hamlet de William Shakespeare, também no âmbito nacional

podemos lembrar que Chico Buarque, que ao escrever A Gota d’Água se apropriou da

tragédia Medéia, de Eurípedes. A noção de “apropriação” parece ser pertinente quando o assunto é o reaparecimento do trágico ou de seus princípios em obras contemporâneas.

A tragédia como forma literária, descendente das epopeias, é uma das matrizes

originárias de diversas outras formas literárias, a própria comédia surge como forma de

negar e satirizar a tragédia, produzindo efeitos de katharsis contrários aos da katharsis

trágica, uma vez que na tragédia a catarse ocorre pelo envolvimento emocional da plateia

35

com a trajetória do herói, enquanto na comédia a catarse se dá através do distanciamento e

não identificação direta do espectador com essa trajetória, e ao pathos.

No Romance d’A Pedra do Reino, a noção e a influência do trágico caminha

paralelamente à noção e influência do cômico, o que nos permite observar, em outro plano,

também, a presença de hibridismo para além da questão de gênero e da metalinguagem. A

ascendência trágica da família de Quaderna, a morte misteriosa de Pedro Sebastião Garcia-

Barretto, o desaparecimento (exílio) de Sinésio, a disputa entre irmãos, o tema do

julgamento são, entre outros, alguns exemplos temáticos no romance que apontam para a

presença do trágico na estrutura romanesca. No entanto, a analogia de alguns temas não é

suficiente para apontar e sustentar uma estrutura trágica no romance, é preciso atentar para

a recorrência da citação como modo de elaboração, a partir da justaposição, do processo de

criação do autor. Exemplo dessa recorrência no plano ficcional é a contradição existente

entre a unidade de tempo, de ação e de lugar que, para Ariano, corresponde à unidade de

tempo, de ação e de lugar utilizada pelos tragediógrafos. Vale ressaltar que a unidade de

tempo na tragédia grega era evocada sempre pela palavra, o que no romance de Suassuna

também acontece. Contudo, o modo como o narrador narra os fatos encobre a perspectiva

de unidade em jogo. Estratégia que, muitas vezes, induz o leitor a não reconhecer a

presença de dois planos na narrativa: o do épico, assumido por Quaderna; e o do trágico

assumido por Suassuna.

Yuri: Então, vejamos, a ausência de uma linearidade na obra é uma contraposição intencional à unidade aristotélica? Ariano: Não, olhe, eu sou um admirador das unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um dia. Yuri: Então é um tempo de sol... Ariano: É uma unidade de tempo, não é? É o tempo de narração, porque o tempo de narração dele ao corregedor passa-se num dia só. Quando ele sai do depoimento ao corregedor à noite ta começando a cair.11

11

Cit. Entrevista.

36

Ao ler a obra, devido à sua própria extensão e deslocamentos dos acontecimentos

narrados, o leitor perde a referência às unidades. Todavia, uma leitura mais atenta nos

obriga a reconhecer não apenas a unidade de tempo, mais todas as demais. O plano

ficcional é justaposto ao plano de elaboração da obra, fato que requer ora uma

aproximação, ora um distanciamento frente ao modelo posto. Para uma melhor

compreensão do modelo trágico, faz-se necessário percorrer os espaços híbridos de sua

composição. Ariano parece sugerir uma simetria entre a apropriação do épico pelo drama,

do drama pelo épico, do trágico pelo cômico e do cômico pelo trágico. A “apropriação”

ocorre em todos os níveis da construção poética.

Dentro da perspectiva da apropriação do elemento trágico que foi exemplificado até

aqui, poderemos dialogar diretamente com a ideia de “apropriação de matrizes estéticas”. Beigui (2006) em sua tese intitulada Dramaturgia por Outras Vias: A Apropriação como

matriz estética do teatro contemporâneo – do texto literário à encenação, discorre acerca

do não comprometimento do Teatro e da Literatura com o “original”, a criação dramatúrgico-literária se dá através da apropriação de elementos oriundos de diferentes

matrizes estéticas dando à obra literária um caráter híbrido, tal qual o romance de Ariano

Suassuna. A apropriação opera com o conceito de matriz naquilo que toca a apreciação acerca do lugar onde se gera: ‘onde se gera o feto; útero’; ou mais precisamente da observação sobre um amálgama de ‘elementos variáveis’, dispostos em ‘filas (linhas horizontais) e em colunas (linhas verticais)’; lugar para a ‘fundição de tipos’, ‘fonte’, ‘origem’, ‘principal’, ‘primordial’. É nesse sentido que a noção de matriz relaciona-se com ‘contramolde’, isto é, com aquilo que resulta de combinações enxertos e supressões a partir de algo, mais especificamente, de experiências radicais com o texto. (BEIGUI, 2006, p. 14)

A experiência do autor travada com o texto afeta diretamente na experiência do leitor

frente ao modo de recepção da obra, exigindo por parte dele um movimento de

compreensão para além do narrado. A identificação dos índices trágicos e épicos mistura-se

à exigência da não identificação no que se refere ao plano formal da obra. Exercício de um

olhar e de uma leitura em diagonal que força a atenção para o processo de criação em

questão. Tomando como ponto de partida o movimento de identificação e de

distanciamento, cabem algumas considerações sobre a estrutura tragicômica presente no

modo de narrar os acontecimentos.

37

Enquanto na tragédia se atribui um apelo ao aspecto emocional (de identificação) do

espectador, a comédia recorre ao aspecto racional (de distanciamento) de seu leitor ou

espectador. Tanto o trágico quanto o cômico são formas de “purgação” porque ambos são

capazes de gerar prazer. Mendes (2008) nos traz um exemplo do entendimento de Freud

para melhor esclarecer a noção de prazer na comédia:

Segundo Freud, os chistes ou frases espirituosas embora sejam ‘a mais social de todas as funções mentais que objetivam a produção de prazer’ servem sempre ao propósito inconsciente de satisfazer a um instinto – libidinoso ou hostil – diante de um obstáculo, seja ela externo (normas e limites da sociedade) ou interno (repressão psíquica); ao contornar tais obstáculos, os chistes conseguem extrair prazer de fontes que de outro modo permaneceriam interditadas. O homem civilizado, incapaz de rir de uma obscenidade que lhe pareceria repugnante, a ela tem acesso através de todo um repertório de chistes aceitos socialmente (MENDES, 2008, p.30).

O romance permite-nos identificar vários exemplos da estrutura tragicômica em jogo,

isto é, são modos de processar duas maneiras de “prazer” em permanente diálogo no

romance. Mesmo a tensão gerada pelo plano narrativo, é absorvida pela permanente

intervenção em forma de enxertos, dos cordéis que satirizam os acontecimentos, atravessam

a obra, ocupando na obra a função outrora ocupada pelo “coro” na tragédia.

Concomitantemente, ao aspecto trágico e cômico no romance, matrizes que, segundo nossa

opinião, sustentam a estrutura narrativa da obra, agregam-se aspectos míticos e místicos

(messiânico), responsáveis pela forte conotação religiosa presente na obra, ainda que a todo

momento ocorra uma dessacralização dessa ordem religiosa. A forma religiosa difundida

por Quaderna – “catolicismo sertanejo” – opera como máxima desse hibridismo. Não se

pode esquecer que a religiosidade era o pilar de sustentação mítica da cultura grega,

posteriormente vindo a ser combatida pela nova forma de religiosidade; a cristã. O

dogmatismo cristão de Quaderna é, em todo momento, entrecortado pela dessacralização

que o autor realiza sobre o texto.

As referências ao modelo mítico grego ocorrem pela via da metalinguagem, mas

também de modo implícito na forma como o autor elabora o conjunto de citações na obra.

Nesse sentido convivem na obra tanto as citações indiretas, do tipo que aparece no

momento em que Quaderna experimenta o vinho (estado alterado de consciência), ocasião

em que o sagrado se instaura, concomitantemente, ao prazer dionisíaco; quanto às citações

38

bíblicas do tipo expressa na crença católica, ocasião em que se crê na ressurreição das

vitimas oferecidas ao Rei, passagem que remete também ao sacrifício como elo entre as

duas formas de religiosidade acima apontadas.

A tradição mítica grega se estende também ao aspecto esotérico, como por exemplo:

as cartas do tarô, nome de deuses e heróis mitológicos, utilizados para batizar dias da

semana, meses do ano, planetas no sistema solar, etc. Os diversos modos de estabelecer

dicotomias que, paulatinamente, se mesclam e se pulverizam ao longo do texto, são

organizados por Suassuna a partir de pilares em oposição. No romance, encontramos o

constante exercício de uma dialética operacional que tenta equilibrar os elementos

colocados em constante oposição. Percorrer o trágico na Pedra do Reino significa a

impossibilidade de fazê-lo sem observar o elemento épico, para não falar do lírico;

percorrer os espaços da escrita significa a impossibilidade de fazê-lo sem observar os

elementos da oralidade. A classificação aristotélica assumida só pode ser entendida no jogo

conceitual com a dialética posta em desenvolvimento. Nota-se que a oralidade impressa

pelos antigos rapsodos da Grécia também reverbera diretamente no repertório do

protagonista, Pedro Dinis Quaderna, quando o mesmo se refere a si:

Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1º de Julho de 1935, pela estrada que nos liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar, incluindo entre estas o modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão que lhes fala neste momento (SUASSUNA, 2007, p.35).

O erudito e o popular mesclam-se e constituem a parte de um longo processo que

expõe a cultura da oralidade e a cultura da escrita não como formas antagônicas, mas

suplementares, diminuindo as fronteiras históricas e formais entre ambas. O próprio lugar

do trágico é deslocado pelo cômico e vice versa. Todavia, é necessário destacar o

componente da ironia, através da qual todas as dicotomias e referências são subvertidas.

A subversão das categorias formais, conceituais e temáticas, através dos dualismos

apresentados ao leitor, justifica a referência de obras de cunho criacionista às obras de

cunho evolucionista, dentro do universo megalomaníaco de Quaderna. O Lunário pepétuo:

prognóstico geral e particular para todos os reinos e províncias (1956), neste sentido

apresenta coerência singular com a proposta do romance. A utilização do formato fornecido

por esta obra, contudo, não implica em adaptação, por parte de Ariano, em suas partes

constituintes, mas como apropriação de uma fonte que implica uma convenção híbrida,

39

espécie de ferramenta de trabalho. A ideia de “almanaque” coaduna com os aspectos

pictóricos, xilogravura, em abundância no texto, assim como impregna a narrativa de um

caráter genérico e universal. Já na capa do livro-fonte, temos o detalhamento da proposta:

Regras para fazer prognósticos sobre a falta ou abundância de cada ano; trabalhos que se devem fazer nos campos e jardins; arte de descobrir as águas sem auxílio de vedores; aplicação medicinal de plantas, frutos e sementes dos campos; remédios universais para curar doenças nos homens; receitas diversas para enfermidades dos animais; equações do tempo e arte de fazer relógios de sol; diversas instruções agrícolas, etc., etc.

A narrativa dramática abre-se em “charge” documental, seu tom paródico tem origem

na estrutura tragicômica do romance, o subgênero engendra uma crítica aos seus próprios

modelos reguladores, o que de certa forma amplia e justifica a oscilação entre os elementos

grotescos e os elementos sublimes na obra. Não é demais enfatizar os lugares da cultura,

classificados como alta e baixa, ao longo do texto, como parte do diálogo entre os

princípios trágicos e os princípios cômicos. Podemos ressaltar o conhecido diferencial entre

o cômico e o trágico proposto por Aristóteles na Poética, a saber: a tragédia retrata os

heróis em ações consideradas nobres e de linhagem nobre e a comédia os homens comuns

em ações consideradas inferiores. As inúmeras interpretações da Poética de Aristóteles

apontam, facilmente, para uma hierarquia entre os dois gêneros, o que dependendo do

contexto literário e social logrou a tragédia como sendo superior à comédia e à epopeia.

Desta forma, faz-se necessário entender os fundamentos épicos e trágicos abordados na

obra e no decorrer de sua leitura, constatando as analogias, similitudes e referências que

são, também, encontrados nas tragédias clássicas.12 A partir de uma abordagem

12 O texto teatral na Antiguidade Clássica era, em grande parte, composto em versos, o texto trágico possuía um tom declamatório não havia espaço para possíveis improvisações. Antes de voltarmos no tempo até Aristóteles, é necessário esclarecer que suas obras só chegaram até nós graças a queda de Constantinopla que tornou as obras dos escritores gregos acessíveis ao Ocidente. Milhares de eruditos e letrados bizantinos, em sua fuga para o Oeste, transportaram esses manuscritos da Antiguidade. No decorrer de toda a Idade Média, diversas obras de notável relevância para a humanidade estiveram ocultas pela Igreja Católica. A grande maioria dessas obras, que eram consideradas “subversivas”, possuía cunho científico, filosófico, ou literário. Entre os livros que foram resgatados durante a queda de Constantinopla, podemos destacar autores gregos como Platão, Aristóteles, Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes, e autores latinos como Sêneca, Plauto e Terêncio. Podemos compreender que o esforço da Igreja Católica em ocultar o conhecimento acerca da Antiguidade Clássica se devia ao fato de que os hábitos e atitudes dos gregos retratados nas famosas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, contrapunham-se aos ideais cristãos. Na visão da igreja cristã, a tragédia grega retratava os deuses como seres impiedosos, luxuriosos, vaidosos, onde o próprio rei dos deuses (Zeus) era adúltero e possuía muitos filhos com diferentes mulheres. Em outras palavras, os deuses gregos possuíam atribuições consideradas demasiadamente “humanas”, que se contrapunham à existência de um deus imaculado que a Igreja Católica sempre buscou defender. Outro conteúdo da tragédia grega que a Igreja não aprovava era a aparente rivalidade entre o homem e a entidade divina. O conhecimento acerca de outras crenças e de outras atitudes que o homem tomou em relação ao “divino”, poderia induzir o homem medieval a

40

comparativa entre o Romance d’ A Pedra do Reino e algumas peças trágicas, podemos

observar as engrenagens do texto que balizam uma narrativa dramática de cunho trágico.

Assim, buscando percorrer algumas dessas engrenagens, passamos a trabalhar as peças

trágicas dentro da problemática do trágico e da composição dramática.

Ésquilo, em suas obras, inaugura a batalha travada entre o poder dos deuses e a

vontade humana, bem como a impotência do homem em relação aos desígnios dos deuses.

O tema do regicídio aparece em larga escala nas peças trágicas, sendo geralmente o

elemento de continuidade das demais, espécie de leitmotiv que percorre as trilogias. Na

primeira peça da trilogia de Ésquilo, a Oréstia, o rei Agamêmnon é assassinado por sua

questionar o poder totalizador da Igreja. Enquanto na tragédia ática o que induzia o homem a ter condutas “adequadas” era o temor ao repúdio social, o desprezo da polis, uma vez que o mal que acometia o herói se confundia com o mal que acometia a polis. Na Idade Média o instrumento de controle da Igreja era a “culpa”, o medo de “ir para o inferno” talvez fosse mais impactante que ser rejeitado pela comunidade. O texto dramático na Antiguidade era composto em versos, passando a ser amplamente composto em prosa, principalmente a partir da Idade Média, e logo a seguir no Renascimento em especial nos países que não seguiam rigidamente a influência da Poética de Aristóteles. Constata-se, nas referidas épocas, que os versos eram inacessíveis à compreensão da grande parte da população, surgindo desta forma a necessidade de se criar textos teatrais que reproduzissem a fala vernácula (a exemplo dos autos sacramentais e profanos). Dramaturgos de Antiguidade Latina e Modernidade buscaram direta ou indiretamente se basear no pensamento de Aristóteles acerca da composição do texto teatral. Na Grécia, especialmente em Atenas, eram promovidos os famosos concursos de tragédias. Esses concursos se davam entre os tragediógrafos que encenavam suas obras e as apresentavam para o grande público em festivais e, como já sabemos, a partir dos registros, textos, deixados por esses tragediógrafos, é que Aristóteles discorreu sobre da arte poética. Antes de discorrermos sobre Aristóteles, é importante ressaltar, de maneira objetiva, que a origem histórica da tragédia se deu na Grécia, e a tragédia em sua origem ritual foi o germe da representação teatral como conhecemos. Para Nelson Araújo: “É na Grécia, pois, que o teatro e o drama como hoje os conhecemos no Ocidente, assumem a sua feição definitiva. Teve raízes religiosas o teatro grego, nascido no culto de Dioniso. Originário da Ásia, este culto agrário chegou à Grécia através da Trácia e da Frígia e lá se associou à vindima e ao ciclo das estações do ano; ou se implantou em Atenas e na sua região, sobre resquícios de antigo culto da mesma natureza, comum a todo o Mediterrâneo Oriental, assim se explicando os arquétipos que facilitaram a rápida aceitação de Dioniso, deus estrangeiro. Parece que nesse estágio a sua principal solenidade consistia na caça de um animal selvagem, que representava o deus, sacrificado em seguida e de cuja carne todos participavam, cerimônia acompanhada de libações, danças e música, já contendo o germe da representação dramática” (ARAÚJO, 1978, p. 66). Havia nesses rituais, cantores (o coro) que utilizavam pele de bode. Originariamente, esses cantores entoavam cânticos em homenagem ao herói Adrasto, rei de Argos, e Sícion, que organizou a expedição dos “Sete contra Tebas”. Anos após, Clístenes, tirano de Sícion, por razões políticas ordenou que os cânticos fossem em homenagem a Dioniso, em vez de Adrasto. Esses rituais deram a origem etimológica do nome “tragédia”, que é a junção de duas palavras gregas, são elas: tragos (bode), e ode (canto). Com o passar do tempo, a arte da tragoedia atingiu novos patamares, desenvolveu-se e deu origem a competições teatrais (agon) nas Dionisíacas. Os cantos ritmados do coro passaram a estimular criações de ordem dramatúrgica, e nesse contexto se inserem os tragediógrafos (escritores de tragédias), dentre eles devemos destacar os três mais conhecidos: Ésquilo, Sófocles, e Eurípedes. Ainda para Margot Berthold: “O que Atossa, Antígona, Orestes e Prometeu sofrem não é um destino individual. Sua sorte representa uma situação excepcional, o conflito entre o poder dos deuses e a vontade humana, a impotência do homem contra os deuses, amplificada num acontecimento monstruoso. Isso irrompe em sua força mais elementar em Prometeu Acorrentado. O filho dos Titãs, que roubou o fogo dos céus e o trouxe para os mortais, eleva o seu lamento na “abóbada resplandecente” sobre a arena do teatro: “Eu te invoco, ó venerável Mãe Terra, e invoco a ti, circulo de chamas onividente: vê o que eu sofro, eu próprio um deus, nas mãos dos deuses!”(BERTHOLD, 2006, p.108/109).

41

esposa Clitemnestra, ajudada por seu amante Egisto; em As Coéforas, Orestes (filho de

Agamêmnon) retorna para vingar a morte de seu pai, cometendo o matricídio, e em As

Eumênides, Orestes é perseguido pelas erínias em razão do assassinato cometido contra sua

própria mãe. Trata-se de genealogia que situa o problema trágico no seio familiar.

Relacionando o tema com o romance de Suassuna, podemos observar que tanto Quaderna

quanto Orestes são filhos de reis assassinados, estando suas vidas diretamente ligadas a esse

fato, ainda que no caso do romance Pedro Sebastião Garcia-Barretto seja tio de Quaderna, a

questão que se apresenta é o da figura paterna. Os acontecimentos apontam sempre para

uma retomada do tema original, evidenciando o problema da vingança. No caso da tragédia,

a vingança é inevitável, enquanto que no romance a vingança é burlada, contaminada por

um conjunto de variantes que se apresentam. A primeira delas: a condição misteriosa em

que ocorre o assassinato do tio e padrinho de Quaderna.

A perspectiva de fracasso do projeto de vingança da morte do padrinho altera o ciclo

trágico no romance, apontando para uma perspectiva em aberto, o desejo de vingança é

sublimado por um estilo tipicamente moderno, a desistência do herói frente à ação que

motiva seu desenvolvimento. A ausência de uma psicanálise acerca dos fatos revela que na

tragédia as ações do herói são levadas às últimas consequências, diferentemente, da

tragédia renascentista e moderna em que o herói pondera acerca dos argumentos, inserindo

o campo da dúvida como espaço de reflexão sobre a ação. Esse fator é determinante na

separação entre o teatro de forma dramática e o teatro de forma épica. A identificação cede

lugar ao distanciamento crítico que o herói assume em relação à ação e a ele mesmo. Nesse

sentido, podemos dizer que o romance de Suassuna é uma narrativa trágica de cunho épico,

onde se percebe que o herói se individualiza.

Na tragédia antiga, como Hegel a vê, as personagens claramente representam os fins éticos substanciais; ao passo que na tragédia moderna os fins parecem inteiramente pessoais, e o nosso interesse é direcionado não para a “afirmação e necessidade éticas”, mas antes para o “individuo isolado e suas condições”. Os modos de resolução trágica diferenciam-se de maneira correspondente. Na tragédia antiga não há apenas a derrocada de pessoas e finalidades em conflito, na realização da justiça eterna. O individuo pode renunciar a sua finalidade parcial, sob o comando mais alto, ou, de modo mais interessante, pode atingir a totalidade e a reconciliação dentro de si mesmo. Na tragédia moderna, a questão toda da resolução é mais difícil, porque as personagens são mais individualizadas. A própria justiça é mais abstrata, mais fria, podendo até mesmo aparecer como a mera contingência de circunstância externas, promovendo simplesmente, dessa forma, o

42

choque ou suscitando a piedade. A reconciliação, quando acontece, ocorre, de forma frequente, no interior da personagem, e será mais complexa e muitas vezes menos satisfatória, porque é a personagem em si, e desse modo o destino individual, que são enfatizados acima da substância ética que a personagem representa. (WILLIAMS, 2002, p.56)

A trajetória de Quaderna aponta para uma genealogia do trágico que, aos poucos, é

deixada de lado pela experiência do herói, que se nutre de sua singularidade na forma de

perceber o mundo e cria um universo imaginário e utópico. A diluição do plano trágico

(passado) para o patético (presente) do herói aponta para a derrisão do trágico na escala

temporal da ficção. O destino (passado) do personagem Quaderna é jogado para um futuro

profético, dentro e fora da escala temporal da ação. Mas, nunca é demais lembrar que o

futuro no romance já se apresenta como passado – para o leitor – a profecia realizada.

Mesmo em situações em que a morte na tragédia grega tinha como único objetivo a

vingança, existia, todavia, a questão da purgação de um mal, pois a morte de Agamênon

por sua esposa Clitemnestra, auxiliada por seu amante Egisto, tinha como objetivo purgar o

mal feito à sua filha no passado. No Romance d’ A Pedra do Reino, deparamo-nos com a

ausência de qualquer esclarecimento acerca da morte do rei Dom Pedro Sebastião Garcia-

Barreto, não se sabe quem, nem o motivo do rei haver sido assassinado.

Pergunto: e agora? Como é que meu Padrinho foi degolado num quarto de pesadas paredes sem janelas, cuja porta fora trancada por dentro, por ele mesmo? Como foi que os assassinos ali penetraram, sem ter por onde? Como foi que saíram deixando o quarto trancado por dentro? Quem foram esses assassinos? Como foi que raptaram Sinésio, aquele rapaz alumioso, que concentrava em si as esperanças dos Sertanejos por um Reino de glória, de justiça, de beleza e de grandeza para todos? Bem, não posso avançar nada, porque aí é que está o nó! Este é o “centro de enigma e sangue” da minha história. (SUASSUNA, 2007, p.60).

Desta forma, Ariano Suassuna possibilita uma leitura aberta em que o final ocorre no

meio do interrogatório. Ou seja, uma reticência que induz a uma continuidade em um

tempo indeterminado. A tragédia que acomete os patriarcas como Laio, Édipo,

Agamêmnon, Príamo, dentre outros chefes e, o Barão do Cariri, Dom Pedro Sebastião

Garcia-Barreto, com grande frequência provoca mudanças significativas no contexto local

de suas lideranças. Esses personagens em grande parte das obras, foram vingados por seus

descendentes, como é o caso de Laio que, involuntariamente, foi vingado por seu filho

Édipo quando este profere uma sentença que terminaria por condenar a si próprio, e

43

Agamêmnon que, por sua vez, voluntariamente, foi vingado por seu filho Orestes. Para

heróis como Édipo e Orestes era dever do filho vingar a morte do pai, era uma questão de

honra, e era preferível a morte à desonra. Sabe-se que o tema da vingança reverbera, no

caso da tragédia, na questão religiosa, diké divina aportada na conhecida Lei de Thêmis13.

O protagonista do romance tem duas questões de honra envolvidas em sua trajetória, são elas: a de

restaurar a monarquia da Pedra do Reino e a de descobrir os assassinos de seu padrinho para assim

vingar sua morte. Contudo, como bem sabemos, a ausência de valentia do protagonista o leva,

através da sublimação do heroi moderno, a optar pela erudição em vez da impulsividade da força

física. Inversão que provoca um desequilíbrio na genealogia trágica: “Eu me recuso a me meter em

matanças e morrências na vida: na Literatura, isso não faz mal nenhum a ninguém!” (SUASSUNA, 2007, p. 189).

Na Antiguidade Clássica, Sófocles inaugura uma nova perspectiva de tragédia, coloca

em cena personagens que se atrevem. A historiadora de teatro, Margot Berthold (2006),

esclarece-nos que o herói em Sófocles é destemido, o que o leva a hybris, isto é, um

excesso frente aos deuses. Sobre este herói é posta tamanha carga que apenas no tormento

ele preserva sua dignidade. Nas obras de Sófocles, os deuses submetem o herói ao

“sofrimento inevitável”, ele é ciente daquilo que lhe foi reservado pelos deuses. O

sofrimento do herói sofocliano o leva, simultaneamente, ao enobrecimento (BERTHOLD,

2006, p. 109). Acerca desse herói que questiona diretamente uma autoridade que lhe é

imposta, no Romance d’ A Pedra do Reino, o que ocorre não é a hybris, mas um

enfrentamento da autoridade humana, a diké dos homens, tal qual Creonte frente a seu

modelo antagônico Antígona. Por meio da ironia e da paródia, o protagonista Pedro Dinis

Quaderna, dotado de uma extraordinária sagacidade, astúcia e oportunismo, é capaz de, em

diversas ocasiões, abalar e zombar indiretamente da empáfia do juiz corregedor no decorrer

do inquérito, conforme podemos ver nas falas de Quaderna a seguir:

Aliás, vi logo com que espécie de animal-de-presa eu tinha de tratar: pois assim que fui entrando, sem dar tempo nem que eu me recuperasse da subida e da tonteira, ele me atacou, indagando com voz cortês mas severa: - O senhor é Pedro Dinis Quaderna, Diretor

13

Lei de Thêmis: Filha de Urano e Gaia, Têmis é uma das Titânidas. Enquanto deusa da justiça divina, figura como segunda esposa de Zeus, após Métis. Com o pai dos deuses e dos homens foi mãe das Horas e das três Moiras personificadas, Cloto, Láquesis e átropos, bem como das ninfas do rio erídano, as quais ensinaram a Héracles o caminho que levava ao jardim das Hésperides. Uma variante e que se encontra apenas na tragédia de Ésquilo, Prometeu Acorrentado, faz da deusa da justiça divina mãe de Prometeu. (BRANDÃO, 1991, p.417)

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da Biblioteca Municipal Raul Machado? – Sou sim senhor! – balbuciei como pude. E acrescentei logo, para me impor como pessoa de pró e homem de bem; - Mas, além disso, sou ainda redator da Gazeta de Taperoá, jornal conservador e noticioso no qual me encarrego da página literária, enigmática, charadística e zodiacal. Posso dizer, assim, que, além de Poeta-escrivão e bibliotecário, sou jornalista, Astrólogo, literato oficial de banca aberta, consultor sentimental, rapsodo e diascevasta do Brasil! – Rapsodo? – Estranhou o Corregedor, com um ar ente enojado e perplexo. – Diascevasta? Que é isso? Que é diascevasta? – Vi que tinha conseguido minha primeira vitória contra o Corregedor: porque um acusador que confessa ignorância de alguma coisa sabida pelo acusado perde sempre um pouco de sua superioridade (SUASSUNA, 2007, p.336-337).

Apesar do tom jocoso, o que se percebe, no comportamento de Quaderna, é o

enfrentamento, quebrando o tom de seriedade, esquivando-se do destino como sofrimento,

e assumindo-o como oportunidade de criação. No decorrer do romance nos deparamos com

um fenômeno que ocorreu ao protagonista Pedro Dinis Quaderna que também é inerente a

alguns personagens da tragédia grega: a cegueira (Édipo e Tirésias). No depoimento em que

presta ao juiz corregedor da comarca de Taperoá no inquérito, Quaderna alega que no dia

em que a vila de Taperoá foi invadida pela “estranha cavalgada” se encontrava em um

lajedo situado nas proximidades da vila para almoçar, quando de repente foi acometido por

uma cegueira.

Em razão de sua linguagem, muitas vezes ambígua, não se sabe ao certo se a cegueira

contada por Quaderna ao corregedor tem sentido literal ou simbólico, uma vez que na

Literatura nos deparamos com personagens literalmente cegos como Édipo, também com

personagens que simplesmente não enxergam a realidade tal qual ela é, como Dom

Quixote, ou personagens que hesitam em enxergar a realidade de maneira direta, como

Otelo. Porém, a cegueira de Quaderna dialoga com os dois tipos de cego que aparecem no

romance de Suassuna, Pedro Cego e o Velho Nazário, cegos cujas cegueiras assumem o

tom profético destilados na narrativa.

Desta forma, pode-se entender que não o personagem, mas o autor, Ariano Suassuna,

se propôs a satirizar a cegueira, simbólica ou não, dos personagens clássicos, nessa

repentina cegueira de Quaderna. Mais uma vez, através da sátira, podemos entender que a

cegueira de Quaderna funciona como meio de equipará-lo a Homero.

45

Retomando Aristóteles, podemos entender a cegueira de Quaderna como uma forma

de anagnórisis, não no sentido de reconhecimento, mas de revelação. Este momento

proporciona a Quaderna uma visão ampliada da realidade e do entorno que o cerca. Édipo

cegou a si mesmo, após a descoberta da verdade, enquanto para Quaderna, a cegueira é um

modo conveniente de desviar a atenção do Corregedor de uma suposta verdade. A cegueira

vidente também é uma propriedade do conhecido adivinho Tirésias, pois o mesmo após ter

sido cego pela deusa Hera, recebe de Zeus o dom de prever o futuro. Nesta ótica podemos

entender a cegueira desses personagens como forma de citação, a partir da qual Suassuna

estabelece um paralelo entre conhecer e ver.

A cegueira em Quaderna, contudo, não é como a de Édipo, em razão dela não ter sido

intencional. Enquanto Édipo furou os próprios olhos, Quaderna delegou a dois gaviões essa

função. Na explicação dada ao juiz corregedor por Quaderna, fica claro que sua cegueira foi

fruto de uma alucinação em que o mesmo relata que seus olhos foram perfurados por dois

gaviões. A cegueira de Quaderna é também um artífice utilizado para provar ao juiz de que

ele estava realmente destinado a tornar-se o “Gênio da Raça”, tal qual Homero: “_ Uma

cegueira? E o senhor cegou? Está cego? _Estou, sim senhor! Além de epilético, cego! Já

viu que coisa mais dolorosa para um pobre Epopeieta? O que me consola nessa tragédia é

que isso de ser cego fica muito bem para um ‘Gênio da Raça’ como eu! Homero também

era cego, o senhor sabia?” (SUASSUNA, 2007, p.572). Nas palavras de Quaderna:

__ Sr. Corregedor, de fato, é uma cegueira muito estranha, essa que me assaltou os olhos, naquele dia. A meu ver, ela é parenta próxima da epilepsia-genial que também me atacou, como lhe disse. Deixaram-me, as duas, numa espécie de vidência-penumbrosa, na qual o Mundo me aparecia como Sertão, um Desertão, o De-Sertão de que falavam os geniais escritores Manoel de Oliveira Lima e Afrânio Peixoto, repetindo velhos cronistas brasileiros do tempo dos Conquistadores, segundo me contaram Clemente e Samuel. (SUASSUNA, 2007, 573)

Como podemos observar, Pedro Dinis Quaderna encara sua cegueira poética como

profética, incluído uma genealogia de poetas cegos, figura no texto além de Homero,

Camões. Bem sabemos que a mais conhecida “cegueira profética” da literatura na Antiguidade era a de Tirésias. O personagem Tirésias tem sido de fundamental importância

no que concerne a intensificar os impasses, também conhecidos como aporias, que

ocorriam no corpo do texto trágico. A anagnórisis, revelação, daquilo que está

parcialmente encoberto e do acontecido permanece insolúvel. Aliás, ponto que determina o

caráter trágico. Diante da cegueira, Quaderna por meio da repetida expressão grega “Ai de

46

mim” exprime: “De repente, fiquei dotado de uma vidência-visageira fora do comum, uma

vidência profética e astrológica como nunca eu tinha dito. Ai de mim, Sr. Corregedor!” (SUASSUNA, 2007, p. 572).

Quatro são as formas de reconhecimento (anagnórisis) segundo Aristóteles: por

sinais exteriores, por inventiva do poeta, por lembrança, e por silogismo. Aristóteles

considera melhor aquela que é oriunda dos acontecimentos. Podemos arriscar que Ariano

Suassuna, no que concerne à cegueira de Quaderna, optou em proporcioná-lo uma

anagnórisis na ocasião em que se encontrava almoçando no lajedo e, em razão da

alucinação provocada pelo “vinho da Pedra do Reino”, se viu cego.

Lembremos que Édipo Rei, antes mesmo de sua cegueira, perpassa por vários

momentos de anagnórisis14,resultado de seus atos. Já a momentânea cegueira de Quaderna

acontece como resultado do ataque dos dois “gaviões cegadores”. É importante ressaltar aqui a analogia com as duas correntes de pensamento em jogo ao longo de todo o romance,

o “oncismo” defendido por Clemente e o “tapirismo” por Samuel, em Quaderna a cegueira pode ser uma forma de fuga do excesso das duas visões. Acerca disso Gleice Peres Nunes

ressalta:

Além da síntese dos contrários, o narrador-protagonista, em sua obra, utiliza elementos caracterizadores de artistas canonizados, como Homero e Camões, acometidos pela cegueira total ou parcial. Sendo assim, Martins (2000:125), coloca que a cegueira do personagem é uma fraude auto-sugestiva, porque ele é um mentiroso patológico, semelhante ao personagem Chicó, do Auto da Compadecida. Somando-se a isso a cegueira pode ter mais significados como afirma Anna Paula Lemos (2007:30). Parafraseando a estudiosa, pode-se afirmar que, no século XVIII, existia em Portugal a expressão literatura de cego, legalizada pela lei de D. João V (1789), que permitia a “Irmandade dos homens cegos de Lisboa” trabalhar com as publicações populares em verso. Por isso, o personagem, que pensa prestar depoimento devido ao fato de ter desagradado a elite local por meio das suas publicações em cordel, tenta justificar a cegueira com os seu gosto pelos folhetos. (NUNES, 2008, p.19)

14 Milton Marques Júnior, em arguição, lembra-nos que a primeira anagnórisis ocorre através do mensageiro coríntio, que dá a noticia a Édipo que Pólibo não é o seu pai. (Versos 110 – 150). A última anagnórisis de Édipo ocorre entre os versos 1159 e 1185, quando o servo lhe revela ser ele o filho de Laio e Jocasta. É nesse momento que Édipo, sabendo a verdade, diz ver a luz do dia, que ele evoca, pela última vez. É no Êxodo, entre os versos 1267 e 1279, que Édipo arranca os olhos para não ver o que deveria ter visto e conhecer os males que ele quis conhecer. Mas sabemos disso pelo mensageiro, pois toda a ação se passa longe dos olhos do leitor/espectador. São nos versos finais do “Êxodo” (1297-1530) que Édipo aparece ao público com o rosto ensanguentado e cego. Ou seja, a cegueira proposital é posterior à anagnórisis.

47

A cegueira de Pedro Dinis Quaderna também denota o caráter messiânico da chegada do

Rapaz-do-Cavalo-Branco. Lino Pedra Verde conclui que se tratava do retorno de Sinésio à

vila de Taperoá, e que Pedro Dinis certamente cegara porque a pureza do príncipe Sinésio

era grandiosa em demasia para ser visto por olhos de pecador como os dele. Como já

sabemos, o retorno de Sinésio já era preconizado pelo protagonista, anos antes, o que

aponta para uma analogia da cegueira com a preconização divinatória.

Sabe duma coisa, Dinis? É bem possível que não tenha sido estoporamento! Vá ver que foi a Visão da Pantasmagoria do Prinspe que cegou você! Você, Dinis, apesar de Rei e Profeta, é homem safado e pecador! Talvez esteja com algum pecado cabeludo nessa sua consciência preta, e foi por isso que não teve o direito de avistar o nosso Prinspe Alumioso da Bandeira do Divino! Você mesmo escreveu na sua Profecia deste ano que o nosso rapaz santo teria de voltar como Criatura pura e limpa de toda mancha! Ora, é claro, claríssimo, que uma Criatura assim não pode ser avistada por uma criatura como você!...”(SUASSUNA, 2007, p.589).15

Diferentemente de Édipo, cuja cegueira sucede aos fatos, em Pedro Dinis Quaderna, a

sucessão de acontecimentos se dá após sua cegueira e se passam em uma notória

velocidade, fazendo com que em sua cegueira tenha a dimensão do que o retorno de Sinésio

representava para a sua vida e para a Vila de Taperoá. O infortúnio da cegueira aponta para

dois planos, o do enunciado e o da enunciação. No primeiro, o fato parece deslocado da

trama do herói; no segundo, ele serve ao conjunto e à lógica discursiva da citação e dos

intertextos. A sucessão de fatos por qual passa Pedro Dinis Quaderna, enquanto estava

cego, pode ser encarada como uma anagnórisis, principalmente, porque esses

acontecimentos são reveladores, eles trazem à tona o que antes parecia no plano narrativo

misterioso e obscuro. Com o retorno de Sinésio, toda a população da Vila de Taperoá se viu

obrigada a se posicionar favoravelmente a um dos dois irmãos: Arésio ou Sinésio16. Desta

forma, a cegueira de Quaderna serve como reconhecimento acerca de como eram realmente

as pessoas a sua volta, e como elas se comportavam frente à mudança de contexto.

15

Em argüição, o professor Milton Marques, nesse trecho, aponta para uma possível influência bíblica de

Paulo de Tarso.

16 Pode-se observar que a disputa entre irmãos possibilita mais uma analogia entre o romance e as obras de Ésquilo e Eurípedes. Na tragédia esquiliana Sete contra Tebas, o tragediógrafo retoma a tradição da rivalidade entre irmãos. Polínices e Eteócles caminham para o desfecho trágico, duplo assassinato. Em Eurípedes, As Feníncias, o tema é retomado e colocado a partir do que resulta da relação incestuosa entre Jocasta e Édipo. Polínices assim como Sinésio, são filhos caçulas exilados. O retorno de ambos implica uma perspectiva de reversão de poder entre os irmãos mais novos e mais velhos, ainda que não ocorra.

48

Buscando enfatizar o aspecto profético e enigmático na obra, deparamo-nos com dois

personagens que parecem ser possíveis influências da tragédia grega, são elas: Velho

Nazário e Pedro Cego. Nas tragédias gregas, podemos notar que os principais oráculos

consultados são o adivinho Tirésias e o deus Apolo em Delfos. Como bem sabemos,

geralmente as profecias ditas pelo oráculo de Delfos possuíam perfil enigmátco, que

necessitavam de interpretação por parte de quem as ouvia.

No romance de Suassuna, Pedro Dinis Quaderna explica que o Velho Nazário era

paralítico e costumava ter visões nas luas cheias. As profecias proferidas pelo deus Apolo

em Delfos, como sabemos, poderiam parecer óbvias, contudo extremamente confusas para

o receptor de sua mensagem. As soluções apresentadas por Apolo também eram

aparentemente fáceis e óbvias, contudo, a pessoa a quem a profecia estava endereçada, não

se reconhecia como parte dela. Ariano Suassuna parece se apropriar desse caráter

enigmático do oráculo de Delfos nas palavras do Velho Nazário:

Meu povo, eu vi! Eu vi a Furna da Onça-Pintada, com a Onça de Pedra na entrada, e outra Onça, viva, dentro! Eu vi, eu juro que vi! Na entrada da furna estavam as Coisas todas, pintadas na Pedra: a Onça, o Veado, o Gavião de um lado, e, do outro, a Traíra, o Bode, a Carneira e as Lamparinas de barro, tudo pintado no Preto e no Vermelho! E a Onça estava lá, dentro da Furna, com os olhos de brasa, cercada de coriscos amarelos e zelações azuis, e um bocado de pedras-lispes encarnadas despencando do céu! Era uma Onça-Malhada Cantadeira! ... Por isso, se a gente conseguir pegar essa Onça, a gente vai ser tudo feliz, rico, bonito, poderoso e imortal, bebendo o sangue do Sagrado e o Sol de aço das navalhas das Asas dela! (SUASSUNA, 2007: p.426).

Como podemos observar, a solução apresentada pelo Velho Nazário para livrar e mudar

a vida dos sertanejos é “encontrar” a referida onça. Contudo, podemos também observar

que a exequibilidade dessa solução é aparentemente inviável. Esta aparente

inexequibilidade da solução apresentada pelo profeta é também comum nas tragédias

gregas. Sabemos que através de Apolo, Édipo toma conhecimento de que a razão da cidade

de Tebas estar sendo assolada por uma peste é um crime que não havia sido punido, crime

este em que um filho matou o próprio pai e se casara com a própria mãe.

Já sabemos que Édipo, sendo desconhecedor dos fatos, foi o autor do crime

mencionado por Apolo. Contudo o deus, ao mesmo tempo, que revela que a solução para a

peste será a punição do autor do crime, não esclarece quem é tal criminoso. Apolo também

revela a Orestes que ele terá de matar sua própria mãe para vingar a morte de seu pai, mas

ao mesmo tempo parece omitir que ao cometer o matricídio, Orestes será duramente

49

recriminado e perseguido pelas erínias. Nesta perspectiva, o Velho Nazário, no Romance,

profetiza que tudo se solucionará quando a tal onça for encontrada, mas nada esclarece

acerca da execução desta solução.

Quanto à ausência de clareza no que concerne à exequibilidade das soluções

apresentadas pelo profeta, podemos atribuí-las também a dificuldades relativas ao próprio

uso da linguagem que é inerente ao texto trágico da antiguidade e as que, talvez, Suassuna

tenha trazido para o seu romance. Sandra Luna (2005) nos explica que a interpretação

equivocada dos oráculos pode ser uma forma de jogo com o poder da linguagem, uma

maneira de denunciar a fraca relação entre palavra e referência, conceito e verdade.

Note-se como o oráculo que antecipa o destino fatídico de Édipo, por ele interpretado como tratando de sua relação com seus pais adotivos, embora não sendo uma afirmação falsa em si mesma, tem como fundamento outros referentes – Jocasta e Laio, seus verdadeiros pais – ainda ignorados por Édipo no momento em que toma conhecimento da mensagem divina. Também Héracles é vítima de um oráculo mal interpretado, que previa o seu “descanso”, caso fosse ele bem sucedido em seu último “trabalho”. A consciência heroica do personagem, totalmente orientada para a vida, não é capaz de associar esse “descanso” à morte. (LUNA, 2005, p.124 e 125)

Para o espanto de Quaderna, os seus mestres entendem sua cegueira como algo

positivo, conforme mencionado anteriormente. Tanto no entendimento do Professor

Clemente como no entendimento do Dr. Samuel Wandernes, a cegueira de Quaderna tem

relação direta com as epopeias e as tragédias. Em sua fala, Samuel Wandernes busca uma

justificação literária que faça Quaderna entender a sua cegueira como benéfica.

“Ora Quaderna, isso é nada!” – disse Samuel, com a maior naturalidade. – “Isso é nada, para um homem como você! Seja forte, seja homem, homem! Como eu estava dizendo há pouco, o fato de estar cego, que, à primeira vista, parece uma desgraça, no seu caso pode até vir a ser um bem para você, uma vez que seu sonho é se tornar um Poeta épico! Não sei se você sabe disto, mas Joaquim Nabuco considerava a cegueira e o infortúnio como ingredientes indispensáveis para o sangue de um autor de Epopéias! (SUASSUNA, 2007, p. 608 e 609)

Nas falas do Professor Clemente, percebemos a utilização da metalinguagem para

distorcer a ação trágica, Ariano Suassuna compara Quaderna diretamente com Édipo,

distorcendo os efeitos do trágico em função do tragicômico:

50

Você, sendo um Charadista, um Decifrador profissional, um homem que se dedica a resolver e armar Enigmas e logogrifos, será até beneficiado pela cegueira! Lembre-se que o patrono do Suplemento anual do Almanaque Charadístico e Literário Luso-Brasileiro é Édipo, que terminou seus dias cego. Sendo assim, você não pode se queixar de que o mesmo tenha acontecido com você, obrigado, agora, a seguir os passos trôpegos de seu Patrono pela estrada da cegueira. Como cego, quem sabe, se você não irá, agora, receber como compensação a lucidez de Édipo? Édipo, tendo decifrando o ‘enigma do homem ante a Esfinge’, tornou-se, depois de cego, um Decifrador tão eficiente que teve a honra de ser escolhido como Patrono de todos os Charadistas do mundo. (SUASSUNA, 2007, p.611)

O fato de Pedro Dinis Quaderna ter tido seus olhos perfurados por dois gaviões, um

macho e uma fêmea, ainda leva Professor Clemente a comparar diretamente sua cegueira

com o mito de Tirésias, o famoso adivinho cego a quem nos referimos constantemente.

Além de ser conhecido como um adivinho cego, Tirésias era também conhecido como o

único homem a ter pertencido aos dois sexos em fases diferentes da vida. De acordo com a

mitologia grega, Tirésias, ao subir o monte Citerão, deparou-se com duas cobras

peçonhentas em acasalamento. Ao serem surpreendidas, as cobras se voltaram contra

Tirésias que por sua vez matou a cobra-fêmea, transformando-se em mulher. Tempos

depois retornou ao mesmo monte onde, novamente, encontrou duas cobras copulando, desta

vez matando a cobra-macho, o que ocasiona seu retorno ao sexo masculino.

O fato de Quaderna ter seus olhos perfurados por um gavião-macho e outro fêmea,

levou Professor Clemente a concluir que Pedro Dinis Quaderna agora seria dotado de uma

visão bilateral da vida, tal qual Tirésias, o que seguramente lhe traria grandes benefícios

como decifrador e epopeieta. Ainda na mesma conclusão, Professor Clemente nos traz o

exemplo da cegueira edipiana como modelo da cegueira que possibilita o reconhecimento

por parte do herói trágico. Vejamos a seguinte citação:

Pelo que me contou, aqui, o nosso cantador caolho, Lino Pedra-Verde, foram dois Gaviões, um macho e outro fêmea, que cegaram você, não é verdade? ... Pois você pode ficar certo, Quaderna, de que, d’agora em diante, você vai ser o único homem, no Mundo, capaz, ao mesmo tempo, de ver as coisas machamente e femeamente, o que, sem dúvida é uma grande vantagem para o Decifrador e Epopeieta que você sempre quis ser! Na minha opinião, Édipo, quando moço e bom dos olhos, avistava coisas demais, motivo pelo qual não via nada! Só depois de cego foi que ele recebeu a lucidez esfingética e pôde se aperceber de que o Mundo e a vida são, como dizia o genial Tobias Barretto, ‘uma

51

integridade espantosa’. Creio que é por isso que os Professores alemães de Filosofia costumam afirmar que Édipo, como cego,tinha um olho a mais!”(SUASSUNA, 2007, p.611)

Conforme podemos observar, o professor Clemente, ao seu modo e à maneira de

Suassuna, nos traz uma excelente explicação da referência a Édipo, utilizada por via da

aproximação e do desvio acerca do reconhecimento que acomete ao herói trágico quando

este está próximo de seu fim: a anagnórisis. Subverter o trágico e o cômico ao plano do

romance parece ser um dos objetivos contidos no ambicioso projeto da Pedra do Reino.

A libertação do trágico pelo cômico permite a ideia de um hipertexto, cuja função do

poeta, ambição também de Quaderna, parece problematizar a tradição e suas rupturas.

Nesta linha de raciocínio pergunta e responde Denis Diderot:

O que, portanto, faz o poeta? Ele se apossa dessas combinações extraordinárias ou imagina combinações semelhantes. Mas, enquanto os vínculos entre os acontecimentos muitas vezes nos escapam na natureza, e como não conhecemos o conjunto das coisas, vemos apenas uma fatal concomitância nos fatos, o poeta deseja que em toda a textura de sua obra reine uma ligação aparente e sensível. De modo que ele é menos verdadeiro e mais verossímil que o historiador. ‘Mas, uma vez que apenas a coexistência dos acontecimentos basta para fundar o maravilhoso da história, por que o poeta não se contentaria com isso?’ Às vezes, também ele se contenta, principalmente o poeta trágico. Mas a suposição de incidentes simultâneos não é igualmente permitida ao poeta cômico. ‘E por que razão?’ É que a porção conhecida, que o poeta trágico empresta à história, faz adotar como histórico o que é de imaginação. As coisas que inventa ganham verossimilhança mediante as que lhe são dadas. Mas nada é dado ao poeta cômico: ele tem, portanto, menos liberdade de apoiar-se na simultaneidade dos acontecimentos. Aliás, a fatalidade ou a vontade dos deuses – que tanto aterroriza os homens cujo destino encontra-se abandonado a seres superiores e aos quais não podem se subtrair, sendo seguidos e atingidos por suas mãos no momento em que se acham na maior segurança – é mais necessária à tragédia. Se há algo comovente, é o espetáculo de um homem culpado e desditoso, a sua revelia. É preciso que na comédia os homens representem o papel que desempenham os deuses na tragédia. A fatalidade e a maldade, eis, num e noutro gênero, as bases do interesse dramático (DIDEROT, 2005, p. 62-64).

Eurípedes inaugura uma nova perspectiva do trágico. Eurípedes optou por não

colocar a rivalidade entre os deuses e os homens, desta vez os homens rivalizam entre si. O

conflito encontra-se na relação com o próximo, não mais na relação com o divino.17 O

17 Margot Berthold, referindo-se a Eurípedes expõe: “Ele era um cético que duvidava da existência da verdade absoluta, e como tal se opunha a qualquer idealismo paliativo. Estava interessado nas contradições e ambiguidades, no principio da decepção, na relativização dos valores éticos” (BERTHOLD, 2006, p.110)

52

herói, em Eurípedes, deixa de ser um individuo que age unicamente conforme seus

impulsos, inclinando-se para um perfil mais psicológico, reflexivo. Eurípedes constrói um

herói que é capaz de hesitar e refletir. Enquanto em Ésquilo e Sófocles, o herói enxerga seu

destino como fatal e inevitável, Eurípedes introduz um modelo de herói mais subjetivo,

cujo destino mesmo que se cumpra, permite a possibilidade ao leitor/espectador de entrever

a dúvida, modelo que se realizará na tragédia renascentista, na qual a ideia do “herói racional” proposto por Shakespeare concretiza-se plenamente em Hamlet. Sobre esse ponto

de transformação da tragédia, explica-nos Albin Lesky:

Pudemos, para essa época, imaginar que o desenvolvimento da tragédia tenha prosseguido em várias direções. Por certo, não terá faltado uma ulterior retorização da linguagem, assim como a influência cada vez maior da música moderna introduzida pelo novo ditirambo. Mas, acima de tudo, o progresso de exposição psicológica mais refinada, tal como já Eurípedes no-la permite distinguir, pode ter determinado a forma interna da obra de arte trágica desse tempo, afastando-se assim cada vez mais, daqueles problemas da existência humana que haviam conquistado sua figuração no drama clássico. (LESKY, 1996, p.272)

Diferente dos heróis de Ésquilo e Sófocles, o heroi euripedeano permite que o leitor

cogite a possibilidade de um “outro desfecho” para seus protagonistas, pois nele o destino

não é tão certo quanto em Édipo Rei ou Antígona. Lembremos que ao “erro” cometido pelo

herói, Aristóteles dá o nome de hamartia. Em Ifigênia em Áulis, ao erro involuntário é

acrescido, gradativamente, o sacrifício voluntário, fortemente presente na Pedra do Reino.

Para a heroína euripidiana, o sacrifício à deusa Ártemis representa a consolidação da dita e

o abrandamento do mau tempo, já no relato de Quaderna ele aparece para possibilitar o

desencantamento do reino, enfatizar a crueldade alegórica de Dom João Ferreira Quaderna,

bem como demarcar o lugar da Pedra do Reino.

Mandou trazer sua mulher, a Princesa Isabel, querendo Possuí-la na frente de todos, enquanto o sangue dos degolados corriam, ela, porém, estava grávida de nove meses, pronta, já, para parir, e recusou-se. Então Dom João II, O Execrável, pegou a irmã dela, a Rainha Josefa e, enquanto, se preparava para possuí-la, mandou que lhe desse dezessete facadas, o que foi feito durante a posse, alcançando ele, segundo dizia, um gozo como nunca tinha experimentado. Souza Leite, mais discreto recusava-se a contar tudo com todos os pormenores. Mesmo assim, suas palavras são suficientemente fortes, para dar ideia daquela cena régia e sangrenta, diz ele: ‘os sacrifícios continuaram nos dias 15 e 16 de maio de 1838, com o mesmo, se não maior desvairamento, por quanto o monstruoso e execrável João Ferreira Quaderna conseguira mergulhar aquela turba numa espécie de delírio ou embriaguês continuada. No auge supremo desta embriaguês, um pardo de nome João Pilé Vieira Gomes, para obter o melhor quinhão do Reino, subiu ao cume de um rochedo próximo e

53

precipitou-se com dois netos nos braços. Em seguida, José Vieira pega um filho de dez anos, coloca-o na Pedra do Sacrifício e decepa-lhe o braço do primeiro golpe. A vítima, ajoelhando-se, bradava-lhe de mão postas: ‘meu Pai, você não dizia que me queria tanto bem?’ Uma viúva, de nome Francisca, alimentando a louca pretensão de ser Rainha, imola, por si mesma, seus dois filhos mais novos (SUASSUNA, 2007, p. 78-79).

O sacrifício maternal e paternal figura como tema na Pedra do Reino, encontrando

possivelmente sua matriz em Eurípedes (Ifigênia e Medéia). É importante destacar que o

relato de Quaderna sobre o sacrifício enfatiza os aspectos espetaculares da ação.

A essência do trágico apenas é completamente absorvida quando a poesia trágica

passa a ser representada no palco grego, conforme nos diz Sandra Luna em seu livro

intitulado A Tragédia no Teatro do Tempo: “é somente quando a poesia se faz teatro nas arenas gregas que a essência do trágico se corporifica a ponto de ser percebida como ‘ação’ – conceito pensado por Aristóteles para definir o que considerou em sua Poética como

"alma da tragédia.” (LUNA, 2009, p.27)

A representação teatral das obras tornou viável a apreciação delas por um público

numeroso nos anfiteatros. O modelo grego influenciou significativamente a tragédia latina.

Os romanos dominaram a Grécia, contudo a cultura romana não logrou substituir a cultura

grega, neste caso se sucedeu o contrário; os romanos se inspiraram no modelo grego para

compor a literatura latina. A literatura greco-romana, podemos também classificar assim,

influenciou a criação literária de toda a Europa devido ao fato de que praticamente toda a

Europa foi domínio do Império Romano. Consequentemente sofremos também essas

influências literárias devido ao fato de o continente americano ter sido colonizado pelos que

descenderam dos povos remanescentes da queda do Império Romano. Podemos detectar a

influência da literatura romana quando comparamos as semelhanças entre, por exemplo, O

Santo e a Porca de Ariano Suassuna e a Aulularia de Plauto18.

Uma das principais formas de apropriação da tragédia grega pelos romanos se dava

através da “contaminação” (contaminatio) que consistia em se apropriar de diversas obras

para compor uma única obra. Os autores romanos se utilizavam de estratégias textuais

criadas pelos gregos para compor suas obras e, não raramente, utilizavam estruturas

18

A contaminatio pode ser lida como o ato de “ter” ou “manter” o contato com, adverte Milton Marques Júnior, além de percebê-lo como o princípio de “intertextualidade” proposto por Julia Kristeva, ou o de “transtextualidade” proposto em Jean Genette.

54

encontradas em textos diferentes para compor a estrutura de uma única obra:

Assim se fez a comédia latina, adotando estratégias dramáticas que dão a ver um notável aproveitamento das fontes gregas, aliás, fundindo duas ou até três comédias gregas em uma única peça, estratégia dramática conhecida como “contaminação” (contaminatio). Essa reinvenção do humor, seja na estruturação das tramas, cheias de peripécias e reconhecimentos, seja na tessitura textual, no manejo da linguagem com vistas ao efeito cômico, tudo isso, converge para produzir o brilho que emana das comédias latinas, remanescentes em função justamente do sucesso obtido junto ao seu público (LUNA, 2006, p. 38).

A literatura ocidental tem seus alicerces na mitologia grega. Essa “contaminação”

também pode ser caracterizada como “apropriação de matrizes estéticas” (BEIGUI, 2006).

Ao ler a obra de Ariano Suassuna, podemos defender que Suassuna também se utilizou da

“contaminação” utilizada pelos autores latinos como Terêncio, Plauto, Menandro, dentre

outros, principalmente no que se refere à comédia. Uma análise dessas interferências e

intertextos mereceria outra dissertação, pois acreditamos que todo o conjunto da obra de

Suassuna resulta de um diálogo consciente com a tradição, a partir da qual podemos

perceber a priorização da tragédia e da comédia, no conjunto de sua obra, como modo de

elaboração, agenciamento e deslocamento do discurso. Trata-se, em verdade, de operar

sobre as questões estéticas entre o épico e o romanesco a partir das relações de

contaminação entre os gêneros, incluindo o lírico. O recurso da intertextualidade não ocorre

apenas no plano ficcional e temático, mas, sobretudo, no modo como o autor dialoga com a

tradição crítica e estética. Por esse viés, justifica-se um retorno a Aristóteles em diálogo,

observando a atualidade com que grande parte de seus conceitos permanecem no texto de

Suassuna, ora para absorvê-los ora para contrapô-los.

55

IV – CAPÍTULO 3

“... eu sou um admirador das unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um dia. É uma unidade de tempo, não é? É o tempo de narração, porque o

tempo de narração dele ao corregedor passa-se num dia só. Quando ele sai do depoimento ao corregedor a noite está começando a cair.19

CATEGORIAS DO TRÁGICO

Aristóteles ao estudar os tragediógrafos, mencionados anteriormente, formulou

diversos conceitos, dentre eles podemos destacar: katharsis, harmatia, peripeteia, hybris,

anagnorisis, unidade, e verossimilhança. A utilização e recorrência desses conceitos no

Romance d’ A Pedra do Reino acontece tanto no plano do enunciado quanto no plano da

enunciação. Aristóteles defendia que a tragédia consiste na imitação de uma ação completa,

ou seja, ela deve possuir princípio, meio, e fim, e ter na catarse o seu objetivo final. O

conceito de catarse é, todavia, bastante discutido entre diversos autores, uma vez que

Aristóteles não explicou de forma clara e objetiva a sua definição na Poética.

Na Poética, Aristóteles utiliza o termo katharsis ( ά α ),20 na versão transcrita

para a língua portuguesa do referido trecho, traduzido por Eudoro de Souza,21 encontramos o seguinte esclarecimento:

É pois a Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade”, tem por efeito a purificação dessas emoções. (1449b, 25-28)

Em outra edição transcrita para a língua portuguesa, em sua introdução feita por

Goffredo Telles Júnior, podemos ter uma rápida noção da divergência mencionada

anteriormente:

19 Cit. Entrevista. 20 O termo katharsis aparece uma única vez no texto da Poética. 21 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1993 – 2º Edição.

56

A catarse tem dado que fazer aos comentadores, porque Aristóteles quase não se explicou sobre o sentido do vocábulo. Emprega-o na Política (1341, Livro VIII, cap. VII, 4), anteriormente à composição da Arte Poética. ‘Dizemos não se deve empregar à música para um só fim (ação imediata, afrouxamento e diversão), mas é necessário fazê-la servir à educação e à purificação. O que entendemos por purificação, dizemo-lo em poucas palavras, pois nos explicaremos mais em pormenor, quando dela nos ocuparmos na Poética. Continua dizendo, a propósito dos estados apaixonados, tais como o entusiasmo, que depois de ouvir uma deliciosa música que as liberta de um delírio sagrado, estas almas se acalmam, como se encontrassem uma espécie de cura e de purificação[...], e se sentem aliviadas agradavelmente: O mesmo acontece com as almas presas de compaixão ou de terror ou de outra [...] paixão. Assim os cantos que purificam a alma causam em nós um encanto sem perigo (TELLES JUNIOR apud ARISTÓTELES, s/d, p.234).

Segundo Aristóteles, o temor e a piedade são mecanismos de “purificação”. Por conseguinte, a “purificação” (ou até mesmo purgação) seria a finalidade para qual toda a ação converge. Além de defender que a tragédia consiste numa ação completa, também

defendia aspectos estéticos de como deveria ser a fábula. O filósofo esclarece que a criação

da fábula não deveria dar-se ao acaso, haveria normas a serem seguidas. Ao descrever sua

noção de como deveria se compor a fábula, Aristóteles também indica o seu ideal de

estética, priorizando o modelo de classificação e formativo como mote de suas assertivas.

Em suas palavras,

Para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas. Além disso, o belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for desmedidamente grande (neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o conjunto escapam a vista do espectador, como seria o caso de um animal que tivesse de comprimento dez mil estádios). Donde se infere que o corpo humano, como o dos animais, para serem julgados belos, devem apresentar uma certa grandeza que torne possível abarcá-los com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma extensão tal que a memória possa também retê-las. (1451a, Livro VIII)

Em uma primeira leitura, poderíamos afirmar que o Romance d’ A Pedra do Reino

rompe completamente com as propostas aristotélicas de unidade. Contudo, se observarmos

mais atentamente, por trás da estrutura narrativa, dilatada e extensa, dos acontecimentos,

percebe-se que há não só a unidade de tempo, mas também de lugar e ação. O romance

inicia com a narração de Pedro Dinis Quaderna que se encontra na cela de uma cadeia

57

depois de tudo já ter acontecido: “Daqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde estou preso, vejo os arredores da nossa indomável Vila sertaneja” (SUASSUNA, 2007, p.31).

Todos os deslocamentos presentes na narrativa ocorrem por meio da palavra do

personagem, o que cria uma aparência e ilusão de rompimento com a unidade, contudo os

acontecimentos são evocados, através do recurso in medias res. No que diz respeito à

unidade de tempo, observamos que essa é a que mais cumpre o modelo aristotélico; os

acontecimentos narrados e evocados por Quaderna passam-se, ao longo das 742 páginas

que compõem a 9ª edição do romance, em apenas um dia. A ação na obra de Suassuna

inverte a sequência convencional início, meio e fim, o que dificulta sustentar uma unidade

de ação na obra. Entretanto, a ação do protagonista ocorre no plano da memória, seu

encadeamento não faz uma clara distinção entre passado, presente e futuro, fato que requer

localizar a permanência do romance dentro dos moldes narrativos. Esse fator é

determinante, pois caso a obra deixasse o plano da evocação para o da apresentação dos

fatos, exigir-se-ia a contração dos acontecimentos, ruptura com o tempo distendido do

épico. Talvez, Ariano Suassuna rompa com a unidade de ação para preservar as demais

unidades dentro do espaço narrativo. Lembremos que, após o término do inquérito,

Quaderna se dirige para sua casa a fim de descansar para mais um dia de sabatina. Em

outras palavras, é um fim ambíguo que contraria Aristóteles quando o autor alega que a

tragédia deve possuir um fim único e não duplo. Na obra, o diálogo entre o Corregedor e

Quaderna demonstra a ruptura com a receita aristotélica:

Ótimo! Teremos, então, oportunidade de continuar, aqui, esta nossa conversa, tão interessante, tão cheia de sugestões e revelações! O inquérito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos por enquanto sua Obra ficará assim, em suspenso e aberta, dependendo sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar. Talvez, até, ela dure o resto de sua vida e nunca chegue a terminar, de acordo com o teor do que o senhor tiver para nos dizer! – disse ele com um sorriso cruel, que me deixou terrificado. – Até amanhã, então! Espero o senhor aqui, na mesma hora! E, para seu próprio bem, não fale nada do que eu lhe perguntei nem do que o senhor me disse, a pessoa nenhuma! Escute o que eu estou lhe dizendo: se eu souber que você de qualquer maneira que seja, delatou qualquer coisa do que se passou aqui, o senhor será imediatamente demitido e preso! Até amanhã! (SUASSUNA, 2007, p. 737)

Cabe atentar para a forma como Ariano Suassuna trabalha o diálogo, colocando todos

os trechos em forma narrativa. O uso dos travessões que indicam a mudança de fala das

58

personagens são dispostos em uma sequência linear, apontando e lembrando ao leitor que

embora ele esteja frente a um diálogo, o que deve permanecer é a evocação narrativa. O

poeta,22 segundo Aristóteles, retomando aqui o que já foi dito anteriormente, não tem

obrigação de narrar exatamente o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, o poeta

deve mostrar um mundo de possibilidades, um mundo verossímil que, obviamente, não

deve ser confundido com o mundo real. Desta forma, o filósofo entende que a tragédia mais

bela é aquela cuja composição é complexa, ou seja, aquela em que os fatos imitados, por

ela, são capazes de provocar o medo e a piedade. Essa piedade surge no leitor/espectador ao

ver que o herói foi injustamente infortunado. Acerca dessa compaixão, Aristóteles

exemplifica:

Se um inimigo mata o outro, quer execute o ato ou o prepare, não há aí nada que mereça compaixão, salvo o tratamento recebido, considerado em si mesmo; o mesmo se diga de pessoas entre si estranhas. Mas, quando os acontecimentos se produzem entre pessoas unidas por afeição, por exemplo, quando um irmão mata o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe o filho, ou um filho a mãe, ou está prestes a cometer esse crime ou outro idêntico, casos como estes são os que devem ser discutidos. Nas fábulas consagradas pela tradição, não é permitido introduzir alterações. Digo, por exemplo, que Clitemnestra deverá ser assassinada por Orestes e Erífila por Alcméon, mas o poeta deve ter inventiva e utilizar o melhor que puder estes dados transmitidos pela tradição” (1453b, Livro XIV, 15-25).

A verdadeira tragédia, conforme os moldes aristotélicos, deve possuir um fim único,

não duplo. A trajetória do herói deve se dar de forma que a sua felicidade se transforme em um infortúnio, contudo esse infortúnio não deve ser ocasionado pela perversidade, mas sim por um erro grave que foi capaz de deflagrar o trágico. A esse erro, Aristóteles dá o nome de harmatia. Para que exista o trágico, para que ele seja um motivo de discussão na polis, para que o trágico consiga provocar a kátharsis, é indispensável que haja a harmatia. Sandra Luna ressalta que os gregos colocam o trágico como uma consequência da hamartia, do erro involuntário. Acerca disto, Sandra Luna ressalta:

Considere-se, por exemplo, como no teatro grego o ‘erro trágico’ não raramente se manifestava como erro intelectual, involuntário, equívoco, falta de discernimento - ato irreparável, sim, mas isento de conotações moralizantes. A crença em noções de fatalidade, destino e a presença de um pantheon divino em seu universo trágico convergiam para permitir que os gregos enquadrassem erros humanos sob outras perspectivas que não a dos desvios morais. Não foi por acaso que Aristóteles aprendeu a harmatia – erro involuntário – como elemento essencial a uma tragédia perfeita: enquanto "erro", a harmatia indicia um agente a responder pela catástrofe que arruina seu universo; sendo, contudo, ‘erro involuntário’, atenua-se, senão a responsabilidade, certamente a

22

Poeta (πο ή ), nesta concepção, é “o que cria”.

59

culpa do agente sobre a sua ‘ação’. Construída a ‘ação’ como uma relação de causa e efeito que conduz ao trágico, a harmatia produz uma instância de tragicidade altamente comovente, complexa e eficaz porquanto, embora o trágico aí se apresente como evento racionalmente explicável (há um erro que conduz ao trágico), as consequências do erro parecerão imerecidas (há um agente do erro, um responsável pela catástrofe, mas não exatamente um ‘culpado’).É justamente nesse descompasso entre erro e culpa que o sentimento do trágico se instala com maior efetividade. (LUNA, 2005, p.31)

Sustentando a ideia da hamartia como consequência da ausência de sofrosyne

( ωφ ο ύν )23, podemos exemplificar aqui a harmatia contida em Édipo Rei, de Sófocles.

Na referida obra, sabemos que o rei Édipo toma conhecimento que a peste em Tebas é

decorrente de um crime que se encontra impune, crime de um filho que havia matado o

próprio pai e se casado com a própria mãe. Ao ser consultado, o adivinho Tirésias esclarece

a Édipo que ele mesmo era o autor de tal crime. Édipo no auge de sua intransigência exige

que Tirésias lhe traga provas e, tão seguro de sua inocência, determina que o criminoso será

punido com o exílio da polis. Podemos observar assim a imprudência, o erro irrefletido, ou

melhor: a harmatia de Édipo. Quando as provas vieram à tona, tamanho era o sofrimento

de Édipo que ele decidiu furar seus próprios olhos e cumprir sua própria sentença, o exílio.

Conforme podemos constatar, a história, brevemente narrada acima, está de acordo

com o que Aristóteles formulou no que concerne ao fato de toda tragédia ter um único fim,

não duplo, também a reafirmação de que só há tragédia de fato quando o herói declina da

fortuna para o infortúnio, da “dita” para a “desdita”.

Apesar do “horror” representado em cena, o horror não constitui um artifício utilizado

unicamente pela tragédia, a comédia também se utiliza dele. A diferença, porém, é que o

“horror” na comédia é rebaixado à categoria de “ridículo”, buscando assim provocar o riso;

a kátharsis “distanciada”. Para Cleise Mendes (2008), diferente da catarse convencional que busca atingir a plateia pelo envolvimento desta com a trama representada no palco, a

catarse distanciada busca atingir a plateia através do não envolvimento emocional com a

trajetória do personagem em cena. Já na tragédia, esse horror é o principal mecanismo que

desencadeia a kátharsis pela aproximação do espectador com o desfecho trágico do herói.

Podemos concordar com Aristóteles quando ele diz que o “feio” na comédia não tem objetivo de gerar o sofrimento.

Dentre os diversos elementos que contém a obra trágica, dois deles merecem destaque

23

Falta de reflexão, falta de prudência.

60

neste capítulo, a saber: Unidade e Verossimilhança. Já sabemos que para Aristóteles a

fábula precisa ter unidade de ação, ou seja, a ação precisa ter começo, meio e fim. O

filósofo acrescenta que a fábula para ser bem composta precisa que não comece ou termine

ao acaso, ela precisa ter um fim único e não duplo, e também precisa ser composta em

partes, devendo apresentar ordem entre essas partes. A fábula, segundo Aristóteles, precisa

comportar certa grandeza e ordem, não deve ser excessivamente grande ou excessivamente

pequena. No que concerne ao ideal estético, Aristóteles entendia que a beleza de um

determinado ser era composta em partes, estas partes deveriam compor a beleza de um

“todo”. Para melhor entendermos o que defende Aristóteles, citemos o exemplo do corpo humano: um braço isolado não pode ser considerado belo, sua função é compor um “todo” (corpo humano) que é belo por ser composto pela criação das partes unidas.

Como podemos observar Aristóteles “transplanta” seu ideal estético para discorrer

acerca dos aspectos formativos da obra trágica. Em sua Poética podemos ter noção de

como o seu entendimento sobre o Belo reverbera em suas constatações sobre a produção

literária dos tragediógrafos:

Para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas. Além disso, o belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for desmedidamente grande (neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o conjunto escapam a vista do espectador, como seria o caso de um animal que tivesse de comprimento dez mil estádios). Donde se infere que o corpo humano, como o dos animais, para serem julgados belos, devem apresentar uma certa grandeza que torne possível abarcá-los com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma extensão tal que a memória possa também retê-las. (1450b, Livro VII, 25-35)

Para Aristóteles, a fábula deve ser clara e comportar em si uma extensão que seja

suficiente para que os acontecimentos se produzam em acordo com a verossimilhança ou a

necessidade, que seja suficiente para mudar a situação do personagem, da felicidade para o

infortúnio, ou o contrário, como é no caso da comédia. Ainda em relação à unidade,

Aristóteles defende que as partes devem ser entrosadas entre si, bastando o deslocamento

de uma só para que todo o conjunto fique confundido.

Em razão disso, Sandra Luna (2005) aponta que Aristóteles condena os enredos

61

episódicos porque estes não possuem uma sequência necessária ou provável. Assim, o

filósofo se posiciona contra a multiplicidade de enredos, uma vez que a “unidade de ação”

deverá resultar na formulação da ideia, na formulação do eixo centralizador da tragédia,

que tem como base a verossimilhança, que posteriormente deverá desencadear o efeito da

catarse: “... é possível concluir que a Poética recomenda que ação trágica em uma tragédia

perfeita deve ser una, portanto, estruturada em torno de um eixo centralizador, concentrada

e verossímil, desenvolvendo-se de forma ‘complexa’, através de uma peripeteia, isto é,

sofrendo um processo de reconhecimento, a anagnórisis, ambos favorecedores do elemento

surpresa que caracteriza uma situação inesperada”. (LUNA, 2005, p.261)

Como já sabemos, Aristóteles considera que não é função do poeta retratar a

realidade tal qual ela é, e sim apresentar possibilidades; cabe ao poeta não relatar o que

aconteceu, mas o que e como poderia ter acontecido. O argumento da verossimilhança

constituía um dos mais fortes argumentos que Aristóteles possuía em defesa da Arte, uma

vez que seus antecessores (Sócrates e Platão) se posicionavam contra. Platão em sua

República alega que a Arte era um veículo para provocar paixões e excitações que

poderiam ser malévolas ao homem.

No Romance d’A Pedra do Reino, Ariano Suassuna explicitamente segue Aristóteles

no que concerne a verossimilhança, e muito implicitamente afirma seu compromisso com

as unidades aristotélicas de tempo, lugar e ação, conforme já sabemos. Contrapondo-se à

Poética aristotélica, na Pedra do Reino não podemos fazer uma clara distinção entre

começo, meio, e fim. Logo no início da obra, o leitor percebe que ela aparentemente se

iniciou pelo final, quando tudo já havia acontecido, quando Pedro Dinis Quaderna já se

encontrava preso pelas razões que ali estava por narrar.

Ao ler a obra, o leitor sabe que o protagonista Pedro Dinis Quaderna tem por ambição

tornar-se o “Gênio da Raça” através da literatura, e o caminho que o mesmo optou por

trilhar na literatura foi o da epopeia. Não é de surpreender que a estrutura do Romance d’A

Pedra do Reino se assemelhe em grande parte com a estrutura das três famosas epopeias da

Antiguidade: A Odisseia e a Ilíada, de Homero, e a Eneida, de Virgílio.

Assim como nos deparamos com um personagem que relata sua própria história de

vida de dentro de um túmulo em Memórias Póstumas de Brás Cubas, do escritor Machado

de Assis. Na Pedra do Reino, o protagonista Pedro Dinis Quaderna nos relata sua história

62

de dentro da cadeia. O fato de a narrativa começar pelo final, o excesso de informações

prestadas ao leitor, e a indefinição acerca do tempo na obra, implica numa aparente total

exclusão da “unidade” nos moldes aristotélicos. Isso nos leva a entender que, no que

concerne à estrutura textual, o Romance d’ A Pedra do Reino não pode ser comparado a

textos da tragédia grega. Na epopeia existe um argumento desenvolvido em pequenos

núcleos narrativos, e na tragédia há um argumento único e nada que se narre é exterior a

este argumento.

Desta forma podemos entender que a noção de unidade é outra, quando aplicada à

epopeia. Cada divisão da epopeia (livros ou cantos) é una em si, cada livro comporta uma

unidade em si que com frequência não depende dos livros ou cantos subsequentes para

completar seu sentido, diferentemente da tragédia em que todas as partes são

interdependentes, onde o sentido fica prejudicado se qualquer parte for removida. Podemos

assim dizer que a influência da epopeia é significativamente maior no romance de Ariano

Suassuna no que concerne ao seu aspecto formativo, pois o autor ao compor esta obra

aplicou-lhe a unidade epopeica, uma vez que seu romance é dividido em vários livros, ou

folhetos para ser mais “armorial”,24 conforme podemos encontrar na Ilíada, na Odisséia, e

na Eneida.

Voltando à questão da verossimilhança, o protagonista Pedro Dinis Quaderna parece

trazer dentro de seu discurso um antigo embate entre a Literatura e a Filosofia. Devemos

lembrar aqui que, em sua Origem da Tragédia, o filósofo Nietzsche acusa a filosofia de ter

sido a provocadora da morte da tragédia. A racionalidade filosófica utiliza o herói trágico

como parâmetro, como arquétipo daquilo que jamais deve ser seguido. Dentro da sua obra,

Ariano Suassuna traz a discussão literária e a filosófica representada na figura dos dois

mestres de Pedro Dinis Quaderna, são eles: Professor Clemente e Dr. Samuel Wandernes.

Conforme já sabemos, para Aristóteles o poeta deverá se comprometer com a

verossimilhança, cabendo ao historiador comprometer-se com a realidade dos fatos.

Podemos entender que a função atribuída, por Aristóteles, ao historiador também pode se

estender para o cientista, o filósofo, e qualquer outra forma puramente racional de

24 O Movimento Armorial surgiu com o objetivo de se criar uma arte erudita brasileira por meio dos elementos populares da cultura nordestina, o movimento tem como um dos fundadores o próprio Ariano Suassuna. A presença de folhetos é constante na produção literária armorial. (MUZART, 2009)

63

elaboração cognitiva. Para melhor compreendermos como se aplica a verossimilhança no

Romance d’ A Pedra do Reino, devemos saber que o personagem Pedro Dinis Quaderna

declara que o seu estilo literário é fortemente influenciado pelos seus dois grandes mestres

acima citados. Ironicamente, ou não, o mestre poeta e o mestre filósofo de Quaderna são

extremamente rivais entre si – pertencentes, inclusive, a visões políticas opostas, sendo

Samuel Wandernes direitista, e o Professor Clemente esquerdista.

Pedro Dinis Quaderna relata ao leitor que seu estilo literário é simultaneamente

influenciado pelo “Oncismo” do Professor Clemente e pelo “Tapirismo” de Dr. Samuel Wandernes. O “Oncismo” consistiria em relatar a realidade tal qual ela é, enquanto o ““Tapirismo” consistiria em relatar a realidade de maneira poética, e não necessariamente

real, ou seja, verossímil.

Tendo em vista que a verossimilhança foi o melhor caminho encontrado por

Quaderna para estabelecer uma confluência entre as ideias professadas por seus mestres, ele

decide que o estilo literário ao qual vai se dedicar é o romance. Para melhor ilustrar o uso

da verossimilhança nas palavras de Quaderna no romance de Suassuna, vale aqui citar o

trecho em que Pedro Dinis Quaderna descreve como era a cavalgada que se aproximava de

Taperoá:

Era composta de cerca de quarenta Cavaleiros. Os arreios dos Cavalos que a compunham vinham cobertos de medalhas e moedas, que refulgiam ao Sol sertanejo, devolvendo aos fulgores dos cristais das cercas-de-pedra as faíscas de seus metais. As esporas, como estrelas de fogo, retiniam suas rosetas, batendo nos estribos e centelhando nos sapatões de couro castanho, sob as véstias e os canos poeirentos das calças-perneiras, também castanhas, mas providas de fortes placas de reforço, costuradas a modo de joelheiras nas calças, e de ombreiras nos gibões. Os chapelões de couro, de largas abas dobradas e levantadas, coroavam-se, também, de estrelas e moedas que reluziam – três nas abas, inumeráveis nas testeiras e barbicachos. Mais do que tudo, porém, pairava no ar, sobre aquela esquisita tropa de bichos, carretas e Cavaleiros, uma atmosfera de feira-de-cavalos; de sortilégios e encantamentos; de companhia de Circo; de comboio-de-mal-assombrados; de cavalaria de rapina; de comércio de raízes, augúrios e zodíacos; e tudo isso, junto, lembrava, logo, uma tribo de Ciganos sertanejos em viagem. (SUASSUNA, 2007, p.35/36)

Esta é apenas a descrição inicial da cavalgada que se aproximava de Taperoá, a

descrição dos acontecimentos oriundos desta cavalgada se estendem por toda a obra. O que

busco aqui é exemplificar para o leitor como a verossimilhança se apresenta no Romance, e

como sabemos que esta verossimilhança optada por Quaderna também traz o embate

64

literário-filosófico e também uma crítica à colonização, conforme podemos ver o trecho a

seguir:

Vossas Excelências não imaginam o trabalho que tive para arrumar todos os elementos desta cena, colhidos em certidões que mandei tirar dos depoimentos dados por mim no inquérito, numa “prosa heráldica”, como dizia o grande Carlos Dias Fernandes. Só o consegui porque, além de pertencer ao “Oncismo” do Professor Clemente, pertenço também ao movimento literário do Doutor Samuel Wandernes, o “Tapirismo Ibérico do Nordeste”. Graças a este útimo é que omiti, nas descrições que fiz até aqui, qualquer referência ao tamanho diminuto e à magreza dos cavalos sertanejos que serviam de montada aos Cavaleiros, assim como às pobrezas e sujeiras e sujeiras mais aberrantes e evidentes da tropa. No movimento literário de Samuel é assim: Onça, é “jaguar”, anta, é “Tapir”, e qualquer cavalinho esquelético e crioulo do Brasil é logo explicado como “um descendente magro, ardente, nervoso e ágil das nobres raças andaluzas e árabes, cruzadas na Península Ibérica e para cá trazidas pelos Conquistadores fidalgos da Espanha e de Portugal, quando realizam a Cruzada épica da Conquista. (SUASSUNA, 2007, p.50)

Ariano Suassuna certamente parodia o embate filosófico-literário utilizando-se de

duas correntes fictícias de pensamento; o Oncismo e o Tapirismo. O leitor pode perceber

que a descrição da cavalgada, feita por Pedro Dinis Quaderna, é um exemplo de como

podem existir muitas versões acerca de um mesmo fenômeno. Estabelecendo-se uma

analogia direta com a arte trágica; o “Oncismo” é naturalmente uma visão imparcial da

realidade sugerida pela ciência e pela filosofia, e o “Tapirismo” por sua vez mostra como a

realidade pode ser recriada e assumir diversas formas através da arte poética por meio da

literatura.

Como podemos observar, Dr. Samuel Wandernes e o Professor Clemente, além de

serem figuras caricaturais colocadas por Ariano Suassuna para satirizar o intelectualismo

pernóstico e vaidoso do Brasil bacharelesco, representam também a dicotomia entre o

clássico e o popular na formação artístico-literária brasileira, enquanto Pedro Dinis

Quaderna representava uma fusão do clássico com o erudito. Em outras palavras Quaderna

representa o “movimento armorial”, concentra em si um modelo da recriação poética da

realidade proposta pela verossimilhança aristotélica e também pelo movimento armorial,

representa assim a apropriação de duas matrizes estéticas por meio dessa hibridização

ocasionada pelo “tapirismo samuélico” e pelo “oncismo clementino”.

A verossimilhança também busca reverberações de ordem histórica para se constituir.

Comparativamente, podemos utilizar o exemplo da tragédia Os Persas, de Ésquilo, em que

65

o autor se utiliza de um fato histórico para recriá-lo poeticamente. Em O Romance d’A

Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta fatos históricos também contribuem

para a recriação poética proporcionada por Pedro Dinis Quaderna. Dentre os aspectos

históricos que interferem no Romance devemos citar a “Guerra de Princesa”. Como se sabe,

a narrativa do Romance d’ A Pedra do Reino se passa no sertão da Paraíba, e Princesa

Isabel é um município situado no referido sertão.

A Guerra de Princesa ocorreu em 1930, dando-se em razão de que o homem mais

influente do lugar na época, o “coronel” José Pereira proclamou a independência da cidade de Princesa em revolta ao governo de João Pessoa. A revolta se deu pelo fato de o então

presidente25 da Paraíba tentar inviabilizar o poder de José Pereira na região, retirando todos

os funcionários do governo locados lá, exonerando o prefeito, o vice-prefeito, e o adjunto

de promotor, sendo todos eles parentes ou indicados por José Pereira. Desta forma, o

“coronel” José Pereira proclama a independência do território de Princesa em relação ao governo do Estado da Paraíba, passando a possuir suas próprias leis, hino, bandeiras, jornal,

ministros e exército.

A atitude do “coronel” José Pereira, leva o governo da Paraíba a declarar guerra ao

território independente de Princesa com o objetivo de restabelecer a posse do território

antes pertencente ao Estado da Paraíba. Tudo isso resultou em um conflito armado que

envolveu o exército da Paraíba contra o exército do território de Princesa. O poder bélico

do “coronel” José Pereira era notável, pois o exército da Paraíba não logrou invadir

Princesa, chegaram a convidar o cangaceiro Lampião para também enfrentar os revoltosos

de Princesa. A guerra apenas terminou quando o presidente da república na época,

Washington Luiz, decidiu terminar com o conflito enviando seiscentos soldados para a

localidade, não havendo resistência por parte do “coronel” José Pereira. (OCTÁVIO, 1996)

No Romance d’ A Pedra do Reino a Guerra de Princesa é frequentemente mencionada

e é certamente o conflito bélico ocorrido na ocasião que serviu de inspiração para a

composição poética de Pedro Dinis Quaderna. Como ocorre nas tragédias gregas e nas

epopeias, as referências feitas por Quaderna ao território de Princesa são também

permeadas de verossimilhança. Quaderna sabe que seu tio e padrinho, Pedro Sebastião

Garcia-Barreto, participara da Guerra de Princesa, sendo aliado de “Dom” José Pereira de

25

Na República Velha (1889 – 1930) os governantes estatais eram chamados de presidentes.

66

Lima26. Ainda respeitando ao pressuposto aristotélico que entende o poeta como um

“recriador” da realidade, Quaderna relaciona diretamente a origem do nome de Princesa à sua própria família, como forma de justificação de sua realeza.

Ora, em 1930, meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto, tomara parte na “Guerra de Princesa”, ao lado de Dom José Pereira Lima, contra o Governo e a Polícia do Presidente João Pessoa. Quando Dom José Pereira, nessa guerra, proclamou a independência da Vila da Princesa Isabel, outorgando-lhe constituição, hino e bandeira, fiz dele, secretamente, Rei da Espinhara, fazendo da Vila de Princesa a capital desse Reino. O nome de “Vila Real da Princesa Isabel” só podia ser resultado de um desígnio da Providência: algum lambe-cu e cheira-peido dos Braganças tinha querido colocar esse nome em nossa muito nobre e leal Vila para bajular a falsa Princesa Isabel, a da Casa de Bragança, a filha do Impostor Dom Pedro II. Agora, porém, ficava claro que a Princesa Isabel que dava nome à Capital do meu Reino da Espinhara era a verdadeira, a da Casa dos Quadernas, minha bisavó. (SUASSUNA, 2007, p.116)

LUNA (2005) argumenta que a tragédia grega se utiliza de diversos recursos para

parecer verossímil, pois a verossimilhança é um dos recursos que tornam a tragédia grega

aceitável aos olhos do espectador. Segundo Luna, o cuidado com a verossimilhança se

justificava porque, na escolha dos temas, os tragediógrafos se viam compelidos a respeitar

os limites que confiavam a poesia aos domínios da imaginação. Desta forma, a grande

maioria dos temas das tragédias tinha fundamento mítico, sendo Os Persas de Ésquilo a

única tragédia (por nós conhecida) que tem fundamento histórico. Ariano Suassuna então se

apropria de um aspecto histórico, a guerra de Princesa, e incorpora-o ao discurso de

Quaderna quando este faz alusões ao passado de sua família.

Podemos assim entender a verossimilhança como uma forma de “deslocamento” do

sentido real para o sentido literário. Tanto no Romance d’A Pedra do Reino como em Os

Persas existe um deslocamento do aspecto histórico para o aspecto poético, e mais uma vez

fica claro o entendimento de Aristóteles acerca da função do poeta; a de não relatar a

realidade tal qual ela é. O deslocamento do sentido real para o sentido literário

proporcionado pelo tragediógrafo em questão, Ésquilo, pode também ter sido imitado pelo

protagonista do romance de Suassuna quando este justifica o medo que possui de uma

rebelião armada, alegando que através da Literatura é capaz de construir castelos e reinos

26

Percebamos aqui a intervenção poética verossímil de Quaderna ao tratar o “coronel” José Pereira por “Dom”.

67

em pleno sertão. Naturalmente, não cabe aqui qualquer comparação das guerras médicas

com a guerra de Princesa .

Sabemos, por fontes históricas, que a guerra ocorrida entre os persas e os gregos foi

conhecida como “Guerras Médicas”; nessas guerras os gregos buscavam livrar suas

colônias do domínio persa. As guerras médicas foram a principal inspiração de Ésquilo para

compor Os Persas, uma vez que o autor participou como soldado, contudo ao ler a tragédia

não nos deparamos com um relato histórico, mas a situação dos persas após essas guerras,

situação que apenas poderia ter sido “imaginada” por Ésquilo, uma vez que ele lutou ao

lado de sua nação (a Grécia) e provavelmente era alheio à realidade persa. Desta forma,

Ésquilo, assim como Ariano Suassuna, nos passa uma noção verossímil da realidade.

Apenas Os Persas, de Ésquilo, dentre as tragédias remanescentes, é inspirada em fatos históricos, neste caso, na guerra contra os persas da qual participou o próprio tragediógrafo. Contudo, nem mesmo esta peça oferece ao espectador um relato histórico da referida guerra. Embora tendo combatido ele próprio junto aos gregos, Ésquilo opta por abordar em sua tragédia a triste situação dos vencidos, ou seja, a parte do evento que ele pode apenas supor, imaginar, ficcionar. Esse é o exemplo mais evidente de uma tradição poética que demarca bem as fronteiras entre ficção e realidade, ou, como diz Aristóteles na Póetica, entre Poesia e História (LUNA, 2005, p.155).

Maurice van Woensel em sua tese intitulada Uma Leitura Semiótica em A Pedra do

Reino de Ariano Suassuna, nos traz o entendimento de que “verossímil” é um efeito, uma

impressão que deixa a obra depois de sua leitura e que não se mede com parâmetros

objetivos, sendo ela indispensável para a leitura. A ausência do verossímil, segundo

Woensel, pode ocasionar a perda do sentido, tornando-se inaceitável a recepção por parte

do leitor. Podemos observar que a ideia defendida por Maurice van Woensel é a mesma

entendida por Sandra Luna, a de que a verossimilhança é um fator indispensável para a

aceitação do receptor da obra: “Quando se trata, porém, de representações artísticas e de

enunciados literários não falamos de verdadeiro, mas sim de verossímil; ‘o que aparenta ser

verdadeiro’ ou ‘o que poderia ter acontecido desta maneira” (WOENSEL, 1978, p.68).

Em sua tese, Woensel nos traz interpretações importantes de outros autores acerca da

verossimilhança, são eles: Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Roland Barthes, René

Wellek, Austin Warren, e Julia Kristeva. Podemos aqui estabelecer relações entre a

68

verossimilhança encontrada no Romance d’ A Pedra do Reino com noções desses autores

que nos foram trazidas por Woensel. Todorov estabelece a literatura como uma linguagem

que não pode ser totalmente falsa ou totalmente verdadeira, diferentemente da linguagem

científica, em razão de esta não poder ser submetida à prova da verdade.

No Romance d’ A Pedra do Reino, Ariano Suassuna através de seu protagonista

Pedro Dinis Quaderna nos relata acerca da existência de um reino no sertão27, reino este

que havia sido extinto no século XIX. Uma das hipóteses levantadas no decorrer da obra é a

de que o Rei Sebastião havia sobrevivido à batalha do Alcácer-Quibir, no Marrocos, e teria

se estabelecido no sertão brasileiro, construindo este reino.

Gérard Genette (1972), por sua vez, entende que a verdade apenas “faz” as coisas

como elas são, enquanto a verossimilhança as faz como devem ser, alegando que a verdade

é quase sempre defeituosa. Segundo Woensel, Genette entende que a verossimilhança é

quase sempre influenciada pela opinião pública que termina impondo como devem ser as

narrativas de cada gênero literário. Contudo, ainda segundo Genette, cabe ao autor da obra

conseguir emancipar-se desse compromisso com a opinião pública.

Nas considerações feitas a respeito do pensamento de Roland Barthes acerca da

verossimilhança, Woensel destaca que para Barthes: “existe no signo, que é o detalhe

concreto, um significante separado de seu significado, mas ligado ao referente (a realidade

no caso): e detalhe concreto assim não passa duma ilusão referencial, que “produz um efeito de real, fundamento desse inverossímil inconfessado que forma a estética de todas as

obras correntes da modernidade”. (WOENSEL, 1978, p. 70)

No Romance d’ A Pedra do Reino, podemos aplicar o entendimento de Barthes da

seguinte forma, temos como exemplo o protagonista da obra: Pedro Dinis Quaderna é

descrito como um homem sertanejo como outro qualquer; um homem humilde, magro, pele

queimada do sol, que também cultua hábitos genuinamente sertanejos como o uso de cavalo

como meio de transporte, sua alimentação a base de carne de sol e outras comidas típicas da

região em que vive. Nesta perspectiva Pedro Dinis Quaderna pode ser entendido como um

27

Em arguição, o professor Rubén Figaredo Fernandez aponta para uma possível semelhança com o reino lendário de Preste João. Para maior aprofundamento ver o artigo intitulado Paraíso Terrestre e Reino Profético na Carta do Preste João das Índias de Adriana Maria de Souza Zierer, João Pessoa, 2003. (Ver bibliografia)

69

signo do homem sertanejo. A verossimilhança aplicada por Ariano Suassuna faz com que

Quaderna seja um homem sertanejo “diferenciado” por tratar-se de um sertanejo detentor

de uma vasta cultura poética, literária, astrológica e filosófica, fato relativamente incomum

por parte das pessoas da região. Desta forma, a verossimilhança faz com que o agente

significante (Quaderna) fique separado de seu significado (homem sertanejo), mas ainda

assim é ligado ao referente (a realidade sertaneja). Desta forma o signo (também entendido

como detalhe concreto) representado por Pedro Dinis Quaderna é uma ilusão referencial.

Para René Wellek e Austin Warren (1971), a verdade dos fatos difere da verdade dos

conceitos. A verdade dos conceitos, para ambos, é que é o domínio da literatura. A partir desse

entendimento, Woensel formula que o autor pode “mentir”, para criar um balão colorido de

ilusões, mas não pode furá-lo com mentiras contra a coerência, a estrutura, e o estético.

Podemos aqui observar o cuidado que se deve ter com a unidade aristotélica, o autor tem

liberdade de “recriar” a realidade, mas a sua verossimilhança não pode perturbar a unidade.

Segundo Wellek e Warren, a verossimilhança serve para convencer que a sua ilusão encerra

a “verdade real”. Este entendimento adotado por esses dois autores dialoga diretamente com o que Sandra Luna nos fala acerca da “suspensão da descrença”.

Os gregos, como nós, abandonam-se à ficção “como se” esta fosse realidade. E é exatamente neste “como se” que reside o segredo, não apenas do teatro grego, mas de toda a representação dramática. O “como se” é a legitimação da “suspensão da descrença”, é a chave do consentimento que o próprio espectador aciona quando se deixa levar pelo “faz-de-conta” ficcional, aceitando-o como uma realidade hipoteticamente possível. Nesse jogo de aceitação de um universo ficcional “como se” fosse um mundo “real”, a partida é dada pelo tragediógrafo, que constrói um universo dramático acessível ao espectador. E a base dessa acessibilidade é a vinculação do universo fictício ao mundo “real”, às suas leis físicas e lógicas. (LUNA, 2005, p.151)

Por esta ótica, a verossimilhança é o que torna a realidade contada na literatura, e

exposta no teatro, aceitável. Woensel ainda nos traz em sua tese o entendimento de Julia

Kristeva que, por sua vez, atribui a necessidade da verossimilhança à sociedade de

consumo em razão de esta estar acostumada a cobrar exatidão em toda informação. Dessa

forma, para Kristeva, o discurso literário não possui qualquer compromisso com o real,

podendo no máximo aproximar-se de outro discurso que deva ser “exato” ou verídico.

Sendo assim, para Kristeva o discurso literário não precisa ser verídico, precisa apenas ter

sentido. A verossimilhança, então, estará sempre sujeita à “moda”, às exigências da

sociedade que vigora na época em que esta verossimilhança se manifesta. Acerca da

70

verossimilhança no discurso de nosso “herói trágico”, Pedro Dinis Quaderna, Julia Kristeva

explica:

As deficiências do verossímil ocorrem no discurso, na maneira de Quaderna apresentar os fatos. Com efeito, ele entretece elementos de alta e de baixa verossimilhança, trechos que“convencem” (inúmeras referências a fatos e pessoas da história recente), alternados com outros ostentativamente fictícios. Não é difícil acreditar que ocorreu em 1935 um tiroteio no sertão paraibano entre ciganos e cangaceiros (diegese). Torna-se inverossímil, porém, o discurso do narrador que relata esses fatos e depois os “transforma”, “mentindo um pouco” (108), em “estilo genial, épico e régio” (295). (KRISTEVA, 1974, apud WOENSEL, 1978, p.75)

Podemos notar que Kristeva nos traz uma explicação consistente acerca do discurso

verossímil utilizado por Quaderna no decorrer da obra. A verossimilhança no romance de

Suassuna não se limita unicamente ao aspecto contextual, o próprio personagem Pedro

Dinis Quaderna parece ter sido construído por Ariano Suassuna com base em pressupostos

aristotélicos para construção do personagem. O filósofo Aristóteles em sua Poética

mostrava-se preocupado com a “tipificação” do personagem, tendo sempre a

verossimilhança como um guia a ser seguido.

A verossimilhança aplicada à construção do personagem se dava da seguinte forma;

em sua Poética, Aristóteles entendia que o personagem para ser verossímil deveria

primeiramente ser bom, ou seja, se suas ações são boas, consequentemente o personagem

possui bom caráter. O segundo caractere, a conveniência, consiste no fato de que o ator

precisa representar um personagem que seja facilmente assimilado pela plateia. Para

exemplificar seu entendimento sobre conveniência, Aristóteles afirma que não se pode

esperar que uma mulher seja viril, pois esta seria uma característica masculina. O terceiro

caractere seria a semelhança: o personagem precisa ser absorvido pela plateia como um

“semelhante”. E o quarto caractere seria a coerência, para ter um fim trágico, o herói

deveria executar um encadeamento de ações coerentes que resultassem naquele fim.28

Podemos assim observar que os caracteres formulados por Aristóteles são bases

indispensáveis na constituição do herói trágico, enquanto um arquétipo para a polis grega.

Esta perspectiva arquetípica pode ser encontrada no Romance d’ A Pedra do Reino.

28

Para maior aprofundamento ver Arqueologia da Ação Trágica (Sandra Luna), João Pessoa: Ideias, 2005.

(Ver bibliografia)

71

Autores que estudam o Romance d’ A Pedra do Reino, com notável freqüência

confrontam a trajetória de Pedro Dinis Quaderna com a trajetória de seu criador, Ariano

Suassuna, uma vez que vários fatores da vida de Quaderna são similares a fatores da vida

de Suassuna, a saber: ambos são escritores, ambos são intelectuais, ambos tiveram suas

figuras paternas assassinadas por razões políticas, e ambos fazem aniversário no mesmo

dia. Diante do exposto, muitos arriscam dizer que Pedro Dinis Quaderna é um personagem

autobiográfico, porém nessa dissertação ouso arriscar que Quaderna é uma versão

“verossímil” do próprio Ariano Suassuna.

Outro aspecto da Poética que precisa ser analisado acerca do trágico no romance de

Ariano Suassuna, além da unidade e verossimilhança, é a catarse. No segundo capítulo

desta dissertação falamos superficialmente da catarse na tragédia e na comédia. Como bem

sabemos, a catarse parece ter sido pensada primeiramente no âmbito da tragédia, por

Aristóteles, uma vez que desconhecemos os escritos do mesmo acerca da comédia.

Devemos lembrar que na tragédia a catarse apela para uma “identificação” e até mesmo

“comoção” por parte do espectador em relação ao infortúnio do herói; enquanto a comédia

tende a estabelecer uma relação de “distanciamento”, conforme vimos em Cleise Mendes

(2008), entre ator e espectador. Objetivamente falando, na tragédia, a catarse tende à ordem

emotiva, enquanto na comédia tende-se à ordem crítico-reflexiva.

No Romance d’ A Pedra do Reino parece não haver uma precisão acerca da função da

catarse, uma vez que tanto a tragédia quanto a comédia parecem coexistir. Nesta

dissertação entendemos o protagonista como um herói trágico “às avessas” em razão de que

Pedro Dinis Quaderna, em diversas partes, parece desejar ter, ou ter tido, a trajetória de um

herói clássico da tragédia grega subvertendo categorias contidas na trajetória do herói

trágico como a hýbris, a harmatia, a peripetéia, a anagnórisis, o páthos, entre outros.

Temos consciência de que a catarse é um processo que se dá unicamente através da

recepção da obra por parte da plateia (ou leitor neste caso). Como já sabemos, nesta

dissertação compreendi a cegueira que acomete Pedro Dinis Quaderna no “Folheto LXXIV” do Romance d’A Pedra do Reino como uma possível forma de anagnorisis.

Devemos saber que a anagnorisis (reconhecimento ou revelação) ocasiona uma peripeteia

(inversão da situação) que, por sua vez, gera o páthos (sofrimento) no herói, e este

sofrimento consequentemente objetará provocar a catarse na audiência que lhe assiste.

72

Desta forma, podemos constatar que se há alguma intenção de provocar a catarse no

decorrer do romance, isto se dá na ocasião de sua anagnórisis, na ocasião da cegueira de

Pedro Dinis Quaderna. Contudo, Quaderna não busca induzir a catarse no leitor, mas em

seus mestres Dr. Samuel Wandernes e Professor Clemente. No momento em que Quaderna

expõe seu infortúnio a seus mestres, estes reagem como se sua cegueira não fosse algo

grave, podendo ser até mesmo benéfica. O Dr. Samuel Wandernes alega que grandes nomes

da literatura também foram cegos, já o Professor Clemente alega que a cegueira também

pode ser um fator que o ajude a constatar melhor a realidade como no caso de Édipo Rei,

conforme já expomos no segundo capítulo.

Conforme nos diz Sandra Luna (2005), Aristóteles entende que para que sintamos

piedade é preciso que o infortunado não seja alguém da família, pois quando é alguém de

nosso seio familiar entendemos aquele infortúnio como sendo também nosso; em razão

disto não sentimos piedade.

Comecemos por considerar que, segundo Aristóteles, para sentirmos compaixão é preciso que haja um certo distanciamento afetivo em relação à vítima, caso contrário, o mal que a aflinge não despertaria compaixão, mas sim, compartilharíamos o mesmo sentimento desperto na alma daquele que sofre – talvez dor profunda, ira, mágoa, não compaixão. Contudo, embora deva haver distanciamento afetivo para que a compaixão se exteriorize, é preciso que conheçamos a vítima. Esse conhecimento, parece óbvio, não diz respeito a laços íntimos de afetividade entre a vítima e a pessoa que por ela sente piedade. Ao contrário, Aristóteles já advertiu que a afetividade aprestaria sentimentos outros, antes que a paixão. O conhecimento da vítima a que se refere Aristóteles nos parece muito mais o conhecimento de indivíduos cujos traços perfiladores sejam efetivos o suficiente para produzir sentimentos de identificação, de empatia. Isso explica porque Aristóteles menciona que sentimos compaixão pelas pessoas que se nos assemelham pela idade, pelo caráter, pelo nascimento. Certo é que esses traços as aproximam de nós. E proximidade parece ser uma palavra-chave em relação à compaixão. (LUNA, 2005, p.226-227)

Como podemos observar, Aristóteles defende que sentimos piedade quando o

infortúnio do outro não nos atinge diretamente. Desta forma, podemos entender que no

momento de sua cegueira, Quaderna não logrou que seus mestres estabelecessem com ele

alguma relação de piedade, pois estes são extremamente próximos e familiares ao

infortunado, temos assim uma possível razão para a aparente indiferença de seus mestres.

Indiferença esta que contribui para que a cegueira de Quaderna, na contramão da cegueira

73

edipiana, seja cômica, em vez de trágica.

Cleise Mendes em sua obra, As Gargalhadas de Ulisses, nos traz apontamentos que

podem acrescentar alguns pontos trazidos por Sandra Luna acerca da compaixão, bem

como a sua relação direta com a catarse cômica que proporciona a cegueira de Pedro Dinis

Quaderna. Cleise Mendes esclarece-nos que não é na Poética, e sim na Retórica de

Aristóteles que encontraremos melhores esclarecimentos acerca da compaixão:

Ao tratar especificamente da compaixão, no capítulo 8, e da “disposição de ânimo” que ela requer no ouvinte, Aristóteles observa que essa paixão não afeta “os que sentem grande temor, pois não têm compaixão aqueles que estão assombrados, pois se ocupam do próprio sofrimento”. E ainda, em relação ao objeto: “o terrível é diferente do digno de compaixão; não a admite, e serve muitas vezes ao sentimento contrário, porque não mais se sente compaixão quando o perigo é iminente”. Assim, transpostas essas observações para o campo da poética, torna-se claro que o jogo da proximidade e distância emocional, que está na base da catarse, sequer é uma prerrogativa do cômico (MENDES, 2008, p.37).

Conforme podemos observar, Cleise Mendes acrescenta que a compaixão não inclui

os que sentem grande temor, pois estes já estão ocupados com o próprio sofrimento. Este

entendimento trazido pela autora é perfeitamente adequado à situação em que se encontrava

os mestres de Pedro Dinis Quaderna. Como já sabemos, o Professor Clemente é um filósofo

intelectual de orientação política esquerdista, enquanto seu rival Dr. Samuel Wandernes é

um poeta intelectual de orientação direitista. Com a invasão ocorrida naquele momento à

vila de Taperoá, ambos encontravam-se aflitos, pois não sabiam se os invasores eram

revolucionários comunistas ou alguma força do governo. Desta forma, a nova ordem

instaurada poderia ser favorável ou contra um dos dois intelectuais e, consequentemente,

não se sabia qual dos dois seria perseguido e preso nesta nova ordem.

Podemos assim, compreender também, por meio da citação a seguir, que a aparente

indiferença de seus mestres parece, agora, “ironicamente” legitimada em razão das

circunstâncias, ou seja, se concordarmos com o entendimento de Cleise Mendes, os mestres

não sentiram compaixão por Quaderna simplesmente porque, além de serem destituídos de

“humanidade” em razão da intelectualidade, encontravam-se demasiadamente preocupados

com o que poderia lhes ocorrer.

Meus dois Mestres estavam profundamente perturbados. Não com

74

minha cegueira, mas com a ressurreição de Sinésio... Agora, de repente, daquela maneira miraculosa, aparecia o Mancebo ressuscitado, para reivindicar seus direitos à herança e à vingança do Pai. Sim, porque essa era a opinião unânime do Povo: chegara o Justiceiro, o vingador esperado. O fato é que, talvez por causa disso, nem Samuel nem Clemente se dignaram a dar importância à minha cegueira. Talvez fosse por causa da inumanidade que caracteriza sempre os grandes homens, que não costumam descer de suas altas preocupações para dar importância a coisas de pouca monta como a simples desgraça individual de um ser humano (SUASSUNA, 2007, p.594).

No Romance d’A Pedra do Reino, a catarse parece também tomar proporções que vão

além da figura de seu protagonista. O povo de Taperoá, nos relatos de Pedro Dinis

Quaderna, parece constantemente se deixar afetar pelos infortúnios que acomete a família

Garcia-Barretto: a morte do patriarca Sebastião Garcia-Barretto e o desaparecimento de seu

filho caçula, Sinésio. Esse “deixar-se afetar” pode ser também um sinônimo bastante

adequado para a catarse. Como já sabemos, a morte de Sebastião Garcia-Barretto e o

desaparecimento de seu filho Sinésio é um elemento potencialmente catártico, pois ambos

eram figuras extremamente carismáticas na vila de Taperoá, principalmente entre os mais

pobres.

A música na tragédia também é um fator que desencadeia a catarse através de

diversos mecanismos. Sandra Luna (2005) ressalta que a música é parte significativa na

estrutura da tragédia, sendo o canto a forma principal de expressão do coro e de

comunicação entre os atores. Sandra Luna também nos apresenta como uma terceira

alternativa da aplicabilidade da música na tragédia; o kommoi29, que está diretamente ligado

ao sofrimento (páthos) do herói trágico. Bem sabemos da limitação da obra escrita na

transmissão desses efeitos de caráter puramente sinestésico, e nesta ocasião a obra

televisiva em formato de minissérie se mostra uma ferramenta eficaz na produção da

catarse através da imagem e da música.

Ainda que a obra televisionada não seja objeto desta pesquisa, por meio dela consigo

exemplificar melhor o kommoi, resultante da morte de Sebastião Garcia-Barretto. Para

produzir esta atmosfera, a Rede Globo coloca em cena uma sonoplastia densa acompanhada

por incelenças.30 No momento da morte de Sebastião Garcia-Barreto podemos presenciar o

kommoi de toda uma população, em especial de seus parentes mais próximos como seu

sobrinho Pedro Dinis Quaderna e seu filho Arésio Garcia-Barretto.

29 Para Aristóteles, os kommoi são cantos e lamentos do ator em cena. (1452b, 14-25) 30

Canto fúnebre predominante no sertão nordestino, cantado por mulheres.

75

O páthos (sofrimento) e o kommoi (bater no peito), presentes na família de Sebastião

Garcia-Barretto naquele momento, produz a catarse naquela população que presencia

aquele fenômeno trágico, que busca a purgação através daquele sofrimento. A população

sofre conjuntamente a dor dos heróis ali presentes, e toda essa comoção na minissérie busca

produzir uma catarse no espectador. A purgação das paixões parece ser, majoritariamente

falando, o fim último da catarse. O filósofo Hegel parece delegar a catarse como o “fim

último” da arte em geral. Sem fazer qualquer menção à comédia, Hegel entende que a

catarse é capaz de purgar as paixões do espectador ao ponto de ele adotar uma postura

analítica em relação a esses sentimentos impulsivos. Induzindo ao homem ao

apaziguamento do seu lado intempestivo.

No entendimento de Hegel, a selvajaria se dá quando a força e o poder do homem são

dominados pelas paixões, como podemos perceber nos heróis gregos. Para Hegel, esta

selvajaria deverá ser apaziguada pela arte na medida em que esta represente o homem da

maneira como ele é, evidenciando seus instintos e paixões. Através desta representação das

paixões, a arte mostra ao homem o que ele é, dando-lhe a consciência ampliada. Hegel

afirma que aí reside a ação atenuadora da arte que, por este meio, coloca o homem frente

aos seus instintos como se estes lhe fossem exteriores. Por este meio, o filósofo entende que

a arte é libertadora.

A catarse então, para Hegel (1993), tem como objetivo o “alívio”. Para o filósofo;

“chorar já é ficar consolado”. O alívio então leva para uma “objetivação dos sentimentos”,

e isto se dá quando o sujeito se mostra capaz de exteriorizar o seu sofrimento, tornando

ainda mais viável o consolo quando este é capaz de expressar sua dor em palavras, cânticos,

e figuras. Desta forma, a dor fica liberta através de sua objetivação, que é capaz de torná-la

exterior e impessoal. Nesta perspectiva, hegeliana, o sofrimento do herói trágico era

conhecido por seus espectadores, contudo a catarse era capaz de tornar este sofrimento

“distante” e “impessoal”, mostrando que a arte lograva desempenhar este tipo de

“purgação”.

O misterioso desaparecimento de Sinésio, logo após a morte de seu pai, dá vazão a

inúmeras elucubrações, conforme já sabemos que uns diziam que ele fugiu, outros diziam

que ele foi raptado, e seu irmão Arésio atestava que ele estava morto. O desaparecimento

76

de Sinésio, somado ao efeito disto provocado no povo da Vila de Taperoá, a catarse, fez

com que este desaparecimento resvalasse para a perspectiva mítica, tal qual acontece ao

herói da tragédia grega. A população de Taperoá passou a atribuir um caráter messiânico à

figura de Sinésio, alegando que o seu retorno findaria a miséria. Dessa forma, Sinésio é

elevado, através da catarse, à categoria de “natureza inorgânica”.31

O patriarca Pedro Sebastião Garcia-Barretto é também alvo da catarse, mais adiante

nesta dissertação o analisamos na perspectiva de um “bode expiatório”, um pharmacós,

pois este personagem é o único no romance que tem um fim decididamente trágico através

de seu assassinato. Assim como seu filho Sinésio, Pedro Sebastião torna-se uma “natureza inorgânica” por ser uma figura extremamente carismática e de notável força política na vila de Taperoá. Pedro Dinis Quaderna por sua vez busca tornar-se uma natureza inorgânica

pela perspectiva não-trágica, tornando-se o gênio da raça através da literatura.

A catarse em Pedro Dinis Quaderna resvala para o âmbito da comédia porque a sua

cegueira se deu em um momento em que havia uma explosão de acontecimentos na vila de

Taperoá, a questão da sua cegueira pareceu não ter menor importância frente aos

acontecimentos oriundos da cavalgada e do retorno do Rapaz-do-Cavalo-Branco (Sinésio) a

Taperoá. Toda a atenção da vila de Taperoá estava devotada ao tão esperado retorno

messiânico de Sinésio. Em razão disto e de outros aspectos é que, mais adiante, nesta

dissertação, classifico Pedro Dinis Quaderna como um “herói trágico às avessas”.

Contrapondo-se ao potencial bélico de heróis gregos como Aquiles, fisicamente bem

dotado, observamos que o sertanejo Pedro Dinis Quaderna trilha pelo caminho da astúcia,

tal qual Ulisses. A agressividade e impulsividade do herói trágico podem ser encontradas na

figura de Arésio (irmão de Sinésio e primo de Quaderna), este é descrito como um homem

forte, violento, e impulsivo. Nessa perspectiva, o apelo à catarse cômica em Quaderna fica

mais evidente porque aparentemente todas as ações de Quaderna partem primeiramente do

aspecto intelectual, tal qual Ulisses.

Ulisses não é, como Aquiles, um monumento de força com um

31

Hegel compreende que quando o herói trágico cumpria com seu destino ele se reconciliava com as forças

inorgânicas (leis humanas e divinas) e lograria assim elevar-se à condição de natureza inorgânica podendo,

muitas vezes, como no caso de Hércules, elevar-se à condição de divindade. Retomaremos essa idéia no

quarto capitulo deste trabalho.

77

sensível ponto fraco, um calcanhar fatal. Ele é inteiramente fraco para os padrões heroicos, e ao mesmo tempo quase impossível de derrotar, pois ele escapa, esgueira-se, transmuta-se. Outra passagem cômica da Odisséia é quando Polifemo, já cego e impotente, lembra-se da profecia segundo a qual um dia ele seria ferido por um tal Odisseu. “Eu porém, sempre imaginei que viria aqui algum varão alto e belo, revestido de grande robustez; ao invés, quem me cegou o olho foi um baixote, ordinário e fraco, que me subjugou pelo vinho.” (MENDES, 2008, p.211-212).

Podemos então concluir que a catarse no Romance d’ A Pedra do Reino se insere nas

múltiplas e, muitas vezes, vãs tentativas de se buscar um conceito fechado que apreenda a

sua função tanto na Poética quanto na obra de Ariano Suassuna. Tal indefinição acerca da

função da catarse é o que nos leva a admitir, nesta dissertação, a possibilidade de que o

Romance d’ A Pedra do Reino é também uma releitura satírica das tragédias e epopeias da

antiguidade clássica, submetidas a um hibridismo que se dá em razão da apropriação de

tragédias inseridas em contextos histórico-literários.

Após esta breve explanação de kátharsis e hamartia, trataremos agora de outra

característica indispensável para a obra trágica que é a peripeteia, ou simplesmente

“peripécia”. Aristóteles entende a peripécia como a mudança de ação em sentido contrário ao que foi indicado. A autora Sandra Luna, buscando simplificar o entendimento, esclarece

que a peripécia é a inversão da situação, é o “elemento surpreendente”. Se tomarmos como exemplo o mito de Édipo, podemos notar que sua hamartia ocasiona uma peripécia, uma

inversão da situação, uma vez que ele passa da condição de juiz a réu, tornando-se vítima

da lei que ele mesmo outorga. Na Pedra do Reino podemos notar que há uma inversão da

situação quando Quaderna recebe a intimação para depor acerca dos acontecimentos que

levaram ao assassinato de seu tio Pedro Sebastião Garcia-Barretto, colocando-se na

condição de suspeito de participação no crime.

Outro aspecto da Poética que já falamos anteriormente e agora passamos a

pormenorizar é o do reconhecimento (ou revelação), neste caso novamente a anagnórisis.

Para Aristóteles, é interessante que o personagem atue em estado de ignorância, e que o

reconhecimento venha à tona apenas depois de consumado o ato. Este reconhecimento

depois do ato consumado desqualifica o ato como “repugnante”, elevando-o à categoria de

“surpresa”. Como já falamos anteriormente, para o filósofo os tipos de reconhecimento são

quatro: sinais exteriores, inventiva do poeta, lembrança, e silogismo. Detalharemos cada

um deles a seguir:

78

No primeiro caso, por sinais exteriores, Aristóteles argumenta que este é a pior forma

de reconhecimento, que este apenas é utilizado quando não há artifício melhor. Esses sinais

podem vir na forma de objetos, cicatrizes, dentre outros. Esse primeiro tipo de

reconhecimento é enquadrado como o “pior” por não exigir nenhuma habilidade daquele

que o reconhece. Por não ser proveniente de uma peripécia, Aristóteles entende esta forma

de reconhecimento como a menos bela, a menos artística. Um exemplo bastante conhecido

desse tipo de reconhecimento se dá quando o herói Odisseu é reconhecido por uma criada

através de uma cicatriz na perna. A segunda forma de reconhecimento, que Aristóteles

também não a entende como “artística”, se dá por inventiva do autor, ou seja, o herói faz-se

reconhecer, o herói declara quem é. Conforme vemos na citação a seguir:

A segunda espécie é devida à inventiva do poeta, e por tal motivo, não é artística: assim, Orestes, na Ifigênia, faz-se reconhecer declarando ser Orestes à Ifigênia, graças à carta; mas Orestes declara aquilo que o poeta, e não a fábula, quer que ele declare. Este meio é vizinho daquele que declarei defeituoso, pois Orestes podia ter apresentado alguns sinais sobre si. O mesmo se diga da voz da lançadeira no Tereu de Sófocles (1454b, Livro XVI, 30-35).

A terceira forma de reconhecimento é o da lembrança, nesta situação Aristóteles

alega que um objeto evoca uma sensação anterior. Um exemplo desta forma de

reconhecimento está presente em Píramo e Tisbe,32 em que Píramo ao encontrar o véu de

Tisbe ensangüentado, supõe que ela havia sido devorada por algum animal, o objeto

ensanguentado é um signo forte o suficiente para produzir o engano e fazer com que

Píramo cometa suicídio.

A quarta, e a última, forma de reconhecimento, segundo Aristóteles, se dá através de

silogismos. Citemos aqui outro exemplo dado pelo próprio filósofo:

Em quarto lugar, há o reconhecimento proveniente de um silogismo, como nas Coéforas: apresentou-se um desconhecido que se parece comigo, ora, ninguém se parece comigo senão Orestes, logo, quem veio foi Orestes. Idêntico é o reconhecimento inventado pelo sofista Políido a propósito de Ifigênia, por ser verossímil que Orestes, sabendo que sua irmã tinha sido sacrificada, pensasse, que também ele seria (1455a, Livro XVI, 5-10).

Na Pedra do Reino, além de procurarmos entender a cegueira de Quaderna como uma

forma de anagnórisis, podemos detectar um exemplo irrefutável de anagnórisis aristotélica

32

Ainda que não seja uma tragédia grega, mas um conto de Ovídio, considero o exemplo útil para melhor

entender sobre o que Aristóteles falava.

79

no Folheto LXIII, folheto em que se dá o reencontro dos irmãos Sinésio e Silvestre.

Podemos observar que a forma de reconhecimento que Ariano Suassuna utilizou se

relaciona diretamente com a segunda forma proposta por Aristóteles, a da “inventiva do poeta”:

‘Sinésio?’ – indagou ele, esgazeado. – ‘O senhor disse Sinésio? Pelo amor de Jesus Cristo e de Nossa Senhora! Você é Sinésio? E Sinésio, mesmo? Eu sou Silverestre! Sou Silvestre, seu irmão!’ – Ao ouvir essas palavras, Sr. Corregedor, dizem que Sinésio, profundamente emocionado, deu um passo para o irmão, o que foi o suficiente para que os dois ficassem face a face. Silvestre parou e sua emobilidade era tanto maior quanto tinham sido grandes os tropeções e carreiras até ali. Dizem que, colocando as duas mãos nos ombros de Silvestre, Sinésio disse algumas palavras em voz baixa e com os lábios trêmulos... “Então, Silvestre, ainda me conhece? Sou Sinésio! Sou eu, meu irmão!” E os dois se abraçaram, chorando. (SUASSUNA, 2007, p.439-440)

Dando continuidade aos conceitos trabalhados pelo filósofo, outro aspecto do trágico

que tem relação direta com o comportamento do herói é a hybris. Assim como a harmatia,

a hybris também é uma conduta do herói que deflagra o trágico através do descomedimento

e da desmedida.

Buscando facilitar o nosso entendimento, Patrice Pavis em seu Dicionário do Teatro

nos dá uma breve explicação acerca do conceito de hýbris: “Palavra grega para “orgulho ou arrogância funesta”. A hýbris leva o herói a agir e provocar os deuses, apesar de seus

avisos, o que vai dar na sua vingança e no seu fim trágico. Este sentimento é a marca da

ação do herói trágico, sempre disposto a assumir seu destino.” (PAVIS, 2003, p.197).

Ainda que a hýbris seja uma desmedida, vontade implacável, destemor, intransigência

do herói, e etc; é necessário que entendamos que a hýbris é, principalmente, um excesso do

herói frente aos deuses, esse excesso obriga os deuses a adotarem medidas drásticas contra

o herói. O tema da vingança percorre a narrativa de Suassuna, ainda que não se concretize.

Mesmo que a ideia de vingança seja fixa em Pedro Dinis Quaderna, não podemos

classificar como uma hýbris, pois essa vontade de Quaderna não possui qualquer ligação

com a religiosidade nem possui as características mencionadas. Neste sentido, há um

proposital adiamento do recurso trágico em função da determinação do épico; adia-se para

estender os relatos e para prolongar o fluxo dos acontecimentos, o que permite ao narrador

prolongar-se na descrição do espaço geográfico. Chamamos atenção para os dois tipos de

romance apresentado na obra: o versado/rimado e o desversado, como formas de encobrir

os elementos trágicos em jogo na obra. A metalinguagem aqui é fundamental para

80

compreendermos os artifícios do autor-narrador frente à linguagem. Suassuna ao escrever a

Pedra do Reino, escreve sobre a estética do romance, incorporando elementos da tragédia e

da comédia em permanente diálogo com o fluxo narrativo da obra.

O rompimento, de modo intempestivo, com a história narrada, surge a partir desse

jogo entre o que é dito, contado e o que é teorizado na narrativa, incluindo a explicação e

justificativa do autor pela forma como escolhe o título de sua obra. Abundam no texto

exemplos dessas “intromissões poéticas”. Ao mesmo tempo, entregava-me furiosamente à leitura dos folhetos e romances, de que ia tomando conhecimento por intermédio de meu Padrinho e professor João Melchíades. Quando o romance era muito grande, era publicado em folhetos separados, como a História de Alonso e Marina, dividido em dois: Alonso e Marina, ou A Força do Amor e A Morte de Alonso e a Vingança de Marina. Este, era uma mistura de romance de amor com romance cavalariano de heroísmos, e eu achava maravilhosos esses títulos duplos, “isto ou aquilo”. Outras vezes, o folheto trazia na primeira página, por baixo do título, uma espécie de explicação, destinada a causar “água na boca”, aos que iam comprá-lo. O PRINCÍPE JOÃO SEM MEDO E A PRINCESA DA ILHA DOS DIAMANTES (SUASSUNA, 2007, p. 101).

Ou de modo ainda mais enfático, quando se refere aos tipos, acima assinalados do

romance:

Começou ensinando-nos que havia dois tipos de romance: o “versado e rimado”, ou em poesia; e o “desversado e desrimado”, ou em prosa. Era, mesmo, um exercício que nos obrigava fazer: pegar um romance desrimado qualquer e “versá-lo”, contando em verso o que era contado em prosa. (SUASSUNA, 2007, p. 92)

A esse caráter metaliterário, apresentado em diálogo permanente entre os três

gêneros, percebemos surgir o espaço biográfico como intersecção entre o plano narrativo e

o pano de fundo crítico-literário presente na obra.33

33 “Na verdade, A Pedra do Reino surgiu de dois fracassos meus. Eu, nos anos de 1950, tentei escrever uma biografia do meu pai. Mas eu não consegui levar adiante, aquilo era como se eu estivesse mexendo numa ferida nunca cicatrizada, não consegui. Aí eu tive o primeiro fracasso, que eu não consegui fazer essa biografia. Depois eu tentei fazer um longo poema épico sobre ele que se chamaria Cantar do Potro Castanho, mas eu também não conseguia. A poesia dava um distanciamento maior mesmo, mas mesmo assim eu não conseguia. Então eu deixei pra lá, e disse: Eu não vou tentar mais nada nessa vida não. Aí, em 1958, depois de eu ter deixado isso pra lá, comecei a querer escrever um romance que terminaria sendo o Romance d’A Pedra do Reino. E sem eu perceber, a Pedra do Reino terminou sendo o substituto ficcional do romance, da biografia e do romance, e do poema que eu não tinha conseguido escrever. Eu só percebi depois. Depois eu fiz várias versões, eu faço sempre várias versões depois que eu escrevo.” (Cit. Entrevista)

81

Em relação aos dois últimos aspectos aristotélicos para a composição do trágico

(unidade e verossimilhança), podemos, objetivamente, expor que a unidade aristotélica

consiste na linearidade dos fatos, consiste na ideia de que a obra para ser bela precisa ter o

começo, o meio e o fim. Ainda na ideia de “unidade”, Aristóteles defende que as partes

devem se relacionar entre si, as partes devem estar unidas por um só corpo. Conforme

vemos na citação a seguir:

Na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a suspensão ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo (1451a, Livro VIII, 30-35).

No romance de Suassuna, as unidades permanecem, a utilização do flashback muda a

ordem começo, meio e fim, mas a narrativa permanece linear. A ideia de unidade não é

quebrada, pois nós a reconhecemos. Em relação à verossimilhança, retomando o que foi

exposto anteriormente, para Aristóteles não importava que o poeta relatasse os fatos tais

quais eles são, pois esta é a função do historiador. Para ele, é importante que a fábula seja

verossímil, ou seja, prenhe de possibilidades que não possuam qualquer compromisso com

a realidade palpável. Fazer com que o público “acredite” no que está assistindo é um

recurso da verossimilhança que posteriormente deságua na kátharsis. Devido ao modo

como Suassuna inverte as categorias do trágico e também do cômico, em função, do plano

irônico-narrativo adotado, constatamos que o personagem Quaderna mescla a função do

narrador e do historiador, através das categorias do trágico e do cômico. Na qualidade de

narrador-personagem, distanciando-se da realidade e criando um universo imaginário

inverossímil; por outro lado, do ponto de vista do historiador, ele atravessa a experiência de

seu tempo, apontando para inúmeras referências históricas e factuais. Como leitor assíduo

de Aristóteles e de Horácio, Suassuna estabelece um desafio ao modelo proposto:

primeiramente, assume suas categorias como modo de problematizá-las ao longo da obra.

Os conceitos de Aristóteles perpassam praticamente toda a criação literária do mundo

ocidental. A expansão de seus conceitos pelo mundo deve-se, primeiramente, a seu

discípulo, Teofrasto. Os autores latinos foram grandemente influenciados pelos

ensinamentos transmitidos por Teofrasto. Como bem sabemos, a cultura grega influenciou

significativamente a cultura latina, a Poética de Horácio é uma evidência clara de como a

82

Poética aristotélica repercutiu para além do território grego. Apesar de ter sido influenciado

por Aristóteles, Horácio acrescenta outros aspectos que Aristóteles não havia pensado,

conforme podemos ver nesta citação:

Não basta serem belos os poemas; tem de ser emocionantes, de conduzir os sentimentos do ouvinte onde quiserem. O rosto da gente, como ri com quem ri, assim se condói de quem chora; se me queres ver chorar, tens de sentir a dor primeiro tu; só então, meu Télefo, ou Peleu, me afligirão os teus infortúnios; se declamares mal o teu papel, eu dormirei ou desandarei a rir. Se um semblante é triste, quadram-lhe as palavras sombrias; se irado, as carregadas de ameaças; se chocarreiro, as joviais; se severo, as graves. A natureza molda-nos primeiramente por dentro para todas as vicissitudes; ela nos alegra ou impele à cólera, ou prostra em terra, agoniados, ao peso da aflição: depois é que interpreta pela linguagem as emoções da alma. Se a fala da personagem destoar de sua boa ou má fortuna, romperão em gargalhadas os romanos, cavaleiros e peões. (HORÁCIO, Ars Poetica, 99-112).

Como se pode observar na citação, Horácio procurou dar maior concretude ao

conceito aristotélico de “verossimilhança”. Horácio também ressalta que a tragédia lida com temas de ordem pública, enquanto a comédia lida com temas de ordem particular. Os

temas da tragédia são de “ordem pública” porque interessavam a todos da polis, uma vez

que o herói trágico era o responsável pelo mal que assolava a sua cidade. Desta forma, o

sofrimento do herói justifica-se pelo fato de ele ser um pharmacós, ou, melhor dizendo, um

“bode expiatório”. Entende-se que o intenso sofrimento do herói é, ao mesmo tempo, o

“remédio” e o “veneno” para a sociedade. Desta forma, o herói trágico se traduz num modelo de ação que deve ser evitado pelo cidadão da polis.

Antes de apontarmos a presença do pharmacós na obra, é pertinente discorremos um

pouco sobre a função pharmacós. No romance de Suassuna, presenciamos o choque direto

e, muitas vezes, transversal entre a cultura oral e a cultura escrita. Aliás, do ponto de vista

estrutural, toda a obra sustenta-se por meio dessa relação hierárquica e contrária, a escrita

ou escritura aparece como forma de preservação, pela memória, de agrupamentos de

elementos da oralidade. Desta forma a obra parece transitar pelas fronteiras entre a escrita e

a oralidade, tal qual o faz pela forma do trágico e do cômico. No decorrer da leitura,

podemos observar que o constante enxerto de poemas, cantigas, e romances populares, é

uma forma de deslocar a escrita, evocando aspectos da oralidade, fora e dentro do campo

convencional. O tema do pharmacós aparece desdobrado como um dos princípios do

conceito de “escrita”, trabalhado exaustivamente por Jacques Derrida, através de sua leitura

83

da obra de Platão e do diálogo de Sócrates. 34

No Romance d’A Pedra do Reino, vemos o veneno se transformar em remédio para

Quaderna, o julgamento opera em duplicidade, ocorrendo de modo a funcionar como

vantagem ao projeto criativo do protagonista. O inquérito é uma solução que condena e

soluciona ao mesmo tempo: condena a personagem, ao mesmo tempo em que o liberta da

escrita. O plano da memória é revisitado, sendo apresentado em discurso sobre um vivido

que se transforma em ação. Recurso que aproxima o épico da estrutura dramática por meio

da simultaneidade entre escrita e oralidade. Segundo Maria Helena Werneck, este traço

aparece fortemente na encenação produzida por Antunes filho e advém da própria estrutura

do romance.

A construção da performance vocal de um narrador memorialista que precisa situar-se no silêncio da introspecção, necessário para se constituir o espaço da memória, mas que não se isola do fluxo sonoro que brota de suas lembranças e de suas miragens. Na encenação, prevalece, assim, a percepção de Ariano Suassuna sobre um regime de vocalização que difere da tradição do teatro naturalista (WERNECK, 2009, p.77).35

Voltando ainda para a questão do pharmacós, no Romance d’ A Pedra do Reino, o rei

Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto pode ser pensado também por essa via. Um dos

principais motes que conduz a narração do romance, por Pedro Dinis Quaderna, é a morte

misteriosa do seu tio e padrinho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto. Analisando Pedro

Sebastião Garcia-Barreto na perspectiva do pharmacós, podemos perceber outra

semelhança entre este rei e os pharmacós da tragédia grega. Nas tragédias de Ésquilo,

Sófocles, e Eurípedes, encontramos reis assassinados como forma de vingança, purificação,

34

“Eis aqui, oh, Rei”, diz Theuth, “um conhecimento (tò máthema) que terá por efeito tornar os Egípcios mais instruídos e mais aptos para se rememorar (sophotérous kai mnemonikotérous): memória e instrução encontraram seu remédio (phármakon). (...) E o rei replicou: “Incomparável mestre em artes, oh, Theuth (O tekhnikótatú Theúth), uma coisa éo homem capaz de trazer à luz a fundação de uma arte, outra aquele que é capaz de apreciar o que esta arte comporta de prejuízo ou utilidade para os homens que deverão fazer uso dela. Neste momento, eis que em tua qualidade de pai dos caracteres da escritura (pater òn grammáton), atribuíste-lhe, por complacência para com eles, todo o contrário (tounantíon) de seus verdadeiros efeitos! Pois este conhecimento terá, como resultado, naqueles que o terão adquirido, tornar suas almas esquecidas, uma vez que cessarão de exercer sua memória (léthen mèn en psuchais paréxei mnémes ameletesía): depositando, com efeito, sua confiança no escrito, é do fora, não do dentro e graças a si mesmos que se rememorarão das coisas (oukéndothen autoús huph’autun anamimmneskomènous). Não é, pois, para a memória, mas para a rememoração que tu descobristes um remédio (oùkoun mnémes. Allá hupomnéseos, phármakon heüres) (PLATÃO, 274e-275b, apud DERRIDA, 2005, p.21-49).

35 A autora refere-se à montagem com estreia no Rio de Janeiro SESC-Tijuca, 06/08/2007. Ano da 9ª Edição do romance de Suassuna, publicada pela José Olympio.

84

entre outros motivos.

Paralelamente à genealogia trágica de Quaderna, há uma genealogia do impuro e do

perverso, esboçada, sobretudo, na figura de seu avô Dom Ferreira Quaderna e de seu

padrinho Dom Pedro Sebastião Gracia-Barreto, cujas mortes não são solucionadas, nem

vingadas. Em verdade, se no primeiro caso, a morte é justificada, no segundo caso, ela é

esquecida, jogada no ostracismo, servindo apenas para reforçar a narrativa hiperbólica do

protagonista-narrador. A ausência de punição e vingança aproxima ambas as figuras do

modelo do Homo Sacer, bem como do pharmacós. Segundo Giorgio Agamben:

Tem-se discutido muito sobre o sentido desta figura, na qual alguns quiseram ver ‘a mais antiga pena do direito criminal romano’, mas cuja interpretação é complicada pelo fato de que ela concentra em si traços à primeira vista contraditórios. [...]. A contradição é ainda acentuada pela circunstância de que aquele que qualquer um podia matar impunemente não devia, porém ser levado à morte nas formas sancionadas pelo rito (neque fas est eum immolari; immolari indica o ato de aspergir a vítima com a mola salsa antes de sacrificá-la). (AGAMBEN, 2010, 74).

O herói frequentemente servia como uma espécie de “bode expiatório”, um remédio, ou melhor; o pharmacós para purgar o mal de toda a polis, conforme já explicado

anteriormente. Retomaremos mais à frente, e de modo mais detalhado, a noção de Homo

Sacer no capítulo dedicado aos aspectos míticos e místicos no romance.

85

V - CAPÍTULO 4

“A verdadeira alegria, Adalberto, a alegria ardorosa e pura que nós somente pressentimos, é impossível para o homem assim como a paz e a felicidade só os ideais mesquinhos dos frívolos,

covardes e superficiais. Isso, no plano individual, como eu dizia. Se você pensa em todos os homens, esse ideal mesquinho de felicidade e paz se amplia, em tamanho e estupidez, no ideal da

justiça. O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um estilo em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza,

despedaçado, triste, falhado, enigmático e trágico.” (SUASSUσA, 200ι, p. θ3ι). DESDOBRAMENTOS PÓS-ARISTOTÉLICOS: ASPECTOS MÍTICOS E MÍSTICOS

NO JOGO TRÁGICO

Na contramão de Aristóteles, Nietzsche admite a hipótese de que o trágico, bem como

o pessimismo, não é necessariamente sinônimo de decadência. No que concerne à tragédia

em si; a decadência não é obrigatoriamente uma completa decadência por que a queda do

herói pode significar a salvação da pólis. Partindo para o aspecto filosófico, Nietzsche

cogita a possibilidade de existência de um “pessimismo da força”, defende uma possível

predileção intelectual do homem pelo horror, pela crueldade, pela tragédia em si. Buscando

esclarecer melhor, Nietzsche argumenta que uma vida “plena”, e sem sofrimentos, seja,

talvez, monótona. O filósofo então questiona se o excesso de força vital não poderia

ocasionar algum sofrimento, pois o homem parece estar sempre em busca de algum

oponente para combater e derrotar.

Como podemos analisar a princípio, as diferenças entre as ideias de Aristóteles e

Nietzsche são claras. Enquanto, em Aristóteles, o herói é ignorante acerca de seu destino e

inevitavelmente vai ao encontro dele podendo ir contra ele, em Nietzsche o indivíduo parece

buscar o infortúnio intencionalmente. Essa característica do herói que busca o infortúnio é uma

característica bastante presente em protagonistas como Hamlet, Otelo, Macbeth, dentre

outros heróis da tragédia moderna. Contudo, de onde surgiu a tragédia? Segundo Nietzsche

ela advém desse excesso de vitalidade mencionado no parágrafo anterior. E a morte dela,

86

segundo o filósofo, adveio principalmente da dialética socrática, conforme podemos ver na

citação a seguir:

Em compensação, aquilo que causou a morte da tragédia, o socratismo da moral, da dialéctica, da ponderação e da serenidade dos homens, sim, o socratismo - não poderá ser tomado justamente por um sinal de decadência, de lassidão, de esgotamento, de anarquismo dissolvente dos instintos? A "serenidade helênica" dos últimos gregos, não teria sido um crepúsculo? O esforço epicurista contra o pessimismo, não seria apenas uma precaução do doente? A própria ciência, sim, a nossa ciência, encarada como sintoma de vida, que significa ela, afinal? Para que, ou antes, de que vem toda a ciência? Pois que? O espírito científico será mais do que receio e distração em frente do pessimismo? Mais do que um expediente engenhoso contra - a verdade? Ou, para falar moralmente, um análogo do medo e da hipocrisia? Ou, para falar imoralmente, da astúcia? Ai, Sócrates, Sócrates: era então esse o teu segredo? O misterioso ironista: era essa talvez a tua ironia? (NIETZSCHE, 1972, p.18).

Pode-se entender que a morte, ou o fim, da tragédia grega se deu em virtude da

tentativa da dialética socrática em dar-lhe justificação moral. Bem sabemos que o

sofrimento do herói trágico se dava em razão de suas ações. A encenação da tragédia

mostrava ao espectador que aquelas atitudes levavam a um fim trágico. Apesar de o herói

ser um arquétipo da conduta humana na tragédia, ele não possuía necessariamente um

compromisso com a moral. Já no âmbito histórico, a morte da tragédia grega se deve ao

fato de não existir mais a polis, Felipe da Macedônia, depois Alexandre, finalizam a

democracia instaurando um império. Desta forma, a tragédia grega só era possível com a

existência da democracia.

Nietzsche tece críticas mordazes à moral. O filosofo entende a moral como um

falseamento da verdade, uma negação da natureza, um estímulo à ignorância, uma inibição

da curiosidade natural do homem. A sujeição do homem a leis morais, cristãs, dentre

outras, o condiciona a uma prisão ideológica, onde é quase impossível pensar e agir sob

outro prisma que não aquele pré-determinado. Nietzsche também acredita que muitos

homens utilizam-se da moral para justificar suas ações ante a opinião dos outros, o filósofo

ainda acrescenta que “a moral não é outra coisa que a linguagem figurada dos afetos”:

“Deve considerar-se toda a moral sob esse prisma: a moral e a Natureza tornam odioso o

laissez-aller, o excesso de liberdade, e criam a necessidade de estreitos horizontes, de

empresas mais próximas que restringem a perspectiva e, portanto, de certo modo,

demonstram que a ignorância é condição indispensável da vida e de seu desenvolvimento.”

(NIETZSCHE, 2012, p.103)

87

A perspectiva do “arquétipo” é diferente para os politeístas gregos em relação aos

cristãos. No tempo das tragédias não existia, todavia, a noção de “pecado”. A tragédia não

possuía necessariamente o compromisso de “educar” seus espectadores, tampouco torná-los

“melhores”, ainda que a tragédia pudesse produzir consequências relevantes para a

Paideia36. Podemos também entender que o objetivo da Arte era estético e que os fatores

políticos e sociais levantados, como a kátharsis, eram consequências da ação trágica, e não

necessariamente a sua função. Contudo, como a concepção majoritária entende que a

tragédia tinha o dever de proporcionar a kátharsis, continuaremos a admitir esta hipótese. O

que leva este trabalho, porém, a descartar qualquer compromisso dos tragediógrafos com a

moral é o fato de os próprios deuses da Antiguidade (gregos e latinos) não possuírem esse

compromisso, conforme nos esclarece Nietzsche:

Quem se aproximar dos deuses olímpicos à procura de elevação moral, de santidade e de imaterialidade espiritual; quem for procurar nos olhares deles a expressão do amor e da piedade; se tiver o seu coração formado por outra disciplina religiosa, em breve desistirá de conviver com eles, irritado e desiludido. No mundo olímpico nada há que lembre o ascetismo, a imaterialidade, ou o dever: há uma vida exuberante, triunfante, na qual tudo, tanto o bem como o mal, se encontra igualmente divinizado. E diante de tão fantástico extravasar de vitalidade, o filtro mágico foram esses homens alegres até à loucura, buscar a vivificadora embriaguez, porque, de qualquer lado que observe, lhe aparece sempre o Heleno cujo sorriso amável "paira como símbolo voluptuoso", imagem ideal da perfeita existência (NIETZSCHE, 1972, p.46).

A partir do momento que Sócrates, na República de Platão, incentiva seus discípulos

a adotarem uma postura reflexiva diante dos fatos, enquanto ensina que a impulsividade

deve dar lugar à razão, enquanto ensina que o mal não deve ser punido com o próprio mal,

podemos compreender porque Nietzsche formula que aí reside a morte da tragédia. A

dialética socrática parece assim eliminar um dos principais quesitos da tragédia: a hybris.

Com a eliminação da hybris, morre a arrogância e a intransigência natural do herói

trágico, e essa postura é o que ocasiona a morte do trágico. Buscando dar maior amplitude

aos possíveis “malefícios” da dialética socrática para Nietzsche, podemos entender que o

36 A Paideia era um modelo educacional vigente na antiga Grécia, o modelo consistia em preparar o indivíduo desde a infância para a vida adulta. Os gregos estavam mais preocupados na formação do éthos (hábitos) do que de ofícios, ou seja, o grego dava maior importância para a formação política de seu cidadão (JAEGER, 1995).

88

filósofo se opõe à passividade de Sócrates porque ela elimina a “vontade de potência”, ela

estimula a renúncia ao poder.

Um aspecto ressaltado e valorizado, por Nietzsche em sua Origem da Tragédia é o

conceito de “princípio de individuação” formulado pelo filósofo, tido como seu antecessor,

Schopenhauer. O “principio de individuação” consiste no autocontrole e, até mesmo na

aparente indiferença, do herói em relação ao meio. Em outras palavras, o princípio de

individuação é a aparente impassibilidade do herói diante da adversidade, Schopenhauer

usa a metáfora do “Véu de Maia” para exemplificar. O herói permanece impassível até que

algo que aconteça seja forte o suficiente para tirá-lo de seu “transe”, vejamos a citação a

seguir:

As palavras de Schopenhauer a respeito do homem envolvido pelo véu de Maia (Mundo como Vontade e Representação, I, 416): ‘Como um pescador no seu barco, tranquilo e pleno de confiança na sua embarcação, no meio de um mar desmesurado que, sem limites e sem obstáculos, levanta e derruba montanhas de ondas cheias de espuma, mugindo e bramindo, o homem individual, no meio de um mundo de dores, permanece sereno e impassível, porque se apóia confiadamente no "principium individuationis”. Sim, poder-se-ia dizer que a confiança inabalável neste princípio, e a serenidade calma de quem nele se compenetra, encontraram em Apolo a expressão mais sublime, e poder-se-ia também reconhecer em Apolo a imagem divina e esplêndida do principio de individuação, cujos gestos e olhares nos falam de toda a sabedoria e de toda a alegria da "aparência" ao mesmo tempo em que nos falam da sua beleza. (NIETZSCHE, 1972, p.38 e 39)

No Romance d’ A Pedra do Reino, podemos ver que o “Véu de Maia” acomete o

protagonista Pedro Dinis Quaderna no decorrer de toda a obra. Esse estado, naturalmente

ludibriante, do personagem só é de fato interrompido quando recebe uma intimação para

prestar depoimento acerca da misteriosa morte de seu tio Dom Pedro Sebastião Garcia-

Barretto. Ao receber a intimação, Pedro Dinis Quaderna se deixa consumir pelo temor da

possível prisão, em seu desespero convoca seus dois mestres, Professor Clemente Ravasco

e Dr. Samuel Wandernes, para implorar-lhes ajuda.

Assim como um autêntico herói trágico, Pedro Dinis Quaderna encontra-se sozinho

mesmo cercado por pessoas próximas, pois estas pessoas nada podem fazer para auxiliá-lo,

o auxílio é, inclusive, negado por seus mestres, pois ambos alegam que Pedro Dinis

Quaderna não tem importância alguma para ser preso, pois esse inquérito poderia ser na

verdade, uma forma da justiça chegar aos principais extremistas de Taperoá, que seriam

eles.

89

Estava nesse ambiente, quando chegou à nossa Vila de Taperoá um certo Juiz-Corregedor, homem poderoso e perigoso, aumentando os boatos que já corriam sobre a situação política. Por falta de sorte minha, fora então nesse ambiente carregado de ameaças que achara de suceder o desenlace de toda aquela terrível desaventura, na qual eu me metera em 1912, e que assumira aspectos graves em 1930, culminando com os acontecimentos desencadeados de 1935 a 1938, com a chegada do Rapaz-do-Cavalo–Branco. Mal chegara, o Corregedor, homem arguto, se apercebera do verdadeiro alcance de tudo aquilo. Telegrafou então ao Tribunal da Paraíba pedindo uma licença especial, e abriu o inquérito, reabrindo os velhos processos, desencavando autos empoeirados, farejando e esmiuçando tudo como um cachorro danado... Aí, ocorrera o pior, para mim: alguém me delatou ao Corregedor como implicado nos acontecimentos, desenterrando, com a denúncia velhas tramas sangrentas e enigmáticas que todos nós preferíamos sepultar na pedra, debaixo de sete chaves, mas que reapareciam agora, lançando o desassossego, o sofrimento e o medo sobre a nossa família e sobre algumas pessoas mais influentes e poderosas do lugar (SUASSUNA, 2007, p.246-247).

A abrupta interrupção do “principio de individuação” ocasiona o trágico. Como

podemos ver no trecho em que Nietzsche se refere a Schopenhauer: para Nietzsche, o deus

Apolo manifesta-se como a imagem “esplêndida” do princípio de individuação. A ruptura deste estado, do princípio de individuação, resulta no que Nietzsche chama por “estado dionisíaco”. Antes de discorrer sobre o “estado dionisíaco”, é importante entender que Nietzsche utiliza a dicotomia entre as duas divindades gregas para compor sua noção de

tragédia. Na concepção de Nietzsche, essas divindades rivalizam entre si constantemente no

íntimo do herói trágico.

No decorrer de praticamente toda a trama, o herói se deixa guiar unicamente por sua

“vontade” que, destituída de conhecimento, o envolve em um estado de autoconfiança, o “principio de individuação”, formulado por Schopenhauer. Esse estado é capaz de torná-lo

sereno, arrogante, e indiferente a tudo; uma caracterização apolínea da hýbris aristotélica.

Tanto na harmatia quanto na hýbris o herói se deixa reger por sua vontade desmedida, que

Nietzsche classifica como “dionisíaca”, uma vez que a divindade Apolo defende o respeito pela justa medida. Após cometer o erro que deflagra o trágico é que Apolo,

simbolicamente, surge na anagnórísis, para presentear o herói com sua “consciência aniquiladora” proporcionada pelo reconhecimento do erro e pelo desrespeito à medida.

Desta forma a anagnórisis surge como o reconhecimento de uma realidade que antes era

desconhecida ou desprezada pelo herói.

90

Como devemos saber Dioniso também é tido como a divindade do horror, do sofrimento

doentio, bem como a alegria inebriada. Podemos dizer que enquanto Apolo é a divindade que

rege o aspecto racional do homem, Dioniso encontra seu domínio no aspecto visceral do ser

humano. Apolo é, entre muitas atribuições, o deus da consciência e da clareza. Essa clareza

surge para o herói na anagnórisis, e essa clareza conduz o herói ao reconhecimento dos seus

erros, e esse reconhecimento o conduz a um sofrimento visceral e irracional que o leva a

tomar atitudes catastróficas. Esse “sofrimento visceral” é o que Nietzsche entende por “estado dionisíaco”. Uma vez regido pelo “estado dionisíaco”, o herói trágico adentra um caminho sem retorno, o herói agora segue rumo a seu destino sem titubear. Esse estado

dionisíaco é um dos aspectos que difere grandemente Édipo de Hamlet. Hamlet, no

decorrer de toda a peça busca certificar-se de que o seu pai foi morto por seu tio, que agora

ocupava o trono. Em busca desta certeza, Hamlet trilha um caminho aparentemente mais

racional do que Édipo, eliminando qualquer impulso que o levasse a vingar

impensadamente a morte de seu pai, pois mesmo após o surgimento de diversas evidências

de que seu tio Cláudio havia matado seu pai, Hamlet hesitava temeroso de cometer

qualquer injustiça, temeroso de que aquilo que o espectro de seu pai lhe havia dito fosse

uma mera ilusão. Desta forma, podemos arriscar que o “estado dionisíaco” tem menos influência no drama moderno do que na tragédia grega. Nesta perspectiva o herói moderno,

diferentemente do clássico, mostra-se mais apto a refletir, raciocinar e hesitar, em vez de ir

diretamente ao encontro de seu destino fatídico. Desta forma, a exemplo deste herói

moderno, Hamlet adota uma postura racional, reflexiva, e investigativa, que faz com que o

receptor da obra (leitor ou espectador) não possua absoluta certeza do destino do herói.

O embate entre Apolo e Dioniso no íntimo do herói trágico parece não possuir um

vencedor. Podemos entender que na tragédia grega, esses deuses dicotômicos estão

imbricados, ambos devem coexistir, a eterna luta entre essas divindades, entre a razão e o

instinto, é uma desarmonia necessária para manter acesa a chama da tragédia. A tragédia

grega mostra-nos que entre razão e instinto não é possível determinar qual é o mais forte no

homem. Dessa forma, Nietzsche entende que razão e instinto se complementam no âmago

do herói trágico. Pode-se arriscar que o “estado dionisíaco” no romance de Ariano

Suassuna ocorre quando Pedro Dinis Quaderna faz menção ao vinho da Pedra do Reino,

vinho que é capaz de provocar alucinações em quem bebe e que, ironicamente, foi o que

curou a já mencionada cegueira de Quaderna.

91

Partindo para aspectos receptivos da obra, a kátharsis tem o seu vigor na ordem da

recepção da obra por parte da plateia. Aristóteles, como dito anteriormente, defende a

comoção, o temor e a piedade como formas de purgação, e purificação, do espectador

mediante o sofrimento do herói. Também na contramão de Aristóteles, o filósofo alemão

Friedrich Schiller (1964) defende a existência do prazer por parte do espectador em relação

ao sofrimento do herói. Schiller defende que o terror, a comoção, a piedade, são também

fontes de prazer. E este prazer é o que ocasiona o maciço interesse do homem pelo

fenômeno trágico.

Ao discorrer acerca da arte trágica, Schiller argumenta que o estado de emoção, por si

só, tem algo que apraz o indivíduo, independentemente das consequências oriundas desse

estado. O deleite proporcionado por esse estado de emoção faz com que o indivíduo queira

experimentá-lo ainda que isto lhe custe algum sacrifício. Schiller argumenta, todavia, que a

experiência nos mostra que a emoção desagradável é a que nos exerce maior atração.

Acerca desse prazer, Schiller explica:

Tal como o sentimento do sublime, a comoção compreende dois elementos: dor e entretenimento. Assim, aqui como lá, é, uma inadequação que fundamenta a adequação. Assim, parece haver uma inadequação na organização da natureza, quando vem a sofrer o homem que não está destinado a sofrer, inadequação essa que nos faz padecer. Esse padecimento porém, causado pela inadequação, é a adequação ao todo da natureza racional e, na medida em que nos incita à atividade, adequado também à sociedade humana. Necessariamente, pois, teremos de sentir prazer no próprio desprazer que em nós desperta a inadequação, porque aquele desagrado acaba tendo uma finalidade superior. A fim de determinar, ao nos comovermos, se há de sobressair o prazer ou o desprazer, importa saber se acabará preponderando a representação da inadequação a fins ou a da adequação a fins. Isto, no entanto, só pode depender do número dos fins alcançados ou violados, ou de sua relação com o último de todos os fins. (SCHILLER, 1964, p.19)

Para maior clareza do que diz Schiller; no Romance d’ A Pedra do Reino, sabemos

que o protagonista Pedro Dinis Quaderna é intimado a depor ao corregedor sobre a

enigmática morte de seu padrinho, o rei Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto. A

enigmática morte do padrinho contada por Quaderna é capaz de produzir fascínio e

curiosidade no corregedor e no leitor da obra. Acerca disso, Schiller ressalta: “Todos se

comprimem cheios de expectativa, em redor de quem narra a história de um assassinato;

avidamente devoramos as histórias de fantasmas mais estranhos, e tanto mais avidamente

quanto mais nos arrepiarem os cabelos.” (SCHILLER, 1964, p. 77)

92

Esse ‘rico-homem’ foi assassinado na sua ‘Fazenda da Onça Malhada’, no aziago dia 24 de Agosto de 1930, quando o nosso Reino do Sertão dos Cariris Velhos estava inteiramente conflagrado, incendiado e devastado pela ‘Guerra de Princesa’, travada naquele ano de 30 entre os sertanejos e o governo do Presidente João Pessoa. Terei ainda que voltar a esses acontecimentos, porque eles formam, nas expressões do Almanaque, ‘o centro e o nó do meu Enigma’. Por enquanto, porém, direi que a morte do velho Rei barbado e profético aconteceu em circunstâncias cruéis e absolutamente enigmáticas, indecifráveis: foi ele encontrado morto, assassinado a golpes de faca e trancado, sozinho, dentro do aposento, único mas elevado, de uma edificação quadrejada e alta que servia, ao mesmo tempo, de torre para a Igreja e de mirante para a Casa-Forte da fazenda (SUASSUNA, 2007, p.359-360).

Esse prazer, segundo Schiller, não tem qualquer comprometimento de ordem moral

ou política, diferentemente da kátharsis aristotélica, que defende a satisfação do espectador

oriunda da purgação e da purificação. Pois o prazer, sob o viés schilleriano, reside na base

dos entretenimentos mais corriqueiros, e não leva em consideração se ele é aprazível ou

doloroso. A morte de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto, na obra de Suassuna, é o fato

que ocasiona o desenrolar da obra. Schiller argumenta que se o trágico não fosse aprazível,

o homem não seria tão ávido por saber dos detalhes de um acontecimento catastrófico.

Peter Szondi esclarece que, para Hegel, a tragédia consiste na seguinte ideia: a natureza

ética, a fim de não se misturar com a natureza inorgânica, separa-a de si mesma como um

destino e se coloca frente a ela; e, pelo reconhecimento do destino na luta, a natureza ética é

reconciliada com a essência divina, como a unidade de ambas. (SZONDI, 2004). Buscando

compreender melhor como se dá esse processo formulado por Hegel, Peter Szondi nos

explica:

Esse processo, que Hegel equipara ao processo trágico como tal, pode ser ilustrado com o final da Oresteia de Ésquilo. O confronto entre Apolo e as Eumênides, consideradas como “poderes do direito que se encontra na diferença” – portanto como a parte inorgânica da eticidade, “diante da organização ética, o povo de Atenas” –, termina com a conciliação promovida por Palas Atena. A partir de então as Eumênides serão honradas como poderes divinos, “de modo que sua natureza selvagem seja apaziguada ao desfrutar, no altar erguido para elas lá embaixo na cidade, da contemplação de Atena sentada no trono que se localiza no alto da Acrópole.” (SZONDI, 2004, p. 38).

93

Entendendo o processo trágico como autodivisão e autoconciliação da ética, a

tragédia constrói assim a sua própria dialética. Essa dialética da tragédia, trazida por Hegel,

é um embate que ocorre constantemente no íntimo de cada individuo. Podemos entender

que o herói, bem como o indivíduo no geral, constantemente se encontra na necessidade de

rever ou enfrentar aquilo que entende por correto ou imutável com base na legislação

vigente (parte inorgânica da eticidade). Desta forma a natureza ética do herói abre mão de

sua natureza inorgânica (leis que o regem), colocando essa natureza na condição de

“destino”; como faz Édipo ao decretar a severa punição ao homem que porventura tenha

matado o próprio pai e casado com a própria mãe, a partir dali Édipo selava o próprio

destino.

Quando o herói cumpre com seu destino ele se reconcilia com as forças inorgânicas

que o regem, sejam elas divinas ou legais. Por este meio, o herói termina por elevar-se à

condição de natureza “inorgânica” tal qual uma divindade, a exemplo das erínias37 ao serem

obrigadas a cessar a perseguição contra Orestes, quando este é absolvido no julgamento

promovido por Palas Atena, em Atenas, e tal qual o próprio Hércules que é elevado à

condição de deus, pelo seu pai Zeus, após cumprir os seus doze trabalhos. Podemos assim

arriscar que Pedro Dinis Quaderna quando almeja tornar-se o “Gênio da Raça”, tal qual

Homero, busca também elevar-se à condição de “natureza inorgânica” para a posteridade,

ainda que essa elevação seja sempre projetada a partir da ironia e da paródia.

Para melhor entender como isso se aplica no Romance d’A Pedra do Reino,

consideremos que o juiz corregedor que chega a Taperoá é representante de uma natureza

ética inorgânica (a lei), Pedro Dinis Quaderna e a população de Taperoá compõem a

“eticidade orgânica”. A princípio, Quaderna é temeroso acerca do destino que o aguarda, a

cadeia. Porém, esse temor é substituído pela ânsia ao enxergar no inquérito a oportunidade

de enfim escrever a sua epopeia e tornar-se o “Gênio da Raça”. Em outras palavras, Quaderna abdica de seu temor, de sua natureza orgânica, coloca-se à frente dela, projetando

elevar-se à condição de natureza inorgânica.

Outra clara influência de Aristóteles para as formulações filosóficas acerca da

tragédia se dá em Schopenhauer. Como nós já entendemos, a hybris é a arrogância,

insistência, intransigência, e vontade obsessiva do herói em cumprir seu desígnio.

37

De As Eumênides, de Ésquilo.

94

Schopenhauer complementa Aristóteles ao formular que a vontade de cumprir seu destino é

destituída de conhecimento, conforme destacado por Szondi, a “Vontade” se guia

unicamente por seu impulso cego e incontrolável.

Schopenhauer, em seu discurso, defende que a “Vontade” é a única responsável pelo

destino do herói, assim como Aristóteles elege a hýbris como um dos fatores que conduz o

herói ao infortúnio. Sustentando a bandeira da “Vontade”, o pensamento de Schopenhauer

em relação ao reconhecimento oriundo do fator trágico, entendido por Aristóteles como

anagnórisis, funciona como algo já enraizado na “Vontade”, devendo subserviência para

com ela. Porém este reconhecimento volta-se contra a “Vontade” e, assim, ocasiona a

destruição do herói, conforme observa Szondi:

[...] tem lugar na tragédia a possibilidade que está contida em toda arte: o conhecimento, que está enraizado na própria vontade e deveria servi-la, volta-se contra ela. A apresentação da autodestruição da vontade fornece ao espectador o conhecimento de que a vida, como objeto e objetividade dessa vontade, "não é digna de sua afeição", levando-o à resignação. Com isso, na resignação a própria vontade, cuja manifestação é o homem, é suprimida em uma dialética dupla. Pois não só a vontade se volta contra si mesma no conhecimento que ela própria ‘acendeu como uma luz’, mas também traz à tona esse conhecimento por meio da ação trágica, cujo único herói é a vontade, que aniquila a si mesma. (SZONDI, 2004, p.54).

Ao relacionar o pensamento de Schopenhauer à conduta do personagem, Pedro Dinis

Quaderna, nota-se no decorrer da leitura que o inquérito e a privação de sua liberdade

através da cadeia já eram coisas previstas pelo personagem. Quaderna em poucas ocasiões

manifesta-se de maneira negativa em relação ao interrogatório, ele assumidamente enxerga

no interrogatório uma oportunidade para que, do interrogatório redigido pela escrivã, ele

possua sua matéria-prima para realizar o seu projeto:

... Mas por que o senhor diz que escreverá essa obra graças a mim? – Porque este inquérito a que estou respondendo é a grande oportunidade que tenho para escrevê-la! Começa que a Epopeia que vivo sonhando há anos é exatamente sobre o assunto do inquérito, isto é, sobre meu padrinho Dom Pedro Sebastião e seus três filhos Arésio, Silvestre e Sinésio, ou melhor, sobre o Rei Degolado, o Principe Proscrito, o Príncipe Bastardo e o Príncipe Alumioso da Legenda Ensanguentada do Sertão! (SUASSUNA, 2007, p.346).

95

Conforme mencionado anteriormente, τ Romance d’ A Pedra do Reino e o Príncipe

do Sangue do Vai-e-Volta é considerada, pelo próprio autor, a sua obra mais complexa e

pela crítica literária uma das obras mais complexas da literatura brasileira. Isso ocorre em

razão, principalmente, do hibridismo entre gêneros literários, trabalhados exaustivamente

na obra, além do reconhecimento do “trágico” como princípio ativo da sua estrutura. No

que concerne às análises sobre as tragédias, o teatro e a literatura buscaram sempre abordar

o assunto sob a perspectiva da recepção da tragédia por parte do espectador e do leitor,

contudo a filosofia que se dedicou a uma análise epistêmica do trágico.

Deste modo, os pressupostos filosóficos aristotélicos e pós-aristotélicos, servem-nos

como base para a análise da influência trágica na obra. Contudo isto não exclui a

possibilidade de levantamento de outros autores, de diferentes épocas, no decorrer desta

análise. Munido dos esclarecimentos contidos neste capítulo acreditamos poder melhor

compreender a influência dos princípios trágicos na composição do romance de Ariano

Suassuna.

Uma das principais chaves de compreensão dos elementos de composição do

Romance d’ A Pedra do Reino se dá pelo viés histórico. O desaparecimento do rei de

Portugal, Dom Sebastião, em 1578, deu origem ao movimento denominado

“sebastianismo”. Apesar de jamais ter sido comprovada a morte de D. Sebastião, podemos

caracterizar o seu desaparecimento como um acontecimento que se assemelha em parte à

tragédia grega em razão de este desaparecimento ter desencadeado uma grande comoção, e

ter mobilizado toda a nação portuguesa (polis), a partir desse fato a população portuguesa

passou a formular inúmeras elucubrações acerca de seu desaparecimento. As elucubrações

levaram a população a delegar um caráter messiânico ao possível retorno do rei, que nunca

retornou, acreditando-se que o retorno desse rei iria restabelecer a ordem portuguesa que se

encontrava em crise.

O aspecto mítico, tanto na antiguidade clássica quanto no sebastianismo, se apresenta

como potencial formador de arquétipos capazes de habitar o “inconsciente coletivo” de

civilizações. Para uma melhor análise, podemos notar que há de fato uma apropriação do

mito de D. Sebastião no romance de Ariano Suassuna; o rei de Portugal, D. João III, era

idoso e seus doze filhos morreram em batalha, sendo que apenas um deles deixou um filho

herdeiro que viria a ser o jovem D. Sebastião. O então rei D. Sebastião desapareceu

96

misteriosamente em batalha. Ora, podemos observar uma clara influência quando vemos

que na Pedra do Reino, o rei Dom Sebastião Garcia-Barretto também morreu idoso e seu

jovem filho caçula, Sinésio, desapareceu misteriosamente.

Como já sabemos, foi atribuída uma função messiânica ao retorno do rei D.

Sebastião. Na Pedra do Reino também é atribuía uma função messiânica ao retorno de

Sinésio. Apesar do aspecto mítico e histórico que envolve o desaparecimento de D.

Sebastião, a espera pelo seu retorno tinha razões políticas, uma vez que seu parente mais

próximo era seu tio-avô; o cardeal D. Henrique, que era idoso e não desejava governar, e a

Rainha D. Catarina, que era irmã do rei espanhol D. Carlos V, representando, aos olhos dos

portugueses, um risco à independência política de Portugal.

O restabelecimento da ordem através de um jovem rei já nos é conhecido na

literatura. Lembremo-nos mais uma vez das tragédias gregas; em Édipo Rei, a chegada do

jovem Édipo, que se mostra capaz de decifrar o enigma da esfinge, libertando Tebas. Ainda

na perspectiva da tragédia grega, podemos citar a Oresteia de que fazem parte as tragédias

Agamênon, As Coéforas, e As Eumênides em que a trama se desenvolve tendo como eixo a

vingança da morte de Agamêmnon por meio do matricídio cometido por Orestes.

Pelas razões políticas mencionadas anteriormente, o rei D. Sebastião era esperado

pelo povo português antes mesmo de seu nascimento, passando a ser também conhecido

como “O Desejado”. No Romance d’ A Pedra do Reino, a espera pelo retorno de Sinésio

faz com que este seja chamado, por Pedro Dinis Quaderna, como “O Alumioso”. Versões conflituosas também servem para reforçar o aspecto mítico tanto em D. Sebastião quanto

em Sinésio. Em relação ao desaparecimento de D. Sebastião dizia-se que ele havia sido

morto, e seu corpo recolhido pelos árabes, outras versões apontam que ele simplesmente

não foi encontrado após a batalha de Alcácer-Quibir. No romance de Ariano Suassuna há

pessoas que crêem que Sinésio foi sequestrado, outros crêem que ele fugiu, e há também a

versão de seu irmão mais velho (Arésio) que diz ter visto o cadáver de Sinésio.

Após o desaparecimento de D. Sebastião, assume o trono de Portugal o seu tio-avô, o

cardeal D. Henrique, vindo este falecer dois anos depois. Com a morte do cardeal, o parente

mais próximo viria ser o rei da Espanha, Felipe II, que, quando assume o trono, reverte

riquezas e conquistas portuguesas para a coroa espanhola, causando assim um grande

empobrecimento da nação portuguesa. Esta atitude do rei Felipe II faz com que desencadeie

um forte espírito nacionalista em Portugal e, em certo momento, por espontaneidade ou por

97

trama das elites nacionalistas, difunde-se a ideia de que D.Sebastião não havia morrido,

dando assim origem à “lenda sebastianista”, em que o povo passa a crer no retorno de D.

Sebastião como único meio de restaurar Portugal.

No Romance d’ A Pedra do Reino, o fato de o corpo de Sinésio nunca ter sido visto

também contribuiu, tal qual ocorreu a D. Sebastião, para a crença de que seu retorno seria o

único meio de solucionar a miséria na região. Na obra de Ariano Suassuna, o retorno do

“Alumioso” já era previsto, dizia-se que este retorno se daria alguns anos após a morte de

seu pai, Dom Sebastião Garcia-Barretto, fato ocorrido com a chegada da “estranha cavalgada” à Vila de Taperoá que trazia o “Rapaz-do-Cavalo-Branco”. O universo místico e mítico da narrativa de Suassuna aponta também para uma crítica aos sistemas políticos, os

dispositivos utilizados pelo autor demonstra uma crítica ao próprio modelo de inclusão e

exclusão representado pelo personagem Quaderna. Em uma leitura bastante lúcida de

Agambem, Slavoj Zizek revela:

À análise de Agamben não se pode negar o caráter radical de questionar a noção mesma de democracia; ou seja: a noção de Homo Sacer não pode ser diluída como elemento de algum projeto radical-democrático cujo objetivo seja renegociar e redefinir os limites da inclusão e da exclusão, de forma que o campo simbólico seja cada vez mais aberto às vozes daqueles que foram excluídos pela configuração hegemônica do discurso público (ZIZEK, 2003, p. 118).

Dentro da perspectiva da apropriação mítica, outro aspecto também nos chama

atenção no romance de Ariano Suassuna; a expressão “Rapaz-do-Cavalo-Branco” remete-

nos também a história e trajetória de um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, o apóstolo

Santiago. Santiago, após a morte de Jesus Cristo, viajou pela Península Ibérica pregando os

ensinamentos cristãos na região que hoje compreende a Galícia, na Espanha. Após seis

anos de pregação decidiu retornar à Palestina para contar o que lhe sucedeu e levar novos

evangelizadores para a Hispânia. Pouco tempo depois de iniciar as pregações na Palestina,

Santiago foi preso e condenado à morte por decapitação seguida de abandono de seus restos

mortais no deserto para servir de alimento às feras. Discípulos seus lograram resgatar seu

corpo, embalsamá-lo e sepultá-lo em um bosque de difícil acesso, gerações de eremitas

passaram a frequentar o local a fim de velar o corpo do apóstolo.

98

Cerca de setecentos anos depois de sua morte, camponeses alegam ter visto luzes

vindas de um bosque, o Bispo Teodomiro ao investigar do que se tratava encontrou o

eremita chamado Pelayo completamente envolto por luzes, este lhe dizia que velava o

corpo do apóstolo Santiago. A notícia rapidamente chegou ao rei Afonso II que ordenou a

construção de uma capela e um monastério, tornando-se, até hoje, um importante centro de

peregrinação: “O Caminho de Santiago no Campo Estela”.

Acredita-se que o apóstolo Santiago tenha aparecido miraculosamente, montado em

um cavalo branco, em vários combates na Espanha pela reconquista cristã de Clavijo (844),

ganhando em razão disto o apelido de Matamoros (Mata-mouros). Posteriormente os

portugueses passaram a invocar Santiago para pedir-lhe proteção nos combates. Como

podemos observar o uso do cavalo branco, por Santiago, o tornou conhecido como o

“Rapaz-do-Cavalo-Branco”. Na Pedra do Reino o retorno de Sinésio à Vila de Taperoá

após ser dado como morto também é tido como miraculoso, e o fato de, tal qual Santiago,

entrar na cidade montado em um cavalo branco faz com que o jovem homem seja

denominado por Quaderna como Rapaz-do-Cavalo-Branco.

Além dessa apropriação implícita da lenda sebastianista e da trajetória do apóstolo

Santiago, no caso de Sinésio, existe também uma apropriação explícita quando Pedro Dinis

Quaderna relata o massacre promovido por seu bisavô, João Ferreira-Quaderna, cem anos

antes. Bem sabemos que nas tragédias gregas, de modo geral, tem-se como ponto de partida

os mitos, com exceção de algumas como Os Persas de Ésquilo. Um mito tem, na maioria

das vezes, o objetivo de explicar ou compreender a realidade vigente a partir de exemplos

simbólicos: deuses, heróis, ou seres sobrenaturais. Contudo também existem fatos e pessoas

reais que no decorrer da história foram elevadas à categoria de mito, tomando como

exemplo o próprio D. Sebastião.

Os personagens da tragédia grega são míticos porque eles também são arquetípicos,

eles se transformam em modelos de ações recomendadas, ou não. Os personagens míticos

tornam-se arquetípicos porque eles fazem parte de um “inconsciente coletivo” de uma sociedade, civilização, ou cultura, onde são constantemente retomados ou relembrados.

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”... narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento... É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a

99

ser, o mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente... Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no mundo (ELIADE, 2002a, apud SANTOS, 2009, p.13).

Nesta perspectiva, tanto o desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-

Quibir quanto o desaparecimento de Sinésio no Romance d’ A Pedra do Reino logram uma

conotação “sagrada”. Sabemos que o romance de Ariano Suassuna tem uma forte influência

da lenda sebastianista, contudo é importante salientar que o massacre promovido pelo

bisavô de Pedro Dinis Quaderna no romance, foi uma apropriação literária de um fato que

realmente se sucedeu no sertão de Pernambuco no século XIX, episódio este conhecido

como o “Massacre da Pedra Bonita”. No romance de Ariano Suassuna, Pedro Dinis

Quaderna relata que seu bisavô dissera a uma multidão de seguidores que o rei D. Sebastião

lhe havia aparecido em sonho, dizendo-lhe que era chegada a hora de “desencantar” o

reino, e que sua libertação se daria através de derramamento de sangue, de sacrifícios

voluntários. Santos (2009) nos traz um relato do fato histórico:

Dois anos mais tarde, ainda nesta região, João Ferreira, cunhado de João Antônio, reuniu vários fiéis e se auto proclamou representante do Rei Sebastião, que lhe aparecera em sonho, formando, assim, outro reduto que ficou conhecido, principalmente, por meio da crônica de Áttico de Souza Leite, em Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado (1875)... era servido o vinho encantado, ou, na descrição de Leite, onde o perverso João Ferreira recolhia e embriagava os seus associados ministrando-lhes beberagens todas as vezes que pretendia vítimas voluntárias para o reino (LEITE apud SANTOS, 2009, p. 83-84).

Nessa perspectiva, a embriaguez dos seguidores de João Ferreira, na vida real, e na

ocasião da embriaguez dos seguidores de João Ferreira-Quaderna no Romance d’ A Pedra

do Reino pode também nos remeter ao mito de Dioniso em As Bacantes, de Eurípedes. O

estado alterado de consciência proporcionado pelo “vinho da Pedra do Reino” se mostra uma ferramenta eficaz tanto na aceitação e crença em D. Sebastião – figura sagrada por

parte daquela população presente na Pedra Bonita – e o reconhecimento de Dioniso como

uma nova divindade em As Bacantes. Acerca do vinho da Pedra do Reino, Santos (2009)

descreve que este vinho era fabricado pelo “rei” com uma mistura de jurema e manacá, cuja

propriedade do álcool e do ópio induz a um estado alterado de consciência que além da

embriaguez provoca alucinações. Esta mistura tinha como objetivo fazer com que os

sectários de João Ferreira contemplassem D. Sebastião com sua corte e seus tesouros.

100

Como descreve Pedro Dinis Quaderna no romance de Suassuna, seu bisavô João

Ferreira-Quaderna, assim como o profeta João Ferreira da vida real, disse a seus seguidores

que o rei D. Sebastião estaria insatisfeito com a fraqueza e a descrença dos fiéis, exigindo

assim a intensificação dos sacrifícios. Na citação a seguir veremos maiores detalhes do que

ocorreu:

Os sacrifícios para “quebrar o encanto” iniciaram-se em 14 de maio de 1838 e prolongaram-se por três dias, tendo como primeira vítima o pai do próprio profeta, que, voluntariamente, se ofereceu para a degolação, e, daí por diante, agravou-se o descontrole das ações no meio do grupo. Ao fim do terceiro dia (16 de maio), o saldo de vítimas cujo sangue já havia “regado” a base das pedras, chegou a cinquenta e três (trinta crianças, doze homens e onze mulheres), além de catorze cães que ressuscitariam transformados em dragões protetores da comunidade (LEITE, 1903, p. 235). Nesse clima de “possessão” louca dos adeptos, ou, segundo Rodrigues (1939, p. 136), de “violento delírio religioso”, foi sacrificado também o próprio rei-profeta, apontado pelo cunhado Pedro Antônio, que teria recebido, igualmente, uma revelação, de que João Ferreira era a única vítima que faltava para que, definitivamente, D. Sebastião fosse desencantado. Com o apoio dos súditos, Pedro Antônio, cujas irmãs – Isabel e Josefa – já haviam sido sacrificadas, foi aclamado novo rei, transferindo seu acampamento para um local mais distante, afim de evitar o mau cheiro provocado pela decomposição dos cadáveres que jaziam ao ar livre (LEITE apud SANTOS, 2009, p. 85).

Podemos também, na citação a seguir, detectar a influência decisiva deste episódio

sebastianista no Romance d’ A Pedra do Reino.

E fomos fumar cachimbos, para vermos as riquezas. Iam-se assim passando os tempos, até que no dia 14 deste mês de Maio – oh que dia infeliz e horroroso! – o Rei, depois que deu muito vinho a todos, declarou que ‘El-Rei Dom Sebastião estava muito desgostoso e triste com seu Povo’. ‘E por quê?’, perguntaram os homens, muito aflitos, e as mulheres todas muito chorosas. ‘Porque são incrédulos! Porque são fracos! Porque são falsos! E finalmente por que o perseguem, não regando o Campo Encantado e não lavando as duas torres da Catedral de seu Reino com o sangue necessário para quebra de uma vez este cruel Encantamento!’, proferiu o Rei. Ah, meu Amo e meus Senhores! O que depois disso se seguiu é horrível! O velho José Maria Juca Ferreira-Quaderna, pai do Rei, foi o primeiro que correu, abraçando-se com as pedras e entregando o pescoço a Carlos Vieira, que o cortou cérceo, pois já lá estava para isso, com um facão afiado! As mulheres e os homens iam agarrando os filhos que vinham entrega-los a Carlos Vieira, a José Vieira e a outros, que lhes cortavam as gargantas ou quebravam-lhes as cabeças nas mesmas pedras, que assim untavam de sangue! (SUASSUNA, 2007, p.78)

O elemento sebástico também abrange o próprio protagonista do Romance d’ A Pedra

do Reino, Pedro Dinis Quaderna. Assim como D. Sebastião e Sinésio, Quaderna também

101

parece possuir um percurso messiânico. O povo de Portugal aguardava o retorno de D.

Sebastião para que este instaurasse o Quinto Império que seria “um reino universal sob a liderança da nação lusa” (SANTOS, 2009, p.65). Assim como o povo português, Pedro

Dinis Quaderna também almejava instaurar o Quinto Império sertanejo, onde ele mesmo

seria o rei, restaurando assim o reinado de seus antepassados. Santos (2009) nos esclarece

que em seu messianismo, Quaderna não se apresenta apenas como rei, profeta e sacerdote

onde o messias é Sinésio, mas anexa a si mesmo caracteres que são do próprio messias,

como se fosse uma espécie de “pré-messias”.

O aspecto messiânico em Quaderna está em sua própria determinação em tornar-se

grandioso através da literatura, uma vez que não lhe é possível tornar-se rei de fato. Uma

característica que demarca grandemente o caráter messiânico é a sua “inconclusão”, e esta inconclusão de fato ocorre no Romance d’ A Pedra do Reino em que Quaderna não conclui

sua epopeia, deixando implícito ao leitor de que haverá alguma continuidade no futuro.

Nesse sentido, explica Santos:

Enfim, a fase da volta gloriosa, caracterizada nos messianismos pelo estabelecimento do reinado profetizado, associa-se à efetivação dos projetos messiânicos de Quaderna, ligados à conclusão e premiação de sua obra literária. Nos messianismos, em geral, esta fase é inconclusa e de espera que dá sustentação à fé messiânica e, dessa maneira, quando finalizada, ocorre também a extinção do messianismo, efetivando-se em seu lugar, o reino terreal. Semelhantemente, na ficção do RPR, o percurso de Quaderna finda com um estado de suspensão ou prorrogação de suas expectativas, projetando-se para um momento futuro a concretização destas e, com isso, o messianismo quadernesco não se encerra ainda (SANTOS, 2009, p.170).

A autora nos traz uma constatação de que mesmo não se concretizando no plano da

realidade palpável, o messianismo quadernesco se realizou no plano onírico onde, em

sonho, Quaderna findava a sua epopeia e estabelecia assim sua “volta gloriosa” ao trono do

Quinto Império do Brasil. Este “ideal platônico” incorporado por Pedro Dinis Quaderna é

esclarecido por Santos como uma forma de superar as dificuldades enfrentadas na sua

realidade e driblar o seu destino indesejável (ser preso). No plano da realidade, o inquérito

pelo qual Quaderna presta depoimento, é encerrado para ser retomado no dia seguinte,

continuação esta a que o leitor não tem acesso. Essa ausência de continuidade é o que Tânia

Santos em sua tese caracteriza como um “deslocamento do percurso messiânico”.

102

No Romance d’A Pedra do Reino nos deparamos com a figura simultaneamente

caricata, trágica, enigmática, simples, complexa, insana, e intelectual, do sertanejo Pedro

Dinis Quaderna. Quaderna é um personagem que habita em si muitas ambiguidades, e isto é

evidente quando o mesmo adota como seus principais mestres dois intelectuais que

possuem visões extremamente antagônicas entre si, como já sabemos: o Professor Clemente

e o Doutor Samuel Wandernes. No que se refere ao Professor Clemente, sabemos que este é

um filósofo fortemente influenciado pelo Comunismo, e ardente defensor da teoria que

entende que os verdadeiros brasileiros são os descendentes dos negros e índios. Na

contramão do Professor Clemente, deparamo-nos com seu principal opositor, o Doutor

Samuel Wandernes que é um poeta, doutor nas Letras, forte defensor da visão direitista da

política, e defende a teoria de que os verdadeiros brasileiros são os descendentes dos

portugueses.

Desta forma, Pedro Dinis Quaderna, busca tornar-se uma “síntese” entre a filosofia

“clementina” e a literatura “samuélica”, o mesmo é muitas vezes descrito jocosamente por

seus mestres como a “Diana” do pastoril, que pertence simultaneamente ao cordão azul e ao

cordão encarnado, onde Quaderna metaforicamente atribui o cordão encarnado ao Professor

Clemente em razão de sua visão esquerdista, enquanto a Samuel Wandernes é atribuído o

cordão azul em virtude de sua visão direitista da política.

Diante do exposto, podemos aqui entender que a lenda sebastianista pode também

relacionar-se diretamente com aspectos da tragédia grega, principalmente no que concerne

a elaboração de arquétipos a partir desses mitos. D. Sebastião foi um modelo arquetípico

em que a população portuguesa e, posteriormente, a sertaneja na Pedra Bonita, se apoiou

para depositar suas crenças e esperanças de solução para a situação de miséria em que

viviam.

Sabemos que o principal objetivo de Pedro Dinis Quaderna é tornar-se o Gênio da

Raça Brasileira. E o que viria a ser, de fato, o Gênio da Raça Brasileira? Em debate na

primeira sessão ordinária da Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba,38

concluiu-se que este tipo de reconhecimento é concedido a um escritor que consiga

condensar as características marcantes de sua época em sua obra, uma obra considerada

38 Academia de Letras fictícia fundada por Pedro Dinis Quaderna e seus dois mestres.

103

decisiva para a consciência de sua etnia. O Professor Clemente defende que o Gênio da

Raça deveria ser um filósofo, o doutor Samuel por sua vez defende que tal gênio advém da

Literatura, tendo assim a concordância de Quaderna, como podemos ver na citação a

seguir:

Bem, se é assim, a coisa é outra! Eu me recuso a me meter em matanças e morrências na vida: na Literatura, isso não faz mal nenhum a ninguém! A gente escreve, como no Almanaque: “Vinham doze Cavaleiros, de bandeira à frente, montados em fogosos corcéis, quando soaram doze tiros, e doze corpos rolaram dos cavalos, ensopando de sangue vermelho a poeira da estrada!”Quando se termina, não morreu ninguém, e houve uma cena belíssima, parecida com as dos romances de José de Alencar e as da História de Carlos Magno! (SUASSUNA, 2007, p. 189)

Desta forma, munido da informação de que o Gênio da Raça há de ser um escritor

literário, Pedro Dinis Quaderna persegue obstinadamente o desejo de vir a se tornar tal

gênio, alegando que as diversas tragédias e fatos misteriosos que se sucederam em sua

família serviriam de inspiração para sua epopeia, tais quais as três grandes obras literárias

da Antiguidade Clássica: a Ilíada, a Odisséia, e a Eneida. Quaderna decide, então, escrever

uma epopeia genuinamente nordestina. Essa obstinação de escrever a epopeia chega a tal

ponto que o mesmo se mostra capaz de enxergar no inquérito, ao qual foi intimado a prestar

depoimento ao juiz-corregedor da comarca, uma oportunidade de ter sua obra redigida pela

escrivã e, munido das cópias do depoimento, ter sua obra completa.

Adentrando o aspecto do falso “herói trágico” vivido por Pedro Dinis Quaderna, é importante que entendamos porque entendemos Quaderna desta forma. Durante a leitura do

romance, é-nos relatado por Quaderna que o sertão que o mesmo habita foi outrora um

reino iniciado pelo seu bisavô conhecido como Dom João Ferreira-Quaderna, o Execrável.

O Sebastianismo havia sido fortemente adotado pelo referido rei. O referido rei dizia que o

rei português, Dom Sebastião, havia lhe aparecido em sonho dizendo-lhe que era chegada a

hora de “desencantar o reino”. O tal desencantamento apenas se daria se pessoas da miserável população ali presente entregassem voluntariamente suas vidas, ocasionando

assim um grande massacre. Desta forma, Quaderna busca provar repetidas vezes ao leitor

que, por ser descendente de uma linhagem real sertaneja, é o verdadeiro rei do Brasil, e não

os “impostores” da Casa de Bragança, modo como se refere à família real portuguesa.

Lembrando que o herói trágico é dotado de uma vontade implacável, Pedro Dinis

Quaderna pretende tornar-se o Gênio da Raça através de sua epopeia. Contudo,

intrinsicamente, o que Quaderna realmente deseja é que a monarquia seja reestabelecida e

104

que ele ocupe seu lugar de direito no trono sertanejo que seria consequentemente o trono do

Brasil. Contudo, diferentemente dos heróis da tragédia ática, Quaderna trilha por um

caminho mais racional. Por ter medo de ter o mesmo destino trágico que seus antepassados,

sendo o seu padrinho Pedro Sebastião Garcia-Baretto o mais recente, Quaderna acredita

que poderá construir reinos e castelos através da literatura, onde não há risco de cortarem

seu pescoço.

Em outras palavras os princípios do trágico das gerações anteriores a Quaderna estão

presentes na família de Édipo e Antígona, na família de Electra e Orestes, e também na

família de Medeia. A tragédia, assim, é entendida como um elemento obrigatório nessas

famílias, algo que é passado de geração para geração, como uma espécie de “DNA

Trágico”.

No que concerne ao “DNA Trágico” de Pedro Dinis Quaderna, sua genealogia trágica

nos leva a discorrer acerca de outro aspecto de notável relevância: o trágico como

comprovação de nobreza. Conforme sabemos, Aristóteles, em sua Poética, formula que a

tragédia era temática presente no seio familiar da aristocracia, enquanto a comédia

acometia principalmente as pessoas desconhecidas que não possuíam qualquer relação com

a política, ou seja, seus feitos não repercutiam diretamente nos interesses pólis. Em outras

palavras, entende-se a tragédia como de “ordem pública” enquanto a comédia seria de

“ordem privada”. Aristóteles, conforme explicado anteriormente nesta dissertação, entendia

que a tragédia acometia pessoas “superiores” enquanto a comédia era inerente a pessoas

“inferiores”.

Em todas as tragédias gregas que chegaram a nosso conhecimento, 32 tragédias, todas

elas envolvem infortúnios que acometem a genealogia dos reis de diversas cidades-estados

gregas. Os tragediógrafos da Antiguidade Clássica conhecidos na atualidade; Ésquilo,

Sófocles, e Eurípedes, deram grande ênfase à composição de obras que tinham como

principal temática a maldição que acometia famílias palacianas, dentre as quais devemos

destacar o “ciclo tebano” que trata da maldição que acomete a linhagem de Édipo, conforme explicado anteriormente, e o “ciclo miceniano” que trata da maldição que acomete os átridas.39

39

ága o e Me eleu e a ha ados de t idas po se e filhos do ei át eu.

105

Imbuído do conhecimento acerca do mal que acomete o universo palaciano dos

chefes de estado gregos, podemos concluir que neste aspecto a tragédia grega também

exerce grande influência no Romance d’ A Pedra do Reino, pois o protagonista Pedro Dinis

Quaderna alega que em sua infância se envergonhava, se sentia “contaminado” por ser descendente de um rei fanático que ordenou o massacre de sua população. Contudo, ao

tornar-se adulto, Pedro Dinis Quaderna qualifica os assassinatos, provocados por seus

ancestrais, são como pormenores que realçam sua nobre estirpe: “... Como se vê por essa simples amostra, os acontecimentos da Pedra do Reino foram suficientemente astrosos e

fatídicos para marcar para sempre meu sangue de realeza” (SUASSUNA, 2007, p. 68).

Um aspecto importante que aqui deve ser ressaltado é que as tragédias ocorridas tanto

na família Quaderna quanto na Garcia-Barreto exerciam forte comoção popular na vila de

Taperoá. Tal comoção popular também ocorria nos trágicos desfechos de Édipo Rei,

Antígona, Agamenon, Electra, dentre outros. A diferença se dá no fato de que a opinião da

pólis era representada pelo coro e o massacre promovido pelo rei Dom João Ferreira-

Quarderna, bem como o misterioso assassinato do rei Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto,

tem como testemunha toda a população de Taperoá.

Nesta perspectiva a vila de Taperoá ocupa a posição de pólis. Arriscaria atribuir o

nome de “Tebas Nordestina” à vila de Taperóa em razão dos sucessivos infortúnios que

ocorre com a família mais importante do lugar. A população da vila, por sua vez, é a massa

que atua como um “coro” que se relaciona estreitamente com as desventuras da realeza.

Diferentemente da pólis grega, a população de Taperoá não é crítica nem questionadora,

mas, sim, completamente alienada por aceitar “ativamente” o sacrifício proposto por Dom

João Ferreira-Quaderna.

Outro fator que contribui para o caráter nobre em razão do trágico se deve ao fato de

que a morte do rei, tio de Pedro Dinis Quaderna, provoca significativas mudanças no

contexto sócio-político e cultural da vila de Taperoá. Após a morte do rei, explicitado no

capítulo de nome “O Fazendeiro Degolado” no Romance d’ A Pedra do Reino, a população

da vila notadamente perde um “ídolo”, um modelo, um guia. Desta forma, traçando um

comparativo entre a tragédia ocorrida em Taperoá e a tragédia grega, podemos configurar o

rei Pedro Sebastião Garcia-Barreto como um pharmacós, ou seja, um bode expiatório.

106

Dentre os que morreram em razão da purgação dos males da pólis grega, podemos,

uma vez mais, fazer referência a Édipo, uma vez que o preço para a pólis ser livre da peste

era a punição do assassinato que ocorrera ali, como já explicado anteriormente. Já nos caso

da “morte por vingança”, podemos citar o rei Agamêmnon, que foi morto em vingança pelo

sacrifício de sua própria filha, Ifigênia, na ocasião essa em que o rei Agamêmnon precisava

sacrificá-la por exigência da deusa Ártemis, para que assim os ventos voltassem a soprar e

os barcos pudessem navegar rumo a Tróia. Com base no pensamento medieval, em A Morte

da Tragédia, o autor George Steiner (2006) nos traz uma explicação cabível para o fato de

a tragédia acometer pessoas que ocupam cargo de alto escalão:

Atingindo os homens com cruel frequência, a querela dos príncipes envolviam as vidas e fortunas de toda a comunidade. Mas a ascensão e queda daquele que se situava no alto escalão representava a encarnação do sentido trágico por um motivo mais profundo: tornava explícito o drama universal da queda humana. Senhores e capitães pereciam por sua extrema ambição, pelo ódio epela astúcia de seus adversários, ou por má sorte. Mesmo onde o moralista pudesse apontar um crime ou um caso de desastre específico, uma lei mais geral entrava em ação. Em virtude do pecado original, cada homem estava destinado a padecer, no âmbito de sua própria experiência, ainda que privada ou obscura, alguma porção da tragédia da morte. (STEINER, 2006, p.08)

Como já é de nosso conhecimento, Nietzsche considera que a morte da Tragédia se

deu com o advento da filosofia, com maior ênfase na dialética socrática. Essa intervenção

filosófica como empecilho para a desenvoltura do impulso trágico de Pedro Dinis Quaderna

vem representada na figura do personagem de nome “Pedro Beato”. Pedro Beato é representado no Romance d’ A Pedra do Reino como um homem de renúncias, fez voto de

pobreza, era um “Sócrates” que perambulava pela pólis grega. O principio filosófico é o

que impede o ímpeto trágico de Pedro Dinis Quaderna, pode-se constatar na seguinte

citação:

... Me diga uma coisa, por exemplo: você já perdoou os assassinos de seu Pai? Já perdoou os assassinos de seu Padrinho? – Sei não, Pedro! – respondi baixando a cabeça, porque nunca fizera a mim mesmo uma pergunta direta nesse sentido. – Perdoar é coisa dura, difícil e complicada! Uma vez vi meu amigo Eusébio Monturo dizer uma frase que me impressionou muito a esse respeito. Ele deu um tapa na cara de um inimigo, dizendo depois que tinha feito isso para poder perdoá-lo! Ele queria primeiro provar a si mesmo que não era por fraqueza e covardia que perdoava! – Olhe aí, olhe de novo a maldita honra, o orgulho amaldiçoado, Dinis! – disse Pedro com infinita compaixão. – Pois eu lhe digo que você não perdoou, nem aos que mataram seu Pai nem aos que mataram seu Padrinho! E sabe porque não perdoou, Dinis? Por causa de seu sangue! (SUASSUNA, 2007, p.310).

107

Pedro Beato no mesmo diálogo busca em Pedro Dinis Quaderna, tal qual ocorre com

Édipo e Orestes, uma justificação de ordem genealógica para o seu ímpeto trágico. ... De meu sangue? __ perguntei espantado. __ Que sangue? O sangue dos Quadernas? __ Não, o sangue que você herdou de sua mãe, o sangue dos Garcia-Barrettos! Os Quadernas são raça de onça: um Quaderna, num acesso de raiva ou de loucura, pode matar, espedaçar, degolar. Mas os Garcia-Barrettos são raça de cobra, odeiam vinte, trinta, cinquenta, cem anos, o tempo que durar a vida! Por isso abra o olho, Dinis, senão você acaba morrendo com esse pecado no sangue! É daí que vêm todos essas coisas para você! ... É porque você quer recuperar a fazenda “As Maravilhas”, a terra que foi de seu Pai! Agora eu lhe pergunto: porque essa ânsia de ter terra? Essa terra só vai trazer a você preocupações, sofrimentos e ocasiões para fazer o mal, a você mesmo e aos outros! (SUASSUNA, 2007, p.310-311).

Tanto o personagem Pedro Beato e o filósofo Sócrates são signos de “renúncia”. A ausência de agon (vontade ou competitividade), ou ausência de potência é, para Nietzsche,

um dos principais sintomas que ocasiona a morte da tragédia e o nascimento da dialética.

Podemos desta forma, concluir mais uma vez que os desígnios heróicos da tragédia grega,

assim como os de Pedro Dinis Quaderna, possuem relações diretas com a honra e com a

questão sanguínea, a vingança como enobrecimento do herói para George Steiner:

O homem se enobrece com a maldade vingadora ou a injustiça dos deuses. Isso não o torna inocente, mas consagra-o como se tivesse passado pela chama. Desse modo, nos momentos finais da grande tragédia seja ela grega, shakespeariana ou neoclássica, há uma fusão de dor e êxtase, de lamento pela queda do homem e de regozijo pela ressurreição de seu espírito. Nenhuma outra forma poética realiza esse efeito misterioso; ele faz de Édipo, Rei Lear, Fedra, os mais nobres ainda que forjados pela mente (STEINER, 2006, p.05).

Retomando então a perspectiva do patriarca enquanto “bode expiatório”, podemos

concluir que a moral ferida da não vingada morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto é o

que ocasionaria a hýbris de Pedro Dinis Quaderna, caso ele pudesse ser considerado um

herói trágico, uma vez que resguardar a honra era a principal preocupação do herói grego.

Desta forma, fica mais claro o porquê de nesta dissertação termos, anteriormente, entendido

Pedro Dinis Quaderna como um herói trágico “às avessas”, tal entendimento se dá em razão

do fato de o herói resguardar sua honra escrevendo a “Obra Máxima da Raça”, tornando-se

o “Gênio da Raça”, em vez de vingar a morte do tio. A morte do seu tio e padrinho serve

como obra prima para a composição de sua tragédia travestida de epopeia ou de seu

romance revestido do trágico.

108

VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Através de indicações pescadas aqui e ali em Talcos e Avelórios, eu descobrira que o escritor que se propusesse a escrever a “τbra da Raça Brasileira” tinha de possuir emotividade eólia,

para fundir no crisol de si mesmo essas psicoses surpreendentes que aureolam de originalidade os personagens de sua Tragédia, de seu Poema, de seu Romance” (SUASSUσA, 200ι, p. 23ι).

Fazer uma travessia pelo trágico no Romance d’A Pedra do Reino significa, quase

necessariamente, adentrar um universo extremamente amplo cujo nome “tragédia” se

mostra insuficiente para dar conta de tamanha dimensão. No decorrer desta dissertação

pudemos notar que para se falar do aspecto trágico no romance de Ariano Suassuna, exige-

se do leitor um amplo diálogo com diversos aspectos que podem entrecortar a temática da

tragédia, seus desdobramentos e agenciamentos.

Ao adentrar o romance de Ariano Suassuna, o pesquisador precisa estabelecer um

diálogo constante com conhecimentos de áreas afins, a saber: a literatura, a filosofia, a

história, a geografia, a sociologia, a cultura popular, e também o teatro. O elemento trágico

no Romance d’A Pedra do Reino parecia um elemento óbvio, um objeto de pesquisa que se

encontrava ali às claras nos diversos episódios em que essa tragédia é evocada no romance,

contudo dada a complexidade de sua estrutura, os princípios trágicos no romance são

travestidos e contaminados por outros elementos que, muitas vezes, distorcem e ampliam a

sua efetividade. Comparar o misterioso assassinato de Dom Pedro Sebastião Garcia-

Barretto com romances policiais parecia ser o mais óbvio a se fazer, porém ao fazer isso o

pesquisador estaria ignorando toda uma tradição da Antiguidade Clássica que influenciou

Ariano Suassuna na escrita do romance, e isso ficou ainda mais evidente quando, em

entrevista, ele nos confirmou tal influência.

Antes da entrevista com Ariano Suassuna, aprofundamos as leituras das tragédias

clássicas, dentre as 32 tragédias (7 de Ésquilo, 7 de Sófocles, e 18 de Ésquilo) entendi que a

relação mais aproximada que se podia estabelecer entre as tragédias e o romance seria

através da trilogia de Ésquilo (Oréstia), além de Os Sete Contra Tebas do mesmo autor.

Também pudemos estabelecer relações entre o romance com Édipo Rei e Édipo

109

em Colono de Sófocles, bem como As Fenícias de Eurípedes. Também mencionamos

outras tragédias, contudo essas se mostram menos importantes para fins de analogia com A

Pedra do Reino.

Ao confrontar o conteúdo dessas peças com o conteúdo do romance, em entrevista

com Ariano Suassuna, ficou ainda mais claro que a influência da tragédia grega no romance

é existente e configura parte do projeto de sua elaboração. Pois, já sabemos que Pedro Dinis

Quaderna tem seu padrinho, sua representação paterna, assassinado, tornando-o assim filho

de um “rei morto”, como ocorre a Orestes. Sabemos também que a temática da disputa

entre dois irmãos existente em Os Sete Contra Tebas é intencionalmente apropriada por

Suassuna na disputa entre Arésio e Sinésio.

A apropriação esquiliana na Pedra do Reino denota, todavia, um caráter de ordem

pessoal do autor que em entrevista admitiu Ésquilo ser um autor que muito o toca. Podemos

ainda observar aspectos edipianos na própria figura de Pedro Dinis Quaderna que, dentro de

sua falibilidade, procura se igualar a heróis da tragédia grega e aos das epopeias no que

concerne às suas trajetórias; sabemos que Édipo tem seus olhos arrancados, e Quaderna

também tem seus olhos metaforicamente perfurados por um gavião-macho e outro fêmea, o

que faz da cegueira ser um denominador comum entre os dois heróis em questão, além de

ser uma ironia ao poeta Homero que ele diz ter sido cego. Pistas que apontavam

superficialmente para temáticas recorrentes.

A cegueira de Quaderna, ironicamente, o faz constatar muitas coisas antes ocultas, o

que permite uma visão dúbia da vida, dualidade essa que já é presente antes de ser cego em

suas duas ideologias conflitantes: o Oncismo e o Tapirismo. Édipo é decifrador de enigmas,

e Quaderna também, ao ponto de se atribuir o título de “O Decifrador”. Podemos observar

também que o trágico é algo presente na linhagem quadernesca tal qual ocorre em famosas

famílias das tragédias gregas; ora, podemos observar a maldição da casa de Atreu, a

maldição da linhagem da casa de Cadmo, e por que não relacioná-los com a maldição da

casa dos Quadernas e dos Garcia-Barretto?

A análise acerca da influência e da travessia do trágico no romance de Suassuna

também nos conduziu a um diálogo com a teoria do romance de Georg Lukács. A idéia de

“totalidade do mundo grego” trazida por Lukács por meio das epopeias homéricas também

110

nos permitiu observar que tratar unicamente do trágico na Pedra do Reino se mostrou

impossível, uma vez que o hibridismo na obra exige uma crítica mais aberta e articulada

com outros fatores. Em razão disso é também relevante apontar caminhos para a influência

epopeica e sua articulação com o romance.

Ainda que, em entrevista, Ariano Suassuna tenha admitido não haver lido Lukács,

houve uma mútua descoberta ao constatar que o pensamento de Quaderna tem muitas

semelhanças com o pensamento do ensaísta húngaro, em especial quando o personagem de

Suassuna decide imprimir uma totalidade nacional e heroica ao Nordeste brasileiro através

da epopeia que pretendia escrever. Naturalmente, não costuma ser do pensamento de um

escritor adequar seu processo criativo ao pensamento de algum teórico, uma vez que é o

teórico quem deve formular teorias acerca do processo criativo. Contudo, ainda assim não

nos deixa de chamar atenção esse “aparente acaso”.

Sabemos que a apropriação de mitos é uma característica comum na tragédia grega,

Ariano Suassuna certamente não se eximiu dessa apropriação quando observamos a citação

ao Sebastianismo no sacrifício coletivo promovido por João Ferreira-Quaderna, bisavô de

Pedro Dinis Quaderna, no século XIX, no sertão de Pernambuco. Também pudemos

observar em Sinésio a apropriação de duas vertentes míticas surgidas nas Cruzadas, do lado

português e do lado espanhol, a saber: o desaparecimento do rei Dom Sebastião e o mito do

Rapaz-do-Cavalo-Branco que seria, para os espanhóis, o apóstolo Santiago. O bisavô de

Quaderna, o rei João Ferreira, ainda pode ser relacionado com a perspectiva do pharmacós

da tragédia grega, com maior ênfase na perspectiva do Homo Sacer sugerido por Giorgio

Agamben. A perspectiva da morte de um tirano que se faz necessária, fazendo com que o

homicídio provocado contra o tirano seja perdoado pela nova ordem. Isso pode ser

observado também em Fuenteovejuna, do autor Lope de Vega, pertencente ao Século de

Ouro Espanhol.

A entrevista com Ariano Suassuna também nos levou a descobrir que o respeito às

unidades aristotélicas de tempo e lugar são seguidos na obra, uma vez que a estrutura in

media res coloca tais unidades em permanente grau de ocultamento. Ao analisar o livro,

percebemos que não só as unidades aristotélicas foram respeitadas, como também outros

aspectos da Poética, e isso parece bastante evidente quando o autor insere um forte

exemplo de anagnorisis no reencontro dos irmãos Sinésio e Silvestre, dentre outros

aspectos.

111

Não podemos compreender Pedro Dinis Quaderna propriamente como um herói

trágico, mas podemos observá-lo como uma metacrítica da trajetória do heroi trágico,

metacrítica que está contida nos discursos de Quaderna que, ao mesmo tempo, traduz o

devir do heroi em ter uma trajetória gloriosa, posicionando-se como um herói reflexivo.

Um herói situado simultaneamente no âmbito do herói trágico, do herói pertencente ao

“idealismo abstrato” e do herói do “romance de desilusão”, formulados por Georg Lukács.

Nesse sentido, constatamos em Quaderna um herói que está para “além do trágico”.

Nele constatamos elementos constantes no herói épico, trágico, medieval e romanesco.

Todas essas características são evocadas por Ariano Suassuna por meio da ironia. Essa

ironia se faz presente num herói que não se decide, ou não cabe por completo, em qualquer

um dos tipos mencionados. Ora ele nos remete a personagens trágicos por sua similitude no

que concerne a seu DNA Trágico, ora nos remete ao herói épico que se envolve em

aventuras (ainda que no campo psicológico), ora, ainda, ao herói medieval quando nos

remete ao aspecto cavalheiresco e ao herói romanesco por sua notória postura auto-

reflexiva e anti-trágica.

O Romance d’ A Pedra do Reino parece ser uma tessitura sem fim, uma colcha de

retalhos, onde as referências vão se desdobrando em outras referências, em encadeamentos

que não permitem, muitas vezes, a visão clara de uma finalidade. O diálogo com a teoria do

romance proposta por Georg Lukács apontou-nos outras perspectivas para análise,

conforme citei anteriormente. Analisar a Pedra do Reino significa também transitar em um

universo complexo que dialoga simultâneamente com a Antiguidade Clássica (epopéias e

tragédias) e Idade Média (sob a perspectiva dos autos) numa perspectiva praticamente

barroca ou, melhor dizendo; armorial, uma vez que a Antiguidade Clássica e a Idade Média

parecem estar a serviço do nordeste ficcional trazido por Ariano Suassuna.

Nesta dissertação procuramos acompanhar, em especial, a travessia do trágico no

romance de Ariano Suassuna, tendo como principal mote a influência dos princípios da

tragédia grega. A leitura de obras da tragédia grega também constituíram um elemento

fundamental para dar sustentação a nossa travessia. É evidente como a leitura das obras

clássicas nos proporciona alicerces eficazes na análise de uma obra literária, à medida que

nos debruçamos sobre o romance percebemos como eventos e personagens do romance se

assemelhavam aos mitos aos acontecimentos trágicos.

112

A leitura das tragédias remete-nos a uma pergunta já feita por Italo Calvino: “Por que

ler os clássicos?”. Calvino está certo ao alegar que a leitura dos clássicos nos proporciona

um alicerce que nos permite melhor analisar as obras da atualidade. Desta forma, Suassuna

parece confirmar que uma obra literária é quase um verdadeiro compêndio de inúmeras

outras referências que o escritor acumulou ao longo de sua vida. Também acredito ter

compartilhado das sensações de Pedro Dinis Quaderna, principalmente a sensação de que

um trabalho que parecia muito distante de ser concluído, e agora creio que, dentro dos

limites de uma dissertação, se apresenta modestamente concluso. E creio que este trabalho

também aponta uma possível resposta para uma nova pergunta: “Por que ler os trágicos?”

Dentre os obstáculos desta pesquisa, uma delas se encontra na própria leitura do

Romance d’ A Pedra do Reino. Ariano Suassuna conduz o leitor a um universo

simultaneamente popular e erudito, para não dizer “armorial”, em um vocabulário que

muitas vezes soa familiar ao leitor e outras vezes soa completamente alheia à sua realidade.

O romance parece não permitir que o leitor apenas leia de forma passiva, ele conduz o

leitor a um trabalho investigativo em que informações verdadeiras se confundem com

informações ficcionais criadas pelo autor, sugerindo assim o seu aspecto verossímil.

Além da busca pela “plena compreensão” da obra, foi preciso relacioná-la

diretamente com outras obras que continham o elemento trágico como eixo. Foi necessário

buscar constantemente fontes alternativas de pesquisa em outros livros, simultaneamente,

fazendo com que as leituras se dessem de maneira simultânea e justaposta. Na leitura da

obra, pudemos notar que Ariano Suassuna promove um verdadeiro discurso hibrido entre as

matrizes culturais. O sebastianismo exposto na obra é um elemento substancial desse

hibridismo luso-sertanejo. Também no decorrer deste trabalho foi possível estabelecer

relações diretas com os personagens trágicos, entre eles: Édipo, Etéocles e Polinices,

Agamênon, Orestes, dentre outros.

Diante da complexidade de uma obra como o Romance d’ A Pedra do Reino,

finalizamos esta dissertação compartilhando talvez do mesmo sentimento de Virgilio para

com a sua Eneida e de Pedro Dinis Quaderna com a sua Nordestíada; a de “incompletude

da obra”. A abrangência do romance de Suassuna e, consequentemente, desta dissertação

me leva a constatar que uma pesquisa de mestrado se mostra insuficiente para satisfazer

plenamente o que se exige deste objeto de estudo. Contudo, essa “incompletude” se mostra

113

também positiva, pois ela aponta direcionamentos para um possível doutorado no futuro.

De todo modo, é também interessante que a pesquisa se apresente como “incompleta”

porque ela também não busca soluções fechadas, ela busca problematizar temáticas, através

da analogia, podendo se desenvolver para além do que aqui foi mapeado. Desta forma,

encerramos este trabalho com a perspectiva de poder, talvez, retomá-lo e aprofundá-lo em

um futuro projeto.

114

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119

VIII – ANEXO

TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA COM ARIANO SUASSUNA40

Yuri: Primeiramente, a minha dissertação trata da influencia do épico e do trágico no

Romance d’ A Pedra do Reino. E eu vim aqui, justamente, para fazer algumas perguntas

que possam contribuir para a minha pesquisa de mestrado a ser defendida lá na UFRN.

Então, para começar, em sua obra nos podemos perceber inúmeras citações. O Romance

d’A Pedra do Reino possui alguma influência das epopeias de Homero e Virgilio? Ou de

outras obras? Como ocorre esse processo de apropriação de outros textos da tradição em

seu processo de escritura?

Ariano: Olhe, acho que tem uma presença, aliás, evidente, de Homero, é muito evidente.

De Virgilio, menos, porque eu gosto mais de Homero do que de Virgilio. Aliás, se tem de

Homero tem que ter de Virgilio, porque Virgilio é um seguidor fiel de Homero, não é? Eu

acho que ele até se sentiu mal com isso no fim da vida, porque ele pediu para não publicar o

40

Entrevista realizada no dia 19 de Agosto de 2013, com participação do professor Alex Beigui, na residência

do autor em Recife/PE.

120

livro dele, mas publicaram! Não o obedeceram, e olhe o que fizeram com ele. Porque a

Eneida é um mito, inclusive pra nós latino-americanos, e brasileiros em especial, tem um

sentido muito honroso. Eu não se você viu, por acaso, o filme que Carla Camurati fez sobre

o rei Dom João VI...

Alex: Dom João VI, seria o “Carlota Joaquina”? Ariano: De Carla Camurati. Yuri: Sim, vi. Ariano: Pois bem, ela me chamou pra ver o filme, eu vi, e disse a ela: Olha, você foi muito

injusta com Dom João VI, porque Dom João VI é apresentado, aliás é uma coisa quase que

geral, como uma figura ridícula, não é? Como uma figura ridícula, sujo, comilão. Olhe, ele

até poderia ser isso tudo, mas ele foi uma figura extraordinária. E ele desempenhou um

papel. Eu disse até a Carla Camurati (eu não devia nem ter dito porque terminou sendo uma

grosseria com ela), eu disse: Olhe, só houve outro exemplo na história, semelhante, de um

rei que, derrotado, se deslocou, com toda a sua corte, para outro lugar e fundou um novo

país, foi Enéias, é por isso que a gente diz A Eneida, Enéias com Anquises. No caso aí,

Dom Pedro foi e Enéias, e Anquises era o Dom João VI. Eles se transportaram. Tróia sendo

derrotada, eles se transportaram para a península itálica e fundaram Roma. Dom João VI

fez isso, e eles fizeram isso. Agora, Enéias e Anquises tiveram a sorte de encontrar Virgilio,

e Dom João VI encontrou você!41 (Risos) Daí ela me disse: Mas eu estive em Portugal, e a

opinião unânime lá é contra Dom João VI. Eu digo: E você é portuguesa? Porque essa é a

opinião dos portugueses porque eles não o perdoam pela independência do Brasil, e foi ele

quem fez! Foi Dom João VI que fez a independência do Brasil, Portugal até hoje não se

conforma por ter perdido o Brasil, mudou o Brasil! Eu também, se fosse português, teria

uma raiva danada de Dom João VI. E você pegou essa opinião dos portugueses e fez sua!

E, principalmente você, que é carioca, porque eu acho que pro Brasil ainda pode ser que

como pros portugueses ele seja o Dom João VI, mas pros cariocas? Você veja; ele abriu os

portos, em primeiro lugar. Segundo lugar; fundou o Banco do Brasil. As instituições que

ele fundou estão todas aí. Fundou a Biblioteca Nacional, doou inclusive, a biblioteca

nacional está lá! Foi Dom João VI que doou, não sei se doou ou fundou. O jardim

botânico... não é? Quer dizer, ele para o Brasil foi uma figura de importância crucial! Pois

bem, então eu, que sou uma pessoa muito atenta a essas coisas, desde muito moço... é claro

que na Pedra do Reino tudo isso está sendo colocado num ponto de vista irônico; o épico

41

Referindo-se à Carla Camurati.

121

na Pedra do Reino está tratado com um ponto de vista irônico, mas tem um lastro de

verdade e entusiasmo em minha obra que é meu. (Risos)

Alex: Porque, na verdade, fica muito evidente a questão da epopéia no romance, então é um

livro híbrido, não é?

Ariano: É, é verdade. Alex: Então, fica muito claro isso. Mas a tragicidade, porque há elementos trágicos... Ariano: Há, perfeito. Alex: Então essa tragicidade, ela não é tão evidente, eu acho que pela própria proposta de ser um romance, isso é... Ariano: A tragicidade. Veja bem, eu procurei colocar o que existe de trágico no

personagem que é o padrinho de Quaderna, Dom Pedro Sebastião. Ele é um personagem

trágico, não é? Quaderna não é porque ele sai pelo cômico. Yuri: Ele entraria, então, nessa perspectiva, do “bode expiatório” da tragédia grega? Ariano: O quê? Yuri: Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, ele entraria na perspectiva do pharmacós, do

“bode expiatório” da tragédia grega? Ariano: O Dom Pedro Sebastião? Yuri: Isso. Ariano: Não... eu acho que não necessariamente o bode expiatório, porque... você veja: o

bode expiatório era mais uma figura ritual e religiosa, não é? Porque representava Dioniso,

que era o deus do teatro, não é? Era o animal sagrado de Dioniso, o bode. “Bode” em grego

é tragos, o nome tragédia vem de tragos que significa “bode”, porque era o prêmio (inclusive)... era o prêmio dado ao dramaturgo que ganhava o concurso literário, digamos

assim, que acontecia concomitantemente com as olimpíadas, não é isso? Eles faziam os

jogos olímpicos, e nos jogos olímpicos se encenava as trilogias, as tetralogias, se

encenavam as peças e o prêmio era um bode em homenagem a Dioniso. Então, era um

animal sagrado, não é? Agora, pode ter uma alusão a isso pelo fato de que eu criei no Dom

Pedro Sebastião uma figura paterna. Eu não se você prestou atenção a isso, mas, muito mais

do que o próprio pai de Quaderna, Justino Quaderna, o pai (verdadeiro pai) que ele admira,

o pai que ele protege, é o Dom Pedro Sebastião, não é? De padrinho. Não é a toa que

padrinho é o substituto do pai. Então, se você prestar bem atenção, a figura trágica na

Pedra do Reino é o pai substituto de Quaderna... porque o Quaderna tem uma face

ambivalente. Ele tem um lado que é trágico, sério, e tem um lado palhaço; um lado irônico,

um lado cômico. Você sabe que, de todos tipos de riso; o humorístico se caracteriza por ser

122

essa fusão de doloroso e risível. Quaderna é um personagem não propriamente cômico, ele

não é somente cômico, ele é humorístico, que ele tem um lado cômico e um lado doloroso.

Alex: E ele é profano, não é? Ariano. Ariano: Sim, profundamente, até no ponto de vista religioso, ele funda um novo... um

catolicismo próprio, não é? Onde ele possa estar saindo. Eu divido sempre o romance em

dois hemisférios: o hemisfério rei e o hemisfério palhaço. Então Quaderna funde isso muito

bem, não é? No hemisfério rei, quando ele está exercitando o hemisfério rei dele, ele é o

filho do rei assassinado, que é Dom Pedro Sebastião, o rei degolado, ele é o personagem

que é sujeito ao sofrimento, como todos nós. Mas ele, do lado palhaço, ele tem essa saída,

ele sai pelo riso.

Yuri: Nós sabemos que os personagens trágicos como Agamênon, Electra, Édipo,

Antígona... eles possuem uma linhagem trágica. Essa linhagem trágica da tragédia grega

influenciou na escrita, na linhagem trágica de Quaderna? Ariano: Eu acho que sim, você veja que ele mesmo faz a narração que seria, por exemplo;

ele é uma espécie de “Orestes”, não é? E Orestes é filho de um rei assassinado como Quaderna, e como eu. (Risos) Alex: Na Pedra do Reino, tem aí um escritor que domina a estética completamente, então

tem um lado intuitivo-criativo, mas tem um lado também de extrema consciência. O lado

“Ariano crítico”, “Ariano professor”, a biografia do Ariano na verdade, que é muito forte, entra na obra?

Ariano: Entra. Olhe, eu vou lhe dizer, na verdade já tem relatos por aí. Na verdade, A

Pedra do Reino surgiu de dois fracassos meus. Eu, nos anos 50, tentei escrever uma

biografia do meu pai. Mas eu não consegui levar adiante, aquilo era como se eu estivesse

mexendo numa ferida nunca cicatrizada, não consegui. Aí eu tive o primeiro fracasso, que

eu não consegui fazer essa biografia. Depois eu tentei fazer um longo poema épico sobre

ele que se chamaria Cantar do Potro Castanho, mas eu também não conseguia. A poesia

dava um distanciamento maior mesmo, mas mesmo assim eu não conseguia. Então eu

deixei pra lá, e disse: “Eu não vou tentar mais nada nessa vida não.” Aí, em 58, depois de

eu ter deixado isso pra lá, comecei a querer escrever um romance que terminaria sendo o

Romance d’A Pedra do Reino. E se eu perceber; a Pedra do Reino terminou sendo o

substituto ficcional do romance, da biografia e do romance, e do poema que eu não tinha

conseguido escrever. Eu só percebi depois. Depois eu fiz várias versões, eu faço sempre

várias versões depois que eu escrevo. Numa das versões, que eu dei por terminado, que eu

pensei que estava terminado, veio uma irmã que eu tenho chamada Germana que cuja

123

opinião eu levo muito a sério, aí ela disse pra mim assim: “Ariano, você percebeu que a

morte do padrinho de Quaderna é a morte de João Dantas?” Eu lembro que era um fato

pessoal ligado à minha família. Aí eu fui olhar: “E é mesmo!”. João Dantas foi encontrado

morto com a garganta cortada no dia 06 de Outubro de 1930 na detenção aqui do Recife,

que é hoje a Casa da Cultura, num aposento elevado e estava trancado por fora, então, aí eu

vi que era mesmo. Inconscientemente eu tinha recriado a morte de João Dantas na Pedra do

Reino como fato ficcional, mas tinha uma origem (inclusive) autobiográfica minha muito

forte! Então, depois que ela me disse isso, eu acentuei um pouco a semelhança, dei para

planejar racionalmente de propósito, de maneira que terminou o seguinte: não é que os

Garcia-Barretto seja os Dantas Vilar, não é que os Quaderna seja os Suassuna, eles são uma

recriação exagerada, meio caricatural, das duas famílias. Como também os dois

personagens que representam a esquerda e a direita, Clemente e Samuel, são criados a partir

de dois tios meus que exerceram uma influência fortíssima na minha formação de escritor;

meu tio Joaquim Dantas forneceu elementos para “Samuel” de direita, e meu tio Manuel

Dantas Vilar forneceu elementos pra “Clemente” que era de esquerda.

Yuri: Eu percebo que o senhor acrescenta uma ironia. Existe uma ironia muito forte nesse

crime que não é solucionado no Romance d’A Pedra do Reino, porque acaba o livro mas

não se sabe como. Talvez essa seja a grande ironia da obra, ou uma das grandes ironias da

obra, que é esse crime sem solução, que eu acho que é uma questão que senhor trouxe para

(talvez) uma questão real... Ariano: Olhe, veja bem. Eu, quando menino, eu li muito, quando menino mesmo,

adolescente! Eu li muitos romances policiais e muitos romances de aventuras. Tem um

romance, dois de aventuras... dois não, três ou quatro... porque eu li muito Alexandre

Dumas nessa época, eu tenho uma admiração por ele (ainda hoje) enorme, eu não admito

que se considere ele um escritor de segunda mão não! Eu tenho uma admiração por ele

enorme. E existe um discípulo dele que eu admiro muito também, uma figura muito

curiosa, um escritor chamado Rafael Sabatini, não sei se você já ouviu falar nele. Ele era

uma figura curiosa porque ele era filho de uma mulher inglesa, a mãe dele era inglesa e o

pai era italiano, e ele nasceu em Portugal, certo? Ele tentou escrever esse livro, que eu

tenho uma admiração enorme, uma verdadeira obsessão, é Scaramuccia. E eu gosto muito

também de Memórias de Um Médico de Alexandre Dumas, e muito mais... dosTrês

Mosqueteiros... Pois bem, eu li muito na infância e na adolescência esses dois escritores de

aventuras, e li muito dois escritores de romances policiais Conan Doyle o autor de Sherlock

124

Holmes e um autor chamado Edgar Wallace, um inglês, pois bem, se você tiver curiosidade

de sair por aí vá pelo livro; tem um momento que o corregedor interrogando Quaderna

sobre a morte do tio, que ele suspeita que foi o Quaderna... aí ele começa dizer quando

perguntam: “Não olhe, o meu crime é insolúvel e não tem pista, nenhuma foi encontrada,

com pista é fácil, pista é pra esses romancezinhos estrangeiros aí, o meu não tem pista não,

e aconteceu o fato.” Aí ele diz: “Mas não tinha pista nenhuma?”... “Não tinha pista

nenhuma! Nem vela dobrada, nem alfinete novo, nem disco mortífero...” isso tudo é das

minhas leituras de infância. Yuri: Então é uma ironia com essas leituras que o senhor possui... Ariano: Não, é uma ironia com o fato. E outra coisa, eu tentando dar um tom... eu procuro

dar um tom cômico àquele fato que pra mim foi terrível, não é? A morte de João Dantas é

um negócio horrível, inclusive foi a causa da morte do meu pai. E aí eu faço uma

brincadeira... vocês são paraibanos?

Alex: Eu sou paraibano. Ariano: E ele? Yuri: Eu sou carioca e cresci em Natal. Eu sou natalense de criação. Ariano: Então, é... eu estava falando na morte de João Dantas... Yuri: Na morte de João Dantas que acabou resultando na morte de seu pai. Ariano: Sim, o nosso conterrâneo,42 Bráulio Tavares é um grande especialista. Eu escrevi

lá na Pedra do Reino, eu escrevi para tirar uma brincadeira comigo mesmo, nunca pensei

que alguém entendesse aquilo quando ele disse... aí, Bráulio Tavares foi em cima! Ele disse

pra mim, e ele escreveu até: “Aquilo é uma situação típica de romance policial que se chama crime de quarto fechado.” E ele tinha lido, e por acaso ele conhecia os dois livros de

Edgar Wallace que eu estava brincando com ele, era... chama-se A Pista do Alfinete Novo e

a Pista da Vela Dobrada, mas eu disse: “Não tem pista nenhuma! Não pista do alfinete novo, não tem vela dobrada!” Eu nunca pensei que alguém identificasse, ele identificou e foi lá. A Pista da Vela Dobrada é um crime em que o sujeito é encontrado morto dentro do

quarto, com a tranca de ferro por dentro. No meu é por dentro, a diferença é que lá tinha a

vela dobrada no chão, era a única coisa que tinha, e na de Quaderna nem isso! Não tinha

alfinete, não tinha nada. Sabe como teria sido a morte lá do nosso lá do da Pista da Vela

Dobrada? O assassino matou, o camarada dele queria matar, deixou lá ele deitado na cama,

ele tava dentro do quarto, não é? Aí ele pega a tranca de ferro que vai cair “aqui” no gancho, não é? Ele deixa encostado uma vela acima da tranca, sai, tranca a porta com chave

42

Do autor e do professor Alex Beigui.

125

por fora e acende a vela, ou seja, ai a vela vai desmanchando, desmanchando, quando a vela

acaba de desmanchar a tranca cai. Aí eu me baseei nessa brincadeira.

Yuri: Em determinada parte do Romance d’ A Pedra do Reino, Quaderna revela que em

sua infância se envergonhava de seus antepassados em razão desses inúmeros assassinatos,

como o massacre da Pedra do Reino e tudo mais... daí, já na fase adulta, Quaderna passa a

enxergar o passado trágico da família como um “pormenor” que apenas realça a sua extirpe

nobre...

Ariano: É até honroso! (Risos) E ele compara com um rei de fora né? Ele diz: “Olhe, o rei

Felipe, o Belo, da França, falsificava dinheiro...” aí ele diz: “Falsificação de dinheiro é um

crime chifrin comparado com degolar uma pessoa...” do ponto de vista régio e monárquico

ele quer é embelezar esse fato horroroso né, aí ele compara com o rei de fora.

Yuri: Daí nós sabemos que na tragédia grega, na Antiguidade Clássica, o “fim trágico”

enobrece, então esse entendimento influencia o pensamento de Quaderna? Ariano: Influencia, agora, você veja bem... ele apenas dá o conceito grego de trágico, ele

dá, e dá como se nada desse passado desonroso dele dividisse, o que ele faz por meio do

humor às vezes, não é? (Risos) E ele levando a sério! Yuri: Então essa questão da nobreza do herói trágico... Quaderna também se... Ariano: Ah claro! Do ponto de vista dele, ele é uma pessoa altamente nobre, não é?

Altamente nobre! E o pai dele também, não é? Ele exalta todas essas coisas para poder se

engrandecer a si mesmo.

Alex: Essa questão por exemplo... falei um pouco da crítica, da biografia pessoal, mas tem

uma biografia historica também, não é, Suassuna? Vários episódios históricos estão na

Pedra do Reino... guerras, batalhas... e aí tem uma questão que é esses fatos históricos são

ficcionalizados, mas a referência é muito forte, principalmente pro Nordeste. E aí eu queria

perguntar sobre... a ironia não é só da personagem. Tem uma ironia também da questão do

contexto social brasileiro em relação a esse movimento de absorver as idéias de fora de

uma maneira, sem peneira, e valorizar o... porque Quaderna vem, de certa forma, com a

ironia mas vem colocar valores que passam às vezes despercebidos da classe, vamos dizer

“privilegiada”, que tenta copiar esses modelos de fora, não é?

Ariano: É, agora você veja bem; há uma maneira diferente quando ele encara, quando você

fala desses modelos que vem de fora... ele tem uma maneira diferente de encarar os

modelos mais ligados ao capitalismo e dos outros que vem da aristocracia. Ele não leva a

sério, não é? Ele... eu não sei se você se lembra mas tem um trecho onde ele lê quando ele

está sozinho, ele está em cima do lajedo, e ele lê uns trechos escritos por Antônio

126

Conselheiro, e ali tem uma denúncia muito forte contra o capitalismo e contra o seu

campeão do mundo que é os Estados Unidos, não é? Ali ele fala com raiva mesmo. Ele

quer levar na graça, e ele leva.

Yuri: Tem um trecho que romance que tem uma cegueira que acomete Quaderna, que ele é

metaforicamente cego por dois gaviões... e Quaderna também se define como “decifrador” e

“charadista”. Poderíamos identificar uma influência do Édipo Rei nessa perspectiva? Ariano: Sim! Do Édipo Rei e de Homero também! O fato de Homero ser cego. Ele faz

questão de ser cego também para não ficar abaixo de Homero. E ele tem isso de Édipo

também. Eu não sei se você se lembra mas ele tem uma página charadistica no jornal do

Comendador Basilio Monteiro que se chama Édipo! Ele chega a dizer: “Camões era

inferior a Homero porque era cego só de um olho”. (Risos) Se ele fosse dos dois, seria

como Homero... (Risos). Yuri: Quaderna então... ele é uma representação, uma personificação da transição da

epopéia para o romance? Uma vez que ele decide escrever um romance em vez de uma

epopéia? Ariano: Sim, também! E há também uma espécie de fusão de uma visão do herói trágico

para o herói picaresco. Yuri: Lukács fala que o epopeieta descreve a realidade externa a si, enquanto o escritor do

romance preenche a realidade com sua subjetividade. Então, esse excesso de subjetividade

seria um fator que o inibiria de escrever uma epopéia? Ariano: Não... Sim, talvez. Digamos uma epopéia em verso. Mas, quando ele define, não

sei se você se lembra, ele, com a ajuda de um dicionário, define o romance. Aí ele procurou

juntar tudo debaixo do nome do romance, ele acha que o romance é ótimo porque ele pode

mentir a vontade! (Risos) Dentro do romance ele pode colocar todos os gêneros. Yuri: O Lukács fala também que o romance é um jeito de escrever sem se arriscar. Daí o

Quaderna fala que ele poderia reconstruir um reino através da literatura sem se envolver em

“matanças e morrências”. Ariano: Olha, eu não conheço o Lukács, eu nunca li o Lukács, não. Inclusive porque me

jogavam muito na cara e às vezes eu batia ele, eu não sabia, eu nunca li Lukács não. Agora,

pelo que você está me dizendo aí eu até devia ter lido. Yuri: E Lukács ele fala justamente do romance, em que o autor escreve e ele não se

envolve em muitos ricos. E Quaderna ele fala que é uma forma de reconstruir seu reino sem

se envolver em “matanças e morrências”, não é?

127

Ariano: É, sem arriscar o pescoço. Yuri: É, então coincidiu muito com esse pensamento do Lukács. Ariano: Tá bom, tá ótimo! Alex: Eu queria perguntar sobre essa questão do processo de escritura. Do seu processo

de escritura. A questão da criatividade e do imaginário, como é que ele se opera. Porque

quando a gente pega o livro da Pedra do Reino a gente percebe uma influência textual de

vários momentos; tanto da tragédia quanto da época clássica, quanto do armorial, do

movimento armorial que tem influência da Idade Média, enfim... tem todo processo ali de...

cultura popular, uma discussão sobre cultura popular, o enfrentamento da cultura erudita,

do contexto social... e o Quaderna, ele, um pouco, parece com o Macunaíma numa outra

perspectiva. No sentido de que a pedra é o muriaquitã, que o Macunaíma procura,

Quaderna foi procurar as pedras do reino que ele achava que nem existia, mas quando ele

chega lá ele vê que existe, e que é até uma decepção porque ele acha que as pedras eram... Ariano: (Risos) É, ele acha até obscenas, as pedras... Alex: E são fálicas, não é? Então, nesse processo todo há um... O senhor falou que não leu

Lukács, mas há uma investigação com anotações ou é um livro escrito de um sopro só?

Não, ou sim? Ariano: A Pedra do Reino foi muito... eu passe doze anos escrevendo. A principio,

Quaderna nem existia, certo? O personagem principal era Sinésio, o Alumioso. Então eu

comecei a escrever, de repente eu comecei a notar que havia alguma coisa de falso e que eu

não sabia o que era, aí eu parei e comecei refletir. Aí eu vi que era a minha pessoa. Eu não

devia ser o narrador, eu não devia contar a estória, certo? Não queria contar... tinha que

existir um personagem para contar. Aí, eu criei um personagem, mas a principio ele era só

um narrador, e continuava como personagem principal o outro, o Rapaz-do-Cavalo-

Branco... mas aí ele começou a crescer de ponta a ponta, aí eu tentando empurrar ele lá pra

baixo e ele subia, depois da terceira ou quarta vez eu tentei e não consegui eu disse: “Omi,

fique!”. E ele se tornou o personagem principal, certo? Porque eu vi que, através dele, além

de contar a estória eu podia contribuir pra ele... porque Quaderna não sou eu mas tem muita

coisa minha... inclusive eu tiro com isso, o dia do aniversário dele é o mesmo dia do meu

(risos), por acaso é o mesmo dia do Périplo, do Ulisses, do Jorge que é Bloom, não é?

Alex: O Bloomsday. Ariano: É, o 16 de Junho. Yuri: Em Os Sete Contra Tebas, de Ésquilo, nós podemos observar a disputa de Etéocles e

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Polinices após o exílio de Édipo. Então, após a morte de Dom Pedro Sebastião Garcia-

Barretto nós temos uma disputa entre Sinésio e Arésio. Nós poderíamos identificar uma

influência dos Sete Contra Tebas? Ariano: Muito, perfeitamente. Parabéns pela argúcia! Tem um parentesco muito...

inclusive, a Orestíada é um livro que me toca muito, e Ésquilo é um dramaturgo que me

toca muito, Ésquilo e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de Orestes por causa

daquilo que eu lhe disse. Olhe, pra mim são três graus de afastamento... você tem Orestes,

inclusive Orestes tem um amigo, não é? Pilades. Orestes e Pilades... Yuri: Lino Pedra Verde seria o Pilades? Ariano: Não, não, ele é da família. Então você tem Orestes... e você tem Hamlet e Horácio,

filho como Orestes de um rei assassinado. Não é? E você tem Ariano Suassuna (Risos),

filho de um rei assassinado. Yuri: Tem muitas similitudes. Ariano: É, há um parentesco por aí... Dada as devidas proporções. E isso vai ficar mais

claro nesse livro que eu estou escrevendo, na Pedra do Reino não está muito claro não

porque Ariano Suassuna não está presente. Yuri: E ainda na perspectiva esquiliana, temos também Os Persas... que na Pedro do Reino

tem uma menção à Guerra de Princesa, então essas Guerras Médicas que de certa forma

influenciaram a escrita de Ésquilo... Ariano: Eu me lembrei assim, não tão conscientemente, tal qual Homero, eu sabia que nas

epopeias tinha isso, certo? Então eu fiz da Guerra de Princesa a Guerra da Pedra do Reino. Yuri: Assim como em Os Persas há um fundamento histórico, na Pedra do Reino também há um fundamento histórico que é a Guerra de Princesa... Ariano: Sim, perfeitamente. Yuri: Seria outra característica de Ésquilo que detectei na sua obra. Ariano: É. E eu não dei um título de rei a João Pessoa porque eu queria dar a catarse a ele. (Risos) Yuri: Então, vejamos, a ausência de uma linearidade na obra é uma contraposição

intencional à unidade aristotélica?

Ariano: Não, olhe, eu sou um admirador das unidades aristotélicas... Não sei se você se

lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um dia. Yuri: Então é um tempo de sol... Ariano: É uma unidade de tempo. É o tempo de narração, porque o tempo de narração dele

ao corregedor passa-se num dia só. Quando ele sai do depoimento ao corregedor a noite

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está começando a cair. Yuri: E nós percebemos assim, que, Quaderna, como o herói grego, ele tem uma... O herói

grego trágico tem um destemor, uma desmedida, Quaderna tem uma grande vontade que é a

de reconstruir esse reio mas ele não quer arriscar sua integridade física... Ariano: ... agora você veja bem; ele, de vez em quando fala isso, que ele não tem coragem,

mas você se lembre que o livro é um apelo que ele está fazendo no processo, ele quer

aparecer como pacífico, certo? Então ele não queria nem fazer nada disso... Alex: Mas vai fazendo. Ariano: Vai fazendo! Você viu a adaptação da Pedra do Reino pra televisão? Yuri: Tenho o DVD. Ariano: Tem? Você presta atenção... eu escrevi aquele final de propósito, e lá... Yuri: Eles mudaram o final... Ariano: Mudaram não, fui eu! Não sei se você... porque aquilo só se revelava no terceiro

romance. No terceiro depoimento que ele narra, no quarto... ele abre a camisa e mostra os

ferimentos que ele recebeu durante a vida toda, o que faz “Margarida” se desmanchar de

amor por ele, está entendendo? Ele ta fazendo o depoimento pelo motivo de que ele quer

conquistar Margarida... aquilo ele está se mostrando pra Margarida, não é? Pois bem, aí no

fim ele mostra uma face real dele, uma coisa que ele nunca faz, ele mostra o que ele passou

durante a vida toda. E não é de homem frouxo não! (Risos) Ele está cheio de ferimentos. Yuri: Diferentemente do herói trágico grego ele não segue uma linha reta em si... Ariano: Não. Yuri: Então ele se contrapõe a esse herói trágico essa perspectiva? Seria um herói

antitrágico, ou herói trágico? Qual seria a melhor nomenclatura para tentar defini-lo?

Ariano: Não, ele é. Digamos... ele é um herói trágico que se traveste de herói cômico pra

escapar da prisão. E outra coisa que eu revelo na minissérie: foi ele quem se denunciou a si

próprio, porque ele não quer ser considerado inferior, a idéia dele tinha sido essa. Ele diz:

“Olha, o importante sou eu, tanto assim que estou sendo procurado!” Mentira, foi ele que

mandou a carta denunciando ele mesmo! Yuri: Inclusive na obra não tem... Ariano: Ele é o mártir da literatura! (Risos) Yuri: Já na TV que ele revela. Na obra não... na obra não fica claro quem foi. Ariano: Ah, sim! Porque a obra teria uma continuidade que não teve, não é? Eu avancei o

final da terceira para a adaptação da TV.

130

Alex: Ela, a obra, é dividida em folhetos. Não é isso? Que me lembra um pouco a divisão...

toda uma influência assim da divisão de obras narrativas, por exemplo: se a gente pegar A

Divina Comédia, enfim... o Fausto... tem uma divisão, os folhetos...

Ariano: A Divina Comédia sempre exerceu um fascínio enorme sobre mim, viu? Inclusive

pelo seguinte: vocês acabam de me falar que a Pedra do Reino não é uma tragédia grega,

não é, ela vem, mas não é. Vocês já viram que na Divina Comédia acontece a mesma coisa?

A Divina Comédia é uma epopeia completamente singular! Começa que o personagem é o

narrador, isso é uma característica da poesia lírica, não é? Você vê, a pessoa que fazia

poesia lírica era “eu”... Eu cantarei meu amor tão docemente, por uns termos em si tão

concertados... não é? Alma minha gentil, que te partiste... naquela triste e leda... é um

poeta lírico! O narrador principal é o ator principal... Alex: Que é acompanhado na Divina Comédia por um poeta... Ariano: Na Divina Comédia o autor é o narrador. O narrador é o personagem... isso é uma

qualidade da poesia lírica! Yuri: É Virgilio quem o acompanha. Ariano: É, mas Virgilio sendo ele mesmo! O poeta! Ele começa... Eu o encontrei por uma

estrada escura... eu! Quer dizer... e é o Dante que anda pelo inferno, pelo purgatório, e pelo

paraíso. Virgilio o acompanha até o purgatório. Yuri: Podemos entender esse juiz-corregedor como uma personificação do julgamento da polis? Ariano: Sim, podemos sim, exatamente! Com todos os equívocos que isso acarreta, não é?

O corregedor não entende Quaderna, não alcança nada do que ele fala, não é? Ele quer

enquadrar Quaderna nos autos de um processo comum, e não pode... Mas ele é isso! Tanto

do ponto de vista político... do ponto de vista literário, ficcional, etc. Ele representa essa

visão estreita do real que jamais poderia abarcar Quaderna. É o que chamamos a literatura

de o “antagonista”, não é? Quaderna é o protagonista, e o corregedor é o antagonista.

Praticamente é o “espelho” ao contrário. Yuri: Então, uma pergunta para finalizar, voltando já para o Lukács. Ele fala que a

epopéia, a Ilíada e a Odisséia, eles imprimem uma totalidade do mundo grego. Então, a

Nordestíada, que seria escrita pelo Quaderna, caindo pelo viés irônico, seria uma forma de

Quaderna imprimir uma totalidade da região nordeste nessa perspectiva? Ariano: Sim, é uma tentativa de fazer da sua pátria um lugar sagrado, como a Grécia pra

Homero, como a península itálica pra Virgilio, Florença na Toscana pra Dante, é a tentativa

de fazer seu tropos heróico.

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Yuri: Esse caráter nacional é muito forte a epopéia, e ele traz para a epopéia nordestina. O

caráter heróico do nordeste. Ariano: Exatamente. Ele além de achar que o nordeste é o coração do Brasil, ele acha que

o sertão é o nervo e o dorso do nordeste, certo? Yuri: Bom, eu acho que é só... Alex: Queria agradecer, Ariano... Ariano: Não, eu que estou muito satisfeito. Não por estar na frente de vocês não. Pela

primeira vez me fizeram perguntas novas e diferentes (Risos). Eu já não agüento mais não!

(Risos) O Alexandre fala brincando que ele vai providenciar um gravador... “resposta um,

resposta dois.... e aí... aperta aí o botão um!” (Risos) eu não agüento mais não!