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Yeb Bur

Como Yeb Bur, Senhora dos enfeites, e Eva, que comeu a ma, so mulheres

Para o Deivy, no ms do seu aniversrio.

Neiza Teixeira

Doutora em Filosofia

Professora no ISCE-Felgueiras

[email protected]

Na mitologia Desana Kehripr a mulher ocupa um lugar privilegiado na criao do mundo. Enquanto na mitologia crist destaca-se um ser do sexo masculino como fazedor do mundo ou como o Grande Criador, na mitologia dos ndios Desana Kehripr aparece resplandecente uma figura feminina como a Grande Criadora Yeb Bur.

O antagonismo destas origens nos serviu de mote para pensarmos a mulher que somos: a nossa condio, as nossas lutas, as nossas obrigaes e papis e, sobretudo, os meios que utilizamos para nos fazer notar numa sociedade que, para ns Ocidentais, ainda imprio dos homens. No se trata de propor um mundo melhor ou possivelmente melhor, trata-se de pensarmos, refletindo sobre as origens, nos meios de integrao e de pertinncia, dado que o estigma das origens determinante, quando se pensa o lugar que a mulher ocupa no Ocidente.

De entre os vrios meios utilizados, pretendemos recortar e esquadrinhar apenas um: o da Beleza. Este recurso tem sido ao que se recorre com mais frequncia. atravs dele que se demarca o espao feminino e que a mulher se integra, tornando-se muitas vezes um produto a mais de consumo, ou transformando-se num cabide que sustenta muitos outros produtos de consumo. Assim, a nossa leitura busca, no campo da Esttica, demarcar uma via de integrao para a mulher numa sociedade que se ressentiu sempre em conceder-lhe um espao onde ela seja um autnomo constituinte.

Conforme os tempos, o conceito Belo re-formula-se, re-acrescenta-se, re-trai-se e re-informa-se sem contar que aquilo que ns judicamos como Belo ganha dimenses at incompreensveis em contextos culturais diferentes. Todavia, h, desde sempre, um pendor do homem para aceitar a provocao do que lhe desperta sentimentos de xtase, admirao ou prazer atravs das sensaes visuais, gustativas, auditivas, olfativas, etc. Do mesmo modo, h um pendor seu para aquilo que possui harmonia, proporo, simetria, imponncia, assimetria, rejeio e at mesmo desconforto. Estas tm sido as idias do Belo ou do Feio que, mesmo em conflito, nos sustentam.

assim que, conforme os tempos, a Mulher re-adequa-se s exigncias que ela, na maior parte das vezes, opta por obedecer, muitas vezes assumindo livremente a escravido. A Beleza, como tambm a Fealdade, so expresses culturais. Nesse sentido, so suportes/ou no da integrao social. No entanto, como ambas so conceptuais, elas variam de povo para povo. Assim, a mulher no se serve dos mesmos instrumentos para tornar-se Bela em todos os lugares. Por outro lado, ser ou no ser Feia expressa cosmovises, por isso, tanto a beleza quanto a fealdade so geradas em contextos particulares o que implica na rediscusso de um conceito universal para o gosto e para o prprio belo. Acrescente-se que a amplitude do conceito belo permite-lhe ser muito mais do que a produo de sensaes de agrado ou de desagrado, ele pode portar um vasto, enigmtico e profundo discurso.

Considerando estas susceptibilidades do Belo, que ganha matizes culturais, adequando-se a, ou decretando cosmovises que, por sua vez, definem o tempo e o espao, pretendemos estabelecer uma comparao entre as filhas de Yeb Bur (estendemos a leitura a outra ndias do Brasil) e as filhas de Eva, que se tornou mulher frtil aps comer a ma e que, por isso, pariu homens e mulheres que precisam constantemente reintegrar-se no mundo, no sentido de visualizar a Beleza como recurso para o estabelecimento da mulher na sociedade.

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A narrativa Desana, na verso de um dos seus grupos de descendncia, os Kehripr ou Filhos (dos Desenhos) do Sonho (Umusu; Trmu:1995;19), comea o mito das origens, dizendo que no princpio o mundo no existia. As trevas cobriam tudo. As tnebras serviram de bero para a auto-procriao de uma mulher, que apareceu sustentando-se sobre o seu banco de Quartzo branco. Chama a ateno um elemento no ato do aparecimento da mulher que atende pelo nome de Yeb Bur. Enquanto estava aparecendo, ela cobriu-se com os seus enfeites e fez como um quarto Uttboho taribu, o Quarto de Quartzo Branco. A mulher, Yeb Bur, a Av do Mundo ou a Av da Terra.

O fato que merece ser estimado que no ato da construo do Quarto de Quartzo Branco Yeb Bur utilizou-se dos seus enfeites. Conforme Houaiss, enfeite aquilo que enfeita; adorno, ornamento, afeite (Houaiss; Salles: 2004;1144). Por sua vez, enfeite tem como antnimo desenfeite que, cumprindo sua funo, significa o ato ou efeito de desenfeitar; aponta para a falta de enfeite ou para o desenfeitamento. O desenfeite ou desenfeitamento impensvel numa tribo indgena da Amrica descoberta pelos portugueses. Pro Vaz de Caminha, autor da Carteira de Identidade do Brasil, foi prdigo em mostrar para o Ocidente o apego dos habitantes de Novus Mundus aos realces dos seus enfeites. sua a descrio que se segue: Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, midas, que querem parecer de aljaveira (Corteso:2000;157). Estes presentes foram oferecidos pelos primeiros habitantes da Amrica Portuguesa no momento em que, oficialmente, pela primeira vez avistaram os portugueses. Os Amerndios despojaram-se das suas coberturas para agraciar aqueles que lhes ofereciam acessrios. Caminha, alm de falar desta troca de gentilezas, descreveu com riqueza de detalhes os dois primeiros ndios que subiram nave do Capito Pedro lvares Cabral. Do escrivo da frota chegaram at ns os primeiros retratos dos habitantes de Novus Mundus, inclusive, o registro das suas pinturas, que ocupavam o maior espao nos seus corpos. Hoje sabemos que as cores que se desenvolviam como uma narrativa nos seus corpos e os cocares coloridos que enfeitavam as suas cabeas, alm do efeito visual, cumpriam uma funo crucial no universo cultural daqueles povos. Eles eram elementos de identificao, intercmbio contnuo com o transcendente, definio social, determinao de responsabilidades e anncios de paz ou de guerra. Assim, em toda a bibliografia concernente aos Amerndios constante a nfase aos seus enfeites, portanto, consequente a tentativa de compreend-los como veculos de integrao e de pertinncia social. ainda aceitvel considerarmo-los como elementos estticos, uma vez que a se manifesta a vontade de beleza que, de uma maneira geral, uma das caractersticas dos ndios brasileiros. Neste sentido, a Esttica a via pela qual o Ser busca o seu ambiente no espao e no tempo que, independentemente do seu querer, renovam-se.

Como vontade de beleza podemos compreender o comportamento da mulher que requer para si, constantemente, uma via de integrao e de pertinncia a um mundo que de si nunca lhe foi muito ameno (quando consideramos a mulher do Ocidente ou quando olhamos pelo olhar do Ocidente a ndia que habita a regio da Cabea do Cachorro, percebemos que h um pendor seu para o estabelecimento e para a distino atravs de um universo visual onde se renem as cores, o extico, o ertico, as formas, o movimento e a fantasia), precisando constantemente demarcar um espao seu, de mulher, feminino, que realce as suas caractersticas e aprofunde o seu universo, a isto chamamos vontade de beleza. esta vontade de beleza, que necessita realizar-se, que nos impele a considerar os enfeites como algo mais do que o simples desejo de exposio ou de volpia.

O Ser se estabelece no mundo constituindo-se de forma e matria que, por sua vez, se do a existir no tempo e no espao, como tempo e espao so estruturas mutveis (aqui referimo-nos ao tempo/espao histrico Ocidental), a sua mutabilidade se deve queles que lhes poderiam ser subservientes. Mas, ao contrrio, despontando como ser autnomo, o homem, nos vrios perodos, como Ado no momento inaugural, nomeou tudo o que estava sua volta, ou seja, tentou preencher tudo com a sua presena. O maior exemplo disto pode ser vislumbrado em Novus Mundus, quando o Ocidental negou a linguagem extra-europia, o estar-no-mundo de outros seres, impondo o que considerava no-rudimentar e superior.

Ao mesmo tempo, a prpria linguagem encerra as suas prprias contradies. o caso de lembrar o estudo de Panofsky sobre o Belo, onde mostra que a idia de Plato em breve tempo se deslocou do lugar privilegiado em que o filsofo a encerrou para incrustar-se no prprio esprito do artista (Panofsky:1994). Isto requer que se tenha em ateno a mutabilidade das coisas e, consequentemente, a fluio de novos conceitos que antropofagicamente geram a sua prpria diferena.

Como consequncia, chegamos hoje a admitir que a Beleza idealizada pelos gregos, particularmente Plato, no tem mais lugar absoluto no nosso sentir, no nosso olhar, na prpria arquitetura do nosso pensamento. por isso que, hoje, de uma maneira geral, as coisas recebem o adjetivo Belo como algo adquirido e construdo. Neste sentido, no h mais lugar para o Belo-em-si ou para uma idia do Belo imperecvel, imutvel. Eterna!

na busca do Belo, to voltil quanto o prprio vento, que nos escapa sempre e se socorre nos braos da Mdia e dos mercados, que, por sua vez traduzem as manipulaes do gosto, que o homem corre atrs dos ltimos lanamentos da moda, da esttica, do fazer e do sentir. nesta busca insacivel que ele perde o seu cheiro, o seu querer e o seu prprio ser, o que nos remete para uma circularidade j conhecida.

Foi nesta fluio atnita, e antes da exploso do atual mundo globalizado, que a Europa se remeteu, depois de tanto tempo e cansada de si mesma (aqui referimos a obra magistral de Lvi-Strauss Tristes tropiques), para o que se mantinha parte. , ento, depois dos sculos da colonizao e sob outras perspectivas, que nos encontramos outra vez, atravs do mundo vivificante das artes plsticas, da antropologia, da msica, do cinema e da histria das religies, portanto, por diferenciados caminhos, com a alegria ou o sofrimento brasileiro, com as cores africanas, com o misticismo asitico, com os sabores e com os perfumes rabes e, com eles, fazemos novas construes, novos mundos e nos damos conta de outros olhares ou motivos para a reflexo mais abrangente.

Da resultam novos espaos, novos olhares, novos sentires. E, finalmente, novos Belos. Consequentemente, desta nova viragem do saber floresceu no mais uma esttica mas vrias estticas, inclusive, uma esttica do feio, do srdido, do mrbido e do excrementicial. Da quebra do paradigma universal, da aceitao da mutabilidade dos gostos e da recepo ao que antes era apenas o extico, configuraram-se novas belezas. E, conforme ao que j foi dito, dentre as vrias estticas, aquela que via moda, cirurgias, cosmtica e acessrios resultam numa beleza de propriedade quase exclusiva da mulher.

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No contexto deste trabalho, algumas imagens merecem ser postas em close. Como o Belo um conceito e no um fenmeno, fica claro que ele resulta das vrias cosmovises dos vrios povos. Ento, expomos duas imagens: a primeira a de Yeb Bur, emergindo de si mesma, coberta com os seus enfeites; a segunda a de Eva, que apenas sabemos como se apresentava aps comer o fruto, oferecido pela serpente. Neste momento, ela e seu homem, Ado, se deram conta de que estavam nus, e quando ouviram os passos de Yhwh Deus, correram para se cobrir com folhas de figueiras.

Enquanto Yeb Bur autnoma, no contando com nada mais do que seis coisas misteriosas para gerar-se de si mesma: um banco de quartzo branco, uma forquilha, para segurar o cigarro, uma cuia de ipadu, uma cuia de farinha de tapioca e o suporte desta cuia, Eva, a me do Ocidente cristo, nasceu para ser a companheira de Ado. Por isso, a sua origem: endormecido, Ado no sentiu que perdeu uma das suas costelas e no sabia que dela seria gerada a sua companheira, mas, ao acordar do seu sonho gerador e ao v-la sua frente, pronunciou palavras inaugurais: Esta sim/ ossos dos meus ossos/ carne da minha carne/ Ela a mulher que do homem foi tirada. O Ocidente, conforme as suas origens, traz a mulher gerada do homem para sua companheira. O Mundo Desana traz a mulher autnoma que, com os seus enfeites, criou o Quarto de Quartzo Branco. A No Criada, no seu Quarto de quartzo branco, pensou no futuro do mundo e dos seres. Fumou um cigarro. Comeu ipadu. Pensou. E gerou o mundo. Primeiro, da fora do seu pensamento produziu um enorme balo, no qual prendeu a escurido. A este balo imenso ela chamou Umokowi, Maloca do Universo.

No outro extremo, Eva foi gerada para permitir a formao da humanidade. Relendo o testemunho do nascimento do Ocidente cristo, fica claro que a Queda j era prevista e que mulher j havia sido decretada a sua predestinao. A ela cabia o papel de ser seduzida pela Serpente, ambas geradas pelo mesmo Criador. A serpente aproximou-se, ofereceu-lhe o belo fruto da rvore do conhecimento, a nica que fora proibida por Yhwh Deus. Eva comeu-a, achou-a to deliciosa como bela; ofereceu-a a Ado, que partilhou do mesmo prazer gustativo e visual. A partir deste momento, no haveria mais nenhum mistrio envolvendo a rvore situada no meio do Paraso como tambm j se saberia qual o fim da humanidade: desde a ciso, a luta pelo re-encontro. Neste momento, desfez-se frente ao casal a redoma que lhe concedia eternidade e desvaneceu-se o desconhecimento do bem e do mal, ento, foram amaldioados a serpente, a mulher e o homem: a serpente, apesar de inimiga mortal da mulher, a ela para sempre estaria ligada; o homem, vtima do seu prprio futuro, foi condenado ao rduo trabalho, retirando do solo, com muito esforo, o seu prprio alimento e de todos os que gerasse. Numa anttese irreversvel, a sua vida a sua prpria morte: a terra exigente d-lhe o seu alimento, em compensao, alimenta-se ela do suor do corpo dele, expectante do derradeiro instante, no qual, integralmente, ter tudo o que lhe ofereceu.

Para o Ocidente, assim foi permitido que tudo fosse, enquanto que, do outro lado, Yeb Bur, continuando a sua solitria construo, resolveu povoar a Maloca do Universo. Ento, voltou a mascar ipadu e a fumar o cigarro. Retirou o ipadu da boca e o transformou em homens, os Avs do Mundo (Umukochkusuma). O mundo ou a Maloca do Universo tinha a forma de uma torre, e, no seu extremo, situava-se o Final do mundo. Isto quer dizer que, na compreenso Desana, o Cosmo finito. E interessante saber-se que, na estrutura interna da construo h precisamente cinco divises e cada uma delas cumprindo uma funo, conforme aos papis destinados aos Avs do mundo. Mas, quebrando a nossa tradicional conformao lgica, o Funil do Mundo era habitado por um enorme morcego, que se parecia com um gavio.

Aps o trabalho inicial, Yeb Bur entregou aos Avs do mundo a responsabilidade de criar a humanidade. interessante observar que, at este momento, tudo do que se fala imortal e invisvel: Yeb Bur, as coisas das quais ela se servia, os Avs do mundo, o Quarto de Quartzo Branco, a Maloca do Universo. Ento, a criao da humanidade indica a ruptura entre o eterno e o perecvel, o contnuo e o descontnuo, o imanente e o transcendente, o material e o imaterial. Mas, justamente para mostrar que a obra dos Deuses, necessariamente, no infalvel, os primeiros Deuses no conseguiram cumprir a misso que lhes fora destinada. A Deusa, novamente, repete o ritual da origem: mascou ipadu, fumou cigarro e pensou como a humanidade deveria ser. Simultaneamente, da fumaa do seu cigarro formou-se um ser misterioso que no tinha corpo: Yeb Bur envolveu-o com o seu pari e chamou-o Bisneto do mundo.

A ele coube a tarefa que no fora cumprida pelos Avs do Mundo. Do Quarto de Quartzo Branco, lugar onde nasceu, ele levantou o seu basto cerimonial (yewig), osso do paj, e o fez subir at a Torre do Mundo. Era a sua fora que subia. Yeb Bur, imediatamente, enfeitou a ponta do basto com penas amarradas, enfeites prprios deste basto, masculinos e femininos. E este adorno ficou brilhando de diversas cores: branco, azul, verde e amarelo. Ainda foi enfeitado com um tipo de pingentes ou brincos de feies masculina e feminina. A ponta do basto ficou brilhando. Tomou a forma de um rosto humano. Ento, deu luz na Maloca do Mundo. Abe, o Sol, acabava de nascer. Yeb Bur, no final, cobriu-o com um tapume de penugem de arara (mahweayubou).

O Bisneto do Mundo comeou a escalar a Torre do Mundo, e, no seu rastro, deixando prontos vrios paris: o pari de urucu de miriti (nemuhtriimikaru), o pari de miriti meio amarelo (nebohoiikaru), o pari de frutas pequenas de miriti (nemuhtriimikaru), o pari de talos de caran (apuduhkaimikaru). Enquanto isso, Yeb Bur tirou do seio esquerdo sementes de tabaco, grozinhos minsculos, e os espalhou em cima dos paris; depois, tirou leite, tambm do seio esquerdo, e o derramou por cima dessas esteiras. A semente era para formar a terra, e o leite, para adub-la.

A construo da estrutura da humanidade continuou. Nesta mitologia cabe destacar mais um elemento fundamental e distintivo: a Maloca de Cima. Nesta maloca, est guardado um dos maiores tesouros da cultura Desana: os seus enfeites. Nesta categoria, agrupam-se: acangataras e outros enfeites de penas, colares com pedras de quartzo, colares com dentes de ona, placas peitorais, forquilhas para segurar o cigarro. Mais extraordinrio, e que justifica o lugar que lhes destinado, que estes enfeites transformaram-se em gentes.

O Bisneto do Mundo encontrou na Maloca de Cima, a do Terceiro Trovo, seu irmo Umukhomasu Boreka, chefe dos Desana. Ento, os dois irmos, juntos, iniciaram o povoamento do mundo. Yeb Bur, neste passo da narrao, desaparece. A partir de ento, a tarefa dos pais dos Desana, pilotos da Canoa da Transformao.

Este foi o papel que coube a Yeb Bur na origem do povo Desana. , ainda hoje, este mito que os ndios ouvem em roda, de ccoras no meio do terreiro, banhados pela lua, cercados pela imensa floresta Amaznica com seus cheiros e sons, esquadrinhados pelos rios, riachos, igaps, igaraps, furos e parans. a, neste tempo e neste espao, que se anulam tempo e espao e que se vive as origens.

Na mitologia crist cabe destacar que a companheira do homem surgiu tambm de tentativas, mostrando que o trabalho dos Deuses no absolutamente perfeito. Antes de encontrar a companheira perfeita, diante de Ado desfilaram todas as espcies animais, sem que quaisquer delas se ajustassem ao modelo homem. H neste espao da narrativa gensica talvez uma tentativa de humanizar o trabalho divino, pois, se Yhwh Deus, entre as suas vrias propriedades constam a perfeio e o entendimento do antes, do agora e do depois, no se justifica a insegurana sobre a companheira ideal para Ado. Ento, algo mais quer a narrativa bblica nos mostrar, talvez a inteno seja elevar o homem concedendo-lhe o direito de se ver refletido na imagem da sua companheira, da o anseio inextinguvel da unidade, ou, a re-aproximao do mortal ao divino, o que se confirma nas palavras que unem o homem mulher: Sim, o homem deixa seu pai e sua me para se unir sua mulher / Eles no so seno um / Os dois estavam nus / Ado e sua mulher no tinham nenhuma vergonha (La Bible: 2001;38). O homem e a mulher tornados um assumem a grandeza da unidade somente pertencente a Yhwh Deus. Desta feita, os contrrios anulam-se para gerar, num ato consciente, portanto, digno do Criador, outros homens. E na juno irreversvel do masculino e do feminino consolida-se a unidade absoluta apenas pertencente ao divino.

Temos para a nossa considerao duas mitologias, a Crist e a Desana, ambas relatando o surgimento da humanidade. A primeira, a da mulher, da serpente e do pecado; a segunda, a da mulher e dos seus enfeites. A mulher da Europa Ocidental, desde o incio, aceitou a sua mudez, melhor dizendo, o conhecimento da sua mudez o reconhecimento da sua inferioridade diante do divino e do seu companheiro. Na mesma linha, a nudao no permitida ao homem, da o imenso incmodo que a mesma causou nos primeiros europeus que chegaram a Novus Mundus, onde corpo/cosmo no representa Queda ou pecado. A mulher desana, desde os incios de sua histria, tende a se representar pelos seus enfeites. Desnuda, ela cobre-se com tintas e adereos, formando uma segunda pele ou cobertura e com os seus colares de penas e de missangas (um dos seus grandes tesouros), faz a narrativa do seu papel, do seu universo, do seu ser-no-mundo. No h dvidas sobre o lugar que ocupa e sobre a sua importncia. Tal como na mitologia crist, a mulher tem o seu papel originariamente definido, a diferena consiste em este no ser o da inferioridade ou do lamento.

Por outro lado, na cultura que a contrapomos, a vestidura se tornou um acessrio portador do seu discurso e, mais que isto, indicadora das origens sociais e veculo de integrao social. O bom ou o mau gosto de cada um pode ser atestado pelas roupas que enverga e nas ocasies em que as enverga. Uma vez que se busca a universalidade do gosto, a mdia trabalha incansavelmente para que todos obedeam a uma lei geral, o que favoreceria aos mercados e, por outro lado, apaziguaria a extrema solido do que Lipovetsky (1983) chama a Era do vazio.

Normalmente, o bom gosto sinnimo de domnio cultural ou de adeso cultural, o que no deixa de ser resultado de presses sociais, tendo em vista que o Belo mutilado na sua significao original (ou do que ele, inicialmente, imps ao pensamento), deixando de ser um conceito para se tornar um fenmeno. E, enquanto tal, ele forjado no sentido de se tornar o gosto de todos. Atravs da promoo do bom gosto, um poder cool controla os desfavorecidos permitindo-lhes falsamente o sentimento de equidade, iludindo-os de que chegar um momento em que todos usufruiro das mesmas coisas, se aderirem ao consumo. No entanto, se bem analisamos, maioria dos povos caber, apenas, o que poucos tm o privilgio de rejeitar. E, mais grave do que isto, a negao aparentemente voluntria que a maioria do povos faz dos seus prprios objetos, das suas manifestaes, que estruturam o seu estar-no-mundo. Esta atitude mina pela base uma cultura, mas, ao mesmo tempo, promove a dialtica do belo. A moda pode servir de exemplo, principalmente nas apropriaes que fazem os seus promotores das culturas inferiores(Lipovetsky:1983;143).

Ainda que muitos defendam o contrrio, as maiores vtimas destas simpticas apropriaes so os povos que perderam a capacidade de num mundo outro criarem as suas prprias solues para manter e transformar a sua relao com o mundo. Todavia, no se pode negar os esforos de estudiosos como Lux Vidal, que tm trabalhado para o reconhecimento e defesa dos povos indgenas brasileiros. Esta antroploga tem como objeto de estudo a pintura xikrin. Segundo a autora, a arte deste povo expressa de modo sinttico e gramatical a compreenso destes ndios sobre sua prpria cosmologia e estrutura social (Vidal:1992;143-190). Este estudo ou os estudos que apreendem o mundo por esta via, se remetem a Lvi-Strauss, na leitura que fez da pintura corporal Kadiweu, em 1955. A arte consolida-se, ento, como a via que oferece o conhecimento sobre a estrutura social de uma sociedade. E, nesse sentido, ela um constante recurso para a integrao e reveladora da integrao. A integrao no se restringe, apenas, ao universo humano, mas tambm ou sobretudo aos que foram, esto ou estavam ou estaro em outra (s) posio (s), no-humanas. Todavia, como relembra vam Velthem (2003;45), as produes imateriais indgenas foram e ainda so concebidas e executadas em contextos que no compartilham das premissas ocidentais acerca da definio de arte e da sua funo. Inicialmente, foi no campo do extico que tanto o Amerndio como as suas produes ganharam espao no Ocidente. Aqui, no possvel enveredar pelas discusses particulares aos antroplogos sobre os termos da disciplina, objeto e suas manifestaes, no que diz respeito discusso sobre a arte primitiva.

sobretudo interessante afirmar que existe entre os indgenas brasileiros uma veemente vontade de beleza, que abrange muitos domnios, enquanto parte de um sistema cultural. Esta vontade pode ser encontrada na estrutura circular das aldeias Timbira, na disposio aplicada pelos Wayana aos beijus de mandioca brava. No s nas coisas de grandeza e das necessidades bsicas que a veemente vontade de beleza se revela. Tambm em coisas midas, pessoais, como o brilho das penas verdes introduzidas nos lbulos das orelhas, o som de sementes que se entrechocam nos colares ou tangas, o ondular das pinturas corporais no esforo fsico, o odor do urucu fresco em tudo a imensurvel fora se revela.

O espao aberto, sem fronteiras e holstico dos povos indgenas, reclama a presena do amador de ruminao e de enigmas. Em muitos pontos, possvel aproximarmos os Amerndios do Brasil aos povos do perodo grego mtico-potico, principalmente na esfera do religioso, na separao praticamente inexistente entre o sagrado e o profano. Tal como os Gregos, os Amerndios so povos ritualistas, pois todas as suas crenas e formas de viver advm dos mitos, portanto, constantemente presentificados pelos rituais. Infelizmente, para ns, os Amerndios brasileiros, praticantes da linguagem oral, praticam hoje o portugus/brasileiro, o que significa, dentre muitos outros prejuzos, que a sua cosmoviso abruptamente vai sendo substituda por outra que sequer eles tm capacidade para adaptar-se, por isso, a morte acelerada dos ndios devido fome, livre opo pelo perecimento ou pelo temor de gerar descendncia. Nas regies indgenas, os missionrios com o pretexto de levar a salvao, exterminam o pouco que ainda resta dos primitivos habitantes do Continente Americano. Alm de matarem em nome da vida, negam-nos a possibilidade de termos oposio ao nosso modo de viver, de pensar e de sentir, que muitos ainda consideram absolutos.

Acrescentando-se s semelhanas entre o mundo Amerndio e o Grego, o que era representado na Tragdia grega se faz presente no canibalismo, nas guerras constantes, nas mscaras, nas danas e nos cantos. Para ambos, o desejo de fealdade, a represso, o terror, a crueldade, o mstico, a destruio, a fatalidade no so desejos ou sentimentos que se deve negar ou esconder. Da, na grandeza a decadncia, na beleza a fealdade, na jubilao o pessimismo. E, desta forma, na pujana o esplendor do germe da destruio, que da grandiosidade se alimenta.

Apesar de Nietzsche fazer uma grave reconsiderao sobre a obra O nascimento da tragdia ou helenismo e pessimismo, uma idia estar sempre presente: a arte e no a moral,- apresentada como atividade metafsica propriamente dita do homem. Assim, a existncia do mundo unicamente se pode justificar como fenmeno esttico. Esta percepo do mundo evoca a presena de um Deus puramente artista, inteiramente destitudo de escrpulos e de moral, portanto, constitudo plenamente do prazer de construir como de destruir, ao qual o bem como o mal proporcionam o mesmo prazer e o mesmo sentimento de todo-poder, porm, um Deus que fabricou mundos a partir do tormento da sua plenitude, que se liberta do sofrimento das contradies acumuladas nele-mesmo. Neste sentido, o mundo mutvel, eternamente cambiante e novo obteno de um Deus que suporta os maiores sofrimentos, acumula as maiores contradies, e que somente se libera na aparncia. Portanto, tudo aparncia e a aparncia a manifestao do fazer de um Deus inescrupuloso que busca, em tudo, prazer. Por outro lado, negando a moral ele instaura a vida como deve ser nela-mesma, como resultante do excesso. nesta esfera que se pode localizar a vivncia dos ndios ainda existentes no Brasil, ainda que sejam sufocados diariamente com crenas e ideologias que no lhes pertencem.

neste cenrio ou sustentado por outro estar-no-mundo que salta nossa frente Boreka, o chefe dos Desana, que, antes de partir para sempre, praticou todas as maldades possveis frente do seu povo, e somente se conteve quando vitimado por um engodo tramado pelos seus, que se constrangiam com a sua crueldade, foi condenado a uma vida no invisvel, permissvel apenas de se manifestar nas noites de tempestade, de relmpagos e de troves. O comportamento do chefe Desana, que tem a sua necessidade e compreenso no universo indgena, somente seria cabvel distante do Cristianismo, de cujo Deus se reclama bondade, generosidade, graas e perdo. ainda neste universo muito particular que os enfeites poderiam ser estrutura de uma cosmoviso.

Neste universo social, cultural e religioso prprio que a mulher se apresenta como a Demiurga, a tambm se pode, nas origens, acima de todas as outras malocas, situar-se a Maloca dos enfeites e pode, tambm, Yey ser linda com o urucu amarelado, contrastando com a sua beleza, enfeitando o seu rosto.

Na vida onde se jungem o homem e a Natureza, observou vam Velthem que as produes artsticas configuram uma expresso de conhecimentos, de sabedoria que se exerce em muitos campos. Ao contrrio do que se verifica no mundo Ocidental, requerido dos artistas, homens e mulheres, o conhecimento a respeito das inmeras matrias-primas empregadas: palmeiras, cips, arum, penas e plumas de pssaros e aves, argila e seu antiplstico, madeiras e fibras. Alm do mais, eles devem saber tudo acerca do local onde essas matrias so encontradas, a forma correta de colh-las e process-las para que possam servir aos seus propsitos. Ainda devem ter conhecimento sobre gomas colantes, tinturas vegetais e minerais, vernizes e a confeco e o uso dos instrumentos. No que diz respeito ao seu prprio trabalho, devem ter conhecimentos sobre os locais e os momentos favorveis para a atividade artstica, sobre as prticas propiciatrias e as evitaes que, em conjunto, contribuem para a excelncia do resultado final. Os artistas no podem desconhecer as tcnicas de manufatura prprias ao sexo e idade; no podem descurar das formas de principiar, conformar o objeto e o arrematar. O repertrio decorativo, sua origem mtica, a adequao e correta aplicao dos padres, pintados ou entretecidos deve ser bem manipulado. Alm disso tudo, os artistas devem ter conhecimento sobre o uso e o armazenamento dos adornos e demais artefatos. Alm destas condies, outras podem existir, todavia, estas so suficientes para consignar arte ndia a sua particularidade.

Particularidade que destaca o corpo ou que faz do corpo o maior elemento da representatividade cultural e artstica. Desde os primeiros documentos recolhidos da Amrica Portuguesa, tomamos conhecimento de uma relao muito profunda entre o Amerndio e o seu corpo, pois atravs deste d-se sua pertinncia ao mundo. Na medida em que o seu maior significante, compreende-se a indissolubilidade entre ambos. Neste sentido escapa, na compreenso do Belo, os conceitos de inutilidade ou de mentira que podem fincar-se numa obra de arte. Para os povos destas origens, os enfeites, as pinturas, os brincos, os furos, as tatuagens e as escarificaes, que podem, segundo impresses dos navegadores e colonos, aparentar-lhes a monstros , ao contrrio, o maior definidor social e cultural. Por exemplo, o reconhecimento de um indivduo se faz, quando ele, atravs dos seus paramentos e decoraes, se identifica com a sua tribo ou com o seu cl. De outro modo, no podemos esquecer os ritos de passagem, que so estanques progressivos na vida de um indgena.

De parte da cultura Ocidental, dos herdeiros de Eva, a beleza feminina resplandece no Poema dos Poemas ou no Cntico dos Cnticos de Salomo. No Cntico dos Cnticos, o livro mais profano da Bblia, aparece uma bela mulher, cheirosa, sensual, lutando pelo seu homem. Uma fmea que cuidava das vinhas. De sol a sol guardava as geradoras do nctar de Baco. Morena na pele, tingida pelo sol e que conhecia o sabor do vinho. Os teus amores so melhores que o vinho; uma conhecedora de perfumes, por isso, sabe que o perfume do macho atrai a fmea e vice-versa. E assim se cumprindo uma das leis da Natureza. No Poema dos Poemas abre-se uma via de interpretao solidria interpretao das filhas de Yeb Bur, da a sua importncia neste contexto.

Neste testemunho como na mitologia Desana no h um mundo segmentado: o natural se mistura com o humano. Este ltimo, quando necessrio, segue os passos da Natureza, acompanhando as suas leis, conforme prescrevera Rousseau. Este foi o caminho que o amante mandou que seguisse a sua amante para encontr-lo. Do mesmo modo, significativa a comparao que o amado faz entre a sua amada e a gua do carro do Fara. Para ns, tal comparao seria ofensiva, no entanto, para os antigos poetas rabes, este era um genial elogio. Uma mulher o recebia quando se destacava dentre outras mulheres.

Os Cnticos nos permitem a formulao de uma esttica muito mais envolvente, onde h lugar para o mundo agrcola, o pastoril e o humano; onde h lugar para os perfumes, para os enfeites, para Eros e para o sexo. H, em outras palavras, uma esttica do todo. A idia de beleza que a podemos apreender no poder estar desprendida da abrangncia. A esttica do Cntico converge com a Amerndia, no sentido em que ambas se constroem a partir da totalidade. Ao se pensar o Belo, pensa-se em um mundo vivo. Ao se pensar a mulher bela, ela no pode ser pensada sem a sua vida de fmea, de parideira, de trabalhadora, de companheira e de mulher bonita.

Evidentemente que a mulher contempornea no se pensa assim. E muito mais evidente ainda que a esttica que conhecemos e, consequentemente, a idia do belo que nos norteia no permite esta aceitao; no entanto, outros povos e outras culturas ainda existem, justamente para que tenhamos outros referenciais, para que reconheamos que no somos absolutos nem no nosso querer, nem no nosso pensar e nem no nosso ser. No h dvidas de que no podemos mais pensar mundos parte. A convergncia cada vez mais prxima de todos, a globalizao estende as suas enormes garras da unificao. Mas o prprio mundo sempre nos mostrou que impossvel a indiferena absoluta: o sol, a lua, a terra, as guas e os ares criaram seres diferentes, que se alimentaram de coisas diversas e que construram e constroem singularidades. Porm, se a natureza nos instalou na totalidade, no esta a resposta que lhe damos, da o resultado da nossa rebeldia: o afastamento sempre maior do Cosmo e a aproximao mais necessria do humano. por isso que constante o apelo integrao e o reconhecimento de que o homem somente homem entre outros homens.

Neste universo de excluso e de integrao, desde as origens a mulher vem, de diferentes maneiras, tentando definir o seu espao. Se na cultura Desana ela aceita a determinao originria, no esta a atitude da mulher no Ocidente, da as lutas pelo reconhecimento, pela desocultao, inclusive, de mulheres que a histria apresenta como personagens que esperam a hora de sair para a claridade. A histria constri outras formas de seres. A filosofia e a cincia oferecem sedimentos para que assim seja. As idias tiram-nos do isolamento e promovem a mudana. E todos lutamos para que tenhamos uma sociedade de oportunidades, no mais que isto: oportunidades!

- Os Desana ou Umukomahs, Gente do Universo so aproximadamente mil pessoas, no Brasil, distribudos em aproximadamente 50 comunidades espalhadas pelos rios Tiqui e Papuri, e seus principais afluentes navegveis. Eles mantm com os outros povos indgenas da regio relaes matrimoniais e/ou econmicas. A regio est localizada na Amaznia Brasileira, na Cabea do Cachorro.

- Os vestgios da linguagem antiga assim como a cosmoviso, ainda que em muito adaptada, podem ser encontradas na imensa Amaznia: no vestir, na fisionomia, nos nomes, na comida e na prpria lngua, principalmente nas periferias das cidades e na Regio da Cabea do Cachorro.

- Ahp em desana. Arbusto (Erythroxylesm coca var. ipadu) cujas folhas so tostadas e socadas em pilo especial (ahpideariru). So misturadas s cinzas de uma espcie de embaba (ahpimoa sal de ipadu).

- Segundo nota dos tradutores da Bblia de Jerusalm o hebraico joga com as palavras isha, mulher, e ish homem. A Bblia de Jerusalm. Nova edio revista. Traduo da Introduo e Notas de La Sainte Bible, edio de 1973, publicada sob a direo da cole Biblique de Jrusalem. So Paulo: Edies Paulinas. 1986. P. 54.

- Eliade nos mostra que, desde os primrdios da nossa histria, nos chegaram um grande nmero de crenas, de mitos e de ritos respeitantes Terra, s suas divindades, Grande Me. Esta multiplicidade religiosa constitui, em certo sentido, o prprio fundamento do Cosmo. Isto aconteceu, e em muitas culturas ainda fato, porque ela era, se mostrava e ainda se mostra, porque dava, produzia frutos e recebia. A fecundidade da Terra representa-se na mulher, principalmente nas sociedades agrcolas. A mulher, nestas culturas, ganha especial destaque, sendo comparada aos campos frteis, doadora de vida e garantia da continuidade. Mircea Eliade. Tratado de histria das religies. Prefcio de Georges Dumzil. Traduo de Fernando Tomaz e Natlia Nunes. Lisboa: Edies Asa. 1997. P. 305-334.

- Depois ele subiu superfcie da terra para formar a humanidade. Levantou-se num grande lago, na forma de jibia gigantesca. A cabea da cobra parecia com a proa de uma lancha. Para eles, parecia um grande navio a vapor que se chama Pamurigrehisiru, isto , Canoa da futura humanidade ou Canoa da Transformao. Prkumu, Umusu; Kehri, Trmu. Antes o mundo no existia: mitologia dos antigos Desana-Kehripr. 2 edio. So Joo Batista do Rio Tiqui: UNIRT; So Gabriel da Cachoeira: FOIRN. 1995. P.29.

- Yhwh Deus fabrica da terra / todas as bestas selvagens / todos os pssaros do cu / os faz desfilar diante de Ado / para receberem dele os nomes que lhes correspondesse / Cada ser vivo recebeu o nome devido / Ado nomeou todos os animais / todos os pssaros do cu / todas as bestas selvagens / mas, para Ado, nenhuma companheira apareceu. La Bible (nouvelle traduction). Paris: Bayard. 2001. P.37.

- impensvel na mitologia Desana um lugar como o definido por Nietzsche: Mas ela no quer a verdade: que importa mulher a verdade? Nada, de incio, mais estranho mulher, nada no a repugna mais e no mais inimigo da sua natureza do que a verdade; sua grande arte a mentira, sua maior ocupao a aparncia e a beleza. Friedrich Nietzsche, Par-del le bien et le mal. In uvres. Traduo do alemo de Henri Albert, revista por Jean Lacoste. Traduo Livre para o Portugus. Paris: Robert Laffont. Bouquins. 1993. P. 680. Jacques Derrida mostra-nos uma leitura possvel da mulher na obra nietzscheana: na sua esquiva, ela se afirma como uma fonte de positividade. Eperons: les styles de Nistzsche. Paris: Champs Flammarion. 1978. Obviamente que, jamais, na mitologia Desana, a mulher seria alvo da reflexo racional. Justamente para mostrar o antagonismo entre as suas culturas, citamos os dois filsofos.

- Lvi-Strauss tinha como objeto desvendar a estrutura social e, principalmente, o estilo da sociedade estudada, compreendendo como so construdas e transmitidas, atravs da arte, referncias sobre a vida em sociedade: sexo, idade, parentesco, filiao clnica, etc. Nesta perspectiva, as expresses artsticas so abordadas como sistemas.

- Nietzsche faz questo de mostrar a sua inquietao por no encontrar respostas para a interrogao acumulada sobre a pretendida serenidade dos Gregos e da arte grega. Friedrich Nietzsche. La naissance de la tragedie ou hellnisme et pessimisme. In: uvres. Traduzido do alemo por Jean Marnold e Jacques Morland. Revista por Jacques Le Rider. Paris: ditions Robert Laffont. S.A. 1993.

- Esta obra data de 1870-71. Em Agosto de 1886, Nietzsche escreveu o Posfcio, onde lhe faz srias reparaes, inclusive, reivindicando-a como obra de juventude. Ele aponta onde ela foi mais ousada, (e extraordinria), por no contar com a teoria e a metodologia necessrias para sustentar seus argumentos, da, conforme sua leitura, as suas limitaes.

- A capa do livro de Lcia Hussack vam Helthem, O belo a fera, de Rita Lynce, ilustrado com uma belssima foto de sua autoria. A foto de uma ndia chamada Yey, uma linda adolescente, de cabelos negros como as noites da floresta Amaznica, quando no h luar; os seus olhos pequenos e puxados olham para alm de ns, numa serenidade que se consagra no belo desenho da sua boca e na proporcionalidade do seu nariz. Sobre esta beleza deslumbrante, o amarelo do urucu. A beleza da beleza ndia se pode ver neste exemplo.

- Se no o sabes,

mais bela das mulheres,

segue o rastro das ovelhas,

leva as cabras a pastar,

junto s tendas dos pastores.

Bblia de Jerusalm. Op. Cit. P. 1186.

- Minha amada, eu te comparo

gua atrelada ao carro do Fara!

Que beleza tuas faces entre os brincos,

teu pescoo, com colares!

Far-te-emos pingentes de ouro

cravejados de prata.

Idem. Ibidem.

No momento da terceira mudana de pele

Agora minha pele se racha e se greta,

Agora meu desejo de serpente,

Apesar da terra absorvida,

Cobiosa da terra nova;

Agora eu rastejo, entre as pedras e ervas,

vido, sobre meu rastro tortuoso,

Para comer o que sempre comi,

O alimento da serpente, a terra!

(Nietzsche, Le gai savoir)

BIBLIOGRAFIA

Bblia de Jerusalm. Nova edio revista. Traduo da Introduo e Notas de La Sainte Bible, edio de 1973, publicada sob a direo da cole Biblique de Jrusalem. So Paulo: Edies Paulinas. 1986.

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NIETZSCHE, Friedrich, Par-del le bien et le mal: prlude une philosophie de lavenir. In: Oeuvres. Traduo de Henri Albert, revisada por Jean Lacoste. Paris: ditions Robert Laffont. S.A. 1993.

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Neiza Teixeira

Doutora em Filosofia

Professora no ISCE-Felgueiras

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ABSTRACT

Neste artigo, que segue o caminho que vimos percorrendo na nossa vida acadmica, pretendemos, em primeiro lugar, estabelecer um princpio para a compreenso do espao ocupado pela mulher no mundo ocidental; em segundo lugar, estabelecer um paralelo entre Yeb Bur, a Demiurga dos ndios Desana, da Amaznia, e Eva, para que tenhamos uma compreenso mais clara deste espao; e, em terceiro lugar, refletindo sobre um comportamento quotidiano -, a necessidade fundamental da mulher estar sempre bela -, encontrar uma justificativa para esta vontade de beleza que no seja a da exposio ou a da volpia. Neste sentido, dada uma situao fundada nas origens, entendemos que esta vontade resultou numa necessidade irrefragvel de integrao social.

Como fundamentos desta interpretao, recorremos a filsofos que apontam para a necessidade de novas leituras do mundo contemporneo, ao mesmo tempo, a antroplogos, tendo em vista que a sociedade, de si muito complexa, exige interpretaes onde os vrios saberes se abram como recursos disponveis aos seus intrpretes, e ainda, mitologia, com o intuito de estabelecer um dilogo entre duas culturas que necessitam com muita urgncia de conhecimentos e ajudas recprocos.

Key words

Mito - mulher -integrao social - vontade de beleza - esttica - Eva - Yeb Bur

ABSTRACT

In this article, which follows the subject we have been studying during our academic life, we intend, in the first place, to establish a basis to the understanding of the space occupied by women in the western world; second, we want to set a parallelism between Yeb Bur and Eve in order to obtain a clearer understanding of that space; and, third, reflecting on an everyday behaviour, we intend to discuss - the fundamental need of women to always be beautiful -, as well as to find a reason to this desire of beauty which is not exposure or voluptuousness. In this sense, given following a situation based on the origins, we understand that this desire has resulted in an irrefutable necessity of social integration.

As a basis to this interpretation, we invoke, on the one hand, philosophers who point out the necessity of new readings of the contemporary world, and, on the other hand, anthropologists, taking in account that society, already too complex on itself, demands interpretations on which the many subjects open themselves as resources available to its interpreters; we also make use of mythology in order to set out a dialogue between cultures that urge reciprocal knowledge and help.

Key words

Myth - woman - social integration - desire of beauty - esthethics - Eve - Yeb Bur

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