XXXVI Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e...

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1 XXXVI Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social (APHES) Porto | FEUP | 18-19 Novembro 2016 Hélida Santos Conceição [email protected] A circulação econômica do ouro nos espaço atlântico no século XVIII O Império português teve como uma de suas principais características a circulação de pessoas nos quatro continentes, condição imprescindível para a política expansionista da Coroa e modeladora das experiências próprias dos povos envolvidos nas redes ultramarinas das conquistas. Nos últimos anos, o diálogo estabelecido entre a historiografia portuguesa e brasileira, tem contribuído significativamente para o entendimento sobre as interações entre a sociedade reinol e os territórios ultramarinos. Dessa maneira, salientou-se que o ideal de enobrecimento, a busca pela hegemonia do poder político, a capacidade de continuamente prestar serviços à monarquia, a participação em redes mercantis, além é claro, do controle e da posse de terras e escravos, foram aspectos que marcadamente definiram o ethos das elites coloniais. Contudo, não deixemos de reconhecer que a atuação dessas elites da América Lusa, possuíam matizes Ibéricas, que foram se desenhando no constante jogo de disputas que envolviam os senhores daqui, as instituições locais e a monarquia. O resultado disso foi percebido na geração de estratificações sociais e na acumulação de riquezas em um cenário onde o mercado era regulado continuamente por relações parentais e políticas. Diversamente do que ocorreu em Minas, Goiás e Mato Grosso, a Bahia possuía sua economia voltada para a plantation açucareira e até o início do século XVIII não era por excelência uma zona econômica alicerçada na exploração de jazidas minerais. Entretanto, o movimento das minas baianas, foi neste período não menos importante, o que justifica um estudo sobre as dinâmicas políticas e econômicas da exploração do ouro nos sertões da Capitania baiana. Tendo em conta a pluralidade e complexidade social advindas com a exploração do ouro, essa comunicação pretende apresentar investigação sobre as trajetórias de homens reinóis que vieram para o Brasil em função da exploração econômica das minas de ouro. Além disso, verificar o peso e a importância econômica que a mineração teve na Bahia na primeira metade do século XVIII. Pretende-se analisar as dinâmicas de fiscalização dos quintos, os pedidos de mercês e o impacto disso na configuração de redes de governabilidade que aos poucos iam sendo criadas para fazer face à necessidade de administração das lavras de ouro. Palavras-chave: Império Ultramarino Português; Capitania da Bahia; Espaço econômico do ouro;

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XXXVI Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social

(APHES)

Porto | FEUP | 18-19 Novembro 2016

Hélida Santos Conceição

[email protected]

A circulação econômica do ouro nos espaço atlântico no século XVIII

O Império português teve como uma de suas principais características a circulação de

pessoas nos quatro continentes, condição imprescindível para a política expansionista da

Coroa e modeladora das experiências próprias dos povos envolvidos nas redes

ultramarinas das conquistas. Nos últimos anos, o diálogo estabelecido entre a

historiografia portuguesa e brasileira, tem contribuído significativamente para o

entendimento sobre as interações entre a sociedade reinol e os territórios ultramarinos.

Dessa maneira, salientou-se que o ideal de enobrecimento, a busca pela hegemonia do

poder político, a capacidade de continuamente prestar serviços à monarquia, a

participação em redes mercantis, além é claro, do controle e da posse de terras e escravos,

foram aspectos que marcadamente definiram o ethos das elites coloniais. Contudo, não

deixemos de reconhecer que a atuação dessas elites da América Lusa, possuíam matizes

Ibéricas, que foram se desenhando no constante jogo de disputas que envolviam os

senhores daqui, as instituições locais e a monarquia. O resultado disso foi percebido na

geração de estratificações sociais e na acumulação de riquezas em um cenário onde o

mercado era regulado continuamente por relações parentais e políticas.

Diversamente do que ocorreu em Minas, Goiás e Mato Grosso, a Bahia possuía sua

economia voltada para a plantation açucareira e até o início do século XVIII não era por

excelência uma zona econômica alicerçada na exploração de jazidas minerais. Entretanto,

o movimento das minas baianas, foi neste período não menos importante, o que justifica

um estudo sobre as dinâmicas políticas e econômicas da exploração do ouro nos sertões

da Capitania baiana. Tendo em conta a pluralidade e complexidade social advindas com

a exploração do ouro, essa comunicação pretende apresentar investigação sobre as

trajetórias de homens reinóis que vieram para o Brasil em função da exploração

econômica das minas de ouro. Além disso, verificar o peso e a importância econômica

que a mineração teve na Bahia na primeira metade do século XVIII. Pretende-se analisar

as dinâmicas de fiscalização dos quintos, os pedidos de mercês e o impacto disso na

configuração de redes de governabilidade que aos poucos iam sendo criadas para fazer

face à necessidade de administração das lavras de ouro.

Palavras-chave: Império Ultramarino Português; Capitania da Bahia; Espaço econômico

do ouro;

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1. A abertura das minas baianas

Este paper tem por objetivo demonstrar que no ínicio do século XVIII a

abertura da mineração nos sertões da capitania da Bahia foi um passo imprescíndivel para

a gestação do circuito do ouro e ampliação dos expedientes de governabilidade em zonas

que até então possuía uma frágil presença do governo colonial. O indulto por parte da

coroa de permitir aos colonos a exploração do ouro foi inevitável, pois as atividades de

extração aurífera já estavam em ritmo acelerado. Tais circunstâncias transformou a

economia e a geopolítica dos sertões baianos e seus efeitos foram sentidos nos diversos

campos da atuação do governo colonial, pois provocou o aumento da arrecadação fiscal,

criou novas possibilidades de prestação de serviços ao rei, dinamizou a demografia do

interior e permitiu uma maior integração de forças econômicas e políticas que se refletiu

dos sertões do Brasil ao Império ultramarino atlântico.

O circuito do ouro na Bahia foi um processo de menor escala, se comparado

com a vultuosidade das explorações das Minas Gerais1, de Mato Grosso ou Goiás, mesmo

assim as minas baianas contribuíram com uma importante parcela de recursos em ouro e

moedas, que dinamizou economicamente os circuitos do comércio interno, tanto quanto

as relações entre o Brasil e os portos da África.

Após a descoberta das minas, os governadores-gerais enfrentaram o desafio

de alargar a governabilidade nas terras dos sertões. Para isso foi necessário sanar a frágil

presença portuguesa, que era traduzida ao seu tempo, com uma ostensiva guerra contra

índios hostis, apesar destes, de uma forma ou de outra, terem mantido resistência a

geoespacialização luso-brasileira. Nesse contexto, arregimentar a extração aurífera

significava sobretudo ampliar a guerra contra os índios não aldeados e garantir que as

vilas recentemente criadas mantivessem uma razoável jurisdição colonial e fossem cada

vez mais integradas aos circuitos econômicos do império.

Na Bahia as informações sobre o descobrimento de minas ocorreram em

1701, ainda no governo de D. João de Lencastre. Em 1696 este governador estabeleceu

uma fábrica de exploração de salitre próximo a Capitania de Sergipe del’Rei. No entanto

1 Tomo com base as interpretações clássicas feitas pelo historiadores. BOXER, Charles. A idade de Ouro

do Brasil. Dores e crescimento de uma sociedade Colonial. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1963;

RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro,1500-1808”. Rev. Bras. Hist.,

São Paulo, v. 18, n. 36, p. 187-250, 1998. Available from

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

01881998000200010&lng=en&nrm=iso>. access on 13 June 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-

01881998000200010. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2005.

3

o parco aproveitamento dessas minas, a dificuldade de transporte e de mão de obra, tanto

quanto o insuficiente domínio de habilidades técnicas que as tornassem proveitosas,

desestimulou a continuidade dessa fábrica.2 Contudo, o saldo positivo daquelas primeiras

expedições, foi ter proporcionado a diversos agentes, algum domínio sobre os caminhos

que ligavam o recôncavo da Bahia ao sertão.

Desde o século XVI as bandeiras paulistas tinham viajado de São Paulo até o

Rio de São Francisco, este caminho antigo era conhecido como o Caminho Geral do

Sertão e poucos anos depois foi suplantado pelo Caminho Novo que descia por Parati por

onde conduziam-se viajantes por cerca de vinte dias até alcançar o rio das Mortes nas

Minas Gerais. A outra estrada muito usada na Bahia ligava o porto de Cachoeira no

Recôncavo até o rio de São Francisco. Era a estrada usada para descer gado do Piauí e

Maranhão até o litoral, e acompanhando-se o curso deste rio por 160 milhas encontrava-

se o Rio das Velhas, que estava interligado a uma malha de estradas e passagens para as

minas3. Os distritos mineiros da Bahia encontravam-se localizados justamente nesse

circuito de caminhos que interligavam a Cidade da Bahia até o vale do São Francisco,

passando pela atual região da Chapada Diamantina.

Naquele momento, ainda não se sabia ao certo sobre as potencialidades de

exploração dos veios auríferos da Bahia, pois o movimento inicial de extração de ouro foi

realizado ainda que por europeus aventureiros e viajantes, mas também pelos moradores

dos sítios do sertão, que viviam de suas roças e criação de gado. Nas duas primeiras

décadas do século XVIII a coroa proibia terminantemente a exploração do ouro na

capitania da Bahia, estas proibições resultaram em inúmeros debates entre as autoridades

do governo geral e o senado da câmara de Salvador. Enquanto isso os distritos das Minas

2 O coronel Pedro Barbosa Leal foi nomeado por provisão régia de 15 de março de 1697, administrador da

fábrica de salitre com 150$000 de ordenado a cada ano. Na carta de nomeação escrita pelo Governador

Geral do Brasil D. João de Lencastro, pode-se ler: [Por ser]“muito capaz desta sua ocupação de que eu o

julgo benemérito pelas experiências que tenho do seu zelo, inteligência, atividade e bom procedimento, o

que tudo mostrou acompanhando-se com criados, escravos, cavalos à sua custa na jornada que foi ao

descobrimento das ditas minas, onde no ensaio que mandei fazer para tirar salitre o dito Pedro Barbosa sem

nunca o ter visto fazer, vendo a forma com que ordenava-se fabricasse o fez logo muito perfeito.” A fábrica

não ficou em atividade durante muito tempo, tendo logo sido fechada pois o custo com fabricação e

funcionários era mais alto do que os lucros advindos da extração de salitre. Esta nomeação foi o primeiro

documento que indica a passagem do Coronel Barbosa Leal em expedição pelo sertão, imaginamos que

este foi início de sua trajetória como sertanista. Provisão pela qual D. João de Lencastro nomeia o Coronel

Pedro Barbosa Leal com o ofício de Administrador da fábrica de Salitre. In: ACCIOLI, Ignácio de

Cerqueira e Silva. Memórias históricas e políticas da Bahia. Anotado por Braz do Amaral. Salvador:

Imprensa Oficial, v. 2, 1925. P.293-294. 3 BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil. Dores e crescimento de uma sociedade Colonial. São Paulo.

Companhia Editora Nacional. 1963. P.p. 53-55.

4

Gerais já estavam em franco processo exploratório, recebendo milhares de portugueses e

estrangeiros que chegavam pelas frotas reinóis em direção às minas.

Na década seguinte, por volta de 1710 já tornava-se intensa a circulação de

notícias de descobrimentos de ouro tanto na Bahia, quanto em Minas Gerais. Assistiu-se

naquele período a uma ampla discussão entre as autoridades locais, leia-se, entre o

governador e a nobreza da terra que ocupavam os postos da câmara de Salvador, -

predominantemente formada por senhores da açucarocracia- posto que colocava-se em

questão a utilidade da abertura das minas baianas. Naquelas circunstâncias parecia

dificultoso para a coroa administrar as minas da Bahia, no momento mesmo em que

paulistas e emboabas disputavam a ferro e fogo a primazia de exploração das Minas

Gerais4. Além disso, o desgoverno e violências que recorrentemente chegavam ao

conhecimento do rei e do Conselho Ultramarino, mostravam que os expedientes para

reverter tal situação, eram ainda insuficientes para controlar as insurgências e insultos nos

arraiais auríferos.

O historiador Charles Boxer analisando as correspondências trocadas entre a

coroa e os governadores da Bahia e do Rio de Janeiro, afirma que as autoridades coloniais

percebiam a corrida do ouro como um processo ambivalente. D. João de Lencastre via a

descoberta das minas de forma auspiciosa para o engrandecimento dos cofre régios,

apesar disso, já alertava sobre o temor de que tais riquezas se esvaíssem para pagar

importações para outras nações europeias. Enquanto isso o perigo mais iminente consistia

nas levas de aventureiros de “vida licenciosa e nada cristã” que invadiam as zonas de

mineração5.

Na década de 1720 a coroa percebia que transformar os arraiais em vilas com

câmara municipal e vereadores promoveria o auto-governo da república, instalando assim

melhores condições para administrar a justiça, as minas e a arrecadação dos quintos. Os

efeitos mais imediatos seriam tentar amenizar as constantes tensões, distúrbios e

violências nos distritos auríferos do sertão da Bahia. Na visão de D. João V, era urgente

que vilas fossem instaladas, “porque era imprescindível cuidar-se das minas e do imposto

4 ROMEIRO, Adriana. A Guerra dos emboabas: novas abordagens e interpretações. In: RESENDE, M. E.

L. de. VILLALTA, Luiz. Carlos. História das Minas Gerais: As minas setecentistas. (orgs.). Belo

Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo. 2007. p. 537 5 BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil. Dores e crescimento de uma sociedade Colonial. São Paulo.

Companhia Editora Nacional. 1963. pp. 54-55.

5

dos quintos, que trariam resultados imediatos em pecúnia6”. Assim em 05 de agosto de

1720, as minas baianas foram franqueadas por decreto régio, quando significativo número

de mineiros já então faiscavam nos leitos dos rios Itapicuru, Pindobaçú, Figuras, Ouro

Fino, Almas e Rio das Contas, localizados entre as Vilas de Jacobina e Rio de Contas. O

indulto que autorizou os moradores da Bahia a extrair ouro foi expedido logo no início

do governo do Conde de Sabugosa Vasco Fernandes César de Meneses vice-rei do Estado

do Brasil entre 1720 e 1735.

O governo de Vasco Fernandes foi considerado um dos momentos críticos da

mineração baiana e o tema das minas está presente em boa parte da documentação

administrativa do seu governo. O domínio do território e controle da mineração na Bahia

evidenciava novos desafios para o governo do vice-rei, mas também para a coroa. As

implicações da abertura da mineração na Bahia, para além de ser vistas pelo Conde de

Sabugosa como um desafio político, foi também entendido como um projeto pessoal, tal

qual ele próprio assume, quando enviou instruções para o Coronel Pedro Barbosa Leal,

proceder a averiguação de minas no sertão.

“Voltando vossa mercê dos descobrimentos em que anda, irá para a

parte da freguesia a examinar os riachos, e as serras, em que estão as

três betas de ouro, e agradeço a Vossa mercê mandar desentupir a Mina

de cobre para me remeter as suas amostras, relação dos ribeiros, serras,

e lavras: e suponho que assim este trabalho, como a isenção com que

Vossa Mercê se há nesta, e nas mais matérias pertença a Sua Majestade

o remunerá-la, contudo, sempre me reconheci obrigado à sua atenção,

porque deste projeto precisamente me há de resultar a maior

vaidade (grifo nosso).7

Seguindo as ordens do rei D. João V, o Vice-rei Vasco Fernandes Cesar de

Menezes nomeou o coronel Pedro Barbosa Leal como superintendente de todas as minas,

recomendando que o mesmo executasse as diligências de encaminhar a arrecadação dos

quintos desde o ano de 1720, organizar a extração do ouro, repartir as datas de mineração

e criar tão logo achasse sítio conveniente as vilas de Jacobina e Rio de Contas. Nesse

sentido a coroa agiu rapidamente no intuito de estabelecer de forma estratégica a criação

de três vilas no sertão: Itapicuru (1718), Jacobina (1722) que ficava distante oitenta léguas

da cidade de Salvador; e Rio de Contas (1725) distante em torno de cem léguas. Na década

seguinte foi criada também a vila de Bom Sucesso do Fanado no local chamado de Minas

6 Carta régia de 10 de outubro de 1721. COSTA, Afonso. “De como nasceu, se organizou e vive a minha

cidade”. Anais do IV Congresso de História Nacional. IHGB. Rio de Janeiro. Departamento de Imprensa

nacional. 1951. p. 270. 7 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, volume XLIV – Carta dos Governadores (1720-1722),

Rio de Janeiro, Typografia Baptista de Souza, 1939, p. 147.

6

Novas de Araçuaí que distava 120 léguas da cidade de Salvador e ficava no território que

na década de 1730 passou para a capitania de Minas Gerais. No caso em estudo nos

dedicaremos a analisar com mais detalhes os eventos ocorridos em torno da criação da

Vila de Jacobina, por ser à época o mais importante local de exploração do ouro, mas

sobretudo por ter legado o maior conjunto documental para a investigação da mineração

na Bahia.

À abertura das minas baianas e fundação das vilas, seguiu-se em 1724 a

construção de uma estrada que conectava Jacobina ao Rio de Contas e depois a Tucambira

e Minas Novas de Araçuaí.8 Esta rota do ouro permitiu que os territórios do sertão

continuassem a ser um espaço de fronteira aberta, onde aqueles que desejavam ascender

na sociedade colonial poderiam ir em busca dos ribeiros auríferos, renovando assim as

oportunidades para os que estavam dispostos a agenciar-se em expedições de

descobrimento de minas, combate ao gentio, mas como efeito reverso, também aumentou

os descaminhos dos quintos do ouro.

Do ponto de vista da governabilidade havia ainda espaço para os que desejavam

prestar serviços à coroa, servindo nos postos das ordenanças, na fiscalidade dos quintos,

como oficiais nas casas de fundição ou mesmo nos assentos das câmaras municipais

estabelecidas nas vilas do sertão. Entre as décadas de 1720 e 1750 viu-se as minas baianas

em pleno funcionamento.

Após a criação da Vila de Jacobina, o Coronel Pedro Barbosa Leal publicou

um edital que estipulava a tributação do ouro extraído e das demais mercadorias que

entravam e saíam das minas, visando estabelecer o sistema de arrecadação9. Sabia-se que

nas minas o grosso do comércio se fazia mediante troca de mercadorias por ouro em pó,

por isso o edital ordenava que o ouro que se recebia por pagamentos também deveria ser

quintado. Esse procedimento deveria ser seguido na chegada e na saída das ditas minas,

tanto para os que se dirigiam ao Recôncavo, quanto para os que seguissem subindo para

8 A abertura destas rotas e indicação dos caminhos foi feito pelo sertanista e Coronel Pedro Barbosa Leal

durante os 5 anos que ele passou no sertão baiano. 9Por esse edital foi estabelecido que de cada cinco oitavas, os mineiros deveriam pagar uma oitava de todo

ouro que tirassem. Além disso, determinava que toda pessoa que entrasse para comerciar “gados, farinhas,

e todos os mais gêneros comestíveis, e bebidas, fazendas, secos, e de todos os mais gêneros, e mercadorias

de que fizerem comércio. Este documento integra um conjunto de notícias enviadas pelo coronel para o

Vice-rei, onde encontram-se evidências sobre o cotidiano das minas e a dinâmica de arrecadação fiscal. Da

mesma forma nos fornece pistas interessantes sobre o uso do poder e as relações estabelecidas entre a

administração das minas e a arraia miúda que faiscava no sertão. Ver: 1722, Agosto, 26, Bahia. CARTA

do [vice-rei e governador-geral do Brasil] Vasco Fernandes César de Menezes ao rei [D. João V]

comunicando as diligências em que mandou efetuar o Coronel Pedro Barbosa sobre os particulares e

dependências de Jacobina. AHU_ACL_CU_005, Cx. 15, D. 1338.

7

o sertão do Rio São Francisco ou para o Piauí. Esse sistema de arrecadação foi mantido

até o ano de 1725 quando o Coronel voltou para a cidade de Salvador. Não obstante a

baixa arrecadação dos quintos foi fonte de constante reclamação por parte da coroa, que

pressionava o vice-rei para expedir providências mais enérgicas que evitassem os

descaminhos. Diante de tais cobranças, o vice-rei buscava justificar as dificuldades de

impor aos mineiros a obrigação de pagar os direitos reais e desculpava-se alegando que

os caminhos dos sertões eram largos e de difícil controle, motivo pelo qual em

determinados anos, justificava-se o baixo rendimento daquelas minas. Conforme veremos

a seguir, durante a primeira metade do século XVIII, houve um intenso esforço das

autoridades da coroa e do Brasil para prover uma organização fiscal e social nos distritos

das minas.

2. A população da Freguesia de Jacobina

A imigração portuguesa para o Brasil no século XVIII ainda não recebeu a

atenção devida por parte da historiografia brasileira. Só mais recentemente alguns

trabalhos tem se dedicado a levantar aspectos da trajetória de reinóis que emigraram nas

mais variadas épocas para as possessões ultramarinas. O que estamos falando é de

trabalhos que se dediquem a perceber que a imigração reinol formou um tecido social

indispensável a construção do império ultramarino, mas também teve um forte impacto

nas pequenas vilas e cidades que forneceram os homens que escolheram viver no

ultramar.

O historiador Russel-Wood10 afirma que a promoção de políticas de

povoamento nas possessões coloniais era desejável para a coroa basicamente por conta

de três aspectos: O primeiro de ordem comercial que visava criar e controlar as fontes de

produção de matéria prima para a venda no mercado europeu. Dentre outras coisas isso

significava ocupar as zonas de produção, garantindo o fluxo de mercadorias e

assegurando a sua acumulação. Devido a isso, enfatiza ele, o comércio no ultramar não

poderia ser gerido por uma pequena burocracia localizada em Lisboa. O segundo aspecto

diz respeito ao fato de que para assegurar esse comércio era necessário assegurar “a

presença física continuada e numericamente significativa, só possível através da

10 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Padrões de colonização no Império Português. In: BETHENCOURT,

Francisco. CURTO, Diogo Ramada. (Orgs.) A Expansão marítima Portuguesa, 1400-1800. Lisboa. Ed. 70.

2010. Pp. 171-206.

8

colonização”, tal aspecto é sobretudo relevante, quando pensamos nas ordenanças e

milícias que atuavam junto as estruturas administrativas locais e asseguravam a os

interesses comerciais da fazenda real, ao mesmo tempo que reiterava uma hierarquia

baseada na honra e no prestígio dos serviços régios, dado o caráter das sociedades no

Antigo Regime11. Não obstante, o terceiro elemento revelador dos ‘objetivos imperiais da

expansão’, validavam as pretensões de soberania portuguesas através da “exploração,

conquista, posse e povoamento12”, assim os colonos materializavam a coroa portuguesa

nos enclaves ultramarinos e garantia a proteção dos territórios contra nações rivais.

Dessa forma parece-nos relevante entender demograficamente a presença

portuguesa nas áreas periféricas e não somente nas cidades mais importantes do litoral,

como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, que logo no início da conquista já operavam suas

sociabilidades a partir de portos com ramificações no Império Ultramarino. Sabemos que

levantar documentação para este tipo de análise não é das tarefas mais fáceis, dada a não

sobrevivência de livros de registros paroquiais nas freguesias do sertão. Contudo tivemos

muita sorte por termos encontrado um livro de assentos de casamento referente à freguesia

de Jacobina13. De acordo com o levantamento feito entre 1682 e 1757, foram registrados

311 casamentos na igreja matriz da freguesia de Santo Antônio de Jacobina. Entre os anos

de 1704 e 1750 foram 54 (17%) arranjos matrimoniais entre homens naturais de cidades

e vilas portuguesas com 30 mulheres naturais da freguesia de Jacobina e outras 24 de

11 HESPANHA, A. M. XAVIER. A, B. As redes Clientelares. In: J. Mattoso. (Direção). HESPANHA, A.M.

(Coord.) História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. IV. Editorial Estampa. 1998. P. 340; OLIVAL,

Fernanda. As ordens militares e o estado moderno: Honra, mercê e venalidade em Portugal. (1641-

1789). Lisboa, Estar. 2001. LOUREIRO, Guilherme Maia de. Estratificação e mobilidade Social no Antigo

Regime em Portugal. (1640-1820). Lisboa, Guarda-Mor, 2015. Sobre os serviços prestados em busca de

honra e mercês pelo vassalos no além-mar: RAMINELLI, R. “Serviços e mercês de vassalos da América

Portuguesa”. IN: Revista Historia y Sociedad no. 12. Medellín, noviembre 2006, Pp. 107-131; LOUREIRO,

Guilherme Maia de. Estratificação e mobilidade Social no Antigo Regime em Portugal. (1640-1820).

Lisboa, Guarda-Mor, 2015. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A coroa e a remuneração dos Vassalos. In:

RESENDE, M. E. L. de. VILLALTA, Luiz. Carlos. História das Minas Gerais: As minas setecentistas.

(Orgs.) Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo. 2007, pp. 191 - 219. 12 RUSSELL-WOOD. Op. Cit. 2010. Pp. 174. 13 Candido da Costa e Silva, apresenta uma relação completa das Freguesias do Arcebispado de São

Salvador da Bahia no período de 1549/1889 e indica que a freguesia de Santo Antônio da Jacobina, a

primeira a ser criada no sertão de Cima foi fundada em 1657. Já Afonso Costa, no texto “Vida Eclesiástica

(História de Jacobina) afirma que a freguesia velha, como era conhecida, foi criada entre os anos de 1683-

1686, na ocasião do governo do Arcebispo D. Fr João da Madre de Deus, que chegou na Bahia em 20 de

maio de 1683. Controvérsias historiográficas à parte, o fato é que os mais antigos assentos paroquiais que

encontramos para essa pesquisa, estão arquivados no Convento de São Francisco, na cidade de Campo

Formoso e os primeiros registros datam do ano de 1682. Isso nos faz refletir de que, mesmo que no papel

a freguesia tenha sido criada em meados do século XVII, ela só começou a operar na década de 1680. Ver:

COSTA, Afonso. “Vida Eclesiástica. (História de Jacobina)”. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro.

Domingo, 31 de agosto de 1952, p. 4. SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe: O Clero

oitocentista na Bahia. Salvador. ECT: Edufba. 2000, p. 67-73.

9

freguesias baianas. Ainda que modesta, essa amostra confirma que o sertão da Bahia na

primeira metade do setecentos foi o destino de naturais do reino que se estabeleceram

formando famílias, além de aventureiros que lá iam somente em busca das lavras de ouro.

Como pode ser visto na tabela abaixo:

Tabela 01

ORIGEM DOS NOIVOS

Tabela 02

ORIGEM DAS NOIVAS

Naturalidade Noivas

Freguesia de Santo Ant. da Jacobina 30

Arcebispado da Bahia 4

Rio de São Francisco 1

Freguesia de Santo Amaro (recôncavo) 1

Freguesia de Itabaiana 2

Freguesia do Porto 1

Não identificado 15

Total 54

Os casamentos chamam a atenção, por demostrar que havia intenção de

consolidação de vínculos dos forasteiros na vila de Jacobina e que certamente casar com

as filhas das melhores famílias da localidade garantiria uma visibilidade e ascensão social

que os permitiria constitui-se entre a elite local. Isso é atestado pelo fato de que 7 dos

noivos forasteiros casaram-se com mulheres que eram filhas de homens com patentes das

ordenanças de Jacobina (capitão-mor e coronel), o que nos leva a supor que eram chefes

Naturalidade Noivos

Lisboa 7

Porto 5

Braga 25

Ilhas 8

Outros 9

Total 54

10

das melhores casas14 da freguesia15. Temos certeza de que esses dados são uma pequena

amostra das práticas de consolidação de imigrantes portugueses no sertão e que não

obstante, muitos acorreram para aquela localidade esperando auferir riquezas com a

extração do ouro, houve quem preferisse estabelecer-se no sertão. Outro dado interessante

é quando contabilizamos os casamentos por décadas, indicando o crescente número de

forasteiros que foram casando, mas também confirma a constante chegada de reinóis entre

1720-1750 justamente no período mais intenso da mineração, que à medida que foram

estabelecendo laços, poderiam ser um ponto de rede para a vinda de outros imigrantes.

Tabela 03

CASAMENTOS DE REINOIS POR DÉCADAS

Anos Total

1700-1709 2

1710-1719 3

1720-1729 13

1730-1739 11

1740-1749 21

1750-1759 4

Total 54

Alargando um pouco mais a nossa abordagem, pretendemos agora mostrar

um rápido perfil demográfico referentes à Jacobina, não sem antes avisar que mesmo

sendo uma estimativa somente para os anos de 1718 e 1720, estes dados são importantes,

pois não temos nenhuma outra informação demográfica para as vilas mineras da Bahia16.

Em 1718 a população total da freguesia de Santo Antônio da Jacobina foi estimada em

1.492 pessoas, distribuídas por 113 locais, composta por 1.067 homens (71,5%) e 425

mulheres (28,5%). Essa população que englobava livres, cativos e forros, residiam em

14 O conceito de casa é aqui tomado de empréstimo de João Fragoso quando este autor a define como sendo

um “conjunto formado por parentelas, aliados, moradores, agregados e escravos.” FRAGOSO, João.

Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira:

Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII. IN: FRAGOSO, João e GOUVEA, Maria de Fátima.

Coleção O Brasil Colonial. 1720-1821. Vol. 3, 1° Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2014. p. 161. 15 Detectamos apenas um caso, onde o noivo reinol, Joseph da Cunha da Vide, possuía já a patente de

capitão-mor quando consagrou seu matrimônio em 1731, ou seja, certamente ele já estava estabelecido no

local, mas nada mais foi possível saber sobre seu matrimônio, devido ao avançado estágio de deterioração

da folha onde estava registrado o seu assento de casamento. Ver. Livro de Casamentos da Freguesia de

Jacobina, anotados na Igreja de Santo Antônio do Sertão da Jacobina. 1682 -1756. Guardados no arquivo

do Convento de São Francisco. Campo Formoso – Bahia. Fólio 72v. 16 Rol de Confessos que compõe a lista de todas as pessoas que cumpriram com o preceito da confissão na

quaresma durante os anos de 1718 e 1720, incluso em IHGB. LEAL – DL 970.3 Lata 5, Doc. 15. Autos de

justificação em que são partes o capitão Manoel Francisco dos Santos superintendente das conquistas e o

Coronel Pedro Barbosa Leal. Salvador, 30 de outubro de 1730.

11

propriedades de diversos tipos e tamanhos, tais como grandes fazendas destinadas a

pecuária, sítios com roças de subsistência e pequenos núcleos, com maior concentração

de casas e construções.

Em 1720, foram 2.113 pessoas residentes, divididos entre 1.421 homens

(67,3%) e 692 mulheres (32,7%,), vindas de 88 localidades.17 Se formos observar a

condição social, veremos que os livres conformavam 820 pessoas (38,8%), enquanto que

os escravos eram 1.257 (59,4%) e os 36 forros (1,7%). Especialmente os forros, nos

chama a atenção, posto que se encontram como agregados em algumas residências ou

mesmo constituindo domicílios independentes. Diante desses dados, pudemos calcular

que a taxa de crescimento da população sofreu um acréscimo de 41,6%, ou seja, em dois

anos, 621 moradores passaram a circular pelos distritos mineiros da vila de Jacobina. Este

súbito aumento populacional, era sabido em várias partes da Bahia e tornou-se fonte de

preocupação para o governo do Estado do Brasil, conforme pode ser visto nas

correspondências emitidas pelas autoridades da capitania. A título de comparação em

1780 a população da Freguesia da Vila de Jacobina foi estimada em 5.325 pessoas18, ou

seja em 60 anos cresceu 152%, um ritmo razoável em seis décadas, o que nos faz pensar

que após a década de 1730, com a mineração já em período de declínio, a população

flutuante diminuiu, sendo plausível que ela voltasse a crescer em um ritmo mais lento, do

que aqueles vistos nas primeiras duas décadas do século XVIII.

4. Os trabalhadores das minas

Em 1723 o Capitão Constantino Gomes Vitória um dos mais importantes

capitães da Vila de Jacobina comandava a extração de ouro em cinco ribeiros nos entornos

da Vila de Jacobina. Sob o poder do seu regimento ele fiscalizava a atividade de 62

mineiros que trabalham nos ribeiros da Jacobina, Canavieira, Itapecuru, Jaboticabas e

Genipapo. Esses eram sem dúvida os ribeiros mais importantes dos distritos da minas e

sua atuação na região lhes rendeu o prestígio de auxiliar o Superintendente das minas, o

17 Interessante notar, que alguns locais somem da lista de população, enquanto outros aparecem com muito

mais gente morando em sítios que não tinham sido listados anteriormente em 1718. 18 No “Mapa de enumeração da gente e povo desta capitania da Baía pelas freguesias de suas

comarcas...1780”, a Comarca de Jacobina e Minas estava composta pelas seguintes freguesias: Santo

Antônio da Vila de Jacobina, Santo Antônio da Jacobina, Santo Antônio da Vila do Urubu de Cima, Nossa

Senhora do Livramento do Rio de Contas, São José do Cento Sé e Santo Antônio do Pambú. AHU_ Bahia.

Cx. 55, Doc. 10.700-10.701. Nesse mesmo ano a população total da Comarca de Jacobina, ou Comarca da

Parte do Sul da Bahia que envolvia 6 freguesias foi estimada em 24.103.

12

Coronel Pedro Barbosa Leal, na arrecadação dos quintos devidos à sua Majestade. O

capitão Constantino Gomes possuía a expressiva quantidade de 15 pessoas trabalhando

diretamente em suas bateias. Desse quantitativo, 10 eram escravos de bateia, 3 eram

agregados em sua casa e 2 eram escravos de Guilherme, igualmente seu escravo. Fato

curioso esse, pois Guilherme foi o único escravo a ser citado nominalmente na Lista das

Bateias dos mineiros da Jacobina de 1723.

Assim como Guilherme, que era cativo do Capitão Constantino Gomes

Vitória, outros 597 escravos exerciam atividades de bateias nos ribeiros do ouro de

Jacobina. A análise da distribuição da mão de obra é um item de alta relevância para

ampliar a análise da composição populacional e de sua dinâmica produtiva. No ano de

1723, 171 pessoas estavam no comando de trabalhadores de bateias em plena atividade

nos ribeiros de mineração e nas propriedades agrícolas nos entornos da vila. Estes

indivíduos foram arrolados a partir de sua condição (livres, forros e escravos) qualidade

social (patentes, ocupações), sua cor (pardos, negros e pretos), e em seguida foram

anotados a quantidade e ocupação dos escravos que pertencia a cada senhor (bateias,

trabalhos com roça, gado e outros não especificados). As mulheres (livres e escravas) e

os escravos menores e incapazes, também foram distinguidos na referida lista. Abaixo

relacionamos o padrão de posse de escravos arrolados na Lista das Bateias dos mineiros

da Jacobina de 1723, onde encontra-se a indicação de quantos escravos cada proprietário

tinha empregado nas atividades de bateia, roças e outros.

Tabela 04

Padrão de posse de escravos de Bateia por proprietários 1723

Quantidade de escravos

Número de

proprietários

1 42

2 13

3 23

4 10

5 7

6 7

7 5

8 3

9 4

10 1

12-15 6

34 1

13

A análise dessa tabela indica que a maioria dos proprietários possuíam entre

1 e 4 escravos, ou seja, nos anos iniciais da mineração a disponibilidade de cativos ainda

era pequena, isso é atestado pela ausência de grandes planteis. Percebemos também que

os que tinham poucos escravos entre 1 e 3, declararam que todos estavam empregados

nas atividades de bateias, pois muitos eram faiscadores e exerciam a atividade de forma

individual ou com a ajuda de poucos escravos. Dentre os escravos arrolados não havia

indicação daqueles que exerciam ofícios urbanos, mas é de se supor que os escravos sem

indicação de trabalho de bateia, estivessem ocupados em serviços domésticos, ou como

artesãos e ganhadores no centro da vila.

Outra lacuna na fonte, diz respeito a ausência de informações para a origem

dos cativos, no caso de alguns deles serem africanos ou crioulos. Apesar de sabermos que

havia mão-de-obra indígena em plena atividade naqueles anos iniciais da década de 1720,

também não há referências a índios, mamelucos ou gentios da terra. O que consta nos

registros é o designativo de ‘negro’, e ‘preto’, que pode nos fazer supor que ‘negro’ podia

corresponder à ‘negros da terra’ e ‘preto’ estava sendo usado como designativo para os

africanos. Dos proprietários que tiveram sua cor indicada 4 eram negros e 10 eram pretos.

A tabela a seguir nos permite visualizar mais detidamente a posse de escravos

de acordo com a ‘ocupação’ declarada dos proprietários, indicando as patentes para

aqueles que a possuíam. Assim os dados mostram um aspecto marcante da hierarquia

social nos primórdios da mineração em Jacobina, foi a concentração de escravos nas mãos

de poucos indivíduos, em contraste com a grande maioria dos pequenos mineradores que

apesar de serem numericamente mais expressivos, detinham individualmente menos

cativos.

Tabela 05

Ocupação dos donos de bateias Quantidade Escravos %

Ajudante 4 36 4,20%

Alferes 2 30 3,55%

Capitão-Mor 1 13 1,50%

Capitão-de- Cavalos 2 13 1,50%

Capitão 8 45 5,30%

Coronel 1 17 2,00%

Mineiros 37 37 4,37%

Religiosos 3 18 2,13%

Roceiro 4 12 1,42%

Sargento mor 2 16 1,90%

Sem Ocupação 171 597 70,60%

14

Tenente Coronel 1 9 1,00%

Tenente 1 2 0,23%

Total 237 845 100%

Outra observação diz respeito ao fato de que se contabilizarmos apenas os

individuos com patentes, veremos que eles conformam um rol de 25 (10,5%) proprietários

que detinham a posse de 260 (30,7%) escravos, pode não parecer muito, mas se

contabilizarmos a capacidade produtiva dessas bateias, veremos que era um número

substancial para o aproveitamento das lavras. Os 10 capitães (incluindo os capitães de

cavalaria) concentravam o maior plantel 6,8 %, em relação aos demais grupos. Os 37 que

se declararam como mineiros, detinham 37 escravos, já que cada um possuía 1 escravo,

obviamente que eram os com menor capacidade de extração do ouro, e é certo que viviam

de faiscar em um e outro ribeiro, não tendo condição de arrematação de datas.

Esse cenário explica em parte a baixa arrecadação dos quintos, que tanto

atormentava os fiscais da Fazenda Real. A capacidade de produção e a arrecadação fiscal

estavam diretamente atreladas a incapacidade dos mineiros em possuir e empregar mais

mão-de-obra nas datas, isso foi determinante pelo menos nos anos iniciais das atividades

extrativas. Por outro lado, a concentração de 492 escravos empregados nas atividades de

bateia, demonstra a tentativa de aproveitar ao máximo a utilização de mão-de-obra

disponível. Os 171 individuos que não declararam ocupação e nem possuíam patentes

perfaziam a grande maioria dos donos de bateias, mas em geral a média de posse de

escravos era muito baixa, 3,4 e possuíam entre 1-4 escravos, quase nunca extrapolando

essa faixa. Os pequenos proprietários eram os que investiam tanto em roças, quanto no

ouro, mais mesmo assim, possuíam poucos escravos.

Entendemos que os indivíduos com patentes perfaziam a elite social e

econômica de Jacobina, pois além de terem um plantel maior de escravos, a maioria deles

estavam envolvidos também nas atividades de fiscalização das lavras, o que lhes conferia

privilégios, controle social das datas e mais prestígio. Esta era um elite de pequena monta,

que não investia seu capital produtivo em outra atividade que não fosse a mineração, por

isso praticamente inexistiam escravos seus em atividades de roça. Estes dados apontam

para uma concentração econômica nas mãos de reduzidas pessoas, que agregavam ao

prestígio social a possibilidade de concentrar trabalhadores nas bateias.

15

Em 1723 tínhamos 16 locais onde havia a extração de ouro comandada por

sete capitães ligados a companhia de ordenanças da vila19. A tabela 06 demonstra a

quantidade de pessoas alocadas nas datas de mineração sob a fiscalização dos capitães

das companhias de ordenanças na vila.

Tabela 06 – Distribuição de mineiros e escravos por datas de Mineração

Companhia Ribeiros Mineiros Escravos

Capitão Antonio Moniz Barreto Mocambo 31 115

Capitão Antonio Moniz Barreto Figuras 14 80

Capitão Constantino Gomes Victoria Jaboticabas 18 53

Capitão Constantino Gomes Victoria Itapecurú 18 38

Capitão Constantino Gomes Victoria Jacobina 8 31

Capitão Constantino Gomes Victoria Genipapo 3 20

Capitão Constantino Gomes Victoria Canavieira 12 16

Capitão Domingos Pereira Lobo Ouro fino 12 55

Capitão Domingos Pereira Lobo Palmar 7 28

Capitão Domingos Pereira Lobo Brito 8 22

Capitão Domingos Pereira Lobo Santo Inácio 4 9

Capitão Francisco Barboza Cachoeira 11 20

Capitão Francisco de Souza Mocambo 9 25

Capitão Gaspar Alvrez da Silva Missão do Bom Jesus 57 236

Capitão Gaspar Alvrez da Silva Malhada da Pedra 4 9

Capitão Ignacio Cardozo Cahem 20 97

Total 236 854

Os sete capitães das ordenanças da freguesia fiscalizavam o trabalho de 236

mineiros e 854 escravos de bateia que faiscavam nos ribeiros acima indicados. Por essa

tabela pode-se fazer um mapeamento sobre o alcance social desses capitães e não raro a

maioria deles faziam parte da câmara da vila e também estavam na rede clientelar do vice-

rei que os proveu nos postos das ordenanças.

A análise das confirmações de patentes existentes no Registro Geral das

Mercês pode nos fornecer um perfil dos serviços que eram prestados à sua Majestade no

19 Todas as tabelas foram construídas com base nos seguintes documentos: IHGB. LEAL - Lata 5, Doc.

15. Autos de Justificação em que são partes o capitão Manoel Francisco dos Santos, superintendente das

conquistas e o Coronel Pedro Barbosa Leal. Salvador, 30 de outubro de 1730. 694f; entre as páginas 113

a 155 constam quatro listas de população para a Vila de Jacobina e o sertão: Rol das pessoas que

satisfizeram ao preceito na confissão e sagrada comunhão este presente ano de mil e setecentos e dezoito

nesta matriz de Santo Antônio da Jacobina. Rol das pessoas que satisfizeram ao preceito da confissão e

sagrada comunhão nesta Matriz de Santo Antônio da Jacobina esta quaresma de mil e setecentos e vinte.

Lista das datas que se deram das quais se devem as dízimas a saber. Lista das bateias dos mineiros da

Jacobina Companhia do Capitão Constantino Gomes Victoria no ano de mil e setecentos e vinte e três.

16

sertão da Bahia, mas especificamente na vila de Jacobina. Essas trajetórias quando

analisadas, nos permitiram perceber um fenômeno já apontado por Ronald Raminelli de

que a nobilitação dos súditos iniciava-se primeiramente no âmbito local20, com a intenção

de demarcar a capacidade do governo da capitania na gestão administrativa das

localidades.

Especialmente para a Bahia, havia ainda que se fazer um “aprendizado da

colonização” para demarcar a governabilidade no sertão. É por esse prisma que

entendemos a política de recompensas aos indivíduos mais notáveis, que ao fortalecerem

seu prestígio e poder local, reafirmados através da câmara e com patentes nas ordenanças,

alçavam-se como co-partícipes nas redes clientelares do Vice-rei, mas também

consolidavam a esfera de influência da coroa.

As minas do sertão da Bahia, em especial as localizadas nos entornos da vila

de Jacobina, eram em geral de aluvião, o que favoreceu ao esgotamento rápido de suas

jazidas, não produzindo potentados do ouro, tal como ocorreu em Minas Gerais. Na

documentação consultada aparecem com frequência relato dos administradores das minas

de que era necessário que a coroa incentivasse com mais propriedade os exploradores e

mineiros, pois as grande vultuosidade de metais encontravam-se nas serras, no entanto os

moradores não possuíam recursos, sejam técnicos ou em mão de obra, para explorar

adequadamente o potencial das lavras.

Mesmo com o aparente quadro de estabilidade ofertado pelas análises

anteriores, sabemos que os locais de mineração eram bastante suscetíveis às desordens e

violências. De fato está era a tônica que orientava uma sociabilidade nada pacífica, como

às vezes os relatórios dos governadores enviados à coroa tentavam descrever. Outro fator

que colaborava com a instabilidade social foi a intensa transumância de indivíduos que

passavam pouco tempo naquele território, pois em sua maioria tratavam-se de homens

com pouco ou nenhum cabedal, somente interessados em ficar nas minas por pouco

tempo, não estabelecendo vínculos duradouros com a sociedade local.

Além disso aqueles que se arriscavam nos sertões incógnitos em busca de

metais preciosos, não se dispunham na maioria das vezes a contar para a administração

da capitania os seus achados, pois lhes interessavam muito mais o segredo e o

ocultamento dos pontos de exploração, que assim lhes facultariam mais rendimentos

pessoais do que mercês régias que poderiam demorar muito tempo para serem

20 RAMINELLI, R. Serviços e mercês de vassalos da América Portuguesa. IN: REVISTA HISTORIA Y

SOCIEDAD NO. 12, MEDELLÍN, NOVIEMBRE 2006, PP. 107-131

17

conseguidas. Por outro lado, isso não significa dizer que não houvesse aqueles que o

fizessem, que notificaram a coroa sobre os descobrimentos de minas e pagamentos de

quintos, que eram feitos basicamente, de acordo com seus interesses pessoais.

Assim, ressaltamos que para além de percebermos uma estrutura social em

construção na Vila de Jacobina, não devemos esquecer que os sertões baianos nas

primeiras décadas do século XVIII, foi uma terra de aventureiros, que passaram por ali

atrás do ouro, sem quase deixar rastros de suas existências. Dessa forma depois da década

de 1730, Jacobina tornou-se um ponto de passagem para os que iam às Minas Gerais, mas

também para o comércio de gado que dominavam os sertões acima do rio de São

Francisco. Por outro lado para os que ficaram e começam a fazer parte daquela recente

formação social, tornou-se importante acionar o espaço jurisdicional: a câmara, a

comarca, o governo, o Conselho Ultramarino.

Estes dados pretenderam analisar o panorama de posse dos donos de bateias

e observar a classificação social que os designava. Ainda são conclusões parciais que

precisam ser refinadas, mas já nos oferecem pistas para melhor conhecer o perfil da

população dos homens e mulheres que estavam povoando a vila de Jacobina e entender

como se organizavam em torno da constante busca pelo ouro. A composição populacional

é variada e mesmo com lacunas e limitações das fontes, nos foi possível perceber que os

moradores procuravam concentrar seu capital na posse de escravos voltados para as

bateias.

5. Os quintos do ouro

O quadro esboçado até aqui pretendeu mostrar em nível local, como o

governo da capitania procurou esboçar uma sistemática para a organização da primeira

localidade onde deu-se a extração do ouro na Bahia. Como nos faltam fontes que atestem

a lógica social esboçada nas outras vilas mineiras, como Rio de Contas e Bom Sucesso

do Fanado na Minas Nova de Araçuaí, pode-se expandir esta análise, para em termos

geral, inferirmos que fenômeno semelhante ocorreu nos outros distritos do sertão. Em Rio

de Contas já haviam mineiros trabalhando, mas não dispomos de quantificação

demográfica para essa Vila, só a informação de que em 1722 já existiam mais de 700

bateias em operação nos ribeiros locais. E que ali também seria necessário erigir vila, tal

como expressou D. João V em Carta enviada ao Vice-rei em 1725:

(...) vos parecia dizer-me convém muito se erija logo no Rio de Contas

uma vila com o seu magistrado não só pelo que respeita a boa

arrecadação dos quintos, mas pelo que toca a se evitar nos distúrbios e

18

desordens que cometem aqueles moradores como refugiados, e esta

mesma resolução serviu de remédio a Jacobina, donde já não há insultos

e se prendem os que cometem delitos.21

Em Minas Novas de Araçuaí o circuito do ouro só começa a se delinear no

início da década de 1730, quando o território começou a ser disputado entre Bahia e

Minas. O maior problema na região foi conter a resistência indígena, que sofreu forte

ofensiva capitaneada pelo mestre de Campo Pedro Leolino Mariz e Coronel Antônio

Veloso Pimentel. A resposta da coroa foi criar em 1730 uma companhia de cavalos e uma

casa de fundição que desse conta da arrematação dos quintos.

O contrabando e o descaminho no Império colonial português fez parte da lógica

de manutenção do mercado. Isso era sabido pelas autoridades do Brasil e do reino,

portanto devemos relativizar as medidas tomadas pelos oficiais régios para tentar barrar

o contrabando, uma vez que era sabido que o contrabando estimulava e alimentava o

circuito mercantil. Leonor Freire Costa resumiu de forma precisa a relação do mercado

com o descaminho quando afirmou que “o mercado (mesmo que inscrito na matriz do

monopólio) e o contrabando perfazem um binômio inspirador de mudanças na orgânica

da administração da fazenda, no Reino e no Brasil22.”

A correspondência entre as autoridades do reino e das colônias explicitam um

conjunto de questões desencadeadas com a mineração. Boa parte dessa correspondência

indicam problemas com relação a evasão de divisas dos cofres régios, apontando as

dificuldades de fazer valer a soberania da coroa diante dos interesses dos mineiros que

normalmente conflitavam ou fazia letra morta das ordens régias. Tentaremos sintetizar os

principais pontos de conflitos, seguindo o ritmo das correspondências trocadas entre o

Vice-rei e D. João V na década de 1730, momento especial para análise da implantação

de direcionamentos políticos e orientação dos expedientes de governabilidade nas minas

baianas.

A prova mais cabal deste fato pode ser encontrada em uma carta escrita pelo próprio

rei D. João V e destinada Bernardo Freire de Andrade, na ocasião primeiro comandante

da frota que partiu da Bahia em 1730. A carta continha uma instrução sobre como o vice-

21 Carta de D. João V, enviada de Lisboa a 9 de fevereiro de 1725. Transcrita in: ACCIOLI, Ignácio de

Cerqueira e Silva. Memórias históricas e políticas da Bahia. Anotado por Braz do Amaral. Salvador:

Imprensa Oficial, v. 2, 1925. P. 358 22 COSTA, Leonor Freire. “Entre o açúcar e o Ouro: Permanência e mudança na organização dos fluxos

(séculos XVII e XVIII). In: FRAGOSO, J; FLORENTINO, M; SAMPAIO, A.C.J; CAMPOS, A. Nas rotas

do Império: Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. 2ª. Ed. Vitória, EDUFES,

2014. p.p. 91.

19

rei deveria evitar os danos que se seguiam ao comércio ilegal com o ouro em pó. Por isso

o rei dizia estar ciente de que era notório os descaminhos que se faziam do ouro enviado

pela frota real. A situação era tão grave que o próprio rei confirmava que o ouro era

desviado dos cofres das naus pelos mesmos oficiais e soldados das fragatas e navios

mercantes, que seriam os responsáveis por conduzi-lo para o reino. Além disso constatou-

se que os oficiais,

(...)comprando quase publicamente o ouro em pó, tomando

também a troco das fazendas que levam do reino e

chegando a oferecestes aos donos para traze-lo e entrega-lo

a salvo nesta corte pelo prêmio que estipulas, sendo tal a

sua indústria que até as armas de fogo trazem carregada de

ouro23.”

Essa passagem comprova que o comércio com o ouro não era só feito pelos homens

de negócios, posto que as transações a miúdo eram frequentes e sabidas até pela maior

autoridade do Império, quiçá pelas autoridades da capitania. O ouro por ser material de

fácil condução permitia que os interessados fizessem comércio em diversos portos

atlânticos, apesar da explícita legislação que o proibia. Na mesma missiva estava posto

que os homens das fragatas levavam fazendas do reino e nos portos a trocavam por ouro

em pó e que estes já tinham compradores certos quando desembarcam com suas fazendas

e mercadorias enviadas por negociantes das praças portuguesas. Para além do fato de que

esta carta atestava o nível de conhecimento que a autoridade régia tinha sobre o

descaminho, faz-se imprescindível perceber a forma como o vice-rei sabia que pouco

efeito teria a proibição do dito contrabando.

A carta escrita de punho régio instruía o vice-rei na publicação de um bando com a

proibição de que nenhum oficial ou soldado pudesse comprar ou trocar ouro em pó por

fazendas e nem levar moedas ou peças de ouro para o reino no valor acima de 20 mil reis.

A pena para o desencaminhador seria a perda do posto, do tempo de serviço e ainda o

degredo por dez anos para Angola. Se o contrabandista fosse soldado ou pessoa de origem

inferior seria igualmente condenado as galés pelos mesmo dez anos. O rei ainda ordenava

que as naus fossem vistoriadas e que fosse incentivado a denúncia em segredo sendo o

denunciante premiado também de forma sigilosa com a metade de todo o ouro que se

achasse com o desencaminhador. Estas e outras punições tornavam-se letra morta diante

23 IHGB:DL 865.2. Lista de cartas e provisões de Sua Majestade e Secretário de Estado ao Conde de

Sabugosa. Fólios 1-2.

20

do fato de que sempre haviam formas de trazer ouro das minas para negociar na praça da

cidade de Salvador.

Na resposta o conde de Sabugosa comprometia-se a fazer valer as instruções régias,

mas ao mesmo tempo alertava que parecia-lhes de que “desta pouco ou nenhum fruto

resultará24”, ainda que houvesse prudência em não publicar o bando proibindo o

comércio, para não chamar atenção dos infratores, que seriam pegos de surpresa quando

houvesse inspeção nos navios.

Outra instrução régia advertia que o vice-rei impedisse a presença de ourives no

território das minas, pois este ofício aumentava a possibilidade de fundição de ouro, sem

que o mesmo tivesse sido quintado nas casas de fundição. Dessa forma alertava sua

majestade que o vice-rei deveria mandar retirar das minas toda e qualquer pessoa que

soubesse fundir e manipular ouro. A medida mais uma vez incidia sobre a possibilidades

de evitar que o ouro em pó se transformasse em barras ou qualquer outro objeto que podia

ser trocado por mercadorias25. A principal recomendação do rei incidia sobre um sistema

unívoco de arrematação dos quintos do ouro, tanto nas Minas Gerais quanto na Bahia. No

caso desta última capitania, o sistema de arrecadação era feito por bateia, ou seja, cada

mineiro deveria pagar o imposto de 5 oitavas a partir da quantidade de escravos que

mineravam, não havendo um sistema de capitação geral que deveria ser recolhido aos

cofres régios.

Essa diferença diz muito sobre as condições de extração que se faziam nas minas

baianas e aí reside uma grande diferença entre os distritos mineiros de uma e outra

capitania. Enquanto nas Gerais a arrecadação dos quintos eram recolhidos a partir de uma

cota estabelecida, na Bahia ainda vigorava um sistema de taxação dos mineiros a partir

da capacidade individual de extração. Isso comprometia sistematicamente os valores dos

quintos baianos, que aos olhos da coroa eram sempre aquém da capacidade de

arrecadação das minas. Sabedores desse sistema, os mineiros estavam sempre em

constante deslocamento, tentando fugir da fiscalização régia e aproveitando-se da

largueza do território por onde se buscavam novos caminhos para burlar o sistema do

fisco.

24 IHGB:DL 865.2. Lista de cartas e provisões de Sua Majestade e Secretário de Estado ao Conde de

Sabugosa. Fólio 4. 25 IHGB:DL 865.2. Lista de cartas e provisões de Sua Majestade e Secretário de Estado ao Conde de

Sabugosa. Folio 116.

21

A questão da arrematação dos quintos sempre foi a grande dificuldade da

coroa. Em todo o período encontramos documentação que atestam as diversas

estratagemas e insubordinação dos mineiros para não comparecerem com os impostos

régios. Todo o esforço dos funcionários da coroa pareciam ser insuficientes quando o

assunto era o pagamento dos valores devidos a Fazenda Real. Em uma carta enviada para

o Vice-rei, o escrivão da conferência da Casa de Fundição da Jacobina contou que tendo

feito uma pública súplica aos moradores para que entrassem com os quintos devidos, estes

responderam dizendo que “enquanto achassem quem lhes pagassem pela oitava de ouro

a mil duzentos e oitenta, lhe faria maior conveniência que mete-lo em casa de fundição.26”

A resposta dos mineiros frente as pressões para o pagamento dos quintos

incidia sobre uma questão crucial, que era o valor que as oitavas de ouro possuíam no

mercado local. Enquanto na casa de fundição a oitava era comprada por 1.200 reis, na

mão dos negociantes cada oitava valia 1.280 reis, mostrando inelutavelmente que essa

diferença incentivava o ímpeto dos mineiros de desencaminhar o ouro. Sabia-se

largamente que o ouro em pó nos distritos das minas corria como dinheiro, obviamente

por haver escassez de moeda e por causa sobretudo da dinâmica das transações comerciais

locais.

A resposta do povo da vila contrariava ainda mais as ordens de Sua

Majestade. Segundo alegavam, o contrato daquelas minas eram livres, nem o escrivão

nem pessoa alguma os podiam obrigar a fundir o ouro e que o único modo seria impedir

a saída dos que trocavam o ouro por aquele preço. Sabemos que os negociantes, tanto

quanto os mineiros e faiscadores lucravam com o descaminho do metal, pelos vários

modos que tinham de fugir dos arraiais mineiros. Na carta o escrivão ainda aponta que

naquelas circunstâncias era do ribeiro de São Miguel das Figuras de onde saiam a maior

parte dos homens de negócios e negociantes para a cidade de Salvador, levando consigo

a maior parte do ouro.

A negociata de ouro não quintado feita pelos homens de negócio que

circulavam entre o sertão e o litoral já era conhecido em toda a capitania, pois a prática

era corrente, não obstante houvesse esforços de fiscalização para tentar evitar o

contrabando. Leonor Freire Costa em artigo sobre as remessas de ouro feitas por agentes

do Brasil para o reino no ano de 1751, demonstra como a possibilidade de enriquecimento

rápido com a economia mineira, fragilizava as relações de confiança e credibilidade,

26 AHU_ACL_CU_005, Cx. 45, D. 4030.

22

assentes nos circuitos mercantis atlânticos. Segundo conclui, “os anos de esplendor da

economia mineira imprimiram uma inusitada fluidez nos grupos mercantis27”, e vejam

que a autora está analisando a década de 1750, quando a sociedade das Minas Gerais, por

exemplo, já havia consolidado uma elite econômica, que difere em muito daqueles

desclassificados e aventureiros do início do século XVIII. Ao mesmo tempo evidencia a

importância da figura social do ‘comissário volante’ nas duas margens do atlântico, que

pode nos servir de exemplo para pensarmos os agentes volantes entre o litoral e o sertão.

A narrativa mais interessante sobre o sistema de descaminho do ouro

praticado no sertão baiano, encontra-se uma carta escrita em 1730 pelo Coronel Pedro

Barbosa Leal, já velho de suas andanças pelo sertão, na qual ele relata todos os tipos de

estratagemas usados pelos mineiros para fugir ao fisco. Em resumo ele afirma que a

largueza do sertão, a possibilidade de evadir-se por matos e picadas, a facilidade de

esconder o ouro e de troca-lo a preços convidativos por produtos levados pelos

negociantes às minas, tornava quase impossível uma sistemática eficiente na arrecadação

dos quintos. A citação é longa, mas merece ser transcrita pela pertinência de seus detalhes:

Nem ainda dentro das Minas se pode dar legitima arrecadação na

extração do ouro, porque se deve considerar que sendo muito os

mineiros que tiram ouro são poucos os que tem lavras abertas, e certa

por que os mais deles trazem os seus negros a faiscar, isto é dizer aos

negros que lhes hão de dar cada dia meia oitava de ouro de jornal, e que

vão trabalhar donde quiserem. Estes faiscadores vão pelas lavras velhas

onde na lavagem sempre fazem jornal, e outros se metem por entre as

serras, e por entre as brenhas, e pelos córregos que não estão

conhecidos, e os vão escalando e dando suas escavações donde tiram

ouro, fazendo os seus jornais e vem aos sábados dar conta aos seus

patronos, e lhes fica o mais ouro para o seu comércio. Muitas vezes se

passam quinze dias que seu senhor não sabem deles; e assim ainda

quando se quiserem por olheiros pelas lavras que rejeitassem o ouro

diariamente, que é a mais miúda arrecadação que se podia por, não é

meio adequado, por que além de necessitar de um grande número de

olheiros, senão podia praticar com os faiscadores, como também com

muitas pessoas que não tem escravos que bastem para abrir lavra, se

botam pelo tempo das aguas a minerar pelas bastadas das serras e

poucos regos incógnitos aonde tirão ouro, sem tirar carta de data, e sem

serem conhecidos por mineiros.28

A origem da carta do Coronel Leal foi uma consultada efetuada por D. João

V ao Conde de Sabugosa sobre as possíveis vantagens de se fazer na praça da Bahia um

contrato de arrematação dos quintos por particulares, tal como se dava com o contrato das

entradas de mercadorias nas Minas. O vice-rei prontamente coloca a questão sob consulta

27 COSTA, Leonor Freire. Op. Cit. 2014, p. 116 28 IHGB: DL 865.2. Lista de cartas e provisões de Sua majestade e secretário de Estado ao conde de

Sabugosa. Fólios 15-24.

23

ao Coronel Leal, que era um experiente sertanista, tendo prestado mais de 40 anos de

serviços a coroa. A resposta do coronel foi absolutamente enfática de que tal sistema

causaria grandes distúrbios nas minas e que se os mineiros se recusavam a pagar os

quintos contrariando as leis máximas de S. Majestade, qual seria o motivos que os fariam

arrecadar junto a um contratador? Resumindo, essa alternativa seria inviável.

Ainda no ano de 1730, o conde de Sabugosa alertava a coroa sobre a situação

das minas baianas sob sua administração e de como o Conselho ultramarino não

respeitava a sua autoridade, infligindo as próprias ordens régias que deveriam ser

observadas. O rendimento das minas baianas eram auferidos na arrecadação dos quintos,

mas também na arrematação dos contratos das entradas das minas, para os quais se

cobravam o preço de 5 mil reis por escravo que para estas passavam. Além disso os

gêneros de secos e molhados também eram taxados nas passagens dos caminhos. Além

da questão econômica, ainda havia divergências políticas significativas envolvendo o

vice-rei Vasco Fernandes com o governador das Minas Gerais D. Lourenço de Almeida,

que foi acusado de não prestar contas de suas ações à autoridade máxima do governo do

Brasil. Vasco Fernandes escreveu ao rei nos seguintes termos:

“Pela secretaria recebi a cópia das ordens, em que V. Em.cia me fala

pertencentes as Minas Gerais, donde não tenho nunca notícias, que as

que me participa o governador do Rio de Janeiro, e se divulgam nesta

cidade, porque Dom Lourenço de Almeida desde que tomou posse do

governo, se pos em divorcio comigo, entendendo que seria menos

governador, se fosse subordinado, porém nenhum dos seus antecessores

seguiu esse tão grave desordenado sistema, o qual continua sem

embargo de El rei o advertir há quatro anos, em carta firmada pela sua

Real mão, ordenando-lhe me desse conta de tudo quanto acontecesse na

sua jurisdição, e executasse prontamente as minhas ordens, não tendo

outras em contrarias de S. Majestade, e confesso a V. Em.cia que nada

sinto, a falta desta correspondência, porque são tais os progressos deste

fidalgo, que justo é que ninguém mais que ele tenha parte nos seus

acertos29

.”

D. Lourenço foi acusado de favorecer alguns indivíduos na arregimentação

dos Contratos das Entradas das Minas, lesando com isso os valores a serem pagos à

Fazenda Real pela arrematação dos ditos contratos. A carta é ainda esclarecedora por que

ele admite que muitas vezes executava ordens do Conselho Ultramarino, mesmo contra o

seu entendimento, para evitar que os contratadores se utilizassem de requerimentos para

fazer frente às suas decisões. Com isso ele admite ceder à pressão dos arrematadores dos

contratos, muitas vezes homens de negócios, para evitar danos maiores à Fazenda Real.

Em outras circunstâncias, o vice-rei também adotava medidas políticas explícitas para

29 Conselho Ultramarino – Brasil – Bahia Coleção Eduardo castro e Almeida. 23 de Agosto de 1730.

Caixa 3, Doc. 346.

24

suavizar as pressões fiscais que incidiam sobre os mineiros e evitar que houvessem

distúrbios coletivos nos distritos das minas. Vasco Fernandes mostrou-se um habilidoso

negociador diante dos embates entre as dificuldades locais e as exigências da coroa.

Nesta missiva ele assinalou que as minas novas de Araçuaí que começaram a ser

exploradas a partir de 1727 podiam ser muito rentosas à coroa, que eram as melhores que

existiam no Brasil e que muito dependia-se do envio de mais mão-de-obra que desse conta

do trabalho dos mineiros. Não obstante, no parágrafo seguinte ele diz que os

descobrimentos de diamantes no Serro do Frio estavam causando uma “grande

revolução”, pois como alguns mineiros não encontravam mais ouro nos leitos dos rios,

como se faziam nos princípios, eles logo mudavam de local para continuarem extraindo.

Esse movimento foi intensificado por conta dos descobrimentos de diamantes que atraíam

mais rapidamente os mineiros que viviam em constante deslocamento. Além desse fatores

o preço dos escravos haviam subido bastante, causando um inflacionamento do custo de

obtenção da mão de obra. Os escravos que eram levados para as minas do sertão, ou seja,

os desembarcados no porto de Salvador ou Rio de Janeiro, estavam submetidos a um

contrato que foi arrematado na praça de Lisboa. Este fato deixou o vice-rei bastante

descontente e foi motivo de críticas do vice-rei em relação ao Conselho Ultramarino que

favorecia os arrematadores.

Do ponto de vista econômico e essa é uma importante matéria, o ouro que

alimentava o fluxo comercial do Atlântico Sul, foi usado no tráfico negreiro e intensificou

nos portos baianos o comércio com navios da Carreira da Índia. De acordo com Sampaio,

nos portos baianos entravam artigos como porcelanas, seda e têxteis indianos e em troca

levavam ouro que em parte era usado para compra de cativos na África30. Assim a

abertura da mineração nas vilas baianas muito embora tivesse ampliado a arrecadação

fiscal da Fazenda Real, trouxe uma série de problemas a serem resolvidos, já que

possibilitou a circulação de mais riquezas, movimentando do sertão para o atlântico, em

várias direções, as relações mercantis da Capitania da Bahia.

Além disso o dinheiro recolhido dos quintos, em certas circunstâncias era usado

para saldar a folha de funcionários da coroa no ultramar, como sucedeu-se em 1735,

quando o Vice-rei Vasco Fernandes em seu último ano de governo, recebeu mais de

9:955$722 reis dos rendimentos dos direitos dos quintos e das entradas das minas de

30SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “A curva do tempo: as transformações na economia e na sociedade

do Estado do Brasil no século XVIII.” IN: FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima. Coleção O

Brasil Colonial. 1720-1821. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 314.

25

Jacobina e usou parte deste montante para pagar duas folhas de ordenados dos oficiais da

casa de fundição e dos comissários das Fragatas das naus do comboio da frota real. Para

isso ele alegou que a fazenda real estava sem fundos para saldar a folha de funcionários31.

No ano seguinte, em 1736, já no governo do Conde das Galveas, colocava-se novamente

a necessidade de usar o rendimentos dos quintos da Jacobina para pagar as despesas das

casa de fundição, e dos quintos das Minas Novas de Araçuaí para pagar o trabalho das

tropas de linha daquela vila, já que o rendimento advindo do registro das entradas tinha

sido arrematado por contratador das Minas Gerais32.

A documentação presente no Conselho Ultramarino não é uniforme com relação

aos quintos arrecadados nas minas baianas. Para alguns anos não existe registro ou então

isso mostra que a arrecadação era bastante irregular, hipótese que me parece plausível

dada as dificuldades de conciliar distintas percepções havidas entre a necessidade da

coroa de arrecadar e a disponibilidade dos mineiros em contribuir. Normalmente a

arrecadação do quinto era feita por homens ligados às milícias locais, o que evidenciava

a constante inevitabilidade do uso da força e da coerção. Portanto, diferentes conjunturas

e impositivos moldavam o montante da arrecadação fiscal, que manteve uma variação

significativa no contexto das décadas de 1720 e 1730. Essa oscilação pode ser visualizada

inclusive nos termos expressos dos valores da arrecadação, que podia ser em marcos,

onças e oitavas ou até em reis e cruzados. Isso provavelmente revela que haviam

constantes dificuldades a serem contornadas para fazer com que as oitavas saíssem das

mãos dos mineiros e entrassem nos cofres da casa da moeda em Salvador. Os valores dos

quintos das minas baianas precisam ser vistos com mais cautela, pois ao que tudo indica

na década de 1720 os quintos parecem ter sido arrecadados ao sabor de circunstancias

não totalmente sob o controle da fazenda real33. Somente após o anos de 1751 quando foi

instituída a Intendência Geral do Ouro é que temos valores mais constantes. Entretanto

31 AHU_ACL_CU_005, Cx. 54, D. 4659 32 AHU_ACL_CU_005, Cx. 56, D. 4808. 33 Albertina Vasconcelos em sua dissertação de mestrado fornece 3 quadros com valores para a arrematação

dos quintos das minas baianas. Segundo notifica, as tabelas foram retiradas de Borges de Barros (1933) e

Edelweis (s/d). Como não tivemos a possibilidade de checar a fontes usada por esses autores, preferimos

incluir na tabela dados retirados do AHU, assim como não fazer a conversão para kg, pois os dados

apresentados ainda estão em fase de análise. Ver; VASCONCELOS, Albertina Lima. Ouro: Conquistas,

tensões, poder, mineração e escravidão – Bahia do século XVIII. Dissertação (Mestrado em História).

Campinas: UNICAMP, 1998. Pp. 142-150; BARROS, Francisco Borges de. Arquivo Histórico.

Patrimônios municipais: o ouro dos sertões baianos. Bahia: Imprensa oficial do estado, 1933; EDELWEIS,

F. Os primeiros vinte anos da extração do ouro documentada na Bahia. IN: IGHBa. Anais do primeiro

Congresso de História da Bahia, Salvador, v.4.

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isso já extrapola o contexto de análise deste texto. Abaixo uma pequena amostra dos

valores dos quintos arrecadados nas minas baianas.

Tabela 01 – Quintos arrecadados referentes ao ano de 1720-1721

Ouro dos Quintos 1721

Data Valores Origem

05 a 30/01 de 1722

Desde 05 de agosto de 1720 663 oitavas Jacobina

24/02 a 04/03 de 1722

Desde 05 de agosto de 1721 548 oitavas e 3/4 Jacobina

1724 Mais de 4.000 oitavas; Jacobina

19 de julho de 1725

até 27 de setembro de 1725

46 marcos, 3 onças, 7

oitavas e 36 grãos.

34 marcos, 3 onças, 4

oitavas.

8:177$570 em reis

Jacobina e Rio de

Contas.

Abril de 1728

1533 oitavas; 2:225$324

reis

Setembro de 1728

6.936 oitavas

9:697$174 reis

1735

192 marcos e 36 grãos;

14 marcos, 6 oitavas, 36

grãos;

24 marcos, 7 onças, 1 grão

15:000$625 reis

5.558

Minas Novas

Direitos das entradas

de Jacobina

Quintos de Jacobina.

Direito das entradas

R.de Contas

Quintos de Rio de

Contas e Jacobina

O século XVIII foi um século marcante para a expansão da governabilidade

no estado do Brasil. Dessa forma nossa pesquisa aponta que tanto na capitania de Minas

Gerais, quanto na Bahia onde houve sistemática exploração de ouro, tal fenômeno foi um

evento de dimensões ambivalentes para o Brasil e para o reino. Por um lado, no discurso

das autoridades da capitania, a corrida do ouro despertou a sanha dos exploradores, tendo

provocado a afluência de muita gente para o sertão, por outro, foi justamente a

necessidade de dar forma à arrecadação fiscal que condicionou a criação das câmaras e

das vilas do interior. Para isso, foi necessária a intervenção constante da coroa no sentido

de dar suporte ao processo de organização social e política nos distritos das minas. Em

termos de geopolítica local, coube ao governo geral, na pessoa dos governadores ou vice-

reis, mobilizar sua rede clientelar principalmente nas companhias de ordenanças, para

promover a administração das minas e garantir a soberania portuguesa no interior das

possessões ultramarinas.