XI COLÓQUIO HABERMAS II COLÓQUIO DE FILOSOFIA … · clovis ricardo montenegro de lima (org.)...

540
XI COLÓQUIO HABERMAS & II COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO Os limites para a liberdade comunicativa 22, 23 e 24 de Setembro de 2015

Transcript of XI COLÓQUIO HABERMAS II COLÓQUIO DE FILOSOFIA … · clovis ricardo montenegro de lima (org.)...

  • XI COLQUIO HABERMAS

    &

    II COLQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAO

    Os limites para a liberdade comunicativa 22, 23 e 24 de Setembro de 2015

  • CLOVIS RICARDO MONTENEGRO DE LIMA (ORG.)

    ANAIS

    XI COLQUIO HABERMAS

    E

    II COLQUIO DE FILOSOFIA DA

    INFORMAO

    Rio de Janeiro

    2016

  • 2014 EDITORA Salute

    Ficha catalogrfica elaborada por

    Mrcio Finamor CRB7/6699

    Formatao: Marcio Finamor e Tirza Cardoso

    Diagramao e arte capa: Tirza Cardoso

    C719 Colquios Habermas e II Colquio Filosofia da Informao (11. : 2015 :

    Rio de Janeiro).

    Anais do 11 Colquio Habermas e 2 Colquio de Filosofia da Infor-

    mao / 11 Colquio Habermas e 2 Colquio de Filosofia da Informa-

    o, 22-24 setembro 2015, Rio de Janeiro, Brasil; organizado por Clvis

    Ricardo Montenegro de Lima. Rio de Janeiro: Salute, 2016.

    540 p.

    ISBN: 978-85-68478-02-8

    1. Habermas, Jurgen. I. Lima, Clvis Ricardo Montenegro de, Org.

    II. Ttulo.

    CDD 193 (22 Ed.) CDD 193 (22 Ed.)

    Este trabalho est liceniado sob a Licena Atribuio-No

    Comercial 3.0 Brasil da Creative Commons. Para ver uma cpia

    desta licena, visite http://creativecommons.org/licenses/bync/3.0/br

    ou envie uma carta para Creative Commons, 444 Castro

    Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.

    http://creativecommons.org/licenses/bync/3.0/br

  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................................................... 7

    MESAS REDONDAS ...................................................................................................................... 9

    LIBERDADE COMUNICATIVA E FORMA DIREITO ..............................................................................................10

    LUIZ REPA USP/CEBRAP .................................................................................................................................... 10

    TEORIA DO DISCURSO E POLTICA DO RECONHECIMENTO ..............................................................................20

    LUIZ BERNARDO LEITE ARAUJO ................................................................................................................................. 20

    SOBRE A LIBERDADE JURDICA EM HABERMAS ...............................................................................................34

    DELAMAR JOS VOLPATO DUTRA [UFSC/CNPQ] ........................................................................................................ 34

    LIBERDADE COMUNICATIVA COMO AO DEMOCRATIZANTE E EDUCADORA OU PORQUE A DEMOCRACIA

    EXIGE O PRINCPIO PERFORMTICO DA TOLERNCIA? ...................................................................................51

    JORGE ATILIO SILVA IULIANELLI ................................................................................................................................. 51

    DA POTNCIA LIBERDADE: EXPRESSO, COMUNICAO E VERDADE ..........................................................58

    SOLANGE PUNTEL MOSTAFA .................................................................................................................................... 58

    DENISE VIUNISKI DA NOVA CRUZ .............................................................................................................................. 58

    AO E COMUNICAO: CONTRIBUIES DE HANNAH ARENDT E JRGEN HABERMAS PARA A

    COMPREENSO DO LCUS DA DIALOGIA, DA TICA E DO PROTAGONISMO NO FAZER INFORMACIONAL ......69

    HENRIETTE FERREIRA GOMES ................................................................................................................................... 69

    COMUNICAES COORDENADAS ...................................................................................................... 86

    A LINGUAGEM E SEU POTENCIAL EMANCIPATRIO: UM ENSAIO SOBRE OS REFUGIADOS NO BRASIL E SUA

    INTEGRAO ..................................................................................................................................................87

    GABRIELA GARCIA ANGELICO ................................................................................................................................... 87

    A MEDIAO DE CONFLITOS SERVINDO PARA AMPLIAR O ACESSO JUSTIA SOB O ALICERCE NO AGIR

    COMUNICATIVO ........................................................................................................................................... 104

    ELISANGELA PEA MUNHOZ (P.MUNHOZ) ............................................................................................................. 104

    A POSITIVAO DE PRECEITOS MORAIS EM SEDE DE DIREITO DO CONSUMIDOR: UMA ANLISE

    HABERMASIANA ........................................................................................................................................... 122

    CNDIDO FRANCISCO DUARTE DOS SANTOS E SILVA ................................................................................................... 122

    A PRIORIDADE DO JUSTO SOBRE O BOM NA TICA DISCURSIVA DE JRGEN HABERMAS ............................. 139

    GILCELENE DE BRITO RIBEIRO ................................................................................................................................. 139

    AGIR COMUNICATIVO E DISCURO: DE QUE JOGO ESTAMOS FALANDO? ....................................................... 162

    MARCELO BAFICA COELHO .................................................................................................................................... 162

  • 5

    AS POTENCIALIDADES DOS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO TICA, REGULAO, LGICA E LINGUAGEM:

    UMA PROPOSTA HABERMASIANA PARA A CONSTRUO DE CONHECIMENTOS CRTICOS NAS RELAES

    INTERNACIONAIS .......................................................................................................................................... 181

    JOS GERALDO ALBERTO BERTONCINI POKER ............................................................................................................ 181

    BEATRIZ SABIA FERREIRA ALVES .............................................................................................................................. 181

    VANESSA CAPISTRANO FERREIRA ............................................................................................................................. 181

    ASPECTOS JURDICO-FILOSFICOS ACERCA DO SUPERENDIVIDAMENTO: A CONTRIBUIO DA TICA DO

    DISCURSO ..................................................................................................................................................... 203

    CNDIDO FRANCISCO DUARTE DOS SANTOS E SILVA ................................................................................................... 203

    ANA BEATRIZ TERRA CRIPPA .................................................................................................................................. 203

    DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A AVALIAO DE IMPACTOS REGULATRIOS .............................................. 220

    CLVIS RICARDO MONTENEGRO LIMA ..................................................................................................................... 220

    ANNA CAMBOIM ................................................................................................................................................. 220

    DILZA RAMOS BASTOS .......................................................................................................................................... 220

    CRTICA PS-MODERNIDADE SEGUNDO HABERMAS: UM DILOGO SOBRE O PREFIXO PS ..................... 240

    JOO PAULO RODRIGUES ...................................................................................................................................... 240

    DEMOCRACIA E COMUNICAO: PARMETROS PARA UMA DEMOCRACIA RADICAL ................................... 259

    CHARLES DA SIVA NOCELLI ..................................................................................................................................... 259

    DIZER NO: A LIBERDADE COMUNICATIVA NAS REVISES DA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO ............. 275

    MARINA VELASCO ................................................................................................................................................ 275

    ENTRE A LIBERDADE COMUNICATIVA E O DISCURSO DE DIO: POSSIBILIDADES DE PESQUISAS A PARTIR DE

    HABERMAS ................................................................................................................................................... 291

    ANDR SPURI GARCIA ........................................................................................................................................... 291

    ELAINE SANTOS TEIXEIRA CRUZ ............................................................................................................................... 291

    JSSICA DE CARVALHO MACHADO ........................................................................................................................... 291

    KARINE MARTINS FERNANDES TINCO ..................................................................................................................... 291

    RICA ALINE FERREIRA SILVA .................................................................................................................................. 291

    VALDER DE CASTRO ALCNTARA ............................................................................................................................ 291

    JOS ROBERTO PEREIRA ........................................................................................................................................ 291

    ENTRE A RAZO E O CONCEITO MORAL DO JUSTO: DESAFIOS CONTEMPORNEOS DAS POLTICAS DE

    IMIGRAO .................................................................................................................................................. 314

    MARCELO PEREIRA DE MELLO ................................................................................................................................ 314

    ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO: COESO INTERNA ENTRE DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA POPULAR

    EM HABERMAS ............................................................................................................................................. 326

    ANDR GUIMARES BORGES BRANDO.................................................................................................................... 326

    HABERMAS E A DESOBEDINCIA CIVIL .......................................................................................................... 346

    CHARLES FELDHAUS .............................................................................................................................................. 346

    HABERMAS, NACIONALISMO E INTOLERNCIA ............................................................................................. 362

    ANDR JACQUES LOUIS ADRIEN BERTEN ................................................................................................................. 362

  • 6

    LIBERDADE E POLTICA: A IDEIA DE INDIVIDUALIDADE COMO REFERNCIA NA BUSCA PELA GARANTIA DE

    DIREITOS HUMANOS NA TEORIA POLTICA DE HABERMAS. .......................................................................... 377

    DIOGO SILVA CORRA ........................................................................................................................................... 377

    NARRATIVA PROCESSUAL: TICA NO DISCURSO JURDICO ............................................................................ 398

    JOS ANTONIO CALLEGARI ..................................................................................................................................... 398

    MARCELO PEREIRA DE MELLO ................................................................................................................................ 398

    O ESTADO DE EXCEO COMO LIMITE DA LIBERDADE COMUNICATIVA NAS POLTICAS EDUCACIONAIS ...... 414

    MARCELO FARIAS LARANGEIRA ............................................................................................................................... 414

    A PERSPECTIVA PS-METAFSICA DO AGIR COMUNICATIVO: ....................................................................... 428

    A SUPERAO DOS LIMITES DE UMA FUNDAMENTAO DA ONTOTEOLGICA E AS RESTRIES AO

    EMPODERAMENTO DO SUJEITO MONOLGICO ........................................................................................... 428

    JOVINO PIZZI ....................................................................................................................................................... 428

    O FACEBOOK COMO ESFERA PBLICA: ANSEIOS E LIMITES DA DEMOCRATIZAO DO ESPAO PBLICO VIA

    INTERNET ...................................................................................................................................................... 449

    CAMILA MOURA .................................................................................................................................................. 449

    O SUJEITO PRONOMINAL E A GRAMTICA COMUNICATIVA: ELEMENTOS PARA UMA GRAMTICA DA JUSTIA

    ..................................................................................................................................................................... 468

    JOVINO PIZZI ....................................................................................................................................................... 468

    DELAMAR JOS VOLPATO DUTRA ............................................................................................................................ 468

    O USO DA LINGUAGEM ORIENTADO PELO ENTENDIMENTO: TEORIA CRTICA E O PENSAMENTO

    HABERMASIANO ........................................................................................................................................... 470

    ANA PAULA DA SILVA BEZERRA ............................................................................................................................... 470

    SRGIO G. M. PAUSEIRO ....................................................................................................................................... 470

    OS PRINCPIOS DA MORAL NUMA SOCIEDADE PS-SECULAR: A PERSPECTIVA DE JURGEN HABERMAS ....... 479

    ANDERSON DE ALENCAR MENEZES .......................................................................................................................... 479

    RELIGIO E ESFERA PBLICA EM RAWLS E HABERMAS ................................................................................. 491

    WESCLEY FERNANDES ........................................................................................................................................... 491

    UMA ABORDAGEM HABERMASEANA PARA OTIMIZAR O DESENVOLVIMENTO DE ORGANIZAES: O CASO

    DA BIBLIOTECA DIGITAL DE TESES E DISSERTAES BRASILEIRA ................................................................... 522

    BRUNA CARLA MUNIZ CAJ ................................................................................................................................... 522

    CLVIS RICARDO MONTENEGRO DE LIMA ................................................................................................................. 522

    MARCIA H. T. DE FIGUEREDO LIMA ......................................................................................................................... 522

  • 7

    APRESENTAO

    O Colquio Habermas vem sendo realizado anualmente e tem se constitudo em um espao

    privilegiado de debate de ideias daqueles que buscam ir alm do comunitarismo republicano

    vulgar e do liberalismo fora de lugar, tendo por principal referncia a obra do filosofo alemo

    Jurgen Habermas. Este autor no apenas um dos maiores pensadores vivos, mas um grande

    humanista que intervm na histria do seu tempo como mostram seus artigos recentes sobre a

    crise dos imigrantes na Europa.

    A partir de 2014 o Colquio Habermas passou a ter simultaneamente um pequeno Colquio

    de Filosofia da Informao, que rene os interessados nesta rea emergente do pensamento

    interdisciplinar. Este Colquio buscar responder uma demanda daqueles que estudam

    Filosofia e Cincia da Informao com diversos focos, particularmente da Epistemologia, da

    tica e da Poltica. Neste caso o Colquio est aberto a outras abordagens filosficas.

    O grande tema orientador dos Colquios de 2015 foi Os limites para a liberdade

    comunicativa?. Esta questo foi originalmente motivada pelo terror em Paris, mas foi

    rapidamente atualizada para os brasileiros por uma questo mais prxima do seu cotidiano: a

    forte campanha feita pelos meios de comunicao contra o governo eleito de modo

    democrtico. Isto torna mais importante diferenciar o conceito de liberdade comunicativa.

    O ano de 2015 teve como um de seus marcos iniciais a tragdia do assassinato de 12

    jornalistas do Charlie Hebdo. Vrias pessoas em muitos quadrantes do mundo se uniram em

    defesa da liberdade de expresso, ainda que em muitos casos com a conscincia crtica da

    necessidade de uma tica na construo de tal liberdade, sem espao para a disseminao de

    dios ou intolerncias.

    Liberdade comunicativa no liberdade de expresso. No se trata da capacidade de poder

    usar o discurso, mas da capacidade deliberativa diante do discurso, de poder dizer sim ou no,

    na interao discursiva intersubjetiva que ergue pretenses de validade. Como chama ateno

    Siebeneichler (2014), a liberdade comunicativa est imbrincada em nossa capacidade de

    autoria responsvel, sendo fundamental para a radicalizao da democracia. A liberdade

    comunicativa no uma condio metafsica, seno uma atitude do falante diante das

    circunstncias, sendo ele mesmo, o falante, em relao a outro(s) falante(s) quem delibera

    sobre a razoabilidade das pretenses de validade erguidas em determinado discurso.

    Habermas prope simultaneamente a superao da viso antagnica das liberdades subjetivas

    (liberalismo) e da autodeterminao poltica (republicanismo). Autonomia privada e pblica

    so cooriginrias. A fora cogente dessa cooriginariedade implica numa relao em

    permanente tenso, pois o consenso no a ausncia do dissenso, seno o cumprimento das

    exigncias de nossa obrigao comunicativa. A interao entre autonomia privada e pblica

    requer o reconhecimento de um conjunto de direitos subjetivos, fundamentais para o exerccio

    da radicalizao da democracia (Habermas, 1996, p. 122-123).

    Os eventos na Frana so mais um exemplo de quo desmesurada, grave e assassina pode ser

    a intolerncia. Deve ou no haver mecanismos sociais que constranjam os meios de

    comunicao a ter um comportamento minimamente em acordo autoria responsvel como

    proposta, por exemplo, por Habermas? Conceitos que se aplicam performance moral de

  • 8

    pessoas individuais devem servir a constrangimentos institucionais polticos e legais? Como

    traar limites entre a linguagem crtica, bem ou mal humorada, e a ofensa e disseminao do

    dio? Conceitos como autoria responsvel e liberdade comunicativa favoreceriam a traar tais

    critrios?

    Interessa-nos aprofundar este debate. Assim o Colquio Habermas chegou sua XI edio e o

    Colquio de Filosofia da Informao a sua II edio, realizados de 22 e 24 de setembro de

    2015 no Rio de Janeiro. Foram submetidos 34 artigos originais nas comunicaes

    coordenadas e 12 artigos dos conferencistas nas mesas redondas. uma produo intelectual

    extremamente para Colquios relevante nestes tempos de pontuaes produtivistas.

    A publicao dos Anais destes Colquios acontece em uma poca extremamente tensa da

    nossa sociedade, dividida e incapaz de reconhecer o outro. As nossas histricas desigualdades

    impem que branco e preto se reconheam. Uma sociedade democrtica implica em

    reconhecer as diferenas. A incluso social comea pelo reconhecimento das diferenas, e no

    pela sua diluio.

    A negao do outro s pode ser enfrentada pelo esforo de entendimento, que comea pela

    possibilidade de falar e de discutir. O pensamento de Habermas enfrenta ao mesmo tempo

    liberais reacionrios e republicanos utilitaristas. A democracia um valor inegocivel.

    precisa falar, mas falar nos limites da liberdade comunicativa e da autoria responsvel.

    Referncias:

    HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. v. 1.

    SIEBENEICHLER, Flavio. Consideraes sobre o conceito de liberdade comunicativa na

    filosofia habermasiana. Logeion, v. 1. n. 1, p 43-58, ago./fev. 2014. Disponvel em:

    . Acesso em: 12 fev. 2015.

    http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/fiinf

  • 9

    MESAS REDONDAS

  • 10

    LIBERDADE COMUNICATIVA E FORMA DIREITO

    Luiz Repa USP/CEBRAP

    1 INTRODUO

    Eu gostaria de aproveitar essa oportunidade para discutir o conceito de liberdade

    comunicativa em Habermas a partir da questo de saber se e at que ponto esse conceito

    capaz de propiciar uma fundamentao de carter normativo para o conceito complementar de

    liberdade subjetiva de ao, vale dizer, para o conceito complementar de autonomia privada.

    Uma vez que Habermas recusa a oferecer uma fundamentao normativa para a forma do

    direito, e ao mesmo tempo a forma do direito recobre por si mesmo os princpios da liberdade

    subjetiva, a questo se torna na interrogao sobre se, afinal, Habermas no oferece, j em

    Facticidade e validade, uma fundamentao normativa das liberdades subjetivas

    independentemente da forma direito e independentemente de argumentaes morais, ou seja,

    unicamente a partir da liberdade comunicativa na qualidade de conceito nuclear da autonomia

    pblica. (Nesse aspecto, no pretendo me referir a supostas modificaes posteriores na

    estrutura e no contedo do argumento, como aquelas referidas importncia da dignidade

    humana na fundamentao dos direitos fundamentais).

    primeira vista, preciso confessar que tudo isso parece ser impossvel e mesmo

    ocioso, j que o conceito de liberdade subjetiva de ao evidentemente introduzido por

    Habermas como uma espcie de dispensa normativa em relao s obrigaes em que se

    fundam a liberdade comunicativa. Eu cito a passagem em que Habermas introduz a noo de

    liberdade comunicativa como contrapolo da liberdade subjetiva de ao:

    Junto com Klaus Gnther, eu entendo a liberdade comunicativa como a

    possibilidade reciprocamente pressuposta na ao orientada ao entendimento de

    tomar posio em relao aos proferimentos de um defrontante e em relao s

    pretenses de validade levantadas com elas, dependentes de reconhecimento

    intersubjetivo. Com isso esto ligadas as obrigaes das quais se dispensam as

    liberdades subjetivas juridicamente protegidas. (...) A autonomia privada de um

    sujeito de direito se deixa entender essencialmente como a liberdade negativa de se

    retirar do espao pblico das obrigaes ilocucionrias recprocas, rumo a uma

    posio de observao mtua e influncia recproca. A autonomia privada se estende

    to longe que o sujeito de direito no precisa se justificar, no precisa indicar razes

    publicamente aceitveis para seus planos de ao. Liberdades subjetivas de ao

  • 11

    justificam a sada da ao comunicativa e a recusa das obrigaes ilocucionrias;

    elas fundamentam uma privacidade que libera da carga da liberdade comunicativa

    mutuamente concedida e exigida. (1994, p. 152-153).

    Essa passagem no parece oferecer nenhum sinal de que o conceito de liberdade

    comunicativa pudesse apresentar um ponto de apoio para uma resposta afirmativa minha

    questo. Ou seja, no parece ser possvel uma fundamentao normativa da liberdade

    subjetiva por meio da liberdade comunicativa, uma vez que a liberdade subjetiva se define

    como negao da liberdade comunicativa. Ela significa uma sada e uma recusa em relao

    aos pressupostos da racionalidade comunicativa, em que se funda a liberdade comunicativa de

    tomar posio de sim e no. Isso significa que o sujeito de direito, baseado na estrutura do

    direito, pose assumir a atitude prpria da ao estratgica: se tornar o observador que reduz

    seus parceiros a objeto de manipulao.

    Em grande parte, essa maneira de considerar a liberdade subjetiva como negao da

    liberdade comunicativa, ou ainda, a autonomia privada como negao da autonomia pblica,

    que torna impossvel, para Habermas, uma fundamentao normativa da forma do direito e,

    com isso, das liberdades subjetivas que imediatamente se ligam a essa forma.

    No se trata aqui da recusa de fundamentar moralmente o direito em toda a sua

    extenso, isto , no que concerne ao seu contedo. A recusa de uma fundamentao moral do

    direito tem a ver em primeiro lugar com a teoria da modernidade e, em segundo lugar, com a

    concepo democrtico-radical em que Habermas quer inserir a soberania popular. Ou seja,

    uma fundamentao moral do direito significaria ainda uma concepo tradicional de

    hierarquias de tipos de normas, como existentes no mundo pr-moderno. E interessante

    observar que, para Habermas, Kant ainda seja afetado por essa falta de modernidade, em que

    a esfera do direito no teria sua autonomia prpria. Como paradigmtico da tradio do direito

    natural liberal, a filosofia kantiana do direito ainda submete a legalidade ao princpio moral do

    imperativo categrico. Da resultaria uma subordinao do direito moral, que no seria

    compatvel com a idia de uma autonomia realizada no medium do prprio direito (1994, p.

    153).

    Em vez de uma fundamentao moral do direito, Habermas prefere falar de uma relao

    de complementao, a qual s pode ser entendida, por sua vez, de um ponto de vista

    sociolgico, isto , desde o ponto de vista de uma reconstruo da evoluo social. Desse

    ponto de vista, a forma do direito [Rechtsform] apresenta-se como uma inveno necessria,

    destinada resoluo de desafios para integrao social no contexto da emergncia das

    sociedades modernas. Trata-se de uma exposio que elucida a forma direito em funo de

  • 12

    sua complementao com a moral, mas que detm especificidades prprias que no podem ser

    fundamentadas moralmente. Essas se devem, em ltima instncia, ao carter institucional do

    direito, que ao mesmo tempo coage e libera um espao de manobra para aes estratgicas, ou

    seja, justamente o tipo de ao que a liberdade subjetiva autoriza, em detrimento da liberdade

    comunicativa.

    De um ponto de vista sociolgico, a moral e o do direito se diferenciam radicalmente

    por seus papis e estruturas, pois, enquanto a moral ps-tradicional representa apenas uma

    forma de saber cultural, o direito positivo constitui, alm disso, um sistema de ao, dotado

    de obrigatoriedade no nvel institucional (HABERMAS, 1994, p. 137). A relao de

    complementao s pode ser pensada, nesse caso, como uma relao funcional. a isso que

    corresponde afirmao segundo a qual a forma direito no de modo algum um princpio

    que se possa fundamentar seja epistmica seja normativamente (HABERMAS, 1994, p.

    143).

    Portanto, Habermas descarta a possibilidade de uma fundamentao normativa da

    direito devido s suas caractersticas formais bsicas. Ou seja, a relao jurdica no leva em

    conta a capacidade das pessoas em ligar sua vontade por meio de idias normativas, mas

    apenas sua capacidade de tomar decises racionais com respeito a fins, isto , a liberdade de

    arbtrio (HABERMAS, 1994, p. 144). Dessa reduo da vontade livre que se autodetermina

    moralmente sua liberdade de arbtrio, deriva, alm disso, a delimitao da forma jurdica s

    condies externas da ao e a excluso do carter da motivao, moral ou estratgica,

    detendo-se apenas na conformidade regra. Alm disso, a liberao do arbtrio dos atores

    seria o verso da medalha do carter coercitivo de leis que limitam os espaos de ao a

    partir de fora.

    Todas essas caractersticas formais do direito positivo impedem uma fundamentao

    normativa que, para Habermas, s seria possvel, no contexto das sociedades modernas, pela

    normatividade inerente aos pressupostos lingusticos do discurso. Soma-se a isso o prprio

    fato de a forma direito ser uma inveno evolutiva da sociedade. Enquanto tal, no est

    excluda a possibilidade de nova inveno, colocando alternativas quela do direito positivo

    moderno. O fato de Habermas reconstruir to somente o direito positivo moderno se deve

    impossibilidade de encontrar alternativas a ele no contexto das sociedades modernas,

    conforme sua teoria da evoluo social.

    Eu cito uma passagem bastante elucidativa a respeito do carter sociolgico e histrico

    da fundamentao do direito em Habermas:

  • 13

    Se a crtica se dirige contra a concepo dos direitos enquanto tal, a contraparte tem

    de propor, ento, ou alternativas ao direito, como Marx o fez em sua poca, ou pelo

    menos concepes de direito alternativas. Com esse tipo de questionamento eu no

    tenho nenhum problema, uma vez que no proponho nenhuma fundamentao

    normativa para a condio jurdica. (...) Por ora, no vejo um equivalente funcional

    para esse tipo de estabilizao das expectativas de comportamento (mediante

    direitos subjetivos igualmente distribudos). A esperana romntica em um sentido

    no-pejorativo do jovem Marx em um definhamento do direito dificilmente se

    cumprir em sociedades complexas de nosso tipo. (1998, p. 346).

    O que vale para a forma do direito em geral deve valer para suas implicaes em termos

    de liberdade subjetiva. Pois liberao do arbtrio corresponde enfim a instaurao de

    liberdades subjetivas de ao que delimitam a autonomia privada. Essas liberdades subjetivas

    so intrnsecas, dessa maneira, forma do direito, e no derivam imediatamente de um

    princpio moral.

    Porm, a forma direito e a liberdade subjetiva que ela pressupe representam um

    desafio no s ao discurso moral enquanto tal, mas ao discurso como instncia de

    fundamentao normativa em geral. Ou seja, no possvel fundamentar normativamente a

    forma direito porque ela fere a normatividade imanente ao discurso, autorizando todos os

    elementos da ao estratgica. Como mostra Gnther, a tese habermasiana de que a forma do

    direito no um princpio que se possa fundamentar normativamente significa em ltima

    instncia que a forma do direito como tal no derivvel a partir da teoria do discurso. Das

    pressuposies inevitveis da ao comunicativa, nenhum caminho leva ao direito em termos

    de teoria da fundamentao (Gnther, 1994, p. 478).

    E aqui preciso observar que, se a forma do direito representa uma reduo de

    normatividade e uma liberao para agir estrategicamente, ento, mesmo no mbito prprio

    do uso pblico das liberdades comunicativas, mesmo no ncleo da autonomia pblica, deve-

    se contar com uma possibilidade de instrumentalizao, pois os direitos de comunicao e de

    participao em que se baseiam a autonomia pblica tambm so direitos no aspecto

    estritamente jurdicos.

    Da que, segundo Habermas, falar em direitos negativos e positivos no a melhor

    maneira de alcanar a especificidade da forma do direito (1994, p. 164). Tambm no espao

    intersubjetivo e pblico do processo poltico-democrtico da formao da vontade o direito

    libera uma perspectiva estratgica, uma vez que ele no pode obrigar a um emprego de

    direitos subjetivos orientado pelo entendimento (1994, p. 165).

    Tudo isso aponta para a impossibilidade de uma fundamentao normativa do direito e

    da autonomia privada que ela pressupe formalmente. Mas seria precipitado em derivar da

  • 14

    uma simples relao de oposio, pois o ncleo da teoria discursiva dos direitos fundamentais

    formado justamente pela tese de que h uma co-originariedade entre autonomia pblica e

    autonomia privada, entre soberania popular e direitos fundamentais. No poderamos

    acrescentar: entre liberdade comunicativa e liberdade subjetiva?

    Lembremos os traos principais da argumentao habermasiana a respeito da co-

    originariedade entre soberania popular e direitos subjetivos de liberdade.

    A ideia fundamental consiste em que o princpio da democracia, o qual detm fora de

    legitimao, se deve ao entrelaamento do princpio do discurso e da forma direito

    (HABERMAS, 1994, p. 155):

    Esse entrelaamento eu entendo como uma gnese lgica de direitos, que pode ser

    reconstruda passo a passo. Ela comea com a aplicao do princpio do discurso ao

    direito de liberdades subjetivas de ao em geral constitutivo como tal da forma

    direito e termina com a institucionalizao jurdica das condies de um exerccio

    discursivo da autonomia poltica, com a qual a autonomia privada posta [gesetzt]

    abstratamente de incio pode ser configurada. Por isso o princpio da democracia s

    pode aparecer como cerne de um sistema de direitos. A gnese lgica desses direitos

    forma um processo circular, no qual o cdigo do direito e o mecanismo para a

    gerao de direito legtimo, isto , o princpio da democracia, se constituem co-

    originariamente. (HABERMAS, 1994, pp. 155-6).

    O sistema de direitos que surge do entrelaamento do princpio do discurso e da forma

    direito apresentado em uma seqncia de cinco categorias de direitos fundamentais. As trs

    primeiras categorias formam o cdigo jurdico, pois determinam o status das pessoas de

    direito. Trata-se aqui justamente dos direitos que garantem a maior medida possvel de

    liberdades subjetivas de ao, dos direitos que estabelecem o status de membro de uma

    associao jurdica e, por fim, os direitos que garantem a possibilidade de postulao judicial

    e proteo jurdica das pessoas individuais (HABERMAS, 1994, pp. 155-6). Essas trs

    primeiras categorias de direito garantem a autonomia privada dos sujeitos de direito

    unicamente no sentido de eles se reconhecerem mutuamente como destinatrios da lei.

    Somente a quarta categoria permite que esses sujeitos de direito assumam tambm o status de

    cidados, isto , de autores da prpria ordem jurdica. Trata-se aqui dos direitos de

    participao igual nos processos de formao da opinio e da vontade. Essa quarta categoria,

    que garante a autonomia pblica, tem um carter reflexivo, j que permite interpretar e

    configurar concretamente em termos jurdicos tanto as primeiras categorias como a si prpria.

    Na configurao poltica de todas essas categorias surge uma relao de implicao delas com

    a quinta categoria dos direitos fundamentais de bem-estar social, tcnico e ecolgico, isto ,

  • 15

    direitos sociais, em sentido amplo, que permitem materialmente o exerccio da autonomia

    privada e pblica.

    de se observar que essas categorias so introduzidas em abstrato, sem um contedo

    particular, varivel conforme o contexto sociopoltico. somente com a quarta categoria que

    todos os direitos fundamentais recebem uma positivao jurdica concreta. Esse aspecto

    importante para entender como as trs primeiras categorias, que sustentam a autonomia

    privada, se relacionam com a quarta, que garante a autonomia pblica.

    No papel de autores, os cidados j no dispem mais de nenhuma outra linguagem que

    no envolva as trs primeiras categorias do direito. nesse sentido que elas possibilitam a

    autonomia pblica, sem restringi-la, ao mesmo tempo em que, por meio da autonomia

    pblica, as trs primeiras recebem uma positivao jurdica concreta. Com isso se tornaria

    compreensvel a co-originariedade de autonomia pblica e privada. Enquanto linguagem

    prpria do direito, as categorias dos direitos privados no podem ser vistas como direitos

    naturais ou morais, que apenas esperam ser colocados em vigor, nem podem ser meramente

    instrumentalizados para fins de uma legislao soberana (HABERMAS, 1994, p. 161).

    A idia fundamental da co-originariedade se revela ento na impossibilidade de que a

    autodeterminao poltica dos cidados se exercite no medium do direito, sem as trs

    primeiras categorias do direito. Por sua vez, essas categorias no podem ser legitimadas e

    ganhar uma forma jurdica positiva, sem o direito de comunicao e participao no processo

    de formao da vontade. Deixo de lado aqui como exatamente esse crculo se instaura, mais

    especificamente, deixo de lado o carter insaturado que Habermas atribui aos direitos

    subjetivos de liberdade de ao.

    Todo o esforo de Habermas apresentar uma co-originariedade entre direitos

    fundamentais e soberania popular que faa justia ideia de uma democracia radical,

    portanto, a ideia de que no haja um limite prvio soberania, e, por outro lado, faa dos

    direitos fundamentais que garantem a autonomia privada uma condio prpria da

    democracia.

    Assim, na construo da gnese lgica dos direitos fundamentais, nada pressuposto

    antes da prxis poltica de autodeterminao, a no ser duas coisas: o princpio do discurso e o

    conceito de forma jurdica. A juno desses dois elementos forma imediatamente as trs

    primeiras categorias constitutivas do cdigo jurdico. Enquanto tais, essas trs primeiras

    categorias no devem ser vistas como direitos naturais ou morais que comandam o exerccio

    legislativo. Elas so antes condies necessrias que s possibilitam o exerccio da

  • 16

    autonomia poltica. Na qualidade de condies de possibilidade elas no restringem a

    soberania do legislador (HABERMAS, 1994, p. 161-2).

    Dessa maneira, os direitos subjetivos que garantem a autonomia privada se apresentam

    como condies de possibilidade dos direitos polticos no sentido de que que eles constituem

    a linguagem jurdica da democracia, o medium em que ela se exerce, firmando o conceito de

    pessoa jurdica entendida como destinatria das leis. Nenhuma determinao jurdica pode se

    realizar sem um cdigo de direito que estabelece a noo de sujeito de direito. Por outro lado,

    esses mesmos direitos subjetivos s podem se instaurar positivamente de acordo com o

    processo legislativo criador de leis, sustentado pelos direitos polticos de participao.

    No entanto, a relao de dependncia recproca em que se traduz a ideia de

    cooriginariedade no se esgota nessa relao de carter estrutural. Alm disso, h uma relao

    de natureza material entre a autonomia privada e a autonomia pblica que remete justamente

    relao entre liberdade comunicativa e liberdade subjetiva.

    Pois o direito de comunicao e de participao no processo de formao da vontade e

    da opinio instaurado com a quarta categoria de direitos fundamentais, sendo

    institucionalizado e regulado juridicamente, de modo que os pressupostos de igualdade e

    simetria, inscritos nas condies de possibilidade de um discurso isento de dominao,

    recebem uma configurao jurdica determinada. Porm a liberdade comunicativa de tomar

    posio de sim ou no em relao s normas pressupe tambm uma liberdade subjetiva e

    negativa de abster-se.

    Seguindo Klaus Gnther, pode-se dizer que no haveria liberdade comunicativa se no

    houvesse tambm a liberdade negativa de no participar da comunicao pblica, o que por

    sua vez garantido pelas leis que sustentam a autonomia privada. Eu cito:

    A liberdade de tomar uma posio (...) s possvel no interior de um espao de

    obrigaes recprocas. Dizer sim ou no sinceramente sempre significa aceitar as

    obrigaes inerentes ao jogo de pretenses de validade, dvidas e contrarrazes.

    Mas a anlise da liberdade comunicativa no seria suficiente se ela no acarretasse

    a liberdade de retirar-se da comunicao, isto , de sair [step out] das obrigaes

    ilocucionrias recprocas. Sem essa terceira possibilidade de escolher sair (...) a

    liberdade comunicativa no seria uma espcie de liberdade de modo geral. A deciso

    de comunicar tem de ser livre. (cf. GNTHER, 1998, p. 236).

    Embora Habermas se refira a Gnther no que diz respeito ao conceito de liberdade

    comunicativa, ele no retira com toda evidncia esse tipo de consequncias. Por outro lado, de

    modo algum a tese da co-originariedade se estabelece unicamente em funo do mdium do

    direito para o qual indispensvel a autonomia privada, ao mesmo tempo em que os direitos

  • 17

    de autonomia privada precisam ser positivados por meio da legislao, e portanto por meio

    dos direitos de autonomia pblica. Habermas tambm considera o aspecto qualitativo da

    deliberao, que propiciado pela autonomia privada.

    Eu cito uma passagem de A incluso do outro em que esse aspecto qualitativo, material,

    da co-originariedade, mais nitidamente destacado:

    A intuio [da cooriginariedade] se expressa no fato de que, por um lado, os

    cidados s podem fazer uso adequado de sua autonomia pblica se eles so

    suficientemente independentes em virtude de sua autonomia privada igualmente

    assegurada; mas que eles tambm s podem chegar a uma regulao consensual de

    sua autonomia privada se eles fazem um uso adequado de sua autonomia poltica

    enquanto cidados. (1998, p. 302)

    Se a autonomia privada foi descrita, como mostramos, como a liberdade negativa de

    retirar-se do espao pblico das obrigaes ilocucionrios, nessa passagem ela parece ser a

    condio indispensvel para indispensvel para o uso pblico da liberdade comunicativa. Mas

    se Gnther tem razo em sua linha de raciocnio, e se a tese da cooriginariedade aponta

    tambm para isso, parece que estamos reintroduzindo para o interior do discurso uma

    possibilidade de fundamentao normativa que foi rejeitada anteriormente. Se no h

    liberdade comunicativa sem a liberdade negativa, ento teramos de supor que esta tem de

    fazer parte dos pressupostos pragmticos do discurso isento de dominao. Enquanto tal

    pressuposto, no seria difcil fundamentar normativamente a autonomia privada, uma vez que

    no h liberdade comunicativa sem ela. Isso significa que a autonomia privada no mais

    suportada pela forma do direito, ela passaria para o lado do princpio do discurso, enquanto

    representao mais abstrata de todos os pressupostos pragmticos da fala.

    No entanto, Habermas no parece nunca ter dado efetivamente esse passo terico, que

    em Gnther visvel. E, at onde posso ver h duas razes fortes para tanto. A primeira

    prpria da teoria da ao e do discurso. A possibilidade de sair da comunicao por mor da

    qualidade da comunicao teria de significar, na viso de Habermas, uma autorizao para

    passar a uma atitude no-comunicativa que se enraizaria paradoxalmente na ao

    comunicativa. Essa realizao cumprida pelo direito, sem que ele dependa da gramtica

    normativa da ao comunicativa e do discurso (se deixarmos de lado o aspecto da justa

    distribuio de direitos). Certamente, Habermas no nega na teoria do discurso que o

    participante possa se isentar de tomar posio. Mas essa iseno no supe a possibilidade de

    sair da comunicao. Ela no representa a autonomia privada no interior da autonomia

    pblica.

  • 18

    A segunda razo tem a ver com a teoria do direito. Como vimos, Habermas no v

    nenhuma outra possibilidade de reconstruo do direito que no seja ligada ao direito positivo

    moderno. Uma vez que a autonomia privada s pode se dar pelo medium do direito, ela

    necessita de um cdigo jurdico primrio com que se estabelece o sentido de um sujeito de

    direitos. Com isso, a autonomia privada juridicamente informada no pode ser deduzida das

    condies procedimentais do discurso, na exata medida em que a forma direito tampouco o

    pode. Ela passa a depender, para alm das propriedades formais do direito, de argumentaes

    de natureza moral introduzidas nos processos de formao poltica da vontade.

    Portanto, embora a teoria habermasiana apresente a cooriginarieade entre autonomia

    privada e autonomia pblica de tal modo que a liberdade subjetiva possa aparecer como uma

    condio interna da liberdade comunicativa, e com isso se apresente a possibilidade de uma

    fundamentao normativa da autonomia privada para alm da forma direito e para aqum da

    argumentao moral, esta possibilidade teoricamente impedida pelo fato de Habermas ligar

    intimamente a autonomia privada e a forma do direito, recusando a essa, desde o incio, uma

    derivao a partir do discurso. A ambiguidade do direito, sempre remetido possibilidade da

    ao estratgica, condena de antemo a liberdade subjetiva a ser uma condio indispensvel

    da liberdade comunicativa, e, no entanto, nunca ser um momento dela.

    REFERNCIAS

    GNTHER, K. 1994, Diskurstheorie des Rechts oder liberales Naturrecht in

    diskurstheoretischem Gewande?. In: Kritische Justiz, n. 27.

    _____. 1998. Communicative Freedom, Communicative Power, and Jurisgenesis. In:

    Rosenfeld, M. e Arato, A. (orgs.). Habermas on Law and Democracy Critical Exchanges.

    University of Califrnia Press.

    HABERMAS, J. 1994. Faktizitt und Geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

    _____. 1998. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

    KUPKA, TH. 1994. Habermas diskurstheoretische Reformulierung des klassischen

    Vernunftrechts. In: Kritische Justiz, n. 27.

    LARMORE, 1993., Die Wurzeln radikaler Demokratie. In: Deutsche Zeitschrift fr

    Philosophie, n. 41.

  • 19

    MAUS, I. 2002. Liberties and Popular Sovereignty: On Jrgen Habermass

    Reconstruction of the System of Rights. In: Baynes, K.; Schomberg, R (orgs.) Discourse and

    democracy: Essays on Habermass Between Facts and Norms, New York, State University of

    New York Press.

    MELO, R. S. 2005. Habermas e a estrutura reflexiva do direito. In: Revista Direito GV,

    v. 1, n. 1

    PINZANI, A. 2000. Diskurs und Menschenrecht Habermas Theorie der Rechte im

    Vergleich. Verlag Dr. Kovac, Boethiana. Forschungsergebnisse zur Philosophie, vol. 43.

    _____. 2001, A teoria jurdica de Jrgen Habermas: entre funcionalismo e

    normativismo. In: Veritas, v. 46.

    SCHEUERMAN, W. E. 2002.Between Radicalism and Resignation: Democratic Theory in

    Habermas Between Facts and Norms. In: Baynes, K.; Schomberg, R (orgs.) Discourse and

    democracy: Essays on Habermass Between Facts and Norms. New York, State University of

    New York Press.

  • 20

    TEORIA DO DISCURSO E POLTICA DO RECONHECIMENTO1

    Luiz Bernardo Leite Araujo Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio deJaneiro

    (UERJ) e Pesquisador do CNPq na modalidade Produtividade em Pesquisa.

    1 INTRODUO

    A poltica do reconhecimento ocupa a ateno de Habermas desde o momento em que

    irrompe na cena principal do debate filosfico-poltico contemporneo. Se a dcada de oitenta

    do sculo passado foi amplamente dominada pelo debate entre liberalismo e comunitarismo,

    cujo foco central residira na dupla oposio entre o justo e o bem, de um lado, e entre o

    indivduo e a comunidade, de outro lado2, a dcada de noventa trouxe tona a pergunta sobre

    se, e em que medida, sociedades democrticas deveriam ser realmente caracterizadas em

    funo do conjunto de direitos bsicos individuais que elas asseguram aos seus cidados. Com

    efeito, para diversos autores, associados de modo mais ou menos estreito ao que se

    convencionou denominar multiculturalismo, as decises pblicas em sociedades

    democrticas pluralistas deveriam assegurar, tambm, direitos especficos a grupos. Noes

    como direitos coletivos, direitos de grupos e direitos culturais passaram a dominar os

    debates polticos, uma vez estabelecida, no entanto, a ideia de direitos iguais para todos os

    cidados como o ncleo de uma sociedade justa.

    No h, verdade, um tratamento sistemtico do tema na teoria discursiva de

    Habermas, mas h certamente uma contribuio significativa a partir dessa perspectiva

    terica, a comear pela anlise do prprio termo multiculturalismo e das questes envolvidas

    no debate. notvel, neste sentido, a pronta interveno habermasiana contribuio

    1 Este artigo, aqui parcialmente retomado, foi publicado originalmente em lngua espanhola. A referncia completa a seguinte: ARAUJO, L. B. L. Habermas y la poltica del reconocimiento o multiculturalismo.

    Revista CUHSO (Universidad Catlica de Temuco, Chile), Volumen 14, N 1 (2007): 23-34. 2 Sobre essas duas oposies fundamentais, as quais, apesar de no darem conta integralmente do debate, fornecem uma perspectiva geral suscetvel de enquadrar anlises detalhadas dos diversos registros dessa

    complexa discusso, cf. BERTEN, A., DA SILVEIRA, P., POURTOIS, H. (eds.). Libraux et communautariens.

    Paris: PUF, Collection Philosophie Morale, 1997. Vide tambm a excelente apresentao de MULHALL, S.

    and SWIFT, A. Liberals and communitarians. Oxford: Blackwell, 1992.

  • 21

    reconhecidamente inaugural da discusso promovida por Charles Taylor em seu ensaio sobre

    a poltica do reconhecimento3. Em sua crtica4, o filsofo alemo registra que, embora

    estejamos diante de fenmenos relacionados com lutas pelo reconhecimento de identidades

    coletivas, e, portanto, com a defesa comum contra a opresso, a marginalizao e o

    desrespeito a grupos minoritrios, primariamente definidos em termos culturais, seja no

    mbito de uma cultura majoritria, seja no interior da comunidade dos povos, h diferentes

    nveis de anlise. necessrio, portanto, no apenas distingui-los segundo a especificidade de

    cada luta pelo reconhecimento, mas tambm diferenciar os planos discursivos nos quais os

    debates esto situados, ainda que o alvo principal seja o mesmo sistema de direitos fundado

    no indivduo. Dentre esses fenmenos, destacam-se o feminismo, a luta das minorias tnicas e

    culturais, o nacionalismo e o (neo)colonialismo.

    Enquanto a causa feminista pode ser descrita apropriadamente como de

    reconhecimento de uma interpretao especfica baseada em diferenas de gnero,

    transformando assim a relao entre os sexos e afetando diretamente os papis masculinos

    historicamente sedimentados5, a luta das minorias tnicas e culturais diz respeito ao

    reconhecimento de tradies e de formas de vida marginalizadas por uma cultura majoritria

    cujos membros, apesar de terem a autocompreenso modificada em alguma medida, no

    alteram necessariamente seus papis em decorrncia de uma interpretao revisada das

    conquistas e interesses dos membros dos grupos minoritrios6. Movimentos nacionalistas, por

    seu turno, visam sobretudo a autodeterminao poltica de povos que se vem como grupos

    homogneos sob o pano-de-fundo de um destino histrico comum7, e, desse modo, pretendem

    3 TAYLOR, Ch. The politics of recognition, in: GUTMANN, A. (ed.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, pp. 25-73. Trata-se de uma edio

    expandida, incluindo o comentrio de Habermas (ver a nota seguinte) edio alem da obra original

    Multiculturalism and the politics of recognition: an essay. Princeton: Princeton University Press, 1992. Cabe

    destacar tambm, no contexto inaugural do debate sobre o tema, a obra de Iris Young (Justice and the politics of

    difference. Princeton: Princeton University Press, 1990) que declaradamente buscava uma alternativa entre o

    individualismo atomista e o comunitarismo coletivista atravs do foco preferencial na diversidade dos grupos

    tnicos e culturais. 4 HABERMAS, J. Struggles for recognition in the democratic constitutional state, in: GUTMANN, A. (ed.). Multiculturalism: examining the politics of recognition, op. cit., pp. 107-148 (republicado em: HABERMAS, J.

    The inclusion of the other: studies in political theory. Cambridge (Mass.): The MIT Press, edited by Ciaran

    Cronin and Pablo De Greiff, 1998, pp. 203-236). 5 Para uma viso geral da poltica feminista, cf. BENHABIB, S. Multiculturalism and gendered citizenship, in: The claims of culture: equality and diversity in the global era. Princeton: Princeton University Press, 2002.

    Sobre o enfoque em minorias nacionais e grupos tnicos, cf. KYMLICKA, W. Multicultural citizenship: a

    liberal theory of minority rights. Oxford: Clarendon Press, 1995. 6 Sobre o enfoque em minorias nacionais e grupos tnicos, cf. KYMLICKA, W. Multicultural citizenship: a liberal theory of minority rights. Oxford: Clarendon Press, 1995. 7 Quanto questo do nacionalismo, cf. TAMIR, Y. Liberal nationalism. Princeton: Princeton University Press, 1993; MILLER, D. On nationality. Oxford: Oxford University Press, 1995; GANS, C. The limits of nationalism.

    Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

  • 22

    constituir uma comunidade de destino, ao passo que o anticolonialismo se dirige contra uma

    ordem internacional baseada na hegemonia da cultura ocidental8, cujos valores particulares se

    impem de forma intervencionista em nome da universalidade. Por mais vinculados que

    estejam uns aos outros, tais fenmenos no podem ser confundidos, sob pena de obscurecer a

    complexidade de uma realidade marcada pela diversidade no interior da prpria diversidade.

    O caso do Qubec, por exemplo, sempre lembrado na literatura multiculturalista, ilustrativo

    dessa complexidade, devendo ser situado, a juzo de Habermas, na fronteira entre o segundo e

    o terceiro casos, na medida em que a aspirao da minoria francfona canadense - parte

    tendncias separatistas de parcela da populao - a de tornar-se um Estado dentro de um

    Estado, constituindo-se assim, na outra ponta do enlace federativo, em maioria cultural em

    face de outras minorias domsticas.

    Quanto aos diferentes nveis de anlise desses fenmenos diversos, Habermas

    distingue os discursos poltico, filosfico e jurdico, demonstrando particular interesse pelo

    aspecto legal do problema. No primeiro nvel, com efeito, a querela sobre o multiculturalismo

    parece renovar o debate sobre a modernidade que havia sido interpretado pelo autor sob o

    signo de um projeto inacabado9, opondo agora o radicalismo ps-moderno ao tradicionalismo

    pr-moderno na nova configurao do politicamente correto, que pouco contribui para a

    compreenso da questo e ainda menos para sua soluo poltica. No plano filosfico, o que

    est em jogo a compreenso intercultural, cujas dificuldades aparecem claramente em todos

    aqueles fenmenos associados ao multiculturalismo, os quais reintroduzem o tema clssico da

    racionalidade e suas pretenses de universalidade10, tanto cognitivas quanto normativas, na

    relao entre sociedade global unificada e sociedades locais fragmentadas, movendo-se entre

    o holismo e o contextualismo. Do ponto de vista jurdico, a discusso fundamental trazida

    pelo multiculturalismo reside na interpretao do Estado democrtico de direito, reveladora da

    tenso entre o princpio do igual tratamento das pessoas e a busca de proteo de suas

    identidades culturais, em torno da qual Habermas reitera suas reservas em face do liberalismo

    clssico, no opondo-lhe uma leitura comunitarista como a de Taylor, que adota a falsa pista

    da oposio entre uma poltica de universalizao dos direitos individuais e uma poltica de

    8 Em relao justia global e temas correlatos, cf. HELD, D. Democracy and the global order: from the modern state to cosmopolitan governance. London: Polity Press, 1995; RAWLS, J. The law of peoples; with The idea of

    public reason revisited. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999; CRONIN, C. and DE GREIFF, P.

    (eds.). Global justice and transnational politics: essays on the moral and political challenges of globalization.

    Cambridge (Mass.): The MIT Press, 2002. 9 Cf. HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1985 [O discurso filosfico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, trad. de A. Marques et alii, 1990]. 10 Sobre o assunto, cf. HABERMAS, J. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt: Suhrkamp, 1988 [Pensamento ps-metafsico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, trad. de Flvio Siebeneichler, 1990].

  • 23

    considerao pelas diferenas culturais11, mas sim corrigindo uma compreenso inapropriada

    dos princpios liberais a fim de demonstrar que o sistema de direitos, corretamente entendido,

    no cego s diferenas culturais e no precisa ser contrastado com um modelo que

    introduz uma noo de direitos coletivos estranha ao sistema12.

    Em ambas as passagens Habermas se refere aos dois tipos de liberalismo -

    procedimental e substancial - distinguidos por Taylor, ou, na nomenclatura de Michael

    Walzer, liberalismo 1 e liberalismo 2, advertindo que no se trata de uma simples correo da

    poltica da igual dignidade pela poltica da diferena, mas de um ataque ao ncleo

    individualista da concepo moderna de liberdade. Em sua anlise, com efeito, Taylor

    distingue os ideais de dignidade e de autenticidade em torno dos quais forjou-se a identidade

    moderna, cada um dos quais remetendo a um princpio norteador de carter universalista,

    porm radicalmente diferentes um de outro. De um lado, o da igual cidadania fundada em

    direitos compartilhados por todos os indivduos. De outro lado, o do reconhecimento das

    pessoas e dos grupos em sua profunda alteridade. Evidentemente, o filsofo canadense

    consciente do fato de que, no primeiro caso, trata-se de uma potencialidade humana

    generalizvel, baseada na mesma capacidade de agir de acordo com princpios morais

    aceitveis por todos os agentes racionais, enquanto que, no segundo caso, apesar de tratar-se

    igualmente de um potencial humano universal, que o de formar e definir a prpria

    identidade como indivduo e tambm como membro de uma cultura, o princpio do igual

    respeito pelas pessoas dirige-se a uma particularidade. Contudo, exatamente pela referncia

    a uma caracterstica universal, ainda que distinta, que h exigncia de reconhecimento por

    aquilo que resulta do potencial humano, de modo que a negao do igual respeito s culturas

    infringe o princpio fundamental da igualdade. Como diz Taylor, ao denunciar o primeiro

    modelo de liberalismo inspito s diferenas por sua aplicao uniformizadora de regras e sua

    suspeita em relao a metas coletivas, a forte demanda por um igual respeito a todas as

    culturas funda-se na premissa de que reconhecimento forja identidade, de forma que todos

    deveriam desfrutar da suposio de que sua cultura tradicional tem valor13. Taylor fala em

    suposio ou ainda em hiptese inicial de igual valor das culturas, consciente do problema do

    11 O termo comunitarismo utlizado aqui em sentido restrito, dizendo respeito a uma forte impregnao tica da poltica e do direito e no a uma atitude de rejeio da modernidade em sua totalidade, que no se aplica

    certamente anlise tayloriana. Cf. TAYLOR, C. Sources of the self: the making of the modern identity.

    Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1989 [As fontes do self: a construo da identidade moderna. S.

    Paulo: Loyola, 1997]. 12 HABERMAS, J. Struggles for recognition in the democratic constitutional state, in: The inclusion of the other: studies in political theory, op. cit., p. 207 e p. 210. 13 TAYLOR, Ch. The politics of recognition, in: GUTMANN, A. (ed.). Multiculturalism: examining the politics of recognition, op. cit., p. 66 e p. 68.

  • 24

    nivelamento s avessas, isto , de que a poltica do reconhecimento pode acabar tornando tudo

    idntico, mantendo porm a tese central, criticada por Habermas, da divergncia entre as

    polticas do universalismo e da diferena no seio do liberalismo.

    Torna-se importante, nesse ponto, recordar alguns elementos estabelecidos por

    Habermas em sua compreenso democrtico-procedimental dos direitos14, a qual determina

    sua posio no debate sobre o multiculturalismo. Com efeito, sua afirmao de que o sistema

    de direitos no cego s diferenas culturais, e tampouco a condies sociais desiguais,

    depende integralmente de uma tese fundamental adotada pela teoria discursiva, a saber, a tese

    da relao interna, portanto no contingente, entre Estado de direito e democracia, para cuja

    demonstrao necessrio, nas palavras de Habermas, o esclarecimento das seguintes

    proposies: o direito positivo no pode ser submetido simplesmente moral; a soberania do

    povo e os direitos humanos pressupem-se mutuamente; o princpio da democracia possui

    razes prprias, independentes da moral15. Cabe destacar o fato de que o esclarecimento

    dessas proposies o que permite a Habermas apontar o equvoco da oposio construda

    por Taylor entre a poltica universalista da igual dignidade de todos os cidados e a poltica do

    reconhecimento das identidades de indivduos e grupos, a qual baseada numa interpretao

    paternalista do sistema de direitos que ignora a conexo interna entre autonomia privada e

    autonomia pblica. Trata-se, pois, de antepor a uma leitura seletiva do liberalismo moderno

    uma interpretao que resgate a inter-relao de duas intuies normativas fundamentais que

    satisfazem, de um lado, o critrio moral do universalismo igualitrio, exigindo o respeito igual

    por todos, e, de outro, o critrio tico do individualismo, segundo o qual cada um tem o

    direito de conduzir sua vida de acordo com suas prprias preferncias e convices.

    Tal relao interna apreendida com base na releitura de duas interpretaes

    contrrias e conflitantes na filosofia poltica, representadas pelo liberalismo clssico e pelo

    republicanismo cvico. Na tradio liberal, que remonta a Locke, a nfase posta no carter

    impessoal das leis e na proteo das liberdades individuais, de tal modo que o processo

    democrtico compelido por (e est ao servio dos) direitos pessoais que garantem a cada

    indivduo a liberdade de buscar sua prpria realizao. Cristalizou-se aqui uma viso

    individualista e instrumentalista do papel dos cidados. A cidadania concebida com base no

    14 Refiro-me ao mais importante tratado habermasiano em filosofia poltica e do direito (ao qual est diretamente vinculada a obra de teoria poltica j citada, publicada quatro anos depois): HABERMAS, J. Faktizitt und

    Geltung. Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt: Suhrkamp,

    1992 [Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2 vols., trad. de

    Flvio Siebeneichler, 1997]. 15 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 2, p. 310

  • 25

    modelo de uma pertena organizacional capaz de fundamentar uma posio jurdica, ou seja,

    os indivduos permanecem exteriores ao Estado, contribuindo de certa forma para a sua

    reproduo, atravs de eleies e pagamento de impostos, a fim de conseguir em troca

    benefcios organizacionais. Na tradio republicana, que remonta a Rousseau, a primazia

    atribuda ao processo democrtico enquanto tal, entendido como uma deliberao coletiva que

    impele os cidados busca de um entendimento sobre o bem comum. Nesta viso, a liberdade

    humana tem sua mxima expresso no na busca de preferncias privadas e sim na

    autolegislao mediante a participao poltica. A cidadania vista atravs do modelo da

    pertena a uma comunidade tico-cultural que se determina a si mesma, ou seja, os indivduos

    esto integrados na comunidade poltica como partes num todo, de tal maneira que, para

    formar sua identidade pessoal e social, necessitam do horizonte de tradies comuns e de

    instituies polticas reconhecidas16.

    Segundo Habermas, as divergncias no so inteiramente surpreendentes se levarmos

    em conta o fato de que o pensamento democrtico moderno forjou-se em meio a um conflito

    interno entre duas noes radicalmente distintas de liberdade, exemplarmente comparadas por

    Benjamin Constant sob os ttulos de liberdade dos modernos e liberdade dos antigos17. A

    tradio liberal atribui maior peso primeira, sobretudo liberdade de conscincia e de

    pensamento, ao passo que a tradio republicana d maior importncia segunda,

    particularmente s chamadas liberdades polticas iguais. Sendo assim, ambas concorrem a

    partir de concepes unilaterais que concebem, por um lado, os direitos humanos como

    expresso da autodeterminao moral, e, por outro lado, a soberania popular como

    expresso da autorrealizao tica. De acordo com a interpretao liberal, os cidados no se

    distinguem essencialmente das pessoas privadas que fazem valer seus interesses pr-polticos

    contra o aparelho estatal, e por isso a prioridade recai sobre as liberdades negativas que

    asseguram o exerccio da autonomia individual. Segundo a interpretao republicana, a

    cidadania se atualiza somente na prtica de autodeterminao coletiva, razo pela qual o

    primado incide sobre a autonomia poltica dos cidados, que constitui um fim em si mesmo e

    que ningum pode realizar perseguindo privadamente interesses prprios, pois pressupe o

    caminho comum de uma prtica intersubjetiva. Assim, o liberalismo e o republicanismo

    16 Sobre esses dois conceitos concorrentes de cidadania, vide os seguintes ensaios, respectivamente de 1988 e 1990, retomados em Direito e democracia: entre facticidade e validade (vol. 2): A soberania do povo como

    processo (pp. 249-278) e Cidadania e identidade nacional (pp. 279-305). Cf. tb. On the relation between the

    nation, the rule of law and democracy, in: The inclusion of the other: studies in political theory, op. cit., pp.

    129-153. 17 Cf. CONSTANT, B. De la libert des anciens compare celle des modernes, in: De lesprit de conqute et de lusurpation. Paris: Flammarion, 1986, pp. 265-291 [A edio original de 1819].

  • 26

    tendem a ressaltar apenas um dos aspectos da autonomia dos indivduos como base da

    legitimidade democrtica. Ao defender uma relao interna entre autonomia privada e

    autonomia pblica, a Teoria do Discurso pretende fazer justia a ambas as tradies, isto ,

    proporcionar uma justificao do Estado de direito democrtico na qual direitos humanos e

    soberania popular desempenham papis distintos, irredutveis, porm complementares.

    de uma tal justificao que provm o modelo procedimental da teoria discursiva da

    moral e da poltica, uma vez que para demonstrar a tese de uma relao interna entre

    democracia e estado constitucional necessrio introduzir um princpio de validao

    imparcial de normas, conceitualmente anterior prpria distino entre a moral e o direito,

    cuja formulao a seguinte: So validas as normas de ao s quais todos os possveis

    atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos

    racionais18. O princpio do discurso (D) permite evitar tanto uma interpretao moralizante

    do direito quanto seu confinamento em afirmaes comunitrias de valores compartilhados,

    apontando para um modelo de legitimao que solda a ciso liberal-republicana. Em face do

    problema de integrao das sociedades modernas pluralizadas e secularizadas, nas quais as

    ordens normativas devem ser mantidas sem as garantias metassociais de natureza religiosa ou

    metafsica, Habermas adota uma compreenso procedimental da razo prtica em cujo cerne

    est a expectativa da qualidade racional dos resultados obtidos atravs da ampla e livre

    discusso entre os participantes de processos argumentativos fundados no princpio do

    discurso. Enquanto princpio de justificao imparcial das normas de ao em geral, o

    princpio do discurso (D) est igualmente na base da moralidade e do direito. E graas a

    uma diferenciao de usos da razo prtica19 que Habermas insiste no delineamento sutil entre

    tal princpio, que explicita o sentido da imparcialidade de juzos prticos, e sua especificao

    como princpio moral (U) - segundo o qual toda norma vlida deve satisfazer a condio de

    que as consequncias e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfao

    dos interesses de cada um dos indivduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam

    ser aceitos por todos os concernidos20 - ou como princpio da democracia (De) - de acordo

    com o qual somente podem pretender validade legtima as leis jurdicas capazes de encontrar

    18 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 1, p. 142. 19 Na esteira de Kant, Habermas distingue as dimenses tica, pragmtica e moral da razo prtica. As questes

    ticas dizem respeito quilo que bom para mim ou para ns, ao passo que as questes pragmticas se referem a

    meios apropriados para determinados fins prticos. As questes morais, por seu turno, tm a ver com aquilo que

    valido para todos, na acepo kantiana de um dever universal. Vide, em particular: HABERMAS, J.

    Erluterungen zur Diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp. 100-118. 20 HABERMAS, J. Conscincia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, trad. de Guido A.

    de Almeida, 1989, p. 86 [Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983].

  • 27

    o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurdico de normatizao

    discursiva21. A nova formulao do princpio do discurso (D) possui dupla vantagem,

    oriunda de seu alto grau de abstrao, em relao quela originalmente apresentada por

    Habermas22. Em primeiro lugar, as normas de ao s quais ela se refere no prejulgam o

    contexto em que esto inseridas, cabendo ao princpio da democracia (De) a especificao

    como normas que manifestam as propriedades formais das normas jurdicas. Em segundo

    lugar, os discursos racionais envolvem variadas formas de argumentao que esto abertas a

    contribuies e informaes relacionadas a temas morais, tico-polticos e pragmticos,

    incumbindo ao princpio moral (U) a restrio do amplo espectro de questionamentos para o

    tipo de discurso no qual apenas argumentos morais so decisivos.

    Embora distintos, os princpios da moral e da democracia no esto ordenados

    hierarquicamente. Para Habermas, ao contrrio, eles so complementares, de tal modo que a

    legitimidade jurdica no pode ser assimilada validade moral, como no caso do

    jusnaturalismo, e tampouco o direito deve estar completamente separado da moral, como

    defende o positivismo. O direito compreendido como um complemento funcional da

    moralidade ps-tradicional, compensando assim vrios de seus dficits, tais como os da

    indeterminao cognitiva e da incerteza motivacional. Alm disto, Habermas defende que o

    princpio da democracia no est subordinado a um sistema de direitos, e sim que eles se

    constituem de modo co-originrio, explicando-se reciprocramente. Por isso, afirma o autor,

    o princpio da democracia s pode aparecer como ncleo de um sistema de direitos23. A

    ideia bsica que o sistema de direitos pode ser desenvolvido a partir da interligao entre o

    princpio do discurso e a forma jurdica, processo a que Habermas d o nome de gnese

    lgica dos direitos. Tal sistema de direitos, reconhecido por cidados que desejam regular a

    vida em comum por meio do direito positivo, delineia as condies gerais necessrias para a

    institucionalizao de processos democrticos de discusso no mbito do direito e da poltica.

    Habermas aponta cinco categorias bsicas de direitos, que incluem direitos maior medida

    possvel de iguais liberdades subjetivas de ao, ao status de membro na comunidade poltica,

    proteo jurdica individual, ao exerccio da autonomia poltica e a condies bsicas de

    21 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 1, p. 145. 22 Na obra Conscincia moral e agir comunicativo, de 1983, Habermas havia formulado da seguinte maneira o

    princpio D: s podem reclamar validez as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de

    todos os concernidos enquanto participantes de um Discurso prtico (p. 116). Ao falar agora em normas de

    ao em geral, sem expressar um sentido especfico de validade normativa, e em discursos racionais, que

    podem comportar justificaes discursivas de carter moral, tico e pragmtico, Habermas considera que h um

    espao amplo para a deduo dos principios da moral e da democracia, por meio de especificaes adequadas, a

    partir do princpio discursivo. 23 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 1, p. 158.

  • 28

    vida que possam garantir a oportunidade de exercer as outras categorias de direitos elencados.

    Quando introduzimos o sistema dos direitos desta maneira, conclui Habermas, torna-se

    compreensvel a interligao entre soberania do povo e direitos humanos, portanto a co-

    originariedade da autonomia poltica e da privada. Com isso no se reduz o espao da

    autonomia poltica dos cidados atravs de direitos naturais ou morais, que apenas esperam

    para ser colocados em vigor, nem se instrumentaliza simplesmente a autonomia privada dos

    indivduos para fins de uma legislao soberana. Nada vem antes da prtica de

    autodeterminao dos cidados, a no ser, de um lado, o princpio do discurso, que est

    inserido nas condies de socializao comunicativa em geral, e, de outro lado o medium do

    direito24. Como se pode notar, a questo central da legitimidade abordada atravs da

    racionalidade prpria do direito moderno, assegurada pelo vnculo entre a autonomia privada

    e a autonomia pblica de cidados integrados socialmente atravs do agir comunicativo25.

    O modelo habermasiano de democracia procedimental - termo que serve para

    designar a tentativa de realizao dos direitos vinculados s duas formas de autonomia dos

    cidados pela incorporao de discursos pragmticos, tico-polticos e morais em marcos

    institucionais -, introduzido tambm pelo contraste entre as alternativas clssicas -

    republicana e liberal. Como o modelo republicano, rejeita-se a viso do processo poltico

    como sendo, primariamente, o da competio entre preferncias privadas. Como o modelo

    liberal, entretanto, considera-se a viso de uma cidadania unificada e ativamente motivada por

    uma concepo compartilhada do mundo como irrealista nas sociedades modernas pluralistas.

    Tais modelos procedem, na verdade, de um mesmo conceito de sociedade centrada no Estado,

    embora este ltimo seja tido, num caso, como o protetor de uma sociedade econmica, e, no

    outro caso, como a institucionalizao de uma comunidade tica. Na viso liberal, a

    constituio do Estado de direito o aspecto capital para o equilbrio dos interesses de

    sujeitos privados que buscam a satisfao de suas expectativas concorrentes. Na viso

    republicana, a formao de uma comunidade tico-poltica estruturada o elemento central

    para a autodeterminao democrtica de sujeitos vinculados na totalidade coletiva. A primeira

    perspectiva prescinde da ideia de cidadania e do papel constitutivo da formao poltica da

    opinio e da vontade, ao passo que a segunda menoscaba as fronteiras entre Estado e

    sociedade civil atravs da excessiva politizao de uma esfera pblica voltada contra a

    administrao burocrtica.

    24 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 1, pp. 164-165. 25 Para uma exposio sucinta da teoria poltica habermasiana, cf. On the internal relation between the rule of

    law and democracy, in: The inclusion of the other: studies in political theory, op. cit., pp. 253-264.

  • 29

    Ambos os elementos da normatizao constitucional e do processo poltico de

    formao da opinio e da vontade so assumidos sob nova composio na teoria discursiva da

    democracia: para ela processos e pressupostos comunicativos da formao democrtica da

    opinio e da vontade funcionam como a comporta mais importante para a racionalizao

    discursiva das decises de um governo e de uma administrao vinculados ao direito e

    lei26. Habermas sugere um processo em dois trilhos, no qual h uma diviso de trabalho entre

    o pblico fraco - a esfera pblica informalmente organizada, que abrange as associaes

    privadas, instituies culturais, grupos de interesse com preocupaes pblicas, igrejas,

    instituies de caridade, etc. - e o pblico forte - as corporaes parlamentares e outras

    instituies formalmente organizadas do sistema poltico. A soberania popular, interpretada

    de modo intersubjetivista, no se concentra em um ator coletivo que reflete a totalidade e age

    em funo dela, como no modelo republicano, nem banida para o anonimato de

    competncias jurdico-constitucionais, como no modelo liberal, mas faz-se valer como poder

    produzido comunicativamente. Neste sentido, os discursos institucionalizados para a

    formao poltica da opinio e da vontade so vitais para o exerccio da cidadania, na medida

    em que o processo democrtico impele os participantes ao engajamento em perspectivas

    recprocas e busca de interesses generalizveis. O cerne de uma compreenso genuinamente

    procedimental da democracia, nos termos de Habermas, consiste precisamente no fato de que

    o processo democrtico institucionaliza discursos e negociaes com o auxlio de formas de

    comunicao que devem fundamentar a suposio da racionalidade para todos os resultados

    obtidos conforme o processo, sendo seu ncleo dogmtico, no sentido de algo que no

    podemos eludir, a ideia de autonomia, segundo a qual os homens agem como sujeitos livres

    na medida em que obedecem s leis que eles mesmos estabeleceram, servindo-se de noes

    adquiridas num processo intersubjetivo27.

    A posio de Habermas no debate em torno do multiculturalismo, como j salientado,

    determinada pela compreenso democrtico-procedimental dos direitos que tentamos

    apresentar em suas linhas gerais. Trata-se de uma posio peculiar, uma vez que permite ao

    autor endossar determinadas polticas da diferena que contribuam decisivamente para a

    incluso dos cidados aos quais negado o pleno reconhecimento como membros de uma

    comunidade poltica e, ao mesmo tempo, chamar a ateno para potenciais ameaas

    autonomia individual associadas s demandas especficas de grupos, particularmente no que 26 HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 2, p. 23. 27 HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, op. cit., vol. 2, p. 27 e p. 190. Para uma

    breve apresentao do modelo habermasiano de democracia, cf. Three normative models of democracy, in:

    The inclusion of the other: studies in political theory, op. cit., pp. 239-252.

  • 30

    tange aos chamados direitos culturais. Desse modo, como em muitos outros temas tratados no

    mbito da teoria discursiva, a postura de Habermas se caracteriza por um difcil equilbrio

    entre igualdade e diversidade, defendendo uma concepo universalista sensvel s diferenas

    nos recentes debates multiculturais. Entretanto, h dvida sobre a superioridade de sua

    abordagem - comparada com as alternativas do liberalismo e do republicanismo, tais como

    apresentadas pelo pensador alemo28 - para lidar com diferenas politicamente significativas

    entre grupos tnicos, nacionais e religiosos29. Neste sentido, no so poucas as crticas ao

    modo discursivo de tratamento da questo, seja porque subestimaria a importncia das

    identidades culturais, seja por no estar suficientemente atento relevncia da cultura no

    campo da poltica, seja tambm em razo de no reconhecer a profundidade da diversidade e

    dos conflitos de valores nas sociedades pluralistas contemporneas30. Em breves palavras, o

    desafio parece residir na comprovao de que o tipo de normatividade subjacente a uma

    interpretao democrtico-radical do liberalismo poltico permite conjugar de modo

    satisfatrio o ideal igualitrio da cidadania democrtica com as demandas legtimas de

    indivduos e grupos aos quais as normas, embora justificadas do ponto de vista dos interesses

    de todos, impem restries diferenciadas.

    O desafio enfrentado por Habermas ao enfocar trs aspectos interligados e

    diretamente vinculados ao tema do multiculturalismo: a ideia liberal de igualdade, os direitos

    de grupos e o igual tratamento das culturas. No primeiro caso, o objetivo a defesa do

    princpio da igualdade cvica contra as tentativas de descontruo do liberalismo. No segundo

    caso, trata-se de apontar as consequncias ambivalentes dos direitos de grupos fundados pelo

    multiculturalismo, os quais normalmente produzem o que Habermas chama de uma

    28 O destaque importante, pois a apresentao feita por Habermas das duas interpretaes contrrias e

    conflitantes na filosofia poltica possui valor heurstico e, nessa medida, destaca as caractersticas principais de

    forma estilizada. notrio, por exemplo, o teor comunitarista desse republicanismo contrastado com o

    liberalismo, o que pode ser confirmado em seu artigo: Multiculturalism and the liberal state. Stanford Law

    Review, 47 (1995): 849-853. Sabe-se, entretanto, que nem o liberalismo e nem o republicanismo constituem

    tradies polticas homogneas, a ponto de muitos de seus representantes serem enquadrados em ambas, dependendo dos aspectos salientados. O liberalismo poltico rawlsiano e a teoria discursiva habermasiana so, no

    meu entender, exemplos notveis de tal ambivalncia. 29 A dvida lanada na prpria introduo, de resto muito instrutiva, feita por Cronin e De Greiff para a obra

    The inclusion of the other. De fato, os editores afirmam que as teorias altamente abstratas dos direitos humanos

    e da soberania popular nas quais ele prope fundar a democracia tanto no nvel nacional quanto no nvel

    supranacional parecem ignorar os valores culturais que moldam as identidades de grupos [Editors

    Introduction, pp. vii-xxxii; aqui, p. xxviii], sem deixarem de notar a fora e a originalidade de Habermas ao

    tratar de uma ampla gama de questes no quadro de uma filosofia poltica singular. 30 Vide, p. ex.: YOUNG, I. Communication and the other: beyond deliberative democracy, in: BENHABIB, S.

    (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princeton: Princeton University

    Press, 1996, pp. 120-135; BAUMEISTER, A. Habermas: discourse and cultural diversity. Political Studies, 51

    (2003): 740-758. THOMASSEN, L. The inclusion of the other? Habermas and the paradox of tolerance.

    Political Theory, 34 (2006): 439-462.

  • 31

    transformao dialtica da igualdade em represso. No terceiro caso, examina-se a

    consistncia conceitual da interseo de liberdade e igualdade em casos de igual tratamento

    das culturas, problema que tem a ver justamente com a razoabilidade normativa dos custos

    que indivduos e grupos devem pagar para uma adaptao modernizao cultural e social.

    Esses aspectos, tratados com mais detalhe em outra publicao31, acabam reforando alguns

    tpicos da abordagem de Habermas sobre poltica do reconhecimento, destacando-se

    principalmente as teses: (a) de que apenas um universalismo igualitrio sensvel s diferenas

    pode preencher os requisitos indispensveis para a proteo da integridade vulnervel de

    indivduos com histrias de vida distintas; (b) de que, embora a implementao dos chamados

    direitos culturais para membros de grupos discriminados, de modo semelhante aos direitos

    sociais, siga um desenvolvimento jurdico governado pelo princpio da igualdade cvica,

    fundamental que tal expanso do conceito clssico de cidadania no viole direitos individuais

    em nome de direitos coletivos, os quais, no sendo suspeitos per se, no entender de Habermas,

    so legtimos na medida em que derivam dos direitos culturais do membro individual do

    grupo; (c) de que, enfim, no apenas as normas, mas tambm as restries assimtricas delas

    decorrentes, aceitas em bases normativas, so uma expresso do princpio de igualdade cvica

    que norteia o uso pblico da razo32.

    REFERNCIAS

    ARAUJO, L. B. L. Liberalismo, identidade e reconhecimento em Habermas. Veritas, 52

    (2007): 120-136.

    BAUMEISTER, A. Habermas: discourse and cultural diversity. Political Studies, 51

    (2003): 740-758.

    BENHABIB, S. The claims of culture: equality and diversity in the global era. Princeton:

    Princeton University Press, 2002.

    BERTEN, A., DA SILVEIRA, P., POURTOIS, H. (eds.). Libraux et communautariens.

    Paris: PUF, Collection Philosophie Morale, 1997.

    31 Cf. ARAUJO, L. B. L. Liberalismo, identidade e reconhecimento em Habermas. Veritas, 52 (2007): 120-

    136. 32 Tais aspectos permitem a Habermas retomar, cerca de dez anos aps os comentrios poltica do

    reconhecimento de Charles Taylor, o tema do multiculturalismo na ocasio de uma crtica leitura ps-moderna

    do liberalismo. Cf. HABERMAS, J. Equal treatment of cultures and the limits of postmodern liberalism. The

    Journal of Political Philosophy, 13 (2005): 1-28.

  • 32

    CONSTANT, B. De la libert des anciens compare celle des modernes, in: De lesprit

    de conqute et de lusurpation. Paris: Flammarion, 1986.

    CRONIN, C. and DE GREIFF, P. (eds.). Global justice and transnational politics: essays

    on the moral and political challenges of globalization. Cambridge (Mass.): The MIT Press,

    2002.

    GANS, C. The limits of nationalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

    HABERMAS, J. Conscincia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

    trad. de Guido A. de Almeida, 1989.

    _____________. Erluterungen zur diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991.

    _____________. Multiculturalism and the liberal state. Stanford Law Rev