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Departamento de Filosofia
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WITTGENSTEIN E A IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM E
DE UMA EXPERIÊNCIA PRIVADAS
Aluno: Henrique Rondinelli
Orientador: Ludovic Soutif
Introdução
Esta pesquisa tem como objetivo realizar uma leitura direcionada do argumento da
linguagem privada, presente nas Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein. Assim
sendo, será exposto o papel ficcional que a figura de uma linguagem privada cumpriu nas
correntes epistemológicas fundacionalistas. A impossibilidade da linguagem privada deverá
ser metodologicamente demonstrada a partir do abandono da tese de que os signos significam
por meio de uma associação, o que nos engajará necessariamente em uma leitura holística das
Investigações Filosóficas, de tal maneira que o argumento da linguagem privada não seja
interpretado como um pontual e factual questionamento acerca do vocabulário da dor, mas
como o momento mais crítico de todo texto onde as incoerências centrais da tese do
significado enquanto associação são postas em evidência. Por fim, é feita uma primeira
aproximação entre as semelhanças do argumento da linguagem privada e a doutrina do Mito
do Dado, de Wilfrid Sellars. Daí, pretendi elucidar como ambas doutrinas compartilham do
desejo de demonstrar que nenhum dado epistêmico imediato, nem mesmo as sensações
aparentemente mais privadas, podem servir de fundação para o conhecimento e de
embasamento para a justificação de nossas outras crenças.
A crítica ao projeto fundacionalista dentro do viés da pesquisa
Ainda que as principais correntes do pensamento epistemológico tradicional apresentem
claras e incontáveis divergências, tal como constatamos, por exemplo, entre o projeto de
atomismo lógico de Russell e o racionalismo cartesiano, há de se falar de um elemento teórico
comum presente na maior parte dessas doutrinas: a crença de que todo conhecimento acerca
do mundo e das coisas deve estar, em última instância, fundamentado em um conhecimento
auto-justificado, imediatamente acessível ao sujeito e indubitável. Todas as correntes que
compartilham desse elemento podem, então, ser chamadas de fundacionalistas. O
conhecimento fundacional, então, deveria cumprir concomitantemente dois requisitos
epistêmicos: ele possuiria eficácia para gerar e justificar todos os nossos outros
conhecimentos e ele seria independente de qualquer outro conhecimento, sendo o mais
anterior logicamente.
A partir desse breve quadro do conhecimento fundacional, podemos inferir tão logo
algumas incoerências: por ser um conhecimento e por ser capaz de sustentar nossas cadeias de
justificações acerca de outros conhecimentos dos quais ele é a fundação, o conhecimento
fundacional já deveria localizar-se dentro de nossa esfera conceitual. Todavia, a sua petição
por imediatidade não permite que ele seja intermediado por nenhum conceito inferido, tais
como ocorrem nas instâncias dos signos públicos que aprendemos em uma comunidade de
indivíduos falantes. Daí, para preservar a imediatidade e, ao mesmo tempo, manter-se inserido
na esfera conceitual de um sujeito, o conhecimento fundacional requereu uma estranha ficção
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epistemológica e pré-teórica, amparada na figura de uma linguagem privada. Ou seja, cada
indivíduo seria capaz de elaborar autonomamente uma biblioteca conceitual a partir de signos
privados – e não inferidos da convivência em uma comunidade – que obteriam os seus
significados por meio da associação direta com as sensações privadas que cada sujeito possui
e cujos significados não podem ser definidos em jogos de linguagem, mas somente por meio
de ostensões diretas às próprias sensações que designam (o que os coloca em um patamar de
superprivacidade).
Explicita-se, então, o último elemento teórico que compõem o quadro geral do
fundacionalismo: a crença de que o significado adviria, em última instância, da associação
com as experiências privadas que um sujeito possuiria, de tal maneira que essas experiências
seriam compostas por sensações que não somente seriam imediatamente conhecíveis, mas
também seriam a própria entidade do significado do nosso vocabulário privado.
Explicar porque a figura da linguagem privada é uma falácia que alimenta e
proporciona vigor às correntes epistemológicas fundacionalistas é uma tarefa que envolve a
explicitação de mal entendidos contidos e assumidos dentro dessas próprias correntes.
Explanar as incoerências e as incompletudes dessa visão implica, necessariamente, o nosso
engajamento em outras formas de compreender o significado. Daí, o movimento presente nas
Investigações Filosóficas dentro do argumento chave contra a possibilidade de uma
linguagem privada faz-se claro: o vocabulário das sensações, inclusive o vocabulário da dor
(o exemplo mais paradigmático daquilo que parece absolutamente incompartilhável e
superprivado), não adquire significado por meio de associações às sensações, mas por meio de
conceitos e regras compartilhados em comunidade que nos permitem deter estados
epistêmicos acerca das sensações e, só assim, ser capaz de designa-las por meio de palavras.
Dessa forma, defendo que a argumentação que explicite a impossibilidade de uma
linguagem privada não pode ser realizada por meio de argumentos que minem problemáticas
pontuais e factuais, tais como ocorre com o argumento da falibilidade da memória, mas pelo
movimento geral de que, em princípio, devemos abandonar a perspectiva de que o significado
advém de uma associação. Nesse sentido, a leitura das Investigações Filosóficas só pode ser
realizada por um viés holístico, onde as seções 244 – 273 (a célebre divisão do argumento da
linguagem privada) compõem apenas um caso particular, porém, o mais radical, da crítica
geral de Wittgenstein à tese do significado enquanto associação. A refutação de uma
linguagem privada, então, deve ser feita a partir da refutação da tese associativa e da adoção
de novos modelos de explicação do funcionamento da linguagem.
Se a refutação do fundacionalismo constitui, concomitantemente, o abandono das teses
associativas do significado, então o endosso do aprendizado de uma linguagem pública para a
garantia da existência de qualquer experiência conceitual e para a intermediação de estados
epistêmicos acerca de quaisquer experiências – inclusive aquelas que parecem absolutamente
privadas – torna-se a ferramenta pela qual devemos orientar nossos horizontes teóricos. A
inversão fica cada vez mais clara: o conhecimento do mundo não pode ser realizado da
interioridade dos juízos para o mundo exterior, mas sim pelo intermédio dos signos públicos
que instanciam conceitos aprendidos em comunidade.
Por fim, a pesquisa enveredou-se à explicitação das similaridades entre o argumento
da linguagem privada e a doutrina do Mito do Dado. Defendo que a conclusão mais fértil à
epistemologia que pode ser extraída do argumento presente nas IF é que uma sensação pura
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não pode servir de fundamento para a justificação de nenhum conhecimento e isto nos remete
diretamente à refutação do dado mitológico elaborada por Sellars, uma vez que ambas as
críticas trazem à tona os problemas envolvidos nas concepções fundacionalistas que se
baseiam em dados epistêmicos (seja ele a sensação, não-proposicional, da dor para a dação de
significado do vocabulário da dor; seja o formato proposicional do cogito cartesiano para a
fundamentação de um sujeito metafísico). Ao afastar o dado mitológico, estamos, também,
nos afastando da figura de uma linguagem privada que dê a investidura conceitual a esse
dado. Ao nos afastarmos da figura de uma linguagem privada, estamos endossando a
refutação de um dado mitológico que sirva de entidade de significado aos signos privados.
Acredito que devemos elucidar como as noções de uma linguagem e experiência
privadas cumprem o papel de nos apresentar uma enganosa figura de fundação do
conhecimento, garantindo uma suposta infalibilidade dos juízos internos, a partir dos quais
constituímos as nossas outras crenças. As semelhanças e problemas comuns entre correntes
tão distintas que utilizei de exemplo – o atomismo lógico e o racionalismo cartesiano –
evidenciam-se cada vez mais patentemente. Em um, a descrição dos dados dos sentidos, um
conhecimento de trato, deve servir de base para todo conhecimento por descrição1; e o acesso
que um sujeito tem desses dados não pode ser compartilhado, tampouco os signos usados no
seu trabalho de descrevê-los, pois estes se remetem diretamente a esses dados dos sentidos.
No outro caso, o conhecimento do mundo exterior só se torna possível após a obtenção de
estados cognitivos subjetivos indubitáveis. Em ambos, o conhecimento do mundo externo
deve ser racionalmente construído a partir das suposta certezas obtidas nos juízos acerca das
experiências privadas, acessíveis por meio de uma linguagem, também privada.
A crítica de Wittgenstein no contexto das Investigações Filosóficas
Desvencilhar-se da sedutora ficção da linguagem privada requer o afastamento de
determinada imagem pré-filosófica do funcionamento da linguagem que engendram
sofisticadas teses filosóficas, por mais que Wittgenstein não apresente uma tese positiva do
significado nas IF. Curiosamente, esse único movimento, o da mudança de perspectiva da
compreensão do significado e do funcionamento da linguagem, é o mais fundamental para
levar à ruína a figura da linguagem privada e é esse o sentido de minha argumentação: a
refutação da linguagem privada não é simplesmente dada por meio da apresentação de uma
série restrita de argumentos, mas pelo endosso de toda uma nova visão do fenômeno e do
funcionamento da linguagem, menos enviesada do que as tentativas anteriores, onde o jogo de
linguagem da ostensão foi apontado como o mais primordial para a geração de significado. A
refutação da linguagem privada se dá, então, na mudança de perspectiva de como
compreendemos a maneira das palavras significarem.
Dessa forma, torna-se estranha aquela canônica e célebre delimitação de que há um
argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada entre as seções 244 e 271. O que
há nessas seções que pode ser separado de forma mais clara e argumentativa são as patentes
tentativas de ilustração de uma linguagem privada, o que dá ao argumento uma espécie de
1 RUSSELL, Bertrand. The Problems of Philosophy; Our Knowledge of the External World.
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formato reductio ad absurdum2, e uma estreita correlação da maneira como as nossas palavras
se referem às nossas sensações, o que é facilmente compreensível, uma vez que se é possível
explicar o aprendizado e o funcionamento do vocabulário das sensações privadas dentro da
concepção do significado enquanto o uso (essa concepção amplamente evasiva da
subjetividade e da privacidade), todos os outros vocabulários tornam-se, por assim dizer,
menos problemáticos. Dessa forma, não devemos empenhar tantos esforços em tentar
evidenciar a estrutura argumentativa presente nessas seções (244-271), mas devemos nos
empenhar em explicitar o papel argumentativo que essas seções desempenham no livro
inteiro.
Buscar o argumento central do livro, todavia, seria uma tarefa exaustiva demais para
frutos pouco satisfatórios. Dizer que as IF possuem um argumento seria reduzir a variedade
dos assuntos abordados, como quem procura um único fio que perpassa todas as linhas do
texto, e, de certa forma, ir contra a própria proposta do livro, que raramente adota uma postura
argumentativa. O seu viés é dialogal, apresentando uma gama de posturas filosóficas e
experimentos mentais que, muitas vezes, não parecem contribuir para alguma pronta
conclusão. Entretanto, devemos elucidar quais pontos devem ser distintamente esclarecidos
para provocar a mudança de perspectiva necessária para tornar a figura da linguagem privada
naturalmente incoerente e impossível. Na verdade, analisar a questão da possibilidade da
linguagem privada é um importante movimento realizado por aqueles que, em específico,
analisam as seções 244-271; o mais importante, entretanto, é demonstrar que ela é uma
suposição pré-teórica desnecessária, e por isso uma estranha ficção, para explicarmos a
geração de significado.
A imagem tradicional da linguagem, como foi dito no início da seção 1, reduz a
totalidade dos fenômenos linguísticos a uma hierarquia do significado, onde a prática da
nomeação (do ritual da ligação entre um nome e um objeto ou entidade de significado) é o
jogo de linguagem mais fundamental. Afirmar que o significado se dá, em última análise, ao
ritual da ostensão é o sintoma daqueles que não enxergam que a própria ostensão só gera
sentido a um indivíduo após muitas coisas já estarem devidamente acordadas, estabelecidas e
preparadas. Dizer que a finalidade das palavras e das frases é gerar associações e descrições,
como uma série de imagens mentais ou como um mecanismo que aciona ideias, é,
basicamente, não levar o sentido de “finalidade” a fundo. Palavras não apenas servem para
guiar práticas humanas, mas são os constituintes mais elementares das mais complexas ações.
Até a mais minuciosa atividade descritiva não se esgotaria na associação do significado dos
termos que emprega.
Saber o significado das palavras não está ligado a alguma competência essencial que
possuímos para associa-las a entidades de significado, mas está completamente vinculado às
nossas competências de utiliza-las de acordo com as regras de seu uso. Nas palavras de P.
Hacker: “The meaning of an expression is what one understands when one understands the
expression. It is what is explained by an explanation of meaning. An explanation of meaning
provides a standard or a rule for the correct use of an expression. For one’s use of a word is
correct, makes sense, when it accords with an appropriate explanation of meaning . A
2 Ver The Private Language as a reductio ad absurdum. CASTAÑEDA, Henri-Neri. The Private Language Argument. Bristol: McMillan and Co Ltd, 1971.
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person’s understanding of an expression is manifest in his use of it and in giving his correct
explanations of it on appropriate occasions”3.
A defesa dessa forte tese está atrelada à análise de como aprendemos as palavras e
como as empregamos em ações cotidianas. As primeiras seções das IF têm, em comum, a
explicitação de jogos de linguagem muito elementares, onde palavras são empregadas de
forma simples para nomear objetos que participam de uma ação (o grito “lajota” para um
indivíduo pegar uma lajota). Aos poucos somos afastados da ideia de que a palavra, por
exemplo, “lajota” só adquire significado na medida em que compartilha uma natureza íntima
com o objeto designado. Em seu lugar, passamos a compreender que a palavra tem uma
função diferente da pura significação; por mais que, durante tantos séculos de investigação
acerca da linguagem, a função pragmática dos nomes fora completamente banida das nossas
concepções de linguagem em detrimento da concepção da designação de uma ideia enquanto
finalidade do signo.
Para os semânticos mais atentos, parece que muito pouco foi explicado: têm-se a
impressão de que o uso não é capaz de explicar absolutamente nada do significado para além
da óbvia constatação de que proferir palavras e sentenças são uma forma de ação.
Perguntariam, então “Mas como pode o indivíduo saber que quando lhe gritam ‘lajota’, ambos
possuem em mente o mesmo objeto?”. Contudo, esse tipo de questionamento ainda está
vinculado aos preceitos do modelo associativo de significado, pois subjaz aí a crença de que
compreendemos os significados das palavras em um flash; ou seja, como se apenas uma
utilização feliz do termo atrelado a uma prática fosse necessária para a dação de significado.
Ora, isso não seria em nada distinto da velha figura da ostensão. Entender o papel do uso da
constituição do significado é elucidar que a nossa linguagem e nossas ações são
indissociáveis, constituindo uma forma de vida específica, de tal maneira que não se aprende,
exatamente, um uso de uma palavra, mas as regras que guiam a nossa gramática (regras que
guiam, também, o uso de cada palavra) pela completa inserção nos jogos de linguagem, desde
o nosso nascimento. Palavras não adquirem significados independentemente umas das outras,
pois isso seria supor, mais uma vez, que o significado é uma relação direta entre o signo e a
entidade por ele designada (sendo a própria dinâmica da relação entre os dois um ritual muito
estranho na ausência de uma forma de vida acostumada a atribuir relações). Em vez disso, é a
constante utilização das palavras em diferentes jogos de linguagem que nos permite traçar o
seu alcance conceitual, que não deve ser entendido como uma espécie de condensação em
uma ideia, mas como as manifestações bem-sucedidas dos usos que fazemos das palavras.
Deter um conceito (e, nesse sentido, conhecer um significado), como bem já abordou Hacker,
não diz respeito a suscitar representações ou ideais corretas, mas é primordialmente a nossa
capacidade de justificar a sua detenção por meio do uso na linguagem, o que,
necessariamente, atrela-nos a outras palavras. Surge-nos, então, a figura do holismo
semântico-conceitual, uma vez que não posso justificar a propriedade de um conceito ou do
conhecimento do significado de uma palavra separadamente sem antes deter toda uma rede
conceitual que me permita compreender o que me é exigido quando sou indagado acerca do
significado de determinada palavra (não há como sequer conceber essa tarefa sem entender o
que é “significado”, “justificação”, “conceito” e etc).
3 Insight and Illusion. HACKER, P. M. S. Nova York: Oxford University Press, 1986, p. 247.
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O movimento que proponho, o de mudar as perspectivas acerca do significado, não se
compromete com a defesa de que há uma tese do significado enquanto uso nas IF, pelo
simples fato de que é muito difícil estipular, tão enfaticamente e distintamente, uma clara tese
acerca do significado nos escritos de Wittgenstein. Pretendo, contudo, a partir das IF,
reformar a maneira como concebemos a função designativa dos nomes tendo a abordagem da
noção do uso como ponto principal. De forma geral, as teses associativas incorrem em uma
espécie de dualismo (palavra – entidade de significado). Daí, naturalmente nos vemos presos
a analogias epistêmicas extremamente problemáticas, como a do conhecimento imediato entre
sujeito e objeto (outra forma de dualismo recorrente) que, já vimos, são as condições de
pensamento mais tentadoras a nos levar a entender o estado perceptivo como suficiente para a
ocorrência de estados cognitivos. Nesse sentido, torna-se clara a importância central da
discussão acerca das sensações (principalmente do exemplo paradigmático da dor), uma vez
que são nas circunstâncias das experiências que nos parecem absolutamente privadas e não-
compartilháveis que a tese do significado enquanto associação melhor cria força: não parece
haver melhor explicação ao aprendizado do vocabulário das sensações que a da associação
que fazemos diretamente entre as palavras e essas sensações que sentimos. Entretanto,
entender o papel do uso (e, antes, do aprendizado) das palavras no intermédio do
conhecimento nos apresenta uma visão mais completa e madura do significado. Se por um
lado temos o dualismo semântico e a independência conceitual4 como elementos centrais, do
outro surge-nos a imagem do monismo semântico5 e do holismo conceitual, presentes nas IF.
Feita a distinção entre estados perceptivos e cognitivos, eliminam-se alguns possíveis
mal entendidos. Wittgenstein nunca argumentou em favor da não existência de sensações na
ausência de uma linguagem, como se elas fossem um nada (analogamente, nunca argumentou
contra a existência de processos mentais internos). O que está em jogo é a maneira como
acessamos esses estados perceptivos de forma eficaz para a produção de estados cognitivos. A
postura de Wittgenstein não é óbvia. É claro que nomes podem designar sensações, “pois não
falamos diariamente das sensações e não as denominamos?”6. A questão está na maneira
como essa designação é feita e o papel que acreditamos ser exercido pela sensação designada,
pois ela não se trata de uma entidade de significado que preenche a palavra – e aí está a
profunda incoerência nas visões associativas do significado que endossam que a ocorrência da
sensação é suficiente para a vincularmos a ocorrência de um estado cognitivo. As designações
são feitas, na realidade, a partir de regras gramaticais que guiam os corretos usos dos nomes
(como, por exemplo, dizemos que sentimos uma dor de dente aguda em um molar). O
importante a ser destacado é que a designação da sensação somente foi possível a partir do
aprendizado das regras e da extensão conceitual dos nomes nela empregados, sendo ambas (as
regras gramaticais e as palavras) elementos públicos compartilhados em uma comunidade de
4 A independência conceitual está atrelada a noção de que o significado das palavras surge em um flash, de tal forma que aprender o significado de um determinado termo necessita somente de uma associação a sua suposta entidade de significado, sendo uma ação independente de outros conceitos. 5 O monismo semântico, numa breve exposição, é a postura que recusa que o significado seja obtido a partir de entidades as quais a palavra se associa. 6 IF, p. 98.
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falantes. Não há dúvidas de que as sensações são um algo7 mesmo nos seres que não detém
linguagem. Ir contra esse ponto seria endossar a terrível e equivocada conclusão de que as
sensações sem designações conceituais inexistiriam, uma vez que elas estariam desamparadas
da rede conceitual que permite o conhecimento das sensações8. O que Wittgenstein tenta
elucidar, na verdade, é que as sensações puras não têm a eficácia para constituir um estado
cognitivo, que requer minimamente uma experiência conceitual dada a partir do aprendizado
da linguagem pública. O movimento anticartesiano, então, torna-se patente: até o acesso
epistêmico aos nossos estados aparentemente mais privados requerem o intermédio de
elementos públicos e compartilhados. Daí é possível dizer que as experiências absolutamente
privadas são uma estranha ficção escoradas na figura, igualmente estranha e ficcional, de uma
linguagem privada, que cumpriria, aqui, o papel de tornar os estados perceptivos prontos para
o ritual da nomeação, com objetos discriminados em um espaço lógico9, com todas as
características de uma experiência conceitual dada nos episódios cognitivos.
Dois casos
Até o momento, foram traçadas linhas gerais acerca das más compreensões das teses
associativas do significado e foram explicitados os primeiros aspectos de uma visão mais
coerente, onde a capacidade das palavras designarem objetos, principalmente, as sensações,
não advém da experiência direta desses objetos, mas da habilidade que obtemos de adquirir
conceitos que nos permitem intermediar os conhecimentos de nossas experiências. A posse
dos conceitos, por sua vez, foi elucidada enquanto um processo que exige a imersão em
práticas compartilhadas por uma comunidade, onde aprendemos as regras que guiam os usos
corretos das palavras. A mudança de perspectiva que defendo não consiste, tão simplesmente,
no abandono das teses associativas e na adoção de uma suposta “tese do significado como
uso”, como muitos dos comentadores de Wittgenstein prontamente fazem. A tese do
significado enquanto uso pode levar-nos rapidamente a alguns mal-entendidos sobre o
funcionamento da linguagem, como, por exemplo, a crença de que palavras não têm poder
designativo – assumir essas posturas nos coagiria a retirar a credibilidade que a linguagem
detém quando “toca o mundo” ou quando diz corretamente que as coisas estão em
determinado arranjo. Designações são uma das diversas funções das palavras e ao que
devemos nos ater quando dizemos que as palavras têm poder designativo é em dar as corretas
explicações de como essa designação ocorre - e é aqui que a noção de uso e todos os rituais
compartilhados e executados por uma comunidade de falantes tornam-se cruciais. A mudança
de perspectiva é, sobretudo, passar a compreender que a linguagem pública é o intermédio
essencial e necessário para a detenção de qualquer estado cognitivo (até mesmo sobre aqueles
estados que absolutamente não são públicos), de tal maneira que a alegoria do conhecimento
7 “Ela [a sensação] não é algo, mas também não é um nada! O resultado foi apena que um nada presta os mesmos serviços que um algo sobre o qual não se pode falar nada. Rejeitaríamos aqui apenas a gramática que se quer impor a nós.” IF, p.109. 8 Aqui, claramente, confundem-se os sentidos de “deter um conhecimento” e “deter uma sensação”. 9 Adianto, aqui, um conceito de Wilfrid Sellars, por mais que a metáfora do espaço lógico surja no Tractatus Logico-philosophicus, do primeiro Wittgenstein. O que um pensante tem acesso no espaço lógico está de acordo com os nomes e conceitos que lhe estão disponíveis, sabendo-se que alguém não pode pensar sobre algo se não possui o seu conceito.
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imediato que um sujeito possui a partir do simples estado perceptivo venha à ruína.
Entretanto, para quem lê as IF pode ocorrer o pensamento de que falo de coisas
completamente distintas do que está no livro. Em parte, compreendo essa crítica e a explico
de duas formas: primeiro, é necessário entender que o vocabulário utilizado aqui pouco tem a
ver com a proposta das IF. Estado cognitivo, estado perceptivo, espaço lógico, conhecimento
imediato, linguagem pública, rede conceitual, holismo semântico; todos são termos ausentes
nas IF; entretanto, acredito que eles sejam fruto de uma análise mais clara e acurada e de uma
interpretação mais direcionada do que está ocorrendo (principalmente entre as seções 244 e
273) nas IF. O segundo ponto que explicito está diretamente ligado ao tipo de interpretação
direcionada que realizo. Quando digo que tenho uma interpretação direcionada do argumento
da linguagem privada, não estou apenas dizendo que há outras formas de ler o argumento que
não seguirei; estou dizendo, na verdade, que o próprio argumento ilustra casos diferentes do
que podemos vir a chamar de linguagem privada e que tomo apenas um deles para a análise,
aquele que considero ter maior importância para a epistemologia.
A seção 257 nos apresenta o caso de uma criança que, supostamente, não detém uma
linguagem pública e que, mesmo assim, consegue nomear uma sensação10. Logo em seguida,
na seção 258, vemos o caso de um homem adulto que já possui uma linguagem pública e que
decide anotar em seu diário a letra “S” para todas as ocorrências de uma determinada
sensação sua. Ambos os exemplos tentam nos vender uma plausível imagem da ocorrência de
uma linguagem privada que logo vem a ser desconstruída. Sem dúvidas, os dois casos
compartilham de problemas semelhantes por meio dos quais se constroem as críticas em
comum; como, por exemplo, a ausência de um critério de correção externo ao sujeito para a
aplicação dos signos e a falta de uma finalidade. Todavia, o fato de que a criança ainda não
possui uma linguagem pública torna o seu caso uma análise muito mais interessante para o
meu tipo de interpretação.
O adulto, por já deter uma linguagem pública, está habituado a possuir estados
cognitivos; ou melhor, a sua relação com o mundo é, nesse sentido, primordialmente
caracterizada como a ocorrência de estados cognitivos a partir de sua experiência conceitual.
Por meio dos signos da linguagem que possui, ele é capaz de discriminar objetos em sua
experiência e conhecê-los. Dessa forma, quando ele decide nomear uma sensação com o signo
“S”, não há, a princípio, grandes problemas, pois o adulto já possui as competências
conceituais para discriminar aquela sua determinada sensação e designa-la. Nesse caso, o
adulto não comete aquilo que tenho apresentado como o engano central dos defensores da
possibilidade da linguagem privada: a crença de que a ocorrência de estados simplesmente
perceptivos basta para a ocorrência de estados cognitivos. O homem adulto, por já deter uma
linguagem pública, não elabora a sua linguagem privada (na verdade, o seu signo privado) a
partir de estados puramente perceptivos, mas sim de estados cognitivos que já possui.
A criança, pelo contrário, ainda não detém uma linguagem pública e, como já
sabemos, consequentemente não detém uma experiência conceitual e, tampouco, consegue
sustentar estados epistêmicos. Em seu caso, a partir da pura experiência perceptiva, ela
supostamente conseguiria discriminar uma sensação e nomeá-la11. A possibilidade da
10 IF, p. 101. 11 IF, idem.
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existência de uma linguagem privada nessas circunstâncias é radicalmente mais problemática
do que o caso do adulto. Também, são nessas circunstâncias, onde tentamos conceber as
relações com o mundo de um ser pré-linguístico, que afloram os maiores enganos epistêmicos
da tradição filosófica. Nesse sentido, cabem as palavras de Wilfrid Sellars, em seu ensaio
Empirismo & Filosofia da Mente: “This is the fact that when we picture a child – or a carrier
of slabs – learning his first language, we, of course, locate the language learner in a
structured logical space in which we are at home. Thus, we conceive of him as a person (or,
at least, a potential person) in a world of physical objects, colored, producing sounds,
existing in Space and Time. But though it is we who are familiar with this logical space, we
run the danger, if we are not careful, of picturing the language learner as having ab initio
some degree of awareness – ‘pre-analytic’, limited and fragmentary though it may be – of this
same logical space. We picture his state as though it were rather like our own when placed in
a strange forest in a dark night. In other words, unless we are careful, we can easily take for
granted that the process of teaching a child to use a language is that of teaching it to
discriminate within a logical space of particulars, universals, facts, etc., of which it is already
undiscriminatingly aware, and to associate this discriminated elements with verbal
symbols.”12
É essa figura da linguagem privada, em particular, que tenho em mente quando me
refiro a uma ficção epistemológica constantemente suposta pré-teoricamente na tradição
filosófica. O caso do adulto certamente contribui para argumentação geral acerca da
impossibilidade de uma linguagem privada uma vez que ataca, diretamente, a ausência de
critérios eficazes para a verificação e para a correção dos usos que fazemos dos signos
privados – críticas que, por sua vez, também são válidas à figura da criança. Todavia, como o
viés da minha investigação tem seguido o caminho de elucidar os enganos gerados pela tese
do significado enquanto associação, o caso da criança torna-se, patentemente, mais
importante, uma vez que a minha argumentação se dá na direção do combate ao conhecimento
imediato, adquirido a partir da simples associação de signos privados às experiências de um
sujeito, tal qual ocorre quando a criança, genialmente, nomeia sozinha a própria sensação sem
sequer deter uma linguagem compartilhada. Se o combate à imediatez se dá, então, pelo
intermédio necessário do aprendizado de uma linguagem pública, o caso do adulto não se
torna mais tão paradigmático, uma vez que ele já a possui.
Critérios externos e finalidade
Possuir uma linguagem implica em participar de uma dinâmica normativa; isto é, ter a
capacidade em cada (nova) ocasião de usar as palavras de acordo com as regras que
determinam seu significado. Nesse sentido, até os defensores da tese do significado enquanto
associação (os defensores da possibilidade de uma linguagem privada, inclusive)
concordariam com essa afirmação. Para eles, seja no caso da criança ou do adulto, associar
uma palavra a sua entidade de significado seria uma atividade normativa, como, por exemplo,
12 SELLARS, Wilfrid. Empiricism and the Philosophy of Mind, Cambridge: Harvard University Press. 1997.
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associar a palavra “azul” à cor azul. Definitivamente, uma linguagem privada teria suas
próprias regras, que constituiriam, basicamente, em ostensões privadas. Tais regras, porém,
seriam, igualmente, apenas conhecíveis pelo sujeito que as aplica de maneira inteiramente
privada, o que nos faz questionar se essa aparente investidura normativa constitui, de fato, o
cenário adequado para aquilo que podemos chamar de um verdadeiro critério para a aplicação
correta dos signos de uma linguagem. Um critério privado, como elucida Wittgenstein na
seção 258, não pode constituir um critério de correção uma vez que o sujeito que o detém
privadamente não poderia conferir se seguiu determinada regra corretamente ou se apenas
detém a impressão de que o fez. É nesse sentido que classifico que a real atividade normativa
que constitui o funcionamento de uma linguagem necessita de critérios externos ao sujeito;
isto é, critérios que tenham a capacidade de impor àquele indivíduo algo diferente do
conteúdo das suas próprias crenças nas circunstâncias em que o indivíduo está enganado ou
erra.
Da mesma maneira como os signos de uma linguagem privada seriam
incompartilháveis por se referirem àquilo que somente o seu falante pode conhecer,
igualmente seriam os critérios de correção das regras dessa linguagem, pois para se dizer que
um indivíduo usou corretamente ou não determinado signo, dever-se-ia poder ter acesso às
suas experiências privadas. O propósito de elucidar que uma linguagem privada não apresenta
critérios externos de correção é demonstrar que o que acreditamos serem as regras que guiam
essa suposta atividade seriam impressões de regras, das quais não se poderia extrair nenhuma
noção de correção ou incorreção.
Comumente foi advogado que o único critério de correção para uma linguagem
privada seria a memória do linguista privado, que se lembraria das associações entre os seus
signos e as sensações correspondentes. Por isso, argumentou-se que a impossibilidade da
detenção de uma linguagem privada adviria do fato de que a memória é falha. Argumentar
pelo viés da falibilidade da memória não constitui, todavia, nenhum tipo de refutação à
possibilidade de uma linguagem privada. A refutação da linguagem privada deve ser
fundamentada em princípio e isso não ocorre nesse caso. O fato de a memória falhar ainda nos
permite imaginar um indivíduo que, por alguma aptidão, possuiria uma memória boa o
suficiente para utilizar corretamente e regularmente os seus signos privados. No caso do
adulto, por exemplo, não temos garantias de que ele escreveria o signo “S” corretamente, mas
igualmente não temos garantia de que ele erre. A questão central da discussão acerca da
normatividade de uma linguagem privada não está centrada no fato de que critérios privados
são falhos ou não-verificáveis, mas na própria noção de que não há algo como um critério
privado, no sentido de uma regra privada.13 Seguir uma regra implica, necessariamente, a
noção de que pode-se segui-la corretamente ou não, o que desaparece ao tentarmos conceber
uma regra absolutamente privada. No caso da criança, as ostensões privadas realizadas por ela
seriam o exemplo central da regra privada que foi supostamente seguida para a dação de
significado de cada símbolo.
13 Devemos traçar a evidente diferença entre uma regra privada, uma espécie de atividade ou ritual que apenas um indivíduo poderia seguir, tal como associar signos às suas sensações; e uma regra seguida privadamente, que seria a aplicação de uma regra compartilhável por um indivíduo em particular. Seguir uma regra privadamente não implica em nenhuma problemática profunda e, inclusive, estamos constantemente o fazendo.
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Tendo isto em mente, a existência de um critério externo para a verificação da
aplicação das regras que norteiam os usos dos signos em uma linguagem é um componente
necessário e básico na constituição de uma linguagem, o que vem a ratificar a imagem que
temos construído da linguagem enquanto fenômeno público e comunitário. Uma outra forma
de perceber isso é notar que regras privadas não poderiam desempenhar nenhum papel eficaz
em um jogo de linguagem compartilhado, o que nos leva a refletir que as regras e os signos
que compões essa linguagem não teriam qualquer tipo de finalidade.
Linguagem privada e o Mito do Dado
A noção de que um estado puramente cognitivo possa bastar para a geração de um
estado epistêmico é o ponto que mais tem recebido a minha atenção nesse trabalho, uma vez
que acredito ser essa a ficção epistêmica central na qual os defensores de uma linguagem
privada incorrem. É para isso que realizei a secção entre dois casos ilustrativos da prática de
uma linguagem privada presente nas IF. O primeiro, o caso do adulto, ao qual dei menos
relevância epistemológica, uma vez que, como já destaquei, o adulto já possui uma linguagem
(pública) a partir da qual ele pode inserir-se em um espaço lógico, discriminar objetos a partir
de conceitos e sustentar estados cognitivos. O segundo caso, o da criança, é naturalmente mais
rico para o debate epistemológico que abordo. Nesse caso, a criança ainda não deteria uma
linguagem pública e a sua linguagem privada serviria, acima de tudo, como intermédio pelo
qual detém uma experiência conceitual. Sendo assim, o seu puro estado perceptivo já seria
compreendido como uma espécie de estado cognitivo, possível por meio do aparato conceitual
de uma linguagem privada. Essa maneira de interpretar a linguagem privada; ou melhor, de
interpretar qual é o papel que essa figura vem desempenhando nas narrativas epistemológicas
tradicionais, nos possibilita, por fim, apresenta-la e refuta-la enquanto uma estranha ficção.
De forma análoga, esse tipo de leitura apresenta diversas semelhanças e compatibilidades à
doutrina do Mito do Dado14, onde se destaca um dado epistêmico que cumpriu em diversas
narrativas epistemológicas o papel de fundação última do conhecimento e, seguidamente,
refuta-se a possibilidade de existência de um dado nessas circunstâncias, transformando-o em
um mito.
Para expor as semelhanças entre os temas, devo, brevemente, apresentar o que é o
Mito do Dado. O dado mitológico seria aquele elemento imediatamente conhecido da
experiência a partir do qual se inferiria o resto do conhecimento, ou, num caminho reverso,
seria o elemento a partir do qual se fundamenta e justifica todo o conhecimento. Assim, já
poderíamos concluir que o dado mitológico satisfaria concomitantemente duas condições
epistêmicas bastante complicadas: (i) ele seria epistemicamente independente, isto é, ele não
poderia depender de nenhum outro tipo de conhecimento para se fazer valído; e (ii) ele seria
epistemicamente eficaz, isto é, a partir dele seria possível fundamentar todos os nossos outros
conhecimentos15. Devemos saber, também , que o dado pode surgir de duas maneiras: (i) ele
14 Importante doutrina epistemológica surgida em meados do século XX a partir do pensamento do filósofo norte-americano Wilfrid Sellars. 15 A apresentação do dado como o elemento epistêmico que cumpre essas duas funções (de eficácia e independência epistêmica) é fruto da magistral apresentação do pensamento de Sellars feita por Willen A. deVries e Tim Triplett, na introdução do livro Knowledge, Mind and the Given, Indianapolis: Hackett Publishing Company, Inc. 2000.
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pode ser proposicional ou (ii) não-proposicional. Suponhamos que o nosso dado possua a
forma proposicional, tal como um princípio primeiro, um princípio lógico, uma proposição
acerca da percepção ou um enunciado relacional entre universais. Nesse caso, podemos até
conceber que esse tipo de conhecimento seja capaz de servir como base inferencial a outros
conhecimentos, dando o status de eficácia epistêmica. Todavia, não poderíamos dizer que ele
possui independência epistêmica, uma vez que, por deter uma forma proposicional, ele seria o
produto do processo inferencial de um sujeito ao aprender uma linguagem. Sendo assim, a
linguagem seria o intermediário fundamental para o acesso ao tipo de conhecimento que se
pretende, afastando a sua imediatidade.
Suponhamos agora que o dado seja não-proposicional, tal como os dados dos sentidos
ou uma experiência perceptiva. Por ser não-proposicional, poderíamos até imaginar que esse
dado cumpriria o requisito de ser epistemicamente independente. Entretanto, tal dado jamais
poderia servir como a premissa para algum tipo de conhecimento, uma vez que sequer deteria
a investidura conceitual para essa empreitada16. Mais uma vez, faz-se necessário o intermédio
de alguma linguagem que dê a feitura conceitual a esse dado para que ele possua alguma
eficácia epistêmica.
Quando analisamos melhor o papel que uma linguagem privada cumpre em um
modelo epistêmico, percebemos que ela se presta como uma justificação para a validade do
dado mitológico que pretendemos derrubar pela enganosa imediatidade e por reivindicar
independência e eficácia epistêmica concomitantemente. Ao dizer que um indivíduo que
endossa a possibilidade de uma linguagem privada cai no mito do dado, estou acusando-o de
ter dado erradamente o papel epistêmico de fundação do conhecimento a algo que não tem a
capacidade de fazê-lo (e, por isso, é um mito). Essa tese se une à crítica central que elaborei
quando elucido que para os defensores de uma linguagem privada, no caso da criança, pelo
menos, acredita que os estados puramente perceptivos se bastam para a existência de estados
cognitivos; pois, nessas circunstâncias, os dados da percepção bastariam para preencher um
vocabulário conceitual privado, o que daria independência e eficácia epistêmica para esse
imediato ato perceptivo, tornando-o, também, um estado cognitivo. Como já vimos, essa é
uma mazela teórica advinda do equivocado movimento que realizamos ao projetar a nossa
experiência, estruturada em um espaço lógico e conceitual, aos seres pré-linguísticos. Ao
advogar que uma das boas conclusões do argumento da linguagem privada é elucidar a
necessidade de uma linguagem pública para possibilitar o acesso epistêmico das sensações
mais privadas, estamos, ao mesmo tempo, demonstrando que essas puras sensações não
podem servir de fundação o conhecimento, mesmo que detenham essa irresistível aparência
de imediatamente conhecíveis (até porque são imediatamente sensíveis), principalmente se
estamos presos às enganosas concepções acerca das teses associativas de significado.
O filósofo inglês John McDowell entende que o ataque central elaborado pelo
argumento da linguagem privada consiste em demonstrar que nem mesmo os juízos dos
sentidos internos estão fundamentados, em última instância, em bare presences17. E se isso se
aplica aos juízos acerca das sensações privadas, então podemos adotar a versão mais geral
16 Mais uma vez retornamos à passagem kantiana “Intuições sem conceitos são cegas”. 17 A expressão é utilizada pelo próprio McDowell no livro Mind & World, p. 19.
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dessa moral: “a bare presence cannot be a ground for anything”18. Esse tipo de interpretação
do argumento consiste em um movimento de aproximação com os temas e as preocupações da
doutrina do Mito do Dado. A sensação de dor, por ser uma bare presence, constitui um tipo
de dado não-proposicional como abordamos acima. Acreditar que esse dado não-
proposicional possa servir de justificação para qualquer juízo, e por isso, acreditar que eles
possam vir a compor imediatamente uma forma de conhecimento, é dar a credibilidade
conceitual a um dado que não a possui e, por isso, fazê-lo cumprir um papel epistêmico
mitológico.
McDowell explicita, então, que qualquer conceito cuja constituição seja justificada por
uma relação imediata à sensação é, no final das contas, um conceito privado e, por isso, um
endosso à enganosa concepção de uma linguagem privada. E mais, para formar esse conceito,
o sujeito deveria ser capaz de aplicar a si mesmo uma ostensão privada, que, por sua vez,
constituiria a definição do conceito. Esse tipo de definição ostensiva, amplamente creditada
pelos defensores de uma linguagem privada, além de ser compor o quadro de uma falsa regra
ausente de critérios externos de verificação, constituiria um estranho cenário de dação de
significado a parte do poder justificativo dos jogos de linguagem. Isto quer dizer, em termos
da doutrina do Mito do Dado, que um dado mitológico (no caso, não-proposicional) exterior à
esfera conceitual de um sujeito estaria cumprindo o papel de justificativa epistêmica a outros
conhecimentos (que seja o mero significado de uma palavra). Nesse sentido, duas passagens
das IF mostram-se particularmente marcantes. Na seção 258, lemos: “Quero escrever um
diário sobre a repetição de uma certa sensação. Para tanto, associo-a com o signo ‘S’ e
escrevo este signo num calendário, todos os dias em que tenho a sensação. – Observarei,
primeiramente, que uma definição do signo é impronunciável. – Mas posso dá-la a mim
mesmo como uma espécie de definição ostensiva! – Como? Posso apontar para uma
sensação? – Não no sentido habitual”19. A definição do signo seria impronunciável uma vez
que não constituiria na justificação dada dentro de um jogo de linguagem entre indivíduos,
mas seria o apontamento direto e imediato à sensação, que somente poderia ser conhecida
pelo sujeito que a possui – sendo, então incompartilhável e privada. Reforça essa tese a seção
261: “ Que razão temos para chamar de ‘S’ o signo referente a uma sensação? ‘Sensação’ é,
na verdade, uma palavra de nossa linguagem geral e não de uma linguagem inteligível apenas
par a mim. O uso dessa palavra exige, pois, uma justificação que todos compreendem. – E não
ajudaria nada dizer: não precisaria ser uma sensação; quando ele escreve ‘S’, tem algo – e
mais não poderíamos dizer. Mas ‘ter’ e ‘algo’ pertencem também à linguagem geral. Assim,
ao filosofar, chega-se por fim lá onde desejaríamos apenas proferir um som inarticulado. –
Mas tal som é uma expressão apenas num jogo de linguagem determinado que se deve agora
descrever”20.
Não precisamos, todavia, nos ater ao caso do dado não-proposicional, que constitui a
confusão central entre estado perceptivo e cognitivo, dentro dos possíveis cenários onde se
configura uma linguagem privada. Entre muitos filósofos, principalmente racionalistas,
muitos princípios foram adotados como imediatamente conhecíveis, tais como enunciados
entre universais ou proposições indubitáveis. Essa forma de conhecimento configuraria não
18 M&W, p. 19. 19 IF, p. 101. 20 IF, p. 101.
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somente um dado proposicional, como também uma pressuporia a existência de uma
linguagem privada, que não fora aprendida pela convivência em comunidade, para se realizar
juízos e ter acesso a conceitos acerca dos universais.21 Dessa forma, o termo bare presence
utilizado por McDowell (o qual não tive a pretensão de elaborar uma tradução adequada) não
necessariamente significa, estritamente, sensações; seria melhor entende-lo como o elemento
epistêmico mais geral (proposicional ou não-proposicional) que cumpriria o papel mitológico
de um dado que funda diretamente as justificações para todos os conhecimentos.
Conclusão
Ao aproximar o argumento da linguagem privada, de Wittgenstein, à refutação da
doutrina do Mito do Dado, de Wilfrid Sellars, eu não apenas pretendi realizar um apanhado
histórico de correntes epistemológicas que, curiosamente, encontram-se em períodos tão
próximos22 e compartilham temas em comum. Na verdade, incorporar a doutrina do Mito do
Dado a maneira como pensamos o argumento da linguagem privada é uma forma de gerar
uma interpretação mais sistemática, clara e direcionada do argumento – pelo menos quando
pensamos o caso da criança. Quando endossamos Wittgenstein nas IF, estamos, também, nos
impedindo de cair no Mito. Quando buscamos as origens do motivo de um dado ser
mitológico, constantemente nos depararemos com a suposição pré-teórica e ficcional de uma
linguagem privada, que cumpriria o papel de dar investidura conceitual, por meio de conceitos
estritamente privados, a um dado que desempenharia, em última instância, a justificação final
para um conhecimento. Quando esse dado surge na forma de sensações individuais, como a
dor, somos amplamente tentados a acreditar que a sensação possa desempenhar esse papel
mitológico e, por si só, nos fornecer um estado cognitivo acerca de nós mesmos. Mas essa
enorme tentação, como tentei elucidar, está primordialmente embasada em uma errônea
maneira de conceber que o significado é uma associação entre a palavra e a sua entidade, no
caso, a sensação de dor, que torna-se imediatamente acessível por meio de uma ostensão
privada. Afastar essa incoerente visão é uma mudança de perspectiva que torna as coisas um
pouco mais claras. O argumento da linguagem privada e a doutrina do Mito do Dado
funcionam, complementarmente, nessa mesma direção. Ambos se engajam na luta contra a
imediatez, que já vem ocorrendo de maneira explícita e desenvolta desde os escritos
hegelianos; mas é nessas duas obras mais recentes que se torna patente o movimento de
intermediar aquele conhecimento que enganosamente nos parece o mais imediato por meio de
uma linguagem completamente exterior ao indivíduo. Detemo-nos, então, com uma espécie
estranhamento inerente: a filosofia foi deslocada do sujeito para a comunidade. E, em certa
medida, é exatamente esse estranhamento que pode nos auxiliar na empreitada de ver as
coisas dentro de uma nova perspectiva, onde o conhecimento não é mais um fenômeno
imediato que ocorre, independentemente, entre um sujeito e um objeto, mas sim um complexo
conjunto de crenças e de justificações, somente possíveis pela existência de uma linguagem
compartilhada e apenas profundamente verificáveis segundo os critérios de uma determinada
forma de vida.
21 A defesa racionalista muitas vezes argumenta que o conhecimento dos princípios universais não é intermediado por nenhum tipo de linguagem, sendo tão somente um movimento intuitivo da mente. 22 As IF foram publicadas em 1953, na Inglaterra, enquanto Empirismo & Filosofia da Mente foi publicado em 1956, nos Estados Unidos.
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Referências Bibliográficas
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