WISNIK Jose Miguel - São Vicente e o Santos de Pelé

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    Edio 20> _confisses de um torcedor feliz > Maio de 2008

    So Vicente e o Santos de PelTer sido exposto fora e beleza do futebol da Baixada Santista dos anos 50e 60, como se ele fosse normal, pode ter provocado danos irreversveis minha personalidade

    porJos Miguel Wisnik

    Nasci na Baixada Santista, no litoral paulista, em So Vicente, cidade quecompartilha a ilha do mesmo nome com a sua vizinha, a tradicional cidadeporturia de Santos, colada a ela como se fossem uma s cidade em duas. Viviali at os 18 anos, entre 1948 e 1966. Era um mundo fusional de cidade, praiae mangue, onde o futebol estava em toda parte. Nos terrenos vazios e ruas nopavimentadas, em terrenos alagadios de lama escura, a molecada esperava amuito custo a digesto do almoo para comear um jogo que terminava semprena boca da noite, e se estendia por todo o vero de frias. Muitas vezes volteicoberto da cabea aos ps, sempre descalo e sem camisa, daquela lama -como um camisa dez. Mais tarde, as aulas de educao fsica do meu ginsiose faziam na praia, e consistiam num jogo de futebol sem trgua, desde as 7horas at quase o final da manh, por conivncia de um professor interessadoem outras atividades, que nos deixava sob as ordens do apito final de um

    salva-vidas.

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    Tudo isso tinha correspondncia, claro, com o que se via em volta, no mundodos adultos. Como tantas cidades pelo Brasil, se no todas, So Vicente erapontuada de campos de futebol expostos rua, s praas, s vrzeas,rodeados de simples cercas baixas de madeira, onde se disputavam, a cadadomingo, os campeonatos da "diviso principal" e da "primeira diviso".

    O campo gramado do Itarar (onde tantas batalhas houve) nascia quasediretamente da areia da praia, e o do Beira-Mar, que ficava curiosamente dolado oposto ao mar, era uma praa irregular em que se distinguiam no cho,alm das reas e crculo central apagadios, trilhas de passantes dirios quetinham no campo de futebol o seu caminho, e onde, em trechos maisconcentrados de capim, algum cavalo pastava descuidado durante a semana,entre roupas postas a quarar. O Beija-Flor da Vila Margarida desentranhavaseu gramado impecvel das redondezas do mangue, em meio a um bairropobre, arriscando-se j, a partir de um modesto esboo de arquibancada, aventura de um ensaio de iluminao noturna. E o So Vicente Atltico Clube

    simulava um estdio real cercando o seu gramado, rente e duro, de murosaltos e alambrado, alm de uma fileira de arquibancadas toscas de madeiraescura e crua, com cabeas de prego mostra, mas ousadamente cobertas.

    Some-se ainda o Vidrobrs (time da fbrica em que meu pai trabalhava comochefe do forno), o Corinthians da Vila Cascatinha e o Continental da Vila Melo(relembrado, com um amor e humor dignos de Amarcord, no livro Bombas deAlegria: Meio Sculo de Histria do Canho da Vila, do ponta-esquerda Pepe,que viveu, anos antes que eu, esse universo vicentino, indo da para o SantosFutebol Clube). Ao lado da pequena estao ferroviria da Santos-Juqui, ocampo baldio do rubro-negro SPR (So Paulo Railway), espremido numentorno mais urbanizado, denunciava ainda, j camuflada pelo tempo, a origemhistrica de toda essa onda: a ferrovia inglesa, margem da qual, num ncleoque incluiu tambm clubes, fbricas e vrzeas, o futebol nasceu no Brasil.

    Era o futebol, acima de tudo, que evidenciava So Vicente e Santos como duascidades diferentes, embora grudadas num continuum urbano no qual o visitanteno perceberia falhas, primeira vista. O futebol vicentino era essencialmentelocal, com a modstia e a proximidade animada que lhe correspondem,enquanto o de Santos tinha dimenso estadual, com trs times da divisoprincipal: a Portuguesa Santista, o Jabaquara do torcedor Plnio Marcos, com

    seu inesquecvel uniforme rubro-amarelo e sua incurvel condio de time semestdio, e o Santos Futebol Clube. Este iria ganhar, como todos sabem,exatamente ao longo desses anos, a sua fulgurante dimenso nacional,internacional, mundial e nica. O que no diminua em absolutamente nada,que fique claro, a vibrao das tardes impecveis, ou dos dias dramticos degramados lamacentos e empoados, em que transcorriam turno e returno docampeonato vicentino.

    Atravs do campeonato, os bairros mais remotos e desiguais da cidade secomunicavam, se entremostravam e dividiam campos comuns. Do Catiapo Vila Voturu, da praia ao parque Bitaru, o fim de semana transfigurava o dia-a-

    dia numa festa de cores e convertia uma populao de operrios, empregadosdo comrcio, biscateiros e funcionrios em seres algo mticos, embora

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    irrecusavelmente terrenos no choque dos corpos com o capoto, eclodindo napotncia sonora dos chutes, em meio lama preta, seu cheiro penetrante comoo da grama - tudo a uma distncia curtssima, de tirar o flego.

    O goleiro Alicate, o meia-esquerda Barbosa e um centroavante baixinho e

    inexcedvel do Vidrobrs, cujo nome no me perdo ter deixado escapar damemria (Nilson, Nlio, Neizinho?), jogam cada vez melhor na minhalembrana (como diz Chico Buarque sobre os craques do passado). Tudo faziajustia frase de Nelson Rodrigues: "A mais srdida pelada de umacomplexidade shakespeariana."

    Na praia, esse movimento todo de clubes, divises e campeonatos se deixavaderramar numa dimenso atemporal e utpica. As praias de Santos e SoVicente, assim como as que se estendem desde a Praia Grande a Itanham ePerube, so planas e de areia dura, ao contrrio das areias fofas e movediasdo Rio de Janeiro. Quando a mar baixa, elas se oferecem como extasiantes e

    granuladas mesas de bilhar ao sol, prateadas ao crepsculo, na beira lquida efirme do vai-e-vem do mar. Ali se jogou, durante tardes infinitas, um futebolsem fronteiras definidas, e onde, a sim, no se distinguiam mais as duascidades. Com dois "gols-caixote" de cerca de 1 metro, demarcados compedaos de madeira ou chinelos, e participantes s vezes inumerveis,juntados ao acaso, o jogo se estendia interminavelmente, e em geral semi-esquecido do placar, que importava menos do que a conduo e a disputa dabola, o festival desperdiante dos dribles, o descortino inusual dos passes, abrisa e a gua do mar espirrando nas divididas pela beirada.

    O modo de organizao dessa cultura ldica era simples: quem chegava praia e se aproximava de um grupo j reunido em torno de uma bola, nomomento da formao dos times, entrava no jogo a partir do par-ou-mpar dedois representantes apontados para escolher os demais. Quem se apresentavapara um jogo em andamento, de preferncia em dupla, era admitido na formado um-para-cada-lado, at o limite numrico do generosamente razovel. Esseregime de incluso espontnea me parecia to natural como a prprianatureza, o mar e o morro.

    Ao longo dos anos, sempre que voltava a So Vicente, eu buscavaimediatamente o imprio das tardes na praia, entrando naqueles jogos onde se

    misturavam livremente classes sociais e faixas etrias, e reconhecendo nelesum dos bens preciosos que possvel compartilhar, de modo informal egratuito, no mundo.

    Nos anos 90, se no me engano, fui sentindo uma mudana que a conscinciademorou a registrar: tornava-se mais difcil entrar nos jogos. Elesescasseavam. Os grupos j chegavam equipados com camisetas bsicas, maspr-distribudas, traves e redes instaladas, e um cordo de isolamento com quecercavam e cerceavam o espao da disputa. Vrias vezes zanzei de jogo emjogo pela faixa da praia, azulssima e calmamente dourada, sob umatemperatura ideal na tarde declinante. (Surgiam agora, aqui e ali, jogos

    organizados de futebol feminino, disputados com uma fria indita por garotaspobres que pareciam reeditar na areia a vrzea de outros tempos.)

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    O futebol de praia, junto com a escola pblica e os campeonatos de vrzea,formava um campo de contato democrtico e informal que ia sendo desativado,demarcado e regulado pelos novos padres de consumo e por umareorganizao da separao social onde no cabia a mesma permeabilidade.

    Como acontece na constituio de todas as formas mticas, aquela utopialdica me foi dada a ver, com toda a sua evidncia, justamente quando ela semostrava j transitria e passada. A entrada em cena dos padres de consumode massa, a relativa converso de So Vicente em cidade-dormitrio deempregados de Santos e Cubato, seu crescimento demogrfico, aespecializao do entretenimento das populaes pobres que melhoraram devida nesse perodo, e sinais esparsos da violncia urbana iam se fazendosentir, indiretamente, naqueles sbados solitrios. E a zona despovoada quese estendia do campo do Beira-Mar at os fundos da ilha, prximos dosmangues, braos de mar e a ponte dos Barreiros, tinha se transformado numaglomerado urbano cujo nome no era outro seno Mxico 70.

    Estudos sociolgicos sobre futebol batem quase sempre na tecla dos conflitossociais que fazem do jogo a sua maneira de expresso - como se o jogo fosseantes de mais nada um instrumento da necessidade de manifestar os choquessociais, quase que a sua alegoria. Esses conflitos certamente esto e estavaml, naquela So Vicente. Mas eram menos esquemticos em si e menosvisveis para um garoto de classe mdia como eu, imerso nas possibilidadesdadas por uma ilha de fantasia que era, ao mesmo tempo, real. Aosociologismo automtico prefiro ainda o meu idealismo ginasiano - porque mefoi dado ver ali o substrato autenticamente ldico do jogo, e a margem de certagratuidade irredutvel que ele guardava. Essa margem vai ficando inverossmilnum mundo ostensiva, extensiva e intensivamente capitalizado.

    Em 1956, com 7 ou 8 anos de idade, me vi s voltas com a escolha do time atorcer. Para a criana j capturada pelo fascnio do futebol, talvez seja essa aprimeira deciso pressentida como um ato que alterar a sua vida inteira. Umrito de passagem oficiado no recesso de um foro ntimo imenso e quasevirgem. s vezes, essa deciso pode vir pronta e dada pela tradio familiar,como numa sociedade tradicional que j filiasse o nativo a um cl. Mas o meucaso, como imagino ser o de muitos, supunha a indeciso entre as alternativasdadas pelos clubes de So Paulo e a eleio, em princpio arbitrria e

    cruelmente gratuita, de um objeto para "Ideal de Eu" - com a conseqenteincluso forosa num campo de compartilhamento, no qual passamos aacreditar e ao qual passamos a pertencer como se essa identificao nuncativesse sido objeto de uma escolha arbitrria.

    Depois de um exame das alternativas, a minha dvida se concentrou em duaspossibilidades: o So Paulo Futebol Clube, que era o time do meu pai, e oSantos Futebol Clube, que tinha o atrativo de estar bafejado por uma aura deproximidade e de ter sido, depois de vinte anos sem ttulos, campeo no anode 1955. Era o velho e o novo (o smbolo do So Paulo era, exatamente, umvelho de barbas brancas). A poca era a da deciso do campeonato de 1956

    que, no por acaso, envolvia os dois protagonistas do meu dilema, ritualmenteconfrontados. Acredito que podemos escolher por imitao direta de um

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    modelo (o time do pai) ou escolher por contra-identificao, j dentro doesprito do jogo, onde a existncia do outro "me nega e me afirma ao menegar". No dia do jogo decisivo, escolhi o Santos Futebol Clube. Dormi ouvindoa partida pelo rdio, no intervalo do meio-tempo, quando o Santos perdia por 2a 1, e acordei campeo, com uma goleada de 4 a 2, e a foto do meu time

    estampada numa pgina inteira de jornal.

    Num dia qualquer de 1957, vi numa gazeta esportiva a foto de um garoto quevinha se destacando no Santos. No ano seguinte, esse garoto se chamavaPel e fazia parte da seleo brasileira, e a seleo brasileira, num domingoinfinito que parece a prpria final dos tempos, era campe do mundo. QuandoPel voltou para a Vila Belmiro - o pequeno estdio do Santos -, j se podiaouvir pelo rdio, no momento em que a bola chegava a ele, um alaridodiferente na platia, um clamor excitado e ansioso, uma marca de sagrao.

    Um acontecimento dessa potncia nunca se d sozinho, no s porque um

    time de futebol tem onze jogadores, mas porque um poder de imantaoparece arrastar, por acaso e necessidade, o que est sua volta. Pel estavaao lado de craques: do volante Zito, do centroavante Pago, do ponta-esquerda vicentino Pepe (que se reivindica, com razo, o maior artilheiro dahistria do Santos, contando com o fato de que "Pel no conta"). A eles sesomaram o centroavante Coutinho (cujas tabelinhas com Pel faziam dele umalter ego, uma soma e um plus, como se no bastasse, e deles uma dupla deheris geminados, maneira de certas narrativas mticas), Calvet, Dorval eMengalvio, vindos do futebol gacho, e ainda o goleiro Gilmar, o central Mauro,alm de Lima, o "coringa". Garantiu-se uma sobrevida desse perodo de glriascom a vinda do lateral direito Carlos Alberto, com as substituies posterioresde Larcio por Gilmar e deste por Cejas, de Mauro por Ramos Delgado, deCalvet por Orlando, de Pepe por Edu, de Zito por Clodoaldo, de Coutinho porToninho Guerreiro, de Dorval por Manoel Maria.

    Como sabido, o Santos ganhou - no perodo de 1956 a 1969, que coincide,na maior parte, com a minha "vida til" de torcedor na Baixada Santista - oscampeonatos paulista (58-60-61-62-64-65-67-68-69), brasileiro (61-62-63-64-65-66), Rio-So Paulo (59-63-64-66), sul-americano (62-63) e mundial (62-63),ao mesmo tempo que excursionava por todos os quadrantes. Eu e a torcida doSantos dessa fase somos uma espcie de avesso de Nick Hornby, o

    romancista ingls que escreveu, em Febre de Bola, a sua autobiografia detorcedor do Arsenal num perodo em que o time no ganhava de ningum. Asituao se invertia em toda linha: meu pai virou santista, como quase todos osso-paulinos nessa poca de exceo, e nos associou ao clube, com direito aduas cadeiras cativas (o So Paulo construa o Estdio do Morumbi eenfraqueceu o time; o Santos era irresistvel mesmo para as torcidasadversrias). A pequena Vila Belmiro, com sua calma e arejada atmosfera deprovncia, que passei a freqentar quase semanalmente, continha uma parteconsidervel da expresso mxima que o futebol j conheceu em qualquertempo (como se pode dizer de maneira insuspeita, nesse caso rarssimo, semmedo de estar cometendo um ato de prepotncia).

    O que se passou ali tem pouco registro em vdeo. Pel um ser de transio

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    entre o futebol do rdio e o da televiso, cujos teipes contriburam para torn-loo smbolo de alcance planetrio que ele . Mas, no que se tem para ver, falta amassa do dia-a-dia do futebol da Vila. Ali, aconteceu de tudo o que se pode e oque no se pode imaginar em matria de criao futebolstica. Como umfabuloso time que pde jogar junto muito tempo, o que no acontece mais, a

    combinao dos talentos e da genialidade se decantou e quintessencioufantasticamente. Um ou outro jogador mais limitado, como os laterais Dalmo ouGeraldino, resplandeciam como craques no corpo daquele time, induzidos porum ritmo de jogo que tanto podia arrebentar em onda branca quanto passearpelo campo como um tapete de espuma suave e implacvel. A alvura douniforme, por sinal, sem a poluio da logomarca do patrocinador, que noexistia, em contraste com as peles negras de sua linha atacante (descontadoPepe, a ovelha branca), e s se deixando marcar pelo distintivo alvinegro nocorao, era um cone e um ideograma de alguma frmula alqumica quetivesse sido alcanada ali.

    Entre os gols dessa poca que se perderam da memria coletiva, escolho umque no de Pel, mas de Coutinho, e no aconteceu na Vila Belmiro, mas noMaracan, numa noite de 1962, na primeira partida da deciso do MundialInterclubes, entre Santos e Benfica. A bola foi lanada pelo alto, vinda daintermediria pelo lado direito, caindo sobre o bico esquerdo da pequena rea,onde estava Coutinho. Ele matou de efeito, sem deix-la cair no cho,aproveitando tanto o impulso natural da bola quanto o seu desenho em curvapara dar um chapu de fora para dentro num primeiro zagueiro, e, em seguida,um outro chapu simtrico num segundo zagueiro, antes de concluir, sem quea bola tocasse o cho.

    Vi esse gol, de uma perfeio rara, uma nica vez - ele de antes daexistncia do replay. A televiso em preto-e-branco dobrava hipnoticamente obranco do uniforme alvinegro, redobrado ainda pelo contraponto visual da pelenegra com a bola branca (que s se usava, ento, para jogos noturnos). Tudonum flash - quela poca espocavam flashes, confundidos na luz da tela e nada memria com o prprio gol fulminante em tempo-espao mnimo. Mais doque produzir o efeito de "uma pintura", ele me lembra aquela tcnica dedesenho japons em preto-e-branco, o sumi, em que o artista arremata a obracom uma nica pincelada. No conheo ningum mais que se lembre dessegol. Um colega de ginsio me disse na poca que o tinha visto no cinema, mas

    nunca o reencontrei nas raras e extasiantes retrospectivas do Canal 100. Ofilme Pel Eterno no o mostra, reduzindo-o literalmente a uma mutiladorafrao de segundo. Li num jornal, dois dias depois do jogo, que, ao embarcarde volta para Portugal, um dirigente do Benfica declarou sobre o gol, numaautntica chave de ouro camoniana, que valera a pena atravessar o oceano, spara sofr-lo.

    Ao mesmo tempo, o Santos era um time real que tambm perdia. s vezes,Pel jogava mal - embora pudesse reverter esse fato a qualquer momento. Aequipe tinha pocas de crise. Mesmo num grande dia, podia se deparar comum adversrio altura, como o Palmeiras o foi tantas vezes nesse perodo. Os

    ataques eram mais francos, as defesas mais abertas. Podia ser goleado porum time pequeno, como aconteceu frente Portuguesa Santista e ao

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    Jabaquara. Esse , de todo modo, um corretivo a fazer s insistentesidealizaes de times mitificados e supostamente prontos e perfeitos desdesempre, contrapostos s equipes atuais, vistas como insatisfatrias desde oprimeiro instante. O imaginrio, e talvez em especial o brasileiro, tende arenegar a necessidade da contnua construo de um time por meio da

    invocao idealizante de um passado impecvel (como se o futebol no fosse,entre todas as artes, aquela que exibe o rascunho de si mesma como o seuresultado final).

    Nesse perodo, o time do Santos passou a transitar entre o bairro e o mundo,virando lenda transcontinental, com seus episdios inditos e folclricosconhecidos (guerras interrompidas na frica para ver os jogos, juzes depostospela torcida na Colmbia para que Pel, expulso, voltasse a campo etc.). Amemria, por outro lado, guarda restos de uma domesticidade provinciana:Pel, j campeo do mundo, como sentinela no quartel do 2o Batalho deCaadores, em So Vicente, onde cumpria o servio militar; contratado como

    gerente-propaganda da loja A. D. Moreira, perto da praa Baro do Rio Branco,no incio da sua fama; deixando a irm, de manh cedo, na porta do colgiopblico onde eu estudava.

    Ao voltar da Copa de 1970, ao lado do seu carro, num posto de gasolina,cercado de populares para os quais comentava um lance da Copa, Pel foiabordado por meu amigo Wanderley Sanches. Ele teria aberto espao entre oscuriosos e lhe perguntado com naturalidade: "Pode me dizer onde fica a ruaDjalma Dutra?" Alm do efeito de desconcertante trivialidade, Wanderley, umgnio maliciosamente (ou deliciosamente) erradio de poeta-fil-sofo, queaplicava sua metafsica originalssima ao exame das circunstncias, queriaconferir, segundo ele mesmo, se aquela cabea vista por milhes ao fazer oprimeiro gol da final contra a Itlia continha uma certa "informao local". Se ahistria verdica ou inventada por ele, no importa, nem a resposta. Ela sebasta como a cifra do que vivamos ali, e como a anteviso de uma experincianova que mal se prefigurava - o primeiro espasmo da localidade com a globa-lidade planetria.

    Quanto a mim, fui condenado a no poder deixar de viver tudo aquilo senocomo se fosse natural - insisto, como o morro e o mar. Um amigo dez anosmais novo, e tambm torcedor do Santos, ao ver filmes do auge da era Pel,

    afirmou sem hesitar que o fato de eu ter sido exposto, em tenra idade, foradaqueles fatos, "como se isso fosse normal", produziu danos irreversveis minha personalidade. Ele no foi mais explcito do que isso, mas a frase meatinge. Na melhor das hipteses, ela se refere minha incurvel tendncia aver sentido em tudo.