William Shakespeare - Otelo

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Otelo, o Mouro de Veneza (no original, Othello, the Moor of Venice) é uma obra de William Shakespeare escrita por volta do ano 1603. A história gira em torno de quatro personagens: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza), sua esposa Desdêmona, seu tenente Cássio, e seu sub-oficial Iago. Por causa dos seus temas variados — racismo, amor, ciúme e traição - continua a desempenhar relevante papel para os dias atuais, e ainda é muito popular.

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  • A tragdia Otelo foi pub licada pela primeira vez n o Quarto de 1622, tendo sido, no a n o seguinte, includa n o Flio das Obras Completas do autor, pub licado por Heminge e Con dell. Mas, apesar de to tardiamente impressa, esto acordes os comen tadores em fixar a data de 1604 corno a de sua composio. Em documento contemporneo (The Egerton Papers) conservou-se a notcia de que em agsto dsse ano a pea f ra representada diante da Rainha Elisabete, quando em visita a Sir Thomas Egerton, Lorde Guardador do Grande Slo.

    Como fon te literria apon ta-se apenas a traduo francesa da novela II Moro de Venezia, da coleo Hecatommithi, de Giraldo Cinth io, pub licada em 1584. Com exceo do n ome de "Disdernona", ligeiramente modificado, os das demais personagens so criao livre de Shakespeare, que a lterou tambm o desfecho da novela e infundiu profundidade nos caracteres.

    Otelo uma das poucas criaes h umanas - quatro o u cinco - que merecem o qua lificativo de perfeitas. "De Otelo'', escreveu Savage Landor, "teremos semfJre de descer, seja qual fr o caminh o que tomarmos". sempre assim, encornistica, a linguagem de quantos se ocupam com o estudo dessa obraprirna, que, u ltrapassando os moldes restritos da literatura, n os leva para os domnios da religio, nas jJrofundezas da a lma humana, em que se processa a eterna e sempre renovada luta entre os princpios do bem e do mal. E por isso que leitura ou representao dessa tragdia, n ossa ateno e atrada principalmen te para lago, essa figura mais rliablica do que humana, que ante nossa vista corri a .felitidade quase ednica de duas criaturas destitudas de malcia. "l!.,sses tipos tm a lguma a lma, e entre les eu me incluo, posso afianar-vos", a con fisso cnica do prprio lago, depois de classificar os servidores em dois grujJos: os obseq uiosos e flexveis, apaixonados da prpria escravido, que o tempo gastam como o asno do amo, s pela comida, e, depois de velhos: despedidos! e os que conservam o corao sempr aten to ao proveito pessoal, sob aparncia de zlo e a t de subservincia.

    Essa confisso feita a Rodrigo, por ser ste u ma criatura de todo em todo insignificante, com quem lago podia abrir-se

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    como se no falasse com n ingum. Mas n os monlogos q u e lago revela ao pblico todos o s ab ismos d e sua a lma teneb rosa, ajudando-nos a surpreender as causas ltimas de sua conduta, n o empenho de destruir a felicidade do A1 ouro. A maldade ele lago to grande q u e nem parece calculada; corno se no sasse dos ab ismos da a lma h u mana, mas dos da prpria maldade, da maldade em si, const ituindo a t para le mesmo uma tarefa difcil ajJresen tar as razes do dio q ue votava ao 1\!Iou ro e do desejo de cavar-lhe a ru11a. Por isso inventa mot ivos absurdos e at pueris, q u e le prjJrio se encarrega de destrui r, corno ao levantar a suspeita das relaes i lcitas en t re O telo e Em lia.

    Se certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo no, agir pretendo como se assim, realmente, houvesse sido. Tem-me afeio.

    nessa base ltima q u e le assen ta todo o edifcio de sua intriga, com tan to maior certeza de a lcanar o objetivo, por con tar com a nobreza de ca rter de Otelo. O desconh ecimen to da maldade h umana, a incapacidade de reconhecer a malcia sob a capa da baju lao, u m dos traos ca ractersticos de O telo, que se deixa jJrender sem, resistncia nas ma lhas da intriga de lago, at reconhecer tardiamen te a eno rmidade de sua vilania . Por isso mesmo, depois de certificar-se, a tnito, da realidade, sua alma simples de soldado s ocorre uma idia: a de ter sido vt ima do jJrjJrio diabo, no de urna cria tura h umana. "Procuro ver-lhe os jJs . . . Mas no . . . pura fbu la; o diabo no existe", diz ele, jJerfJlexo ante a grande ingen uidade, que o levou a acreditar nos mais grosseiros embustes da malcia.

    Otelo no ciumento; le prprio o declara. Foi o excesso de confiana que o f z fazer extremos, quando se julgou burlado em sua boa-f. Assim, a tragdia que leva o, seu nome no uma varian te a mais do tema tradicional do cime, que o prprio Shahespeare deveria ilustrar, por maneira magistral, a lguns anos mais tarde, ao escrever o Conto do Inverno. Ciu men to Leontes, que de nada t ira motivos para acusar Hermone, susjJeitando de todos, do amigo de infncia, do servidor

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  • P R E FAC I O

    fiel, que le julgava con luiado com aqule, para conspurcarlhe a h onra. Afos O telo confian te. "A o 1ela tardes ao senado de Veneza stes tristes acon tecimentos", diz le, "falai de mim tal como sou, realmen te: sem exagro, mas sem malcia. Ento tereis de referir-vos a a lgum que amou bastante, embora sem fJrudncia; a a lgum que n o sa bia ser ciumen to, mas que, excitado, cometeu extremos". Est exato o seu perfil moral.

    De Desdmona jJouco se jJoder dizer, por a ngustia r-nos o espetculo de seu sacrifcio, que n os compunge como a vista do sofrimento fsico n o banco de tormen tos e na mesa dos la boratrios de jJesquisas, em que as vtimas esto a tadas de ps e de mos, e a t de bca, s tendo os olhos para apelar para nossa comiserao. Ten do deixado a casa paterna para seguir a vida aventurosa do marido, nas vicissitudes dos acampamentos militares, ao ver desmoronadas as suas iluses de moa e b urlada sua confiana de esjJsa dedicada, n o conta, n o seu insulamen to, n em mesmo com o conslo da religio. Desdmona foi abandonada por Deus. Como tdas as personagens de Shakespeare, defronta-se com o fado adverso desajudada de qualquer apoio externo, n o sabendo e n o podendo apelar para n enhum poder mais alto que a amparasse naquela situao desesperada.

    por isso que, inst intivamen te, fechamos os olhos a n te o desenrolar da catstrofe dos ltimos atos, s perdurando em n ossa memria a figura da menina gentil do como da pea, q ue, n ossa vista, se t ransforma, torna-se adulta, revelan do firmeza nas decises, at ento n em suspeitada n o seu gn io retrado.

    Uma jovem to tmida, de esprito to sossegado e calmo, que corava de seus prprios anseios!

    como a conhecia o pai, q u e s explica jJor efeitos de bruxaria, "fJor feitios e drogas adquiridas de embusteiros", a t ransformao radical da filha , q ue, a despeito da idade, do crdito, e, mais do que t udo, das diferenas raciais, se apaixonara de um n egro.

    Os crticos inglses e, mais a in da, os a merican os, procura m explicar sse paradoxo artstico de ShahesjJeare atenuando a

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    diferena da cr de Otelo e de Desdmona, com fazerem daquele um represen tan te tpico da raa rabe, um "mouro" do Norte da frica , firmados principalmente no dito mordaz de lago, com relao a Otelo, q ue le chama de "cavalo berbere". M.as o prprio O telo q uem se incu m be de desfazer sses escrpulos dos comentadores modernos, que aberram das tradies do teatro isa belino, com declarar a sua cr, numa anttese que no se compadeceria com meias tin tas:

    O nome dela, que era to singelo como o rosto de Diana, ora se encontra como meu prprio rosto : negro e sujo.

    tambm Desdmona quem se incumbe de frisar o con traste entre o exterior de Otelo - "do que de olhar, to-s, a apavorava", como disse Brabncio, em sua perplexidade - e os traos morais do heri que lhe conq uistara a a lma embevecida:

    Submeteu-se-me o corao essncia mesma de meu marido, vi o retrato de Otelo em seu esprito, e a suas honras e partes valorosas minha sorte dediquei e a alma inteira.

    o instan tdneo que a pin tura j fixou em traos indelveis, da cena grandiosa em q ue Otelo arremata a sua explicao diante do doge, do pai de Desdmona e dos demais membros do govrno, e que se resume n os versos to citados e para sempre dignos de memria:

    Ela me amou vista dos perigos por que passei, e muito amor lhe tive, por se ter revelado compassiva.

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  • P E R S O N A G E N S

    O Doge de Veneza. BRABNCIO, senador. Outros senadores. GRACIANO, irmo de Brabncio. LUDOVICO, parente de Brabncio. OTELO, mouro nobre, a servio da repblica de Veneza. CSSIO, seu tenente. IAGO, seu alferes. RODRIGO, fidalgo veneziano. MONTANO, governador de Chipre antes de Otelo. BBO, criado ele Otelo. DESDtMONA, filha de Brabncio e espsa de Otelo. EMLIA, espsa de lago. BIANCA, amante de Cssio. Marinheiro, oficiais, gentis-homens, mensageiros, msicos, arau

    tos, criados. CE N A

    O primeiro a to, em Veneza; os demais, em um prto de mar de Chipre.

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  • A T O I

    CENA I

    Veneza . Uma rua. Entram Rodrigo e lago.

    RODRIGO - Cala-te ! No me fales. Aborrece-me demais verificar que justamente tu, lago, que dispunhas vontade

    17 2 OTELO

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    de minha blsa, como se teus fssem seus cordes, conhecesses isso tudo . . .

    IAGO - Mas escuta-me, ao menos ! Se eu j sonhei alguma vez com isso, podes abominar-me.

    RODRIGO - D ito me havias que lhe tinhas dio. IAGO - Despreza-me,

    se no fr assim mesmo. Trs pessoas de grande influncia aqui vieram falar-lhe, chapu na mo, com humildade, para que fizesse de mim o seu tenente. E por minha f de homem, tenho plena conscincia do que valho; no mereo psto menor do que sse. le, no entanto, consultando somente o orgulho e os prprios intersses, furtou-se com fraseado bombstico, recheado s de eptetos de guerra. Em concluso : no atendeu aos meus intercessores. "Pois j escolhi meu oficial", lhes disse. E quem le? Ora, por minha f, um matemtico, um tal Micael Cssio, um florentino, um tipo quase pelo prprio inferno fadado a ser uma mulher bonita, que nunca comandou nenhum soldado num campo de batalha e que conhece tanto de guerra como uma fiandeira; erudio de livros, simplesmente, sbre o que podem dissertar com a mesma proficincia que a dle os nossos cnsules togados; palavrrio sem sentido, carecente de prtica: eis sua arte. No entanto, meu senhor, foi o escolhido; ao passo que eu, que aos prprios olhos dle provas cabais j dera em Chipre e Rodes e em muitos outros pontos habitados por cristos e pagos, terei de, agora, ficar a sota-vento e calmaria,

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  • O T E L O

    s por causa do eleve-e-haver de um simples calculista, que - oh tempos! - vai tornar-se tenente, enquanto que eu - Deus me perdoe! continuarei sendo do Mouro o alferes.

    RODRIGO - Pelo cu, preferira ficar sendo carrasco dle.

    IAGO - J {t no h remdio. a maldio do ofcio: as promoes se obtm s por pedidos e amizades, no pelos velhos meios em que herdava sempre o segundo o psto do primeiro. Ora, senhor, ajuizai vs mesmo se razes tenho para amar o Mouro.

    RODRIGO - Assim, eu no ficara sob suas ordens. IAGO - senhor, acalmai-vos. Se me ponho

    sob suas ordens s em proveito prprio. Mestres nem todos podem ser, nem todos os mestres podem ter bons servidores. J tereis visto por a bastantes sujeitos obsequiosos, de flexveis joelhos que, apaixonados pela prpria escravido, o tempo todo gastam como o asno do amo, s pela comida; e, quando ficam velhos: despedidos. Chicote nessa gente muito honesta! Outros h que sabendo a forma externa revelar elo dever, as feies prprias, o corao conservam sempre atentos no proveito pessoal; enquanto aos amos dispensam mostras de servio, apenas, prosperam muito bem, e, ao mesmo tempo que os casacos lhes forram, a si prprios prestam boa homenagem. tsses tipos tm alguma alma, e entre les eu me incluo, posso afianar-vos. Pois senhor, to certo como serdes Rodrigo, se em verdade eu fsse o Mouro, no queria um lago sob minhas ordens, pois seguindo-o, apenas sigo a mim prprio. O cu testemunha:

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  • WIL L IA M S H A KE S P E A R E

    no me move o dever nem a amizade, mas, sem o revelar, s o intersse. Se as mostras exteriores de meus atos me traduzissem os motivos prprios do corao em traos manifestos, carregaria o corao na manga, para atir-lo s gralhas. Ficai certo: no sou o que sou.

    RODRIGO - Que sorte a dsse tipo de lbios grossos, se puder, realmente, levar isso at ao fim.

    IAGO - Chama o pai dela; desperta-o; corre atrs do Mouro, pe-lhe veneno na alegria; o nome dle proclama pelas ruas, os parentes dela deixa excitados, e ainda que le more em clima adorvel, atormenta-o com praga de mosquitos. Muito embora sua alegria seja verdadeira, com tais contrariedades a persegue, que a cr a perder venha.

    RODRIGO - Fica aqui mesmo a casa do pai dela; vou chamar cm voz alta.

    IAGO - Mas com vozes de mdo e uivos terrveis, como quando por negligncia, noite, o fogo estala num burgo populoso.

    RODRIGO - Ol, Brabncio! Senhor Brabncio, ol!

    IAGO - Ladres! Brabncio! Brabncio, despertai ! Ladres! Ladrs! Cuidai de vossa casa, vossa filha, de vossos cofres ! Acordai ! Ladre !

    (Brabncio aparece na janela.) BRABNCIO - Qual o motivo de to grande bulha?

    Que aconteceu? RODRIGO - Senhor, tendes a dentro

    tda vossa famlia?

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  • IAGO Vossos quartos esto fechados?

    BRABNCIO - Ora, qual a causa de perguntardes isso?

    JAGO - Com mil diabos, senhor, fstes roubado; por vergonha, ide vestir a toga; arrebentado tendes o corao; metade da alma j vos foi alienada. Agora mesmo, neste momento, um velho bode negro est cobrindo vossa ovelha branca. Tocai o sino, para que despertem os cidados que roncam; do contrrio, o diabo vos far ficar av. Despertai ! o que eu digo.

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    BRABNCIO Perdestes o juzo?

    RODRIGO - Veriervel

    Mas que isso!

    senhor, reconheceis-me pela voz? BRABNCIO - No; mas quem sois? RODRIGO - Rodrigo; assim me chamo. BRABNCIO - Pior nome no podias revelar-me.

    No te proibi de me rondar a casa? No me ouviste dizer, com leal franqueza, que para ti no era minha filha? Por que me vens agora, transtornado pela ceia e os vapores da bebida, com tua tratantagem maliciosa perturbar-me o repouso?

    RODRIGO - Meu senhor, senhor, senhor . . .

    BRABNCIO - Mas podes ficar certo de que minha coragem e meu psto na repblica tm poder bastante para fazer-te amargurar por isso.

    RODRIGO - Pacincia, bom senhor. BRABNCIO - Por que me falas

    em roubo? Estamos em Veneza; minha casa no uma granja.

    RODRIGO - Venervel senhor, vim procurar-vos com lisura.

    IAGO - Ora, senhor! Sois uma dessas pessoas que se negariam a servir a Deus, se fsse o diabo que lhes ordenasse. Porque viemos prestar-vos um servio e nos tendes na conta de velhacos, quereis que vossa filha seja coberta por um cavalo berbere e que vossos netos relinchem atrs de vs? Quereis ter corcis como primos e ginetes como parentes?

    BRABNCIO - Quem s tu, miservel l icencioso? IAGO - Sou um homem, senhor, que vim revelar-vos que

    vossa filha e o Mouro se acham no ponto de fazer o animal de duas costas.

    BRABNCIO - Sois um vilo. IAGO - E vs . . . um senador.

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    O T E L O

    BRABNCJO - Vais pagar-me. Conheo-te, Rodrigo. RODRIGO - Responderei por tudo. Mas pergunto-vos,

    senhor, se foi com vosso assentimento, vosso sbio conselho - como quase fico a pensar - que vossa linda filha, na calada de noite to escura, saiu em companhia de um sujeito nem melhor nem pior do que um velhaco por qualquer alugado, um gondoleiro, para aos abraos torpes entregar-se de um Mouro luxurioso; se, realmente, sabeis de tudo e concordais com isso, bem: nesse caso certo vos fazermos inominvel e atrevida ofensa. Mas se desconheceis o que se passa, ensina-me o costume que no tendes razo de censurar-nos dsse modo. No creiais que to falho eu me revele de cortesia, para vir agora zombar de vossa grande reverncia. Vossa filha - de novo vos declaro -se no lhe destes permisso, mui grave pecado cometeu, unindo o esprito, a beleza, o dever e seus haveres a um estrangeiro andejo e desgarrado daqui e de tda parte. Convencei-vos neste momento: se no quarto dela fordes ach-la, ou mesmo em tda a casa, entregai-me justia da repblica por vos ter enganado dsse modo.

    BRABNCIO - Acendei fogo! Ol! Dai-me uma vela ! Despertai todo mundo. ste incidente no destoa elos sonhos que j tive. S de pensar em tal, me sinto opresso. Luz, repito ! Uma vela !

    (Retira-se da janela.) L\GO - Adeus; no posso

    ficar mais tempo aqui. No prudente dado o meu psto - nem recomendvel

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    ser chamado a juzo contra o Mouro, o que aconteceria se eu ficasse. Pois sei-o bem: o Estado, muito embora venha a afligi-lo com alguma crtica, no pode dispensar-lhe os bons servios sem correr grande risco. Com to fortes razes o encarregaram da campanha contra os chipriotas - que ora se acha em curso que para a vida assegurar de todos no encontram ningum de igual calibre capaz de dirigir sse negcio. Por isso, muito embora lhe vote dio como s penas do inferno, sou forado pelas necessidades do presente a arvorar a bandeira da amizade que no passa de simples aparncia. Para terdes certeza de encontr-lo, encaminhai na direo do albergue do Sagitrio os que ho de procur-lo. L, com le estarei. E agora, adeus.

    (Sai.) (Entram Brabncio e criados, com tochas.)

    BRABANCIO - Minha infelicidade mais que certa. Fugiu mesmo. Do tempo desprezvel que me resta de vida no espero seno to-s tristezas. Onde a viste, Rodrigo? - Oh! que menina sem juzo ! Junto com o Mouro, foi o que disseste? -Quem quisera ser pai! - Por quais indcios vieste a reconhec-la? Oh! I ludiu-me de modo inconcebvel. Que te disse? -Ol! Trazei mais velas! Despertai todos os meus parentes! - Acreditas que se tenham casado?

    RODRIGO - o que parece, para vos ser sincero.

    BRABkNCIO - Oh cus! Que meios ela encontrou para sair de casa? Oh! que traio do sangue! Doravante,

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  • O T E L O

    pais, no confieis no esprito das filhas s por suas aes. No h fei tios capazes de alterar as qualidades das virgens inocentes? Nunca lestes, Rodrigo, qualquer coisa a sse respeito?

    RODRIGO - Em verdade, senhor, li qualquer coisa. BRABNCIO - Ide chamar o mano. - Oh! se a tivsseis

    desposado! - Cada um v por um lado. -Sabeis onde podemos apanh-la juntamente com o Mouro?

    RODRIGO - Estou bem certo de poder encontr-lo, se quiserdes dar-me uma boa escolta e vir comigo.

    BRABNCIO - Servi de guia. Baterei em tdas as casas; meu poder muito grande. -Trazei armas, ol! Fazei que venha logo a ronda! - Sigamos, bom Rodrigo; hei de saber vos ser agradecido.

    (Saem.)

    CENA I I

    Outra rua. Entram Otelo, lago e criados com tochas.

    IAGO - Muito embora no ofcio de soldado eu j tenha matado muita gente, assunto considero de conscincia premeditar um crime. Muitas vzes pensei nove ou dez vzes em fur-lo aqui, sob a costela.

    OTELO - Est melhor como est.

    IAGO - Sim; porm le palrava de tal modo e assacava tais vilezas contra vossa honra,

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    que o meu pouco temor de Deus a custo conseguiu sofrear-me. Uma s coisa vos pergunto, senhor: estais realmente casado? H segurana? Uma certeza podereis ter : que muito venerado entre ns o Magnfico, valendo sua voz como a do doge em tudo quanto nle toca ele perto. Se o divrcio no conseguir levar a cabo, le h de causar-vos tanto incmodo e desgsto quanto o D ireito, com sua fra tda, lhe afrouxar as amarras.

    OTELO - Desabafe como bem entender, porque os servios que eu prestei ao Conselho, suas queixas tclas suplantaro. Eis o momento de se saber - o que tornarei pblico quando essa ostentao constituir honra que o ser e a vida eu recebi ele bero de descendncia real e que meus mritos aspirar podem, de cabea erguida, posio que at hoje me alcanaram. Porque te juro, lago: se no fsse o amor que voto mui gentil Desdmona, eu no iria pr a minha livre condio ele solteiro em nenhum elo que viesse confin-la. No; por todos os tesouros do mar. Mas olha: luzes ! Vm nesta direo.

    IAGO - o pai, decerto, com os parentes que foram despertados. Seria mais prudente retirar-vos.

    OTELO - De forma alguma! Quero que me encontrem. Meus servios, meu psto, a alma tranqila vo demonstrar-lhes quem eu sou, de fato. Mas so les?

    IAGO Por Jano! No parece. (Entram Cssio e certos oficiais, com tochas.)

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  • O T E L O

    OTELO - So pessoas do doge e o meu tenente. Que a noite vos proteja, bons amigos. Que novidades h?

    CSSIO - O doge manda saudar-vos, general, e vos convida com o mximo de pressa a aparecerdes agora mesmo na presena dle.

    OTELO - Sabeis para que seja? CSSIO - Algum assunto

    com relao a Chipre, o que presumo; negcio muito urgente. J mandaram das galeras uns doze mensageiros desde que ficou noite, um aps o outro. Muitos dos membros do Conselho foram despertados e esto junto com o doge. Com bastante insistncia vos procuram, e, como em casa no vos encontrassem, enviaram mensageiros por trs partes diferentes, a fim de vos chamarem.

    OTELO - Foi bom haver sido eu por vs achado. Vou apenas dizer duas palavras a esta casa; depois vos acompanho.

    (Sai.) CSSIO - Alferes, que faz le aqui? IAGO - Ora essa !

    Esta noite abordou uma caraca terrestre. Sendo a prsa declarada legtima, realmente, le est feito.

    CSSIO - No compreendo. IAGO - Casou. CSSIO -IAGO - Ora essa, com . . .

    (Volta O telo.)

    Casou com quem?

    No vamos, capito? OTELO - Estou pronto. CSSIO -

    para vos convocar. A vem uma outra tropa,

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    IAGO - Muito cuidado, genera l ! Brabncio. le no vem com boas intenes.

    (En t ram B rabncio, Rodrigo e oficiais, a rmados e com tochas.)

    OTELO - Ol! Parai! RODRIGO Senhor, o Mouro. BRABNCIO - Morte a sse ladro!

    (De ambos os lados se desembainham espadas.) IAGO - Vs, Rodrigo? Senhor, estou convosco.

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  • O T E L O

    OTELO - Guardai essas espadas, que o sereno vai causar-lhes ferrugem. Venervel senhor, maior autoridade vossos anos impem que tdas essas armas.

    BRABNCIO - infame raptor! onde escondeste minha filha? Infernal como s, decerto a enfeitiaste. Apelo para todos os sres de sentido: se no fsse ter sido prsa por cadeias mgicas, como uma jovem to formosa e terna, to feliz, to avssa ao casamento que evirava a presena dos mancebos ricos e de cabelos anelados ele nosso Estado, como poderia, expondo-se irriso ele tcla gente, fugir ele seu guardio, para abrigar-se no seio escuro e cheio ele fuligem ele uma coisa como s, mais feito para susto causar elo que qualquer deleite? Sirva ele testemunha o mundo inteiro ele como praticaste encantamentos com ela, abominveis, abusaste ele sua mocidade inexperiente com inmeras drogas que no esprito atuam e o enfraquecem. Vou prov-lo. fato indiscutvel, evidente. Por isso te detenho agora e prendo como a embusteiro universal, que exerce arte ilegal proibida pelo Estado. Prendei-lo logo. Caso vos resista, usai ele fra, embora com perigo ele perder le a viela.

    OTELO - As mos detende, tanto os que esto comigo como os outros. Se minha deixa fsse ele combate, dispensaria o ponto. Aonde preciso que eu v, para vos dar cabal resposta sbre o ele que me argis?

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    BRABNCIO Para a priso, at que decorrido o tempo certo a uma sesso legal tu compareas, para me responderes.

    OTELO - E no caso de vos obedecer? Como h de o doge mostrar-se satisfeito, se ao meu lado tenho seus emissrios, incumbidos de me levarem para onde le se acha, para tratar de assuntos da repblica?

    OFICIAIS - Muito nobre senhor, o que le disse tudo verdadeiro. O doge se acha no Conselho, e estou certo de que Vossa Nobreza foi chamado.

    BRABNCIO - Como! O doge convocou o Conselho? E em plena noite! Levai-o! Minha causa de importncia; o prprio doge e os manos do govrno ho de sentir a ofensa como prpria. Se um crime tal no fr bem castigado, pagos e escravos mandaro no Estado.

    (Saem.)

    CENA II I

    A Cmara do Conselho. O doge e senadores, sentados mesa .

    Oficiais de p.

    DOGE - As notcias no so de todo acordes, porque possamos dar-lhes muito crdito.

    PRIMEIRO SENADOR - certo; minha carta fala em cento e setenta galeras.

    DOGE - Fala a minha s em cento e quarenta.

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  • O T E L O

    SEGUNDO SENADOR Pois a minha se refere a duzentas. l'vias embora no haja pleno acrdo nesse ponto -como si dar-se quando feito o cmputo por simples conjeturas - tdas elas concordes so em afirmar que a armada do turco ora veleja para Chipre.

    DOGE - quanto basta para um juzo certo. Um rro de mincias no me impede de ficar apreensivo quanto ao ponto de maior importncia.

    MARINHEIRO (dentro) - Ol! Ol! OFICIAL - Um novo mensageiro das galeras.

    (Entra u m marinheiro.) DOGE - Ento, que novas h? MARINHEIRO - A armada turca

    veleja para Rodes, o recado que ao senado mandou o signior ngelo.

    DOGE - E agora que dizeis dessa mudana? PRIMEIRO SENADOR -

    No pode ser; contra a boa lgica. uma iluso, to-s, para obrigar-nos a olhar para o outro lado. Reflitamos na importncia de Chipre para o turco, muito maior ainda que a de Rodes e como lhe ser muito mais fcil conquist-la, por ter poucas defesas, enquanto Rodes est muito armada: se em tudo isso pensarmos, haveremos de compreender que o turco no to cego que para ltimo deixe o que lhe importa primacialmente, abrindo mo de um ganho mais do que certo e, sobretudo, fcil, para correr um risco sem proveito.

    DOGE - No se trata de Rodes, certeza. OFICIAL - Chega outra novidade.

    (Entra um m ensageiro.)

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    MENSAGEIRO -reverendo e gracioso, esto de rota batida para Rodes, e em caminho

    Os otomanos,

    se reforaram com uma nova armada. PRIMEIRO SENADOR

    Tal qual como pensei. E quantas velas imaginais que sejam?

    MENSAGEIRO - Trinta. E agora fazem caminho inverso, dirigindo, sem rodeios o curso para Chipre. o que o signior Montano, vosso bravo e dedicado servidor, vos manda comunicar com a liberdade prpria de seu dever, pedindo inteiro crdito para a notcia.

    DOGE - Assim, mais que certo: vo para Chipre. E na cidade se acha Marcos Luccico?

    PRIMEIRO SENADOR - No; est em Florena. DOGE - Escrevei-lhe de nossa parte e urgncia,

    muita urgncia, inculcai-lhe. PRIMEIRO SENADOR A vem Brabncio

    com o valente Mouro. (En tram B rabncio, Otelo, lago, Rodrigo e oficiais.)

    DOGE - Bravo Otelo precisamos mandar-vos neste instante contra o imigo comum, contra o otomano.

    (A Brancio.) No vos vira, gentil senhor; bem-vindo. Vosso conselho e ajuda nos faltaram na reunio desta noite.

    BRABNCIO - E a mim os vossos. Perdoe-me Vossa Graa, mas no foram minhas obrigaes nem quaisquer novas relativas ao Estado que do leito me tiraram a esta hora; os intersses gerais me importam pouco, pois a minha mgoa particular de tal modo

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  • transbordante e impetuosa que em seu curso ubmcrge e absorve tdas as tristezas em se alter
  • W ILLL\ ;V I S H A K E S P E A R E

    BRABNCIO Humildemente vos agradeo. Aqui se encontra o homem, ste Mouro, que foi, ao que parece, por especial recado aqui chamado para assuntos do Estado.

    DOGE E SENADORES Penaliza-nos semelhante notcia.

    DOGE (a O telo) - E vs, que tendes sbre isso a responder?

    BRABNCIO - Nada; assim mesmo. OTELO - Muito acatados, graves e potentes

    senhores; muito nobres e aprovados mestres, em tudo justos; que eu tivesse raptado a filha dste senhor velho, mais do que verdade, como certo j t-la desposado. A fronte e o cimo de minha ofensa vo at a sse ponto, nem mais nem menos. Rude sou ele fala, estranho ao doce lingua jar da paz, pois desde que stes braos alcanaram a fra ele sete anos, at agora, deduzidas algumas nove luas, to-smente, em mais nada se empregaram com mais amor elo que s aes dos campos abarracados. Sbre muito pouca coisa posso falar no vasto mundo se no fr ele batalhas e contendas. Por isso, quando exponho assunto prprio no saberei orn-lo com vantagens. Mas se vossa graciosa pacincia me permitir, um plido relato farei, sem digresses, ele todo o curso de meu amor, que drogas, que feitios, que conjuras, que mgica potente -pois disso tudo, agora, que me acusam usei para ganhar a filha dle.

    BRABNCIO - Uma jovem to tmida, de esprito to sossegado e calmo, que corava de seus prprios anseios ! E a despeito

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  • O TE L O

    da natureza, do pas, da idade, do crdito, de tudo, apaixonar-se do que de olhar, to-s, a apavorava! S um juzo coxo e falho que afirmara que desviar-se a sade poderia das leis da natureza. necessrio que as infernais astcias admitamos, quanto tal coisa ocorre. Por tudo isso, de novo afirmo que, com algum composto de influncia sbre o sangue, ou beberagem enfeitiada para tal efeito, le sbre ela atuou.

    DOGE - Somente a simples afirmao no basta para a prova, porque, sem testemunho mais patente, no passa de suspeitas e aparncias sem consistncia o que afirmais contra le.

    PRIMEIRO SENADOR - Mas, Otelo, falai! Por meios indiretos e violentos dominastes, acaso, e envenenastes o amor dessa donzela? Ou deu-se tudo por meio de declaraes e ditos sinceros, como uma alma a outra alma fala?

    OTELO - Suplico-vos mandar buscar a dama no Sagitrio, permitindo que ela diante do prprio pai relate o caso. Se em sua fala encontrardes algo indigno sbre minha pessoa, despojai-me do meu ofcio, da confiana antiga que em mim depositveis; mais: que vossa sentena atinja minha prpria vida.

    DOGE - Trazei aqui Desdmona. OTELO - Ide, alferes,

    busc-la, pois sabeis onde ela se acha. (Saem lago e alguns criados.)

    E enquanto ela no vem, quero, com a mesma lealdade com que ao cu confesso as faltas do meu sangue, contar a sses ouvidos

    3'

  • W f L L J .\ :'11 S H A K E S P E .-\ R E

    severos como pude apaixonar-me dessa donzela e ser por ela amado.

    DOCE - Contai-nos isso, Otelo. OTELO - O pai dela me amava; convidou-me

    muitas vzes, fazia-me perguntas sbre a histria ele tcla a minha viela, ano por ano, prlios, cercos, lances por que passara. Enarrava-lhe tudo, desde os dias de minha infncia, at o momento em que le me mandara falar, enumerando-lhe si tu aes perigosas, acidentes no mar e em terra, em tudo emocionantes, como salvei a vida por um fio, na brecha perigosa, como fra pelo insolente imigo aprisionado, vendido como escravo, e ele que modo, depois, me resgatara, e dos sucessos que em minhas viagens a sses se seguiram, quando, ento, lhe falava ele cavernas descomunais, rochedos escabrosos, ilhas desertas, montes cujos picos no cu iam tocar. E assim por diante, no mesmo tom dos canibais falava, que uns aos outros se comem, de antropfagos e de homens com cabea sob os ombros. Para isso ouvir, Desdmona se achava sempre inclinada; mas os afazeres ela casa muitas vLes a obrigavam a se afastar, o que ela quase sempre depressa arrematava, porque viesse novamente, com

  • O T E L O

    roubar-lhe algumas lgrimas, no instante ele lhe narrar algum sucesso triste por que passara minha mocidade. Minha histria concluda, e la me dava por tanta dor um mundo ele suspiros e jurava em verdade, que era estranho, mais elo que estranho, por demais tocan Le, muito comovedora. Desejara jamais a ter ouvido, mas quisera que o cu houvesse feito dela sse homem. Agradeceu-me e disse-me que, quando algum amigo eu viesse a ter, que a amasse, bastaria ensinar-lhe o modo simples cle comar minha histria, para gue le, sem falta, a conquistasse. Aproveitando tal insinuao, d isse-lhe tudo. Ela me amou vista elos perigos por que passei, e muito amor lhe tive, por se ter revelado compassiva. Foi essa tcla a minha bruxaria. [as a vem a clama; ela que fale.

    (En t ram Desdenwna, lago e jJessoas do sqito.) DOCE - Quero crer que urna histria tal corno essa

    seduziria minha prpria filha, caro Brabfmcio. Examinai por outro prisma o assunto que se acha mutilado. mais vantagem fazermos uso ele armas j partidas, do que elas mos vazias.

    BR.-\.RNCIO - Por obsquio, permiti que ela 1alc. Dizendo ela yue assim favoreceu essa conquista, caia-me a destruio sbre a cabea, se novamente eu dirigir a ste homem qualquer doesto ofensivo. Aproximai-vos, gentil menina, e respondei-me : acaso percebeis neste crculo seleto algum a r1uem eleveis mais obedincia?

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    DESDMONA - Meu nobre pai, percebo um dividido dever: A vida e a educao vos elevo, educao e vida que me ensinam a saber respeitar-vos. Sois o dono do meu dever, sendo eu, pois, vossa filha. Mas tambm aqui vejo meu marido; e quanto minha me vos foi submissa, preferindo-vos mesmo aos prprios pais, tanto agora pretendo revelar-me em relao ao JVIouro, a quem perteno.

    BRABNCIO - Deus esteja convosco. J acabei. Se Vossa Graa desejar, passemos a tratar dos negcios da repblica. Antes filha adotiva que gerada. Mouro, vem para c. De todo o corao te dou aquilo que se j teu no fsse, eu recusara de todo o corao. Por vossa causa, minha j ia, sinto a alma jubilosa, por no ter outra filha ; tua fuga ensinado me houvera a ser tirano, pondo-a no cepo. Terminei, senhor.

    DOGE - Permiti-me falar como vs mesmo ele certo falareis, pronunciando uma sentena que degrau e escada vai ser para que os dois enamorados possam vir a integrar-se novamente no vosso afeto. O que no tem remdio est sanado s em ver o perigo j passado. Chorar, depois de salvo, uma desgraa, chamar outra ainda mais feia e crassa. O que nos fr tirado pela sorte, qual perda h ele ser tido no ele porte. O roubado que ri, rouba ao ladro; o que chora, a si rouba outra poro.

    BRABNCIO -Que o Turco, ento, roubar-vos Chipre venha; vamos rir e cantar c o m voz roufenha.

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  • O T E L O

    S escuta de bom grado uma sentena quem em proveito prprio nela pensa . Mas fica duplamente atribulado quem perder a pacincia ante o recado. Conselhos, ou de acar ou de fel, ambguos sempre so como hidromel. Palavras so palavras; pelo ouvido jamais o corao ser atingido. Humildemente suplico a Vossa Graa que passemos aos assuntos do Estado.

    DOGE - O Turco se dirige para Chipre com preparativos po_derosos. Otelo, conheceis perfeitamente os meios de defesa daquela praa. E embora tenhamos nela um lugar-tenente de indiscutida competncia, a opinio pblica, a mais alta soberana do xito, vos distingue com o seu voto. Por isso, ser foroso embaardes o brilho de vossa recente fortuna com esta expedio por demais teimosa e barulhenta.

    OTELO - A tirania do hbito, severos senadores, da cama de ao e pedra da guerra fz-me um leito de penugem. Confesso que as emprsas arriscadas sempre me deixam lacre e disposto. Assim, aceito a direo da guerra contra sses otomanos. :Mas, curvando-me mui respeitosamente ante vs outros, suplico que tomeis as convenientes disposies para que minha espsa alojamento venha a ter e trato condignos de seu alto nascimento.

    DOGE - Em casa do pai dela. BRABNCIO - No concordo. OTELO - Nem eu . DESDMONA - Nem eu tampouco. No desejo

    voltar a morar l, porque no deixe de meu pai os sentidos impacientes com minha vista . Mui gracioso doge, favorveis ouvidos concedei para o que vou dizer, porque na vossa

    39

  • palavra eu achar possa um privilgio para minha fraqueza.

    DOGE - Que desejas, Desdrnona?

    D E S D >f O N A - Eu amei o Mouro, para viver ju nto com le, o que proclama ao mundo todo minha ao violenta. Submeteu-se-me o corao essnc i a mesm a d e meu marido, v i o retrnl de Otelo em seu esprito, e a suas honras e partes valorosas, minha sorte

    4 0

  • O T E L O

    e a alma inteira diquei. Assim, meus caros senhores, se cu ficar qual parasita e la paz e le partir para essa guerra, privada me verei elas qualidades que am-lo me fizeram, sbre ser-me necessrio agentar sse i n tervalo moroso e fa tigante ele sua ausncia. Deixai, pois, que com le cu tambm siga.

    OTELO - D a i-lhe essa permisso. Por testem unha invoco o cu de como fazendo sse pedido no desejo dar pbulo ao paclar elos apetites nem acalmar o ardor da mocidade que j deixei ele lado - ou secundrias satisfaes pessoais, mas to-smente para fazer j ustia a seu esprito. E no permita o cu que em vossos puros coraes a admitir venhais que eu possa prej udicar negcios de tal monta, de tanta gravidade, s porque ela vai ficar ao meu lado. No ; se um dia o alado devaneio ele Cupido me selar com sensual embotamento as faculdades especulativas e os rgos para a ao, vindo os prazeres a manchar meu dever e corromp-lo, que cio meu elmo vossas cozinheiras faam um caldeiro, e os mais indignos opositores se levantem contra o apro em que sou tido.

    DOCE - Sej a como vos aprouver, ou ela fique ou siga. O assunto exige pressa; diligente eleve ser a resposta.

    PRil\tIEIRO SENADOR - necessrio partirdes esta n oite .

    OTELO - De bom grado. DOCE - Amanh s nove horas voltaremos

    a reunir-nos a qu i . Deixai, O telo,

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  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    um oficial, para que vos transmita nossas ordens e o mais que diz respeito a vosso psto e s honras inerentes.

    OTELO - Se concordais, o alferes pessoa honesta e de confiana. A seus cuidados confio minha espsa e tudo quanto Vossa Graa quiser depois mandar-me.

    DOGE - Que seja assim. Boa noite para todos. (A Brabncio.)

    Mui to nobre senhor, se de beleza a virtude no fr destituda, mais belo vosso genro do que prto.

    PRIMEIRO SENADOR - Adeus, valente Mouro; s bondoso para Desdmona.

    BRABNCIO - Cuidado, Mouro! Se olhos tens, abre-os bem em tda a parte; se o pai ela enganou, pode enganar-te.

    (Saem o doge, senadores, oficiais, etc.) OTELO - Pela sua lealdade empenho a vida!

    Honesto lago, confio-te Desdmona. D-lhe por companheira tua espsa e, logo que te fr possvel, leva-a para junto de mim. Vamos, Desdmona; s disponho de uma hora para assuntos mundanos e ordens vrias, que h de ser-te dedicada tambm. necessrio ao tempo nos mostrarmos obedientes.

    (Saem Otelo e Desdmona.) RODRIGO - lago ! . IAGO - Que disseste, nobre corao? RODRIGO - Que imaginas que eu vou fazer? IAGO - Ora, deitar-te e dormir. RODRIGO - Vou imediatamente afogar-me. IAGO - Bem; se fizeres tal coisa, nunca mais te terei ann

    zade. E por que isso, meu tolo? RODRIGO - tolice viver quando a vida um tormento,

    dispondo ns da prescrio de morrer, quando a morte nosso mdico.

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  • O T E L O

    :_-\GO - Oh, miservel ! Contemplo o mundo h quatro vze - sete anos, e desde que me tornei capaz de distinguir de uma injria um benefcio, nunca encontrei um homem que :oubesse corno amar a si mesmo. Antes de eu dizer que pretendia afogar-me por causa de uma galinha-d'angola, trocaria a forma humana pela de um bugio. ODRIGO - Que devo fazer? Confesso que me sinto enveruonhado, por me sentir a sse ponto tomado de paixo; mas no encontro em minha virtude o remdio para isso.

    L\GO _:_ Virtude? Urna figa! Depende de ns mesmos sermos assim ou assado. Nossos corpos so nossos jardins, cujos jardineiros so nossas vontades; de modo que se quisermos plantar urtiga e semear alface, deixar hissopo ou arrancar tomilho, prov-los apenas de determinada espcie de erva ou ench-los de muitas variedades, esteriliz-los pela preguia ou cultiv-los pelo trabalho.. . Ora, o poder exclusivo e a fra reguladora de tudo reside apenas em nossa vontade. Se a balana de nossa vida no dispusesse de um prato de razo para contrabalanar o da sensualidade, o sangue e a baixeza de nossa natureza nos conduziriam s mais absurdas situaes. Mas possumos a razo para acalmar nossos instintos furiosos, os acleos da carne, os desejos desenfreados. De onde concluo que o que denominais amor no mais do que um sarmento ou urna vergntea.

    RODRIGO - No pode ser. IAGO - apenas um apetite do sangue e uma concesso da

    vontade. Vamos! S homem! Afogares-te? Faze isso com gatos e cezinhos recm-nascidos. Declarei que sou teu amigo e me confesso ligado ao teu servio por cabos de resistncia tda prova. Nunca te poderei ser to til como agora. Pe dinheiro na blsa, toma parte nesta guerra, desfigura as feies com uma barba postia. Repito: pe dinheiro na blsa! No possvel que Desdmona continue apaixonada do Mouro por muito tempo - pe dinheiro na blsa ! -nem le dela. Foi um como muito violento, da parte dela, ao que ainda ves seguir-se uma separao correspondente. Pe dinheiro na blsa! sses mouros so muito inconstantes em suas inclinaes - enche de dinheiro tua blsa! - O

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  • W I L L I . \ 1\I S H A K E S P E A R E

    prato que para le, agora, to agradvel como alfarrba, dentro de pouco lhe ser to amargo como coloquntida. fatal que ela o troque por um moo; quando ficar saciada do corpo dle, perceber o rro da escolha que fz. Ter ele troc-lo por outro: fatal. Por isso, pe dinheiro na blsa ! :Mas se queres absolutamente condenar-te s penas eternas, faze-o por um processo mais delicado cio que o afogamento. Arranja quanto dinheiro puderes ! Se a santidade de um juramento frgil entre um brbaro errtico e urna veneziana arqui-sauicla no fr coisa muito dura para minha inteligncia e para tclas as tribos elo inferno, acabans gozando-a . Por isso, trata ele arranjar dinheiro ! A peste para o teu afogamento! Nada tem que ver com ste negcio. Fars melhor enforcando-te depois de satisfazeres os teus desejos elo que afogando-te sem proveito nenhum.

    RODRIGO - Dispes-te a apoiar minhas esperanas, no c< t so de eu me firmar nesse propsito?

    JA.GO - Podes contar comigo. Vai; arranja dinheiro. J te disse muitas vzes e torno a diz-lo pela centsima ve1 : odeio o Mouro; tenho para isso motivos arraigados no corao. No te faltam, tambm, para isso razes igualmente ponderosas. Unamo-nos, portanto, para nos vingarmos dle. Se lhe puseres um par de chifres, para ti ser um prazer, e para mim um divertimento. O seio elo tempo encerra muitos acontecimentos que tero de concretizar-se. Em frente ! Marcha ! Trata de arranjar dinheiro. Amanh voltaremos a falar sbre isso. Adeus.

    RODRIGO - Onde nos encontraremos amanh? IAGO - No meu aposento. ROD R I GO - E;tarei l bem cedo. IAGO - Vai ; adeus. Compreendeste, Rodrigo? RODR JGO - Que d i ssestes? I AGO - Afastai a idia ele afogamento, estais ouvindo? RODRIGO - J refleti melhor; vou tratar de vender tdas

    as minhas terras. JAGO - Va i; adeus. Pe bastante dinheiro na blsa.

    (Sai Rodrigo.) Assim, de um tolo fao minha blsa.

  • O T E L O

    Profanaria meus conhecimentos, se gastasse meu tempo com um idiota desta marca, a no ser para proveito prprio ou por distrao. Odeio o Mouro. H quem murmure que le o meu trabalho j ;i fz em meus lenis. Se certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo no, agir pretendo como se assim, realmente, houvesse sido. Tem-me afeio. Meu plano, dsse modo, sbre le vai atuar com mais certeza. Cssio um homem de bem. Ora vejamos como posso a lcanar o lugar dle e enfeitar meu desejo com dobrada patifaria. Como? De que modo? Reflitamos. Deixar passar o tempo e embair-lhe os ouvidos, declarando-lhe gue Ctssio mostra muita intimidade com a mulher dle. O exterior de Cssio e seu todo insinuante o predispem a tornar-se suspeito fcilmcnte. Foi feito para seduzir mulheres. De n atureza o l\!Iouro livre e aberta ; honesto julga ser quem aparenta, to-s, honestidade. Sem trabalho pelo nariz poder ser levado, tal qual os asnos. Pronto; j est

  • A T O I I

    CENA I

    Prto de mar em Chipre. Praa perto do cais. Entram lvfon tano e dois gentis-homens.

    MONTANO - Que distinguis no mar, desde essa ponta? PRIMEIRO GENTIL-HOMEM -

    Nada a distncia; as ondas se encapelam; entre o alto mar e o cu no se percebe vela nenhuma.

    MONTANO - O vento falou alto para terra, parece-me. Jamais to desenfreada tempestade abalou nossas ameias.

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  • W 1 L L I _\ M S H _-\ K E S 1' E .-\ R E

    Se em pleno mar rugiu dessa maneira, que costela de roble ficou firme no encaixe, ao derreterem-se sbre ela montanhas clsse porte? Que teremos?

    SEGUNDO GENTIL-HOMEM -A disperso, to-s, da armada turca . Basta a praia espumante examinares. S parece que as ondas ralhadoras as nuvens chicoteiam; a mareta de crina gigantesca, sacudida pelo vento, parece jogar gua na Ursa inflamvel e apagar as guardas elo plo sempre fixo. No vi nunca revolta assim das ondas irritadas.

    :.\IONTANO - Se no pde abrigar-se a armada turca nalgum prto ou baa, est perdida. impossvel que houvesse resistido.

    (En t ra u m terceiro gen t il-homem.) TERCEIRO GENTIL-HOMEM -

    Novas, rapazes! Acabou-se a guerra! Maltratou a furiosa tempestade os turcos ele tal jeito, que seus planos ficaram mancos. Um navio nobre de Veneza assistiu ao pavoroso naufrtgio e sofrimento ela mor parte da armada clles.

    i\IONTANO - Como! ento verdade? TERCEIRO GENTIL-HOMEM -

    O barco est no prto; ele Veneza. Miguel Cssio, tenente do guerreiro mouro, Otelo, saltou em terra ; o prprio :Mouro se acha no mar, com carta branca, a caminho de Chipre.

    l\lONTANO - Muito a legre me deixa essa notcia ; um muito digno governador.

    TERCEIRO GENTIL-HOi\IL\I - :.\Ias sse mesmo Cssio, muito embora se exprima com confiana sbre as perdas dos turcos, est triste,

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  • O T E L O

    rezando pela salvao elo Mouro, pois violenta e medonha tempestade clle o fz separar-se.

    _ IO;\'T ANO - O ,cu o atenda, pois servi sob o Mouro; le soldado na mais lata acepo. Mas vamos logo para o prto, no s porque vejamos o barco recm-vindo, como para olhar tambm elo lado que h ele vir-nos o bravo Otelo, at que a nossos olhos de aparea o mar e o azul-celeste.

    -:-ERCEIRO GENTIL-HOMEJV[ -Faamos isso, sim; cada momento nos traz a expecta tiva de outros barcos.

    (Ent ra Cssio.) - 10 - :'l leus agradecimentos aos valentes

    e ta i lha valor osa, por mostrardes nta afeio ao Mouro. Oh! Que lhe clem ' cus defesa contra os elementos,

    _ i- o perdi num mar perigosssimo. _ ::\ T. \:\'O - Est

  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    SEGUNDO GENTIL-HOMEM - Perfeitamente. (Sai.)

    MONTANO -casou-se o vosso general?

    CASSIO - Por sorte; traz uma espsa que ultrapassa tda descrio e alta fama, deixa longe os conceitos da pena aduladora, e que no respeitante s qualidades naturais ela criao, deixa estafado, s com ela, o inventor.

    Mas meu bom tenente,

    (Volta o segundo gent il-homem.) Ento, quem era?

    SEGUNDO GENTIL-HOMEM - um certo lago, alferes junto ao nosso general.

    CASSIO - Realizou a travessia em boas condies e pouco tempo. A prpria tempestade, o mar furioso, os ventos sibilantes, os penedos escarpados, os bancos movedios, traidores ele emboscada para os barcos inocentes prenderem - todos, todos, como se cio sentido ela beleza fssem clotaclos, transmudada sua natureza nociva, permitiram que por les passasse, s e salva, a divina Desclmona.

    MONTANO - Quem ela? CASSIO - A de quem vos falei, a capitoa

    de nosso capito. Em companhia le a mandou elo destemido lago, cuja vinda ultrapassa nossos clculos ele uma semana. poderoso Jove, protege Otelo e enfuna suas velas com teu bafejo todo poderoso, porque abenoar le nos venha o prto com seu navio, palpitar nos braos carinhosos de sua bem-amada,

    50

  • O T E L O

    reacender-nos o esprito apagado e trazer alegria a tda Chipre !

    (En tram Desdmona, Emlia, lago, Rodrigo e sqito.) Oh! Vde! J desembarcados foram os tesouros do barco. A joelhai-vos, moradores de Chipre ! Salve, dama! Possa diante de t i ficar a Graa celestial, por detrs, por tda a parte, envolvendo-te tda.

    DESDMONA - Agradecida, valente Cssio. Que notcia tendes do meu marido?

    CASSIO - Ainda no chegou. No sei mais nada, salvo que le se acha com sade e que breve aqui estar.

    DESDMONA - Contudo, tenho mdo. Qual a causa por que vos separastes?

    CSSIO - A atroz luta das guas e do cu me afastou dle. :Mas, ouvi : uma vela !

    VOZES (dentro) - Vela ! Vela ! (O uvem-se t iros d e canho.)

    SEGUNDO GENTIL-HOMEM -O barco est saudando a cidadela. outro amigo.

    CASSIO - Vai ver o que h de novo. Bem-vindo, bom alferes. (A Emlia .) Vs, senhora, tambm sois mui bem-vinda. Que no seja causa de se enturvar vossa pacincia, bondoso lago, a extenso dos meus saudares. minha educao que me confere saudaes de tamanho atrevimento.

    (Beija a Emlia.) IAGO - Se ela vos desse, meu senhor, dos lbios

    tanto quanto da l ngua me concede, em pouco tempo ficareis farto.

    DESDMONA - Coitada, ela nem falai

    . !

  • W I L L I . \ '.I S H A K E S P E A R E

    I A G O -Qu ando quero dormir que o percebo. :'vias em frente ele Vossa Senhoria

    No? Demais.

    a espertalhona guarda um pouco a l n gua no corao e ameaa em pensamento.

    EMiLIA - 1 1o tendes causa para assim falardes. IAGO - Vamos; fora ele casa sois pinturas;

    nos quartos, sinos; n a cozinha, gatos; santas, quando ofendeis; demnios puros, quando sois ofendidas; chocarrciras no govrno ela casa e boas clonas elo lar quando na cama.

    DESD i\ f O N A - O h ! vai saindo, caluniador!

    IAGO - Quero ser turco, caso no seja assim. Brincais o dia inteiro; s na carna h trabalho verdadeiro.

    E ;\ f i L L \ - No haveis ele escrever meu elogio. I AGO - ;\; em o desejo. DESD I O l\' A - E como escreverias,

    se incu m b i do te visses ele elogiar-me? I A G O - Cu idado, gen t i l clama, que ou tra coisa

    no sou, t iran te um critico modesto. DESD f O N A - Tentai, tenta i ! - Algum foi at ao prto? IAGO - Foi, sim, senhora. DESD f ONA - Alegre no me s i n to, mas engano

    meu prprio estado, simulando o gsto. Vamos: ele que maneira me elogiaras?

    I J\ G O - J estou quase no ponto; mas elo casco me sa i sempre a inveno como ela bJsa visco ele passarinho: vem o crebro, e tudo o mais, grudado. :Minha musa, porm, comea a sen tir dores fortes e luz, por fim, tL't isto: Se ela tiver espri to e beleza, aqule ddiva; esLa, 1 1 a L ureza .

    D ESD :\ fO N1\ - t i m o ! E s e fr preta e espirituosa?

    52

  • O T E L O

    I .-\ G O - Preta e espirituosa . . . Que m is t ura ! :vias um branco h de achar para a fei ra.

    DESDMONA - D e mal para pior. E:.\l LIA - E se lr bela e tonta? l AGO - i\Iulher tonta no h, sendo bonita,

    pois sabe arranjar filho e ser ca tita . DESDMONA - So paradoxos velhos, para fazer rir os to

    los nas cervej arias. Que m sero elogio reservaste para as feias e tontas?

    IAGO - No h feia to tla que no possa nas belas e sabidas fazer mossa.

    DESDJ\fONA - Oh ignorncia macia ! Fizeste ma ior e logio das piores. Mas que dids em louvor ela mulher verdadeiramente merecedora ele encmios, q ue, escudada em seu merecimento, obriga a render-se a prpria maledicncia?

    IJ\GO - A que bela foi sempre, no vaidosa, e, podendo falar, no foi verbosa; a que, tendo ouro larga, no se enfe i ta, e, coibindo-se, diz: n um a outra fei ta ; a que, ofendida e a ponto de v ingar-se, sabe conter-se e a fria deixa alar-se; a que no fsse nsci a que trocasse salmo por bacalhau com alegre face ; ;i que pensasse e no d issesse n a d a e a o s chichisbus fugisse recatada; Lal mulher, se existisse, claro seja . . .

    DESDl\[Ql\',\ - De q u e ira d igna? I AGO - De criar pasdcios e provar cervej a. DESD1\[0::\A - Oh! Semelhante concluso por demi is co

    xa, mu i Lo dbi l . Emlia, no aprendas nada com le, embora sej a teu m arido. Que pensais, Cssio? :-\o um conselheiro l i cencioso e ele m u i to m l ngua?

    CSSIO - A l inguagem dle rude, de fato, m inha enhora ; preciso ficardes apreciando nle m a i s o soldado cio q ue o erudito.

    J..-\GO ( pa rte) - le a segura pela rnfo. Iu i to hen 1 ! Cochicha-lhe aos ouvidos. Com urna teiazinha to peq uena assim, pretendo pegar uma msca e lo tamanho de Cssi o. S i m , dirige-

  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    lhe sorrisos; mais um pouco, e eu te amarrarei com tuas prprias cortesias. Tendes razo : assim mesmo. Se vierdes a perder o psto de tenente por umas frioleiras dsse porte, melhor vos teria sido no ter beijado tantas vzes os trs dedos, como ainda vos mostrais disposto a fazer, para vos apresentardes como senhor ele respeito. Muito bem! Belo beijo ! Excelente cortesia ! assim mesmo, no h dvida. Levais mais uma vez os dedos bca? Quisera que vos servissem com outras tantas cnulas de clister. . .

    (Ouve-se toq ue de trombeta.) O Mouro ! Conheo o som da trombeta dle.

    CSSIO - le mesmo. DESDE.MONA - Vamos ao encontro dle para receb-lo. CSSIO - Ei-lo que chega.

    (En tra O telo e sqito.) OTELO - Minha linda guerreira ! DESDtMONA - Caro Otelo! OTELO - Tanto contentamento quanto espanto

    me causa ver que antes de mim chegastes. alegria de minha alma! Caso viesse sempre depois da tempestade semelhante bonana, poderiam soprar os ventos de acordar a morte. Que o meu barquinho escale montes de gua to altos quanto o Olimpo e, aps, afunde tanto quanto distar do cu o inferno. A morte, agora, para mim seria uma felicidade, pois to grande a ventura que da alma se me apossa, que no pode, receio-o, reservar-me outra igual o futuro nebuloso.

    DESDMONA - Permita o cu que nosso amor e nossa .felicidade cresam como os dias que ainda temos de vida.

    OTELO - Amm, poderes inefYeis! No posso falar muito sbre sse assunto. Sinto-me abafado; excessiva alegria.

    54

  • (Beijando Desdm onn.) Recebe ste,

    e ste tambm. Que a nica discrdia de nossos coraes tenha ste aspecto. _

    IAGO ( parte) - Oh! Por enquanto estais bem afinados, mas eu me incumbo de afrouxar as cordas que produzem tal msica ; to certo como eu ser gente honesta.

    OTELO - Vamos logo para o castelo. Trago novidades, caros amigos. Acabou-se a guerra;

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  • \ \' I 1. L l . \ l\f S H A K E S P E :\ R E

    os turcos se a fogara m . Como passam os moradores d a i lha, meus amigos? Vais ser, amor, m uito querida em Chi pre. Em todos encontrei m ui t a amizade. m inha doce amiga, estou pulando de um assunto para ou tro, desconexo; tanta fel icidade me estonteia. Por obsquio, bom lago, vai ao prto, desembarca meus cofres e conduze ao forte o comandante . um homem d igno; sens n1ritos impem s respeito. Desdmon a , subamos. Novamente : s mui bem-vinda a Chipre.

    (Sne11 1 todos, co m exceo de lago e Rodrigo.) L \GO - Vai logo encon trar-me no prto. Aproxima-te. Se

    fores um rapaz valen te, sendo verdade, como d izem, que as pessoas de baixa ex trao, quando apaixonadas revelam m a i s nobreza do que seria de esperar ele sua n atureza : escut a-me. Hoje noite o tenente ficar de vigia no corpo da guarda. Para comear, preciso dizer-te o segu i n te : Desdmona est apai xonada por lc.

    RO D R I G O - Por le? No possvel . I A G O - Pe o dedo assim e deixa que tua a l m a se instrua.

    Recorda a violncia com que de i n cio ela amou o l\Iouro, s ror causa de suas fanfarronadas e de suas aventuras ment i rosas. Am-lo-ia sempre por sua tagarelice? Que o teu corao discreto no acredite cm semelhante coisa . Ela precisar{t espairecer a vist a ; e que deleite poder encontrar na con templao do demnio? Q u ando o sangue se torna pesado pelo ato elo prazer, para inUam{t-lo ele novo e para despertar o apetite ;'t saciedade preciso que o amante seja de aparn cia agracLtvel e que haj a uma espcie ele simpatia quanto it i dade, os cos Lumes e os encan tos pessoais , o de q ue o Mouro carece por completo. Ora, no existindo sses req u isitos vantajosos, s u a ternura delicada ficar desiludida, sentir{t n;iuseas, revelando, por fim, repulsa e a sco pelo l\Iouro. A prpria n a tureza lhe ensinar

  • O T E L O

    da - quem se acha mais alto elo que Cssio na escada dessa felicidade? um tipo volvel, cuj a escrupulosidade s vai at ao ponto de permiti-lo assumir a simples forma de uma aparncia afvel e educada, para melhor satisfazer os apetites mais inconfessos e licenciosos. Ningum mais ! Ningum mais ! um tipo astucioso e equvoco, sempre cata de oportunidades, com um lho que pode cunhar e falsificar vantagens, muito embora a verdadeira vantagem nunca chegue a se apresentar . . . Um sujeito diablico! Ao l ado disso, de figura apresent

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    que eu arranjar para promov-los, ficando removido com facilidade o obstculo sem o qual no poderemos esperar nenhum xito.

    RODRIGO - o que farei, no caso de encontrar oportunidade.

    IAGO - Por isso eu me responsabilizo. Vai logo procurarme no forte ; tenho de desembarcar a bagagem do Mouro. Adeus.

    RODRIGO - Adeus. (Sai.)

    IAGO - Que amor lhe tenha Cssio, o que acredito; que ela o ame, quase certo e compreensvel. O Mouro, embora eu suportar no o possa, por natureza firme, nobre e amvel, tendo eu plena certeza de que le h de ser o marido ideal para Desdmona. Mas eu tambm a amo, no por simples concupiscncia, muito embora eu seja tambm passvel dessa grande falta. No; para saciar minha vingana, pois suspeito que o Mouro luxurioso pulou na minha sela, pensamento sse que, como mineral nocivo, me corri as entranhas, sem que nada possa ou deva deixar-me a alma aliviada antes de virmos nisso a ficar quites: mulher por mulher. Falhando o plano, farei tal cime despertar no Mouro, que no possa cur-lo o raciocnio. Para obter isso - caso_ ste sabujo de Veneza, que trela sempre trago, saiba encontrar o rasto e correr firme pegarei Miguel Cssio pelo flanco, pois temo que le tambm tenha usado meu gorro ,de dormir. Assim, o Mouro me amar, ficar-me- reconhecido,

    58

  • e um prmio me dar
  • CENA II

    Uma rua. E11 t ra um a rn u t o com uma proclamao; seguem-110

    j1essoas do povo.

    ARAUTO - vontade de Otelo, nosso nobre e valente general, que, por motivo das notcias do completo desbarato da armada turca, festejem todos sse triunfo com trajes alegres, ou seja danando, ou acendendo fogueiras, ou entregando-se aos d ivertimentos e prazeres a que estiverem mais i nclinados. Porque alm dessas notcias auspiciosas, celebra Otelo tambm o seu casamento. Assim, determinou qne se fizesse esta proclamao. Tclas as lojas ficaro abertas, havendo inteira l iberdade ele d iverso, desde agora, cinco horas ela Larde, a t dar o sino o s inal elas onze. Que o cu abenoe a i lha ele Chipre e o nosso nobre general Otelo!

    (Saem .)

    CENA I II

    Uma sa la 1 10 castelo. En t ram O telo, Desdem ona, Cssio e pessoas do seqii i to .

    OTELO - Caro :\I iguel, cuidai ela guarda < \ noite . :\ostrenws pelo exemplo a clecorosa moderao, porque no haja excesso nas festas permiL idas.

    CASSIO - J dei ordens para lago a sse respeito. No obstante, pessoalmente irei ver tudo ele perto.

    OTELO - lago pessoa honesta. Boa noi Lc, :\Iigucl ; quanto mais cedo fr possvel, vinde amanh fa lar-me.

    60

  • "

    O T E L O

    (A Desdnwna.) Vamos, querida ;

    j fizemos a compra ; ora preciso saber aproveit-la com juzo.

    (Saem O telo, Desdmona e sq ii ito.) (En t ra lago.)

    CSSIO - Scle bem-vindo, lago. Precisamos ir para a guarda. IAGO - Ainda falta muito tempo, tenente; no so dez

    horas. Nosso general nos despediu assim to cedo por amor de sua Desdmona, pelo que, al is, no podemos censurlo; ainda no passou uma noite regalada com ela, que um pratinho para Jove.

    CSSIO - uma senhora admirvel. IAGO - E deliciosa, posso asseverar. CSSIO - Realmente, uma criatura muito lou e delicada. IAGO - E que olhos tem! Soam-me como um convite para o

    assa lto. CSSIO - Olhar atraente, ele fato, mas muito modesto. IAGO - E quando fala, no parece uma alvorada para o amor? CASSIO - , de fato, a perfeio em pessoa. IAGO - Muito bem ; felicidade para seus lenis. Vamos, te

    nente; tenho um quartal ele vinho e a fora um par ele galantes chipriotas que de bom grado beberiam sade cio negro Otelo.

    CASSIO - No hoje noite, meu bom lago ; tenho a ca bea muito fraca para bebidas. Desejara que a cortesia inventasse outras maneiras ele manifestarmos a alegria.

    IAGO - Oh! so nossos amigos ! Um copo, smente; beberei em vosso lugar.

    CSSIO - S bebi esta noite um copo, e assim mesmo muito diludo; mas, apesar disso, podeis ver que desarranjo produziu aqui. um defeito lastimvel; no quero pr prova mais uma vez a minha fraqueza.

    IAGO - Ora, homem! A noi te, hoje, ele fol ia ! Os rapazes que i nsistem.

    CSS I O - Onde se encontram? JAGO - Aqui, :t porta; chamai-os, por obsquio.

    6 1

    -

  • CSSIO

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    Vou faz-lo, mas a contragosto. (Sai.)

    IAGO - Se eu puder empurrar-lhe mais um copo alm do que le j bebeu tarde, ficar to rixento e quereloso como uma cadelinha. Aqule tonto, Rodrigo, a quem o amor virou no avsso, esta noite, sade de Desdmona bebeu potes seguidos. Vai dar guarda. Mais trs rapazes ele alto e nobre esprito, que em distncia prudente a honra conservam, elementos desta ilha belicosa, esta noite deixei meio confusos com copos transbordantes. Todos les iro tambm dar guarda. Ora, no meio de tantos bbedos, farei que Cssio pratique qualquer ato que alborto venha na ilha a causar. Ei-los que chegam. Se condisser com os sonhos a seqela, meu barco correr com vento e vela.

    (Volta Cssio, acompanhado de J\!fontano e vanos cavalheiros. Entram criados com vinho.)

    CSSIO - Por Deus ! J me fizeram beber uma boa caneca. MONTANO - Pequenita, por minha f ; no chegava a uma

    pinta; to certo como eu ser soldado. IAGO - Tragam-nos vinho, ol!

    (Can ta.) Fazei tinir a caneca ! Fazei tinir a caneca ! . . . A vida quente, soldado gente . . .

    Soldado . . . que leve a breca !

    Mais vinho, rapazes ! CSSIO - Por Deus, excelente cano. IAGO - Aprendi-a na Inglaterra, onde se bebe, em verdade,

    largamente. Vosso dinamarqus, vosso alemo e vosso holands panudo - it sade, ol ! - so nada, comparados com os inglses.

    62

  • CSSIO - Vosso ingls to entendido em bebidas, assim? JAGO - Ora, com a maior facilidade lc bebe de matar vosso

    dinamarqus ; no chega a suar para derrubar vosso alemo e faz vosso holands vomitar antes de encherem de novo a caneca.

    CSSIO - sade do nosso general! MONTANO - O mesmo eu digo, tenente; fao-vos justia. IAGO - Oh, doce Inglaterra!

    (Can ta.) O rei Estvo, mui digno par, deu pelas calas uma coroa;

    mas achou caro; no quer pagar; chama o alfaiate de coisa -toa.

    Era de casa de grande fama; mas tu no passas de um gafanhoto.

    O orgulho o reino joga na lama; por isso veste teu manto rto.

    Mais vinho, ol! CSSIO - Essa cano ainda mais esquisita do que a outra. IAGO - Desejais que a repita?

    63

  • W I L L I A l'vf S H A K E S P E A R E

    CSSIO - N o, porque considero indigno de seu psto quem se conduz por sse modo. Sim, Deus est acima de tudo; h

  • -------------- --<

    O T E L O

    Decerto ignora tudo; ou, porventura, sua bondade louva em Cssio apenas a virtude aparente, sem das faltas tomar conhecimento. No verdade?

    (Entra Rodrigo.) IAGO ( parte, a Rodrigo) -

    Que h

  • - -;r--

    W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    JAGO ( parte, a Rodrigo) Sa, vos digo. Ide tocar alarma.

    (Sai Rodrigo.) No, meu caro tenente ! Oh Deus ! Senhores ! Socorro, ol! Tenente! Bom Montano! Socorro, ol! Que bela guarda temos !

    (O sino toca.) Quem estar tocando o sino? Diablo! Vo alarmar tda a cidade. Calma! Calma, senhores! Calma ! Para sempre vos heis de envergonhar.

    OTELO -MONTANO

    gravemente.

    (En tram Otelo e sqito.) Que aconteceu?

    Com a breca! Estou sangrando; estou ferido

    OTELO - Parai, por vossas vidas! IAGO - Calma, tenente! Cavalheiros, calma !

    Porventura perdestes todo o senso do dever e lugar? Parai ! Que oprbrio!

    OTELO - Ento, que aconteceu? Como foi isso? Viramos turcos para permitir-nos o que o cu no consente aos otomanos? Pelo pudor cristo, parai com essa gritaria de brbaros. Aqule que se mexer para saciar a raiva, no faz caso da vida; homem morto. Fazei calar sse terrvel sino, que le espanta a ilha e a tira de seus hbitos. Que aconteceu, senhores? Honesto lago, pareces morto de tristeza; dize-me : quem comeou? Por teu amor, intimo-te.

    IAGO - No sei; amigos ramos h pouco, neste momento, em trmos como noivos, quando se despem antes de ir deitar-se. De repente, agorinha mesmo, como se algum planta houvesse o mundo todo deixado dementado, espadas fora, visando o peito um do outro, em sanguinria

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  • O T E L O

    oposio. Dizer no posso como principiou esta odiosa diferena. Fra melhor haver no campo de honra perdido as pernas que me conduziram para ser parte nisto.

    OTELO - Qual a causa, Miguel, de vos haverdes esquecido de vs mesmo a ste ponto?

    CASSIO - S vos peo que me perdoeis, porque falar no posso.

    OTELO - Digno Montano, sempre fstes probo; conhece o mundo a calma e a gravidade de vossa mocidade; vosso nome grande na bca dos juzes sbios. Que aconteceu, para que vossa fama desabotoeis assim e a vossa rica reputao gasteis s pelo nome de brigador noturno? Respondei-me.

    MONTANO - Digno Otelo, ferido estou ele morte. lago, vosso oficial, pode informar-vos -porque eu me poupe, que falar me cansa tudo o que sei. No sei de nada errado que esta noite eu tivesse dito ou feito, a no ser que o amor-prprio seja um vcio e pecado nos pormos em defesa, quando algum nos ataca.

    OTELO - Agora, pelo cu, sinto que o sangue comea a dirigir-me o entendimento, e que a paixo, j tendo obscurecido minha razo, procura arrebatar-me. Se eu me mexer ou levantar o brao, o melhor dentre vs cair ao pso de minha repreenso. Dizei-me como teve princpio sse tropel estpido, quem foi o causador. Quem quer que tenha sido o culpado de to cru delito -irmo gmeo me fsse, de um s parto de mim o afastarei. Pois como! Numa praa de guerra inquieta ainda, todos

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    com o corao a transbordar de mdo, provocarem questes particulares, de noite e no local, precisamente, da guarda e segurana ! Oh! monstruoso.

    l\IIONTANO - Se razes de amizade ou de hierarquia a dizer te levarem mais ou menos do que a verdade, que no s soldado.

    IAGO - No me apertes assim. Preferiria que da bca esta lngua me cortassem, a ofender ele algum modo a Miguel Cssio. l\tfas convencido estou de que a verdade mal nenhum lhe farit. Eis como tudo se passou, general. Eu e Montano a conversar estvamos. De sbito, a gritar por socorro entra um sujeito perseguido por Cssio, que, de espada desembainhada, a ponto se encontrava de desferir-lhe um golpe. ste fidalgo, senhor, deteve Cssio, procurando demov-lo elo intento. Eu sa logo em ps do tipo que corria aos berros, para ver se evitava que seus gritos -como se deu, de fato - provocassem o alarma na cidade. Mas, dotado de ps velozes, le, em pouco tempo, me frustrou a inteno, tendo eu achado mais prudente voltar, por ter ouvido tinir ele espadas e exaltadas juras proferidas por Cssio, o que impossvel me fra acreditar at esta noite. Ao retornar - porque tudo isso fra obra ele alguns momentos - encontrei-os engalfinhados, em defesa e ataque, tal como estavam, quando aqui chegastes, para vir separ-los. tudo quanto sei sbre sse assunto. :Mas os homens so homens, e por vzes o melhor pode errar. Embora Cssio houvesse feito alguma ofensa ao outro -

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  • O T E L O

    pois quando arrebatados, machucamos at o melhor amigo - estou convicto de que le recebeu do que fugia urna dessas injrias nunca ouvidas, que admitir a pacincia no consegue.

    OTELO - lago, sei bem que a tua honestidade e teu bom corao ora te levam a atenuar ste assunto, para que le pese menos em Cssio. Cssio, estimo-te; mas nunca mais sers meu oficial.

    (Entra Desdmona, acompanhada.) Vde! Acordaram minha terna espsa!

    (A Cssio.) Um castigo exemplar pretendo dar-te.

    DESDMONA - Que aconteceu? OTELO - Tudo est bem, querida.

    Retorna para o leito. (A senhor, o cirurgio serei Levai-o logo.

    Montano.) Dsses golpes, eu prprio.

    (Mon tano conduzido.) lago, inspeciona bem tda a cidade e tranqiliza os que essa vil querela possa ter alarmado. Vem, Desclmona; sempre assim a vida ele um soldado : ter amide o sono despertado.

    '(Saem todos, com exceo de lago e Cssio.) IAGO - Qu! Estais ferido, tenente? CASSIO - Sim, sem possibilidade de cura . IAGO - Oh! No o permita o cu. CASSIO - Reputao, reputao, reputao ! Oh! perdi a

    reputao, perdi a parte imortal de mim prprio, s me tendo restado a bestial. Minha reputao, lago; minha reputao!

    IAGO - To certo como eu ser um homem honesto, pensei que houvesses recebido algum ferimento no corpo; h mais prejuzo nisso do que na reputao. A reputao um apndice ocioso e enganador; obtido, muitas vzes, sem merecimento, e perdido sem nenhuma culpa. No perdestes

    G9

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    nenhuma reputao, a menos que vos considereis como tendo sofrido semelhante perda. Que isso, homem! H muitos meios de reconquistar a estima elo general; fstes despedido apenas em um momento de mau humor; um castigo aplicado mais por consideraes de ordem geral do que por maldade, justamente como no caso de bater algum em seu cozinho inofensivo, para amedrontar um leo temvel. Implorai-lhe perdo e .le se tornar vosso outra vez.

    CSSIO - Preferira implorar o seu clesprzo a enganar um comandante to bom com um oficial to leviano, bbedo e indiscreto. Embriagado! Falando como papagaio ! Provocar brigas, fazer fanfarronadas, jurar e falar empolado com a prpria sombra! esprito invisvel do vinho! Se no s ainda conhecido por nenhum nome, recebe o de clemnio.

    IAGO - Quem era o sujeito a quem persegueis de espada em punho? Que vos havia feito?

    CSSIO - N o sei. IAGO - Ser possvel? CSSIO - Recordo-me de uma infinidade de coisas, mas nada

    distintamente; ele uma briga, porm no de seus motivos. Oh Deus! Terem os homens o inimigo na prpria bca, para roubar-lhes o crebro! Constituir para ns alegria, prazer, divertimento e jbilo isso de nos transformarmos em brutos !

    IAGO - Mas interessante que estais agora inteiramente l cido ! De que modo recuperastes os sentidos assim to depressa?

    CSSIO - Aprouve ao demnio da embriaguez ceder o lugar ao demnio clera. Uma imperfeio me mostra outra, ensinando-me a detestar-me sem reservas_

    IAGO - Ora, vamos; sois um moralista muito severo. Considerando-se o momento, o lugar e as condies da cidade, sinceramente, eu preferira que tudo isso no houvesse acontecido; mas j que como , tratai de consertar as coisas em proveito prprio.

    CSSIO -- Vou pedir-lhe que me reintegre no meu psto; le vai responder-me que eu sou um bbedo. Se eu tivesse tantas bcas como a hidra, semelhante resposta mas entu-

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  • O T E L O

    piria tdas. H pouco eu era um indivduo aju izado; logo depois, um tolo; e neste momento, um bruto. Ohl terrvel ! amaldioado todo copo bebido fora da conta, sendo o seu contedo o prprio diabo.

    IAGO - Vamos, vamos; o bom vinho um camarada bondoso e ele confiana, quando tomado com sabedoria; no continueis a falar mal dle. E, meu bom tenente, creio que tendes certeza de que vos tenho amizade.

    CSSIO - J tive disso sobejas provas, senhor. Eu, bbedo! IAGO - Ora, homem! Vs, ou qualquer pessoa viva podeis

    embriagar-vos de vez em quando. Vou dizer-vos o que deveis fazer. A mulher do nosso general agora o general. Posso exprimir-me dessa maneira, por ter-se le devotado e dedicado co ntemplao, ao exame e observao de suas partes e graas. Falai-lhe com franqueza; importunai-a, que ela vos ajudar a reconquistar sse lugar. de uma disposio to franca e generosa, to bondosa e abenoada, que em sua bondade considera vcio no fazer mais do que o que se lhe pede. Pedi-lhe que conserte a fratura da articulao existente entre vs e o marido dela. E todos os meus bens contra qualquer coisa sem valor em como essa fratura elo vosso amor vai ficar mais forte do que era antes.

    CSSIO - Dais-me um bom conselho. IAGO - Podeis crer que o fao com a maior sinceridade e

    com afeio honesta. CSSIO - Tenho certeza disso; logo que amanhecer, vou

    pedir virtuosa Desclmona que interceda a meu favor. Perderei a confiana na sorte, se ela me fr contrrio neste passo.

    IAGO - Tendes razo. Boa noite, tenente; preciso ir para a guarda.

    CSSIO - Boa noite, honesto lago. (Sai.)

    IAGO - Quem poder dizer que eu represento papel de celeraclo, se o conselho que eu dei honesto e leal, muito plausvel e em verdade o caminho para ao l\tiouro vir a reconquistar? Sim, porque muito

    7 1

  • fcil de conseguir que a complacente Desclmona se empenhe em qualquer splica honesta ; dadivosa como a terra. E para obter do Mouro qualquer coisa muito embora para le se tratasse de abrir mo do batismo, das insgnias e smbolos de uma alma redimida -tanto le o corao traz encadeado na afeio de Desdmona, que tudo fazer ou desfazer ela consegue, como entender, reinando como deusa sua vontade sbre o fraco espso. Estarei sendo, acaso, um celerado, por ter mostrado a Cssio sse caminho que vai dar ao seu bem, diretamente? Divindades do inferno! Quando os diabos querem dar corpo aos mais nefandos crimes, celestial aparncia lhes emprestam, tal como agora fao. Pois, enquanto ste imbecil honesto pede bela Desdmona que cure a sua sorte,

    72

  • O T E L O

    e ela sbre isso insiste junto ao Mouro. veneno deitarei no ouvido dle, com dizer que ela o faz s por luxria; quanto mais houver feito ela por le, mais, junto ao Mouro, h de perder o crdito. Transformarei em pez sua virtude, e com a prpria bondade apresto a rde que h de a todos pegar.

    ( Volta Rodrigo.) Ento, Rodrigo?

    RODRIGO - Sigo-te nesta caada no como um cachorro que persegue, mas como o que apenas completa a matilha. J gastei quase todo o meu dinheiro; esta noite fui sovado de rijo, estando certo de que o resultado final consistir em ganhar experincia custa prpria, e, assim, sem dinheiro nenhum e com um pouco mais de sabedoria, voltar para Veneza.

    IAGO - Quo pobre quem carece de pacincia! Qual a ferida que no sara aos poucos? Bem sabes que eu trabalho com a cabea, no por meio de mgica, e em tudo depende aquela do tardio tempo. No vai tudo to bem? Cssio bateu-te; e em troca dessas dores de brinquedo fizeste que le o seu lugar perdesse. Psto sazone o sol todos os frutos, os da primeira florao se tornam maduros mais depressa. S paciente. Mas, pela :Missa ! J quase dia! Os folguedos e a ao as horas fazem parecer muito curtas. :Mas retira-te; vai logo para o teu alojamento. No te demores, digo; mais de espao te contarei o que h. Vamos, retira-te.

    (Sai Rodrigo.) E agora, duas coisas: sbre Cssio, falar minha mulher junto senhora;

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  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    vou concit-la j: 1. Nesse entrementes, chamarei o Mouro para que venha encontrar Cssio, quando falando estiver ste com Desdmona. sse o caminho certo; que a tardana no me faa perder a segurana.

    (Sai.)

  • A T O I I I

    CENA I

    Chipre. Diante do castelo. Entram Cssio e a lguns m sicos.

    CSSIO - Mestres, cantai ; pagar-vos-ei o incmodo. Algo bem curto; e, ao fim, falai desta arte: "Bom dia, general ! "

    (Msica.) (En tra o bbo.)

    BBO - Ol, mestres! Vossos instrumentos estiveram em Npoles, para falarem assim pelo nariz?

    75

  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    PRIMEIRO MSICO - Como assim, senhor? BBO - Por obsquio : a isso que chamais instrumentos

    de vento? PRIMEIRO MSICO - Perfeitamente, senhor. 13BO - Ento les devem ter um apndice. PRil'vlEIRO MSICO - Como apndice, senhor? BBO - Ora, senhor, como muitos instrumentos de vento

    que eu conheo. Mas, caros mestres, trago-vos ste dinheiro. O general aprecia tanto vossa msica, que em nome da amizade vos pede no continuardes com sse barulho.

    PRIMEIRO MSICO - Perfeitamente, senhor; no continuaremos.

    BBO - Se tiverdes alguma msica que no se oua, ento que venha essa; mas com a que se ouve, o general no se preocupa, nem eu tampouco.

    PRIMEIRO MSICO - Dessa espcie no temos, senhor. BBO - Nesse caso, enfiai as flautas nos sacos, porque pre

    ciso retirar-me. Vamos! Desaparecei no ar! Toca! (Saem os msicos.)

    CSSIO - Ests ouvindo, meu honesto amigo? BBO - No; no estou ouvindo vosso honesto amigo; estou

    vos ouvindo. CSSIO - Por obsquio, pra com essas graas. Aqui tens

    uma pequena moeda de ouro. Se a dama de companhia da senhora do general j estiver de p, dize-lhe que aqui fora se encontra um certo Cssio que solicita dela alguns momentos de ateno. Far-me-s isso?

    BBO - E la j est de p, senhor; no caso de vir ela at ste ponto, dar-lhe-ei vosso recado.

    CSSIO - Sim, caro amigo. (Sai o bbo.)

    (En tra lago.) Em feliz hora, lago.

    IAGO - Ento, no vos deitastes? CSSIO - Oh, no! Raiou o dia,

    quando nos separamos. Tomei, lago, a l iberdade de mandar um prprio chamar vossa mulher; quero pedir-lhe

    76

  • O T E L O

    o obsquio de me obter uma entrevista com a virtuosa Desdmona.

    IAGO - Sem falta, farei que vos procure agora mesmo. Alm do mais, vou arranjar um meio para distrair o Mouro e, assim, poderdes falar de vosso assunto livremente.

    CSSIO - De todo corao vos agradeo. (Sai lago.)

    Nunca vi florentino to honesto e servial.

    (Entra Emlia.) EMLIA - Bom dia, bom tenente.

    Estou penalizada por vos terdes desavindo com Otelo. Mas em pouco, tudo acabar bem. Neste momento o general e a espsa falam nisso, com ardor pleiteando ela vossa causa. Mas o Mouro lhe objeta que a pessoa que feristes em Chipre conceituada e de alta parentela, aconselhando-o por isso, a demitir-vos a prudncia. Por outro lado, afirma que vos ama, no tendo preciso de outros padrinhos alm da afeio prpria, e que s espera momento azado para reintegrar-vos.

    CSSIO - Contudo, vos suplico - se julgardes conveniente ou possvel - a vantagem me obterdes de eu falar a ss com ela, numa entrevista curta.

    EMLIA - Por obsquio, acompanhai-me. Arranjarei as coisas de modo que possais com liberdade desafogar o peito.

    CSSIO - Agradecido vos sou de todo o corao por isso.

    (Saem.)

    77

  • CENA I I

    Um quarto n o castelo. Entram Otelo, lago e gen tis-h om ens.

    OTELO - lago, entrega estas cartas ao pilto, e que ao Senado le me recomende. Nesse entrementes, vou olhar as obras; vai ter comigo l.

    IAGO - Perfeitamente, meu bom senhor.

    OTELO - Quereis, meus caros nobres, inspecionar aquela fortaleza?

    GENTIS-HOi\IENS - Estamos ao dispor de Vossa Graa. (Saem.)

    CENA III

    Diante do castelo . Entram Desdmona, Cssio e Emlia.

    DESDMONA - Podeis ficar tranqilo, meu bom Cssio; farei por vs o que me fr possvel.

    EMLIA - Sim, bondosa senhora; meu marido se aborreceu tanto com isso, como se fsse dle o caso.

    DESDMONA -Oh! Que homem de valor! No tenhais dvida, Cssio, que hei de fazer que vs e Otelo vos torneis bons amigos como dantes.

    CASSIO - Generosa senhora, seja a sorte qual fr de Miguel Cssio, nunca le h de ser outra coisa, seno to-smente vosso lea 1 servidor.

    78

  • DESDMONA - Tenho certeza disso e vos agradeo. Amais a Otelo; h muito o conheceis. Ficai, pois, certo que a frieza dle durar somente, enquanto as convenincias o exigirem.

    CSSIO - Pois no, senhora; mas as convenincias podero ser morosas e viverem com dieta to aguada e delicada ou com tais circunstncias se nutrirem, que, ausente eu me encontrando e j ocupado meu psto, acabar por olvidar-se meu general do meu amor e prstimos.

    DESDMONA - Que isso no te preocupe. Aqui, em frente de Emlia te asseguro o antigo psto. Podes ficar tranqilo; quando eu fao um voto de amizade, cumpro-o risca. Meu marido no mais ter sossgo; hei de amans-lo custa de viglias; sua pacincia ser posta prova; escola vai virar o leito dle; confessionrio, a mesa. Em tudo quanto

    79

  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    quiser fazer, misturarei a splica de Cssio. Por tudo isso, Cssio, alegra-te; porque, antes de desistir de tua causa h de a vida perder teu advogado.

    (Entram lago e O telo e se conservam a distncia.) EMLIA - Senhora, a vem meu amo. CASSIO - Senhora, aqui despeo-me. DESD\10NA - Esperai para ouvir-me defender-vos. CASSIO - Noutra ocasio, senhora; estou indisposto

    e incapaz de servir meu prprio intuito. DESDMONA - Como quiserdes.

    (Sai Cssio.) IAGO - Isso no me agrada i OTELO - Como disseste? IAGO - Nada, meu senhor;

    ou, talvez . . . J no sei. OTELO - No era Cssio

    que estava a conversar com minha espsa? IAGO - Cssio, senhor? Acreditar no posso

    que le como culpado se esgueirasse, quando vos viu chegar.

    OTELO - Creio que era le. DESDMONA - Oh! meu marido !

    Estive a conversar com um suplicante; que vosso desfavor faz definhar.

    OTELO - A quem vos referis? DESDMONA - Oh! a vosso tenente Cssio. Caro

    marido, se eu possuo graa ou fra para vos comover, reconciliai-vos com le desde j . Se no se trata de uma pessoa que vos afeioada sinceramente, e errou mais por descuido do que por inteno, no sei, de fato, reconhecer uma feio honesta. Peo-te que o reintegres no seu psto.

    OTELO - Daqui no saiu le agora mesmo?

    80

  • O T E L O

    DESDMONA - Sim, e to abatido que comigo deixou parte das mgoas que ainda me compungem. Chama-o, caro!

    OTELO - Mais tarde, agora no, cara Desdmona. DESDMONA - Mas ser logo? OTELO - Logo que possvel,

    j que assim desejas. minha querida, DESDMONA OTELO -

    Hoje de noite, ceia? A noite, no.

    DESDlVIONA - Ento amanh cedo, hora do almo? OTELO - No estarei em casa amanh cedo;

    almoarei com os capites no forte. DESDMONA - Quando? Amanh noite? Ou tra-feira

    pela manh? ou noite? ou quarta-feira cedinho? Por obsquio: marca a data ; contanto que no passe de trs dias. Arrependeu-se, certo. Alis, seu rro, segundo o so juzo - se no fsse dizerem que na guerra necessrio castigar os melhores, para exemplo - falta que mal pode ser punida. Quando poder vir? Dizei-me, Otelo. Pergunto-me, admirada, o que podeis pedir-me que eu negasse, ou me deixasse vacilante a sse ponto. incompreensvel! Miguel Ctssio, sse mesmo que se achava convosco, quando a crte me fizestes, e que, mais de urna vez, se acontecia eu de vs dizer algo em desacrdo, vos defendia logo : terei tanto trabalho para reemposs-lo agora? Acreditai-me: eu poderia muito . . .

    OTELO - Por favor, no prossigas. Pois que venha, quando bem entender; no te recuso coisa nenhuma.

    DESDMONA - Ora, isso no graa; corno se eu pedisse que pussseis as luvas ou comsseis pratos pingues,

    8 1 6 OTELO

  • W I L L I A M S H A K E S P E A R E

    uo vos resfrisseis, insistindo muito sbre algo que vos fsse de proveito. No; se vos fao algum pedido, para pr vosso amor prova, ser sempre de muito pso e mui penoso fardo, de grave concesso.

    OTELO - No te recuso coisa nenhuma. Mas, por isso mesmo te suplico um favor; vais conceder-mo, deixando-me um pouquinho a ss comigo.

    DESDMONA - Eu, recusar-to? No. Adeus, senhor. OTELO - Adeus, querida; s por uns momentos. DESDMONA - Emlia, vamos logo. Seja tudo

    como vossos caprichos entenderem. Tal como fordes, hei ele obedecer-vos.

    (Sai com Emlia.) OTELO - Adorvel criatura ! Que minha alma

    a apanhe a perdio, se eu no te amar; e se no te amo, que ste mundo volte de novo para o caos.

    IAGO - Nobre senhor . . . OTELO - Que queres, Iago? IAGO - Acaso Miguel C

  • O T E L O

    IAGO -- Honesto, meu senhor? OTELO - Honesto, s im; honesto. IAGO - Por tudo o que sei dle . . . OTELO - E que que pensas? IAGO - Que penso, meu senhor? OTELO - "Que penso, meu senhor?" Oh! Pelo cu !

    :Ele me serve de eco ! S parece que traz no pensamento um monstro horrvel, horrvel por demais, para ser visto. Alguma coisa deves ter em mente. H pouco, quando Cssio se afastava, Iago, disseste-me : "Isso no me agrada". Que que no te agrada? E ao declarar-te que le de confidente me servira, quando eu fazia a crte minha espsa, exclamaste: "Realmente?" e contraste, fechaste o sobrecenho, parecendo que trancavas, en to, dentro do crebro, alguma idia horrvel. Caso me ames, revela-me o que pensas.

    IAGO - Sabeis, senhor, quanto vos quero bem . OTELO - Sei disso; e por saber quanto s honesto,

    quanta afeio albergas, e que pesas tuas palavras antes de insuflar-lhes o spro animador, mais intranqilo me deixa o in terromp-las. Se essas coisas se passassem com algum sujeito -toa, sem lealdade nem f, eu as tomara por manhas habituais. Em se tratando, porm, de um homem justo, so avisos e de laes sinceras, escapadas de um corao que dominar no pode seus prprios movimentos.

    I AGO - Quanto a Cssio, atrevo-me a jurar que le honesto.

    OTELO - tambm o que eu penso. IAGO - Deveriam

    os homens ser somente o que parecem. ou ento no parecer o que no fssem.

    83

  • -W I L L I A JVI S H A K E S P E A R E

    OTELO - Sim, deveriam ser o que parecem. IAGO - Sendo assim, considero c:1ssio honesto. OTELO - No, no; ocultas algo.

    Peo-te que me fales o que pensas, como as idias fores ruminando, e as mais terrveis digas com palavras mais terrveis tambm.

    IAGO - Senhor, perdoai-me; mas conquanto obrigado esteja a todos os atos do dever, sinto-me livre para me recusar a fazer algo que dos prprios escravos no se exige. Qual o palcio em que no se introduzem, por vzes, coisas sujas? E que peito to puro pode haver, que no contenha culpveis apreenses, que no se assentem nos tribunais, para emitir sentenas lado a belo s idias mais legtimas?

    OTELO - Conspiras, lago, contra teu amigo se, julgando-o u ltrajado, seus ouvidos deixas como estrangeiros ao que pensas.

    IAGO - Suplico-vos, no caso de algo errneo haver no que suspeito - pois confesso que minha natureza se ressente dsse defeito de aventar maldades e que por vzes meu cime inventa faltas que no existem - que ora a vossa sabedoria no empreste a mnima importncia a quem pensa por maneira to defeituosa, nem fundeis vexames no que le possa ter conjeturado por modo to disperso e pouco firme. No fra de vantagem para vosso repouso e paz de esprito, nem para minha sabedoria, honestidade, meus sentimentos ele homem, conhecerdes o que ora estou pensando.

    OTELO - Que pretendes dizer com isso?

    8-1

  • O T E L O

    IAGO -- Um nome imaculado, caro senhor, para a mulher e o homem a melhor jia da alma. Quem da blsa me priva, rouba-me uma ninharia ; qualquer coisa, nada; pertenceu-me, dle, escravo foi de mil pessoas. Mas quem do nome honrado me espolia, me priva de algo que no o enriquece, mas me deixa pauprrimo.

    OTELO - Pelo cu, saber quero o que ora pensas. IAGO - No o podereis, mesmo que tivsseis

    meu corao nas mos, mxime, achando-se le sob minha guarda.

    OTELO -IAGO -

    Ah! Acautelai-vos,

    senhor, do cime; um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive. Vive feliz o espso que, enganado, mas ciente do que passa, no dedica nenhum afeto a quem lhe causa o u ltraje. Mas que minutos infernais no conta quem adora e duvida, quem suspeitas contnuas alimenta e ama deveras !

    OTELO - Oh misria! IAGO - Quem com sua pobreza est contente,

    rico, muito rico; mas riquezas infinitas so como o frio inverno, para quem mdo tem de ficar pobre. Livrai-me, cu bondoso, e as almas tdas de minha tribo, de sentir cimes !

    OTELO - Por qu? Por que tudo isso? Crs, de fato, que eu passaria a vida tendo cimes e as mudanas ela lua acompanhara com suspeitas crescentes? No; a dvida j me traria a soluo do caso. Troca-me por um bode, se o andamento de minha alma eu torcer, com base apenas em infladas e vcuas conjeturas, como ora as apresentas. No me deixa

    8:.

  • enci umado diLerern-me que minha mulher l inda, que aprecia a mesa , gosta d a sociedade, de l inguagem m u i desembaraada, dana, canta e representa bem. Onde h virtude, tudo isso mais v irtuoso, ainda, se torna. No t irarei de meu modesto mrito o menor mdo ou dvida a respeito de seu procedimento; ela t i nha olhos e me escolheu. N o, lago; primeiro hei ele ver para duvidar. E aps a dvida, precisarei ele provas; feitas essas, uma s coisa resta : liquidemos de vez o amor e o cime.

    IAGO - I sso me alegra, porque me c11sej a base suficiente para provar-vos com mais franco esprito a afeio e l ealdade que vos voto. Assim, j {t que o dever a isso me obriga, s incero vou falar, mas no de provas, por enquanto. Vigiai Yossa consorte;

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  • O T E L O